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Análise e interpretação do conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles.

INTRODUÇÃO
Nesta dissertação iremos analisar o conto “Venha ver o pôr do sol”, escrito por Lygia
Fagundes Telles e publicado em 1970 na coletânea Antes do Baile Verde. Lygia foi escritora,
romancista, contista e uma grande representante do movimento pós-modernista. O
pós-modernismo surgiu a partir dos anos 60 e tinha como principal característica a
combinação de várias tendências. Isso é relevante, pois veremos na produção contística de
Lygia uma mistura de perspectivas sobre uma mesma temática, como é o caso do amor.
Em “Venha ver o Pôr do Sol”, temos a história de Raquel e Ricardo, um casal de
ex-namorados. Ricardo, inconformado com o término do relacionamento, convida Raquel
para um último passeio, que será em um cemitério. Mesmo relutante com a ideia de estar em
um lugar inapropriado, Raquel aceita:
– Ver o pôr do sol? Ah, meu Deus…. Fabuloso, fabuloso! Me implora um último encontro, me
atormenta dias seguidos, me faz vir de longe par aesta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma!
E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério (TELLES, 1970)

Com o decorrer do passeio, temos o diálogo entre o ex-casal e começamos a entender


o motivo do término e vemos que Raquel está em outro relacionamento, com um homem rico,
o que causa ciúme e desconforto em Ricardo. Ao andarem pelo cemitério abandonado, Raquel
começa a se sentir desconfortável com o diálogo e com a ambientação, pedindo para ir
embora, pois já estava cansada. Mas Ricardo insiste em levá-la ao túmulo de sua prima que,
segundo ele, foi a única mulher que o amou. Ricardo a convida para entrar, e mesmo relutante
com o lugar macabro, Raquel entra e transita pelo lugar abandonado e mofado, lê as escrituras
e vê que a mulher jamais poderia ser amante de Ricardo, pois já faleceu há anos:
– Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça… – Antes da chama se apagar,
aproximou-a da inscrição na pedra. Leu em voz alta, lentamente: – Maria Emília, nascida em
vinte de mais de mil oitocentos e falecida… – Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel.
– Mas esta não poderia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…(TELLES,
1970)

Nesse momento, então, vemos que Ricardo, na verdade, queria se vingar de Raquel,
por conta do término que ela teve com ele para ficar com um homem mais rico e
principalmente, por tê-lo deixado. Ricardo guardou esse rancor durante muito tempo e
arquitetou todo o crime para deixá-la presa na catatumba, alegando que ela veria o pôr do sol
mais lindo de todos.
A partir da fábula do conto, podemos identificar que a narrativa se trata, portanto, de
uma relação amorosa fracassada, que despertou sentimento de raiva e vingança decorrente de
um ego ferido do protagonista Ricardo. Nesse sentido, a dissertação em questão irá tratar
sobre como Lygia Fagundes Telles construiu o relacionamento amoroso entre Raquel e
Ricardo a partir desses sentimentos mencionados.

A PAIXÃO DE RICARDO
Ricardo em diversos momentos da narrativa se mostra submisso a Raquel, sempre se
colocando em uma posição inferior à ex-namorada, o que indica ao leitor que Ricardo ainda
nutre sentimentos por Raquel; sentimento esse que entrou em colapso após o término e
desenvolveu sofrimento a Ricardo. Esse sofrimento pode estar relacionado ao ferimento de
sua identidade, como veremos a seguir.
Sigmund Freud (1856 - 1939) desenvolveu a ideia de que os seres humanos possuem
um instinto, sendo impulsivo e egocêntrico, conceituada no que ele intitula como o “id”, o
que nós podemos dizer que se resume na identidade do indivíduo, o que está em seu
inconsciente, ele é formado pelas pulsões e desejos inconscientes. Esse instinto pode estar
relacionado com a necessidade de Ricardo em ter o amor de Raquel ainda, mesmo ela o tendo
deixado por um homem mais rico. Essa insistência de Ricardo em ter um último encontro com
a amada, pode sugerir ao leitor de Lygia que Ricardo nutre não somente o ódio de se vingar de
Raquel por tê-la deixado, mas também um desejo de ainda tê-la por perto, para ser sua, haja
visto que ele a deixou presa em um lugar distante da sociedade para que ninguém a possa
ouvir:
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um
animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se
viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao
poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer
chamado. -Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira.(TELLES, 1970)

Essa ideia de pertencimento se constrói também a partir da ideia de “ego”, também


desenvolvida por Freud, que é uma estrutura que media os impulsos plenos do sujeito e o seu
mundo externo. A ideia central é que o “id” e o “ego”, o que o indivíduo pode e o que não
pode, se constrói a partir da criação da civilização. Freud então escreve O Mal-estar na
Civilização(1930) que sugere que o “superego”, que consiste no conjunto dos valores morais
e culturais foi construído para direcionar o “ego” e censurar o “id” para que o ser humano se
torne alguém dentro das moralidades sociais.
Em “Venha ver o Pôr do Sol” vemos Ricardo agindo impulsivamente, ativando,
portanto, seu “id” , sem considerar as determinações sociais, que deixar alguém preso em uma
catatumba não é nada moralmente aceito. Nesse sentido, cria-se o questionamento do leitor: o
que motivou Ricardo a deixar Raquel presa na catatumba? A amar tanto que deseja a
aprisionar em um lugar distante da sociedade? Se vingar por ela tê-lo deixado por um homem
mais rico? Esses questionamentos pedem uma análise sobre como o amor é representado em
“Venha Ver o Pôr do Sol” e como o objeto amado, Raquel, é tratado ao longo da narrativa
pelo o que ama, Ricardo.
Nesse aspecto, podemos introduzir a análise do aspecto psicológico das personagens e
como elas agem durante a narrativa. Enquanto Raquel se mostra como uma mulher, inocente,
interesseira e, sob o aspecto da análise literária, uma personagem plana-tipo, a personagem
Ricardo, se insere na característica de uma personagem plana com tendência redonda, ele é
imprevisível, a narrativa sugere que ele tenha se tornado um homem frustrado que está em um
estado, que segundo a psicanálise, se intitula como psicose, termo que define que o indivíduo
está agindo completamente pelo “id”:
“Na psicose, há uma primazia do id em suas manifestações subjetivas devido à fuga do ego em
relação ao mundo externo/social. Por isso, Freud (1924b/2011, p. 196) enfatiza que “a neurose
não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la”. (SILVA E
CASTRO, 2018, p. 149)

Além da análise psicológica, podemos analisar etimológicamente os nomes das


personagens. O nome Ricardo tem origem germânica e deriva da junção dos termos rick –
poderoso – e hard – forte, já o nome Raquel é de origem hebraica e designa “ovelha”,
remetendo à ideia de animal a ser sacrificado, que recebe o sofrimento sem se queixar. Isso
explica a relação entre homem-mulher e como é construída a narrativa para explicar a relação
amorosa entre o ex-casal que culminará na morte da mulher.

AMOR, POSSE E MORTE


No prefácio do livro A estrutura da bolha de sabão, Lygia, ao tentar achar uma
definição para o amor, define que esse sentimento é como uma bolha de sabão, não há uma
estrutura bem definida. Tendo em mente que a produção lygiana abrange sobre muitas
questões que tangem a subjetividade humana, entre elas está como as relações amorosas
demonstram o amor, segundo Paula:
Há na obra lygiana uma tendência a explorar as manifestações inconscientes, um mergulho
profundo nas vivências humanas com tudo o que elas comportam de conflitos e desencontros,
incluindo-se aí o amor como uma dessas vivências, o que constitui forte temática na ficção
lygiana. (ALVES, 2014, p. 22)
O amor representado em “Venha ver o pôr do sol” vemos a ausência de um amor
romântico socialmente idealizado, onde um ama ao outro incondicionalmente e de toda alma e
coração. A relação entre Ricardo e Raquel se constrói a partir de uma paixão de Ricardo não
correspondida, paixão esta que se torna um sofrimento, pois sua amada o deixou. Para Bataille
(1987) a intensidade do afeto entre amantes pode estender-se no âmbito da afinidade moral,
prolongando ou servindo como introdução à fusão física. Contudo, para quem experimenta tal
paixão, esta pode adquirir um significado mais intenso do que o simples desejo físico. É
importante lembrar que, apesar das promessas de felicidade que a acompanham, a paixão, em
sua fase inicial, introduz confusão e desordem.
Ricardo possui uma paixão venturosa que acarretou uma desordem tão violenta que a
felicidade em questão, antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é
comparável ao seu oposto, o sofrimento. Nesse sentido, Ricardo possui uma desordem
sentimental descrita na narrativa, ele ainda deseja ver Raquel uma última vez para possuí-la,
pois seu sofrimento é tanto que não pode aceitar perder sua amada. Nesse sentido, podemos
ver toda a ambiguidade desenvolvida na narrativa, a primeira, por exemplo, é a relação entre
riqueza e pobreza, o que desperta, inclusive, muita desordem sentimental a Ricardo, ele nãp
aceita que o namorado de Raquel seja tão rico assim.
Vemos a riqueza e a pobreza entrando em embate durante o conto: Ricardo é pobre e
claramente sente ódio pelo novo namorado de Raquel ser rico, claramente sentindo ódio ao
saber que ele a levaria para uma viagem ao Oriente:
“Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se
estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu,
envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.” (TELLES, 1970)

Além da ambiguidade entre riqueza e pobreza, temos também a ambiguidade entre


vida e morte. Durante toda a narrativa, podemos observar a utilização da construção da
ambientação que leva em conta a vida e a morte: o cemitério abandonado, onde os mortos
estão enterrados; as crianças, seres no começo da vida, se divertindo em uma ciranda. A morte
na produção contística em questão se constrói inclusive no título da obra: o sol simboliza a
vida, a luz e o começo do dia, já o pôr do sol simboliza o final, a morte. Ricardo deixa Raquel
presa alegando que a ex-namorada “ terá o pôr do sol mais belo do mundo” (TELLES, 1970)
A relação de morte se constrói inclusive sob a perspectiva da paixão de Ricardo, seu
amor por Raquel não tenha acabado, o que alimenta a suposição de que Ricardo teria
aprisionado Raquel em uma tentativa desesperada de preservar sua posse, que resulta na
sugestão de que ele construiu uma realidade alternativa, completamente delirante, onde a
história de amor entre eles perdurar eternamente.
A relação de amor, morte e posse se dá inclusive no pensamento de George Bataille
(1987), que afirma que a paixão nos envolve dessa maneira no sofrimento, pois,
essencialmente, é a busca por algo impossível e, superficialmente, uma incessante procura por
uma solução que está sujeita a condições imprevisíveis. Contudo, ela oferece ao sofrimento
fundamental uma perspectiva de alívio. Bataille, inclusive, afirma que a paixão de um ser
amado não implica a morte, mas buscar pela paixão desse objeto pode despertar o desejo de
matar a si mesmo, ou matá-lo:
As chances de sofrer são tão grandes que só o sofrimento revela a inteira significação do ser
amado. A posse do ser amado não significa a morte; ao contrário, a sua busca implica a morte.
Se o amante não pode possuir o ser amado, algumas vezes pensa em matá-lo: muitas vezes ele
preferiria matar a perdê-lo. (BATAILLE, 1987, p. 15)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Infere-se, portanto, que uma das interpretações de “Venha Ver o Pôr do Sol” é sobre a
suposição que trata sobre a relação entre vida e morte e como esse sentimento de amor não
correspondido - ou a paixão enlouquecedora, defendida por Bataille - afeta a subjetividade
humana, mais especificamente, a psiquê de Ricardo, que ao entrar em estado de transe, após
perder seu relacionamento com Raquel, decide consumar esse amor, mesmo não tendo ainda o
objeto amado vivo.
Nesse sentido, podemos supor que o desejo Ricardo se constrói a partir do desejo de
ainda possuir sua amada. Ele age a partir do que Freud intitula como as pulsões de morte que
seriam definidas como traumáticas, inicialmente voltadas para o interior, tendendo à
autodestruição, e secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se então sob a
forma da pulsão de agressão ou de destruição:
A pulsão de morte era entendida por Freud (1920/1996b) como uma tendência que levaria à
eliminação da estimulação do organismo. Assim, o trabalho dessa pulsão teria como objetivo a
descarga, a falta do novo, a falta de vida, ou seja, a morte. Então, o organismo não teria em sua
base constitucional o desejo pela mudança, pois estaria fadado a buscar sempre estados
anteriores. (AZEVEDO E NETO, 2015, p. 70)

Ricardo age impulsivamente porque seu sofrimento por não ter um amor não
correspondido é tanto que não consegue conciliar essa paixão a perdê-la para um homem que
é mais rico que ele, então ele prefere matá-la do que perder sua amada para outro.
A construção da relação amorosa entre ambos se constrói a partir de uma dependência
emocional de Ricardo, seu egoísmo e narcisismo, que submetem Raquel a uma armadilha, por
não corresponder o amor de Ricardo, ela merece uma punição, por deixá-lo, ela merece a
morte.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização, Editora Imago, Londres, 1930.

A construção do conceito de psicose de Freud a Lacan e suas implicações na prática clínica Beatriz de
S. Silva1 Júlio Eduardo de Castro2
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/analytica/v7n13/02.pdf

Battaille, o erotismo

https://revistacrescer.globo.com/guia-de-nomes/raquel/#:~:text=Sua%20etimologia%20remonta%20ao
%20termo,um%20significado%20espiritual%20e%20simb%C3%B3lico.

http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rs/v15n1/08.pdf

file:///G:/Meu%20Drive/INICIA%C3%87%C3%83O%20CIENT%C3%8DFICA/IMPASSES%20E%
20SA%C3%8DDAS%20%20%20%20O%20AMOR%20EM%20CONTOS%20DE%20LYGIA%20F
AGUNDES%20TELLES.pdf

file:///C:/Users/letic/Downloads/RESENHA_DA_OBRA_O_EROTISMO_DE_GEORGES_BATAILL
E.pdf

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