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Ofim do mundo
como o concebemos
Editora Revan
SUMÁRIO
Do original:
The end of world as we know it, cia edição publicada por Universty of Minnesota Press
NOTA DO EDITOR NO BltsIL /7
Copyright © 2001 by Immanuel Wailerstein.
Copyright © 2003 by Editora Revan Ltda.
INTRODUÇÀO À EDIÇÃO BRASILEIRA /9
Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta
publicação poderá reproduzida,
ser seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via PREFÁCIO /31
cópia xerográfica, sem a autorização prévia cia Editora.
INCERTEZA E CRIATIVIDADE: PREMISSAS E CONCLUSÕES /33
Revisão de tradução
Roberto Reixeira
PARTE I
Revisão
O MUNDO DO CAPITALISMO
Marta Ramos
Geni Harb
CAPÍTULO 1 -
CIP -Brasil. Catalogação -na -Fonte Coda: A assim chamada crise asiútica: geopolítica na
longue clurée /83
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
1. Ciências sociais -
Filosofia. 2. Sociologia -
Filosofia. I. Título. PARTE II
II. Título: Ciência social para o século XXI. O MUNDO DO SABER
205
tanto, temos de examinar cuidadosamente o que constitui o eurocentrismo, não Outros povos, terão desencadeado o fenô-
porque os europeus, e
que permaneceu
cio moderno virtude
realizações históricas
especificamente Europa seja considetacla responsável
em de euro-
que seja a inovação pela qual a
péias. A historiografia é provavelmente fundamental para outras explica- entre os séculos XVI e XIX, é uma boa inovação, cia quUipropacly.
ções, mas é também a variante mais obviamente ingênua, cuja validade se otgulhu o test inte do munci inyi ou 'io menos se m0stiu
pode-se muito facilmente qüestionar. Nos últimos dois séculos, os euro- iscetível bern A inovação é percebida corno urna realiza-
de apreciar.
peus estiveram inquestionavelmente sentados no topo do mundo. Coleti- títulos de livro testemunham esta avaliação
ção, e numerosos
vamente, controlaram os países mais ricos e militarmente mais poderosos.
O fato de a historiografia atual cia ciência social mundial ter em
Usufruiram a tecnologia mais avançada e foram os
principais criadores grande medida expressado esse tipo de
percepção cia realidade não me
dessa
tecnologia avançada. Esses fatos parecem ser amplamente iricontestes percepção pode ser questionada em várias
e realmente é difícil
parece muito discutível. Esta
questioná-los de maneira plausível. A questão é o
bases, é claro, o que tern acontecido crescentemente nas décadas
recen-
206 207
em
que a chamada interpretação social, que dominou a literatura duran- de que o passado conduziu inevitavelmente ao
te é a melhor época, e
te pelo menos um século e meio, foi desafiada e depois até certo
ponto E mesmo os ti'tbalhos historicos mais empuicistas por in us
derrubada nos últimos 30 anos. Provavelmente, estamos entrando num presente
queioclamassem sua aversão à teorização, tendiam todavia a refletir
chamado deslocamento paradigmático deste tipo exatamente agora, no
subconscientemente uma subjacente.
teoria das etapas
tocante à historiografia básica da modernidade. Qsob a forma abistórica tempo -reversível dos cientistas sociais
Sempre que este tipo de deslocamento acontece, entretanto, deve- noinoteticos ou sob a forma diacrônica da teoria
das etapas dos histori-
mos respirar fundo, dar um passo
para trás e avaliar se as hipóteses que
adÇiencia social européia
se apresentam são mais
plausíveis, e acima de tudo se realmente rom- acontecido Euro a entre os séculos
que quer que tivesse
na
mar que o
pem com as premissas fundamentais das hipóteses dominantes anterio- todo lugar, seja
padrão aplicável por
em ser
XVI ao )U, representava urn
res. Esta é a
questão que quero sugerir em relação à historiografia das da humanidade, seja porque representava a
conhecimento. A ciência deslocou a filosofia como modo de prestigiado universalizantes da ciência social moderna. Argumentou-se que
as su-
portamento humano, e qualquer hipótese que pudessem verificar se o ter se elevado acima cio paroquial.
manteria no tempo e no devia enunciada de modo esta crítica era muito mais eloqüente
espaço, ou ser a ser Até onde se mantivesse razoável,
válida tempo e espaço. A persona do estudioso do que apenas afirmar que ainda não tinham sido formuladas proposi-
no no era
irrelevante,
pois estudiosos operavam como analistas neutros. E o lócus da evi-
os todos os casos.
ções universais que pudessem contar para
dência empírica podia ser essencialmente urr conjunto de c' actersc is
ignorado, desde que os dados Coilmzação A noção sc efe e
fossem manuseados corretamente, pois o são contrastadas umitivisnIQOUri5nO.
progresso 'sOdais, as quais coin
rc.oütan1e. Contudo, as conseqüências não éiim muito diferenfés no A Europa moderna considera mais do que apenas uma "civilização"
se
ao dos estudiosos
cuja abordagem fosse mais bisrica do q.ue entre várias outras; ela se considera (única ou pelo menos especialmen-
avanço da tecnologia e no aumento da produtividade, assim como na zação" mostrado totalmente impermeáveis ao con
decerto não se têm -
ricos. Para outros, civilização significava a autonomia aumentada cio tão da origem dos valores civilizados, como terão surgiclo originairnente
"indivíduo" face a todos os outros atores sociais -
família, a comunicla-
a (ou assim argumentava-se) ocidental, a resposta quase mcvi
no mundo -
de, o Estado, as instituições religiosas. Para outros, civilização significa- tavelmente foi de
que produto
eram de tendências únicas e de longa
vt compoi imentos não biut us mi vicl't do cita 't -clri condutas sociais duração no p'tssado do mundo ocidenttiF- altêfn2.tlv'trnente clescritos
como herança da antiguidade e/ou das Idades Médias cristãs, herança
no sentido mais amplo. Para outros ainda, civilização significava o dec11-
nio ou estreitamento da extensão cia violência legítima e a ampliação cia do mundo hebreu, ou herança combinada dos dois, esta última opção
definição de crueldade. E para muitos, é claro, civilização envolvia vári- às vezes rebatizada ou reespecificada como herança judaico -cristã.
os ou todos esses traços combinados. Muitas objeções podem e têm sido feitas ao conjunto de pressupo -
Quando os colonizadores franceses cio século )UX falaram de mission sições sucessivas. A noção de que o mundo moderno, ou o mundo
civilisatrice, europeu moderno, é civilizado no mesmo sentido que palavra é usada
a
(ou mais geralmente a Europa) iia aos povos não europeus os no discurso europeu é algo que tem sicloquestionado. Eis a pilhéria
valores e normas abrangidos por estas definições de civilização. Quan- notável de Mahatma Gandhi, que, perguntado: "Sr. Gandhi, o que acha
do, na década de 90, vários grupos nos países ocidentais falaram cio da civilização ocidental?", respondeu: "Seria uma boa idéia". E acrescen -
"direito de intervir" nas situações políticas de várias partes do mundo, te -se que a afirmação de que os valores da Grécia e Roma antigas ou da
emboi't quise sempie p'tites...no Qclclent'us do mundo foi em nome tntmga Israel seu'tm imus conducentes 'to 'tssent'Lmento d'is bases dos
desses mesmos valoies mviliz'icmon'us\ charnidos vibres modernos do que os v'tloies de outmis civilizações
Este çon;unto de T'tioi-es--corno quei prefuimos clesmgn't lo v tio -
iainuem foi coniest idt E fin urnenie o fito die i Ew opa odluemal pu-
réãdfvilizados, valores humanistas seculares, valores modernos reivindicar Grécia e Roma, por um lado, ou a antiga
plausivelmente
permeia der
-
a ciência social, como ei-a de se esperar, já que a ciência social é prociu- Israel, por outro, pano de fundo civilizacional nada tern de
como seu
to cio mesmo sistema histórico que os elevou aos pináculos da hierar- evidente. Com certeza, existe há muito um debate entre os que vêem a
Os cientistas sociais incorporaram estes valores em suas definições Grécia ou Israel como origens culturais alternativas. Cada lado nega a
dos oiobleinis (dos pioblemis socm'iis e dos piobiemis intelectu us) plausibilichcle do outmo lido E 't ocouênci't do debite lançi duvidi
t pent exploi'ti Eles incoipom-u'tm estes vlloles sobie a plausibilidide da clemiv'tçio
que consiclei'tm valei
nos conceitos que inventaram para analisar os problemas e nos indica- De qualquer modo, quem argumentaria que o Japão pode reivincli -
dotes que utilizam pti't mcclii os conceitos Pode se estai ceito cir 'is intigas civilizições inclicis como suis piecuisoias com bise no fito
que i
maioria dos cientistas sociais insistiu em que buscava ser livre de julga- de que se situaram no lugar de origem cio budismo, o qual se tornou
.3 mentos de valor, na medida que afirmava não
em interpretar mal ou parte central da história cultural do Japão? Os Estados Unidos estariam
intencionalmente, em função de mais perto culturalmente de Grécia, Roma ou Israel antigas do que o
::: clistorcer dados suas preferências
sociopoliticas. Mas estar livre de julgamentos de valor não significa ab- Japão da civilização Indica? Poder-se-ia argumentar, afinal, que a cristan
-
,s solutamente que valores, no sentido de decisões sobre a significância dade, longe de representar urna continuidade, marcaria uma ruptura de-
histórica de fenômenos observados, estejam ausentes. Este é o argu- cisiva com a Grécia, Roma e Israel. Vejam bem, foi isto precisamente que
'
mento centi ii de Heinuch Rickeit (1913) sobie 'i especificiclide bogici os crisGos iigument'uirn ite o Renascimento Nio e 't iu tui'i com 1
do que ele chama de "ciências culturais"3. Elas são incapazes de ignorar antiguigç hoje uma parte da doutrina das igrejas cristãs?
"valores" nas suas avaliações da significância social. se
-
zaçao europeia. E
- - .
sua
(Cambridge: Cambi-icige University Press, 1986 [19131).
210 211
construto social de alguém que vinha de cultura diferente. E
central pró- uma
asiáticos, O debate sobre "valores" também
se tornou nos a
e decifrar os textos. No processo, continuaram a depender de passado de toda a filosofia ocidental7, De qualquer modo, a noção se
as línguas vista consensual da
uma visão binária cio mundo social. No da distinção cris-
lugar parcial
tornou o ponto de
Europa do século XIX (e certa-
6
Xiaomei Chen, "Occidentalism as Counterdiscourse: 'He Shang' in Post-Mao
4
Alxlel-Malek, La dialectique socia1e Edward Said, Orientalism (Nova York:
China", Critical Inquiry 19, n 4 (verão de 1992): 687.
Pantheon Books, 1978).
Ver J. B. Bury, The Idea of Progress (Londres: Macmillan, 1920); and Robert
Ver Wilfred Cantweii Smith, "The Place of Oriental Studies in a University",
A. Nisbet, History of the Idea of Progress (Nova York: Basic Books, 1980).
Diogenes 16 (1956): 106-11.
212 213
Sozialpolitik, do Relatório Bevericlge e infinitas comissões governamen- te exagerada e/ou distorcida do papel histórico da Europa, particular-
tais às séries pós-guerra da UNESCO sobre racismo, às pesquisas suces- mente cio seu papel histórico no mundo moderno.
sivas de James Coleman sobre o sistema educacional dos Estados Uni- críticos fazem três
Entretanto, os
tipos diferentes (e um
pouco con-
dos. Após a II Guerra Mundial, a noção de "países desenvolvidos e
traditórios) de alegaçôas.
primeira A é que,
que quer que a Europa o
subdesenvolvidos" constituiu uma rubrica quejustificou o envolvimento tenha experimentado, outras civilizações estavam em processo de experi-
de cientistas sociais de todas as persuasões políticas na reorganização mental; até o momento em que a Europa usou seu poder geopolítico para
social e
política do mundo não ocidental.
interromper o processo em outras partes do mundo. A segunda é que, o
O progresso não foi apenas suposto e analisado; também foi im-
que quer que a Europa tenha experimentado, não passa cia continuação
tão diferente da que discutimos
posto. A situação aqui talvez não seja cio que outros já experimentaram por longos períodos, tendo chegado a
sob a rubrica "civilização". O que deve ser sublinhado é que nooa vez dos europeus de ocuparem a boca de cena. A terceira é que, o que
civiiizaço perdeu sua inocência e coçoii tenha experimentado, foi analisado incorretamerite e
quer que Europa
a
atrair suspeitas (prinrnente depois de 1945), a categoria de progrs- submetido a extrapolações impróprias, produzindo conseqüências pen-
gosas tanto para a ciência como para o rnunclo político. Os dois primeiros
iranÏipoico melhor. A idéia de progresso pareceu servir
argurnentos, arnplarnente oferecidos, me parecem sofrer cio que eu cha-
sua retaguarda. maria de "eurocentrismo antieurocêntrico". O terceiro argumento parece
É claro, a idéia de progresso sempre teve seus críticos conservado-
indubitavelmente correto, e merece nossa plena atenção. Que espécie de
214
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it
-
capitalismo, talvez até bem adiantados nela, ainda nos resta o problema A segunda linha de oposição às análises eurocêntricas é a
de explicar o fato de que foi o Ocidente, ou a Europa, que chegou la em que nega
que haja qualquer coisa de realmente novo no que a Europa fez. Esta
primeiro lugar, e foi conseqüentemente capaz de "conquistar o mundo linha começa destacando que, até o período superior da Idade
Média, e
Voltamos, neste ponto, à questão levantada originalmente: Por que a Certamente por muito tempo antes disso, a Europa ocidental era uma
modernidade/capitalismo no Ocidente? área marginal (periférica) do continente eurasiano, área esta cujo papel
E chio existe hoje quem negue que 'i Euiopi tenha iealrnente
histórico e re'ilizações culturus estavam tbaixo do nivel de vtiias outtas
conquistado o mundo num sentido profundo, baseando seu argumento partes do mundo (como o mundo árabe ou a China). Isto certamente é
no fato de que sempre houve resistência; porém, a mim parece que este
verdade, pelo menos como primeiro nível de
generalização. Mas dá-se
argumento leva um pouco longe demais a nossa capacidade de ler a então salto situa-se
um e
Europa ana construção de uma ecumene ou
iealidade Houve afinal, uma conquista colonial que cobiiu grande par-
estrutura mundial que teria estado em criação por vaiios milhares de
te do globo. Houve, afinal, indicadores da força militar real da Europa.
anos8. Isto não éimplausível, mas o significado sistêmico dessa ecuinene
Não há dúvida, sempre houve muitas formas deresistência, tanto ativa ainda está por ser estabelecido, na minha opinião. chegamos então ao
quanto passiva, mas se a resistência fosse realmente tão formidavel, nao
terceiro elemento na seqüência. Diz-se decorrer da marginalidade ante -
De
Este ultimo argumento me parece muito errado conceitual e histo -
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nhar, negociar e trocar uma coisa pela outra"10. Ele elimina diferenças
essenciais entre sistemas históricos diferentes.Se os chineses, egípcios e
extrapolações impróprias, produzindo conseqüências perigosas tanto
para a ciência como para o mundo político é sem dúvida verdadeira.
europeus ocidentais estavam todos fazendo a mesma coisa historica-
-
pre que o estrato capitalista ficou rico demais, foi bem -sucedido demais
cão contrária em muitos textos recentes12. Entretanto, meu objetivo prin- ou demasiado intrusivo nas instituições existentes, outros
grupos
cipal aqui é frisar que esta linha de argumento não é de modo algum institucionais (culturaís, religiosos, militares, políticos) o atacaram, usan-
antieurocêntrica, pois aceita o conjunto básico de valores adiantado pela do tanto seu poder material quanto seus sistemas de valor para avaliar a
Europa em seu período de domínio do mundo, negando e/ou minando necessidade de restringir e conter o estrato direcionado para o lucro.
conseqüentemente os valores de sistemas competidores que foram, ou Resulta que esse estrato foi frustrado em suas tentativas de impor suas
são, reconhecidos empartes do mundo.
outras
práticas sistema histórico
ao prioridade.
como Muitas vezes, eles foram
Creio que devemos encontrar bases mais sólidas para nos opor ao brutalmente
crua e
despojados do capital acumulado e obrigados a prestar
eurocentrismo nas ciências sociais, e meios mais seguros de buscar este obediência aos valores e práticas que os inibiam. Eis o que quis dizer
objetivo. Quanto à terceira forma crítica
que quer que
de que o a
quando falei da antitoxina que conteve o vírus.
-
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livrou da mão -morta de autoridades intelectualmente irrelevantes. Mas
efeitos. A economia mundial européia do século XVI se tornou irremedja. ao mesmo tempo afastou as decisões sociais mais fundamentais
que
velmente capitalista. E urna vez que o capitalismo se consolidou no sistema
vimos tomando nos últimos 500 anos cio debate científico material (em
histórico, urna vez que este sistema passou a ser governado pela prioridade
oposição a técnico). A idéia de que a ciência está aqui e as decisões
da acumulação incessante de capital, adquiriu uma espécie de força peran-
sociopolíticas, lá é o principal conceito
eurocentrismo, haja
a sustentar o
te outros sistemas históricos, o que o capacitou para expandir-se geografi-
vista as proposições universalistas aceitáveis serem as eurocêntricas.
únicas
carnente até absorver fisicamente o globo inteiro, ser o primeiro sistema
histórico a levar acabo esse tipo de expansão total.
Qualquer argumento que reforce esta separação das duas culturas refor-
ça por conseguinte o eurocentrismo. Assim, se negarmos a especificicla
-
al foi de fato feito pela Europa entre os séculos XVI e XVIII e indubita-
3p demo e antes o conceito de duas culturas Nenhum outro sistem -i
velmente transformou o mundo, mas numa direção cujas conseqüências
histórico instituiu urn clivórcioEiariental entre ciência efilosofia/