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2019v39nespp171
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Agradeço imensamente as leituras e comentários de Alexandre Nodari, Álvaro
Faleiros, Luciane Alves e sobretudo a confiança e gentileza de Pedro Cesarino.
sabiás-além pensantes
pensando juntos vivem
(formula de canto iniki marubo)
4
Essa ideia do rádio, desdobrada em rádio-comunicador, surgiu de uma conversa
com Alexandre Nodari, que então chegou à imagem do walkie-talkie.
5
Cf. Irving Goldman sobre a formação do pajé kubeo (2004: 334): “Shamanistic
knowledge is largely technical, as other Vaupés scholars have already
noted, requiring the memorization of chants, a familiarity with traditions, an
understanding of ritual usage, and an accurate grasp of the properties of drugs
and pertinent flora and fauna, indeed of the nature of the biosphere as a whole.
Students as well as payés are evaluated (I suspect they were at one time ranked)
by a public perception of their formal knowledge. This type of evaluation is not
o saber que vem dos espíritos da mata, escuta o que seu corpo
alterado canta e nesse curto-circuito age sobre si e sobre os outros.
the same as judging the efficacy of healing, for Cubeo are not simple-minded in
their expectation of healing results.”
Por outro lado, na cultura mbya guarani, segundo Elizabeth Pissolato (2007: 346),
“ o que todos os opita’i va’e enfatizam é que nõ se aprende com outro xamã o
ofício. mas é Nhanderu que ‘mandou’ ou ‘deu’ isto a ele(a). O mesmo afirmariam
os Apapokúva: “alguém não pode tornar-se pajé, a não ser por inspiração; um pajé
nunca pode ser treinado para tal, mesmo que isso se dê por iniciativa das maiores
autoridades no assunto”, diz Nimuendaju ([1914] 1987, p. 75)[…].
[…] Mas Cadogan considera ainda que este momento resultaria de um período
preparatório que pode durar anos, em que o “neófito”, então, buscaria meios de
receber a inspiração entoando cantos, participando das sessões de reza, sendo
hospitaleiro, caridoso, tendo “amor ao próximo”.
Formalmente, não existe uma preparação de ‘neófitos’ entre os Mbya com que vivi”.
A conclusão de Pissolato é (ibid.: 348): “Minha impressão é que, por um lado,
só é xamã quem recebe dos deuses capacidades para agir como um especialista na
cura e /ou reza, seus poderes e conhecimento não podendo ser transmitidos por
outros xamãs. Por outro lado, só permanece xamã quem persiste na prática de
disponibilizar seus poderes de cura e reza ao longo de um período, e tanto mais,
se nesta atividade torna-se reconhecido e mantém-se com o passar do tempo”.
6
Cf. pouco adiante, (454): “This mimicking, through which humans momentarily
gain control over the non-human by becoming like it, thus creating a shared space
of communication, is precisely the goal of the shaman’s song.” “My songs are
paths” said a shaman, “Some take me a short way — some take me a long way — I
make them straight and I walk down them — I look about me as I go — not a thing
escapes my notice — I call — but I stay on the path.”
The image of the hunter on his path sums up perfectly the types of knowledge sha
mans use, and their context. Firstly, the vast and detailed empirical knowledge;
the understanding, achieved by constant practice, of the things of the forest, their
forms, colours, sounds, habits, the places they frequent and the foods they eat.
Secondly, the knowledge of signs; the ways to interpret the traces left by things
that rarely reveal themselves directly (the interpretation of dreams and visions is
a fascinating and vast topic which I will not treat here, but it is worth mentioning
that beyond the direct communications shamans claim from yoshi, they also in
terpret all aspects of their visions — movements, colours, formal distortions — as
indirect, coded communications). Finally, shamanism is also knowledge of the
paths, the myths and, above all, the songs.”
ẽ chinã kenerao
ene kenemataki
yove kenemataki
ẽ anõ oĩa
aivo kenese
chinã revõ veyamash
kenekia rakánõ
ẽ anõ vanaa
ẽ chinã kene
ẽ chinã kenenõ
teki vakĩ ikirao
eri rivi yonã
[…]
ẽ yora shakárao
nea mai shavayash
matõ vana tanai
awẽ aki amainõ
ẽ rome kokavõ
yove rewe kenenõ
vana mekiarao
ato vana yosii
mãta ẽ akai
ẽ chinã kenerao
ẽ anõ oĩya
aivo kenese
chinã revõ veyamash
yove kene vetsãi
yove kenematai
ẽ rome kokavo
ato anõ tsekaa
tseka yosisho
eri rivi anõsho
iki anõ ána
ẽ rome kokavo
ari rivi vanai
vento do Rio-Sol
contra o vento vou
névoa da nuvem-rio
contra a névoa vou
meu corpo-carcaça
aí neste mundo
a sua língua entendeu****
e enquanto isso
meus tios-espírito
com caniços desenhados / com vozes desenhadas
a fala arrumaram
e a ele ensinaram*****
mas eu sempre soube
pelo pensar desenhado
que uso para ver
este desenho traçado
diante do meu coração
feito desenho-espírito
desenho-espírito não é
vento do rio-sol
pelo vento vou
névoa da nuvem-rio
contra a névoa vou
o que será
que ali encontrarei?
juntos vamos ver
meus tios-espírito
a extrair aprenderam
para que eu mesmo
assim também faça
foi o que falaram
os tios-espírito
10
Como diálogo ao comentário de Cesarino, eis um trecho de Eduardo Viveiros
de Castro sobre o assunto, de modo mais geral: “a noção de espíritos ‘donos’
dos animais (‘Mães da caça’, ‘Mestres dos queixadas’ etc.) é, como se sabe, de
enorme difusão no continente. Esses espíritos-mestres, invariavelmente dotados de
10
11
êhé
ẽ anõ oĩa
aivo kenese
chinã revõ veyamash
êhé
kenekia rakánõ
êhé
ẽ anõ vanaa
ẽ chinã kene
êhé
ẽ chinã kenenõ
teki vakĩ ikirao
eri rivi yonã
êhé
1.1
meu saber em desenho
meu saber em desenho
não é com desenho-rio
nem desenho-espírito
êhé
que consigo enxergar
esse desenho está
diante do meu coração
êhé
êhé
ehé
êhé
1.2
meu saber em traço
meu saber em traço
não é com um traço-rio nem sequer com traço-além
êhé
êhé
êhé
que farei meu cantar
saber em traço
ehé
êhé
(pausa e início de conversa com o duplo/vaká)
11
Em outro livro, Lagrou descreve um ritual kaxinawa em que vemos claramente
o vínculo entre o xunu kene e o canto, pois ambos constróem o corpo (2009:45-
6): “Primeira mente, durante o rito de passagem, um banco é esculpido, pelos
pais, das raízes tubulares da samaúma à imagem da criança: ‘duas pernas com um
buraco no meio’, como diz o canto. Vida é insuflada no banco através de um canto
ritual e um banho no rio, onde os homens ringem o banco de vermelho, levando-o
para casa onde as mães o pintam com o xunu kene, o motivo da samaúma. […]
O canto se dirige ao banco como a uma criança, para que passe suas qualidades
para a criança: a vida longa de uma samaúma com raízes firmemente plantadas
(‘que não anda por todo canto’), um ‘coração forte’, que não sente medo à toa,
e um conhecimento sobre os segredos da vida e da morte atribuídos em mito a
essa árvore. O banco usado pelas crianças para descansar durante as intervenções
rituais, é produzido pelas mesmas técnicas que produziram a estrutura da criança
no ventre e recebe a mesma decoração que receberá a pele da criança depois do
rito de passagem.”
O que Castro quer com isso é reiterar o que ela vê como “alte
ridade cosmopolítica” dos Marubo. Mudando de grupo, Orlando
Calheiros comenta sobre o termo -a’uwa entre os Aikewara: “todo
awa esconde em si mesmo uma díade, cada um é, na verdade, dois:
é, simultaneamente, ele mesmo, uma pele-invólucro, e seu ‘ou
tro-mesmo’, seu ‘companheiro’ (irutehé’hyga), um duplo (-a’uwa)
que vive em sua barriga” (90). Na verdade, é ainda um pouco
mais complexo, pois “No idioma local, se diz que essa imagem
é -a’uwa, coisa totalmente diversa de uma imagem, seria como
uma ‘alma’, uma ‘imagem-diferente’, uma ‘imagens-espírito’, um
duplo” (ibid: 55). Em nota na mesma página, ele ainda percebe o
problema tradutório como um todo:
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êhê
êhê
êhê
êhê
ẽ yora shakárao
nea mai shavayash
matõ vana tanai
awẽ aki amainõ
ẽ rome kokavõ
ẽ rome kokavõ
yove rewe kenenõ
vana mekiarao
ato vana yosii
mãta ẽ akai
(levanta da rede)
ẽ chinã kenerao
ẽ anõ oĩya
aivo kenese
chinã revõ veyamash
yove kene vetsãi
yove kenematai
êhê
êhê
(pausa, tosse)
awesa oĩi
oĩra ikia
nori rivi oĩno
ẽ rome kokavo
ato anõ tsekaa
tseka yosisho
eri rivi anõsho
iki anõ ána
êhê
ẽ rome kokavo
ari rivi vanai
êhê
êhê
êhê
raia-rio colossal
que fechou a via-rio
a pessoa moça assim
não consegue mais pular
isso dizem por aí
mas pulando agora vou
raia-rio colossal
sou assim e sempre fui
êhê
êhê
meu corpo-carcaça aí
na morada de vocês
imitou a fala bem
(levanta da rede)
no desenho do pensar
que eu uso para ver
o desenho que se fez
diante do meu coração
qual desenho-espírito
não-desenho-espírito
êhê
êhê
(pausa, tosse)
os meus tios-espírito
aprenderam a extrair
extrair a qualquer mal
assim fazem pra que eu
faça tudo assim também
êhê
os meus tios-espírito
me falaram bem assim
êhê
êhê
raia-rio colossal
que fechou a via-rio
a pessoa moça assim
não consegue mais pular
isso dizem por aí
mas pulando agora vou
raia-rio colossal
sou assim e sempre fui
as argilas de anta-frio
sobem sobem sem parar
as argilas de anta-frio
êhê — êhê
êhê — êhê
meu corpo-carcaça aí
na morada de vocês
imitou a fala bem
nesse tempo sucedeu
que os meus tios-espírito
que os meus tios-espírito
com traçar de voz-além
arrumaram o falar
e ensinaram fala ao tal
êhê
êhê — êhê
os meus tios-espírito
aprenderam a extrair
extrair a qualquer mal
assim fazem pra que eu
faça tudo assim também
os meus tios-espírito
me falaram bem assim
êhê
13
14
15
16
17
1.
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he…
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he…
2.
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he…
raia-rio escomunal
que fechou a via-rio
a pessoa moça assim
não consegue mais pular
isso dizem por aí
mas pulando agora vou
raia-rio escomunal
sou assim e sempre fui
ê-he-hü-he-hü-he-he
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he…
meu corpo-carcaça aí
na morada de vocês
imitou a fala bem
nesse tempo sucedeu
que os meus tios-espírito
que os meus tios-espírito ẽ rome kokavõ
com traço de voz-além
arrumaram o falar
e ensinaram fala ao tal
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
os meus tios-espírito
aprenderam a expurgar
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
ê-he-hü-he-hü-he-he
ê-he-hé-hü-he-hã-hã
os meus tios-espírito
me falaram bem assim
ê-he-hü-he-hü-he-he
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Referências
Townsley, Graham. “Song paths: the ways and means of Yaminahua shamanic
knowledge”. In: Townsley, Graham. L’Homme, tomo 33, n°126-128. La
remontée de l’Amazone. 1993, p. 449-468.
Villas Bôas, Orlando. A arte dos pajés: impressões sobre o universo espiritual do
índio xinguano. São Paulo: Globo, 2000.