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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE LETRAS E LINGUÍSTICA

TITULO
Emanuelle Amaral Almeida Marçal

“(…) a literatura pode muito pouco. Não vamos embarcar em ilusões, no


otimismo. Ajudar a humanidade? Não sei se a humanidade quer ser ajudada. Mas
a missão do escritor, se existe alguma, é não se calar, que deveria ser a missão de
todas as consciências.” (SARAMAGO, 2010, s. p)

Apenas a arte literária é capaz de nos proporcionar um retrato da História feito


através da sincronia entre a realidade e a ficção, agindo sob a construção da memória a
literatura é um meio de conhecimento entre épocas. A pesquisadora de José Saramago,
Beatriz Berrini, em Ler Saramago: O romance, confirma essa afirmativa ao esclarecer
que “ao diálogo História/Ficção soma-se outro: Passado/ Presente. O resultado que se
objectiva é a criação de um mundo completo, nem que para tanto necessário seja
inventar ou, se quiser, corrigir os factos (1998, p. 19).”

José Saramago, um ladrão de palavras, acolhe de maneira única e singular o


recurso da intertextualidade e ao criar um laço com outras obras nos escreve uma leitura
do mundo que nasce por meio de sua leitura pessoal de outros textos, contudo não se
trata da apropriação ou distorção de outras obras ou até mesmo de fantasias acerca da
realidade, e sim, como Ana Paula Arnaut explica em seu estudo dobre o escritor em
Memorial do convento: história, ficção e ideologia:

“(...) História é neste universo saramaguiano submetida a um peculiar


tratamento. Não se trata, com efeito, de reproduzir fielmente os inabaláveis
factos da História mas, pelo contrário, de aproveitar acontecimentos e figuras
que, mesclados com a imaginação (re)criadora do autor, viabilizam a
construção de uma História marginal à versão oficial.” (ARNAUT, 1996,
p.58)

Em O ano da morte de Ricardo Reis, Saramago serve-se do personagem criado


por seu conterrâneo Fernando Pessoa, esse por sua vez, autor completo e único, Pessoa
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poderia facilmente compartilhar do título dado ao autor austríaco-judeu Stefan Zweig de


caçador de almas. No entanto, enquanto Zweig passa sua vida em busca de almas
gêmeas para nelas se expressar, como a rainha decapitada Maria Antonieta, Pessoa vai
além e constrói seus próprios símiles tais como Alberto Caeiro, Bernardo Soares,
Álvaro de Campos, Ricardo Reis, entre outros tantos, de maneira com que sua própria
identidade se perde entre seus personagens, seu estado corresponde, outra vez, ao do
escritor judeu:

“Nada mais distante de mim do que me colocar em primeiro lugar, salvo


como um palestrante que faz uma apresentação com dispositivos; o tempo
fornece as imagens, eu me encarrego das palavras.” (ZWEIG, 2014, p.7).

Ricardo Reis, uma das mais de setenta faces de Pessoa, médico, monárquico que busca
exílio no Brasil afim de fugir dos movimentos revolucionários que eclodiam na
Europa, discípulo de Alberto Caeiro, como todos nós, Reis é autor de uma poesia que
busca o equilíbrio do espirito clássico, conciliando o epicurismos com o estoicismo,
sua poesia cerebral pautada nos ideias Carpe Diem busca pela tranquilidade da alma e
aceitação dos fatos e das regras tais como são, construído em cima desses princípios o
heterônimo de Pessoa assume um posicionamento quase que ausente em relação ao
mundo.
O ano da morte de Ricardo Reis tem sua primeira publicação em 1984, o tempo
ficcional da obra é 1936, período referente ao governo totalitarista de Salazar em
Portugal, fato esse que não passa despercebido aos olhos de Saramago e durante o
desenvolver da narrativa a influência da ditadura na vida dos personagens revela-se
abundantemente.

Após tomar conhecimento do falecimento de Fernando Pessoa, Ricardo Reis torna a


Lisboa para prestar condolências, no entanto esse não é o único motivo de seu retorno
para as terras portuguesas como ele mesmo confessa ao seu criador e amigo que se
apresenta para ele em espírito,

“(...) Houve ainda uma outra razão para este meu regresso, essa mais egoísta,
é que em Novembro rebentou no Brasil uma revolução, muitas mortes, muita
gente presa, temi que a situação viesse a piorar, estava indeciso, parto, não
parto, mas depois chegou o telegrama, aí decidi-me, pronunciei-me, como
disse o outro, Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil
novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora
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foge do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também, Em


rigor, eu não fugi do Brasil, e talvez que ainda lá estivesse se você não tem
morrido, (...), Aqui em Portugal também tem havido umas revoluções,
Chegaram-me lá as notícias, Você continua monárquico, Continuo, Sem rei,
Pode-se ser monárquico e não querer um rei, É esse o seu caso, É, Boa
contradição, (...).” (SARAMAGO, 2017, p58)

Essa revelação de Reis constata outro aspecto de sua personalidade que Saramago
destaca mais adiante, o médico poeta é um “espectador do espetáculo do mundo”. Ao
desembarcar em Lisboa, Reis não reconhece sua própria pátria e busca compreender a
situação política e social de seu país por meio dos jornais que articulam sobre um
Portugal irreal e idealizada e tenta transformar fake news em verdades. O perfil niilista
de Ricardo Reis o torna alheio aos acontecimentos do mundo e o constante estado de
fuga é seu destino ser para sempre o exilado do mundo como ele almeja em diversos de
seus poemas, como este:
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos. Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso.
(PESSOA, 1946, p142)

Esse heterônimo de Fernando Pessoa é um dos únicos a evocarem o feminino em seus


versos, inúmeras de suas odes são dedicadas a Lídia, personagem que ganha forma na
obra de Saramago, aqui Lídia é criada do hotel em que Reis se hospeda em Lisboa, de
personalidade autentica e cheia de vida, “ “Como se chama, e ela respondeu, Lídia,
senhor doutor”, foi assim o primeiro encontro de Lídia – criada e pessoa verdadeira, de
carne e osso, e Ricardo Reis, que se alojou no hotel Bragança em Lisboa. “Ele poeta, ela
por acaso Lídia (...)”. Essa mulher que desperta interesse imediato do doutor é irmã de
um integrante da marinha e opositor ao governo, diante disso Lídia servirá de liame
entre Reis e o outro lado da política: os revolucionários. Essa mulher coloca a prova
todos os ideais de Ricardo Reis, vivendo o amor como o sente, sem temer ou evitar a
dor, representante da liberdade, ela é quem apresenta a vida a Reis antes de sua morte.
Importante dizer, que Lídia aqui está também como representação da face oculta de
Lisboa, o que não pode ser visto ou noticiada pelos jornais, por efeito da opressão e
censura do governo fascista.
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Por outro lado, temos Marcenda, segunda personagem feminina do romance,


essa escrita inteiramente por José Saramago, filha de Doutor Sampaio um aliado do
governo salazarista, a moça apesar ser o liame a política de direita, é plausível dizer que
atua com mais ênfase como um reflexo de Reis. A menina que chama a atenção do
médico por possuir a mão esquerda paralítica, que apesar de morta, demonstra estar
mais vivaz que o restante do seu corpo, nos permite traçar uma metáfora ao aspecto dual
da personalidade de Ricardo Reis, que apesar do constante estado de fuga e efemeridade
das revoluções e suas inclinações de direita, seu lado emocional deleita-se na luta contra
a opressão, Marcenda e sua mão morta retratam a impossibilidade de agir de Reis e de
grande parte da sociedade portuguesa perante a ditadura. “Marcenda é aquela que deve
murchar, aquela a quem falta a eternidade e que está fadada a ser mortal (SILVA,
p.183)”, escreve a professora de literatura, Teresa Cristina Cerdeira da Silva em José
Saramago. Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses.

ARNAUT, Ana Paula. Memorial do convento: história, ficção e ideologia. Coimbra:


Fora do Texto, 1996

BERRINI, Beatriz. Ler Saramago: O romance. Lisboa. Editorial Caminho, 1998.

PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Lisboa, Ática, 1946 (imp. 1994).

SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 3° edição – São Paulo:


Companhia das Letras, 2017.

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago. Entre a história e a ficção: uma
saga de portugueses, Lisboa: Dom Quixote, 1989.

ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.


Tradução de Kristina Michahelles e prefácio de Alberto Dines.

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