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Resumo
 
            O sujeito poético exprime o desejo (impossível) de se vingar da
“senhor”, pois esta tratou-o mal, pagando-lhe na mesma moeda, isto é,
deixando de a amar, procurando o seu mal e fazendo-a sofrer como ele sofre.
No entanto, este desejo é impossível de concretizar, desde logo porque a
culpa é do seu próprio coração, que o fez desejar quem nunca o desejou.
Como não consegue dormir, só lhe resta pedir a Deus que desampare quem
sempre o desamparou e lhe dê a ele a capacidade para a perturbar um pouco.
Deste modo, conseguiria dormir. Em alternativa, pede-lhe que pelo menos lhe
dê coragem para falar com ela.
 
 
● Assunto: o desejo de vingança por parte do sujeito poético relativamente à
sua «senhor», pelo facto de ela o fazer sofrer muito (“coita de amor”).
 
 
● Tema: a revolta contra o poder da “coita de amor” / o amor não
correspondido / a amada como ser inacessível.
 
 
● Caracterização da «senhor»
 
            A mulher amada mostra-se fria e indiferente em relação ao sujeito
poético e ao seu sentimento, não lhe correspondendo amorosamente. Ela é,
pois, de acordo com a convenção da cantiga de amor, inacessível ao trovador,
pois não lhe corresponde amorosamente e nunca o será. E ele tem consciência
disso.
 
 
● Caracterização do sujeito poético
 
            O retrato do sujeito poético pode sintetizar em meia dúzia de traços:

▪ está apaixonado;

▪ sente-se enganado (v. 9);

▪ não dorme (v. 12);

▪ está desamparado e perturbado (vv. 16, 18);

▪ sofre (v. 26)

▪ deseja vingar-se da «senhor».

            De facto, o «eu» está enamorado, mas sofre imenso e mostra-se muito indignado
e revoltado porque a mulher que ama não corresponde ao seu amor.
            Além de não lhe corresponder e de lhe causar dor, a «senhor» parece ter
desejado fazê-lo sofrer, como o indicia o verso 4: “a quem me sempre mal buscou!”.
Por outro lado, ela espicaçou nele, de forma maldosa, o amor e a paixão, como se pode
comprovar pelos versos 24 e 25: “por que me fez em si cuidar, / pois ela nunca em mim
cuidou”.

            Tudo isto o leva a manifestar o desejo de se vingar dela pelo sofrimento e pela
dor que lhe causou, fazendo-a sofrer como ele tem sofrido. No entanto, como é
impossível retribuir-lhe o mal que ela lhe causou, a sua mágoa é reforçada, ou seja,
porque ele não antevê qualquer alívio futuro. Esta ideia é bem traduzida pelo refrão, que
ora aponta a causa do sofrimento do «eu» (estrofes 2 e 4), ora indicia a condição
impossível para o alívio do sofrimento (coblas 1 e 3): o «eu» não pode vingar-se nem
dormir, isto é, encontrar a paz, pois não pode fazer sofrer a amada. Assim, como não lhe
é possível libertar-se da dor, resta-lhe lamentar-se e continuar a sofrer.

            O tom do seu queixume é de lamento e algo colérico, visto que, como já foi
mencionado, ele sofre por amor e está revoltado com a situação em que se encontra e
com a «senhor», a responsável pelo seu estado de alma.

            Em suma, o «eu» vive um conflito interior, visto que, por um lado, deseja
vingar-se da mulher, “devolvendo-lhe” todo o sofrimento que ela lhe causa, contudo,
por outro lado, tem consciência de que não lhe é possível evitar o amor que o prende à
dama.

 
 
● Fuga às convenções da cantiga de amor
 
            De acordo com o cânone da cantiga de amor, o trovador, quando não
é correspondido pela «senhor», é submisso e mantém-se leal ao amor e ao
serviço amoroso. Nas palavras de António José Saraiva (in O Crepúsculo da
Idade Média em Portugal), “O amor era concebido à maneira cavaleiresca,
como um «serviço». Consistia esse serviço em dedicar-lhe [à amada] os
pensamentos, os versos e os atos. O serviço está para a «senhor» como o
vassalo está para o suserano.

            Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a
distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a quem chama senhor,
tornando-a um objeto quase inacessível.”

            Por outro lado, as regras do amor cortês não lhe permitem dirigir-se diretamente
à mulher, daí usar o verbo «ousar» (v. 22) e no pretérito imperfeito do conjuntivo,
sugerindo uma situação improvável. De facto, falar com ela constituiria um atrevimento
e uma quebra do código amoroso e do serviço de vassalagem que tem de lhe prestar.

            No entanto, esta cantiga contraria a convenção, visto que o «eu» poético não
serve dedicadamente a mulher amada e não aceita o sofrimento amoroso e a dor
causados pela não correspondência amorosa da dama, não se resignando a sofrer. Mais
do que isso, ele revolta-se contra ela e expressa mesmo o desejo de se vingar, fazendo-
lhe mal e trazendo-lhe igualmente sofrimento. A revolta contra o poder da «coita de
amor» é uma fuga ao código da «fin’amors», pois o trovador jamais poderia desanimar
ou colocar o seu sofrimento acima do seu serviço. O amor, ainda que não
correspondido, devia ser fonte de depuração. Além disso, desmistifica a ideia da mulher
idealizada: ela é cruel, dá esperanças ao pobre trovador e depois desdenha dele, ignora-
o.

 
 
● Forma
 
▪ Estrofes: quatro sétimas.

▪ Rima:

- esquema rimático: ABABRAR

- cruzada e interpolada

- consoante e toante

- pobre e rica

- aguda

▪ Métrica: versos octossílabos.

▪ Transporte.

▪ Ritmo lento e arrastado.

▪ Refrão:

. estabelece o confronto entre o desejo e a realidade;

. o sujeito formula o desejo de que a “senhor” que ama e que não lhe retribui
o amor sofra tanto como ele tem sofrido por ela;

. atesta a oscilação do sujeito poético entre os dois domínios: o do possível e o


do impossível, expressa na alternância do primeiro verso do refrão entre as
estrofes ímpares e pares:
- impossível: “se eu podesse coita dar”;
- possível: “nom posso coita dar”.
  
 
● Recursos estilísticos
 
▪ Assonância em a e e.

▪ Aliteração em s.
▪ Personificação do coração: o sujeito poético responsabiliza-o pelo seu
sofrimento

▪ Antítese entre o desejo do trovador e a realidade da cantiga de amor, do código


da “fin’amors”. Trata-se de um conflito não resolvido, pois é impossível ao «eu»
«punir» a amada, o que o deixa em tensão.

▪ Orações subordinadas condicionais e causais: mostram o esforço do sujeito


poético para encontrar a solução acertada para a sua vingança: pensa, avalia,
calcula várias possibilidades sem conseguir concluir.

 
 
● Classificação
 
▪ Cantiga de amor: esta composição poética é uma cantiga de amor cujo
sujeito de enunciação é masculino – o trovador –, que expressa os seus
sentimentos pela «senhor», uma dama inacessível geralmente casada.
 
▪ Recursos formais da cantiga de amor:
- Refrão (vide).
- Dobre: repetição da mesma palavra flexionada (isto é, mudando-lhe o tempo
verbal ou o género, por exemplo) no mesmo lugar:
. desamar / desamou
. busca / buscou
. podesse / posso
. enganar / enganou
. dar / deu
 
 
● Valor documental
 
            Esta cantiga retrata já uma desmistificação do amor cortês em
confronto com uma realidade bem diferente, uma realidade onde havia
mulheres de carne e osso com defeitos e virtudes.

            Além disso, é também o reflexo da decadência da vida da corte, da nobreza, que
começa a perder o seu poder para uma nova classe que começa a surgir – a burguesia.

 
Análise da cantiga "Que soidade de mha senhor ei"
. Assunto: o trovador exprime a saudade e o desespero que sente face à ausência da "senhor", de tal
forma que o levará à morte se não a vir rapidamente.

. Tema: a saudade pela "senhor".

. Estrutura interna
. 1.ª parte (vv. 1-6) - O trovador exprime:
- a saudade provocada pela ausência da amada;
- a recordação dela: "qual a vi", "que bem a oí falar", "quanto ben dela sei";
- refrão: o pedido a Deus para a ver.

. 2.ª parte (vv. 7-12) - Consequências de não ver a amada:


- a loucura
        ou
- a morte.

. 3.ª parte (vv. 13-20) - Exaltação das qualidades da mulher amada ("non lhi fez par", "fez das
melhores melhor") e confissão da certeza de que morrerá se não vir rapidamente a
"senhor" (dependência total em relação à mulher amada).

. Caracterização da "senhor":
- boas maneiras (fala bem);
- formosa;
- não há outra igual;
- ideal;
- perfeita;
- divinizada;
- altiva, distante, indiferente aos sentimentos do trovador (v. 7);
- inacessível;
- encontra-se ausente.

. Caracterização do trovador:
- recorda a "senhor" com saudade;
- sofre por ela (coita de amor);
- está triste;
- apaixonado;
- suplica a Deus que lhe permita voltar a vê-la;
- enlouquecerá e/ou morrerá se não voltar a vê-la;
- esperançado em voltar a vê-la;
- ansioso;
- desesperado;
- totalmente submetido à "senhor";
- comedido na expressão do sentimento amoroso (mesura);
- sente dor;
- revoltado;
- encontra-se na fase de fenhedor, pois suspira e pede a Deus que lhe permita vê-la.

NOTAS:

            a) Amor associado à saudade: o trovador ama a "senhor" e basta um dia sem a


ver para morrer de saudades.
            b) O "ensandecer" e a morte de amor: o amor é considerado um sentimento que
pode levar à loucura e mesmo à morte.

            Os nossos trovadores sofrem a "coita de amor". Não lhes basta cantar as
perfeições idealizadas da mulher, a aspiração ao inacessível não os satisfaz. O amor é
entendido como um sentimento que esvazia a vida de sentido e leva à loucura e à
"morte".
            A cantiga de amor galaico-portuguesa é um repetir monótono da necessidade
vital de ver a "senhor"; daí que a realidade e a ficção acabem por se entrelaçar e
aquela, por vezes, sobrepor-se a esta. Todavia, a afirmação da "morte de amor",
repetida vezes sem conta, torna-se um lugar-comum que destrói a sinceridade, se
presta ao ridículo e à sátira.

. Concepção do amor (amor cortês):

. A "senhor" é um ser superior a quem o trovador presta vassalagem amorosa. Ela é a
suserana do coração dele ("todo en seu poder ten"), que enlouquecerá ou morrerá se
não a vir.

. A relação amorosa caracteriza-se, portanto, pela admiração e pela submissão do


trovador face à dona.

. Ao contrário da cantiga de amigo, o amor não tende, por princípio, à união sexual; é,
em geral, fingimento e convenção. Apresenta-se como um ideal a atingir, como um
estado de espírito que deve ser alimentado. É uma aspiração sem correspondência, em
que se invertem as relações de domínio e de vassalagem:

              O trovador vê-se atingido por um amor fatal, porque, um dia, viu uma formosa
dama, "das melhores a melhor", e pelos olhos lhe vai surgir todo o sofrimento, toda a
sua coita, que o leva a dizer que morrerá se não a vir.
              Consiste este amor, em suma, numa aspiração e estado de tensão por um ideal
de mulher ou ideal de amor.

. Deste modo, o trovador segue de perto a teoria platónica do amor:


              A "senhor" é cheia de formosura, é o tipo ideal de mulher. A sua beleza e o bem
que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. Ela é uma projecção
platónica do Bem, do Belo e da Virtude. O amor cortês apresenta-se, pois, como ideal,
como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito
que deve ser alimentado.

. Este amor (em geral fingimento e convenção na poesia provençal), na língua galego-
portuguesa, parece sincero, numa súplica apaixonada e triste.

. Outras características:
 não totalmente declarado, devido ao seu carácter adúltero;
 com poucas hipótese de ser vivido a nível físico;
 submissão total do EU à dona, numa atitude de vassalagem amorosa;
 fidelidade eterna do EU à dona;
 beleza, altivez e indiferença da dona face ao seu "vassalo";
 sofrimento  -  coita de amor do trovador, de acordo com as regras:
. vassalagem amorosa;
. comedimento na expressão do sentimento amoroso  -  mesura;
. não mencionar o nome da amada  -  o "trobar clus";
 amor faseado:     fenhedor (suspirar);
precador (suplicar);
entendedor (namorar);
drut (amar);
 os artifícios poéticos do enlouquecer e da morte de amor.

. Recursos poético-estilísticos

            1. Forma / Estrutura externa

. Cantiga composta por três estrofes isométricas de 4 versos e um refrão dístico e ainda


uma estrofe final dística, que é a finda.
. Rima      - abbaRR;
- interpolada e emparelhada;
- consoante ("ei"/"sei");
- pobre ("ei"/"sei") e rica ("ben"/"ten");
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos.
. Refrão (influência da cantiga de amigo): dístico de versos monórrimos que traduz a ansiedade e
do desejo do trovador de ver a dona, bem como a angústia e o desespero que o
dominam.
. Finda: conclusão, remate ou assunto da cantiga. Exprime a certeza da morte se não conseguir
ver a mulher.
. Atafinda: forma de encavalgamento ou de ligação sintáctica e ideológica entre as estrofes. A
ligação é realizada através da repetição de "veer" no fim da estrofe e de "cedo" no
início da seguinte.
                        1.1. Outros elementos fónicos

. Transporte: vv. 3-4, 8-9, etc.  -  prolonga o queixume e a mágoa do sujeito.


. Assonância em i, e, a.
. Ritmo predominantemente binário e lento.

            2. Nível morfossintático

. Substantivos [1]:
- "soidade": o sentimento central do trovador em virtude da ausência da dona e que é a matriz dos
outros sentimentos  -  dor, desespero, desilusão, tristeza, sofrimento, ansiedade, amor,
esperança, admiração, revolta;
- Deus:      o responsável pela beleza ímpar da dona;
 o objecto da súplica do trovador no sentido de voltar a ver a amada;
- senhor:      o objecto do amor-vassalagem do trovador, o ideal da perfeição;
 a causadora dos sentimentos do trovador, quer pela sua inigualável beleza, quer pela
indiferença face ao amor dele.
. Verbos:
érito perfeito: a recordação da época em que conheceu a dona (início da sua coita de amor presente) e
os aspectos que o cativaram;
. presente: a coita de amor do trovador e o desejo e a rever;
. futuro ("prouguer"  futuro do conjuntivo do verbo "prazer"): voltar a vê-la ou a morte se não
a vir.
            O verbo ver é bastante expressivo no contexto da cantiga de amor, na evocação
visualista da dona e porque remete para a estética da luz:
. O trovador vê-se enredado no amor fatal porque, um dia, viu uma formosa dama "das
melhores melhor"; e pelos olhos vai surgir todo o sofrimento. Os olhos intrometem-se
nos negócios de amor.
. Ver é ter luz = poder participar do objecto e difundir-se indefinidamente até ao ser
amado. A actividade da luz é difundir-se indefinidamente e provocar todos os
movimentos.
. Luz  -  do latim lux = esse lucidum (ser lúcido); ou seja, pela luz participa-se de todas as
coisas criadas.
. A exploração do simbolismo da luz faz parte da própria estética medieval, que é uma
estética da luz.
. Hipérbatos: "Que soidade de mia senhor ei", etc.
. Anáfora: vv. 7, 13, 19.
. Função expressiva:
- substantivos ("soidade");
- verbos ("rogo");
- carácter exclamativo do primeiro verso;
- adjectivos.

            3. Nível semântico

. Hipérboles: a saudade é tamanha que, se não a vir, enlouquecerá e morrerá:


- "se a non vir, non me posso guardar / d' ensandecer ou morrer con pesar";
o encarecimento da dama  -  perfeita, ideal, divinizada, a melhor:
- "non lhi fez par";
- "fez das melhores melhor".
. Antíteses:       - "mi nunca fez ben"  "ensandecer ou morrer con pesar";
- ver    não ver a dona
                       
 vida             morte
. Metáforas do "ensandecer" e do morrer de amor.
. Perífrases: o retrato da mulher ideal, perfeita, divinizada, inacessível:
 "ca tal a fez Nostro Senhor:
 de quantas outras no mundo son
 non lhi fez par";
 "se a non vir, non posso viver" (eufemismo).
. Repetição do verbo "fazer": reforça a ideia da superioridade da dama.
. Gradação na expressão dos sentimentos do trovador: sente saudades  enlouquece  morre de
amor.

. Classificação

1. Cantiga de amor: composição poética trovadoresca de carácter lírico, cujo


emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma
dama designada por "mha senhor".
            O poeta elogia as qualidades invulgares da mulher amada a nível físico, moral e
social e fala do seu sofrimento (coita de amor).

1.1. Formal:
- cantiga de refrão;
- cantiga de finda;
- cantiga de atafinda.

[1] O vocábulo saudade e a sua evolução semântica

. O vocábulo soidade tem na 1.ª estrofe um prestígio sugestivo que se prolonga em:


- nembrar;
- na lentidão do ritmo
   e traduz o sentimento de melancolia que parece realmente vivido.
. Saudade  -  palavra que se repete obsessivamente ao longo da literatura portuguesa:
ade  -  traduzida em:  coitas de amor
 cuidado
 pesar
 morte (de amor)
                O seu emprego literário é anterior ao de soledad, apesar de ambos os vocábulos
derivarem da soletatem latina. Já na Idade Média havia em Portugal Marias da
Soidade ou Suidade, enquanto em Espanha só depois do século XVII surgem Marias de la
Soledad. O valor significativo entre os dois vocábulos é diferente:
soledad  saudade  valor subjectivo-objectivo
 solidão   
 

soidade (sensibilidade portuguesa)  -  valor subjectivo  saudade.

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