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Resumo
O sujeito poético exprime o desejo (impossível) de se vingar da
“senhor”, pois esta tratou-o mal, pagando-lhe na mesma moeda, isto é,
deixando de a amar, procurando o seu mal e fazendo-a sofrer como ele sofre.
No entanto, este desejo é impossível de concretizar, desde logo porque a
culpa é do seu próprio coração, que o fez desejar quem nunca o desejou.
Como não consegue dormir, só lhe resta pedir a Deus que desampare quem
sempre o desamparou e lhe dê a ele a capacidade para a perturbar um pouco.
Deste modo, conseguiria dormir. Em alternativa, pede-lhe que pelo menos lhe
dê coragem para falar com ela.
● Assunto: o desejo de vingança por parte do sujeito poético relativamente à
sua «senhor», pelo facto de ela o fazer sofrer muito (“coita de amor”).
● Tema: a revolta contra o poder da “coita de amor” / o amor não
correspondido / a amada como ser inacessível.
● Caracterização da «senhor»
A mulher amada mostra-se fria e indiferente em relação ao sujeito
poético e ao seu sentimento, não lhe correspondendo amorosamente. Ela é,
pois, de acordo com a convenção da cantiga de amor, inacessível ao trovador,
pois não lhe corresponde amorosamente e nunca o será. E ele tem consciência
disso.
● Caracterização do sujeito poético
O retrato do sujeito poético pode sintetizar em meia dúzia de traços:
▪ está apaixonado;
De facto, o «eu» está enamorado, mas sofre imenso e mostra-se muito indignado
e revoltado porque a mulher que ama não corresponde ao seu amor.
Além de não lhe corresponder e de lhe causar dor, a «senhor» parece ter
desejado fazê-lo sofrer, como o indicia o verso 4: “a quem me sempre mal buscou!”.
Por outro lado, ela espicaçou nele, de forma maldosa, o amor e a paixão, como se pode
comprovar pelos versos 24 e 25: “por que me fez em si cuidar, / pois ela nunca em mim
cuidou”.
Tudo isto o leva a manifestar o desejo de se vingar dela pelo sofrimento e pela
dor que lhe causou, fazendo-a sofrer como ele tem sofrido. No entanto, como é
impossível retribuir-lhe o mal que ela lhe causou, a sua mágoa é reforçada, ou seja,
porque ele não antevê qualquer alívio futuro. Esta ideia é bem traduzida pelo refrão, que
ora aponta a causa do sofrimento do «eu» (estrofes 2 e 4), ora indicia a condição
impossível para o alívio do sofrimento (coblas 1 e 3): o «eu» não pode vingar-se nem
dormir, isto é, encontrar a paz, pois não pode fazer sofrer a amada. Assim, como não lhe
é possível libertar-se da dor, resta-lhe lamentar-se e continuar a sofrer.
O tom do seu queixume é de lamento e algo colérico, visto que, como já foi
mencionado, ele sofre por amor e está revoltado com a situação em que se encontra e
com a «senhor», a responsável pelo seu estado de alma.
Em suma, o «eu» vive um conflito interior, visto que, por um lado, deseja
vingar-se da mulher, “devolvendo-lhe” todo o sofrimento que ela lhe causa, contudo,
por outro lado, tem consciência de que não lhe é possível evitar o amor que o prende à
dama.
● Fuga às convenções da cantiga de amor
De acordo com o cânone da cantiga de amor, o trovador, quando não
é correspondido pela «senhor», é submisso e mantém-se leal ao amor e ao
serviço amoroso. Nas palavras de António José Saraiva (in O Crepúsculo da
Idade Média em Portugal), “O amor era concebido à maneira cavaleiresca,
como um «serviço». Consistia esse serviço em dedicar-lhe [à amada] os
pensamentos, os versos e os atos. O serviço está para a «senhor» como o
vassalo está para o suserano.
Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a
distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a quem chama senhor,
tornando-a um objeto quase inacessível.”
Por outro lado, as regras do amor cortês não lhe permitem dirigir-se diretamente
à mulher, daí usar o verbo «ousar» (v. 22) e no pretérito imperfeito do conjuntivo,
sugerindo uma situação improvável. De facto, falar com ela constituiria um atrevimento
e uma quebra do código amoroso e do serviço de vassalagem que tem de lhe prestar.
No entanto, esta cantiga contraria a convenção, visto que o «eu» poético não
serve dedicadamente a mulher amada e não aceita o sofrimento amoroso e a dor
causados pela não correspondência amorosa da dama, não se resignando a sofrer. Mais
do que isso, ele revolta-se contra ela e expressa mesmo o desejo de se vingar, fazendo-
lhe mal e trazendo-lhe igualmente sofrimento. A revolta contra o poder da «coita de
amor» é uma fuga ao código da «fin’amors», pois o trovador jamais poderia desanimar
ou colocar o seu sofrimento acima do seu serviço. O amor, ainda que não
correspondido, devia ser fonte de depuração. Além disso, desmistifica a ideia da mulher
idealizada: ela é cruel, dá esperanças ao pobre trovador e depois desdenha dele, ignora-
o.
● Forma
▪ Estrofes: quatro sétimas.
▪ Rima:
- cruzada e interpolada
- consoante e toante
- pobre e rica
- aguda
▪ Métrica: versos octossílabos.
▪ Transporte.
▪ Ritmo lento e arrastado.
▪ Refrão:
. o sujeito formula o desejo de que a “senhor” que ama e que não lhe retribui
o amor sofra tanto como ele tem sofrido por ela;
▪ Aliteração em s.
▪ Personificação do coração: o sujeito poético responsabiliza-o pelo seu
sofrimento
● Classificação
▪ Cantiga de amor: esta composição poética é uma cantiga de amor cujo
sujeito de enunciação é masculino – o trovador –, que expressa os seus
sentimentos pela «senhor», uma dama inacessível geralmente casada.
▪ Recursos formais da cantiga de amor:
- Refrão (vide).
- Dobre: repetição da mesma palavra flexionada (isto é, mudando-lhe o tempo
verbal ou o género, por exemplo) no mesmo lugar:
. desamar / desamou
. busca / buscou
. podesse / posso
. enganar / enganou
. dar / deu
● Valor documental
Esta cantiga retrata já uma desmistificação do amor cortês em
confronto com uma realidade bem diferente, uma realidade onde havia
mulheres de carne e osso com defeitos e virtudes.
Além disso, é também o reflexo da decadência da vida da corte, da nobreza, que
começa a perder o seu poder para uma nova classe que começa a surgir – a burguesia.
Análise da cantiga "Que soidade de mha senhor ei"
. Assunto: o trovador exprime a saudade e o desespero que sente face à ausência da "senhor", de tal
forma que o levará à morte se não a vir rapidamente.
. Estrutura interna
. 1.ª parte (vv. 1-6) - O trovador exprime:
- a saudade provocada pela ausência da amada;
- a recordação dela: "qual a vi", "que bem a oí falar", "quanto ben dela sei";
- refrão: o pedido a Deus para a ver.
. 3.ª parte (vv. 13-20) - Exaltação das qualidades da mulher amada ("non lhi fez par", "fez das
melhores melhor") e confissão da certeza de que morrerá se não vir rapidamente a
"senhor" (dependência total em relação à mulher amada).
. Caracterização da "senhor":
- boas maneiras (fala bem);
- formosa;
- não há outra igual;
- ideal;
- perfeita;
- divinizada;
- altiva, distante, indiferente aos sentimentos do trovador (v. 7);
- inacessível;
- encontra-se ausente.
. Caracterização do trovador:
- recorda a "senhor" com saudade;
- sofre por ela (coita de amor);
- está triste;
- apaixonado;
- suplica a Deus que lhe permita voltar a vê-la;
- enlouquecerá e/ou morrerá se não voltar a vê-la;
- esperançado em voltar a vê-la;
- ansioso;
- desesperado;
- totalmente submetido à "senhor";
- comedido na expressão do sentimento amoroso (mesura);
- sente dor;
- revoltado;
- encontra-se na fase de fenhedor, pois suspira e pede a Deus que lhe permita vê-la.
NOTAS:
Os nossos trovadores sofrem a "coita de amor". Não lhes basta cantar as
perfeições idealizadas da mulher, a aspiração ao inacessível não os satisfaz. O amor é
entendido como um sentimento que esvazia a vida de sentido e leva à loucura e à
"morte".
A cantiga de amor galaico-portuguesa é um repetir monótono da necessidade
vital de ver a "senhor"; daí que a realidade e a ficção acabem por se entrelaçar e
aquela, por vezes, sobrepor-se a esta. Todavia, a afirmação da "morte de amor",
repetida vezes sem conta, torna-se um lugar-comum que destrói a sinceridade, se
presta ao ridículo e à sátira.
. A "senhor" é um ser superior a quem o trovador presta vassalagem amorosa. Ela é a
suserana do coração dele ("todo en seu poder ten"), que enlouquecerá ou morrerá se
não a vir.
. Ao contrário da cantiga de amigo, o amor não tende, por princípio, à união sexual; é,
em geral, fingimento e convenção. Apresenta-se como um ideal a atingir, como um
estado de espírito que deve ser alimentado. É uma aspiração sem correspondência, em
que se invertem as relações de domínio e de vassalagem:
O trovador vê-se atingido por um amor fatal, porque, um dia, viu uma formosa
dama, "das melhores a melhor", e pelos olhos lhe vai surgir todo o sofrimento, toda a
sua coita, que o leva a dizer que morrerá se não a vir.
Consiste este amor, em suma, numa aspiração e estado de tensão por um ideal
de mulher ou ideal de amor.
. Este amor (em geral fingimento e convenção na poesia provençal), na língua galego-
portuguesa, parece sincero, numa súplica apaixonada e triste.
. Outras características:
não totalmente declarado, devido ao seu carácter adúltero;
com poucas hipótese de ser vivido a nível físico;
submissão total do EU à dona, numa atitude de vassalagem amorosa;
fidelidade eterna do EU à dona;
beleza, altivez e indiferença da dona face ao seu "vassalo";
sofrimento - coita de amor do trovador, de acordo com as regras:
. vassalagem amorosa;
. comedimento na expressão do sentimento amoroso - mesura;
. não mencionar o nome da amada - o "trobar clus";
amor faseado: fenhedor (suspirar);
precador (suplicar);
entendedor (namorar);
drut (amar);
os artifícios poéticos do enlouquecer e da morte de amor.
. Recursos poético-estilísticos
. Substantivos [1]:
- "soidade": o sentimento central do trovador em virtude da ausência da dona e que é a matriz dos
outros sentimentos - dor, desespero, desilusão, tristeza, sofrimento, ansiedade, amor,
esperança, admiração, revolta;
- Deus: o responsável pela beleza ímpar da dona;
o objecto da súplica do trovador no sentido de voltar a ver a amada;
- senhor: o objecto do amor-vassalagem do trovador, o ideal da perfeição;
a causadora dos sentimentos do trovador, quer pela sua inigualável beleza, quer pela
indiferença face ao amor dele.
. Verbos:
érito perfeito: a recordação da época em que conheceu a dona (início da sua coita de amor presente) e
os aspectos que o cativaram;
. presente: a coita de amor do trovador e o desejo e a rever;
. futuro ("prouguer" futuro do conjuntivo do verbo "prazer"): voltar a vê-la ou a morte se não
a vir.
O verbo ver é bastante expressivo no contexto da cantiga de amor, na evocação
visualista da dona e porque remete para a estética da luz:
. O trovador vê-se enredado no amor fatal porque, um dia, viu uma formosa dama "das
melhores melhor"; e pelos olhos vai surgir todo o sofrimento. Os olhos intrometem-se
nos negócios de amor.
. Ver é ter luz = poder participar do objecto e difundir-se indefinidamente até ao ser
amado. A actividade da luz é difundir-se indefinidamente e provocar todos os
movimentos.
. Luz - do latim lux = esse lucidum (ser lúcido); ou seja, pela luz participa-se de todas as
coisas criadas.
. A exploração do simbolismo da luz faz parte da própria estética medieval, que é uma
estética da luz.
. Hipérbatos: "Que soidade de mia senhor ei", etc.
. Anáfora: vv. 7, 13, 19.
. Função expressiva:
- substantivos ("soidade");
- verbos ("rogo");
- carácter exclamativo do primeiro verso;
- adjectivos.
. Classificação
1.1. Formal:
- cantiga de refrão;
- cantiga de finda;
- cantiga de atafinda.