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e
RAUL BRAND ÃO

I
MPRESSÕES
E PAIZAGENS

CONTOS

PORTO
Typographia de A. J. da Silva Teixeira
Cancela Velha, 70

1sgo
Imprezzões ePaixagens

.11.•
d.

EM PREPARAÇÃ.0

Os descalços (romance).

NO PRELO

(DE COLLABORAÇXO COM ALBERTO BRAMX0)

Aventuras de Zé Paiva (historia commovente o tragica).


Raul Brandão

Imressões ePaizagens

Verdade e shiceridade.

••

PORTO
TSTORAPIIIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA

Rua da Canrella Velha, 70

1810
)) 175582
-

A MEU PAE
a
Á MANEIRA DE PREFACIO
Á MANEIRA DE PREFACIO

(CARTA A ALBERTO BRAMO)

Meu amigo.

Fui hontem á Foz do Douro; vadiei


alegremente — um tempo azul elindo —
pela Cantareira, por Carreiros; debrucei-
me no pontão — azul o mar, o céo azul,
lanches valboeiros ao longe — e pesquei e
no mar alto, álinha, meia duzia talvez de
ruivos, vermelhos, magnificos... As boas
recordações !... Foi n'esta beira de costa,
pintalgada de verde e de amarello, alegre
e cantante como um. avental de Valença,
banhada por esse farrapo de mar que flu-
ctua azul entre Villa do Conde e Aveiro
— que a nossa mocidade inteira se pas-
sou...
X Á MANEIRA DE PREFACIO

O tempo querido! o bom tempo! Foi


das nossas discussões sobre Arte que estes
contos nasceram... A bella vida, avida ri-
sonha emalandra, passada assim !... Lem-
bra-se?

Uma tarde vossê tinha-se deitado sobre


a cama; eu passeava de mãos nos bolsos
a todo o comprimento cio quarto; o Na-
varro aum canto, sentado sobre um bahú,
suspirava baixinho, muito terno... Foi en-
tão que vossê declarou terminantemente
que estava com aidéa!
Eu tremi, o Navarro suspirou mais
alto, evossê foi dizendo:
—Um livro magnifico, dinheiro em
barda, vinhaça...
Eu parara surprehendido; vossê tinha
gestos largos, magnificos; oNavarro muito
commovido murmurava:
Vinhinho, hein?
Vossé continuava:
—,Ta se vê!... Um romance asahir aos
fasciculos atres vintens... Peripecias me-
donhas, facadas nos bandulhos, odiabo !...
Houve um silencio. Sonhavamos já pi-
Á MANEIRA DE PREFACIO XI

pas enormes, pançudas, caminhando para


nós; dinheiro que farte; a pança atufa-
lhada de pescada de escabeche em môlho
de vilão !... O Navarro murmurava enter-
necido :
—Vinhinho, hein !...
Foi então que eu exclamei severamente:
—Não! Essa pouca vergonha é que
não!...
Mas reparei! O Alberto tinha-se dei-
tado, o Navarro tinha-se levantado. Li-
lhes nos olhos aresolução fria, implacavel
de me assassinarem ali, eberrei logo:
— Escreva fados! Porque no escreve
vossê fados ?... O Cruz Coutinho paga fa-
dos adez tostães!
Vossê não acreditava, não podia acre-
ditar. Recusava-se terminantemente aacre-
ditar !... Podia lá ser! Fadeis a dez tos-
tões !... Mas, como lhe dissessem que sim,
enthusiasmou-se!
— Faço tres fados por dia! São tres
mil reis! Já não escrevo senão fados!
A tarde ia cahindo tranquilla. Pela
janella aberta descobria-se um pedaço de
céo muito azul, uma casa fronteira atar-
*
XII Á MANEIRA DE PREFACIO

racada e baixa, averdura macia das ar-


vores, que rompiam de um muro muito
branco.
E o Navarro a um canto suspirava
tristemente:
—Vinhinho, hein!...
Oh, obom tempo!... As noites de in-
verno enfadonhas, comendo pescada de es-
cabeche em inôlho de villõo; as bellas tar-
des no Passeio Alegre, discutindo aArte,
emquanto o mar se alastrava de manso
pela areia fulva, e no ar limpido canta-
vam pregões de vareiras!...

... Seus Brito tinha chegado do Pará,


e nós resolvemos escrever uma novella
terrivel, com meninas loiras assassinadas
ás esquinas por malandres barbudos e
medonhos : —« oZé Paiva».
—E espetainol-o no romance!...
—Está claro que oespetamos!...
Mas eu fui nomeado de repente reda-
ctor da «Denuncia»...

Sim, bom homem da «Denuncia», che-


gou avez agora de te contar miudamente
Á MANEIRA DE PREFACIO XIII

todas as maroteiras inacreditaveis einfa-


mes de que nos servimos para ganhar
os tres mil reis semanaes. Perdôa-me, per-
dôa-me hoje, que estou arrependido eseve-
ramente castigado —já porque não tenho
mais tres mil reis aganhar, já porque te-
nho de te contar esse caso memoravel e
unico...
Possuia eu a esse tempo um chapéo
desabado e estranho e umas botas ama-
relias, efoi assim, munido de tão conside-
rados documentos litterarios, que Joaquim
de Araujo, tremulo de respeito, me apre- •
sentou ao proprietario da gazeta como um
dos maiores — senão o maior! — dos ho-
mens de letras de Portugal.
Para logo s. exc.a, arqueando-se, me
offereceu quinze tostes para escrever oar-
tigo de fundo, outros artigos mais, ojor-
nal inteiro emfim.
—Que não! Que eu bem sabia odes-
graçado estado a que tinham chegado as
letras em Portugal. Mas lá bandalhices é
que não !... Não! bandalhices, não!
E pedi tres mil reis!
Foi então que eu, com severidade, me
XIV Á MANEIRA DE PREFACIO

dirigi ao paiz inteiro — e perguntei ao


snr. Barjona se elle decididamente sempre
queria ser chefe !... Elle não tinha senão
a dizei-o! Que o dissesse! Foi então que
vossê, genial eheroico, escrevendo sobre o
Fontes, que vossê não sabia quem era
— narrou, tremulo de respeito, esse caso
sem igual, em que elle, «de monoculo no
olho », dizia para o embaixador aquella
phrase que vossê dizia bela evibrante de
indignaçã'o:
— A amnistia tem graça! Tem mui-
tissima graça — aamnistia !...
Foi assim — foi assim até que o ho-
mem unia tarde — floriam os craveiros no
meu alegrete — nos correu apau pela re-
dacço fóra — a mim, o maior homem de
letras de Portugal, avossê— avossê, que
tinha escripto esses artigos memorandos e
incriveis de maroteira ede genio, os quaes
por uma marosca, infernal os assignantes,
cheios de indignação, classificaram de in-
decentes !...

Seis e meia de uma tarde de verão.


Abri a cancella e entrei no quintal: cou-
Á MANEIRA DE PREFACIO XV

ves rasteiras, pencas e tronchudas, duas


igrejas cobertas de flores azues... Eu ia
radiante. Via aimagem da Mini, de uma
frescura adoravel de aquarella, e sentia-
me cheio de bondade e de amor: — para
não magoar um besouro teria dado uma
volta. Ia radiante.
—O poeta? opoeta?...
O poeta estava alli — eveio logo ru-
bicundo, — boas digestões que vossê fazia
então — aberrar:
— Ó menino! menino!
Expliquei-lhe o meu caso... Era de
Caminha e chamava-se Mini. Eu nunca
tinha visto coisa assim... N'aquelle dia,
ao pé do mar, olhos azues cheios de indif-
ferença, um vestido claro, de um folho uni-
camente epapoulas vermelhas no chapéo,
loura...
— O que eu queria era uma poesia,
menino!...
poesial...
Alú estava para que serviam os poe-
tas! Que eu dissesse agora mal dos poe-
tas !... Nunca! nunca vosso me escreveria
poesia de qualidade nenhumal... Poesias!
XVI Á MANEIRA DE PREFACIO

tinha graça. — E riu-se. Poesias que as


fizesse eu! Porque não fazia eu poesias?
Humildemente lhe disse qúe não sa-
bia— evossê então benevolente, paternal„
achou, visto que eu confessava a minha
incapacidade, que não se desacreditaria,
escrevendo-me uma poesiasinha... Saltei
— e logo alli vossê me perguntou de que
casta queria eu essa poesia? Que vossê ti-
nha-as de todas as qualidades — com es-
trellas esem e'strellas, com as eiras bati-
das do luar, esem luar nenhum... Que o
dissesse!
.Eu, obeiço callido, diante de tanta su-
perioridade, pedi ternamente uma poesia-
sinli a onde se fallasse de Mimi — eque,
com' assim não seria mau que tivesse uma
estrella por omeio!...
Vossê escreveu-m'a... Começava assim
—creio eu:
Adoro-te, Mimi, como se fosses
A luz bemdita d'uma grande estrella!

Passado dias encontrei-o.


—Então?
—A pequena?...
Á MANEIRA DE PREFACIO XVII

— A pequena, sim !... Então ?...


—Então... deixou-me!
Vai vossê e consolou-me. Com uma
grande experiencia de pequenas que-já ti-
nha, vermelho, o bucho cheio de vinho,
murmurou essa phrase tão profunda etio
bella — que nunca mais esquecerei:
— Com' as vaccas, menino! As mulhe-
res são como as vaccas!...
Pois bem! Que se uni dia, lá n'essas
magnificas regiões minhotas, apparecerem
versos meus,

Adoro-te, Mimi, como se fosses


A luz bemdiM d'uma grande estrella...

alguem tenha d'ollio ese compenetre gra-


vemente d'estas palavras verdadeiras —
que elles eram do Alberto e(tile emfim as
mulheres...
—Como as vaccas, menino! São como
as vaccas!...
E ainda bem no fundo, procurando
bem no fundo da alma — estas palavras é
o despeito que m'as dita... Adoro-te ain-
da! adoro-te assim cheia de indiferença,
d'uma frescura adoravel d'aquarella, linda
XVIII Á MANEIRA DE PREFACIO

e risonha! Adorei-te sempre já porque


eras bella, já porque um dia, calma esor-
rindo, achaste — que eu tinha as pernas
tortas!...

Ninguem melhor que vossa comprehen-


derá os meus contos — paginas escriptas
de longe a longe, quando a preguiça, que
nos trazia estendidos pelos areaes, ao sol
— oconsentia... As tardes magnificas em
que osol no poente faz d'oiro os cabedellos,
eovelho pharol vermelhejal... Embarca-
ç'ões veleiras bordejam ao longe: Espinho,
branco erosa, emerge d'entre aareia...
Depois parti — e em Lisboa tive uma
patróa singular, a D. Izabel, arespeitavel
D. Izabel, gorducha e boa — tão minha
amiga !... — a qual, ardendo n'uma pai-
xão fatal pelo Pimenta do Matadouro, to-
dos os dias, banhando-me de lagrimas, cla-
mava por um tal Francisco — o seu pri-
meiro marido, que Deus haja—para que
elle visse o estado a que ella chegára:
derreada das cruzes, ardencia na barriga,
fóra o mais — tudo por causa d'elle, do
Pimenta — aserpente!...
Á MANEIRA DE PREFACIO XIX

E a Mila, a Milocas — a Milinha?...

Ai boas tardes essas, meu caro, de


malandrice e pagode, pelas quaes ainda
hoje sinto uma saudade risonha... A Mi-
locas cantava ensaboando roupa, um len-
ço vermelho cruzado sobre os seios: eu em
ceroulas ouvia — e «o homem do papel»
ia tocando com sentimento o violão... O
fogareiro luzia no lar: do alguidar vidra-
do sahia um rico cheiro aroupa lavada e
fresca...
— Canta mais, filhinha, cantal...
—Tu gustas ?...
E eu, atirando-lhe com hespanhol p'ra
a caveira — porque eu cá n'estas coisas
sou assim:
--- Se mi gasta?... Mi guta como to-
dos os diabos, filhinha! ...
E novamente, cheia de frescura, d'uma,
alegria muito fina, como ocantar das abe-
lhas d'oiro nos roseiraes do quintal, tilin-
tava no ar asua voz:

No quieras ser francesa.


Quieras ser capitana
De la tropa aragonesa...
XX Á MANEIRA DE PREFACIO

E omaroto do homem, oolho pisquei-


ro espetado nos seios da rapariga, abocca,
aberta:

Eu já tinha percebido esses amores


fataes; eu já sabia que aquelle tonante,
que eu chamára para me forrar oquartG
apapel, ia com impudencia

pendurando-me na cabeça coisas feias...


Mas se eu não podia passar sem essas
tardes cantantes!...
Assim me perdi. Levou cinco mezes a
forrar a papel de raminhos azues omeu
quarto — mas ainda hoje, cheio de recor-
daç'ões, sou amigo d'aquelle homem—por-
que elle nunca me bateu...
O Mila, óMilocas, óMilinhal...

Que bohemia aquella! Uma noite, de


Natal creio eu, quando eu ia alegre enfiar-
me entre lençoes — já lá encontrei, de
chapéo alto eceroulas, um barbudo que eu
Á MANEIRA DE PREFACIO XXI

não conhecia. Chamei-o — e elle vomitou


avinhaça que trazia na pança.
Sentei-me n'ufna cadeira edormi. No
dia seguinte, o homem, chorando, contou-
me asua vida.. Era de Barcellos erecebe-
dor. Tinha vindo a Lisboa tratar de uma
herança — mas andára na pandega, vio-
lões epequenas, — enão sabia como esta-
va alli de chapéo alto e ceroulas... Não
sabia epediu agua.
—Mas agora — perguntei-lhe — dir-
me-ha o amigo o que vai fazer?... Um
chapéo alto e umas ceroulas não sõ:o o
bastante...
— Eu fico cá !... — exclamou com
descaro.
Então, terrivel, expliquei-lhe que era
impossivel isso. Com impudencia contei-
lhe que amava uma sopeira temivel— de
bigode, acredite oamigo — que odesanca-
ria se oencontrasse no meu quarto... Era
ciumenta ellal...
Pediu-me agua ainda emurmurou —
que ficava.
— Eu amacio... Ai lá p'ra pequenas não
ha outro... Sou oCoimbra, de Barcellos...
XXII Á MANEIRA DE PREFACIO

Accrescentei então com vergonha —


que asopeira tinha um municipal que me
batia. Eu — e o amigo bem sabia o que
eram paixões — aturava-o...
— Amo-a! oh amo-a! ...
Cheio de soffreguidão, bebeu agua ain-
da — e confessou-me com desplante que
tinha um primo sargento no cinco... Por-
tanto ficava, decididamente ficava...
— Ai ficas?...
. Bati-lhe então e implacavel atirei-o
p'ra as escadas, em chapéo alto e cerou-
las.
— Racho-o! Saiba oamigo que ora-
cho, se me torna a apparecer aqui!...
E fechei-me por dentro.
Com dignidade, muito firme, contou-
me ainda pelo buraco da fechadura que
era de Barcellos erecebedor — e que não
devia nada a ninguem!... E pediu-me
agua outra vez !...
Abri aporta edesanquei-o novamente
com raiva. Veio correndo aD. Izabel, acu-
diram os hospedes, e elle lá foi içado em
ceroulas — apedir agua— para oterceiro
andar.
Á MANEIRA DE PREFACIO XXIII

— Racho-te!...
E elle, bracejando, aos uivos:
—... que ei.a, de Barcellos eque não
devia nada aninguem!
Esteve lá quinze dias. Os rapazes per-
deram-no; ás tardes, piteireiro, dizia com
importancia suas opiniões a respeito de
pequenas — e depois, o olho esbrazeando,
recitava com pronuncia minhota o

Vai alta alua. Na manckao da morte...

Por fim já nem fallava da mulher e


das filhinhas — ecomeçou ausar lunetas
azues. Vadiava pelas redacções, ia escre-
ver um romance, edizia das mulheres:
—Ai que pequenas! que femeas!...
Quando se despediu, queria, atirar-se
da janella abaixo com muitas lagrimas e
muito Bucellas no bucho.
Adeus, bom recebedor, adeus. Se um
dia lá n'essas terras verdes do Minho, te
lembrares de mim, perdôa a sova que te
arruinei — que eu—nunca, oh nunca! —
me esquecerei que eras recebedor e que
no devias nada aninguem! Adeus !...
XXIV Á MANEIRA DE PREFACIO

E hoje, ao voltar á Foz do Douro —


que recordações eque saudades eu sinto!...
Meu Deus, como eu cerrando os olhos, vejo
anossa vida inteira eesta banda de costa,
onde as povoações emergem nevadas da
areia fulva que o mar azul, debaixo do
céo azul, banha ondulante, com raiações
de verde, sulcado ao longe pelos bateis ron-
ceiros... Um bando de grazinas - da — dir-
se-hia um punhado de flôres de amendoeira
atiradas pelo céo... O céo éazul, azul, de
um azul adoravel, que enche a gente de
bondade — omar éazul, tambem, com pes-
pontos de branco no amarello dos cabedel-
los... Que bello canto, meu caro, para vi-
ver pelo prazer de viver, despreoccupada-
mente, deixando fugir a vida e os dias,
cantantes como um bando de abelhas doi-
radas que zumbem, fulgurando ao sol
n'uma tarde azul de maio...

Br,,znda.o.
A PIMPINELLA

Ao senhor Eça de Queiroz.

1
Quando o abbade abriu de repente a ja-
nella, em fralda de camisa ainda, já a Anna
Ramalhuda, que costumava madrugar, vadiava
na frescura do quintal por entre as couves
murcianas e tronchudas, de folhas enrugadas
e grandes.
— Ólá !... disse ella.
E dentes ao léo, a cabeça erguida, pergun-
tou-lhe alegremente :
—Então ainda agora, seu mandrião? Com
um dia (restes! Ora não lia! não ha! ...
E elle respondeu desabrido :
—Eu já lá vou, mulher! ...
«Arre que não a podia aturar! Arré com
ella ! »
4 A PIMPINELLA

Ella, a Ramalhuda, era uma boa mulher,


trigueira e picada das bexigas, cheia e linda.
Podia-se vér! Cheirava a frescura, a roupa la-
vada que seccou ao sol sobre giestaes em flôr.
Todo o dia contente, repassada de alegria, ra-
biava na residencia — excellente dona de casa
— lavava, conseguia dar ao passal um aspecto
alegre de abastança. E, mais já por habito que
por ternura, andava sempre atraz d'elle:
— Õ Justininho p'ra aqui! Justininho p'ra
acolá!...

«Não a podia aturar! Se não fosse ser


boa mulher e cozinheira... Ah lá isso! cozi-
nheira excellente ! Aquela cabeça de porco
com feijão I E a orelheira ?e as fritadas ?
E afinal não era má mulher! Podia-se até di-
zer que estava bem conservada. E as suas
roupas brancas muito frescas sempre... Ah
mas a outra: aquella Maria Pimpinella! Que
trigueira! que dentes !»
E chegou-se outra vez á janella. A Rama-
lhuda por lá andava ainda, de penteador bran-
co, entre as fructeiras núas, sem folhas, mas
pintaruladas de flôr. O céo azul. As couves
enormes: as murcianas e as pencas muito ver-
A PIMPINELLA 5

des, fresquissimas, rebentavam contentes na


terra perennemente humedecida pela agua.
A residencia ficava pegada á igreja. Era
uma casota baixa com janellitas estreitas, de
uma apparencia saudavel. Duas figueiras ti-
nham crescido, e pouco e pouco enfiavam os
galhos pelas janellas dentro, cheias de tran-
quillidade, d'uma verdura sombria...
A casa era feia por de fora: por dentro,
porém, era bonita: as faianças, os pratos com
fructos e peixes a aquarella; o aparador an-
tigo com faunos esculpidos aos viracús sobre
festões de heras; as canecas de barro vidrado
—reluzia tudo com um cuidado amoravel. O
quarto d'elle, que dava para as carvalheiras
frescas do adro, fazia sonhar uma vida singe-
la, barriga cheia e pé dormente, çom as corti-
nas muito brancas, eo leito de coberta de ra-
magens azues...
— Vamos lá a essa missa!

Vestiu-se de fresco, lavou-se na agua fria,


e, sentindo o bom cheiro do salpicão que se
frigia na certã, foi mais contente que metteu a
cabeça na cozinha, para recommendar á cria-
da:
6 A PIMPINELLA

— Agora veja lá esse almoço! Veja lá!


E ia a sahir, quando a mulher exclamou
reprehensiva:
— Õ Justininho !
Elle bem sabia o que a Anna. queria. Por
isso aproximou-se a murmurar entre risonho e
zangado:
— Vá, vá!... Sempre essas tolices, mu-
lher!
Ella então avançou para elle sorrindo, os
beiços vermelhos, linda com o lenço de rama-
gens sobre o seio, e, apertando-lhe o pescoço
forte entre os braços rechonchudos, murmurou
desfallecid a:
—111eu querido! querido!
A porta de vidraças que dava para o quin-
tal reluzia muito lavada, e lá fóra viam-se as
arvores que tracejavam de negro o côo, e fa-
ziam com os galhos torcidos teias de aranha
no azul. A luz entrava ajorros na cozinha, e
tudo alli, ao sol radiante de maio, tinha um
bom aspecto alegre de abastança.
Foi dizer a missa. Mas depois na paz hu-
mida e triste da sacristia, que as andorinhas
cortavam com os seus gritos agudos, poz-se a
pensar outra vez:
A PIMPINELLA 7

— Aquella Maria Pimpinella !... Que tri-


gueira! que dentes!

Era um rapagão de labios vermelhos e hu-


midos, e pulsos fortes: moreno, o cabello ligei-
ramente ondeado e aspero. Preguiçoso. Toda
a sua vida ambicionára uma abbadia pingue
no Minho; uma casota erguida na tranquillida-
de, na penetrante meiguice d'alguma deveza
escondida; a sua ama trigueira e boa; uma
vida regalada, cheia de somnecas pelas tardes
amodorradas de verão, de bom vinho rascante
e de presunto e ovos ás refeições. E depois
desde pequeno, na grande cozinha da aldeia,
onde á noite todos se juntavam palrando, que
elle ouvia gabar a vida abbacial.
— Que rica vida! diziam. Vida assim !...
E já então — lembrava-se bem ainda! —
quando o lume crepitava vermelho ,na lareira,
se sentia invadido d'uma beatitude suave —
e, as mãos cruzadas sobre o ventre, ficava
muito tempo, os olhos no brazido, sonhando...
E a mãe, uma velhinha saudavel, dizia rindo:
— Que mandrião !... Credo ! tambem só
para abbade!
E tudo isso tinha emihn! A Ramalhuda
8 A PIN1PINELLA

ali estava, trigueira e picada das bexigas, de


olhar vivo e buço appetitoso; a abbadia razoa-
vel tambem; e as arcas enchiam-se de lom-
bos, os fumeiros de chouriços... Que mais po-
deria elle desejar ?...

Mas viu d'uma vez a Pimpinella em cima


d'um burrico lanzudo, de avental azul, fresca
entre dois ceirões de roupa lavada — e logo
ficou a gostar d'aquella rapariga trigueira e
sã, de carnação tão rija e boas côres verme-
lhas.
— Boa pequena! boa pequena!
E, olhando para ella que desapparecia ao
longe de mão na anca, sacudida pelo trotar
forte da burra, murmurou embevecido:
—Bonita rapariga!
A manhã era de maio lavada e purissima,
e o caminho orlado de macieiras em flôr, des-
folhadas ainda, que estendiam levemente os
galhos no azul desmaiado do céo...

Tinha a abbadia, tinha a Anna Ramalhuda,


morena, roliça e picada das bexigas — que
mais poderia elle desejar?... Mas na paz hu-
mida da sacristia, vendo fóra um quintalorio
A PIMPINELLA 9

cheio de luz, emquanto a corda do poço


rangia alegremente, poz-se a pensar outra
vez:
— Aquella Maria Pimpinella !... Que tri-
gueira! que dentes!
t•
II

E os dias seguiram-se lavados e azues...

— Ora que se não faz nada n'esta casa


sem mim!
A senhora Isabel, uma boa mulher peque-
nita e fresca, já de manhã arruinava a sala da
frente a dizer :
— Ora que se não faz nada n'esta casa
sem mim 1
Era honesta e boa: dizia coisas justas e
verdadeiras, com um grande ar de bonachei-
rice, os oculos erguidos p'ra atesta: costumava
pôr as mãos no lenço de ramagens que lhe
cingia o peito e dizer:
— Verdadeira eu !...
12 A PIMPINELLA

Muito lavada, porque como dizia:


— O Senhor deu a pobreza; não nos deu
a porcaria.
Cheia de bondade, boa até alli! Uma ex-
cellente mulher. Velhinha, mas bonita, com a
sua saia de pintinhas azues, um riso de bon-
dade nos beiços fortes.
— Ó Mari' Emilia! Vossê não ouve, mu-
lher ?...
E da cozinha a criada respondeu:
— Eu lá vou já, senhora!
— Venha cá, mulher! Venha-me ajudar a
tirar o dôce do armario —para o senhor abba-
de, tão nosso amigo, coitadinho 1...
A vida ali era singela. Arranjar a casa,
dormir, comer bastante — quatro refeições por
dia — porque, corno dizia a D. Isabel:
— Morra Martha, morra farta! Quem se
deita sem ceia toda a noite rabeia!
A Mari' Emilia, uma criada antiga — cin-
coenta annos, uma ferida aberta na perna di-
reita — alegrava a casa cora as suas risadas
cantantes, os seus palavrões de solteirona bré-
jeira.
— Foi o diabo em rapariga! dizia d'ella a
D. Isabel.
A PIMPINELLA 13

Toda a casa cheirava alavado. A D. Isabel


esfregava tambem, ainda que um instante só,
porque pegava a queixar-se da barriga, ver-
melha como uma romã, esbaforida:
— Ai lá p'ra esfregas já não estou! Jesus!
que se não faz nada n'esta casa sem mim!

O doutor Ferraz apparecia por lá ás vezes.


—Ora Deus seja aqui e o diabo em casa
dos abbades! berrava da porta ainda, verme-
lho, radiante, cheio de saude, abarba grisalha
por debaixo do queixo, batendo com o guarda-
sol vermelho no chão.
E a D. Isabel, alegre :
—Eu logo vi! olha quem havia de ser!
Ora venha cá! venha cá!
Fallavam. Elle dizia chalaças, Irebia vinho
verde, contava as historias que lia nos jor-
naes: desgraças, crimes, uma menina com as
tripas de fóra á bôca d'uma viella — maro-
teiras indecentes que elle, regenerador faça-
nhudo, attribuia com raiva aos progressistas:
—A essa corja, minha senhora, que era só
com um pau!
A D. Isabel benzia-se crente e dizia sem-
pre:
14 A PIMPINELLA

— Jesus !... Mas não podia fazer-se uma

O que ella, a excelente senhora, queria era


uma lei que acabasse de vez com progressis-
tas — mas o doutor que se exasperava e que
ultimamente andava espicaçado por o padre
Joaquim ter votado com elles nas eleições de
fevereiro, interrompia-a sempre vermelho, n'um
rompante:
— Qual lei! qual cabaça! Isto só com um
pau, que lh'o digo eu!
A D. Isabel tornava a benzer-se e o doutor
pedia mais uma pinga do verde...
— Por causa das seccuras, minha senho-
ra! ...
—Ó Mari' Emilial...
Vinha a Mari' Emitia, a coxear, com a ca-
neca cheia de vinho espumante, epegavam os
dois a dizer-se alegremente bréjeirices.
E a D. Isabel afingir-se zangada:
— Oh mulher! oh mulher! Vossê não tem
mesmo vergonha nenhuma!
E ria, ria, a barriga a tremer-lhe, toda
cheia de satisfação.
—Não que este homem está mesmo uma
tentação! dizia a criada.
A PIMPINELLA 15

E revirava os olhos, punha os braços á


cinta, emquanto o doutor dava uma risada
bonacheirona e leal, o labio vermelho e hu-
mido, contente com a vida...
— Apparece-me á noite, Maria!

— Ó senhor abbade!
Faiscante de luz asala de jantar. Uma janel-
la aberta: fóra via-se um pedaço de céo azul,
as fructeiras do quintal, o feijoal que crescia
junto ao muro. Tremeu no ar urna risada.
—1 a pequena, explicou a D. Isabel.
Eregou de calda odôce que oabbade comia.
— Basta, minha rica senhora! intercedia
elle collocando a mão entre a colher e opires.
E explicava:
— Estou fartinho, minha rica senhora!
Então a excellente senhora, os olhos azues
luzindo cheios de bondade, as mãos pousadas
no regaço, foi contando commovida a historia
da mãe da Pimpinella, que estivera muitos an-
nos doente.
— Dez annos alli entrevadinha n'uma ca-
ma, veja lá ... Por fim o Senhor soccor-
reu-a com uma boa morte. Morreu como um
passarinho.
16 A PIMPINELLA

E elle olhando-a, nem já a escutava se-


quer: pensava na Maria, seguia-a pela eira
vendo-a caminhar indolente, com aquelle geito
de peneirar os quadris, deixando cahir o cor-
po n'um quebranto... Porque andaria ella tão
alegre n'aquelle dia?... E todo elle fugia para
ella, cheio de preguiça por aquelle fim risonho
de tarde, ouvindo tagarellar, tagarellar a ve-
lha, sem acomprehender, como se fosse omur-
muro palreiro das aguas correntes...
— Ora veja lá!
Na sala dourada pelo sol poente alouça lu-
zia: as canecas grosseiras, pintadas de verde,
os pratos de fundo azul. A Mari' Emilia acoxear
arrumava, dizendo uma cantiga bréjeira — e
tudo alli respirava tranquillidade, uma vida ca-
seira e santa...

Quasi sempre a Maria costumava tambem


deixar-se ficar sentada, a coser serenamente.
Ás vezes esquecia-se embevecida, a olhar o
abbade na mesma quietação da D. Isabel;
mas de repente córava, e voltava a coser com
muito afinco, perturbada. Quasi nunca fanava,
de tal maneira que a excellente senhora mui-
tas vezes dizia :
A PIM PINELLA 17

— Credo, mulher !... Estás hoje murco-


na ! Tu que tens, rapariga ?...
4
,— Eu ?
Era trigueira e forte a Pimpinella. Tinha
tido bexigas, mas as marcas quasi lhe desap-
pareciam. Respirava honestidade, uma quieta-
ção enorme, habitos simples e sãos, com a sua
maneira singela de vestir: grandes arrecadas
lisas nas orelhas, a saia escura de lã, com
avental de riscadinho azul.
O pai era o coveiro, o Pimpinella, um ho-
menzarrão honesto e saudavel. Fóra do seu
mister tratava do quintal do padre Joaquim, e
cultivava as couves que possuia ao pé da igre-
ja. A rapariga vivia em casa da D. Isabel, de-
pois da morte da mãe.

— Vão sendo horas, minha rica senhora...


Vão sendo horas de me chegar até casa.
—Então a rapariga que lhe abra a can-
cella.
E, os braços apertados sobre o lenço de
ramagens que lhe cruzava o seio, exclamava
contemplando-o commovida, cheia de bondade:
— Ora o senhor abbade 1
Escurecia. A D. Isabel chegou-se ájanella:
2
18 A PDIPINELLA

— Maria! olha! vai abrir a cancela ao se-


nhor abbade.
No côo a poeirada das estrellas luzia Os
dous caminhavam por entre a hortaliça negra.
A agua corrente da rega chalrava, cheia de
frescura — e as rnadresilvas em ilôr, que divi-
diam o quintal, embalsamavam a noite quente.
Ia um cantar ardente de cigarras nos tojaes...
—Por aqui, senhor abbade. Não vá ca-
hir.
A rapariga caminhava na frente, linda, me-
neando os quadris, n'um geito de S. Joanneira
gaiata. O padre atraz disse uma graça, subita-
mente inundado d'uma rajada de ternura —
e alli, ao pé da cancella, atreveu-se a pousar-
lhe a mão nos peitos.
—Estás gorda, rapariga! ...
Luzia-lhe o olhar... Ella suspirou ; ele
atrevido beijou-a:
—Filtra! filhinha! ...
Ia beijai-a outra vez, quando sentiu apro-
xitnar-se gente.
—Adeus.
E a Pimpinella encostada á sebe, a bocca
vermelha e fresca corno uma romã estalada,
ficou quieta, o coração a pular-lhe no peito...
III

Ia borracho de contente. Deitou-se e pouco


e pouco foi recordando as amarguras passadas,
a felicidade do presente. Senda ainda os bei-
ços d'ella esmagarem-se vorazes nos seus. Não
podia dormir. A Ramalhuda roncava. Odeou-a
— e a Pimpinella appareceu-lhe a el'oravel, mui-
a

to boa rapariga elinda, tão linda!


E via-a já na residencia sorrindo, irradian-
te de frescura, formigando no casal, envolta
n'aquelle aroma de maçã camoeza e de pera
marméla a que toda a casa rescendia. Era lin-
da e boa. Devia ser alegre, d'um contenta-
mento saudavel — os dentes luzindo entre a
frescura dos beiços vermelhos como cerejas bi-
caes... Aí como gostava tanto d'ella, tanto !
20 A PIMPINELLA

Revolvia-se na cama. A Ramalhuda acordando


dizia:
— Chega-te p'ra lá, Justininho!
— Que burra! ...
Começavam as vindimas pelos campos. As
tardes cahiam magnificas, d'oiro, d'uma belleza
grande e forte de epopeia. Entre a folhagem
acobreada das vides havia risadas, uma alegria
grande nas ceifeiras, um pouco borrachas de
saude e de vinho novo eforte... Possuia-a em-
fim. Teve-a alli sobre a coberta de ramagens
azues, no seu quarto cheio de sol, de uma vez
que a Ramalhuda sahira p'ra Arnozella. A Pim-
pinella resistia.
—Deixe !deixe-me!...
Mas elle apertou-a, beijou-a com sofregui-
dão na bocca. mordeu- a nas faces pennugentas
— e ella de repente, com um grito, entregou-
se-lhe impudica, de barriga p'ra o ar, esten-
dida na cama...
— Ó Mariquinhas!

Uma facha dourada de sol batia na louça


cheia de scintillações. Cheirava a fructa madu-
ra — e as vespas d'oiro zumbiam volteando
em cima dos melões. Elle gostava de ficar as-
A PIMPINELLA 21

sim, nas tardes em que a outra sahia, as ja-


nellas cerradas, na sala de jantar forrada de
azulejos, alegre e fresca.
— Aqui está. Come.
Trouxe damascos n'uma travessa grande.
Ella ajudava-o rindo a pôr a toalha, e cheios
de contentamento bebiam pelo mesmo copo, os
beiços luzindo — ella cheia de vergonha, uni
rosado ao de leve nas faces...
— Filha!
Appeteceu-lhe dar uma trincadella no pes-
coço bronzeado e forte da rapariga. Ella fugiu
rindo. Pedia com ternura, tão meiga, fazendo
boquinha:
—Deixa! deixal...
— ó filha, que gosto tanto de ti 1...
E encheu-a de beijos mordendo a nas bo-
chechas, no pescoço, vagarosamente. Ella aban
donava-se suspirando...
Uma grande tranquillidade cahia. A agua
tilintava no tanque enchendo a sala d'um can-
tar vibrante — e as vespas d'oiro zumbiam na
restea de sol...
Deu-lhe marmelada d'uma tigella de barro
vermelho.
—Minha lambareira! ...
22 A PIMPINELLA

Ella riu, encostada para traz, muito linda


assim, os dentes enterrados com sofreguidão
n'um fructo, os olhos, onde o prazer faiscava,
um pouco cerrados...
, —Lambareira !lambareira !...
1
IV

O padre Joaquim tinha vindo de repente


em janeiro, por um tempo azul e lindo, viver
para a aldeia: — havia abelhas nos roseiraes e
o céo parecia um grande guarda-v1 azul. Era
um velhote glotão epalreiro, vermelho, trans-
bordando chalaças, a quem os amigos chama-
vam alegremente o Serrabulho». Toda agente
morria por elle. Havia uma satisfação grande,
uma alegria faiscante e boa, quando o avista-
ram ao longe, arrastando aperna, o carão ver-
melho cheio de malicia.
—Lá vem o Serrabulho! Lá vem elle!
Contavam-se partidas da sua mocidade —
e entre cilas ficara sempre de pé, inabalavel e
risonha, aquella historia do Rato, em Braga...
24 A PIMPIN ELLA

odoutor Ferraz contava-a ainda, rindo ás escan-


caras, as mãos na barriga, rebentando de con-
tente — principalmente quando chegava ao mo-
mento em que o Rato entrava pela casa das
pequenas dentro, offegante, n'ufn contentamen-
to muito grande, aberrar:
— Acaba-se aqui o mundo com uma ceia
de peixe I
E o pai das raparigas apparecia iracundo,
um arrocho nas unhas — e deslombava-o.
Nunca ninguem vira homem com pilheria
assim! Mostrava de repente otrazeiro em reu-
niões, rompia pelas salas dentro em ceroulas e
chapéo de mulher, fazendo trejeitos —por en-
tre gritos de senhoras fingindo-se espavoridas
— emquanto o doutor Ferraz gargalhava e a
D. Isidra, a solteirona, dizia:
— Apaguem as luzes!...

Por isso era em geral adorado. Dizia-se:


—Ë um santo! Não com' aquelle não ha
muitos, não
E a graça que elle tinha? E como era affa-
vel ?
Pouco e pouco, porém, houve zangas: o
inverno cahiu rude — e de repente em feve-
A PIMPINELLA 25

reiro vieram 2S eleições e o padre Joaquim vo-


tou com os progressistas, apesar da indignação
do doutor, que, se o encontrava, passava por
elle, o guarda-sol de rastos, a dizer olhando-o
de revez:
— Ah bom tempo dos Cabraes! Quem te
ensinava era eu! ...
Descobriu-se então que o que o padre Joa-
quim queria era apanhar a abbadia — e odou-
tor rugiu:
— Ah bom cacete!

Uma tarde, em mangas de camisa, á fres-


ca, bebia tarraçadas de vinho rascante.
As vidraças reluziam nos caixilhos verdes.
A persianna estava corrida até meio da janella
—e via-se assim o quintal do padre: as cou-
ves tronchudos gigantes, as couves gallegas
magnificas, muito temporãs, as couves lombar-
das de pé alto, cuidadosamente apertadas em
carreirinhos, divididas por estacas onde os fei-
jões de Nantes cresciam ao pé da vegetação,
d'um verde negro e podre, do cebolinho pe-
queno de Valencia.
O padre Joaquim sahiu para o quintal. la
pensando na Ramalhuda. Ao vèl-a na missa,
26 A PIMPINF:LLA

trigueira e picada das bexigas, linda, com o


lenço de ramagens vermelhas sobre o peito —
principiara a gostar d'ella.. Era uma boa mu-
lher!
Mas a creada, uma velha, berrou chaman-
do-o:
— Ó snr. padre Joaquim!
E elle desesperado por o terem interrom-
pido quando pensava na Anna, perguntou en-
furecido :
— Que é que vossè quer ?... que é?Arre,
sua burra !...
E os braços erguidos no ar, a lembrar-se
da outra, n'uma affiicção muito grande:
—Este coirão, Senhor! este coirão!
Era delicioso de frescura aquelle recanto do
quintal. Em cima a ramada onde os cachos
pintavam; na frente a horta, uma figueira do
S. João; e por entre a folhagem d'um verde
triste a suavidade do céo, que parecia mais
azul ainda visto aos rasg,fies por entre as folhas
sombrias...
—É a ti' Anna, snr. padre Joaquim!
— Olá! Que entre! Mande-a vir p'ra aqui,
mande-a vir p'ra aqui !... Venha p'ra, aqui,
mulher
— Gordinha, boas côres... Estás bonita, fi-
lhinhal...
E a ti' Anna, de pé em frente da outra, ex-
clamava com um sorriso de satisfação nos bei-
ços e as mãos pousadas sobre o ventre:
—Appetitosa, filhinha, appetitosa!
A Ramalhuda sorria, e, afagando o maltez
que lhe saltára ao regaço, murmurava satis-
feita:
—Ora ati' Anna! ati' Anna! ...
A sala do jantar do abbade, tão alegre, tão
repassada de luz, faiscava n'aquelle dia, com
as vidraças abertas sobre a ramaria verde das
fructeiras. A louça ingleza, vulgar, de desenhos
d'uin azul amoravel, luzia como prata sobre o
armario antigo — e dos malapios de inverno,
28
- A PIN1PINELLA

saudaveis e córados, descia um cheiro tão bom,


que consolava a gente. Os azulejos brilhavam
— e a um canto sobre uma arca de pinho uma
borôa, sabida do fórno ha pouco, fumegante ain-
da, appetitosa e loura...

A ti' Anima era uma velha buliçosa epeque-


nina, de penca adunca, que vivia á custa das
amigas — levando para casa debaixo do aven-
tal de riscado otrigo, o vinho, o presunto que
cilas lhe davam.
— Oh ti' Anna! ...
Fallavam baixo, com muita intimidade. De
instante a instante davam risadas pequeninas,
alegres.
—Ora dize, dize, filhinha!
—Oh ti' Anna !... Lá isso!
A Ramalhuda gostava d'ella. Acocoradas no
chão, na sala cheia de sol, murmuravam con-
fidencias. Iam bebendo goles de vinho rascan-
te, contentes, palrando da vida alheia, os olhos
luzindo...

• Mas n'aquella tarde a velha parecia inquie-


ta: olhava em redor espreitando, e muitas ve-
zes havia começado já:
A PIMPINELLA 29

— Ora, filhinha...
E parava atarantada, olhando aporta de vi-
draças, um dedo espetado no ar.
— Mais uma pinguinha, ti' Anna! mais uma
pinguinhal... Olhe que é do bom!
A ti' Anna não quiz. Estendeu os beiços gu-
losa, escorropichou o resto que ficára na cane-
ca, e, pousando a mão sobre o peito, excla-
mou consolada:
—É do bom, éI...
Bichanavam agora.
— Ora se tu quizesse...
—Não, lá isso, ti' Anna! ... Lá isso !

A tarde cahia serena e quente. 'No pateo a


bica tilintava alegre e fina, e as amendoeiras,
as pereiras, as macieiras do quintal tingiam-se.
de sol por de cima, emquanto nos pés, pelas,
couves rasteiras, a sombra se estendia negra,
tornando a verdura das tronchudas mais carre-
gada e mais fresca. Com aviração da tarde a
roupa branca que ficára ao sol, pendurada nos
galhos, começava a bamboar-se lentamente...
A ti' Anna então atreveu-se, e começou por
lhe perguntar como se dava ella com o padre
Justino :
30 A PIN1PINELLA

—E elle trata-te bem, filhinha ?


— Ai lá isso, ti' Anna, não tenho que lhe
dizer!... Lá isso ! É um santo.
E a outra:
—Nas palminhas, hein ?Nas palminhas ?...
— Nas palminhas, ti' Anna... Ás vezes tem
suas impertinencias... Faltando-lhe com o seu
jantar a horas, com a ceia... Ai, muito esqui-
sito nas comidas !... Mas isso...
—Isso todos, filhinha, isso todos ! É ir
aguentando.
—Mas dá-me os seus presentes, o seu cor-
dão pela Paschoa, o seu saiote de boa lã...
Ainda no outro dial...
— Pois quant' é!
E n'uni suspiro de saudade em que ia a
recordação da sua vida inteira, airada e cheia
de pandegas, murmurou tristonha:
—Pois quant' é, filhinha! ... Quant' é!...
— Só ultimamente...

Fanaram mais baixo agora. A ti' Anna aca-


riciando brandamente as pernas á outra, per-
guntava, dizia muito terna:
—Então, filhinha ?... então ?
Sentia-se commovida a Ramalhuda. Muitas
A PIMPINELLA 31

vezes notára já na igreja os olhos negros do


padre Joaquim que se fixavam n'ella com ter-
nura... Depois a maneira como o abbade se
portava para com ella ultimamente, faziam-lhe
já suspeitar uma paixão, que ella desconhecia
e que a alcoviteira lhe contára — evia-se na
rua, perdida, sem um aconchego p'ra a velhi-
ce... E ati' Anna dizia:
— Que elle não falla n'outra coisa... Parece
doido, filhinha! ... Diz que tu o enfeitiçaste...
Eu sei lá!
E pondo-se de pé, muito animada:
— Fazes lá uma idéa, filhinha!
A outra então muito baixo murmurou:
— Pois sim...
Calaram-se.
O padre Justino vinha tranquilo para casa.
Escurecia. No côo d'um azul ferrete as primei-
ras estrellas nasciam :pelos tojaes ia um can-
tar ardente de cigarras: e a bica tilintava, ti-
lintava muito alegre, muito fina...
A Ramalhuda suspirou, e ati' Anna, ao vèr
esboçar-se no escuro o vulto negro do padre,
exclamou alegremente:
— Ora viva viva quem éuma flôr!
I
VI

Foi por isso que o padre Joaquim, quando


a creada lhe disse que era a ti' Anna que o
procurava, murmurou impaciente:
— Que venha p'ra aqui, que 'tenha p'ra
aqui !... Venha p'ra aqui, mulher!
E a ti' Anna, com os olhinhos a luzir, con-
tente, murmurou:
— Tudo arranjadinho !... Tudo...
E opadre, com aface clareada n'um sorriso
alegre:
—E ella, hein ?Ella ?...
— Boal... Modinha por isso IBoa! ...
Elle, em mangas de camisa, cheio de ale-
gria, atarracado, com a caneca de vinho ras-
cante pousada sobre o banco de madeira, que-
3
34 A PIMPINELLA

ria saber tudo, tudo... Das roseiras de todo o


anno e das madresilvas em flôr, que nasciam
no quintal, vinham emanações suavissimas —e
lá em baixo, na ribeira, as raparigas cantavam,
batendo roupa, n'uma toada singela...
E ati' Anna, mettendo duas corôas ao bolso,
repetiu:
— Boa! ... mortinha por isso! Boa...

Alguns dias depois a Ramalhuda fugia para


casa do padre Joaquim, e quinze dias ainda e
já a Pimpinella rabiava na residencia, alegre e
cantante como uma formiga no verão...
VII

— A minha filha! a minha rica filhal...


Chorava. Na sua alma rude de pai ia uma
dôr immensa ao vèr perdida para sempre a fi-
lha. Nunca mais a veria... E lembi'áva-se bem
agora de quando ella — a sua boa filha — o
abraçava, fresca como uma papoula, tão linda,
tão parecida com a mãi. Nunca mais!
— A minha rica filhal...
A sala faiscava ao sol radiante de verão.
Em taboleiros, nos frisos verdes, ostentavam-se
as fructas escolhidas do pomar: peras magnifi-
cas, cachos de uvas ferral e moscatel — e era
tocante de vèr-se a D. Isabel, tão alegre sem-
pre, tão velhinha e linda ainda na sua saia de
pintinhas azues, os olhos onde a bondade luzia
36 A PIMPINELLA

marejados de lagrimas, a barriga a arfar-lhe de


tristeza, rezando em soluços, cheia de confian-
ça em Deus:
— Ai, Jesus! meu Jesus!
E elle então, o pai, n'um egoismo feroz,
mais calmo, foi dizendo:
— Então asenhora não via ?... Não via ?...
Eu entreguei-lhe a minha filha? A senhora é
que me ha de dar conta d'ella, ouviu ?... Que
fazia a senhora ?... Ai a minha rica filha que
m'a perderam! Esse maroto que o mato! esse
maroto que m'a perdeu! ...
Levantou-se d'um salto, n'um desespero ar-
dente, rugindo, precisando de esfaquear al-
guem. Ia a sahir, a cabeça bem alta, os olhos
fusilando:
—Mato-o!
O doutor segurou-o.
— Então, José? que é isso, homem? En-
tão ?...
— Deixe, compadre 1Deixe-me!...
A D. Isabel, com uma fé inabalavel, cho-
rando, orava a Deus, as mãos juntas. A Mari'
Emitia fugira coxeando para o quintal.
Toda a sala fresca, cantante na sua simpli-
cidade, repassada de sol e do cantar alegre da
A PIMPINELLA 37

agua tilintando no quintal — dizia bem as ale-


grias caseiras, a boa honestidade das duas san-
tas velhas, aexcellente vida alli passada n'um
aconchego amoravel...

Atirou-se emfim sobre a cama, as mãos na


cabeça, n'um desespero sem fim. O doutor Fer-
raz consolava-o:
— Que diabo ?... Então, José ?ÉPreciso ser
homem! Então ?...
Mas o outro de repente, estrangulado em so-
luços, n'uma dôr tão verdadeira e tão grande,
agarrou-lhe as mãos molhando-lh'as de lagri-
mas, e beijou-lh' as dizendo:
— A minha filhal... A minha filha que era
tão minha amiga, compadre...
E o doutor estacou, calando-lhe bem fundo
n'alma aquelle grito. Ficou vermelho; teve de
repente vontade de chorar, e esquecendo opa-
pel de consolador, as idéas de paz que mur-
murava, berrou n'um rompante:
—Racha-m'os ! Racha-me essa cambada
de meio ameio 1...
E sahiu á pressa, os olhos borbulhando de
lagrimas. Brandia o guarda-sol, esvoaçava-lhe
o casaco, e áporta, as lagrimas acorreram-lhe
38 A PIMPINELLA 4,

uma a uma pelo carão saudavel, nas barbas


grisalhas, rugiu batendo no peito:
— E eu cá estou! e eu cá estou!...
Por fim, longe já, no meio da estrada parou
— e erguendo ao côo um punho:
—Esta cambada de progressistas, senho-
res, que era só com um pau!...

Alta noite o Pimpinella acordou. No negru-


me só a agua tilintava muito alegre, muito fina
— e elle, a chorar baixinho, pensou outra vez
na filha que perdera... Era tão amigo d'ella, tan-
to ! Parecia-se com amãi, cheia de alegria,
cheia de saude... Quantas vezes elle não pas-
sava pelo casal só para a vèr, para que ella o
chamasse, contente:
— ó pai! ó pai I...
E novamente o suffocaram as lagrimas...
VIII

— Ora Deus seja aqui e o diabo em casa


dos abbades!...
E entrou pela sala dentro braudindo oguar-
da-sol vermelho, a alegria rebentando-lhe no
carão saudavel.
— Viva!
Ai! A Mari' Ernilia sufrocou uma cantiga
bréjeira —e aD. Isabel pousou n'elle um olhar
onde era tanta a magoa, tanta, que o entriste-
ceu de repente. Como ella o recebia antiga-
mente, fitando-o com os seus olhos azues, onde
a bondade luzia, e exclamando satisfeita:
— Eu logo vi! Olha quem havia de ser!
Ora venha cá! venha cá!
E a creada, coxèa, coxêa, vinha correndo,
40 A PIMPINELLA

um dito engatilhado, a caneca espumante de


vinho na mão...
Boas tardes essas d'alegria, aperna traçada,
a excellente D. Isabel escutando embevecida as
descomponendas nos progressistas — a corja!
— a Emilia piscando-lhe o olho a rir-se.
Sentia-se bom — e tudo em volta: as santas
mulheres, o casal, respirava tranquillidade,
uma familiaridade adoravel que o repousava
e lhe fazia bem. Enunca mais! nunca mais!
Sahiu d'ahi a pouco, arrastando o guarda-
sol, sem beber uma pinga do verde!
— Ah bom tempo dos ea,braes! Racha-
va-os!

A D. Isabel morria. Adorava a Pimpinella


—e tudo depois que ella fugira: otempo azul,
o pomar que se ia nevando de tlôr, a macieira
antiga do quintal, lhe faziam lembrar os dias
d'outrora, cheios de risadas cantantes. E quan-
do ella se pendurava rindo dos galhos da fru-
cteira —tão linda, vermelha do esforço a man-
ga arregaçada — cortando maçãs maduras!
—Anda p'ra baixo, rapariga I...
E com a primavera — dias lindos, as fru-
cteiras toucadas de tlôr — passeavam no pomar,
A PINIPINELLA 41

olhando as arvores, contentes com a abundan-


cia...
— Louvado seja Deus! Olha esta, Maria,
como está. carregadinhal.

Cheia de bondade e de resignação, choran-


do, erguia as mãos ao céo, e de joelhos con-
versava tempo sem conta com o bonacheirão
do santo que, de pança á. vela, sorria vermelho:
—Meu rico santo Antonio, aquelle pai, meu
fradinho! Olha: tu bem vès que isto é uma
desgraça muito grande... Olha que isto assim
não póde ser!
Dizia-lhe — a excellente D. Isabel — com
uma fé muito grande, os olhos aziies ennevoa-
dos de lagrimas, cheia de confiança e de inge-
nuidade, que sempre fôra muito amiga d'elle
— tanto! o santo bem o sabia! — e era bello
\rói: a boa velhinha, dobrada pela crença, fallan-
do-lhe amigavelmente, reprehendendo-o ás ve-
zes, orando sempre, emquanto osanto sorria bo-
nacheirão e pançudo como um abbade mi-
nhoto.
— Olha que isto assim não pode ser! Tu
bem vès!
Adoeceu pouco epouco, a barriga tamanha
42 A PIMPINELLA

arfando-lhe de tristeza, sem uma queixa —


amoravel e risonha ainda.
Os dias de primavera tinham voltado. Abe-
lhas zumbiam aos bandos nos roseiraes — e o
sol, entrando no casal repassado do cheiro de
alfazema, enchia-o de alegria, de scintillações
azues de louça pousada nas prateleiras — e
nem aMari' Emilia coxeando cantava, nem aD.
Isabel, pequenita e fresca na sua saia de pinti-
nhas azues, formigava arrumando roupa nos
gavetões, a dizer afflicta:
—Jesus 1que se não faz nada n'esta casa
sem mim

—Se o Senhor me levasse para si !...


E aMari' Emilia, com familiaridade:
— Ora adeus, senhora! Deixe-se de tolices,
ande! A senhora está rija como um pèro 1Ain-
da ha de viver muito tempo! Ora !
—Para què, Mari' Emilia? Para que' ?...

Morreu serenamente, sorrindo, e o seu ul-


timo olhar, o seu olhar azul, onde se via até a
alma ingenua eboa, era cheio de perdões ede
bondade. Soluçante a Mari' Emilia beijou-a —
beijou-a com sofreguidão, como se beija uma
A PIMPINELLA 43

irmã querida, a companheira e amiga de tanto


tempo — irmã para sempre perdida, tempo ri-
sonho que não voltaria nunca...

O enterro caminhou através dos prados de


um verde esmeralda. Á beira da cova o padre
Joaquim disse:
— Julgo que era muito boa senhora...
E o doutor Ferraz, a cabeça erguida, apon-
tando o caixão, o guarda-sol debaixo do braço:
— Uma santa! Alli onde a vè era uma san-
ta! Só o que cila padeceu d'aquella barriga!
A tarde cahia magnifica e bella, tingida de
oiro pelo sol poente. No occidente descia do
céo azul uma pualha d'oiro, d'oiro eat fusão...
Foram andando devagar. O padre disse, folian-
do d'um ministro:
— E olhe que o Travessa é teso! ...
E o doutor já fulo: eleições a chegarem, o
brazileiro d'Arnozella tremido:
— Qual teso! qual diabo! Isto só com um
pau que Ih'o digo eu!
Atravessaram aponte. Em baixo aagua azul
corria transparente e mansa, cheia de scintilla-
ções de sol ainda: as casas d'aldeia erguiam-se
brancas no céo d'um azul ineffavel, sem uma
44 A PIMPINELLA

nuvem: uma nóra ia resonando entre noguei-


ras distantes: havia risadas de lavadeiras ba-
tendo roupa no areal... No côo, muito alto,
um bando de corvos voava lentamente para o
sul. E alli, a meio da ponte, o chapeu puxado
para traz, os olhos brilhando-lhe, o guarda-sol
empunhado, um pouco commovido talvez: —
eleições á porta, o brazileiro tremido, a morte
da D. Isabel— odoutor rugiu:
—Isto só no tempo dos Cabraes ... Ra-
chava-os IDou-lhe a minha palavra d'honra que
os rachava a todos !...
E foram andando para casa.
A HERANÇA

Ao senhor Pinheiro Chagas.


-
Viviam mal. Pouco e pouco, porém, aguei-
Ia herança para vir déra-lhes importancia. Be-
biam boa pinga que ella ia buscar n'uma cane-
ca á tenda, muito lambareira, debaixo do aven-
tal azul; tratavam-se bem; iam-se endividando
—e toda a gente lhes fiava com a mira no
ganho, mais tarde, quando a herança viesse.
Aquillo era certo para -
elles. O velho esticava
o pernil—e aquinta, os vinhaès, as terras fer-
teis, onde a agua das presas corria, era d'el-
les, só d'elles!
• Ás vezes passavam pela quinta, dando
uma volta grande, cheios de satisfação perante
a boa qualidade das ameixieiras, das hortali-
W, dos parreiraes sem fim. Ficavam espreitan-
48 A HERANÇA

do satisfeitos —e á noite, n'esses dias sobre-


tudo, era uma palestra infindavel...
—Quem rebenta de inveja é a Felicia,
meu homem, dizia a Anna mostrando os den-
tes.
Era alta, grande, o olhar negro cheio de
maldade...

Por isso, quando se dicidiu o casamento foi


para elles uma affronta tão grande, tão grande,
que a raiva rebentou-lhes aos borbotèes, em in-
jurias. Como os olhos da Anna luziam cheios
de maldade!
—O coirão! o coirão!
Uma visinha passou:
—Então sempre era verdade ?
«Havia de vèr-se ainda! O que obandalho
da outra queria era roubal-os! E o velho? O
malandro do velho! »
E mais a irritavam as perguntas. Pareceu-
lhe ter visto a Felicia que passava triumphante,
rindo escarnica — e ella correu, veio á soleira,
clamando que ainda um dia havia de tirar as
orelhas a uma borracha que dia lá sabia... E
a outra passou, passou sorrindo-se... Oh como
o olhar lhe luzia, a ella, cheio de maldade,
A HERANÇA 49

como teria vontade de as esganar a todas, de


as trincar aos bocadinhos — assim!...
E berrou, berrou com o homem.
—Cala-te, mulher! ...
—Hei-de fanar! ... Se eu tivesse outro ho-
mem ninguem me desprezava! ... Não ficava
assim!...
—Cala-te mulher Icala-te!...
—Hei-de fanar! hei-de fallar!
Elle ergueu-se de repente, os olhos raiados
de vermelho.
—O meu bandalho!
E bateu-lhe, deram um no outro, contentes
talvez por descarregarem a raiva que os en-
chia, medonhos, espumantes — até- que ella
cahiu esperneando, impotente e terrivel...
—Hei-de fallar!
E ringiam-lhe os dentes.

O velho casava afinal. A creada, gorducha,


cheia de risadas e saudavel, não queria—mas
de longe veio a mãi, parentes com a mira
n'aquellas riquezas, aconselhando-a ao casa-
mento, pensando depois em a roubarem a
ella. Eram conselhos, segredos pelos cantos,
ralhos...
4
50 A HERANÇA

—Ora já viram uma estupida assim! ...


Ella afinal dicidiu-se — e casou.

Começou então para os dois uma vida terri-


vel. Cabiram-llies em cima—o da tenda, odas
cavacas, querendo o seu dinheiro —ladrões —
que trabalhassem, quem não tinha de seu não
fazia dividas...
E exasperava-os aquilo, a ella principal-
mente, a quem as risadas da Felicia enraive-
ciam —e elle então dava-lhe com um pau to-
das as noites, porque ella açulava-o, gostando
de se vèr batida, medonha.

Como uma loba faminta e errante rondou


então o quintal do velho. Na noite luziam corno
carvões os seus olhos cheios de maldade —e
eram sempre assaltadas aos parreiraes que cor-
taram rentes, aos rebentões das fructeiras... E
era n'ella principalmente que aferocidade cres-
cia, inexoravel, mais alta, os olhos negros lu-
zindo; era ella que o instigava áquella ronda
de noite, tragica quasi, em volta da quinta, es-
piando com precauções infinitas, escolhendo o
momento azado em que cahiriam em cima das
plantas tranquillas...
A HERANÇA 51

E tinham depois uma alegria em casa, risa-


das de raiva satisfeita, satisfações de crimino-
nosos impunes.
—Ó meu homem!
—Era a ella! a ella! fazia-lhe assim !...
Mas as queixas vieram. Cavadores ficavam
de véla, alta noite, guardando com velhas cla-
vinas de pederneira —e a raiva cresceu, avi-
gorou-se n'elles mais intensa ainda, ao ve-
rem-se impotentes contra aquella que odia-
vam — o bandalho! —sem poderem exercer a
ferocidade que os enchia, guardada a quinta
— a sua quinta! ...
E vieram novamente as recriminações que
cahiam como chuva sobre o seu homem que a
não vingava — até que elle impaciente lhe ba-
tia, medonho, e ella cabia babujenta, espu-
mando indomavel, com rasgões nas saias...

Desciam então já do norte ranchadas ale-


gres de ceifeiras, e nos toneis fervia uma tor-
rente de vinho novo, vermelho de sangue, es-
pumante...
Uma tarde passaram pela quinta. Entarde-
cia. O sol morria no occideute n'uma poeira
d'oiro e lentamente descia sobre a paisagem
*
52 A HERANÇA

uma serenidade grande... As creanças sabiam


da eseóla aos ranchos, o saquitel á banda,
n'um rompante de novilhos soltos. Rasgões nas
calças, ferozes, saudaveis, d'uma bella côr de
bronze, assaltavam as fructeiras como ladrões,
iam ao banho para a agua azul da lagôa...
De repente, dentro, na quinta, viram o ve-
lho e a creada, casados já. Ella abanava uma
ameixieira, rindo, cheia de alegria, vermelha
do esforço — e aquillo foi para elles outro in-
sulto, mais grande ainda. Ficaram espreitando.
Elle dizia que á noite iria lá abaixo aos Siaes
— e ella, trincando uma ameixa caranguejeira,
ria ainda, bella, borracha de felicidade e sau-
davel... Olharam-se os dois bem fundo nos
olhos, sem uma palavra — e partiram então ra-
pidamente, ella na frente, elle atraz, ambos
pensando n'um crime, torturados por aquella
idéa que ha muito nascera n'elles, sem nunca
a communicarem...

Ah, dizer que nunca mais, nunca mais


aquella quinta, as ameixieiras, os parreiraes
d'uma verdura metallica que os cachos de
uva unida e grande enchiam, que nunca
mais seria d'elles! Tudo, tudo para ella, para
A HEF1ANÇA 53

a outra! Que é que ella lhe tinha feito, ao


velho? Elle tinham-n'o aturado, enchido de
cuidados, cheios de precauções, humildes, hu-
mildes, rasteiros como cães... Ah é que elles
não eram bestas de carga... O bandalho do
velho! o coirão !... Era (Penes, só d'elles
a quinta... Haviam de se vingar, de tirar a
quinta á cadella da outra! Ou para elles ou
para ninguem! Ah querias aquellas riquezas,
tinhas accedido ao casamento para os rouba-
res a elles... Querias?... Tinham espreitado
tantas noites, tantas —ella principalmente pela
terra de rojos com meneios de fera, transbor-
dando raiva, mais damnada ainda ao conhecer
a sua impotencia, sentindo dia a dra a feroci-
dade crescer n'ella, um odio terrivel que a
matava...

Era negra a noite, d'uma negrura de tinta.


Alli as carvalheiras cobriam o carreiro e a
mina ficava n'uma cova funda — um buraco
escancarado, aberto como uma bocca de féra.
Ouviram passos e elle tremeu. Mas n'ella cres-
ceu, cresceu a raiva, satisfeita, os olhos negros
luzindo vermelho... Era elle! era elle...
— O bandalho!
54 A HERANÇA

Respirou amplamente — e teve uma risadi-


nha fria, fria, cortante, que echoou sinistra-
mente na mina. Elle, a navalha aberta na
mão, agarrou-a terrivel, cheio de medo:
— Chiu!
E teve vontade de a matar tambem. E ella
contente, cheia d'uma alegria sem fim, mistu-
rada de raiva, repetia:
— O bandalho! o bandalho!
Ouviram-se as passadas mais fundo, soando
entre as muralhas que aterra fazia. O velho
teve quasi uma indecisão ao entrar na cova.
Lembrou-se da ferocidade dos dois; presentiu
talvez que o espreitavam, promptos a assassi-
nal-o —mas logo, mais depressa, com vontade
de passar n'um instante aquelle pedaço tão
negro, andou, andou...
Então o outro salliu de repente da mina, a
navalha aberta luzindo— e elle vendo de re-
lance, rapidamente, advinhando tudo, enco-
lheu-se, um frio na barriga, cheio de terror,
murmurando piedosamente:
—Não me inalem! não me matem!
E cahiu...
Foi quando efia sahiu da mina, trag,ica,
grande no seu odio, esvoaçando-lhe a saia na
A HERANÇA 55

noite como uma ave de rapina agourenta eme-


donha:
— Ó bandalho !—rugiu.
E abateu-se sobre elle, n'uma sofreguidão,
batendo-lhe com um calhau, ás trincadellas,
n.'uma raiva bestial que nem o sangue acal-

mava...
UM MARINHEIRO

Ao senhor Ramalho Ortigão.


Pouco e pouco, n'um esforço de titans, a
agua do mar escorrendo-lhes dos braços, iam
puxando duramente as rèdes.
—Eh !Alal...
A sardinha grande da costa saltava prateada
entre amalha estreita e fina, earede, que elles
tiravam cio mar, molhava tudo, encharcada em
agua, coberta de algas verdes pingando. Tres
gorazes crescidos debatiam-se aos saltos, e
duas pescadas, de listras pretas no dorso, mor-
riam na caverna esguia do barco, pulando. Por
fim a ultima rède sahiu da agua com menos
peixe ainda.
— Quasi nada, disse o arraes.
E um dos rapazes murmurou indifferente
quasi:
GO UM MARINHEIRO

—Fugiu p'ra o sul, o peixe...


Longe, a bastantes braças, mais bateis, de
véla arreada, balouçavam-se no mar banzeiro,
côr do céo, e para lá ainda mais e mais, os
que vinham de Espinho, aquelles que corriam,
com a véla cheia e solta, a pescaria feita, a
entrar a barra na enchente. A costa appare-
cia baixa e anda, e havia apenas uma bran-
cura batida de sol para a Povoa, e erguido
no ar muito esbatido, muito alto, o pharolhn
da Luz...
,—Iça! ...
Tinham içado a véla, e o batel corria, le-
vantando espuma na prda, em saltos bruscos
ás vezes. Os dois rapazes, de vinte annos tal-
vez, esculpturaes, de cabello aspero, crestados
do sol, respirando honestidade esaude, tinham
ido deitar-se de barriga para baixo no pedaço
de tombadilho da preta, e o arraes ao leme fu-
mava devagar o sen cachimbo de barro enne-
gre cid o.
No emtanto a costa aproximava-se. Agora
via-se o mar que se desfazia em espuma ne-
vada contra a penedia aguda e negra; o pon-
tilhão de Carreiros, onde a agua escachoa e
redobra de furia; .
o velho castello triste, cosido
UM MARINHEIRO 61

de buracos onde as gaivotas fazem ninho...


Muito alto, muito pallido, irradiava já o pharo-
fim da Luz. Iam entrando a barra; dobravam
mesmo o caes de Felgueiras, sacudidos pelo
mar que quebra alli...

O velho encostára-se a um varal, olhando


o mar banzeiro e azul, sentindo o bom cheiro
picante das algas, e quando o batel dobrou o
caes, a véla panda a destacar-se no poente
vermelho, resmungou sem se mexer:
—Ó Maria, lá vem o batel!...
A essa hora já as raparigas corriam pelo
caes, arregaçadas as saias, de perna núa, a ca-
nastra de verga á cabeça. A târde morria:
uma gaivota branca pairava muito alto na se-
renidade do céo, e os longes da outra banda
destacavam-se cheios de nitidez, com grandes
sombras negras anichadas na verdura. O cabe-
dello cortava a mansidão da agua quieta com
um traço amarello tostado, e um paquete, as
lanternas a vermelhejar, descia vagarosamente
o rio, cheio de preguiça por aquelle fim de
tarde tão mansa. A agua lisa, côr d'aço quei-
mado, sem uma ruga...
Ovelho espreguiçando-se, olhando osol des-
62 um MARINHEIRO

apparecer, mergulhar no occidente côr d'ouro,


resmungou ainda:
—Cá está o batel... Ora Nosso Senhor
premitta que traga muita sardinhal...
E chegando-se ao caes, berrou!
—Então?...
E o filho de lá, as mãos em buzina, a des-
tacar-se no céo, respondeu resignado:
—Quasi nada... Uns tres centos...
—Má' raios partam o mar!...
ninguem _corno elle o amava afinal!
Ás vezes em tardes azues, elle ia ainda, amão
no léme, sentindo-se bom, sentindo-se forte,
pescar tambem. E na volta, a véla retezada
pelo sul, parecia reviver: acudia-lhe inteira a
sua rude -vida de marinheiro, batida de traba-
lhos, soffredora...
«E quando elle era novo! quando elle era
forte! O dia em que ernbarcára corno grumete
no brigue; o dia alegre em que casara com a
sua honesta companheira! ... Via-se marinhei-
ro valente, contramestre em seguida, crestado
do sol, e resistente como amadeira alcatroada
do seu brigue... De relance entrevia aos reta-
lhos farrapos da sua mocidade: portos distan-
tes n'ama tarde quente, as embarcações ador-
UM MARINHEIRO 63

mecidas na agua lisa, de costados pretos ou


vermelho-escuro, as mastreações erguidas no
céo... E o olhar brilhava-lhe então, enchia os
pulmões do bom ar salgado do mar.
E quando chegava, cheio de alegria, de
calça larga de brim e camisola de flanella, e
encontrava a mulher e os filhos que o espera-
vam no caes... Ah! esses dias, esses dias! ...
Os abraços alegres, as lagrimas da sua mulher,
os rapazes que encontrava mais crescidos, mais
fortes já—os seus filhos... E vinham pelo
caes, a pé, contentes, elle contando a viagem,
as afflicções que tivera. E a.sua mulher, tão
séria, tão boa, com o olhar cheio de felicidade
e de ternura, dizia:
—Como tu vens trigueiro, Joaquim!...
Vinha queimado, vinha! A viagem
fóra má, a tempestade no mar, longe, fusti-
gára-os —mas o seu brigue aguentara, resis-
tira... Como elle lhe queria tombem ao seu bri-
gue!

E agora, que o peixe escasseava na costa,


que elle se sentia pesado em casa, tinha re-
voltas surdas, desejos violentos de partir ainda.
Mas estava velho, não podia, e voltavam-lhe os
64 UM MARINHEIRO

desesperos enormes, raivas contra o mar, que


se cansara afinal como elle: tornava-se res-
mungão, intratavel; ficava dias e dias sem
fallar, muito aspero.
«Elle, um marinheiro, precisar que o sus-
tentassem! Servir apenas para concertar as rd-
des velhas ! »
Honesto e leal. Rude, cheio de rugas, bem
velho já. Com saude ainda, os dentes brancos,
abarba grisalha, oolhar vivo emoço. Cheia de
dedicações a sua vida inteira. Creança ainda
embarcara, crestára-se-lhe a pelle, fizera-se va-
lente no mar. ,Sustentava a mãi. Tinha aspe-
rezas na voz; ancoras e datas a tinta azul nos
braços possantes...
Envelhecera, morrera-lhe a mulher, e elle
ficara em terra por fim, com o filho e os ne-
tos. A neta casara um dia com o Nél, um ra-
pagão que, como elle, partira em seguida na
sua primeira viagem de marinheiro para oBra-
zil. Mas quando a barca voltou, elle não vinha.
Lá tinha ficado, uma noite de tempestade, no
mar...
Envelhecera, não podia trabalhar. O filho,
os netos pescavam, e elle ajudava-os a concer-
tar as rèdes. Ma o peixe escasseava... E o
UM MARINHEIRO 65

que elle soffria ao vèr os outros trabalhar no


batel, emquanto elle ficava erri casa, aremen-
dar as velas. O que elle soffria, bom Deus!

Mais um batel tinha chegado lambem, ede-


pois ainda um outro viera mansamente encos-
tar-se á lingueta, enchendo o caes de alegria,
de montões prateados de sardinha. As mulhe-
res berravam; pescadores lavavam as rèdes —
e o cheiro picante do mar espalhava-se mais
vivo n'aquelle bocado de caes tão cheio de côr,
d'uma intensidade rara...
O velho tinha vindo devagar, tristemente,
vêr a pesca. O filho, com um sorriso resigna-
do, atirando o peixe para o caes, murmurou
ainda:
—Esta fartura I...
—Má'raios !

Esfriava. As sombras dos barcos alonga-


vam-se negras na agua luzente... Homens
corriam no caes. Uma catraia preparava-se
para pilotar um navio. O piloto, a quem o pi-
loto-mór dava ordens, zangado, corria já para
o barco.
O velho olhou. A neta tão morena, tão lin-
66 um mAtinquEnio

da, acamava a sardinha na canastra. N'um ins-


tante pensou em ir remar na catraia, em aju-
dar os seus...
«Que diabo! Eram seis vintens aganhar...
Talvez a ceia. E que estava elle alli a fazer de
braços cruzados emquanto os outros trabalha-
vam?... Não podia! não podial... Ia vêr-se
isso! ... Ainda tinha força nos braços! O mar
não dava peixe, reinava-se nas catraias. Era
trabalhar, trabalhar até cahir! »
Resolveu-se de repente. Partiu a correr,
tropego já, com tanta pressa que bateu de en-
contro ao piloto. Luziu o olhar vesgo do ho-
mem. Tinha sido insultado: precisava de des-
carregar em alguem a sua raiva. Agarrou o
marinheiro pelos hombros.
— Vossê não vè sua besta? Que o re-
bento!
E a tremer de colera, quando ovelho fugia
com medo de perder a catraia, deu-lhe uma
bofetada nas barbas grisalhas.
Um grito. Veiu vermelho o marinheiro.
Crisparam-se-lhe as mãos n'uma colera sem
fim, e ergueu alto, bem alto, a sua cabe-
ça rude de luctador... Elle, a quem nunca
ninguem batera, nem o seu capitão, quando
UM MARINHEIRO 67

elle era grumete!... la esganar ooutro, cheio


de força, cheio de vida, de raiva... Mas a ca-
traia largava...
—Larga! larga! ouvia-se.
Agarrou de repente no homem, estatelou-o
no chão, a rugir, de encontro a um varal, e
correndo, os punhos erguidos no ar, foi cahir
dentro do barco, dizendo:
—Que diabo!... Eram seis vintens a ga-
nhar!...
Remou enfurecido, com força de gigante,
quasi sem se aperceber do esforço enorme que
fazia; qua.si sem vèr onde estava, ennevoado
o olhar —mas lentamente as lagrimas cahiram-
lhe sobre as barbas grisalhas, sobre as faces
bronzeadas esympathicas.
—A elle, a um marinheiro! a quem nunca
ninguem se atrevera! ...
e
OS PECEGOS

Ao senhor Joaquim d'Araujo.


Ai a gente que o doutor tinha n'aquelle dia
a jantar! ... Primeiro a fidalga de Arnozella",
gorda, cincoenta annos, côr de maçã camoeza,
largas risadas cantantes; depois o abbade — o
diabo do abbade! — comilão insaciavel, um
bucho que eu sei lá! — e que já lhe tinha
dito na vespera:
— Ora eu sempre quero vèr esse jan-
tar!...
E ainda, com a mãi, —a morgadinha dos
Trigaes, tão fresca, tão boa rapariga, tão ami-
ga d'elle!
Por isso o doutor dizia ácreada:
— Ai Gertrudinhas, eu quero isto como unt
brinco! Como um brinco, filha!
72 oS PECEGOS

O que mais o afligia, 110rém, eram os pe-


cegos...
—Ora como diabo hei-de eu arranjar isto,
não fazem favor de me dizer?...

`fres fructos magnificos aquelles! Tres pe-


cegos enormes, alourados, rennugentos!...
À arvore nascia ao meio do quintal, entre
couves gallegas de folhas verdes, rendilhadas,
e d'uma margem de hortelã pimenta, cortada
por um fiosinho d'agua, que sahia do tanque e
atravessava a horta, embalando-a com mil
murmurios. Na primavera tinham-lhe nascido
tres florinhas delicadas, d'uma côr de rosa
muito esbatida e immediatamente o doutor a
rodeara de cuidados, cavando a terra em re-
dor, matando sem piedade o bezouro mais in-
nocente que se atrevesse a passear n'aquelle
sitio, aquecendo-se ao sol do bom Deus.
Que eu nunca vi velhote mais contente!
Uma alegria santa esfusiando em risadas; be-
bendo sempre pingas d'um vinho velho que
possuia arrecadado no fundo d'adega.
Setenta annos saudaveis e alegres. Gostava
de contar historias galantes...
O outomno corria lindo. Os dias amanhe-
OS PECEGOS 73

ciam azues, limpidos, serenos, aquecidos por


um sol temperado que amadurecia lentamente
a fructa pelas arvores — e o doutor esprei-
tava a todos os momentos a fructeira, olha-
va com admiração os pecegos enormes, magni-
ricos que a luz trespassando-os fazia d'um oiro
soberbo...
Á noite, depois da regalada ceia, enfiava-se
na cama, satisfeito com a frescura do linho dos
seus lençoes, apagava a luz, atabafava-se bem
e punha-se a discutir com a sua propria pes-
soa, para conciliar o somno, o caso grave e
interessante de se deveria ou não convidar
para ojantar em que se comeriam os pecegos
o seu excellente amigo abbade d'Arnozella.
— Nada! E se elle come a fructa toda?
E revolvia-se na cama afilicto com aquella
lembrança. Mas logo se recordava com alegria
das excellentes historias e chalaças que o seu
amigo para regalo de ambos tinha por costume
contar ásobremeza.
— É o diabo aquelle homem !É o diabo!
E ria-se com vontade á simples recordação
d'aquellas pilherias tão ricas, d'aquelles casos
galantes sobre que versavam de ordinario as
palestras do jantar.
74 OS PECEGOS

--Mas se o homem come os pecegos? Com


um bucho como o d'elle 1... — perguntava
bocejando, com o somno um bocadinho es-
pertado.
— Amanhã resolverei.
Mas os pecegos é que não podiam esperar
muito: iam dia para dia amadurecendo mais;
tornavam-se alourados, enormes, e as manchas
vermelhas pareciam á luz do sol tres grandes
nodoas de sangue.
— E ámanhã Convido o abbade, ponho
dous pecegos na meza para que elle não possa
comer senão um, e o terceiro guardo-o para
mim só.
E exclamava, olhando os fructos já madu-
ros, excellentes, parecendo prestes a rebentar
muito cheios de summo.
— Que ricos!

A cosinha tinha um aspecto alegre e con-
fortavel com a sua grande chaminé onde se de-
fumavam os paios do Alemtejo e os presuntos
saborosos, e fazia gosto vèr a ordem, a syme-
tria, o modo porque a Gertrudes dependurava
os grandes tachos de cobre reluzente, dispunha
as caçoilas vidradas, e encastellava aum canto
OS PECEGOS 75

as assadeiras enormes, a constrastarem com a


verdura dos louros.
N'aquelle dia, porém, tudo estava fora dos
seus lugares, eavelhota, inquieta, formigando,
ralhava com a creada, provava o arroz muito
lourinho elevemente tostado por de cima, dis-
punha ao redor do lombo de porco pequeninas
rodellas de limão, enfeitava com ramos de salsa
a carne ensanguentada.
— Saia d'aqui, creatura! À cosinha fez-se
para as mulheres!
E empurrava familiarmente o doutor que
provava como entendido um môllio já prepa-
rado.
— Bom, bom... Eu vou até ao quintal...
Olhe: dó cá esse prato de louça JJa bulia para
trazer os pecegos.
E ia a sair contente quando a creada lhe
perguntou:
—Já sabe que vieram uns noivos passar uns
dias áaldeia ?... Estão em casa da D. Genoveva.
— Uns noivos! olá!
E, assaltado de repente por unia idéa bré-
jeira, foi pulando ás risadas pelo quintal adiante.
— Uns noivos! lh! lh!
O dia estava lindissimo: perfumado pelas
76 OS PECEGOS

flores silvestres, dourado pelo sol que punha


scintillações de cobre antigo na folhagem verde
das arvores; n'um campo fronteiro duas vaccas
pastavam pachorrentas, e o quintal, com o po-
mar cuidadosamente tratado eaagua brilhando
como um espelho ao sol, tinha um aspecto en-
cantador.
—Devem estar bons! murmurou.
E seguiu pensando na belleza, no tamanho,
no aroma d'aquelles fructos sem igual.
— Ató appetece comel-os!
Abriu a navalha e dirigiu-se radiante para
a arvore, com um sorriso de satisfação nos la-
bios vermelhos.
— Vamos a isto!
Mas de repente estacou, aphysionomia tran-
stornada, deixou cahir o prato de finissima
louça, agitou os braços n'um desespero, e es-
tendeu o punho, exclamando n'um rugido:
— Ladrões!
Nem um! nem uni só dos pecegos restava
na arvore.
Cahiram-lhe silenciosas as lagrimas pelas
faces afogueadas, e, aos soluços, aos soluços,
deixou-se cahir sobre um banco de pedra que
alli havia.
OS l'ECEGOS 77

«Tinha-lhes dedicado todos os seus cui-


dados, toda a sua ternura! Na primavera, de-
pois de lhe terem nascido as florinhas, quantas
afflicções não tivera por causa d'ellas? Quantas
vezes, altas horas da noite, não acordara estre-
munhado, julgando ouvir oestalejar da saraiva
nas vidraças? ... E para què todo aquelle tra-
balho, todos aquelles incommodos ? »
Mas uma risada fresca, vibrante, crystalli-
na, soou do lado do campo.
As lagrimas seccaram-se-lhe, levantou-se
d'uin pulo, e vagarosamente, arrastando-se
cheio de precauções, aproximou-se da sebe de
trepadeiras em flôr, que serviam de divisão, e
olhou...
—Os noivos!
Effectivamente, sentados na relva ásombra
d'urn carvalho, os noivos acabavam de comer
o ultimo pecego, e pelo chão rolavam ainda os
caroços muito vermelhos, em sangue, da fru-
cta que tinham roubado.
Então o doutor, cheio de despeito, desfa-
zendo entre as mãos tremulas as flôres da tre-
padeira a que se encostava, berrou, pulando
de raiva :
.-Ladrões !Ladrões !
78 OS PECEGOS

E, na janella da sala do jantar, o abbade,


que tinha chegado n'aquelle momento, gritava,
rindo ás gargalhadas:
— Ó doutor! Ómalandro! Então vamos ou
não vamos a esse jantar?

UMA HISTORIA SINGELA

Ao senhor J. Pereira de Sampaio.


Tudo o que eu sabia de minha tia Joanna
era que a boa senhora vivia na quinta das La-
ranjeiras, aos Poiaes, distante de Souzella umas
tres leguas. Nas minhas recordações ella appa-
recia desbotada e azul ainda: risonha e terna.
Lembrava-me de a ter visto em criança, no
aconchego amoravel da lareira, ao pé das bra-
sas escarlates, a dormir socegada, a bocca
aberta, as lunetas na ponta do nariz. Sei ainda
que uma tarde opapá, ásobremeza, quente, de
conversa com um primo mau, que era recebe-
dor em Vianna, lhe tinha gabado muito o seio
eos braços — duas perfeições antigas.
— Que seio! que braços! Eu só queria que
o primo visse! Até alli!
6
82 UMA IIISTORIA SINGELA

O primo, de lunetas pretas, escutava-o gra-


vemente compenetrado, desdobrando o guar-
danapo de linho — e em seguida o papá con-
tou como dia casára com aquelle .. tratante do
Pimenta, um piteireiro. Disse então as afflicções,
a má vida que o tal Pimenta lhe déra, á mi-
nha boa tia,— até que morreu uma noite, afo-
gado na citerna da quinta. Desde então a tia
vivia na quinta das Laranjeiras, feliz e con-
tente, com a filha e vinte contos — que esse
tratante lhe deixára... E o papá murmurou
gravemente, perdoando ao Pimenta, cheio de
generosidade:
Emtlm... morreu... acabou-se! Não se
falle mais n'isse!
E o primo tristemente, levantando-se da
meza:
—Deus lhe perdôe!
Eu não sabia mais nada; mas sempre se
acontecia lembrar-me d'ella,a via nas mi-
nhas recordações azul ainda: risonha eterna...
Foi portanto contente que eu parti .uma
tarde na guisalhada alegre dos machos, com
o almocreve João Verde para a quinta das La-
ranjeiras... Era nas tardes do outomno, ma-
cias e azues, pelas ferias grandes. Nas encru-
UMA HISTORIA SINGELA 83

zilhadas a sombra estendia-se religiosa e ne-


gra... Foram cinco dias alegres. O João Verde
cantava, dizia graças ás raparigas, que ceifavam.
Pernoitavamos nas estalagens — e ainda hoje
conservo d'esses dias cantantes uma recorda-
ção forte d'alegria e de liberdade... Sei que
então muitas vezes, a miudo, pensei em mi-
nha tia. Como me receberia ella ?E aprima?...
E sempre a via ao canto da lareira vermelha, o
beiço humido caído, as lunetas na ponta do
nariz — uma grande expressão de familiaridade
e de bondade...

Era uma excellente senhora, a minha boa


tia! Conservava na velhice a fresca alegria dos
vinte annos e uns bons dentes que luziam — e
todo o dia a casa faiscava tremente de risa-
das.
Minha prima Isabel — a morgada, como di-
ziam — era muito desejada: vinte annos, sau-
davel, uma covinha no queixo, vestidos claros
de chita. Tinha a frescura adoravel d'uma
aquarella cantante. Toda a gente sabia que o
abbade a adorava, e que o melhor dos figos
bèberas que asua figueira tão gabada — fructei-
ra assim! — produzia era para amenina de
84 UMA HISTORIA SINGELA

Arnozella —tão sua amiga! Até o Mendes da


botica, que conhecia mulheres, dissera já da
rapariga:
— Que frescurinhal... Até consola agente
cá por dentro!... Peixão assim!
Eu sentia-me feliz e contente, cheio de
bondade. Tudo me sorria. A casa mesmo, d'um
andar somente, as janellas rasgadas sobre as
fructeiras do pomar, tinha uma apparencia bur-
gueza, uma grande expressão de tranquillida-
de. As andorinhas teciam ninhos no beiral—e
quando na primavera o Antonio Luiz caiou a
casa e quiz desfazer-lhes as tocas, minha tia
oppoz-se com tenacidade, apesar da indigna-
ção do pintor...
Ora uma tarde, em seguida ao jantar, des-
cemos pela quinta abaixo.
— Olhe o morangal! Havia o primo de cá
ter vindo em maio.
Mais fresca, mais saudavel me parecia
n'aquelle dia azul. Um vestido alegre de chita,
o avental grande apertado na cinta. O abbade
atraz, conversando com a tia, apontava-nos,
contente, alegre das nossas risadas:
— E a mocidade, minha rica senhoral...
E a minha tia ria tambem. Depois encontra-
UMA HISTORIA SINGELA 85

mos uma cerejeira, cheia de fructos yermellios a


luzir entre a folhagem verde. Eu trepei. Ella,
em baixo, tinha arregaçado as mangas e apa-
rava no avental as cerejas, a rir-se, dous fru-
ctos pendurados nas orelhas.
— Olhe se cae! Não! não! Desça para
baixo!...
Eu, atrevido, ria pendurado nos galhos for-
tes da fructeira...
—Ahi vão mais! Vá! não deixe cal& ao
chão!
Desci e fomos comer as cerejas á sombra
amiga das arvores.
Era no fim da tarde. Ella avançava com as
cerejas no avental, sorrindo, cheia de saude...
No caminho sentamo-nos n'um banco. Ella offe-
receu-me fructa.
—Coma. Estão frescas...
E dava trincadellas n'uma cereja escolhida.
—Não quer ?... Mais fica.
Eu então acemente atrevi-me...
— Prima...
E disse-lhe que gostava muito d'ella; falei-
lhe na felicidade de vivermos juntos a vida in-
teira...
— Prima...
86 UMA HISTORIA SINGELA

E estaquei, os olhos humidos, vermelho,


cheio de ternura...
E a Isabelínha, segurando o avental có-
rou... Então atraz do guarda-sol que eu furtara
ao abbade — vendo-a assim tão linda, verme-
lha, as cerejas cabidas no avental, beijei-a lon-
gamente na bocca.
E o abbade, ao longe, ao ouvir risadas, ex-
plicava áminha boa tia:
— É a mocidade, minha rica senhora!

Casou-nos na primavera seguinte, cheio de


alegria, o bom do abbade. A cerejeira estava_
então coberta de flôres, exuberante de seiva.
Minha tia com seu vestido de sêda verde, na
volta da igreja sorria, sempre terna e affavel,
pelo braço do padre, que dizia ainda ao vèr-
nos contentes:
— É a mocidade, minha rica senhora! ...

Foi feliz, feliz, cheia de alegria e de satis-


fações a minha vida inteira. O abbade morreu
já e minha tia tambem. Dormem no cemiterio
da aldeia, modestamente; mas vivem ainda em
mim —ella risonha eterna, uma grande expres-
são de familiaridade e de bondade; elle alegre
UMA HISTORIA SINGELA 87

e forte, consumido no verão por nunca conse-


guir provar os fructos da figueira que tinha no
quintal, eque as creanças roubavam. Nunca me
esquecerei dos dous velhos, e ainda hoje me
parece ouvil-o dizer, alegre das nossas risadas
sorrindo para a minha boa tia I
— É a mocidade, minha rica senhora!
>.•
A LEONARDA

Ao senhor Fialho d'Alineida.


— Umas croias, senhores, umas croias!
Não que não póde a gente com a ajuda de
Deus levar a sua vida direita sem murmura-
ções do mundo... As farpélas de- merda, se-
nhores! Os raios das farpélas! ... Já viram
pouca vergonha assim?...
A tarde cahia fulva: uma pulverisação
d'oiro descia do céo sobre a paizagem inteira.
Grandes manchas douradas na verdura...
—Ora o raio das farpeias, senhores! ...
E a velha bateu com a porta para fazer
desfeita á outra, que ria escarnica, ouvindo sem
voltar acabeça, com vontade de lhe bater —e
que em seguida berrou:
—Croia velha! grande croia! Quem te viu
92 A LEONAR DA

e quem te vè! ... Amigada áface do mundo


com o padre Joaquim e com outros ! O que
tu querias sei eu— mas estão verdes! ... Eu
ras cantaria senão fosse o meu homem, grau-
dissimo bandalho!
Galou-se um momento e depois conti-
nuou:
— E tudo aquilo por o meu Joaquim não
ter querido afilha d'ella, aLeonarda! ... Olha
ocalhamaço! Não querias mais nada ?... Toma
E fez um gesto indecente.

Quando elle partiu, era a Leonarda uma


rapariga trigueira, bronzeada pelo sol, ma-
gnifica e bella como uma estatua de bronze
antiga.
Gostavam um do outro. Nas vindimas—
uvas transparentes nas parreiras, raparigas cor
tando cachos, em risadas ardentes, entre a fo-
lhagem acobreada das vides — quantas vezes,
se ella vinha, o cesto grande ao hombro, rindo,
alta, saudavel e bella assim, caídos os reben-
tões á volta dos seios, vermelha como uma
papoula — elle a estendia brutalmente entre a
folhagem d'uma verdura metallica ? Ás ve-
zes no curral, entre tojaes em !Mr... E co-
A LEONARDA 93

miam uvas transparentes, maçãs rainetas que


furtavam das macieiras...
Amavam-se d'um amor livre egrande, cheio
de intensidade, sem pieguices pelo prazer que
resalta de dous corpos nús que se roçam,
cheios de saude, borrachos de vida. Ella era
linda, alta, d'uma belleza pagã de ceifeira que
creseeu ao ar livre, na serenidade do campo,
diante da paizagern ridente, ao sol, no azul do
céo. Elle era forte, affeito ao trabalho rude da
vida, d'uma dureza de bronze. Qualquer canto
lhes servia. Gostavam um do outro. Tinham-se
entregado assim, sem vergonha, simplesmente,
á primeira vista, atirando com as preoccupa-
ções para longe, dando-se beijos 'hem á face
do mundo...
Uma ou outra vez tinha dia visto já, du-
rante as horas de descanço, quando se junta-
vam no curral, que algum os espiava tenaz-
mente. Elle levantára-se... Era o irmão, oma-
luco! Mas ella sem vergonha, com um des-
plante muito grande:
—Ora! Deixal-o lá gozar coitado!
Ninguem se importava com elle. Não fazia
mal; andava a monte, fugindo de casa, rou-
bando fruta, entrando ás vezes nas herdades
94 A LEONAIIDA

onde lhe davam sempre um pedaço de pão. Era


forçudo. Ás vezes carregava lenha. Depois, de
repente, fugia — e as .raparigas encontravam-
no á beira dos carreiros, gozando sósinho, sem
vèr ninguem, não o incommodando os outros.
— Passa fóra, maluco! Ora oyaio do porco!
E atiravam-lhe pedras.

E emquanto elle, longe, labutando, a es-


quecia pouco e pouco, ella singelamente, dia a
dia, pensava n'elle, na sua felicidade tão gran-
de quando elle voltasse, na alegria da vinda...
E no entanto a vida era má. Lá em baixo, no
casal, todos os dias havia ralhos, afilicções, um
trabalho de bestas esfurancando cheias de rai-
va a terra, a ganharem os seis vintens do sa-
lario. A primavera tinha vindo tainbem, com
a verdura tenra, a alegria dos novilhos fortes
que rompiam de repente em correrias doidas
pelos campos, na paizagem larga e verde, tin-
gida de oiro pelo sol poente. Pouco tempo
lhe ficava então para pensar n'elle, o dia in-
teiro cavando, curvada sobre os rins, suarenta
e negra...
Mas tainbem que alegria ao findar! Seis
horas — noite quasi — vinha lá por baixo, por
A LEONARDA 95

entre os olivaes, o caminho mais longo, sósi-


nha, longe dos risos brutaes das outras com-
panheiras, para pensar n'elle á vontade. E
aquillo era já um habito n'ella: — caminhar de
enxada luzente ao hombro, imaginando a sua
felicidade...
«Era tão amiga, tão amiga d'elle! Com-
prariam uma courella — porque Deus havia de
o ajudar lá longe — e haviam de viver tão
bem, tão juntos! Ella trabalharia, faria tudo
por elle — o seu homem! ... »
Ás vezes ia longe: via-se lavradeira rica,
um cevado pela matança, doze pipas de azeite,
uma abundancia grande cahindo como uma
benção de Deus sobre as suas terras ferteis —
e surprehendia-se a sorrir, cheia de felici-
dade.
— Sempre sou uma tola!
Mas em seguida a esperança nascia-lhe.
«Ás vezes... Tinha-se visto... O Portella,
um outro com palacios e quintas — o Pi-
menta... »
— Deus o ajude que bem o merece, coi-
tado!
E era aquella a melhor hora do seu dia,
porque chegada a noite, comido n'um instante
96 A LEONARDA

o caldo da malga, ,adormecia de repente, o


dia inteiro cavando, n'um trabalho rude — as
sachas, as ceifas — que a deixava n'uma pros-
tração sem fim...

Pouco e pouco, porém, ia-se fazendo feia.


Tinha já a figura, rudemente talhada n'um pe-
daço de bronze, dos britadores de pedra e de
todos aquelles que a fome e a vida acorrentam
a um trabalho constante e forte, ao sol, ao
mau tempo... Affeita a cavar, curvada, pen-
diam-lhe os seios, tinha as mãos endurecidas
e grandes, e derreava uni pouco, a pelle cur-
tida e suja...
Mas pensava n'elle sempre, amando-o mais
ainda, desprezando os outros quando a perse-
guiam, cheia de desdem, desejando-o a elle
só, com um amor grande e forte... E todas as
tardes, sempre, pensava na sua felicidade,
ia-a completando: imaginava promenores: o
feitio dos brincos que elle lhe daria, a alliança
do casamento, o sabor dos seus beijos... E a
lembrança das tardes antigas, cheias de boas
risadas, das tardes em que elle, brutal, aesten-
dia brincando, offegante e vermelho, entre to-
jaes, no curral, espicaçava-a, mordia-a com
A LEONARDA 07

mais intensidade ainda, voltando-lhe os desejos


mais fortes...
E no entanto elle deixara de escrever —
mas cila pensava n'elle sempre, amando-o
mais, desculpando-o com furia — não podia!
trabalhava como um mouro, o pobre! — não
querendo que a convencessem, agarrada tenaz-
mente aquella esperança que sentia fugidia,
sonhando sempre a sua felicidade...

Elle voltou afinal — mas nem a conhecia


sequer.
— Olha quem ella é! A Leonarda! Não era
feia esta rapariga! ... Como está velha!
E envergonhou-se talvez de a ter tido n'ou-
tros tempos por amante.
Ella ficou sem sentir, sem pensar, como se
lhe tirassem de repente a vida — e depois par-
tiu direita na noite — rude aldeã que ella é!
—sem uma queixa, sem uma lagrima, como
se ficasse embrutecida n'esse instante. Depois

longe, errante, cahiu n'urn carreiro, desfeita
em lagrimas, despedaçada pela dôr. Era como
se tudo deixasse de existir para cila; sentia
n'alina um aniquilamento muito grande. En-
chia-a uma amargura infindavel, uma an-
7
98 A LEONA RDA

cia, uma vontade de o despedaçar com trin-


cadellas que seriam beijos d'amor ainda...
Bom Deus! A sua vida inteira, de trabalho,
austera e rude, passára-a vivendo para cite,
amando-o mais — o seu homem — querendo-o
a elle unicamente, imaginando dia a dia sua
felicidade—a felicidade de viverem juntos, tão
amigos... Oh como ella era amiga d'elle!
os beijos que lhe daria! a estima que lhe ti-
nha!
E de repente...

Foi-se embrutecendo lentamente. Cavava,


trabalhava sempre, na vindima, na ceifa, como
uma besta, um animal forte, affeito ao labutar
constante, nascido para o trabalho apenas. E
todos os dias, todos, voltava lá por baixo, pe-
los olivaes —o caminho mais longo—e sonha-
va ainda, sonhava sempre...

Era por isso que a mãi da Leonarda e a


Felicia se davam mal. As tardes que a Felicia
passava beberricando café por tijellas, acoco-
rada com as amigas no chão, dizendo mal da
vida alheia, excitavam as invejas das croias que
não eram admittidas lá — e a Anna, a mãi da
A LEONA RDA 99

Leonarda, principalmente, com abundancia de


palavrões, exclamava sempre ao passar:
— Olha as caralbeiras! Arrazadas sejais
vós! ... Não ha nada como ter um brazileiro!
Upa, ricas filhas! Upa! Assim é que é dar-
lhe! É dar-lhe p'ra a frente!
O que ella tinha era inveja — diziam. E
era — porque ella, que sempre mal dissera
o casamento da Leonarda com o Joaquim dos
Ganhões, havia mudado de repente quando elle
chegára — muitas onzenices! Õ Quim! ricos fi-
lhos! palmadas — ao sabei-o com dinheiro,
muito dinheiro.
— Um dinheirame por ald além! Coisa
assim! Vai comprar a quinta do Covello
até 1...
E lá no fundo ella, a velha, tinha imaginado
que depois do casamento da filha com o bra-
zileiro, viveria sem trabalhos, boa pinga, cava-
cas, grande pandega pelas feiras...
— Um pagode, afiançava a si mesmo lá
por dentro, dando pulinhos de contente.
Portanto a derrocada das suas illusões que
viera com o casamento da filha desfeito e a
vida malandra da Felicia que sempre conhe-
cera pobre como dia e comprando na tenda
100 A LEONAIIDA

escondido do homem e debaixo do avental


quartas de café
— Do forte !Veja lá que seja do forte!
enchiam-na d'uma indignação muito grande,
como se todo aquelle café bebido pela Fe-
licia e pelas outras — e do forte, senhores!
do brazileiro! — lhe fosse roubado a ella, in-
dignação que se traduzia em descomponen-
das temíveis, abundancia de gestos indecentes,
vontade de as correr todas a pau...
O brazileiro é que pagava. Bom homem,
satisfeito por tornar a vêr a sua terra e os
seus, que longe poetisára e principiara a amar
corno todos os emigrantes, não tinha sido for-
reta, alargara desmesuradamente a bolsa.
Ninguem trabalhava. O pai bebia na tenda,
a mãi em casa — e o unico que não apro-
veitava d'aquella generosidade tão grande era o
irmão, o maluco, que andava a monte, fu-
gindo sempre de casa para dormir entre os
trigaes, na verdura, debaixo do céo cheio de
estrellas...

Por esse tempo tambem, alta noite, uma


fogueira luzia debaixo do céo picado da clari-
dade das estrellas. Era um casal distante, uma
A LEONARDA 401

seara que o fogo consumia intensamente. O


terror lavrou. Vigiavam alta noite as searas
maduras, ficavam de guarda, businando nas
eiras, de casal para casal, de herdade para
herdade. E sempre de repente luzindo no ne-
grume, rompia uma labareda vermelha. Suppu-
nham ladrões, malfeitores escondidos, prom-
ptos logo que a gente acudisse ao incendio a
entrar nos casaes roubando...
Uma noite a Leonarda acordou: na rua ia
um alarme, uma gritaria de ensurdecer...
— Acudam!
Levantou-se e correu. Onde era? Uma ve-
lha fugindo aos ais, offegante, berrou:
— No casal do brazileiro! Acudam!
Sentiu-se de repente sem energia, mas foi
andando através do campo. Itma fogueira
enorme alumiava intensamente a noite. Para o
occidente o céo ardia, vermelho, vermelho...
De repente na volta d'ura carreiro, á luz
da labareda vermelha, com um facho ardendo
na mão, o maluco appareceu-lhe. Luziam-lhe
os olhos, parecia mais grande, e, á luz verme-
lha do fogo, julgar-se-hia cheio de sangue, ter-
rível, correndo assim na noite, aos uivos como
uma féra.
10'2 A LEONA RDA

— Era elle que incendiava os casaes!


pensou a Leonarda.
Teve medo e gritou. Elle ouvindo parou —
e volteando o facho sobre a cabeça rapidamen-
te, avançou para ella cheio de alegria, medo-
nho, uivando.
A claridade do incendi°, que lavrava com
violencia, enchia o céo de sangue...
Era elle! era ele! Sentiu um medo como
nunca tivera. O maluco pousou-lhe as mãos
nos hombros e os seus gritos eram caricias ar-
dentes, exprimiam um amor de muito tempo,
irresistivel e grande, cheio de violencias e de
coleras... Agarrou-a, prendeu-a bem nos bra-
ços. Ella debateu-se com um medo horrivel —
e os olhos d'elle luziram sinistramente, luzi-
ram... Apertou-a, e então a Leonarda, n'uma
ancia suprema, deitou-lhe as mãos á cara
arranhando com raiva, sentindo os dedos
cheios de sangue... Elle rugiu — e 'litiguem,
ninguem ouvia! —rugiu, en'uma raiva enorme
afogou-a aos urros, apertando-lhe mais a gar-
ganta — e matou-a. E depois uivando mais —
uivos em que havia alegria e lagrimas, uivos
de contentamento e dôr, lançou-se sobre ella
como via fazer ao irmão, mordeu na face —
A LEONARDA 103

mordedellas que eram beijos — e frenetico,


n'uma raiva collossal que nada pôde descre-
ver — possuiu-a morta, á claridade vermelha
do incendio que enchia o côo inteiro de san-
gue...
Ti•


PRESENTE DE FRUCTA

Ao senhor Francisco Carrelhas.


Que boa não era a titi! ..*. Pelo fim do ve-
rão, quando amadurece lentamente a fructa
pelas arvores, efia começava a mandar-nos,
em cestos de verga novinhos em folha, as ma-
çãs camoezas d'um aspecto tão lindo e d'um
sabor tão rico; os cachos enormes de uvas mos-
catel; os figos negros, compridos, 'bicados dos
pardaes; os pecegos alourados, rebentando de
maduros... Ai que, boa! que santa não era a
titi!
Ainda hoje estou vendo a Maria, a creada,
morena, gordinha, pequenota, tão fresca no seu
vestido de chita riscado de azul, pousar no pa-
teo em frente da mamã o cesto cuidadosamen-
te tapado com uma toalha de linho! ... Ainda
hoje a estou vendo!
108 PRESENTE DE FRUCTA

A tia Thereza do Ó era urna apaixonada de


boa -
fructa. Melões, bons melões apimentados,
cheios de sumo e de cheiro, ninguem os ti-
nha como dia. E peras de D. Joaquina? e
ameixas côr de rosa, grandes como maçãs?
—Só no céo! — como dissera um conego da Sé,
de uma vez que fôra lá jantar, e que por si-
gnal apanhou — Deus lhe perdôe! — uma boa
indigestão.
— Assim, minha senhora, só no céo!
Só no céo! pôde gabar-se d'essa I
E dizia-o convencido, a saude a brilhar-lhe
nas faces vermelhas.
—Só no céo! digo-lhe isto!
E orgulho tinha ella, isso tinha! Muitas ve-
zes parava no quintal, em frente de urna pe-
reira carregada de fructa, e dizia-me alegre,
prenhe de satisfação:
— Olha-me p'ra isto! olha-me p'ra isto,
meu cabeça de burro!
E na verdade o quintal, em dias de sol,
quando o ar é transparente e azul, tinha urna
apparencia extraordinaria d'abundancia: as cou-
ves gallegas, repolhudas, de folhas enormes,
cresciam contentes; as fructeiras, de troncos vi-
PRESENTE DE ERUCTA 109

gorosos, rebentavam de sande —e até omesmo


feijoal, que nascia junto ao muro, repontava
com força, perennemente humedecido péla agua.
Uns craveiros floriam brancos e vermelhos,
muito lindos, e ao fundo uma nóra adormecida
entre nogueiras punha na alegria da horta
uma nota ferrugenta etriste. E tudo n'aquella
casa, desde as cobertas de fundo branco com
desenhos d'um azul desbotado, até ás salas
claras, forradas de azulejos antigos eleves, aro-
matisadas pelas uvas de cheiro que enfeitavam
os frisos, enchia a gente de pacificação e ter-
nura, fazia pensar em typos alegres e bondo-
sos dos romances de Julio Diniz.
Mas não eram os cuidados amoraveis da
titi; não eram os frascos cheios de dôce, que
se guardavam no armario de pau- preto com
fecharia de prata; não era a prima Leonarda
tão forte, tão ruiva, de faces córadas onde appe-
tecia morder como n'um pecego maduro; não
eram as uvas brancas, transparentes ao sol,
que me levavam todos os dias a Arnozella...
É que se estava tão bem na cosinha! Na
chaminé enorme ostentavam-se os paios do
Alemtejo, os presuntos de Melgaço: nas arcas
de pinho guardavam-se os lombos de porco,
'110 PRESENTE DE FRUCTA

as mil coisas saborosas eboas que a titi sabia-


mente preparava: a louça ingleza, vulgar, re-
luzia muito nitida nos armarios: urna cantara
de barro vermelho apparecia entre os louros:
duas pipas bojudas faziam a um canto uma di-
gestão pesada — e a Maria passava d'um para
o outro lado, cantando, muito linda, com o
lenço de rainagens vermelhas cruzado sobre o
peito...
Eu beijava-a.
— Gosto tanto de si! gosto tanto de si!
Pela janella aberta via-se o quintal ador-
mecendo na meiguice loura da tarde: a bica
chalrava, e os limoeiros estivados de flôr pu-
nham na agua do tanque sombras esguias e
dócemente leves...

Eu gostava de visitar o moleiro. Emquanto


comia as azeitonas graúdas e pretas, o pão en-
farinhado e gostoso, o velho malandro contava
historias bréjeiras... A Clara fôra encontrada
com as pernas gordas' ao léo por entre a pa-
lha fofinha... Almi estava a Claral...
E babado, murmurava com saudade:
— Ai meus tempos! meus tempos!
O moinho tinha um ar barrigudo e tran-
PRESENTE DE ERUCTA 111

quillo. Na janellita, repintada de verde, pannos


brancos seccavam. Por detraz do muro caiado
rompiam cannas esguias e dôcemente verdes.
O céo de um azul desmaiado e fresco...
E o velho murmurava rindo:
— E a Rosa? e a Anna?... Ai meus tem-
pos! meus tempos!
N'aquella tarde porém, eu nem o escutava
sequer. Sabia que a Maria, a criadita da tia
Thereza passava por alli, quando levasse ocus-
tumado presente a minha mãi. Impaciente es-
perava-a — e quando a vi apparecer ao longe,
no caminho, saracoteando os quadris, o cesto
de verga á cabeça, corri apressado. E omolei-
ro em cima, velho, sem dentes, o olho em
braza, suspirava com tristeza:
— Ai meus tempos! meus tempos!
Caminhamos juntos um pouco. Por fim sen-
tamo-nos. A tarde morria. Via-se o rio que se
alastrava mansamente, cheio de serenidade, por
entre os campos. Mulheres lavavam. Appare-
ciam brancas entre as nogueiras cinco casas da
aldeia. Ao longe os pinhaes — e a paizagem
parecia levemente pincelada de azul, muito
fresca.
Eu murmurava:
112 PRESENTE DE FRUCTA

—Gosto tanto de si! Se gostasse um boca-


dinho de mim! SÓ um bocadinho...
E beijei-a.
Pelo chão, do cabaz voltado, rolaram os fi-
gos negros, compridos, bicados dos pardaes;
as uvas moscatel; as peras D. Joaquina, tão
pequeninas, tão gostosas! Na frescura da
deveza retinia muito fino o assobio vibrante
d'um melro...
— Tanto !tanto!...

Muito boa senhora, a titi! Todas as tardes,


todas, nos mandava pela creada a melhor fru-
cta que o pomar produzia! Elle eram as uvas
brancas perfumadas e dôces, as ameixas côr
de rosa, grandes como maçãs, os pecegos alou-
rados, enormes, rebentando de maduros! ...
Ai que boa! que santa não era a titi!
QUE SUCIA!

Ao senher Abilio Elysio d'Oliveira.

8
— Olha que sucia de ladrões!
E o senhor Lima, sem attentar na frescura
d'aquella manhã tão limpida de verão, e nos
assobios vibrantes dos melros que brincavam
nos silvados, estendeu furioso o ptniho em di-
recção á eira, onde os pardaes, n'uma grande
gritaria, iam comendo o milho mais graúdo e
mais lourinho d'aquelle anno.
—Dão-me cabo do milho todo! Grande su-
cial...
Isto foi no principio das colheitas. No ar
fino e puro retiniam cantos de ceifeiras; as 'A-
ras, puxadas com vagar por bois arrastados e
velhos, gemiam monotonamente ao sol, e, nas
fructeiras do tempo ou nos beiraes dos telha-
410 QUE SUCIA!

dos, eram tantos, tantos os pardaes, que o ab-


bade já dissera:
— li um castigo! Os diabos me levem se
não é um castigo!
E confessava zangado que os seus figos tão
negros e tão bons, estavam todos debicados pe-
los pardaes.
— Uns figos deliciosos, senhor Lima!
E elles, na verdade, casquinavam pelos bei-
raes do passal, batiam-se valentes nas fructei-
ras, e, sem medo e sem respeito, iam alegre-
mente, aos bandos, comer os figos mais madu-
ros.
—Uns ricos figos, meu querido senhor!

Foi por isso que o Lima, sem ai:tentar na


frescura d'aquella manhã tão limpida de ve-
rão, estendeu o punho em direcção áeira, ber-
rando furioso:
—Deixai estar que eu vos arranjo, mariolas!
E foi armar na eira enorme, completamente
alourada pelo milho, as armadilhas de réde que
comprára.
— Ora vamos lá a vèr, grande sucia! Não
que elle era só encher o papinho, encher opa-
pinho!
QUE SUCIA! 117

E postado em frente do beiral, onde os par-


daes enfileirados pareciam esperar que elle se
retirasse, abanava ameaçadoramente a cabeça,
com um sorriso de ferocidade nos labios:
— Grande sucia!

—Isto com arroz de fórno é de estalar! —


exclamava o Lima, postado diante da gaiola,
onde os pardaes que tinha agarrado se deba-
tiam bulhentos.
«Arroz de fôrno!... Viria para a meza
muito bem temperado, com o seu naco de pre-
sunto, a folha de loureiro a negrejar por en-
tre os grãos amarellados, e no meio luzentes
de manteiga, os pardaes mais gordos e mais
tenros. Seria bom, seria de regalar k..))
E o Lima sentia crescer-lhe a agua na boc-
ca, e, muito animado, parecia-lhe vèr entrar a
porta, com o grande alguidar de louça vidrada
nas mãos e os braços nús até ao cotovèlo, a
sua creada
—Ó .lariquinhas, que tal?
Lambia os beiços guloso, olhava satisfeito
.para a caneca de vinho collocada sobre ameza
ao lado da brôa appetitosa, e, muito contente,
repetia:
118 QUE SUCIA!

— Ó Mariquinhas, que tal, hein? Os ladrões


dos pardaes!
As suas gargalhadas enormes, 'de homem
satisfeito, vibravam na sala do jantar ampla e
fresca.
— Que patuscada, hoje, hei n! Que rica pa-
tuscada!
E, esfregando as mãos, foi direito á gaiola
para estrangular os passaros.
— Arre, sucia!
Levantou-se então n'aquella sala ampla, ale-
gre, repassada de luz, embalsamada pelo aro-
ma tão bom dos cachos de uvas brancas que
se ostentavam sobre a meza, uma berraria
enorme. Agarrando a porta da gaiola aberta os
pardaes fugiam chilreando para o beiral da
casa, eo senhor Lima, furioso, louco de deses-
pero, corria de um para outro lado a gritar:
— Ó Maria! Ó Maria! Olha que ladrões!
olha que malandros!
E, apontando o beiral, onde os pardaes se
catavam muito contentes ao sol, murmurou
contristado:
— Lá vai o arroz! lá vai o arrozinho!

Que linda manhã aquella! As arvores de-


QUE SUCIA 119

senhavam-se dôcemente no ar fino e puro! Na


estrada, tilintando campainhas, passavam de-
vagar duas vaccas leiteiras; e ao longe, pelos
prados, as nóras gemiam monotonamente ao
sol...
O HOMEM DO CÀNCRO

A Alberto Bramo.
4>
Lembrava-se mal dos primeiros dias de hos-
pital. Confundia as allucinações terriveis da fe-
bre :carrancas, esgares medonhos, com area-
lidade triste: o senhor enfermeiro,-um brutal,
arrastando a perna, piteiro sempre, atraz da
maca.
—Ahi no vinte, rapazes! ...
Aos rasgões via a enfermaria, as camas ali-
nhadas, de cobertas de ramagens escuras; a
noite —lampeões luzindo tristemente, quando
redobram os gemidos, maldições, aquella gen-
te com medo de morrer longe dos seus — prin-
cipalmente uma criança chamando pela mãi,
n'uma ancia terrivel.
124 O HOMEM DO CANCRO

Elle tinha pena tambem, e depois com a


noite afebre voltava-lhe, tristezas grandes, al-
guem que morria, torcendo-se, aos uivos, la-
ctando com a morte, para não ficar alli no hos-
pital medonho, com a autopsia em seguida, a
cova triste, um farrapo de lençol com manchas
de sangue... E o doente do vinte e um, a
cama junto á d'elle, dizia obscenidades, rindo
escarnica, roído por um cancro na face, medo-
nhamente inchado.
—.11ais um! mais um! Lá vai aquelle adian-
te de mim!...
Era terrivel aquelle homem. Odiava os que
iam passando melhor, com alguma esperança
já, e tendo a morte certa, e sabendo-o, desil-
ludia os mais, cheio de podridão, a cara roída,
roída a alma. Dizia rindo, com uma alegria
muito grande ao vér os outros empallidecer:
— Tenho visto muitos assim! Vão melho-
rando e de repente... zás!
E descrevia-lhes miudamente, com um re-
galo intenso, a casa das autopsias; os estu-
dantes cortando carne, atirando com desplante
bocados uns aos outros, esburacando nos cada-
veres.. .
— Que aquilo são uns malandros! ...
O HOMEM DO CANCRO 125

De maneira que o temia — ejá, na amei-


nação da febre, o doente do vinte eum lhe ap-
parecera, dizendo d'elle:
— Lá vai mais um! lá vai aquelle !—rin-
do, os olhos cheios de contentamento, com von-
tade de que os outros morressem primeiro,
prenhe de inveja, sabendo que todos tinham
nojo d'elle, que era repugnante, pôdre as-
sim...
Pouco epouco, porém, foi melhorando. Sen-
tava-se na cama já, muito pallido, sem força
ainda — e o medico dissera:
— Vá que vossè escapou de boal...

Um dia, da aldeia appareceu-lhe a miTti —


uma velhinha antiga, miudinha, milito lavada,
os olhos azues. E rindo mostrou-lhe maçãs que
trazia escondidas debaixo do avental— inala-
pios do quintal, da velha macieira, muito ver-
melhos.
«Ai o seu filho não imaginava como o po-
mar estava lindo, cheio de fructa, carregadi-
nho,
. assim ... Era preciso enrijar. Querendo
Deus havia de se pôr bom depressa... Depois
ia até lá, passeava... Veria... »
Elle, contente, mais saudavel até, o olhar
126 O HOMEM DO CANCRO

luzindo, pensava nos seus, via o quintal, ama-


va a sua casa cheio de ternura como se fosse
uma pessoa: lembrava-se das arvores, da la-
ranjeira antiga...
E a mi papagueava dando-lhe as maçãs
de presente, ageitando-lhe a roupa, risonha,
trabalhadeira —querendo vár tudo em ordem.
— Ora o meu filho!
Depois uma enfermeira passou, eavelhinha
reconhecendo n'ella a filha da Maria da Tenda,
da sua aldeia, correu, os braços abertos, ra-
diante —e houve um contentamento, risadas —
a rapariga, satisfeita por avelha lhe fallar nos
seus, promettendo olhar pelo doente...
— Ora a Maria! Como estás bonita, rapari-
ga! Benza-te Deus! ...
E na cama o homem do cancro espreitava
mordido pela inveja — sem ninguem que d'elle
cuiidasse — odiando-os a todos...

Ai; , pois todos, todos os doentes tinham


quem los visitasse, mulher perdida ou má-4
que ,-Viesse um dia na semana amal-os, trazen-
do Ole fora fructa, caricias, enchendo á quinta-
feira de alegria, de cheiro a roupa lavada, a
enfermaria, o hospital inteiro —e só elle...
O HOMEM DO CANCRO 127

E toda a vida fôra assim—assim sempre,


sempre... Todos tinham nojo d'elle, a cara co-
berta de pachos em sangue, com nodoas livi-
das de podridão e de materia, sem nariz, me-
donho e terrivel. E de cada vez o mal avança-
va mais, hediondo, hediondo... E elle sentia
na alma violentamente um desejo grande de
amar alguem. Sem labios já, tinha vontade de
dar beijos ainda...

De manhã procurava nos mercados, no Anjo


—nascia o dia—pedaços de fructa apodreci-
da, mexendo com o pau, curvado, nojento, a
babar-se, pôdre — Jesus! .
E pouco e pouco a alegria ia entrando no
mercado. Era uma tela de artista g'enial e for-
te, sem preoccupações. Montões de repolhos
amarellos, cenouras, rábanos, todas as côres
rompendo em contraste, amontoadas, aos mur-
ros. Em cima das bancas as couves d'um ver-
de escuro, exhalando frescura, regadas, pin-
gando... Do outro lado, nas barracas, laranjas,
canastras de maçãs, de fructas... O sol que
•nascia dourava a folhagem das grandes arvo-
res e o saque áquella abundancia começava.
As regateiras, braços mis, fortes, manga arre-
428 o HOMEM DO CANCRO

gaçada, discutiam. Uma flecha de sol dourada


atravessava as folhas, e cahindo sobre os legu-
mes, sobre os fructos, aviventava as córes mn
instante... E era urna balburdia, uma alegria
esfusiando no céo... Elle então, repellido, des-
apparecia. Chegada a noite vadiava pela cida-
de, rente ás muralhas, escondendo-se na escu-
ridão das viellas, em antros repellentes que só
elle conhecia — e na alma raivava-lie sempre
uma sède grande d'amor, uma ancia infinita
que nunca acalmava, em revolta sempre. Eaté
as rameiras nojentas, vadiando na cidade ánoi-
te, sem fim, como cadellas com fome, fugiam
d'elle! Sem ninguem que oamasse, bom Deus!
E só uma noite —uma noite de chuva —uma
barregã nojenta o quizera. Não tinha palpebras
ella, a miseravel, roída da syphilis, um mon-
tão de andrajos, apodridão ambulante. Para se
aquecerem, ella morrendo de fome, ambos mor-
rendo de frio, juntaram-se no escuro — e foi o
noivado da podridão. Ao outro dia ella morreu
— e elle foi vadiando, quasi feliz, qua,si con-
tente.
E mais e mais nojento —terrivel...
Pouco e pouco, escorraçado, sem a piedade
de ninguem, toda a gente com nojo d'elle,
O HOMEM DO CANCRO 129

odiou. o mundo inteiro; affez-se lentamente a


alegrar-se com a desgraça dos outros e tinha o
desejo ardente de que a humanidade inteira
apodrecesse mais depressa que elle — que to-
dos morressem primeiro. De uma vez correra,
cheio de raiva, atraz d'unia creança, procuran-
do beijai-a para lhe communicar a podridão
que o enchia...

Quando a mi lhe disse adeus o doente do


vinte ficou cheio de resignação, o pensamen-
to nos seus, as maçãs escondidas debaixo do
travesseiro — e o outro espreitando odiava-o,
odiava-o mais ainda — porque elle tinha sau-
de, e porque ele tinha mãi. E como o ra-
paz lhe offerecesse uma maçã, corriZu metade
— e queria que elle comecesse o restante, sa-
bendo bem que o outro não aceitaria porque
tinha nojo d'elle unicamente para o vèr em-
baraçado.
— Coma, coma! instava.
O rapaz cheio de repugnancia não quiz, fa-
zendo um gesto de nojo e elle então comeu a
maçã inteira.

Pouco e pouco a enfermeira começou a


130 o HOMEM DO CANCRO

gostar do doente. Fallavam da terra, dos seus


— e juntos passavam alli na enfermaria dias
inteiros amando-se...
E elle sentia ao vèr os dois juntos, ella
rindo, cheia de cuidados, affavel e linda, um
odio immenso, uma raiva espumante, sem fim,
rebentar-lhe n'alma. E os dias todos, tardes
inteiras, os ficava espiando, espiando... E elle
morria. Como todos o odiavam, o enfermeiro
havia dito contente, arrastando a perna, ao
passar por elle:
— Anda malandro, esta noite, zut!
E foi cantando:

O ladrão do negro melro


Toda a noite assobiou...

E um rapazola p'ra outro doente:


— Que raio de piteira, hoje, hein!
A Morte! Era ella! Morrer, bom Deus! mor-
rer sem ter tido no mundo um dia de feli-
cidade, alguem que o amasse, mulher que o
beijasse fundamente, com amor, na bocca! Mor-
rer! morrer! quando o do vinte renascia para
a vida, fallando em casamento á enfermeira,
tão linda, linda! E sentiu-se nojento n'aquelle
O HOMEM DO CANCRO 131

instante: —tendo-lhe estalado um olho, a face


descarnada já, o peito tambem, não podendo
fallar desde o dia antecedente, a rouquejar —
horrivel, horrivel — vivo ainda e sentindo já
os bichos roerem-no, passearem-lhe lentamen-
te na fronte! Morrer! morrer! Não queria! não
queria! E torceu-se na cama n'uma angustia
enorme, rugindo! Não! não! babujou. Mas ca-
hiu sem forças e então pediu.'.. Bom Deus!

o bom Deus bem sabia! Por piedade! Nunca
elle tivera como os outros mãi que o aca-
riciasse — alguem que lhe dissesse no mun-
do uma palavra amiga, cheia de bondade. E
elle não pedia muito, não!... Uni dia só de
felicidade! um momento —Jesus ! Só um ins-
tante, alguem que o acariciasse --alguem que
lhe désse um beijo na bocca, um só — Se-
nhor!,..
A noite descia; a noite avançou terrivel,
medonha n'aquelle hospital. Gemidos redobra-
ram e d'outras enfermarias vinha de quando
em quando um grito — alguem que morria tal-
vez... Dos lampeões cabia uma luz ensanguen-
tada, enas paredes asombra das cordas que os
suspendiam desenhava-se em aranhões tremu-
lando... As camas, áquella luz vermelha emá,
132 O HOMEM DO CANCRO

enfileiravam-se tristemente, e os doentes ge


miam... Na do trinta— um pedreiro — ámor-
te viam-se os lençoes sacudidos n'uma respira-
ção offegante, n'um arquejar cheio de angustia,
e áquella hora, acordados ainda, os doentes
lembravam-se dos seus — das suas máis, das
suas casas, da aldeia, do sol, de lá de fóra...
— Meu Deus! meu Deus! Era a hora terrivel, a
hora angustiosa em que se tem medo de ficar
alli, em que a febre augmenta, em que as al-
lucinações começam, as supplicas ao Senhor,
os gemidos, os gritos do fundo d'alma... Para
elle aquella noite era a ultima, a ultima.
Sentia-o! sentia a morte!
E o seu unico olho raiado de vermelho, lu-
zindo na cara apodrecida e negra, olhava fixo,
odiento e triste — cheio de tristeza pelas ale-
grias que nunca tivera — cheio d'um odio in-
tenso por todos aquelles que as sentiam... Um
pensamento dominava-o agora: — ia morrer e
os outros — o do vinte — não morriam tain-
bem !... E o odio foi tão grande n'elle que
se sentou na cama — o olho vermelho luzindo,
luzindo...
Mas teve de se deitar outra vez: a en-
fermeira vinha ainda ageitar a cama do vin-
O ITOMENI DO CANCRO 133

te—e elle ouviu, ouviu bem, ella dizer ale-


oTe •

— Durma bem, vá! Amanhã tem altal...
Ai, para aquelle havia amanhã ainda, alta,
saude, o casamento e elle... Oh Deus! oh Se-
nhor, Senhor! ... por piedade, bom Deus! Que
bandalhos !... Deitou as pernas fóra da cama
n'um impulso, mas agachou-se ainda: alguem
passava devagarinho, sem barulho... E elle
não podia! já não podia! Sentia-se morrer.
Mas era alli — vá!. .. Gemidos redobraram e
ouviu-se bem um grito n'outra enfermaria —
um grito onde a angustia era tanta, tanta, que
elle mesmo o sentiu! ... Vá!
— Que é? disse o do vinte suzprehendido.
Mas não teve tempo de gritar. O outro
n'uma raiva infindavel, louco, cahiu sobre elle,
cheio de força, apertando-lhe o pescoço entre
as mãos, beijando-o, esfregando-lhe acara pela
d'elle com força, aponto de pedaços pôdres de
carne cahirem...

Ao outro dia encontraram-nos mortos am-


bos, ambos juntos. E o enfermeiro, arrastando
a perna, chamado á pressa, piteiro já, ber-
rou :
13'k O HOMEM DO CANCRO

—Ora já viram um filho da puta assim t


Que canalhal...
E foi dar parte, cantando:

O ladrão do negro melro


Toda a noite assobiou...
BOA PINGA!

Ao senhor Joaquim Machado.


No dia seguinte festejava-se osanto padroei-
ro do convento—e os frades correndo, cheios
d'alegria, arregaçados os bureis, 4,iravam dos
gavetões finissimas toalhas de renda, perfuma-
das com o contacto das maçãs d'inverno; ador-
navam a capella; discutiam n'uma barafunda o
sermão que frei José prégaria.
No refeitorio, onde o sol de maio penetrava
a flux, alegrando os azulejos, fulgurando na
fecharia de prata da copa, scintillando nas lou-
ças magnificas —frei Thomaz, que ao meio
dia ia entrando satisfeito na sua terceira refei-
ção, murmurou com espanto:
—Que sermão!...
138 BOA PINGA!

E, erguendo o calice para examinar com


beatitude o vinho áluz do sol, exclamou.
—11a-de ser um sermão de truz!
E o outro, um alegrão rebentando-lhe na
face, a barriga a arfar, assentiu:
— De truz I Que aquillo é um homem!...
Então o guardião, que escutava comendo
sem parança seu covilhete de marmelada, des-
cançou um instante para contar aquelle caso
sem igual — oh sem igual! ... Havia tres dias
que frei José não sabia da cella! ...
— Se elle até d'uma vez se esqueceu de
jantar...
E novamente se voltou com affinco para o
seu covilhete de marmelada, emquanto frei
Thomaz, depois do espanto que o caso reque-
ria, um dedo erguido no ar, exclamou:
—Uma gloria! a gloria do convento!
E a luz, entrando a jorros pelas janellas
abertas sobre acêrca, onde aagua nascia abun-
dantissima, jorrando, scintillava na prataria,
fulgurava nos azulejos, nas louças, enchia de
alegria o refeitorio inteiro, onde os fradalhões
iam entrando, com a ajuda de Deus e um ex-
cellente appetite, na terceira refeição d'aquelle
dia azul de maio...
BOA PINGA! 139

— Bem bom! disse ainda o guardião — e


na verdade ninguem saberia dizer ao certo se
sua reverendissima se referia ao sermão, se ao
dôce, se ao vinho.

Vai a festança em meio. Frei José vai pré-


gar! vai prégar! Os reverendos correm ao re-
feitorio, preparando a pança para ouvirem com
admiração epaciencia o sermão — aquele ser-
mão sem igual. Eis mesmo frei José que pas-
sa sorrindo benevolente. Um fradalhão gur-
ducho, d'olhos pisqueiros — o que tem achave
d'adega — corre, arrasta-o para Jim canto se-
gredando:
— Vai uma pinga para animar? Só uma
pinga... Assim!
Frei José não quer — mas o outro insta ar-
regalando os olhos:
— Uma pinga! Que pinga! Vai vér que
pinga d'aqui!... De se lhe tirar o chapeu!
Atravessam a cérea. O dia de primavera
está quente, azul: uma cigarra canta vibrante: a
agua da bica vai jorrando abundantissima: um
frade passa correndo nos claustros cheios de
frescura e de sombra.
140 BOA PINGA!

Abrem a porta da adega — de carvalho


chapeado de ferro.
—Está fresco aqui!
De fora entra aluz por um buraco, onde os
varões ferrugentos se cruzam: — éum rasgão
de azul na escuridão. Um silencio muito gran-
de. Unicamente a cigarra vai cantando, borra-
cha de alegria e de sol.
Sentam-se e vão bebendo um calice, mais
outro, esquecidos do sermão e do convento.
Erguendo o copo, cheio de vinho precioso, o
crurducho exclama:
— Olhe-me p'ra isto! Mais urna pinga!
— Outro docinho!...
—Rica pinga na verdade! Pinga assim! É
o que os meus olhos tem visto! •
Deitam a cabeça para traz, bebem aos go-
les, saboreando cheios de consolação; dizem
coisas bréjeiras —pequenas !eu sei ! — ba-
tem palmadas nas panças e de instante a ins-
tante, o olho luzindo, contentes com aquella.
aroteira:
— Ora vamos lá a mais urna pinga!
— Faça-me favor! Olhe que o amigo sem-
pre lhe atiçal...
— Menos mal, hein?... Não que eu nunca
BOA PINGA! 141

vi uma riqueza d'uma pinga assim !... De chu-


peta! só lhe digo isto 1De chupeta! ...

Que escandalo, meu Deus! Ninguem encon-


tra frei José — a g•loria do convento. Frada-
filões cheios de gravidade, respeitabilissimos
egressos, correm gritando, vermelhos, atropel-
lam-se nos corredores, pança contra pança,
berram n'uma desordem nunca vista: —Frei
José! frei José! O superior mexe-se na cadei-
ra, impaciente. Onde está elle, Jesus — elle, a
gloria do convento?...
E só no outro dia os foram encontrar na
escuridão da adega, cantarolando modinhas
bréjeiras, os bureis desfeitos, dizetTdo de ins-
tante ainstante, voltados um para o outro:
— Mais uma pinga do tal! Veja lá que seja
do tal!
NO MAR

Ao senhor Pinheiro Chagas.


•.

-

Mar e céo. A rasca navegava com vento de


feição, vagarosamente, e a agua tingia-se ao
de leve de branco na sua esteira...- A cabeça
do contramestre surgiu na escotilha de re-
pente:
— Ó rapaz!
Nada.
— Mau!... Temos rascada! ó rapaz!
E quando ele appareceu, semi-nú, alegre,
crestado do sol e da brisa forte do mar, deu-
lhe um cachação amigavel.
— Temos rascada.!... Apanhal...
Em seguida sentou-se ao pé de mim. Um
10
146 NO MAR

velho marinheiro de calça azul com nodoas de


alcatrão. Era sympathico, com as faces negras, o
riso leal, a pera grisalha. Cheio de força ainda,
bem construido. Alegrava agente. Desculpou-se
dizendo que não sabia fallar; tirou o sueste da
cabeça; e contou singelamente, cheio de ingé-
unidade, a historia que se segue...
Lavava-se o convés: os marinheiros, robus-
tos, bronzeados pelo sol ardente, com o typo
soberbo dos homens da costa, esfregavam cui-
dadosamente as tabuas. O grumete —o corpo
nú até á cinta, a calça de linho apertada so-
bre os rins solidos por uma faixa vermelha —
enchfa á pressa os baldes. O navio corria no
mar na ardente e clara luz do, sol...

«N'esse anno de 1852 quem commandava


o brigue Tainha —um barco que fazia balan-
ço como o diabo, se o mar picava um bocado,
mas resistente e veleiro que eu sei lá! era o
capitão Guerra, da Foz. Era um homenzarrão
preto das mordidellas do sol, rude como o
mar, p aspero, aspero I... Todo o dia berrava,
de calça de cotim e camisola de riscado azul,
contra os seus marinheiros. No fundo um ex-
cellente homem, capaz de dar a sua camisa a
NO MAR 147

um pobre. Eu sei como elle era! ... Vi-o mui-


tas vezes trazer de graça, a bordo, gente que
morria de fome no Brazil — e no dia de Natal,
estava o brigue no Porto, e o serviço calhou-
me a mim, por desgraça. Imagine o senhor
como eu estaria— em casa amulher, os filhos,
n'aquella noite! Pois chegou-se a mim e
mandou-me embora...
—Estou de serviço, capitão.
— Vá para casa, seu burro. Quem manda
aqui: sou eu ou é vossé?... Salte!
— .NIas quem ha de guardar o brigue?...
— Salte! Que lhe dou com o ancorote na
cabeça! ... Vire de bordo. Eu cá fico !... Va-
mos
E ficou. Lá consoou com o filho, o Nel que
elle adorava. Ai, aquelle filho, senhor, como
elle lhe queria! ... E amigo dos seus marinhei-
ros! ... Quando o Joaquim da Cath'rina calliu
do mastro grande e morreu, quem ficou a sus-
tentar aviuva e os filhos foi elle. Antes de fa-
zer o que a gente queria, dava por paus e por
pedras; ameaçava de nos quebrar a cabeça
com o ancorote —elle podia lá com o ancoro-
te! — mas por fim fazia tudo que se lhe pe-
dia. A companha adorava-o!
148 NO MAR

Em setembro, no dia da festa do Senhor


dos Navegantes, benzeu-se a véla grande do
brigue. O capitão quizera que n'aquella viagem
— a primeira de seu filho, o Nel — o panno
fosse novo, e n'esse dia fomos todos, belos ra-
pagões fortes e ruivos, de camisa fresca, con-
duzir a véla amarrada, toda enfeitada de flô-
res, á capellinha de Sobreiras... O capitão e o
filho iam na frente. A capella estava linda:
muito lavada, muito cheia de luz, com as suas
jarras de louça, d'um azul desbotado. —Fóra
os pardaes chiavam...
Creio que foi ahi que o Nel começou a na-
morar a rapariga. Era bonita esaudavel— mas
eu cá entendo que um marinheiro deve esco-
lher para mulher uma rapariga honesta echeia
de bondade... Emfim, no dia da nossa partida,
o capitão prometteu ao filho que o deixava ca-
sar, na volta, quando elle fosse piloto.
Sahimos a barra n'um dia lindo, o mar
azul, onde boiavam algas finamente verdes.
Para que contar-lhe a monotonia dôce da via-
gem, as tardes cheias de sol passadas no con-
vés, em seguida á limpeza do brigue, sentados
nos barris, á sombra da véla, a fallar da nossa
NO MAR 149

terra — porque todos, á excepção do grumete,


eramos da Foz?...
Em todos os portos onde tocavamos o Nel
recebia carta da sua namorada e escrevia-lhe
tambem. E na volta cada dia apparecia mais
alegre, contente quando o vento era de fei-
ção... Ah senhor, que honesto rapaz, cheio de
simplicidade e tão amigo dos marinheiros e do
pai! ... Era elle quem vinha para ao pé dos
rapazes fallar da nossa terra! ... Era uma crian-
ça tão alegre, tão boa, que até o pai fazia o
possivel para abrandar avoz quando lhe falla-
va. Um pouco fraco — e por isso o capitão o
tinha trazido para vér se elle enrijava. Andava
tão doido de alegria com o filho, o velho, que
todo o dia, desde pela manhã até á noite,
ameaçava de partir a cabeça á gente com o
ancorote. Elle podia lá com o ancorote!...
Chegamos uma tarde, emal tinhamos anco-
rado já o rapaz corria a abraçar a sua Cathari-
na... Nas passados dias o pai prohibia-lhes o
casamento: tinha sabido que a rapariga, du-
rante a ausencia do seu Nel, namorara outro
rapaz...
O Nel, porém, é que não queria... Bem
se importava elle com o pai! Foi preciso met-
150 NO MAR

lei-o a bordo, áforça quasi, eno dia seguinte


largamos.
Ah bom Deus nunca me esquecerei do que
se seguiu então. O velho nem parecia omesmo
homem do mar. Não praguejava já, nem mes-
mo nos ameaçava com o ancorote —com que
elle não podia afinal. O Nel andava triste, tris-
te... Morria de pezar. A gente não cantava já.
E os dias seguiam-se no mar azul, azul, unido
ao côo...
Afinal o velho fechou-se com o filho no be-
liche.
— Pois casa, casa... Eu não quero — com
os diabos! — vór-te toda a vida triste... Mas
tu não vós o que vais fazer, rapaz?... Pois
emquanto eu pensei que essa rapariga podia
vir a ser uma companheira honesta, uma san-
ta mulher como tua mãi, eu não queria?...
Dize?... Pois tu não vós como eu sou teu ami-
go, como eu só quero a tua felicidade, ra-
paz ?... Mas acabou-se! ... Não podes — aca-
bou-se! Casa! casa, rapaz!
Chorava— e o filho esmagado pela dói-, tor-
cia-se, banhado em -lagrimas, sobre a cama.
-- Eu já não quero casar, meu pai!
E abraçaram-se, abraçaram-se suffocados, o
NO MAR 151

velho a acariciar o cabello negro do filho — o


rapaz a dizer-lhe:
—Mas eu gostava tanto d'ella, meu pai!
Eu queria-lhe tanto!
—Meu Nel! meu filho !... O mar cura-te,
rapaz!
E beijou-o, e correu á tolda a berrar ale-
gre, vermelho:
—Raio! ... que vos parto a cabeça a to-
dos com o ancorote!
Elle podia lá com o ancorote, senhor!
O mar não o curou. Nunca mais teve uma
hora de alegria. A morte levou-o devagar...
Ah que bom rapaz! que creança tão cheia de
bondade elle não era, senhor !... Deitado no
seu catre quiz pela derradeira vez olhar o mar
que elle adorava. Pela vigia aberta entrou o
sol que morria vermelho e abrisa vivificante e
forte —e elle viu um farrapo azul de agua que
ondulava... Calou-se, sentindo-se bem — as
suas mãos entre as mãos leaes e asp' eras do
pai...
Àquela hora pensava talvez na sua namora-
da; no velho adro da sua terra onde tanta vez
brincára; n'um marinheiro velho que, quando
elle era creança, o agarrava nas mãos fortes
152 NO MAR

para o beijar na cabeça, e lhe contava a sua


rude vida de athléta, as alegrias e os perigos
do mar azul...
E, como o pai sahisse, rebentando por cho-
rar, murmurou a apertar-me as mãos:
—Tenho pena por causa do pai... Tenho
pena de morrer...
Morreu. Estavamos atres dias do Porto.
Quando chegamos, louco de dôr, o capitão
despediu-se de nós. Elle podia lá andar mais
n'aquelle brigue que lhe não viesse a recorda-
ção do filho! ... Depois estava velho: em tres
dias tinha os cabelos todos brancos. Subimos
á tolda. Estava commovido o capitão.
— Rapazes! ...
Não podia fallar; suffocava. Borbulhavam-
lhe as lagrimas no olhar.
—Rapazes! ... Eu fui sempre vosso amigo,
rapazes!
Não podia, não podia... Corremos para elle
commovidos:
—Capitão! capitão!...
Rebentou em soluços. Apertava-nos nos bra-
ços, doido, lagrimas como punhos saltando-lhe
dos olhos.
—Ah rapazes! ... meus 'marinheiros!
NO MAR 153

Mas, de repente, vermelho, as mãos nos ca-


bellos, envergonhado por chorar, fugiu ber-
rando:
— Raio ! que vos parto a cabeça a to-
dos com o ancorote!
Elle podia lá com o ancorote, senhor! ... »

O navio corria no mar, na ardente e clara


luz do sol... Pois não chorava tambem, o ma-
rinheiro? Estes homens do mar, tão rudes, tão
cheios de ingenuidade sempre...

A bordo da rasca Isabel, em setembro.


A CEIFEIRA

Ao senhor Luiz Botelho.


... Viu-a n'uma manhã de verão cheia de
transparencia, adoravelmente azul. Era bem
feita, alta, bronzeada. No entanto tinha as fei-
ções grosseiras, a bocca grande, enormemente
vermelha. Encontrou-a segando na campina
verde: um lenço azul, um corpete de ceifeira,
destacava-se crúamente á luz intensa do sol.
Desejou-a — e ella entregou-se-lhe inteira, sem
resistencia, n'uma sem vergonha de cadella
sahida, soluçando de prazer sobre o ventre
nú da terra. Depois, durante overão, foi d'elle,
sempre que elle a procurou, levantando como
uma barregã a saia, apertando-o doidamente
n'uma ancia terrivel. Tinha uma maneira bru-
458 A CEIFEIRA

tal de se entregar: soluçante, parecia que o


seio magnifico, de bronze, se despedaçava:
ululava como uma fera — e nas suas pupillas
havia um brilho ardente que lhe fazia mal, a
elle. Aborreceu-a quasi, e como o verão fin-
dasse — vindimas feitas —partiu alegremente
com a mãi.

Na cidade, porém, começou de repente a


desejai-a com violencia. Via-lhe as pernas, o
ventre possante e bello, toda a sua carne pal-
pitante, d'uma belleza sem igual. A castidade
voluntaria a que se entregava — querendo-a
só a ella, a seu corpo esculptural etriumphan-
te — excitava-o mais ainda. Nas suas allucina-
ções sentia o sabor bravio dos seus beijos a
medronho, a maneira selvagem que ella tinha
de se abandonar, soluçante, a bocca enorme-
mente vermelha entreaberta como uma romã
fendida... Oh queria-a ainda, amava-a, dese-
jaria possuil-a brutalmente, com um amor cheio
de violencias e de raivas; queria que cila oes-
magasse sobre o seu seio de bronze: desejaria
encontrai-a outra vez na paizagem ridente, onde
o sol cahia ajorros, na paizagem verde, e ati-
rai-a de repente ao chão, sem uma palavra —
A CEIFEIRA 159

olhando-a unicamente bem fundo nos olhos,


sentindo o cheiro violento da sua carne.

Quando voltou em maio, encontrou-a casada


com um velho, seu caseiro. Diziam mal d'ella
n'aldeia. O homem ficara um dia, subitamente,
paralytico — e ella estava mais linda, irresisti-
velmente bella, d'uma belleza ardente ebrava.
Espreitou-a, procurando encontrai-a onde
ninguem os visse. Por fim um dia, tremendo,
agarrou-a pelos hombros:
— Olha !
E tremia d'anciedade, de desejo, repetindo:
— Olha! olha! Quero-te dizer...
Esperava que ella o censurass.e por elle a
ter abandonado, temia que ela o não quizesse
— e se fosse bella*e altiva, cheia de desdem e
de raiva.
— Olhal...
Mas ella, de repente, enlaçou-o ardentemente
como d'antes, uivando como uma féra — na
paizagem verde, sobre a ladeira onde os par-
reiraes se torciam verdes como sardões ao
sol... Foi então uma bebedeira d'amor brutal.
Chegaram a ter um desplante incrivel. Na
noite profunda, sem lua, cheia do formigueiro
460 A CEIFEIRA

scintillante das estrellas ;de dia, a qualquer


momento — rolavam pelo chão ganindo...
E mesmo na frente do paralytico, em casa,
se embriagavam d'amor, dando-se furiosamente
beijos — sem pensarem na canalhice que fa-
ziam...
E o outro immovel — o pobre — sentia
uma raiva sem fim. As injurias vinham-lhe em
borbotões ábocca enão as podia dizer. Eno en-
tanto, como bestas, elles iam amando-se, n'uma
furia crescente de beijos, n'uma fome d'amor
sem peias — alli na frente d'elle !... Senhor!
A raiva que elle sentia! E só nos olhos, estou-
rando, enormes, raiados de vermelho, havia
um mundo de cóleras! Senhor! oh pedia vio-
lentamente, em imprecações, em rugidos d'al-
ma, pedia a Deus um moménto de vida — um
instante! — para os despedaçar, para lhes abrir
o ventre, tirar-lhes as entranhas, n'um uivo de
alegria, e trincal-as ás dentadas, n'uma raiva
bestial que o inundaria de prazer, Senhor! ...
Era, porém, uma tortura maior para elle ain-
da vél-os sahir, n'uma tarde cheia de sol, rindo.
Não os poder seguir! ... Oh antes, antes os
queria na sua frente, soluçantes de prazer, ir-
radiando mocidade, susurrantes de beijos. Elle
A CEIFEIRA 161

amava-a! Casára com ella, pobre, sabendo-a


croia — porque a amava, o velho. E depois de
casado, ainda o amor crescera n'elle mais forte,
ao vèr-se impotente na frente do seu corpo
acobreado — as pernas, o ventre, o peito, es-
culpturaes, d'uma dureza de bronze. Era sua
mulher, bem sua, e não a possuia — mas tinha
um prazer e uma dôr infinita em se roçar, em
se estender, em sentir a sua carne de esta-
tua, immensamente bella, d'uma belleza provo-
cante... E ao menos, agora, queria vél-a dei-
xando cahir a saia, mia como d'antes, sem ver-
gonha — direita, altiva e selvagem!

Um dia, porém, ella deixou-o.subitamente


por um cavador — oprimeiro que encontrou —
e elle, então, mendigou-lhe, humilde, o seu
amor, o seu corpo magnifico, d'uma belleza es-
tonteante — linhas divinaes que a faziam pare-
cer uma bacchante cheia d'audacia. Ella escor-
raçou-o, desprezando-o, amando agora o outro
macho, mais forte, de bellos braços possantes.
Elle rojou-se. Achava-se desprezivel, mas ama-
va-a oh amava-a 1... Deu-lhe dinheiro, rou-
bou a mãi, sujeitou-se a infamias incriveis —
andava pelas feiras bebendo com elles, em ex-
11
162 A CEIFEIRA

cellente camaradagem e deu a sua roupa ao


outro. Odiava-a •— mas desejava com mais in-
tensidade ainda a sua carne bronzeada, d'uma
macieza adoravel.
E no olhar do velho brilhava então uma
ponta de alegria: pequeninas risadas sacu-
diam-no lá por dentro, ao vèr o outro de
joelhos diante d'ella, dizendo, pedindo, sup-
plicando:
—Anda!
E querendo desnudal-a. E da primeira vez
que ella não quiz, uma raiva infinita encheu-o
e bateu-lhe — mas ella, mais forte, estendeu-o
no chão esmagando-o ás punhadas.
—Canalha!
E quando se ergueu, desgrenhada e altiva,
os seios rompendo pelo corpete desfeito, e ber-
rou:
— Ë para que saibas!
elle murmurou piedosamente, asua cólera cahi-
da perante os seios d'ella,:
—Anda!
E o olhar do velho raiava satisfeito, se ella
lhe batia, recusando o seu corpo, escarrando-
lhe injurias, cheia de alegria por bater no pa-
trão.
A CEIFEIRA 163

Incendiou-o então uma raiva enorme... Oh


queria-a! queria-a como d'antes, inteiramente
núa, bella, deliciosamente bella e forte!
Queria beijar-lhe os seios, a sua carnação irre-
sistivel, d'um acobreado quente! Daria a vida,
dinheiro, para a possuir como antigamente no
meio dos trigaes, no primeiro canto — para lhe
vèr o seio, arrancando-lhe, despedaçando o
corpete azul! Que lhe batesse, que o calcasse
n'uma furia aos pés! Elle andaria de rojos
mas queria vèl-a nua! Que fosse d'outros, de
qualquer macho brutal, por amizade, por di-
nheiro — mas que de quando em quando, er-
guendo impudica a saia, o beijawe, com os
seus beiços onde havia um sabor bravio a me-
dronho!
E de noite, agora que ella amava o cava-
dor, o seu corpo apparecia-lhe irradiante, mais
bello ainda...

Uma tarde, cheio d'uma furia immensa, en-


trou em casa d'ella. Havia de ser d'elle —
d'elle!... Avançou para ella terrivel, tremen-
do de raiva:
—Ouvistes?...
164 A CEIFEIRA

Ella riu, sabendo bem que era amais forte,


gracejando:
— Ora chega-te! Tu bem sabes! ...
Elle pediu. Então? dia bem sabia quanto
elle a adorava!
Gostava d'ella tanto, tanto! ...
—Não! já te disse... Acabou-se.
Que lhe custava? E um desejo violento to-
mava-o ao roçar-se por ella, ao sentir o cheiro
da sua carne...
— Aborreces... Vai-te...
Elle agarrou-a, supplicando, mas ella deu-
lhe um encontrão, ganindo uma obscenidade.
Querendo luctar, possui-a, rasgou-lhe asaia —
fusilante o olhar, ao sentir-lhe a dureza dos
seios.
Respondia com beijos aos murros com que
ella o enchia. — Ai tu querias ? Espera I...
E elle rugiu! lias de ser minhal... Ella ati-
rou-o ao chão, medonha de cólera.
Ergueu-se louco, transbordando brutalidade.
Ella estava quasi mia, rasgada a saia, em fran-
galhos o corpete — e apparecia inteiramente o
seu corpo divinal, irresistivelmente bello. Ati-
rou-se a ella, querendo mordel-a, e como a
visse resistir ainda, estendeu-a no chão, dando-
A CEIFEIRA 465

lhe em cheio na cabeça, no peito, com um pau


que encontrara... 'Acabou de a pôr mia aos
uivos — completamente mia...
O sol que entrava pela janella dourava-lhe
a carne— e nunca ella lhe apparecera tão bella
como n'aquelle dia, assim violentamente esten-
dida, cheia de sangue na cabeça e no peito —
entre vestidos desfeitos. A sua carnação de co-
bre, cheia de mocidade, exuberante de vida, res- •
plandecia, tomava áluz do sõl tons d'oiro — o
ventre principalmente e os seios cheios d'am-
plitude. Pellos brilhavam. A espaços o sangue
correndo nas veias dava na pelle pinceladas
roscas. Uma perna, onde o sol batia, enchia-se
de transparencia. Eram linhas adoniveis, cheias
de graça, vibrantes...
— Maria! ...
E ella humilde, vendo bem que elle era o
mais forte, sentindo renascer o amor que lhe
tivera, ao vè,r-se cruelmente espancada, ado-.
rando como todas as femeas abrutalidade dos
machos — ternamente murmurou:
—Andal...



A AMA
Quando aBenta, uma mulheraça gorducha,
alta echibante, se juntou com oabbade, as mur-
murações rebentaram na aldeia. A Felicia, ba-
tendo palmadas nas côxas, um nada piteira, ti-
nha exclamações vibrantes — regalada com
aquelle pagode, uma alegria esfusiando-lhe lá
por dentro, na alma: — Oh filhas! ricas fi-
lhas! Andava pelas casas das outraa malan-
dras contando, eia bebendo satisfeita asua pin-
ga, que cilas lhe davam pela novidade. Batia
com os nós dos dedos e chamava, esganiçando
a voz:
— Oh snr.a Antoninha!
11h?. — ouvia-se lá dentro, e apparecia
outra femea, a roca á cinta, fiando.
170 A AMA

— Uma palavrinha... Vai ficar regalada...


Mas onde o caso se desfiou miudamente foi
na tenda da Pinta. O beberrão do Pimenta con-
tou :
—Uma bebeda, senhores, uma bebeda! O
que ela precisava n'aquelle trazeiro, sei-o eu,
senhores! Sei-o eu!... Tinha fingido odemonio
no corpo e vai depois fechava-se com oabbade
na tulheira... E era lá! E muito vermelho, re-
bentando de raiva, batia murros selvagens no
balcão e continuava: — Que a mim nunca ella
me comeu, senhores! Tem-m'a d'olho, tem-me
essa bebeda d'olho! — dizia eu ámulher. Olha
qu'ella préga-a! Eu punha-me á escuta... Lá
dentro eram guinchos, saltos... Aquella bebeda,
senhores, aquella bebeda que m'a prégou!
E contou que o creado espreitando um dia
tinha visto coisas! ...
— Coisas! ... Ai!...
Elle tinha corrido ainda, ,um arrocho nas
unhas.
—E vai a bebeda pirou-se, senhores! O
que ella precisava, sei eu!...

A indignação foi grande. Soube-o até obis-


po de Braga, eveio, cheio de austeridade, por
essas estradas abaixo, querendo ver o que ha-
A AMA 171

via de verdade para dar um exemplo, um


exemplo grande, que ficasse na memoria das
gentes...
Bateu áporta da residencia, e assim que a
governante appareceu, allumiando, de candeia
na mão, linda, trigueira e com um buço — que
buço! — sua eminencia resmungou:
— Hum!... É esta amoça, não tem duvida
nenhumal... Pois boa moça na verdade! Boa
moça! ...
O abbade correu — um rapagão de excel-
lentes côres e pança, que se curvava com ad-
miração, murmurando:
— Grande honra grande honra para
mim!
E o bispo dizia lá por dentro:
— Pois temos obra! temos obra!
O què, pois sua eminencia não ceara ain-
da?! Que até podia fazer-lhe mad I... Veio
correndo a Maria, tirou-se do 'mini a toalha
de linho adamascado, cheirando a romã e a
alfazema, o abbade trouxe, saltando, a cane-
ca verde, cheia de vinho, de vinho rascante que
espumava nos copos — e apouco, satis-
feito, aconchegado, sentindo uma alegria muito
boa — que excellentes coisas sua eminencia
172 A AMA

não comia! Que coisas! Nunca, nunca depois


que era bispo e que sahira de casa de seus
pais, da aldeia, elle havia comido lombo assim!
Aquillo sim, senhores! fallassem-lhe n'aquillo
que era lombo! ... E sentado na cadeira gran-
de de coiro, com pregaria de cobre luzente,
sua eminencia sentia-se cheio de bondade,
sorria, ia dizendo suas graças. E o abbade e a
Benta, satisfeitos, achavam-lhe
— Muita pilheria!
Era tarde — e todo se afilig,iu o abbade
ao lembrar-se que na residencia só havia duas
camas — a d'elle e a d'aquella serva... Mas
elle passava a noite n'uma cadeira...
Mas o bispo inquietou-se novamente. Pare-
ceu-lhe que a Benta olhára maliciosamente o
abbade. Assaltaram-no outra 'vez as suspeitas
— e lá por dentro murmurou:
— Mau, mau, que temos obral...
E insistiu, para experimentar o abbade, em
que dormiriam juntos.
— Oh Isenhor!
Deitaram-se, o abbade murmurando:
—Grande honra, grande honra para mim!
Os lençoes eram fresquissimos, de linho —
e sua eminencia sentindo-se bem, muito quen-
A AMA 173

te — decidiu definitivamente que não havia ma-


roteira.

No dia seguinte o bispo acordou cedo. O


abbade roucando tinha o aspecto de tão boa
pessoa que...
— Não! não havia obra!
Mas áporta, lá fóra, bateram vivamente — e
então sua eminencia, recuando, viu cheio de
espanto e de terror que o abbade, somnolento
ainda, lhe batia amorosos, pequeninos tabefes
no trazeiro, e ternamente murmurava:
— Ó Benta! Ó tola! olha a leiteira, filhi-
nha!
A PRIMAVERA

(Artigo de fundo)
O Correio da Manhã de ha seis dias talvez,
trazia essa noticia fatal. Eu transcrevo textual-
mente —porque o caso é grave:

«Decididamente o ministerio progressista


faz negocio com tudo.
«Até vendeu a Primavera. Houten', 10 de
maio, cahiram em Lisboa abundant2s bategas
de agua impellidas por um forte sudoeste.
«Em Paris, segundo telegrammas recebidos,
fez um tempo esplendido.
«Não ha que vér, osenhor José Luciano ce-
deu a algum syndicato amigo, a nossa saudosa
Primavera
«Accrescenta-se que d'essa beba estação,
12
178 A PRIMAVERA

só ficou no paiz um bocadinho para serviço


de um castello roqueiro.

Venderam-n'a, bom Deus! venderamn-n'a!


Pois é possivel, é possivel que o senhor José
Luciano, que parecia tão boa pessoa, a ven-
desse assim, a ella, á Primavera! ...
Ah! já nas pradarias, nos campos, os tojaes
preparavam as flo'res amarellas, havia já re-
benta-bois vermelhos nos vallados, ao pé das
sebes, e as violetas silvestres, as boas violetas,
iam vestir-se de azul, de azul da côr do céo que
lá em cima apparecia já aos rasgões, cheio de
transparencia. Venderam-n'a! Mas digo-o eu!
não pôde ser! nunca poderei acreditar! ...
Pois se eu o ouvi ainda no outro dia em casa
—juro-o — a um pardal meu amigo !... Olha
lá que a não vendessem!
Elle disse-m'o. (Elle éum velho pardal ma-
treiro, sem eira nem beira, nem ramo de figuei-
ra, um pardal que tanto fez zangar aAnna, a
minha creada antiga! É um tratante estimavel
de que eu emflin sou amigo, que querem ?) Mas
elle disse-in'o :
— Ah vai ser uma festa muito bonita! ...
Imagina lá!
A PRIMAVERA 179

— Hein ?
— Oh! vem o senhor Vidal, vêm os velhos
poetas romanticos tão simples, tão boas pes-
soas... Ah tu vais vér!... Olha: só um com-
padre meu tem já o ninho mais adiantado I...
Eu não sei, mas parecia que sim. As fructei-
ras do meu quintal principiavam a nevar-se
de fiôr, na videira antiga a vida fremia — eo
diabo, a tonta, aminha amiga laranjeira, já se
cobria novamente de fiôres, prompta para o
noivado, cheia de presumpção ao pé da figuei-
ra sombria... Eu não sei —mas as hervas ver-
des, a herva do coradoiro, até as ortigas bravas
tinham uma verdura forte e nova que me pa-
receu de bom agouro! Eu não sei, não sei, não
sei que pense — mas até o marmeleiro tinha
já seis — contei-as uma a uma,— flôres tão mi-
mosas, tão nevadas! Emfun!
E estar tudo á espera, tudo prompto. Uns
acreditavam que ella viria vestida d'azul des-
botado, ingenua, atirando braçados de fiôres so-
bre os campos verdes; outros diziam que não!
que viria como uma aldeã rude, o avental
cheio de ftôres, saudavel e alegre — e o dr.
Aureliano Girne tinha propalado ábocca cheia,
que ella viria núa, bebeda de sande, pelo braço
*
180 A PRIMAVERA

d'um fauno piteireiro. Eu não sei! não sei!


mas o que eu sabia é que ella viria com as
rosas vermelhas, as risadas ardentes, as cor-
ridas na herva, trambulhões atraz das sebes —
com a alegria, com o bom sangue vermelho e
forte, com a vida emfim!... Ai, e como eu,
como os senhores poetas, como os pardaes, as
fructeiras estavam contentes, bom Deus! ...
E vai d'ahi o senhor José Luciano... Mas
isto é preciso afinal saber-se... Os senhores ju-
ram-me que elle a vendeu? Digam, digam que
eu vou d'aqui mettel-o no bico do meu pardal
— e elle dil-o aos saltes verdes do matto, ás
borboletas, ás formigas videiras que estão a
sahir das buracas; aos grillos, que rabeiam nas
tocas, deitando a cabecita preta de fora. Vão
sabei-o os rapazes, o senhor Alberto Bramão...
Ah, mas de certo que o ministerio cae! o mi-
nisterio não pode ficar...
Já as boas arvores amigas murmuram:
— O senhor José Luciano que parecia tão
boa pessoa...
— E o Beirão? Olha o Beirão! ... Tu que
me dizes do Beirão? Elle que a gente conhe-
ceu pequenino! Não póde a gente fiar-se em
ninguem...
A PRIMAVERA 181

—À mim o que me parece impossivel é o


senhor José Luciano! Com aquella cara! ... Tu
lembras-te quando elle passava a rir-se? Que
bom homem parecia ?...
Ai o ministerio vai cahir Ivai cahir I Ven-
dei-a, á Primavera, vendei-a assim como quem
vende um lagalhé, uma pessoa de meia tigel-
la !... E digam lá, digam lá ao menos quanto
deram por ella! Mostrem lá!
Ah, mas eu vou partir: vou dizei-o ao meu
pardal, a um grillo retinto das minhas relações,
a uma arvore grande da deveza; —vou a cor-
rer dizei-o, e os senhores vão vèr os comicios
que nós vamos organisar por ahi fóra, pelas
pradarias, nos pinheiraes, entre averdura! Ah!
os senhores vão vèr !... Não é brincadeira ne-
nhuma! Vendei-a a ella, á Primavera, quando
tudo por esses campos se vestia de novo :as
silvas, os maios, o trevo de flôr roxa; quando
a luzerna crescia; os malmequeres amarellos,
as margaridas, as verbenas, as campainhas
azues, os girasoes, as papoulas! ... Ai o snr.
José Luciano —que parecia tão boa pessoa,
meu Deus! — vai vèr!
A MARIA TROLHA
-

.
Sentou-se á janella. Tinha uma vontade
grande de chorar sem saber bem porquè. Uma
angustia vaga, um pezar immenso tomára-a
pela garganta ao cahir da noite; sentia com
violencia a necessidade d'alguem que a acari-
ciasse honestamente: — um beijo paternal na
fronte. Ia a chorar ao lembrar-se do pai que
se lhe desenhou nitidamente — ia a chorar,
mas para afugentar as magoas, traçou aperna
e cantou:
Se vires a mulher perdida
Não a trates cum desdem...

Na viella estreita, outras viellas vinham


romper ainda, murmurantes de gente, negras,
186 A MARIA TROLHA

vermelhejando de longe em longe á luz dos


candieiros. Uma cantiga perdia-se na noite:
vozes roucas saldam d'uma tenda: e em ca-
furnas terriveis, movendo-se á luz vermelha.
vultos tinham a apparencia extravagante de vi-
sões. Assim com um céo de tinta em cima,
os casarões muito altos perdiam-se na escuri-
dão. Ouvia-se frigir peixe. Mulheres em saias
brancas appareciam á soleira chamando avida-
mente:
—Anda cá! olha! Ó filho!
Um piteireiro andava aos encontrões, ber-
rando: —Suas croias! suas croias! D'um canto
partiram risadas; depois uma barregã alta, me-
donha, mãos á cinta, veio dèspejando injurias,
cheia de chibança —e gente correu na viel-
la rindo: outras vieram võr o que era, cheias
de piedade, murmurando consolações. — Foi o
amante...— disse uma. Mas a Joaquina infor-
mou: —Uns gajos que lime partiam o espe-
lho...—Foi bem feito !—Coitada da pobre!
Mas mais gente passava, e ellas, esquecendo a
outra, chamavam avidamente: —Olha, ó filho!
Pst!... E um pedreiro, piscando o olho, to-
nante: —Não péga! Depois um momento tudo
calliu em silencio. Á beira d'uma janella dous
A MARIA TROLHA 187

homens iam conversando. Ouviam-se distincta-


mente fragmentos de palestra.
— Ai, Lisboa! Lisboa!
— Com' aquillo, menino! Com' aquillo!
E de repente uma malta rompeu pela viella
acima, aos pinchos, cantando, dizendo insolen-
cias ás raparigas...

... O som do bronze que nos causa horror...

E uma guitarra tristemente começou a ge-


mer ao longe as amarguras do fado...
E no entanto, corno era domingo, aquele la-
byrintho medonho de ruelas rumorejava, bor-
bolhando gente... As viellas cruzavam-se, des-
penhavam-se, descendo sobre ocaes, ingremes,
terrivelmente negras: só de quando em quando,
destacando cruamente na escuridão de tinta,
uma fachada illuminada avermelho pelo candiei-
ro parecia escorrer lentamente sangue — ou uma
janella, fendas por onde rompiam fieiras de luz
e descobriam vagamente antros terriveis onde
rasteja ignobil o vicio e o crime. Sentia-se a
alma oppressa. As muralhas suavam a miseria
de muito tempo... No alto da Sé o vento so-
prava. D'uma banda a cidade adivinhava-se
188 A MARIA TROLHA

na escuridão profunda, na escuridão repellente:


da outra banda o rio —um rio de tinta —e
para o longe, montões de treva, de lama, o
côo sem uma estrella luzindo, impenetravel,
immenso— tão negro que opprimia a alma.
Montões de casaria, pintados a nankim, com
clarões vermelhos de lampeões: bandas de pa-
redes illuminadas: uma poeira de luz, suspen-
sa no côo, mais para o longe, no meio da ci-
dade...

... Não diz quando nem a quem 1

Parou de cantar. Esquecia-se de chamar


gente. Nunca sentira como n'aquella noite de
verão um soffrimento tão grande. Entre os
beiraes um formigueiro de estrellas scintillava
n'aquella banda de céo. Tristemente viu bem
n'aquelle instante a sua vida inteira...
Creada de servir n'uma casa á Esperança,
um casarão velho onde habitava muita gente.
Em baixo o pai, na loja de sapateiro; no ter-
ceiro andar dons recem-casados, elle commer-
ciante; em cima na espelunca uma hortaliceira
— a senhora Arminhas do Bacalhau, com o ho-
mem e o filho—um ferreiro.
A MARIA TROLHA 189

Ella servia os dons casados de ha pouco —


e lembrava-se bem, cheia de saudade, da ale-
gria d'aquelle casal, dos patrões tão boas pes-
soas ambos.
A senhora, Maria da Conceição, loura, bran-
ca, gostava de ter a casa muito limpa. A Anua,
a cosinheira, uma picada das bexigas e cheia,
dizia com uma risadinha ao vél-a moure-
jando:
— Estás nas verduras! Estás nas verdu-
ras! ... Isso lá p'ro diante passa-te!
Muito economica, tanto que a da cosinha
afiançava mostrando o punho:
— É assim! Uma esganada por ahi além,
mulheres!
O senhor vinha átarde jantar — e ella ar-
rumando louça, enchendo os jarrões de came-
lias rajadas, na sala cheia de sol que dava
sobre o caes, ouvia-os conversando. _A senhora
queria viver n'aldeia. Faziam projectos. Assim
que elle tivesse vinte contos comprariam uma
quinta...
—Ainda se a casa tivesse quintal...
— O peor é o pequeno. Está aqui está um
homem... Precisa de ir á aula e na aldeia não
sei...
190 A MARIA TROLHA

— É verdade, o pequeno... —murmurava


ella.
Pelas janellas abertas via-se o rio azul, a
verdura da outra banda, as fabricas, casas aos
montões, pintadas d'amarello, de branco: os
paquetes de costado vermelho-escuro, as mas-
treações erguidas no azul ineffavel —toda a
alegria cantante do caes...
Ella era n'esse tempo uma rapariga magni-
fica, ruiva e alta, cheia de alegria e de risa-
das. Um dia estupidamente, calliu com o fer-
reiro na espelunca do terceiro andar. Ficou
surprehendida. Á prenhez veio depois. Quiz es-
condei-a. Batia murros selvagens no ventre,
tomou mesmo a beberagem que uma velha
lhe deu. Depois a prenhez avançou en'urna fu-
ria grande ella combinára matar a creança,
atirai-a ao saguão, na irnmundicia da cloaca;
mas o pai um dia desconfiou e ella teve de
fugir perante a colera terrivel do sapateiro
que era cheio de austeridade.

Um anno depois, estando ella na viella, en-


controu o seu antigo patrão. Passava um ho-
mem, chamou-o:
—Ó filho, olhal...
A MARIA TROLHA 191

E elle atarantado reconhecendo-a, murmu-


rou d'um sobresalto:
— Ah, és tu, rapariga! ...
E entrou. Pareeka borracho ou sonhando
vagamente, muito j.talerina. Com alguma ver-
gonha, cheia de acanhamento de repente, per-

,untou-lhe:

— Gomo ia o menino?
E elle com tristeza, errante o olhar:
— O menino morreu...
«Perdera tudo, tudo... Estabelecera-se, mas
fóra cedo de mais. Foi cedo de mais. Uma as-
neira! acabou-se! ... Veio uma letra, não pa-
gou e o seu antigo patrão, que ficára sempre
com zanga por elle o deixar, protestou-llfa...
Pois porque se zangára o patrão? Pois um ho-
mem não pôde trabalhar, um homem que tem
uma fa.milia? Ainda se elle tivesse sabido para
se empregar em casa d'outro... .%s não se-
nhor !— fóra estabelecer-se. O seu antigo pa-
trão não tivera razão — não é verdade?...
Perdera tudo, tudo... Mas estava novo, havia
de se arranjar ».
— Eu estou ainda novo.
E parecia que tinha fome, muito pallido, os
olhos cheios de bondade brilhando dócemente.
492 A MARIA TROLHA

Via-se que tinha contado longamente aquella


historia a toda a gente e que ninguern oouvia
já... E repetia, querendo convencer-se:
— Havia de se arranj. À senhora lá esta-
va. Andava adoentada— uma tossesita.
Ella escutava cheia de pena, invadida por
um desalento muito grande — mas o Carva-
lheira, que tinha vindo com outros, perguntou
da janella:
— Olha que gajo! Quem é o gallinhaço,
Maria?...
E elle de repente, como acordando d'um
sonho, viu o lugar onde estava, e compondo
as joelheiras das calças, sahiu rapidamente di-
zendo atrapalhado com a sua voz dôce, pene-
trada de meiguice:
—Adeus, menina! ...

Tudo a torturava então: a vida maldita da


viella, dormindo n'um leito ábeira da cloaca,
sentindo em cima obscenidades —a Antonia ber-
rando com uns gajos: a patroa avida de ga-
nhos, cheia de ralhos e de injurias, quando ei-
las não soffriam de boa vontade os homens: o
envenenamento com phosphoros da Joaquina,
quando o amante a deixou... E essa era a
A MARIA TROLHA 193

unica boa rapariga! Lembrava-se bem de ater


visto estrebuxando, cahir de repente, sem uma
queixa, o olhar cheio de resignação e de tris-
teza... Depois morrera — e a patroa berrava,
vendo-se já ás voltas com apolicia:
— Ora o coirão! Nunca me aconteceu uma
assim... Raio de entaladellal... Hospital! vão
rebentar p'ra o hospital, suas bebedas!
Olha agora a policia —e então o Mendes que
anda de ponta commigo! O coirão! o coi-
rão! ... É preciso dar aguardente á patru-
lhal...
E o que principalmente a deixára sem uma
esperança, cheia de desalento, fôra a historia
da Emilia que ellas contavam umas ásoutras,
poetisando-a. Ao vél-a passar, tossindo, tisica,
a Antonia narrára-lh'a uma vez... Uma paixão
por um estudante. Elle amava-a, quizera fugir
com ella para o Brazil, mas o pai.tinha vindo
e levára-o para Freamunde — onde elle morre-
ra pouco e pouco de saudade. E ella na viella
sempre, nunca mais tivera um instante de ale-
gria — ia morrendo tambem, sem pena — sus-
tentada pela caridade das companheiras... Fal-
lava com saudade no campo, nas vindimas,
quando o sol inunda intensamente os parrei-
13
194 A MARIA TROLHA

raes de luz... Ás uvas rebentam de maduras,


cheias de transparencia, exuberantes de vinho.
Vai uma alegria vibrante, colossal, na aldeia
inteira. Nas collinas verdes, onde as vides se
torcem ao sol pelas ribanceiras abaixo, ha ri-
sadas: um velhote piteireiro, de calça azul, es-
maga entre as mãos um cacho — e fica cheio
de sangue, os dedos tingidos de vermelho,
como se tivesse commettido um crime. Nos
toneis homens vigorosos, as pernas nüas, com
vinho até ágarganta, esmagam, pisam, n'uma
raiva, as uvas. Os lagares são do tamanho de
tanques — e dir-se-hia que uma torrente de vi-
nho espumante corre impetuosamente pelo valle
fecundo. Os homens beijam as raparigas, que
se abandonam como cadellas, com um desplan-
te muito grande. São os ranchos que descem
.por esse tempo do norte, cantando, trigueiros
das mordedellas do sol, cheios de mocidade,
rindo, n'uma despreoccupação de bohemios. Vi-
vem juntos, amando-se sob festões de vides,
trabalhando onde ha trabalho, vivendo onde
calha. Ás infusas de vinho novo correm de
mão em mão. Nos carreiros, carregadores pos-
santes levam, gritando cantigas que retinem
no azul, os grandes cestos de vindima...
A MARIA TROLHA 495

Pouco e pouco deixou de ganhar dinheiro.


Quando começou, foi procurada. A principio só
os freguezes, pessoas respeitaveis, pagando
bem — um padre, um velhote menineiro, ou-
tra gente ainda que a patroa recebia com mui-
ta consideração erespeito — é que apossuiam
n'um gabinete occulto. Depois, como as mais,
veio para baixo, expondo-se aos desejos do
inundo inteiro. Por fim, como nunca pudéra
acostumar-se á brutalidade das outras, dispu-
tando com avidez os homens —pouco dinhei-
ro ganhava...
Um dia um homem disse que queria não
sei què de repugnante, de rélesmente nojento.
Fila disse-lhe que não:
— Sae-te d'aqui. Não, já te disse! ...
Mas elle, afogueado, teimou. Fazia tinir o
dinheiro no bolso, pedia:
—Vá! que te custa? Olha dou-te seis tos-
tões... seis, hein? Queres? •
Havia dous dias que não comia, sem di-
nheiro, escorraçada como uma cadella sarnen-
ta que vai parir. Teve vontade de chorar, de
morrer, de pedir piedosamente que a deixas-
sem... N'um instante avaliou bem o abysmo
196 A MARIA TROLHA

profundo a que cahira; cheia de angustia, do-


lorosamente, viu a imagem do pai.
E o homem pedia:
—Então? então?
E ella de repente, decidida:
—Andal...
Depois no fim viu, quasi com espanto, que
sentia como d'antes amesma rapariga — ed'ahi
em diante nunca mais lhe custou, accedia
promptamente, sem se fazer rogada.
Teve freguezia. Gabavam-na altamente, lia-
via discussões renhidas:
— Gomo aquillo! A Lola! A bola como
aquillo! Não me digas isso, menino !... Olha
quem! ... A bola! olha a porca da bola!
As outras companheiras odiavam-na. Di-
ziam-lhe chufas, batiam-lhe cheias de raiva,
porque todos os homens a procuravam unica-
mente a ella — e foi preciso que apatroa —
—uma gorducha, de olhar vesgo, pozesse
d'alto, bem d'alto a sua respeitabilidade, con-
tente pelo ganho que a rapariga lhe dava,
para que as outras a não matassem uma noite
com pancadaria.

Havia cinco dias que a torturava um pezar


A MARIA TROLHA 197

immenso. As lagrimas muito tempo represadas


iam-lhe rebentando em borbotões nos olhos.
Expulsa de toda a parte, corrida apau, coberta
de lama e de injurias—sentiu um desalento,
uma magoa infinita que amatava. Teve fome e
saudades —e foi n'esse tempo que a vida pas-
sada lhe surgiu poetisada, torturando-a. Era
um almejar, uma ancia de viver singelamente
como d'antes ábeira do pai, amando-o.
IJUI dia, cheia de esperança, procurou-o.
Foi encontrai-o na loja de sapateiro, mais ve-
lho, mais curvado. Elle ergueu-se ao vèl-a —
e a sua figura rude era cheia de austeridade.
— Sae-te, puta!
Elia então ajoelhou e erguendo as mãos
pediu:
— Meu pai, peço-lhe que me perdôe, meu
pai. Pelo Senhor que está no céo... Tenho fo-
me, meu pai Ioh meu pai!...
Arrastava-se humildemente, de joelhos, pro-
curando abraçar-lhe as pernas.
E elle, apontando-lhe a porta:
—Rua!
—Por quem é, meu pai, lhe peço que me
perdõe... Pela memoria de minha mãi...
E ambos sentiram borbulhantes de lagri-
498 A MARIA TROLHA

mas os olhos ao lembrarem-se da boa mu-


lher. N'aquelle instante viram-na ambos per-
doando, cheia de ternura, — uma santa. E elle
chorando, inipiedosamente:
— Vai-te. Foste tu que amataste. Vai-te!
Sae da minha vista! Vai!
Ella tinha conseguido agarrar-lhe os joe-
lhos. Desgrenhada, chorando — as palavras
sahiam-lhe sentidas, do fundo da alma.
—.1eu pai, meu pai! Eu prometto-lhe que
viverei como d'antes! Perdôe-me! perdôe-me!
Olhe: não sabe o que eu tenho soffrido! não
calcula a minha vida! Pela memoria de minha
mãi !... oh meu Deus!
E elle sentindo que ia ceder, desprendeu-
se n'um arranco e gritou, chorando:
— Sae-te! Rua! Eu vou chamar um policia!
Esperal...
Ella então viu bem que nunca elle lhe per-
doaria. Ergueu-se e sahiu cambaleante...

Foi descendo, descendo mais, descendo


sempre. Vivia n'uma cocheira. Tinha engorda-
do, andava suja e á noite sahia, rondando,
atraz da marinhagem, sujeitando-se a tudo
para ganhar aquelles tristes seis vintens.
A MARIA TROLHA 199

Tinha um medo muito grande da policia.


Embrutecia lentamente com um vicio terrivel
que adquirira: —a aguardente. No dia deze-
seis de cada mez e no primeiro, espreitava os
quarteis, perseguindo os soldados, que ultima-
mente, cheios de nojo, sentindo-a repugnante
e velha, lhe batiam.
—Ó filho! ó trinta! Tu não me conheces,
ó trinta?...
Não pensava quasi e só de longe em lon-
ge, fulgurando um instante, a imagem do pai
lhe apparecia, trechos da sua vida singela de
virgem...

Começou então para ella uma vida maldita


e errante. A marinhagem brutal escalavrou-a a
pontapés— quando ella, na ronda terrivel da
noite, gania piedosamente obscenidades, para
que lhe matassem a fome. Havia noites sobre-
tudo, noites temiveis em que o soffrirnento, as
•afflicções que lhe rasgavam a alma, eram tão
grandes — que nunca Jesus assim padeceu. Ca-
briolava na lama, o trazeiro para o céo; sujei-
tava-se promptamente ás mais horrendas infa-
mias que os ladrões conheciam; esfomeada,
uivando como uma loba, corria n'uma ancia os
200 A MARIA TROLHA

antros medonhos, as cafurnas onde os assassi-


nos se acoitatn. E de repente, cheia de soffri-
mento e de fome, fugia na noite, es'ealavrada
a pontapés, perseguida pela policia. Estava
ignobil, pellada, farçante. Era a imagem do
vicio terrivel— de corcunda; o vicio que faz
mal e cocegueia ao mesmo tempo na barriga
da gente.
N'essa noite nem uma côdea de pão arran-
jou. Ninguem a queria comprar. Offerecia-se
humildemente de rojos— e batiam-lhe. Chorou
supplicante — e era risivel, patusca, assim feia,
vermelha e gorducha. Tinha muita fome! Pe-
diu — e teve de galgar, fugindo na escuridão,
offegante, tropeçando e cahindo cheia de lama
e de feridas. Esgravatou nos montões dos can-
tos enem um talo de couve encontrou. Vadiou
pelas ruellas da Sé, errante, encostando-se ás
muralhas,: rebentando de fome, gemendo, o
olhar estupidamente vagabundo, sem um pen-
samento sequer. Dizia sempre, repetindo:
—Ó filho! olha!
E a sua voz era um grito de angustia e de
raiva: havia supplicas e lagrimas, maldições e
humildade.
Por fim arrastou-se até ao pardieiro—uma
A MARIA TROLHA 201

cocheira abandonada, onde dormia ella, um


ladrão e a mulher.
Piedosamente os dous deram-lhe uma cô-
dea. Quiz trincal-a e não pode. Deitaram-na na
palha e dia gemia:
— Ó filho! olha! ...
— Está piteira, o raio!
Só elles tiveram compaixão d'ella — os la-
drões. Elle era medonho — ella era horrivel.
Ambos tinham commettido crimes, crivado gente
de facadas na escuridão terrivel das viellas.
As creanças fugiam d'elles — e a noite, a noite
profunda, era a boa amiga d'ambos...

Uma cadella gania parindo... Ao longe al-


guem, na noite ia tocando tristemente o fado.
Sentiu-se morrer. N'um instante, de repente,
scintillou-lhe na alma verde de.. rameira, —
a sua vida inteira. N'um momento viu o pai,
cheio de austeridade, a mãi, a sua santa mãi,
a boa velhinha, chorando — e soffreu tanto
como durante todo o seu tempo de barregã;
ia-lhe rompendo um clarão de luz no craneo
— e sentia um soffrimento tão grande que o
arrependimento nasceu-lhe... Depois morreu.
O corpo que a marinhagem brutal comprára —
202 A MARIA TROLHA

o seu corpo vendido, coberto de escarneo e de


lama, de soffrimento e de injurias— o seu
corpo que mais ninguem quizera, açoitado pela
soldadesca, o seu corpo que fôra bello, cheio de
mocidade e de vida, cahiu por fim inerte junto
á cadella que paria, junto dos ladrões que dor-
miam. Morreu. — E morta, inchada de pança,
envolta em farrapos, com manchas verdes já
de podridão nas faces, era immunda — mais
immunda e mais nojenta ainda, que a cadella
que gania parindo...
NOTA
.
Colligindo estes contos durante aelabora-
ção longa d'um romance Os descalços — eu
não os refundi nem emendei. Seja-me permit-
tido, portanto, dizer singelamente que elles não
representam a minha maneira actual de sentir
nem de escrever.
.
INDICE

Pag.

Á maneira de prefacio ix

A Pimpinella 1
A herança 45
Um marinheiro 57
Os pecegos. 69
Uma historia singela 79
A Leonarda 89
Presente de fructa 105
Que sucial... 113
O homem do cancro 121
Boa pinga! 135
No mar 143
A ceifeira. 155
A ama 167
A primavera 175
A Maria Trolha 183
Nota 203
.1.

N
DO MESMO AUCTOR

EM PREPARAÇÃO

OS DESCALÇOS (romance).

NO PRELO

(DE COLLABORACIO COM Alberto Bramão)

AVENTURAS DE ZÉ PAIVA (historia commovente etragica).


.1
-


1

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