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O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

de
José Saramago

Os mistérios do mundo feminino no romance

Oficina de Formação
Vanda Gouveia, 2017
Na efabulação do amor, nos vários momentos de reflexão
dialógica entre a instância narrante e o leitor, destaca-se o
mundo feminino, com seus opostos e convergências: Lídia e
Marcenda, duas figuras da ficção, dois tipos distintos de
mulher, parecem disputar o coração de Ricardo Reis,
presentificando uma análise reflexiva e crítica sobre o ato de
entrega entre humanos, as emoções que o envolvem, os
afetos, a sexualidade.
1. Lídia, a sublime magnanimidade do amor

• A diferença social entre o doutor e a serviçal pesa no


pensamento de Reis, homem-poeta em busca da própria
identidade, incapaz de se render à mulher consciente do seu
estatuto, que não crê no amor platónico, antes, autêntica,
se entrega ao amor e ao prazer, sofre, sente ciúme, mas
sempre sem exigir nada em troca.

• Esta magnanimidade espelha-se em vários momentos do


romance, mas em especial na atenção aquando do resfriado
do doutor.
• Tantas vezes, a humilde simplicidade e a grandeza da entrega
emergem dos momentos de puro diálogo, ou nas malhas da
intimidade.

• Mas, a grandeza de Lídia revela-se, sobretudo, na emoção


genuína e na resoluta entrega total.

• Ainda que os excertos precedentes pintem uma imagem


feminina altruísta, que se entrega resolutamente à paixão, sem
temer as críticas do mundo fora de portas, o clímax desta atitude
singular está no momento em que Lídia, após mais um momento
de intimidade intensa, confronta o amante com a notícia da sua
gravidez e assume criar o filho sozinha, deixando a Ricardo Reis
total liberdade de ação.
Lídia, mais uma vez mostrará a Reis ser uma mulher plena,
sofrida e amante, incapaz de permanecer apática perante “o
espetáculo do mundo”, quando o procura, “de olhos
vermelhos e inchados”, não para fazer exigências (até lhe
lança um “olhar repreensivo” quando Reis a interroga se “é
por causa do menino”), mas, não vislumbrando meios de o
impedir, desabafar apenas a grande dor que lhe causa a
participação do irmão na revolta que se avizinha.
2. Marcenda

• 23 anos, vive em Coimbra


• Culta, educada
• Mão paralítica
• Mulher distante

Cap. V :
 Ricardo Reis sonha casar-se com Marcenda, pp. 101-102
 (“Sobe melancolicamente (…) em contrário.”)
 Encontro no intervalo do teatro, p. 107
 Atração entre as duas personagens, p. 109
• Cap. VI:
• Conversa entre Marcenda e Ricardo Reis no Hotel Bragança, p. 121
• Jantam juntos no hotel, com o pai, Dr. Sampaio, p. 131

• Cap. XI: O primeiro beijo, pp. 239-241

John Everett Millais


“Não seríamos felizes.”

• Cap. XIII:

• Marcenda aparece no consultório de Ricardo Reis, p. 280

• Conversam sobre a importância do primeiro beijo

• Reis pede Marcenda em casamento e ela rejeita, p. 284


A morte do amor

John Everett Millais

Nota: Apesar de se mostrar interessada no médico, Marcenda nega a si própria o amor.


Conclusão
A mundividência da mulher é uma área por excelência da
“função moralizadora” (1) do autor. Refletir o universo feminino
do passado de 1936 à luz da contemporaneidade – a
sexualidade, a sabedoria prática, a desigualdade de direitos, a
função social – veicula a questionação de valores culturais
arquiconhecidos e a consequente inauguração e defesa de novas
“verdades” que emergem da ficção.
(1) LOURENÇO, Eduardo (1994), “Saramago, um teólogo no fio da navalha”.
In: Canto do Signo. Lisboa, Editorial Presença.
Marcenda é uma figura etérea e fantasmática de mão
paralítica que atrai Reis e o impele a pedi-la em casamento e
que se poderia perfilar na galeria de musas que o engenho
pessoano criou. Bela, distante, “ave transida de frio”, pálida,
incapaz de se entregar ao “espetáculo do mundo”.
Lídia foge ao arquétipo da musa silenciosa das odes (Silva,
1989) e está comprometida com o seu tempo, grangeia a
predileção do narrador, quase cético do seu despojamento
“incrível” e total abnegação. Por isso, solidário com os
oprimidos ou não protegidos da sorte, o narrador obriga a
refletir conduzindo-nos à interioridade dos mistérios
femininos e, consequentemente, a dignificar esta mulher na
sua peculiar forma de ser e de viver.
De igual modo na verosimilhança ficcional, mas num polo
oposto, o comportamento do Reis saramaguiano, eterno
contemplativo do “espetáculo do mundo”, é questionado na
sua ataraxia doentiamente fantasmática - uma sabedoria
ineficaz, porque não-vida. Incapaz de se definir e de agir, este
Ricardo Reis humanizado parece condenado à morte, uma vez
que o repto da vida lhe passa ao largo, deixando-o quase
incólume, no mar da sua apatia e indiferença.
Assim, na linha discursiva do mundo contido no romance O
Ano da Morte de Ricardo Reis, um terreno plural e sedutor
pela irreverência discursiva, impõe-se a reflexão sobre o que
é a vida e o amor e de como – enquanto “sábios” humanos –
os concebemos e vivemos.
De igual modo, a reflexão latente sobre a mundividência
feminina (a busca do prazer, a vivência plena da sexualidade,
a simplicidade e a inocência…) constitui um caminho
hermenêutico privilegiado que busca, certamente, como
refere Saramago, “não já tanto saber de onde vimos, mas
sobretudo quem somos” (2).

(2) SARAMAGO, José (1994). Cadernos de Lanzarote, Diário I.


Lisboa, Editorial Caminho.
BIBLIOGRAFIA

• Gouveia, Vanda (2016), “Lídia: a magnanimidade do amor em O Ano da Morte de Ricardo


Reis” (trabalho realizado no curso do Professor José Cândido de Oliveira Martins)

• Lourenço, Eduardo (1994), “Saramago, um teólogo no fio da navalha”. In: Canto do Signo.
Lisboa, Editorial Presença.

• Lucas, Fábio, “O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago”. In: Colóquio Letras, nº
120.

• Rebelo, Luís de Sousa, “José Saramago: O Ano da Morte de Ricardo Reis”. In: Colóquio
Letras, nº 120.

• Saramago, José (1983). Manual de Pintura e Caligrafia. Lisboa: Editorial Caminho.

• Saramago, José (1995). O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa: Editorial Caminho, 11ª
edição.

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