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Sujeito: a donzela (“louçã”, “velida”, “louda”, “leda”, “delgada”, “fremosa”…).

Objecto: o amigo, ausente, muitas vezes traidor, mentiroso.

Relacionamento amoroso: sentimento espontâneo e sincero.

Ambientes presenciados:

A fonte e o rio
A praia
O campo/o monte
A ermida
A casa

Estados sentimentais da donzela:

Timidez
Tristeza
Pudor (vergonha de mostrar o corpo)
Inexperiência amorosa
Alegria e orgulho em ser amada
Ansiedade
Saudade
Impaciência e ciúme
Crueldade e vingança
Compaixão
Arrependimento
Reconciliação

Características formais:

Paralelismo:

Para puder existir o paralelismo perfeito é necessário que, o segundo verso da 1ª estrofe, seja
o primeiro verso da 3ª e, o segundo verso da 2ª estrofe, seja o primeiro verso da 4ª.

Refrão (normalmente):

Repetição do mesmo ou mesmos versos geralmente no fim de cada estrofe.


Prólogo:

Conceito de história: imparcialidade, verdade, recusa da “mundanal afeiçom”.


“Clara certidom da verdade”
“Simprez verdade”
“Posta de parte toda a afeição”
Método de trabalho: pesquisa, estudo, comparação de fontes.

Afirmação da consciência colectiva.

Fernão Lopes narra c/ detalhe e vivacidade circulação e sensações da “arraia-miúda”.


Exaltação da população à volta do paço em defesa do “Mestre”.
A alegria e o entusiasmo quando o viram.
O sofrimento e as preces desesperadas a Deus durante o cerco de Lisboa.

A prosa de Fernão Lopes:

O visualismo
A minúcia descritiva
O tom coloquial e a comunicação com o leitor
Preferência pela acção.
Sujeito: o trovador que sofre de amor.

Objecto: a dona; a “senhor” – mulher estereotipada com qualidades físicas (bela,


fermosa, com o corpo delgado); qualidades morais (bondosa, leal, “comprida
bem”); qualidades sociais (“bom sem”, “mui comunal”, “falar mui bem”), para
além de ser cheia de “prez”, “loor”, “grã valor”, enfim, a mulher ideal. A melhor.

Ambientes presenciados:

Natureza convencional (primavera, flores de maio, cântico do rouxinol).


Ambiente cortesão.

Relacionamento amoroso/Estamos sentimentais do trovador:

Sofrimento amoroso
Guardar a “mesura” (é um formalismo que se conhece com a delicadeza de
sentimentos, que devem ser expressos de forma comedida).
Respeitar a sua “senhor”
Prestar vassalagem (consiste numa submissão de vontades e num compromisso de
serviços (relação amorosa à relação entre vassalo e suserano, na sociedade feudal)).
Vassalagem amorosa do sujeito que diz “ensandecer” de amor – “coita de amor”.

Características:

Influência provençal.
Voz masculina (o trovador).
Ambiente cortesão – a corte.
Sujeito: 1º ou 3º pessoas identificadas ou não.

Objecto: Pessoa não identificada no caso das cantigas de escárnio; a pessoa já é


identificada no caso das cantigas de maldizer.

Relacionamento entre sujeito e objecto: crítico, tem em vista denunciar defeitos.

Objectivo destas composições: a sátira: pessoal; social (moral e religiosa); política.

Características das cantigas de escárnio:

Ambíguas (critica encoberta)


Irónicas, humorísticas

Características das cantigas de maldizer:

Não ambíguas (critica descoberta, explícita)


Insultuosas, cómicas
“Ano da morte de Ricardo Reis” - José Saramago
Nesta obra, Saramago ficcionaliza o último período de vida de Ricardo Reis, heterónimo pessoano e recria uma época histórica
através da descrição de tipo realista.

O autor faz regressar Ricardo Reis a Portugal após a morte de Fernando Pessoa, em 1936, durante a guerra civil de Espanha. Reis vem
do Brasil em finais de 1935 (tomou conhecimento da morte de Pessoa através de um telegrama de um outro heterónimo, Álvaro de Campos) e
durante a maior parte do ano de 1936 esboça relações pessoais plausíveis, como os amores Lídia (musa do heterónimo) e a amizade com o
fantasma de Pessoa, que emerge de vez em quando para conversar com Reis, e que o leva consigo no final do romance, para um
desaparecimento total (a morte).

Os encontros entre Reis e Pessoa definem a estrutura, não só ficcional, do texto, mas também a de um encontro social entre o texto,
o seu leitor e a história. Ricardo é uma pessoa moderna que escreve odes clássicas, um homem que vive fora da sociedade do seu tempo,
obcecado pela fuga do tempo e pela busca dos prazeres moderados, pelo amor plácido e pelo discurso inteligente do mundo e da sensação.
O leitor descobre que Reis vive uma vida real enquanto personagem de ficção, mas descobre-o só depois de Pessoa ter morrido, portanto, era
alguém que só teve existência no plano da ficção existencial desenvolvida pela obra de Saramago.

O cânone de Saramago: a realidade como invenção passada e a invenção como realidade a vir. Para Saramago, a ficção parece ser
uma leitura crítica da realidade.

Deambulação geográfica e viagem literária


Em Lisboa, Ricardo Reis ocupa os seus dias com passeios de revisitação e descoberta. A descrição da cidade evoca constantemente a
poesia de Cesário Verde e a prosa de Bernardo Soares. Tal como eles, Ricardo é um ser em movimento, um observador acidental dos
elementos da realidade, que olha por vezes de forma impressionista.

A deambulação de Reis efetua-se a partir do Hotel Bragança e o seu polo de atração que é a Praça de Luís de Camões. As estátuas
impõem a presença física dos escritores, representam a sua imortalidade e funcionam como elemento que suscita a reflexão: sobre a língua e
sobre as imagens e representações que se fazem dos escritores e da sua vida. O narrador afirma a sua presença: é a sua voz que a partir dos
elementos observados por Reis, tece comentários e juízos de valor, ora com ironia ora em tom sentencioso. O núcleo citadino que Reis
percorre é comparado a um labirinto, cujo centro é a estátua de Camões. Esta representa segundo o modelo do herói romanesco do século XIX
– D’Artagnan, Os Três Mosqueteiros. A comparação estabelecida entre Reis e Camões leva à reflexão sobre a imortalidade dos escritores: a
morte e a passagem do tempo que dilui a sua dimensão pessoal.

Representações do amor
Marcenda Lídia
Na primeira noite em Portugal, ao jantar, no Hotel Bragança, Reis desenvolve uma relação íntima com esta personagem, possui uma
Ricardo Reis vê Marcenda Sampaio, que, com o pai, vem dimensão paródica e subversiva. A criada de hotel, a mulher de baixa
regularmente a Lisboa para consultar o médico. Reis fica condição social, mas sensualmente apelativa, tem o nome da sua musa
“fascinado” pela jovem, “sente um arrepio” quando descobre a ficcional presente nos poemas pessoanos. Reis dá-se conta da ironia da
sua deficiência física. Marcenda é caracterizada por ser: situação.
 A mulher idealizada ainda que fisicamente delibada;
 Civilizada;  Educação rudimentar;
 Inteligente, culta. Não é ingénua.  Corajosa e ingénua;
 Simboliza a fragilidade;  Ativa e livre, simboliza a esperança no futuro;
 Está enclausurada afetiva e socialmente;  Mulher complexa com sentido crítico e consciência social;
 Não está dependente de ninguém, como a Lídia.  Não faz planos, é espontânea;
 A condição de semi-analfabetista não esconde a sua inteligência,
Fernando Pessoa comenta os amores de Reis, interroga-o, porém, as barreiras sociais impedem a perspetiva de um futuro com
apontando a diferença entre o Reis do passado (a sua ficção Ricardo Reis.
literária) e o do presente dividido entre duas mulheres.

Representações do século XX
O espaço da cidade, o tempo histórico e os acontecimentos políticos

 Lisboa é uma cidade fantasmagórica, sombria, opressiva, parece uma prisão, uma sensação de claustrofobia. Os adjetivos, advérbios e
verbos são utilizados para descrever uma cidade sob chuva, soturna, melancólica, sem vida.
 O mau tempo surge como metáfora do tempo histórico: o ano é 1936, 2ª Guerra Mundial, regimes fascistas e nazis, Guerra Civil
Espanhola e regime do Estado Novo. Recorre-se à personificação, à hipálage e à metáfora para evidenciar a carga negativa da cidade.
Sublinha-se o uso frequente da cor cinzento-morte.
 É uma cidade marítima, o mar está explicitamente referido no início e no final da obra. O rio é o pano de fundo do desenvolvimento da
ação: Reis aloja-se num hotel perto do rio e vai morar para um local de onde o comtempla.
 Também é uma cidade de memórias: lugares e estátuas que remetem um passado e contrastam com o tempo presente de uma “cidade
cinzenta”, onde chove sempre e a população é pobre, conservadora e oprimida, facilmente manipulada pela propaganda do regime.
 Cidade de estátuas, nomeadamente a de Camões e do Adamastor. Relacionam-se com a dimensão intertextualidade da obra, no que
concerne às referências explícitas ou implícitas às obras de escritores portugueses, mas também á dimensão simbólica:
 Camões representa o passado glorioso que o Estado Novo quer aproveitar propagandisticamente, sendo, para Reis, a figura
máxima da literatura portuguesa. Representa a nação;
 O Adamastor remete para um passado épico, agora impossível porque o presente é opressor, mas também para a história de um
amor impossível (por Tétis) e para a ideia da irrealizável felicidade.

Intertextualidade: Luís de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa


A intertextualidade é a presença explícita ou implícita de textos de outros autores.

 Intertextualidade com Pessoa: surge logo no título “Ano da morte de Ricardo Reis”, heterónimo pessoano. Saramago transforma Pessoa
numa personagem ficcional, tendo morrido a 30/10/1935, usufrui de 9 meses para circular no mundo dos mortos (dorme no cemitério
dos Prazeres) e dos vivos. Os diálogos entre Reis e Pessoa percorrem os temas principais da obra pessoana – a questão da identidade, a
oposição pensar/sentir, a reflexão sobre a existência, a morte, a criação poética.
 Intertextualidade com Camões: presente na sua estátua e na do Adamastor; Símbolo do passado glorioso de um Portugal empreendedor
e universalista, que imortalizou uma epopeia, contrapõe-se ao presente medíocre e opressor; Primeira e última frase da obra: “Aqui o
mar acaba e a terra principia” – A primeira fase da obra recupera, alterando-o, um verso d’ Os Lusíadas de Camões: “Onde a terra se
acaba e o mar começa”. Ricardo Reis desembarca em Lisboa no dia 29 de dezembro de 1935 e a cidade a que regressa, é uma cidade
fantasmagórica, sombria, opressiva, parece uma prisão, sensação de claustrofobia; A frase final da obra instaura um efeito de
circularidade relativamente ao início do romance, existindo uma relação de espelho entre as frases inicial e final. Contudo, a alteração do
tempo do 1º verbo “acaba”/“acabou” e a mudança do 2º verbo de “principia” para “espera” instauram a ideia de processo em curso,
estando concluída uma fase e começando outra que se prolongará no tempo.
 Intertextualidade com Cesário Verde: revela-se nas descrições de Lisboa; Reis apreende a realidade através das sensações e as
descrições, tem por vezes contornos impressionistas; também como Cesário deambula pela cidade asfixiante e opressora.
 Motivo literário e simbólico é também o da referência de um livro que Reis trouxe da biblioteca do barco de Herbert Quain, The God Of
The Labyrinth. Reis nunca chegou a terminar a leitura deste livro e leva-o consigo quando Pessoa o vem procurar para que abalem juntos
para os territórios da morte, numa alegoria difusa: quer da identidade e perda da criação poética, quer da identificação relativa da galáxia
pessoana, quer do próprio ato genérico e totalizador da criação literária. “Deixo o mundo aliviado de um enigma”, enigma cujo traçado a
existência do livro na ficção afinal fundou. No final da obra, Reis mostra sinais de já estar a morrer, como comprova o facto de não
conseguir ler. O livro inacabado acompanhá-los-á, sendo símbolo da obra pessoana – percurso num labirinto em busca do enigma do ser.
O nome Herbert Quain constata um jogo com a pronúncia portuguesa: o apelido Quain parecido a “quem” e em formulação interrogativa,
relaciona-se com pessoas, neste caso a pessoa é o poeta ortónimo, Pessoa. O labirinto está ligado ao “enigma”, elemento relevante de
uma leitura hermenêutica da obra, assim como um problema ficcional da personalidade de Reis, por Pessoa e Saramago. O labirinto que
percorria, na sua deambulação por Lisboa, fazia-o sentir solitário.

Linguagem, Estilo e Estrutura


A obra compõe-se em 19 capítulos, não numerados e apresenta um efeito de circularidade, tendo em conta a primeira e última frase
da obra. A ação desenvolve-se cronologicamente em duas linhas estruturantes centradas no protagonista: a representação do tempo
histórico e os últimos 8 meses de vida de Reis. A personagem tem eixos narrativos com personagens secundárias: eixo amoroso com Lídia
e Marcenda; eixo da alção literária: Pessoa, Camões, Adamastor; eixo da ação histórica: Salazar, Hitler, Mussolini, entre outros.
O estilo caracteriza-se pela fluidez e pelo tom oralizante, sustentados pelo uso inovador da pontuação. O autor dá um valor
importante ao ponto final e à vírgula. Estes são utilizados em conjunção com a letra maiúscula para demarcar falas das personagens.
Dispensando-se os pontos de interrogação e de exclamação, o sentido do discurso constrói-se pela entoação, ganha ritmo, fluindo
como emissão discursiva de uma única voz, a do narrador, que gere a reprodução do discurso no discurso.
Luís de Camões, Os Lusíadas

Síntese da unidade
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Renascimento
• Renovação cultural e artística
• Reinvenção das formas artísticas,
com base numa perspetiva naturalista
e humanista
• Interesse pela arte e cultura da
Antiguidade Clássica
Contextualização
histórico-literária
(século XVI)
Classicismo
• Recuperação de figuras e temas
mitológicos
• Gosto pela harmonia e simetria
• Entendimento do corpo humano
como medida da arte
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Luís de Camões,
Os Lusíadas

Epopeia
Género de texto
da tradição literária

Forma Conteúdo Estilo


• Poema narrativo • Exaltação de um • Estilo solene /
extenso acontecimento memorável e elevado
extraordinário, com interesse
nacional ou universal
• Visão heroica do mundo
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

• 10 cantos, com número variável de estrofes

Estrutura
• Estrutura estrófica: oitavas
externa

• Estrutura métrica: decassílabo


(Vós/ po/de/ro/so/ rei/ cu/jo al/to im/pé[rio])

(Elisões)
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

• Estrutura rimática das estrofes:


Estrutura – Esquema rimático: abababcc
externa – Tipos de rima: rima cruzada nos seis primeiros
versos e emparelhada nos dois últimos

Quão doce é o louvor e a justa glória a


Dos próprios feitos, quando são soados! b
Qualquer nobre trabalha que em memória a
Vença ou iguale os grandes já passados. b
Rima
cruzada
As envejas da ilustre e alheia história a
Fazem mil vezes feitos sublimados. b
Quem valerosas obras exercita, c Rima
Louvor alheio muito o esperta e incita. c emparelhada
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Estrutura interna

Proposição Invocação Dedicatória Narração

Explicitação do Pedido de Oferecimento Relato da ação,


propósito e do inspiração às da epopeia a iniciada in media re,
assunto da obra ninfas do Tejo D. Sebastião em quatro planos
interligados
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Epopeia Os Lusíadas

Assunto

Exaltação de um acontecimento memorável e extraordinário, com


interesse nacional ou universal  a viagem de Vasco de Gama e dos
navegadores portugueses até à Índia, que constitui a ação central da
epopeia

Visão heroica dos lusitanos, cuja coragem


possibilitou dobrar o Cabo das Tormentas e
descobrir o caminho marítimo para a Índia
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

A viagem de Vasco da Gama

Mapa-mundi de Cantino, 1502 [adap.]


Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Estrutura interna

Planos da ação

Plano Plano Plano da História Plano das reflexões


da viagem mitológico de Portugal do poeta

Viagem de Vasco Articulado com Encaixado no Reflexões a


da Gama à Índia o plano da plano da viagem propósito dos
Ex.: Cantos I, II, viagem Ex.: Cantos III, IV, factos narrados
IV, V, VI, VII, VIII, Ex.: Cantos I, II, VIII, X Ex.: geralmente
IX, X VI, VIII, IX, X em final de canto
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Mitificação do herói
• Exaltação das características do povo português que lhe conferem o estatuto
de herói: coragem, ousadia, patriotismo, espírito de sacrifício, fé em Deus

• Comparação dos portugueses com os heróis e deuses da Antiguidade Clássica


(e sua superação)

• Ilha dos Amores: recompensa dos portugueses (comunhão com o divino;


acesso ao conhecimento)

Superação dos modelos antigos


Ascensão ao estatuto de heróis

Imortalização / Divinização
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Fragilidade da Desprezo
Desvalorização da vida humana pelas artes e
arte / Exortações pelas letras
a D. Sebastião
Reflexões
do poeta Queixas do poeta /
Imortalização (tom antiépico) critérios de seleção
do nome dos merecedores
do canto
Poder
do dinheiro
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Reflexões do poeta (tom antiépico)

Fragilidade da vida • Consciencialização do carácter terreno/mortal/


humana efémero da vida humana e da pequenez e fraqueza
(I, 105-106) do ser humano (em oposição à força dos perigos
envolventes)

Desprezo pelas • Crítica à falta de cultura dos portugueses, que leva à


artes e pelas letras desvalorização da arte
(V, 92-100) • Constatação de que a ausência de quem divulgue
literariamente os feitos heroicos levará ao
desaparecimento dos heróis
• Censura ao facto de os portugueses serem
dominados pela austeridade, pela rudeza e pela falta
de “engenho”
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Reflexões do poeta (tom antiépico)

Queixas do poeta • Expressão dos infortúnios pessoais (vida de perigos


/ Critérios de diversos, de guerras, de viagens atribuladas por mar
seleção dos e por terra, errância, pobreza, desterro,
merecedores do incompreensão por parte dos contemporâneos)
• Apresentação de critérios de seleção dos que
canto (VII, 78-87)
merecem e dos que não merecem ser cantados

Poder do dinheiro • Crítica aos efeitos gerados pela ambição do dinheiro


(VIII, 96-99) (rendição de fortalezas, transformação de nobres em
pessoas vis, promoção da deslealdade, corrupção do
que é puro, deturpação da justiça e da ciência)
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Reflexões do poeta (tom antiépico)

Imortalização do • Considerações sobre o caminho a percorrer para


nome (IX, 88-95) alcançar a fama/imortalidade (renúncia ao ócio, à
cobiça, à ambição desmedida e à tirania; promoção
da justiça e igualdade, da defesa da fé cristã e da
pátria)

Desvalorização da • Desalento face a uma pátria decadente que


arte/Exortações a despreza as artes e menospreza a obra do próprio
D. Sebastião Camões
(X, 145-156) • Apelo a D. Sebastião para liderar Portugal na
realização de novos feitos gloriosos
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Plano da Plano da Plano da Plano das


viagem mitologia História de Portugal reflexões do poeta
•plano relativo à •plano protago- •plano encaixado no •plano que se encontra
viagem de Vasco nizado pelos plano da viagem, que presente em quase to-
da Gama à Índia, deuses do consiste na narração dos os finais de canto
que representa a Olimpo e por da História de •consiste na interrup-
ação central da outros seres Portugal: ção da narrativa para
epopeia mitológicos - por Vasco da Gama apresentar as reflexões
•ação iniciada •geralmente, ao rei de Melinde do poeta a propósito
in media re surge articulado/ (analepse) dos factos narrados
(quando se inicia alternado com o - por Paulo da Gama (fragilidade da vida
a narração, a plano da viagem ao Catual (analepse) humana, desprezo
armada portu- - por Júpiter, no pelas artes e pelas
guesa já se Consílio dos deuses letras, valor da glória,
encontra a meio (profecia) queixa dos infortúnios
da viagem) - pelo Adamastor aos pessoais, poder do
nautas (prolepse), ouro, imortalização do
- por uma ninfa aos nome, decadência da
nautas pátria).
- por Tétis a Vasco da
Gama (prolepses) Voltar
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Imaginário épico
Canto I Canto IX Canto X
Sublimidade do canto Mitificação do herói Mitificação do herói
(canto dos feitos gloriosos (estatuto de herói (acesso ao
dos portugueses; tom épico recompensado com a conhecimento interdito
para engrandecer os Ilha dos Amores) aos homens através da
lusitanos) visão da Máquina do
Mundo)
Constituição da matéria épica
(os feitos gloriosos dos
portugueses bélicos e
náuticos; a viagem de Vasco
da Gama e a História de
Portugal; a superioridade
dos portugueses
relativamente aos heróis
Voltar
clássicos)
Luís de Camões, Os Lusíadas – Síntese da unidade

Reflexões do poeta
Canto I Canto V Canto VII Canto VIII Canto IX Canto X

Tentativa de Narração das Desembarque Última Desembarque Embarque dos


destruição peripécias dos dos nautas intervenção dos nautas na portugueses na
dos Portu- nautas, desde na Índia e de Baco, Ilha dos Ilha dos
gueses e a partida de primeiras traição e Amores e sua Amores e
chegada Lisboa até à diligências suborno do união com as regresso a
destes a chegada a Catual ninfas Lisboa
Mombaça Melinde

Reflexão Reflexão Reflexão Reflexão Reflexão Lamentação


do poeta do poeta do poeta do poeta do poeta do poeta
(fragilidade (desprezo (queixa dos (poder do (imortalização (desvalorização
da vida pelas artes infortúnios; dinheiro) do nome) da arte) e
humana) e pelas letras) critérios de exortações
seleção dos que a D. Sebastião
merecem ser
cantados)
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Balleteatro Escola Profissional Ano letivo 2014/2015

Índice

Frei Luís de Sousa

Contextualização histórica e literária do Romantismo ............................................. 2

Frei Luís de Sousa, Almeida Garrett ............................................................................... 5

Sugestão de análise Frei Luís de Sousa....................................................................... 51

1. Contexto Histórico ...................................................................................................... 51

2. Espaço Físico, Social e Psicológico ....................................................................... 51

3. Tempo Cronológico, Simbólico e Psicológico .................................................... 53

4. Caracterização das Personagens ........................................................................... 54

5. Elementos Trágicos .................................................................................................... 55

6. Características do drama romântico presentes ............................................... 56

7. Sebastianismo .............................................................................................................. 57

8. Linguagem e Estilo ..................................................................................................... 59

Professora: Filipa Machado Português 11.º ano Módulo 5


1
Balleteatro Escola Profissional Ano letivo 2014/2015

CONTEXTUALIZAÇÃO HIS TÓRICA E LITERÁRIA D O


ROMANTISMO

O termo romantismo é de origem inglesa seiscentista ("romantic") e deriva


do substantivo francês "romaunt", que designava os romances medievais de
aventuras. No final do século XVIII, Letourneur e Rousseau, filósofo da revolução
francesa, adotaram este termo, fazendo a distinção entre "romantique" (romântico)
e "romanesque" (romance). A palavra rapidamente se difundiu pelas restantes
culturas europeias, originando a oposição entre romântico e clássico.
Assim, o Romantismo representa um movimento literário e artístico que
surgiu na cultura europeia nos finais do século XVIII, num contexto de grande
insegurança e de necessidade de exaltação dos valores nacionais, devido às
Invasões Francesas. A tentativa de hegemonia do poder napoleónico fez a
Europa despertar para os valores nacionais e procurar a liberdade plena:
política, religiosa, cultural e literária.
Em Inglaterra, este movimento literário difundiu-se através de nomes como
William Blake, William Wordsworth, Lord Byron ou o escocês Walter Scott. Em
França, o Romantismo impôs-se no final da década de 1820 com Victor Hugo,
Chateaubriand e o importante contributo de Madame de Staël. Na Alemanha, a
publicação da peça dramática Sturm und Drang de Klinger e a incontornável obra
de Goethe lançaram as bases deste movimento estético-literário.
O ideário romântico teve expressão nas várias demonstrações artísticas,
onde imperavam temas dramático-sentimentais: na poesia, no teatro, no romance
histórico, na pintura (Delacroix, Goya e Constable), na escultura e na música
(Shubert, Mendelssohn, Wagner e Chopin). Na arte romântica, a paisagem já não
era um cenário, mas um meio de expressão. O Romantismo também se manifestou
na sociedade civil, dando eco aos ideais revolucionários burgueses que advogavam
uma maior intervenção do povo no plano político. Ao exaltarem os valores
populares e a cultura de raízes nacionais, os românticos colocaram a burguesia
num estatuto privilegiado.

O Romantismo em Portugal

O contexto em que o Romantismo surgiu em Portugal foi marcado por uma


sucessão de acontecimentos muito importantes, que explicam o facto de esta
corrente estético-literária ter chegado ao nosso país com cerca de 30 anos de
atraso.

 Em 1807, na sequência das Invasões Francesas, a família real portuguesa


embarcou para o Brasil, deixando Portugal sob o domínio britânico.
 Devido ao descontentamento geral que se fazia sentir na metrópole, em
1820 ocorreu no Porto uma Revolta militar e civil, que tinha como objetivo
expulsar os oficiais britânicos de Portugal e proclamar uma Constituição.
 No entanto, em 1821, D. Miguel, que liderava um movimento denominado
Vila-Francada, restaurou o governo absolutista e aboliu a Constituição. Em
consequência, muitos liberais, como Garrett ou Herculano, foram obrigados a
emigrar.
Professora: Filipa Machado Português 11.º ano Módulo 5
2
Balleteatro Escola Profissional Ano letivo 2014/2015

 Com a morte de D. João VI (em 1826), D. Miguel fez-se aclamar Rei


segundo o antigo regime absolutista.
 Entretanto, D. Pedro, que se opunha a seu irmão D. Miguel e defendia a
causa liberal, regressou do Brasil e organizou nos Açores uma expedição militar que
desembarcou na praia do Mindelo, avançando sobre o Porto.
 Assim, em maio de 1834, na convenção de Evoramonte, os absolutistas
renderam-se e D. Miguel partiu definitivamente para o exílio.
 No entanto, em 1842, um golpe de estado encabeçado por Costa Cabral
dissolveu o governo, anulou a Constituição e restaurou a Carta. Instituiu-se um
regime ditador, o Cabralismo.
 A resposta não tardou e, em 1851, um golpe de estado liderado pelo
Marechal Duque de Saldanha deu origem a um movimento que se insurgia contra a
política cabralista: a Regeneração. Saldanha foi responsável por um percurso de
progresso económico, sustentado pela doutrina económica de Fontes Pereira de
Melo — o Fontismo — que apostava sobretudo na construção de caminhos de ferro.

Os primeiros românticos portugueses, Almeida Garrett e Alexandre


Herculano, foram exilados políticos que conviveram de perto com as novas
tendências europeias. Aliás, aquele que é considerado o poema introdutor do
Romantismo em Portugal, o poema Camões de Almeida Garrett, reflete essa
situação de exílio, já que foi publicado em Paris, em 1825.
No entanto, só após o regresso dos exilados a Portugal se verifica
verdadeiramente o exercício de uma corrente estética diferente. Por isso, alguns
estudiosos consideram que o Romantismo só se instituiu em Portugal em 1836,
com a publicação de A Voz do Profeta de Alexandre Herculano.
O Romantismo português atingiu a fase áurea entre 1840 e 1850, com a
publicação de obras como Um Auto de Gil Vicente, O Alfageme de Santarém e Frei
Luís de Sousa de Almeida Garrett ou Eurico, o Presbítero de Alexandre Herculano. A
partir do Romantismo, assistiu-se a um considerável desenvolvimento cultural do
povo português: a cultura estendeu-se a outras classes sociais, deixando de ser
apanágio da aristocracia. Este novo público emergente apreciava uma linguagem
mais simples, clara e acessível e revelava interesse pela paisagem, pelo
pitoresco e pelo sentimentalismo.

Principais características do Romantismo

1. Características estético-literárias

Culto da natureza — os românticos criaram um novo modelo de natureza, o locus


horrendus, natureza em tumulto, de imagens tenebrosas, sombrias e noturnas.
Subjetividade - o mundo pessoal, as emoções espontâneas e os sentimentos do
EU definem o espaço central da criação.
Sentimentalismo — dá-se lugar à poesia do eu, do amor e da paixão;
supervalorização do EU.
Ânsia de liberdade — vence o desejo de quebrar todas as correntes que prendem
a liberdade do EU.

Professora: Filipa Machado Português 11.º ano Módulo 5


3
Balleteatro Escola Profissional Ano letivo 2014/2015

O mal du siècle — o pessimismo, a melancolia, o desespero, o cansaço, a volúpia


do sofrimento, a angústia de existir, a insaciabilidade e irreverência humanas e a
busca da solidão são tópicos recorrentes.
Evasão — preconiza-se a idealização da realidade circundante e a fuga para
mundos imaginários; valoriza-se o sonho e o devaneio.
Valorização do exótico — o exótico é visto como o "distante no espaço".
Interesse pela Idade Média e suas tradições — as atenções voltam-se para
esta época, para a cultura folclórica, para as tradições, lendas e canções medievais
denegridas pelo racionalismo iluminista; a Idade Média é vista como "o distante no
tempo".
Nacionalismo — tudo quanto é popular e nacional é exaltado pelos românticos;
culto de uma ideologia patriótica.
Idealização da mulher — anjo ou demónio, a figura da mulher é sempre
idealizada; recorrência do tema do amor insatisfeito e contraditório.

2. Características formais

- Libertação estilística.
- Versificação mais variada e popularizante.
- Justaposição do sublime e do grotesco num estilo que bane as perífrases e que
não vê a fronteira entre o poético e o prosaico na seleção vocabular.
- Abandono da mitologia e dos processos eruditos da retórica greco-romana.
- Fusão de géneros que haviam sido contrastados pelo Classicismo (é recorrente a
fusão da tragédia e da comédia no drama burguês).
- Pontuação expressiva: o uso de exclamações e reticências espelha o estado
emocional do sujeito poético.
- Estilo declamatório.
- Recurso a figuras de estilo que transmitem o manancial de emoções do sujeito
poético, com destaque para a hipérbole.

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FREI LUÍS DE SOUSA , ALMEIDA GARRETT

Drama representado, pela primeira vez, em Lisboa, por uma sociedade


particular, no Teatro da Quinta do Pinheiro, em 4 de julho de 1843.

ATO PRIMEIRO

Câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância portuguesa


dos princípios do século dezassete. Porcelanas, sedas, flores, etc. No fundo, duas
grandes janelas rasgadas, dando para um eirado que olha sobre o Tejo e donde se
vê toda a Lisboa; entre as janelas o retrato, em corpo inteiro, de um cavaleiro
moço, vestido de preto, com a cruz branca de noviço de S. João de Jerusalém.
Defronte e para a boca da cena um bufete pequeno, coberto de rico pano de veludo
verde franjado de prata; sobre o bufete alguns livros, obras de tapeçaria meias
feitas, e um vaso da China de colo alto, com flores. Algumas cadeiras antigas,
tamboretes rasos, contadores. Da direita do espectador, porta de comunicação para
o interior da casa, outra da esquerda para o exterior. É o fim da tarde.

Cena I

Madalena, só, sentada junto à banca, os pés sobre uma grande almofada,
um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele, como quem descaiu da
leitura para a meditação.

Madalena (Repetindo maquinalmente e devagar o que acabava de ler.)


- “Naquele engano d’alma ledo e cego Que a fortuna não deixa durar muito…”
Com a paz e alegria de alma… um engano, um engano de poucos instantes que
seja… deve ser a felicidade suprema neste mundo. E que importa que o não deixe
durar muito a fortuna? Viveu-se, pode-se morrer. Mas eu!... (Pausa.) Oh! Que o
não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que eu vivo… este medo,
estes contínuos terrores que ainda não me deixaram gozar um só momento de toda
a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh! Que amor, que felicidade… que
desgraça a minha! (Torna a descair em profunda meditação; silêncio breve).

Cena II

Telmo (Chegando ao pé de Madalena, que o não sentiu entrar.)


- A minha Senhora está a ler?...

Madalena (Despertando.)
- Ah! Sois vós, Telmo… Não, já não leio: há pouca luz de dia já; confundia-me a
vista. E é um bonito livro este! O teu valido, aquele nosso livro, Telmo.

Telmo (Deitando-lhe os olhos.)


- Oh, oh! Livro para damas e para cavaleiros… e para todos: um livro que serve
para todos, como não há outro, tirante o respeito devido ao da Palavra de Deus!

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Mas esse não tenho eu a consolação de ler, que não sei latim como o meu Senhor…
Quero dizer como o Senhor Manuel de Sousa Coutinho, que lá isso!... Acabado
escolar é ele. E assim foi seu pai antes dele, que muito bem o conheci: grande
homem! Muitas letras, e de muito galante prática, - e não somenos as outras
partes de cavaleiro: uma gravidade!... Já não há daquela gente… que toda a gente
não entende… confesso-vos que aquele mercador inglês da Rua Nova, que aqui
vem às vezes, tem-me dito coisas que me quadram… E Deus me perdoe, que eu
creio que o homem é herege desta seita nova de Alemanha ou Inglaterra. Será?

Madalena – Olhai, Telmo; eu não vos quero dar conselhos: bem sabeis que desde
o tempo que… que…

Telmo – Que já lá vai, que era outro tempo.

Madalena – Pois sim… (Suspira.) Eu era uma criança, pouco maior era que Maria.

Telmo – Não, a Senhora D. Maria já é mais alta.

Madalena – É verdade, tem crescido demais, e de repente nestes dois meses


últimos…

Telmo – Então! Tem treze anos feitos; é quase uma senhora, está uma senhora…
(À parte.) Uma senhora aquela… pobre menina!

Madalena (com lágrimas nos olhos.)


- És muito amigo dela, Telma?

Telmo – Se sou! Um anjo como aquele… uma viveza, um espírito!... e então que
coração!

Madalena – Filha da minha alma! (Pausa; mudando de tom.) Mas olha, meu
Telmo, torno a dizer-to: eu não sei como hei de fazer para te dar conselhos.
Conheci-te de tao criança, de quando casei a… a… primeira vez – costumei-me a
olhar para ti com tal respeito: já então eras o que hoje és, o escudeiro valido, o
familiar quase parente, o amigo velho e provado dos teus amos…

Telmo (enternecido)
- Não digais mais, Senhora, não me lembrei de tudo o que eu era.

Madalena (Quase ofendida.)


- Porquê? Não és hoje o mesmo, ou mais ainda, se é possível? Quitaram-te alguma
coisa da confiança, do respeito – do amor e carinho a que estava costumado o aio
fiel do meu Senhor D. João de Portugal, que Deus tenha em glória?

Telmo (À parte).
- Terá…

Madalena – O amigo e camarada antigo de seu pai?

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Telmo – Não, minha Senhora, não, por certo.

Madalena – Então?...

Telmo – Nada. Continuai, dizei, minha Senhora.

Madalena – Pois está bem. – Digo que mal sei dar-vos conselhos, e não queria
dar-vos ordens… Mas, meu amigo, tu tomaste – e com muito gosto meu e de seu
pai – um ascendente no espírito de Maria… tal que não ouve, não crê não sabe
senão o que lhe dizes. Quase que és tu a sua dona, a sua aia de criação. Parece-
me… eu sei… não fales com ela desse modo, nessas coisas.

Telmo – O quê? No que me disse o inglês sobre a Sagrada Escritura que eles lá
têm em sua língua, e que…

Madalena – Sim… nisso decerto… e em tantas outras coisas tão altas, tão fora de
sua idade, e muitas do seu sexo também, que aquela criança está sempre a querer
saber, a perguntar. – É a minha única filha: não tenho… nunca tivemos outra… e,
além de tudo o mais, bem vês que não é uma criança… muito… muito forte.

Telmo – É… delgadinha, é. Há de enrijar. É tê-la por aqui, fora daqueles ares


apestados de Lisboa: e deixai que se há de pôr outra.

Madalena – Filha do meu coração!

Telmo – E do meu. Pois não se lembra, minha senhora, que ao princípio, era uma
criança que não podia… - é verdade, não a podia ver: já sabereis porquê… mas vê-
la era ver… Deus me perdoe!... Nem eu sei… E daí começou-me a crescer, a olhar
com aqueles olhos… a fazer-me tais meiguices, e a fazer-se-me um anjo tal de
formosura e de bondade que – vêdes-me aqui agora que lhe quero mais do que seu
pai.

Madalena (Sorrindo.)
- Isso agora!...

Telmo – Do que vós.

Madalena (Rindo.)
- Ora, meu Telmo.

Telmo – Mais, muito mais. E veremos: tenho cá uma coisa que me diz que antes
de muito se há de ver quem é quer mais à nossa menina nesta casa.

Madalena (Assustada)
- Está bom, não entremos com os teus agouros e profecias do costume: são
sempre de aterrar… Deixemo-nos de futuros…

Telmo – Deixemos, que não são bons.

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Madalena – E de passados também…

Telmo – Também.

Madalena – E vamos ao que importa agora. Maria tem uma compreensão.

Telmo – Compreende tudo!

Madalena – Mais do que convém…

Telmo – Às vezes.

Madalena – É preciso moderá-la.

Telmo – É o que eu faço.

Madalena – Não lhe dizer…

Telmo – Não lhe digo nada que não possa, que não deva saber uma donzela
honesta e digna de melhor… de melhor…

Madalena – Melhor quê?

Telmo – De nascer em melhor estado. Quisestes ouvi-lo… está dito.

Madalena – Oh! Telmo! Deus te perdoe o mal que me fazes. (Desata a chorar.)

Telmo (Ajoelhando e beijando-lhe a mão.)


- Senhora… Senhora D. Madalena, minha ama, minha Senhora… castigai-me…
mandai-me já castigar, mandai-me cortar esta língua perra que não toma ensino.
Oh! Senhora, senhora!... é vossa filha, é a filha do Senhor Manuel de Sousa
Coutinho, fidalgo de tanto primor e de tao boa linhagem como os que se têm por
melhores neste reino, em toda a Espanha… A Senhora D. Maria… a minha querida
D. Maria é sangue de Vilhenas e de Sousas; não precisa mais nada, mais nada,
minha Senhora, para ser… para ser…

Madalena – Calai-vos, calai-vos, pelas dores de Jesus Cristo, homem.

Telmo (Soluçando.)
- Minha rica Senhora!...

Madalena (Enxuga os olhos e toma uma atitude grave e firme.)


- Levantai-vos, Telmo, e ouvi-me. (Telmo levanta-se.) Ouvi-me com atenção. É a
primeira vez e será a última que vos falo deste modo e de tal assunto. Vós fostes o
aio e amigo de meu Senhor… de meu primeiro marido, o Senhor D. João de
Portugal; tínheis sido o companheiro de trabalhos e de glória de seu ilustre pai,
aquele nobre conde de Vimioso, que eu de tamanhinha me acostumei a reverenciar
como pai. Entrei depois nessa família de tanto respeito; achei-vos parte dela, e
quase que vos tomei a mesma amizade que aos outros… Chegastes a alcançar um
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poder no meu espírito, quase maior – decerto maior – que nenhum deles. O que
sabeis a vida e do mundo, o que tendes adquirido na conversação dos homens e
dos livros, - porém, mais que tudo, o que de vosso coração fui vendo e admirando
cada vez mais – me fizeram ter-vos numa conta, deixar-vos tomar, entregar-vos eu
mesma a tal autoridade nesta casa e sobre minha pessoa… que outros poderão
estranhar…

Telmo – Emendai-o, Senhora.

Madalena – Não, Telmo, não preciso nem quero emendá-lo. Mas agora deixa-me
falar. Depois que fiquei só, depois daquela funesta jornada de África que me deixou
viúva, órfã e sem ninguém… sem ninguém, e numa idade… com dezassete anos! –
em vós, Telmo, em vós só, achei o carinho e proteção, o amparo que eu precisava.
Ficastes-me em lugar de pai: e eu… salvo numa coisa! – tenho sido para vós,
tenho-vos obedecido como filha.

Telmo – Oh, minha Senhora, minha Senhora! Mas essa coisa em que vos
apartastes dos meus conselhos…

Madalena – Para essa houve poder maior que as minhas forças… D. João ficou
naquela batalha com seu pai, com a flor da nossa gente. (Sinal de impaciência em
Telmo.) Sabeis como chorei a sua perda, como respeitei a sua memória, como
durante sete anos, incrédula a tantas provas e testemunhos de sua morte, o fiz
procurar por essas costas de Berberia, por todas as séjanas de Fez e Marrocos, por
todos quantos aduares de Alarves aí houve… Cabedais e valimentos, tudo se
empregou; gastaram-se grossas quantias; os embaixadores de Portugal e Castela
tiveram ordens apertadas de o buscar por toda a parte; aos padres da Redenção, a
quanto religioso ou mercador podia penetrar naquelas terras, a todos se
encomenda o seguir a pista do mais leve indício que pudesse desmentir, pôr em
dúvida ao menos aquela notícia que logo viera com as primeiras novas da batalha
de Alcácer. Tudo foi inútil; e a ninguém mais ficou resto de dúvida…

Telmo – Senão a mim.

Madalena – Dúvida de fiel servidor, esperança de leal amigo, meu bom Telmo!
Que diz com vosso coração, mas que tem atormentado o meu… E então sem
nenhum fundamento, sem o mais leve indício… Pois dizei-mo em consciência, dizei-
mo de uma vez, claro e desenganado: a que se apega esta vossa credulidade de
sete… e hoje mais catorze… vinte e um anos?

Telmo (Gravemente)
- Às palavras, às formais palavras daquela carta escrita na própria madrugada do
dia da batalha, e entregue a Frei Jorge que vo-la trouxe. – “Vivo ou morto” –
rezava ela – “vivo ou morto”… Não me esqueceu uma letra daquelas palavras; e eu
sei que homem era meu amo para as escrever em vão: “Vivo ou morto, Madalena,
hei de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste mundo.” – Não era assim que
dizia?

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Madalena (Aterrada.)
- Era.

Telmo – Vivo não veio… e ainda mal! E morto… a sua alma, a sua figura…

Madalena (Possuída de grande terror.)


- Jesus, homem!

Telmo - … não vos apareceu decerto.

Madalena – Não, credo!

Telmo (Misterioso.)
- Bem sei que não. Queria-vos muito; e a sua primeira visita, com razão, seria para
minha Senhora. Mas não se ia sem aparecer também ao seu aio velho.

Madalena – Valha-me Deus. Telmo! Conheço que desarrazoais; contudo as vossas


palavras metem-me um medo… Não me façais mais desgraçada.

Telmo – Desgraçada! Porquê? Não sois feliz na companhia do homem a quem


sempre quisestes mais sobre todos? Que o pobre do meu amo… respeito, devoção,
lealdade, tudo lhe tivestes, como tão nobre e honrada senhora que sois… mas
amor!

Madalena – Não está em nós dá-lo, nem quitá-lo, amigo.

Telmo – Assim é. Mas os ciúmes que meu amo não teve nunca – bem sabeis que
têmpera de alma era aquela – tenho-os eu… aqui está a verdade nua e crua…
tenho-os eu por ele: não posso, não posso ver… e desejo, quero, forcejo por me
acostumar… mas não posso. Manuel de Sousa… o Senhor Manuel de Sousa
Coutinho é guapo cavalheiro, honrado, fidalgo, bom português… mas não é, nunca
há de ser, aquele espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos bons… Ah! Meu
nobre amo, meu santo amo!

Madalena – Pois sim, tereis razão… tendes razão, será tudo como dizeis. Mas
refleti, que haveis cabedal de inteligência para muito: - eu resolvi-me por fim a
casar com Manuel de Sousa; foi do aprazimento geral de nossas famílias, da
própria família de meu primeiro marido, que bem sabeis quanto me estima;
vivemos (com afetação) seguros, em paz e felizes… há catorze anos. Temos esta
filha, esta querida Maria, que é todo o gosto e ânsia da nossa vida. Abençoou-nos
Deus na formosura, no engenho, nos dotes admiráveis daquele anjo… E tu, tu, meu
Telmo, que és tão seu que chegas a pretender ter-lhe mais amor que nós mesmos…

Telmo – Não, não tenho!

Madalena – Pois tens: melhor! – És tu que andas, continuamente e quase por


acinte, a sustentar essa quimera, a levantar esse fantasma, cuja sombra, a mais
remota, bastaria para enodoar a pureza daquela inocente, para condenar a eterna
desonra a mãe e a filha!... (Telmo dá sinais de grande agitação.) Ora dize: já
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pensaste bem no mal que estás fazendo? Eu bem sei que a ninguém neste mundo,
senão a mim, falas em tais coisas… falas assim como hoje temos falado… mas as
tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D.
Sebastião, que o seu mais desgraçado povo, ainda não quis acreditar que
morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade! – esses contínuos
agouros em que ainda sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa
família… não vês que estás excitando com tudo isso a curiosidade daquela criança,
aguçando-lhe o espírito – já tão perspicaz! – a imaginar, a descobrir… quem sabe
se a acreditar nessa prodigiosa desgraça em que tu mesmo… tu mesmo… sim, não
crês deveras? Não crês, mas achas não sei que doloroso prazer em ter sempre viva
e suspensa essa dúvida fatal. E então considera, vê: se um terror semelhante
chega a entrar naquela alma, quem lho há de tirar nunca mais? ... O que há de ser
dela e de nós? Não a perdes, não a matas… não me matas a minha filha?

Telmo (Em grande agitação durante a fala precedente, fica pensativo e aterrado;
fala depois como para si.)
- É verdade que sim! A morte era certa. E não há de morrer: não, não, não, três
vezes não. (Para Madalena.) À fé de escudeiro honrado, Senhora D. Madalena, a
minha boca não se abre mais; e o meu espírito há de… há de fechar-se também. (À
parte.) Não é possível, mas eu hei salvar o meu anjo do Céu! (Alto para Madalena.)
Está dito, minha Senhora.

Madalena – Ora Deus to pague. Hoje é o último dia de nossa vida que se fala em
tal.

Telmo – O último.

Madalena – Ora, pois, ide, ide ver o que ela faz (Levanta-se.): que não esteja a ler
ainda, a estudar sempre. (Telmo vai a sair.) E olhai: chegai-me depois ali a São
Paulo, ou mandai, se não podeis…

Telmo – Ao Convento dos Domínicos? Pois não posso!... Quatro passadas.

Madalena - … e dizei a meu cunhado, a Frei Jorge Coutinho, que me está dando
cuidado a demora de meu marido em Lisboa; que me prometeu vir antes de
véspera, e não veio; que é quase noite, e que já não estou contente com a
tardança (Chega à varanda e olha para o rio.) O ar está sereno, o mar tão quieto e
a tarde tão linda!... Quase que não há vento, é uma viração que afaga… Oh! E
quantas faluas navegando tão garridas por esse Tejo! Talvez nalguma delas –
naquela tão bonita – venha Manuel de Sousa. Mas neste tempo não há que fiar no
Tejo: dum instante para o outro levanta-se uma nortada… e então aqui o pontal de
Cacilhas! Que ele é tão bom mareante… Ora, um cavaleiro de Malta! (Olha para o
retrato com amor.) Não é isso o que me dá maior cuidado. Mas em Lisboa ainda há
peste, ainda não estão limpos os ares… e essoutros ares que por aí correm destas
alterações públicas, destas mal-querenças entre castelhanos e portugueses! Aquele
carácter inflexível de Manuel de Sousa traz-me num susto contínuo. – Vai, vai a
Frei Jorge, que diga se sabe alguma coisa, que me assossegue, se puder.

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Cena III

Maria (Entrando com umas flores na mão, encontra-se com Telmo, e o faz tornar
para cena.)
- Bonito! Eu há mais de meia hora no eirado passeando – e sentada a olhar para o
rio e a ver as faluas e os bergantis que andam para baixo e para cima – e já
aborrecida de esperar… e o Senhor Telmo aqui posto a conversar com a minha
mãe, sem se importar de mim! Que é do romance que me prometeste? Não é o da
batalha, não é o que diz: “Postos estão, frente a frente, os dois valorosos campos:”
é o outro, é o da ilha encoberta onde está el-rei D. Sebastião, que não morreu e
que há de vir um dia de névoa muito cerrada… Que ele não morreu; não é assim,
minha mãe?

Madalena – Minha querida filha, tu dizes coisas! Pois não tens ouvido a teu tio Frei
Jorge e a teu tio Lopo de Sousa contar tantas vezes como aquilo foi? O povo,
coitado, imagina essas quimeras para se consolar na desgraça.

Maria – Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: eles que andam tão
crentes nisto, alguma coisa há de ser. Mas ora o que me dá que pensar é ver que,
tirando aqui o meu bom velho Telmo (chega-se toda para ele, acarinhando-o),
ninguém nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse o nosso bravo rei, o
nosso santo rei D. Sebastião. Meu pai, que é tão bom português, que não pode
sofrer estes castelhanos, e que até às vezes dizem que é demais o que ele faz e o
que ele fala, em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião…
ninguém tal há de dizer, mas põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo
e carrancudo: parece que o vinha afrontar, se voltasse, o pobre do rei. Ó minha
mãe, pois ele não é por D. Filipe; não é, não?

Madalena – Minha querida Maria, que tu hás de estar sempre a imaginar nessas
coisas, que são tão pouco para a tua idade! Isso é o que nos aflige, a teu pai e a
mim: queria-te ver mais alegre, folgar mais, e com coisas menos…

Maria – Então, minha mãe, então! Veem, veem? ... também minha mãe não gosta.
Oh! Essa ainda é pior, que se aflige, chora… ela aí está a chorar… (Vai-se abraçar
com a mãe, que chora.) Minha querida mãe, ora pois então! Vai-te embora, Telmo,
vai-te: não quero mais falar, nem ouvir falar de tal batalha, nem de tais histórias,
nem de coisa nenhuma dessas. Minha querida mãe!

Telmo – E é assim: não se fala mais nisso. E eu vou-me embora. (À parte, indo-se
depois de lhe tomar as mãos.) Que febre que ela tem hoje, meu Deus! Queimam-
lhe as mãos… e aquelas rosetas nas faces… Se o perceberá a pobre da mãe!

Cena IV

Maria – Quereis vós saber, mãe, é uma tristeza muito grande que eu tenho? A
mãe já não chora, não? Já se não enfada comigo?

Madalena – Não me enfado contigo nunca, filha; e nunca me afliges, querida. O


que eu tenho é o cuidado que me dá, é o receio de que…
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Maria – Pois aí está a minha tristeza: é esse cuidado em que vos vejo andar
sempre por minha causa. Eu não tenho nada, e tenho saúde, olhai que tenho muita
saúde.

Madalena – Tens, filha… se Deus quiser, hás de ter; e hás de viver muitos anos
para consolação e amparo de teus pais que tanto te querem.

Maria – Pois olhai: passo as noites inteiras em claro a lidar nisto, e a lembrar-me
de quantas palavras vos tenho ouvido, e a meu pai… e a recordar-me da mais
pequena ação e gesto – e a pensar em tudo, a ver se descubro o que isto é – o
porque, tendo-me tanto amor… que, oh! Isso nunca houve decerto filha querida
como eu! ...

Madalena – Não, Maria.

Maria – Pois sim; tendo-me tanto amor, que nunca houve igual, estais sempre
num sobressalto comigo?...

Madalena – Pois se te estremecemos!

Maria – Não é isso, não é isso; é que vos tenho lido nos olhos… Oh! Que eu leio
nos olhos, leio, leio! … e nas estrelas do céu também – e sei coisas…

Madalena – Que estás a dizer, filha, que estás a dizer? Que desvarios! Uma
menina do teu juízo temente a Deus… não te quero ouvir falar assim. Ora vamos:
anda cá, Maria, conta-me do teu jardim, das tuas flores. Que flores tens tu agora?
O que são estas? (Pegando nas que ela traz na mão.)

Maria (Abrindo a mão e deixando-as cair no regaço da mãe.)


- Murchou tudo… tudo estragado da calma… Estas são papoulas que fazem dormir;
colhia-as para as meter debaixo do meu cabeçal esta noite: quero-a dormir de um
sono, não quero sonhar, que me faz ver coisas lindas às vezes, mas tão
extraordinárias e confusas…

Madalena – Sonhar, sonhas tu acordada, filha! Que, olha, Maria, imaginar é


sonhar; e Deus pôs-nos neste mundo para velar e trabalhar – com o pensamento
sempre n’Ele, sim, mas sem nos estranharmos a estas coisas da vida que nos
cercam, a estas necessidades que nos impõe o estado, a condição que nascemos.
Vês tu, Maria: tu és a nossa única filha, todas as esperanças de teu pai são em ti…

Maria – E não lhas posso realizar, bem sei. Mas que hei de eu fazer? Eu estudo,
leio…

Madalena – Lês demais, cansas-te, não te distrais como as outras donzelas da tua
idade, não és…

Maria – O que eu sou… só eu o sei, minha mãe… E não sei, não; não sei nada,
senão que o que devia ser não sou. Oh! Porque não havia de eu ter um irmão que
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fosse um galhardo e valente mancebo, capaz de comandar os terços de meu pai, de


pegar numa lança daquelas com que os nosso avós corriam a Índia, levando
adiante de si turcos e gentios! Um belo moço que fosse o retrato próprio daquele
gentil cavaleiro de Malta que ali está! (Apontando para o retrato.) Como ele era
bonito, meu pai! Como lhe ficava bem o preto! ... e aquela cruz tão alva em cima!
Para que deixou ele o hábito, minha mãe, porque não ficou naquela santa religião a
vogar em suas nobres galaras por esses mares, e a afugentar os infiéis diante da
bandeira da Cruz?

Madalena – Oh, filha, filha! … (mortificada) porque não foi vontade de Deus: tinha
de ser doutro modo. Tomara eu agora que ele chegasse de Lisboa! Com efeito é
muito tardar… Valha-me Deus!

Cena V

Jorge – Ora seja Deus nesta casa! (Maria beija-lhe o escapulário e depois a mão;
Madalena somente o escapulário.)

Madalena – Seja bem-vindo, meu irmão!

Maria – Boas tardes, tio Jorge!

Jorge – Minha senhora mana! A bênção de Deus te cubra, filha! Também estou
desassossegado como vós, mana Madalena; mas não vos aflijais, espero que não
há de ser nada. – É certo que tive umas notícias de Lisboa…

Madalena (assustada)
- Pois que é, que foi?

Jorge – Nada, não vos assusteis; mas é bom que estejais prevenida, por isso vo-lo
digo. Os governadores querem sair da cidade… é um capricho verdadeiro… Depois
de aturarem metidos ali dentro toda a força da peste, agora que ela está, se pode
dizer, acabada, que são raríssimos os casos, é que por força querem mudar de
ares.

Madalena – Pois coitados! ...

Maria – Coitado do povo! – Que mais valem as vidas deles? Em pestes e desgraças
assim eu entendia, se governasse, que o serviço de Deus e do rei me mandava
ficar, até à última, onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com
remédio e amparo aos necessitados. – Pois, rei não quer dizer pai comum de
todos?

Jorge – A minha donzela Teodora! – Assim é, filha, mas o mundo é doutro modo:
que lhe faremos?

Maria – Emendá-lo.

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Jorge (Para Madalena, baixo.)


- Sabeis que mais? Tenho medo desta criança.

Madalena (Do mesmo modo.)


- Também eu.

Jorge (Alto.)
- Mas enfim, resolveram sair; e sabereis mais que, para corte e “buen-retiro” dos
nossos cinco reis, os senhores governadores de Portugal por D. Filipe de Castela,
que Deus guarde, foi escolhida esta nossa boa vila de Almada, que o deveu à fama
de suas águas saídas, ares lavados e graciosa vista.

Madalena – Deixá-los vir.

Jorge – Assim é, que remédio! Mas ouvi o resto. O nosso pobre Convento de São
Paulo tem de hospedar o Senhor Arcebispo D. Miguel de Castro, presidente do
governo. Bom prelado é ele; e, se não fosse que nos tira do humilde sossego da
nossa vida, por vir como senhor e príncipe secular… o mais, paciência. Pior é o
vosso caso…

Madalena – O meu?!

Jorge – O vosso e de Manuel de Sousa: porque os outros quatro governadores – e


aqui está o que me mandaram dizer em muito segredo de Lisboa – dizem que
querem vir para esta casa, e pôr aqui aposentadoria.

Maria (Com vivacidade.)


- Fechamos-lhes as portas. Metemos a nossa gente dentro – o terço do meu pai
tem mais de seiscentos homens – e defendemo-nos. Pois não é uma tirania? … E há
de ser bonito! ... Tomara eu ver seja o que for que se pareça com uma batalha!

Jorge – Louquinha!

Madalena – Mas que mal fizemos nós ao conde de Sabugal e aos outros
governadores, para nos fazerem esse desacato? Não há por aí outras casas? E eles
não sabem que nesta casa há senhoras, uma família… e que estou eu aqui? …

Maria (Que esteve com o ouvido inclinado para a janela.)


- É a voz de meu pai! Meu pai chegou.

Madalena (Sobressaltada.)
- Não oiço nada.

Jorge – Nem eu, Maria.

Maria – Pois oiço eu muito claro. É meu pai que aí vem… e vem afrontado!

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Cena VI

Miranda – Meu senhor chegou: vi agora daquele alto entrar um bergantim que é
por força o nosso. Estáveis com cuidado: e era para isso, que já vai a cerrar-se a
noite… Vim trazer-vos depressa a notícia.

Madalena – Obrigada, Miranda. É extraordinária esta criança: vê e ouve em tais


distâncias… (Maria tem saído para o eirado, mas volta logo depois.)

Jorge – É verdade (à parte.) Terrível sinal naqueles anos e com aquela compleição!

Cena VII

Manuel (Parando junto da porta, para os criados.)


- Façam o que lhes disse. Já, sem mais detença! Não apaguem esses brandões;
encostem-nos aí fora no patim. E tudo o mais que eu mandei. (Vindo ao proscénio.)
Madalena! Minha querida filha, minha Maria! (Abraça-as.) Jorge, ainda bem que
aqui estás, preciso de ti: bem sei que é tarde e que são horas conventuais; mas eu
irei depois contigo dizer a “mea culpa” e o “peccavi” ao nosso bom prior. Miranda,
vinde cá. (Vai com ele à porta da esquerda, depois à do eirado e dá-lhe algumas
ordens baixo.)

Madalena – Que tens tu? Nunca entraste em casa assim. Tens coisa que te dá
cuidado… e não mo dizes? O que é?

Manuel – É que… Senta-te, Madalena; aqui ao pé de mim. Maria, Jorge, sentemo-


nos, que estou cansado. (Sentam-se todos.) Pois agora sabei as novidades, que
seriam estranhas, se não fosse o tempo em que vivemos. (Pausa) É preciso sair já
desta casa, Madalena.

Maria – Ah! Inda bem, meu pai!

Manuel – Inda mal! Mas não há outro remédio. Sairemos esta noite mesmo. Já dei
ordens a toda a família: Telmo foi avisar as tuas aias do que haviam de fazer, e lá
anda pelas câmaras velando nesse cuidado. Sempre é bom que vás dar um relance
de olhos ao que por lá se faz: eu também irei por minha parte. Mas temos tempo:
isto são oito horas, à meia-noite vão quatro: daqui lá o pouco que me importa
salvar estará salvo… e eles não virão antes da manhã.

Madalena – Então sempre é verdade que Luís de Moura e os outros governadores?

Manuel – Luís de Moura é um vilão ruim, faz como quem é; o arcebispo é… o que
os outros querem que ele seja. Mas o conde de Sabugal, o conde de Santa Cruz,
que deviam olhar por quem são, e que tomaram este encargo odioso… e vil, de
oprimir os seus naturais em nome de um rei estrangeiro… Oh! Que gente, que
fidalgos portugueses! … Hei de lhes dar uma lição, a eles, e a este escravo deste
povo que os sofre, como não levam tiranos há muito tempo nesta terra.

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Maria – O meu nobre pai! Oh, o meu querido pai! Sim, sim, mostrai-lhe quem sois
e o que vale um português dos verdadeiros.

Madalena – Meu adorado esposo, não te deites a perder, não te arrebates. Que
farás tu contra esses poderosos? Eles já te querem tão mal, pelo mais que tu vales
que eles, pelo teu saber – que esses grandes fingem que desprezam… mas não é
assim, o que eles têm é inveja! … - O que fará se lhes deres pretexto para
vingarem da afronta em que os traz a superioridade do teu mérito! – Manuel, meu
esposo, Manuel de Sousa, pelo nosso amor…

Jorge – Tua mulher tem razão. Prudência, e lembra-te de tua filha.

Manuel – Lembro-me de tudo, deixa estar. Não te inquietes, Madalena: eles


querem vir para aqui amanhã de manhã; e nós forçosamente havemos de sair
antes de eles entrarem. Por isso é preciso já.

Madalena – Mas para onde iremos nós, de repente, a estas horas?

Manuel – Para a única parte para onde podemos ir: a casa não é minha… mas é
tua, Madalena.

Madalena – Qual? … A que foi? … A que pega com São Paulo? Jesus me valha!

Jorge – E fazem muito bem: a casa é larga e está de bom reparo, tem ainda quase
tudo de trastes e paramentos necessários: pouco tereis que levar convosco. E
então para mim, para os nosso padres todos, que alegria! Ficamos quase debaixo
dos mesmos telhados. Sabeis que temos ali tribuna para a capela da Senhora da
Piedade, que é a mais devota e a mais bela de toda a igreja… Ficamos como
vivendo juntos.

Maria – Tomara-me eu já lá! (Levante-se pulando.)

Manuel – E são horas, vamos a isto. (Levantando-se.)

Madalena (Vindo para ele.)


- Ouve, escuta, que tenho que te dizer; por quem és, ouve: não haverá algum
outro modo?

Manuel – Qual, Senhora, e que lhe hei eu fazer? Lembrai vós, vede se achais.

Madalena – Aquela casa… eu não tenho ânimo… Olhai: eu preciso de falar a sós
convosco. – Frei Jorge, ide com Maria aí para dentro: tenho que dizer a vosso
irmão.

Maria – Tio, venha, quero ver se me acomodam os meus livrinhos


(confidencialmente) e os meus papéis, que eu também tenho papéis: deixai que lá
na outra casa vos hei de mostrar… Mas segredo!

Jorge – Tontinha!
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Cena VIII

Manuel (Passeia agitado de um lado para o outro da cena com as mãos cruzadas
detrás das costas; e parando de repente:)
- Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal.

Madalena – Que tens tu, dize, que tens tu?

Manuel – Tenho que não hei de sofrer esta afronta… e que é preciso sair desta
casa, Senhora.

Madalena – Pois sairemos, sim: eu nunca me opus ao teu querer, nunca soube
que coisa era ter outra vontade diferente da tua: estou pronta a obedecer-te
sempre, cegamente, em tudo. Mas, oh! Esposo da minha alma… para aquela casa
não, não me leves para aquela casa! (Deitando-lhe os braços ao pescoço.)

Manuel – Ora tu não eras costumada a ter caprichos! Não temos outra para onde
ir; e a estas horas, neste aperto… Mudaremos depois, se quiseres… mas não lhe
vejo remédio agora. – E a casa que tem? Porque foi do teu primeiro marido! É por
mim que tens essa repugnância? Eu estimei e respeitei sempre a D. João de
Portugal: honro a sua memória, por ti, por ele e por mim; e não tenho na
consciência por que receie abrigar-me debaixo dos mesmos tetos que o cobriram.
Viveste ali com ele? Eu não tenho ciúmes de um passado que me não pertencia. E o
presente, esse é meu, meu só, todo meu, querida Madalena… Não falemos mais
nisso; é preciso partir, e já.

Madalena – Mas é que tu não sabes… eu não sou melindrosa nem de invenções:
em tudo o mais sou mulher e muito mulher, querido; nisso não… Mas tu não sabes
a violência, o constrangimento de alma, o terror com que eu penso em ter de
entrar naquela casa. Parece-me que é voltar ao poder dele, que é tirar-me dos teus
braços, que o vou encontrar ali… - Oh! Perdoa, perdoa-me, não me sai esta ideia da
cabeça… - que vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me está
ameaçando com uma espada de dois gumes… que a atravessa no meio de nós,
entre mim e ti e a nossa filha, que nos vais separar para sempre… Que queres?
Bem sei que é loucura: mas a ideia de tornar a morar ali, de viver ali contigo e com
Maria, não posso com ela. Sei decerto que vou ser infeliz, que vou morrer naquela
casa funesta, que não estou ali três dias, três horas, sem que todas as calamidades
do mundo venham sobre nós. Meu esposo, Manuel, marido da minha alma, pelo
nosso amor te peço, pela nossa filha… vamos seja para onde for, para a cabana de
algum pobre pescador desses contornos, mas para ali não, oh! Não.

Manuel – Em verdade nunca te vi assim; nunca pensei que tivesses a fraqueza de


acreditar em agouros. Não há senão um temor justo, Madalena, é o temor de Deus;
não há espectros que nos possam aparecer senão os das más ações que fazemos.
Que tens tu na consciência que tos faça temer? O teu coração e as tuas mãos estão
puros: para os que andam diante de Deus, a terra não tem sustos, nem o Inferno
pavores que se lhes atrevam. Rezaremos por alma de D. João de Portugal nessa
devota capela que é parte da sua casa; e não hajas medo que nos venha perseguir
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neste mundo aquela santa alma que está no Céu, e que em tão santa batalha,
pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou mártir às mãos dos infiéis. Vamos, D.
Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem vindes, Senhora… e não
me tires, querida mulher, com vãs quimeras de crianças, a tranquilidade do espírito
e a força do coração, que as preciso inteiras nesta hora.

Madalena – Pois que vais tu fazer?

Manuel – Vou, já te disse, vou dar uma lição aos nossos tiranos que lhes há de
lembrar, vou dar um exemplo a este povo que o há de alumiar…

Cena IX

Telmo – Senhor, desembarcaram agora grande comitiva de fidalgos, escudeiros e


soldados que vêm de Lisboa e sobem a encosta para a vila. O arcebispo não é
decerto, que já cá está há muito no convento; diz-se por aí…

Manuel – Que são os governadores? (O Telmo faz um sinal afirmativo.) Quiseram-


me enganar, e apressam-se a vir hoje… parece que adivinharam… Mas não me
colheram desapercebido. (Chama à porta da esquerda.) Jorge, Maria! (Volta para a
cena.) Madalena, já, já, sem demora.

Cena X

Manuel – Jorge, acompanha estas damas. Telmo, ide, ide com elas. (Para os
outros criados.) Partiu já tudo: as arcas, os meus cavalos, armas e tudo mais?

Miranda – Quase tudo foi já; o pouco que falta está pronto e sairá num instante…
pela porta de trás, se quereis.

Manuel – Bom; que saia. (A um sinal de Miranda saem dois criados.) Madalena,
Maria, não vos quero aqui mais. Já, ide; serei convosco em pouco tempo.

Cena XI

Manuel – Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada:
quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos? Seja. Mas fique-
se aprendendo em Portugal como um homem de honra e coração, por mais
poderosa que seja a tirania, sempre se lhe pode resistir, em perdendo o amor a
coisas tão vis e precárias como são esse haveres que duas faíscas destroem num
momento… como é esta vida miserável que um sopro pode apagar em menos
tempo ainda! (Arrebata duas tochas das mãos dos criados, corre à porta da
esquerda, atira com uma para dentro: e vê-se atear logo uma labareda imensa. Vai
ao fundo, atira a outra tocha: e sucede o mesmo. Ouve-se alarido de fora.)

Cena XII

Madalena – Que fazes? … que fizeste? Que é isto, oh! Meu Deus!

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Manuel (tranquilamente)
- Ilumino a minha casa para receber os muitos poderosos e excelentes senhores
governadores destes reinos. Suas Excelências podem vir quando quiserem.

Madalena – Meu Deus, meu Deus! … Ai, e o retrato de meu marido! … Salvem-me
aquele retrato. (Miranda e o outro criado vão para tirar o painel; uma coluna de
fogo salta nas tapeçarias e os afugenta.)

Manuel – Parti, parti! As matérias inflamáveis que eu tinha disposto vão-se


ateando com espantosa velocidade. Fugi.

Madalena (Cingindo-se no braço do marido.)


- Sim, sim, fujamos.

Maria (Tomando-o do outro braço.)


- Meu pai, nós não fugimos sem vós.

Todos – Fujamos, fujamos…


(Redobram os gritos de fora, ouve-se o rebate dos sinos; cai o pano.)

ATO SEGUNDO

É no palácio que foi de D. João de Portugal, em Almada, salão antigo, de


gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de família, muitos de corpo
inteiro, bispos, donas, cavaleiros, monges: estão em lugar conspícuo, no fundo, o
de el-rei D. Sebastião, o de Camões e o de D. João de Portugal. Portas do lado
direito para o exterior, do esquerdo para o interior, cobertas de reposteiros com as
armas dos Condes de Vimioso. São as antigas da Casa de Bragança, umas aspa
vermelha sobre o campo de prata com cinco escudos do reino, um no meio e os
quatro nos quatro extremos da aspa, em cada braço e, entre dois escudos, uma
cruz floreteada, tudo do modo que trazem atualmente os Duques de Cadaval; sobre
o escudo, coroa de conde. No fundo, um reposteiro muito maior, e com as mesmas
armas, cobre as portadas da tribuna que deita sobre a capela da Senhora da
Piedade, na igreja de São Paulo dos Domínicos de Almada.

Maria (Saindo pela porta da esquerda e trazendo pela mão a Telmo, que parece vir
de pouca vontade.)
- Vinde, não façais bulha, que minha mãe ainda dorme. Aqui, aqui nesta sala é que
quero conversar. E não teimes, Telmo, que fiz tenção e acabou-se…

Telmo – Menina! …

Maria – “Menina e moça me levaram de casa de seu pai”: é o princípio daquele


livro tão bonito que minha mãe diz que não entende; entendo-o eu. Mas aqui não
há menina nem moça; e vós, senhor Telmo Pais, fiel escudeiro, “faredes o que
mandado vos é”. E não repliques, que então altercamos, faz-se bulha, e acorda
minha mãe, que é o que não quero. Coitada! Há oito dias que aqui estamos nesta
casa, e é a primeira noite que dorme com sossego. Aquele palácio a arder, aquele
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povo a gritar, o rebate dos sinos, aquela cena toda… oh! Tão grandiosa e sublime,
que a mim me encheu de maravilha, que foi um espetáculo como nunca vi outro de
igual majestade!... À minha pobre mãe aterrou-a, não se lhe tira dos olhos: vai a
fechá-los para dormir e diz que vê aquelas chamas enoveladas em fumo a rodear-
lhe a casa, a crescer para o ar, e a devorar tudo com fúria infernal… O retrato de
meu pai, aquele do quarto de lavor tão seu favorito, em que ele estava tão gentil-
homem, vestido de Cavaleiro de Malta com a sua cruz branca no peito, - aquele
retrato, não se pode consolar de que lho não salvassem, que se queimasse ali. Vês
tu? Ela que não cria em agouros, que sempre me estava a repreender pelas minhas
cismas, agora não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de
outra perda maior que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que
a tem de separar de meu pai. E eu agora é que faço de forte e assisada, que zombo
de agouros e de sinais… para a animar, coitada!... que aqui entre nós, Telmo,
nunca tive tanta fé neles. Creio, oh! Se creio! Que são avisos que Deus nos manda
para nos preparar. E há… oh! Há grande desgraça a cair sobre meu pai… decerto, e
sobre minha mãe também, que é o mesmo.

Telmo (Disfarçando o terror de que está tomado.)


- Não digais isso… Deus há de fazê-lo por melhor, que lho merecem ambos.
(Cobrando ânimo e exaltando-se.) Vosso pai, D. Maria, é um português às direitas.
Eu sempre o tive em boa conta; mas agora, depois que lhe vi fazer aquela ação, -
que o vi com aquela alma de português velho, deitar as mãos às tochas e lançar ele
mesmo o fogo à sua própria casa, queimar e destruir numa hora tanto do seu
haver, tanta coisa do seu gosto, para dar um exemplo de liberdade, uma lição
tremenda a estes nossos tiranos… Oh minha querida filha, aquilo é um homem. A
minha vida que ele queira, é sua. E a minha pena, toda a minha pena é que o não
conheci, que o não estimei sempre no que ele valia.

Maria (Com lágrimas nos olhos e tomando-lhes as mãos.)


- Meu Telmo, meu bom Telmo!... É uma glória ser filha de tal pai: não é? Dize.

Telmo - Sim, é. Deus o defenda!

Maria - Deus o defenda! Ámen. E eles, os tiranos governadores, ainda estarão


muito contra meu pai? Já soubeste hoje alguma coisa das diligências do tio Frei
Jorge?

Telmo – Já, sim. Vão-se desvanecendo – ainda bem! – os agouros de vossa mãe…
hão de sair falsos de todo. O arcebispo, o conde de Sabugal e os outros, já vosso
tio os trouxe à razão, já os moderou! Miguel de Moura é que ainda está renitente;
mas há de lhe passar. Por estes dias fica tudo sossegado. Já o estava, se ele
quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso. Mas ainda bem que o não quis
fazer; era desculpar com a vilania de uma mentira o generoso crime por que o
perseguem.

Maria – Meu nobre pai! Mas quando há de ele sair daquele homizio? Passar os dias
retirado nessa quinta tão triste de além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de
noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo!

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Telmo – Perigo nenhum; todos o sabem e fecham os olhos. Agora é só conservar


as aparências aí mais uns dias, e depois fica tudo como dantes.

Maria – Ficará, pode ser; Deus queira que seja! Mas tenho cá uma coisa que me
diz que aquela tristeza de minha mãe, aquele susto, aquele terror em que está – e
que ela disfarça com tanto trabalho na presença de meu pai (também a mim mo
queria encobrir, mas agora já não pode, coitada!) – aquilo é pressentimento de
desgraça grande… Oh! Mas é verdade… vinde cá: (Leva-o diante dos três retratos
que estão no fundo apontando para o de D. João de Portugal.) de quem é este aqui,
Telmo?

Telmo (Olha e vira a cara de repente)


- Esse é… há de ser… é um da família destes senhores da casa de Vimioso, que aqui
estão tantos.

Maria (Ameaçando-o com o dedo.)


- Tu não dizes a verdade, Telmo.

Telmo (Quase ofendido)


- Eu nunca menti, senhora D. Maria de Noronha.

Maria – Mas não diz a verdade toda o senhor Telmo Pais, que é quase o mesmo.

Telmo – O mesmo!... Disse-vos o que sei, e o que é verdade; é um cavaleiro da


família de meu outro amo que Deus… que Deus tenha em bom lugar.

Maria – E não tem nome o cavaleiro?

Telmo (embaraçado)
- Há de ter; mas eu é que…

Maria (Como quem lhe vai tapar a boca.)


- Agora é que tu ias mentir de todo, … cala-te. Não sei para que são estes
mistérios: cuidam que hei de ser sempre criança! Na noite que viemos para esta
casa, no meio de toda aquela desordem eu e a minha entrámos por aqui dentro sós
e viemos ter a esta sala. Estava ali um brandão aceso, encostado a uma dessas
cadeiras que tinham posto no meio da casa: dava todo o clarão da luz naquele
retrato… Minha mãe, que me trazia pela mão, põe de repente os olhos nele e dá um
grito. Oh meu Deus!... ficou tão perdida de susto, ou não sei de quê!, que me ia
caindo em cima. Pergunto-lhe o que é; não me respondeu: arrebata da tocha, e
leva-me com uma força… com uma pressa a correr por essas casas, que parecia
que vinha alguma coisa má atrás de nós. Ficou naquele estado em que a temos
visto há oito dias, e não lhe quis falar mais em tal. Mas este retrato, que ela ano
nomeia nunca de quem é, e só diz assim às vezes: “O outro, o outro…”, este retrato
e o de meu pai, que se queimou, são duas imagens que lhe não saem do
pensamento.

Telmo (com ansiedade)


- E esta noite ainda lidou muito nisso?
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Maria – Não: desde ontem, pela tarde, que cá esteve o tio Frei Jorge e a animou
com muitas palavras de consolação e de esperança em Deus, e que lhe disse do
que contava abrandar os governadores, minha mãe ficou outra: passou-lhe de
todo, ao menos até agora. Mas então, vamos, tu não me dizes do retrato? Olha:
(Designando o de el-rei D. Sebastião.) aquele do meio, bem sabes se o conhecerei:
é o do meu querido e amado rei D. Sebastião. Que majestade! Que testa aquela tão
austera, mesmo dum rei moço e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou a sério
o cargo de reinar, e jurou que há de engrandecer e cobrir de glória o seu reino! Ele
ali está… E pensar que havia de morrer às mãos de mouros, no meio de um
deserto, que numa hora se havia de apagar toda a ousadia refletida que está
naqueles olhos rasgados, no apertar daquela boca!... Não pode ser, não pode ser.
Deus não podia consentir em tal.

Telmo – Que Deus te ouvisse, anjo do Céu!

Maria – Pois não há profecias que o dizem? Há, e eu creio nelas. E também creio
naquele outro que ali está: (Indica o retrato de Camões.) aquele teu amigo com
quem tu andaste lá pela Índia, nessa terra de prodígios, e bizarrias, por onde ele
ia… como é? Ah, sim… “Nua mão sempre a espada e noutra a pena”…

Telmo – Oh! O meu Luís, coitado! Bem lho pegaram. Era um rapaz mais moço do
que eu, muito mais… e, quando o vi a última vez, foi no alpendre de S. Domingos
em Lisboa – parece-me que o estou a ver! – tão mal trajado, tão encolhido… ele
que era tão desembaraçado e galã… e então velho! – velho alquebrado – com
aquele olho que valia por dois, mas tão sumido e encovado já, que eu disse
comigo: “Ruim terra te comerá cedo, corpo da maior alma que deitou Portugal!” E
dei-lhe um abraço – foi o último… Ele pareceu ouvir o que me estava dizendo o
pensamento cá por dentro, e disse-me: “Adeus, Telmo! São Telmo seja comigo
neste cabo de navegação… que já vejo terra, amigo”, - e apontou para uma cova
que ali se estava a abrir. Os frades rezavam o ofício dos mortos na Igreja… Ele
entrou para lá, e eu fui-me embora. Daí a um mês, vieram-me aqui dizer: “Lá foi
Luís de Camões num lençol para Sant’Ana.” E ninguém mais falou nele.

Maria – Ninguém mais!... Pois não leem aquele livro que é para dar memória aos
mais esquecidos?

Telmo – O livro sim: aceitaram-no como tributo de um escravo. Estes ricos, estes
grandes, que oprimem e desprezam tudo o que não são as suas vaidades, tomaram
o livro como uma coisa que lhes fizesse um servo seu e para honra deles. O servo,
acabada a obra, deixaram no morrer ao desamparo, sem lhe importar com isso…
Quem sabe se folgaram? Podia pedir-lhes uma esmola – escusavam de se
incomodar a dizer que não.

Maria (com entusiasmo)


- Está no Céu, que o Céu fez-se para os bons e para os infelizes, para os que já cá
na Terra o adivinharam! Este lia nos mistérios de Deus; as suas palavras são de
profeta. Não te lembras o que lá diz do nosso rei D. Sebastião? Como havia de ele
então morrer? Não morreu. (Mudando de tom.) Mas o outro, o outro… quem é este
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outro, Telmo? Aquele aspeto tão triste, aquela expressão de melancolia tão
profunda, aquelas barbas tão negras e cerradas… e aquela mão, que descansa na
espada como quem não tem outro arrimo, nem outro amor, nesta vida…

Telmo (Deixando-se surpreender.)


- Pois tinha, oh se tinha…
(Maria olha para Telmo, como quem compreendeu, depois torna a fixar a vista no
retrato, e ambos ficam diante dele como fascinados. No entretanto, e às últimas
palavras de Maria, um homem embocado com o chapéu sobre os olhos, levanta o
reposteiro da direita e vem, pé ante pé, aproximando-se dos dois, que o não
sentem.)

Cena II

Manuel – Aquele era D. João de Portugal, um honrado fidalgo, e um valente


cavaleiro.

Maria (Respondendo sem observar quem lhe fala.)


- Bem mo dizia o coração.

Manuel (Desembuçando-se e tirando o chapéu com muito afeto.)


- Que te dizia o coração, minha filha?

Maria (Reconhecendo-o.)
- Oh! Meu pai, meu querido pai! Já me não diz nada o coração senão isto. (Lança-
se-lhe nos braços e beija-o na face muitas vezes.) Ainda bem que viestes. Mas de
dia!... Não tendes receio, não há perigo já?

Manuel – Perigo, pouco. Ontem à noite não pude vir; e hoje não tive paciência
para aguardar todo o dia: vim bem coberto com esta capa…

Telmo – Não há perigo nenhum, meu senhor; podeis estar à vontade e sem receio.
Esta madrugada, muito cedo, estive no convento, e sei pelo senhor Frei Jorge que
está, se pode dizer, tudo concluído.

Manuel – Pois ainda bem, Maria. E tua mãe, tua mãe, filha?

Maria – Desde ontem está outra…

Manuel (em ação de partir)


- Vamos a vê-la.

Maria (Retendo-o.)
- Não, que dorme ainda.

Manuel – Dorme? Oh! Então melhor. Sentemo-nos aqui, filha, e conversemos.


(Toma-lhe as mãos; sentam-se.) Tens as mãos tão quentes; (Beija-a na testa.) e
esta testa, esta testa!... Escalda! Se isto está sempre a ferver! Valha-te Deus,
Maria! Eu não quero que tu penses!
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Maria – Então que hei de eu fazer?

Manuel – Folgar, rir, brincar, tanger na harpa, correr nos campos, apanhar das
flores… E Telmo que te não conte mais histórias, que te não ensine mais trovas e
solaus. Poetas e trovadores padecem todos da cabeça… e é um mal que se pega.

Maria – Então para que fazeis vós como eles?... Eu bem sei que fazeis.

Manuel (Sorrindo.)
- Se tu sabes tudo! Maria, minha Maria! (Animando-a.) Mas não sabias ainda agora
de quem era aquele retrato…

Maria – Sabia.

Manuel – Ah! Você sabia e estava fingindo?

Maria (gravemente)
- Fingir, não, meu pai. A verdade… é que eu sabia de um saber cá de dentro;
ninguém mo tinha dito, e eu queria ficar certa.

Manuel – Então adivinhas, feiticeira. (Beijando-a na testa.) Telmo, ide ver se


chamais meu irmão; dizei-lhe que estou aqui.

Cena III

Manuel – Ora ouve cá, filha. Tu tens uma grande propensão para achar maravilhas
e mistérios nas coisas mais naturais e singelas. E Deus entregou tudo à nossa razão
menos os segredos de Sua natureza inefável, os de Seu amor, e de Sua justiça e
misericórdia para connosco. Esses são os pontos sublimes e incompreensíveis da
nossa fé! Esses creem-se: tudo o mais examina-se. Mas vamos, (sorrindo) não
dirão que sou da Ordem dos Pregadores? Há de ser destas paredes, é unção da
casa: que isto é quase um convento aqui, Maria… Para frades de S. Domingos não
nos falta senão o hábito…

Maria – Que não faz o monge…

Manuel – Assim é, querida filha! Sem hábito, sem escapulário nem correia, por
baixo do cetim e do veludo o cilício pode andar tão apertado sobre as carnes, o
coração tão contrito no peito… a morte – e a vida que vem depois dela – tão diante
dos olhos sempre, como na cela mais estreita e com o burel mais grosseiro cingido.
Mas enfim, chega-te aos bons… sempre é meio caminho andado. Eu estou
contentíssimo de virmos para esta casa, quase que nem já me pesa da outra.
Tenho aqui meu irmão Jorge e todos estes bons padres de S. Domingos como de
portas adentro. Ainda não viste daqui a igreja? (Levanta o reposteiro do fundo e
chegam ambos à tribuna.) É uma devota capela esta. E todo o templo tão grave!
Dá consolação vê-lo. Deus nos deixe gozar em paz de tão boa vizinhança. (Tornam
para o meio da casa.)

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Maria (que parou diante do retrato de D. João de Portugal, volta-se de repente


para o pai.)
- Meu pai, este retrato é parecido?

Manuel – Muito; é raro ver tão perfeita semelhança: o ar, os ademanes, tudo. O
pintor copiou fielmente quanto viu. Mas não podia ver, nem lhe cabiam na tela, as
nobres qualidades de alma, a grandeza, e valentia de coração, e a fortaleza daquela
vontade, serena mais indomável, que nunca foi vista mudar. Tua mãe ainda hoje
estremece só de o ouvir nomear; era um respeito… era quase um temor santo que
lhe tinha.

Maria – E lá ficou naquela fatal batalha!...

Manuel – Ficou. Tens muita pena, Maria?

Maria – Tenho.

Manuel – Mas se ele vivesse… não existias tu agora, não te tinha eu aqui nos meus
braços.

Maria (Escondendo a cabeça no seio de seu pai.)


- Ai! Meu pai!

Cena IV

Jorge – Ora alvíssaras, minha dona sobrinha! Venha-me já abraçar, senhora D.


Maria. (Maria beija-lhe o escapulário; e depois abraçam-se.) Inda bem que vieste,
meu irmão! Está tudo feito: os governadores deixam cair o caso em esquecimento;
Miguel de Moura já cedeu. O arcebispo foi ontem a Lisboa e volta esta tarde. Vamos
eu e mais quatro religiosos nossos buscá-lo para o acompanhar, e tu hás de vir
connosco para lhe agradecer: que não teve parte no agravo que te fizeram, e foi
quem acabou com os outros que se não ressentissem da ofensa ou do que lhes
prouve tomar como tal… Deixemos isso. Volta para o convento e quase que vem
ser teu hóspede! É preciso fazer-lhe cumprimento, que no-lo merece.

Manuel – Se ele vem só, sem os outros…

Jorge – Só, só; os outros estão por essas quintas de aquém do Tejo. E nós não
chegamos aqui senão lá por noite.

Manuel – Se entendes que posso ir…

Jorge – Podes e deves.

Manuel – Vou, decerto. E até eu preciso de ir a Lisboa: tenho negócio de


importância no Sacramento, no vosso convento novo de freiras abaixo de S.
Vicente; necessito falar com a abadessa.

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Maria – Oh! Meu pai, meu querido pai: levai-me, por quem sois, convosco! Eu
queria ver a tia Joana de Castro, é o maior gosto que eu posso ter nesta vida.
Quero ver aquele rosto… De mim não se há de tapar…

Manuel – E tua mãe?

Maria – Minha mãe dá licença, dá. Ela já está boa… oh! E em vos vendo fica boa de
todo, e eu vou.

Manuel – E os ares maus de Lisboa?

Jorge – Isso já acabou de todo; nem sinal de peste. Mas, enfim, a prudência…

Maria – A mim não se me pega nada, meu querido pai; vamos, vamos.

Manuel – Veremos o que diz tua mãe e como ela está.

Cena V

Madalena (Correndo a abraçar Manuel de Sousa.)


- Estou boa já; não tenho nada, esposo da minha alma; todo o meu mal era susto,
era terror de te perder.

Manuel – Querida Madalena!

Madalena – Agora estou boa: Telmo já me disse tudo e curou-me com a boa nova.
Maria, Deus lembrou-se de nós: ouviu as tuas orações, filha, que as minhas… (Vai a
recair na sua tristeza.)

Jorge – Ora pois, mana, ora pois!... Louvado seja Ele por tudo. E haja alegria! Que
era sermos desagradecidos para com o Senhor, que nos valeu, mostrar-se hoje
alguém triste nesta casa.

Madalena (Fazendo por se alegrar.)


- Triste, porquê? As tristezas acabaram. (Para Manuel de Sousa) Tu ficas aqui já de
vez, não me deixas mais, não sais de ao pé de mim? Agora, olha, estes primeiros
dias, ao menos, hás de me aturar, hás de me fazer companhia. Preciso muito,
querido.

Manuel – Pois sim, Madalena, sim; farei quanto quiseres.

Madalena – É que eu estou boa… boa de todo, mas tenho uma…

Manuel – Uma imaginação que te atormenta. Havemos de castigá-la, ainda que


não seja senão para dar exemplo a certa donzela que nos está ouvindo e que
precisa… precisa muito. Pois olha: hoje é sexta-feira…

Madalena – Sexta-feira! (aterrada) Ai! Que é sexta-feira!

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Manuel – Para mim tem sido sempre o dia mais estreado de toda a semana.

Madalena – Sim.

Manuel – É o dia da paixão de Cristo, Madalena.

Madalena (caindo em si.)


- Tens razão.

Manuel – É hoje sexta-feira; e daqui a oito… vamos – daqui a quinze dias bem
contados, não saio de casa. Estás contente?

Madalena – Meu esposo, meu marido, meu querido Manuel!

Manuel – E tu, Maria?

Maria (amuada)
- Eu não.

Manuel (para Madalena)


- Queres tu saber por que é aquele amuo? É que precisava de ir hoje a Lisboa…

Madalena – A Lisboa… hoje!

Manuel – Sim, e não posso deixar de ir. Sabes que, por fins desta minha
pendência com os governadores, eu fiquei em dívida – quem sabe se da vida?
Miguel de Moura e esses meus degenerados parentes eram capazes de tudo! – mas
o certo é que fiquei em muita dívida ao arcebispo. Ele volta hoje para o convento; e
meu irmão, que vai com outros religiosos para o acompanharem, entende que eu
também devo ir. Bem vês que não há remédio.

Madalena – Logo hoje!... Este dia de hoje é o pior… se fosse amanhã, se fosse
passado hoje!... E quando estarás de volta?

Jorge – Estamos aqui sem falta à boca da noite.

Madalena (Fazendo por se resignar.)


- Paciência, ao menos valha-nos isso. Não me deixam aqui só outra noite… Esta
noite, particularmente, não fico só…

Manuel – Não, sossega, não: estou aqui ao anoitecer. E nunca mais saio de ao pé
de ti. E não serão quinze dias: vinte, os que tu quiseres.

Maria – Então vou, meu pai, vou? Minha mãe dá licença, dá?

Madalena – Vais aonde, filha? Que dizes tu?

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Maria – Com meu pai, que tem de ir ao Sacramento, de caminho. E bem sabeis,
querida mãe, que eu ando há tanto tempo para ir àquele convento para conhecer a
tia D. Joana.

Jorge – Soror Joana: assim é que se chama agora.

Maria – É verdade. E andam-me a prometer, há um ano, que me hão de levar lá…


Desta vez hão de mo cumprir, não é assim, minha mãe. (Acarinhando-a) Minha
querida mãezinha? Sim, sim, dizei já que sim.

Madalena (abraçada com a filha)


- Oh! Maria… Maria, também tu me queres deixar! Também tu me desamparas… e
hoje!

Maria – Venho logo, minha mãe, venho logo. Olha, e não tenhais cuidado comigo:
vai meu pai, vai o tio Jorge – levo a minha aia, a Doroteia… E, é verdade, o meu
fiel escudeiro há de ir também, o meu Telmo.

Madalena – E tua mãe, filha, deixa-la aqui só, a morrer de tristeza? (À parte) E
de medo?

Manuel – Tua mãe tem razão; não há de ser assim, hoje não pode ser. (Maria fica
triste e desconsolada.)

Jorge – Ora pois: eu já disse que não queria ver hoje ninguém triste nesta casa.
Venha cá a minha donzela dolorida, (pegando-lhe na mão) e faça aqui muitas
festas ao tio frade, que eu fico a fazer companhia a sua mãe. E vá, vá satisfazer
essa louvável curiosidade que tem de ir ver aquela santa freirinha, que tanto deixou
para deixar o mundo e se ir enterrar num claustro. Vá e venha… melhor de coração
não pode ser – que tu és boa como as que são boas, minha Maria; mas quero-te
mais fria de cabeça: ouves?

Maria (À parte)
- Fria!... Quando ela estiver oca. (Alto) Vou-me aprontar, minha mãe?

Madalena (Sem vontade)


- Se teu pai quer…

Manuel – Dou licença: vai. (Maria sai a correr.)

Cena VI

Manuel – É preciso deixá-la espairecer, mudar de lugar, distrair-se: aquele sangue


está em chamas, arde sobre si e consome-se, a não o deixarem correr à vontade.
Há vir melhor: verás.

Madalena – Deus o queira! Telmo que vá com ela: não o quero cá.

Manuel – Porquê?
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Madalena – Porque… Maria… Maria não está bem sem ele, e ele também… em
estando sem Maria, - que é a sua segunda vida, diz o pobre velho – sabes? Já
treslê muito… já está muito… e entra-me com cismas que…

Manuel – Está, está muito velho, coitado! Pois que vá: melhor é.

Cena VII

Maria – Então vamos, meu pai.

Manuel – Pois vamos.

Jorge – E são horas, vão. À Ribeira é um pedaço de rio; e até às sete, o mais, tu
precisas de estar de volta, à porta da Oira, que é onde irão ter os nossos padres à
espera do arcebispo. Eu cá me desculparei com o prior. Vão.

Maria – Minha mãe! (Abraçando-a.) Então, se chorais assim, não vou.

Manuel – Nem eu, Madalena. Ora pois! Eu nunca te vi assim.

Madalena – Porque eu nunca assim estive… Vão, vão… adeus! Adeus, esposo do
meu coração! Maria, minha filha, toma sentido no ar, não te resfries. E o sol… não
saias debaixo do toldo no bergantim. Telmo, não te tires de ao pé dela. Dá-me
outro abraço, filha. Doroteia, levais tudo? (Examina uma bolsa grande de damasco
que Doroteia leva no braço.) Pode haver qualquer coisa, molhar-se, ter frio para a
tarde… (Tendo examinado a bolsa.) Vai tudo: bem! (Baixo a Doroteia) Não me
apartes os olhos dela, Doroteia. Ouve. (Fala baixo a Doroteia que lhe responde
baixo também: depois diz alto.) Está bem.

Manuel – Não tenhais cuidado, vamos todos com ela.


(Abraçam-se outra vez. Maria sai apressadamente e para a mãe não ver que vai
sufocada com choro.)

Cena VIII

Madalena (Seguindo com os olhos a filha, e respondendo a Manuel de Sousa.)


- Cuidados!... eu não tenho já cuidados. Tenho este medo, este horror de ficar só…
de vir a achar-me só no mundo.

Manuel – Madalena!

Madalena – Que queres? Não está na minha mão. Mas tu tens razão de te enfadar
com as minhas impertinências. Não falemos mais nisso. Vai. Adeus! Outro abraço.
Adeus!

Manuel – Oh! Querida mulher minha! Parece que vou eu agora embarcar num
galeão para a Índia… Ora vamos: ao anoitecer. Antes da noite, aqui estou. E Jesus!

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Olha a condessa de Vimioso. Esta Joana de Castro, que a nossa Maria tanto deseja
conhecer… olha se ela faria esses prantos quando disse o último adeus ao marido…

Madalena – Bendita ela seja! Deu-lhe Deus muita força, muita virtude. Mas não
lha invejo, não sou capaz de chegar a essas perfeições.

Jorge – É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: “Deixa tudo e segue-me”.

Madalena – Vivos, ambos… sem ofensa um do outro, querendo-se, estimando-se e


separar-se cada um para a sua cova! Verem-se com a mortalha já vestida, e…
vivos, sãos… depois de tantos anos de amor… e convivência… condenarem-se a
morrer longe um do outro, sós, sós! E quem sabe se nessa tremenda hora…
arrependidos!

Jorge – Não o permitirá Deus, assim… Oh! Não. Que horrível coisa seria!

Manuel – Não o permite, não. Mas não pensemos mais neles: estão entregues a
Deus… (pausa) e que temos nós com isso? A nossa situação é tão diferente.
(pausa) Em todas nos pode Ele abençoar. Adeus, Madalena, adeus! Até logo! Maria
já lá vai no cais a esta hora… Adeus! Jorge, não a deixes.
(Abraçam-se: Madalena vai até fora da porta com ele.)

Cena IX

Jorge – Eu faço por estar alegre e queria vê-los contentes a eles… mas não sei já
que diga do estado em que vejo minha cunhada, a filha… Até meu irmão o
desconheço! A todos parece que o coração lhes adivinha desgraça… E eu quase que
também já se me pega o mal. Deus seja connosco!

Cena X

Madalena (Falando ao bastidor.)


- Vai, ouves, Miranda? Vai e deixa-te lá estar até veres chegar o bergantim: e
quando desembarcarem, vem-me dizer, para eu ficar descansada. (Vem para a
cena.) Não há vento, e o dia está lindo. Ao menos, não tenho sustos com a viagem.
Mas à volta… quem sabe? O tempo muda tão depressa…

Jorge – Não, hoje não tem perigo.

Madalena – Hoje… hoje! Pois hoje é o dia da minha vida que mais tenho receado…
que ainda temo que não acabe sem muita grande desgraça… É um dia fatal para
mim: faz hoje anos que… casei a primeira vez, faz anos que se perdeu el-rei D.
Sebastião, e faz anos também que… vi pela primeira vez a Manuel de Sousa.

Jorge – Pois contais essa entre as infelicidades da vossa vida?

Madalena – Conto. Este amor, que hoje está santificado e bendito no Céu, porque
Manuel de Sousa é meu marido, começou com um crime, porque eu amei-o assim
que o vi… e quando o vi, hoje, hoje… foi em tal dia como hoje! – D. João de
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Portugal ainda era vivo. O pecado estava-me no coração: a boca não o disse… os
olhos não sei o que fizeram, mas dentro da alma eu já não tinha outra imagem
senão a do amante… já não guardava a meu marido, a meu bom… a meu generoso
marido… senão a grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quase que mais
deve a si do que ao esposo. Permitiu Deus… quem sabe se para me tentar?... que
naquela funesta batalha de Alcácer, entre tantos, ficasse também D. João…

Cena XI

Miranda (Apressado)
- Senhora!... minha senhora!

Madalena (Sobressaltada)
- Quem vos chamou, que quereis? Ah! És tu, Miranda! Como assim! Já chegaram?
Não pode ser.

Miranda – Não, minha senhora; ainda agora irão passando o pontal. Mas não é
isso…

Madalena – Então o que é? Não vos disse eu que não viésseis dali antes de os ver
chegar?

Miranda – Para lá torno já, minha senhora; há tempo de sobejo. Mas venho trazer-
vos recado… um estranho recado, por minha fé.

Madalena – Dizei já, que me estais a assustar.

Miranda – Para tanto não é; nem coisa séria, antes quase para rir. É um pobre
velho peregrino, um destes romeiros que aqui estão sempre a passar, que vêm das
bandas de Espanha…

Madalena – Um cativo… um remido?

Miranda – Não, senhora, não traz a cruz, nem é; é um romeiro, algum destes que
vão a Santiago; mas diz ele que vem de Roma e dos Santos Lugares.

Madalena – Pois, coitado, virá. Agasalhai-o; e deem-lhe o que precisar.

Miranda – É que ele diz que vem da Terra Santa, e…

Madalena – E porque não virá? Ide, ide, e fazei-o acomodar. É velho?

Miranda – Muito velho, e com umas barbas!... Nunca vi tão formosas barbas de
velho, e tão alvas! Mas, senhora, diz ele que vem da Palestina e que vos traz
recado.

Madalena – A mim?!

Miranda – A vós; e que por força vos há de ver e falar.


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Madalena – Ide vê-lo, Frei Jorge. Engano há de ser; mas ide ver o pobre do velho.

Miranda – É escusado, minha senhora: o recado que traz diz que a outrem o não
dará senão a vós, e que muito vos importa sabê-lo.

Jorge – Eu sei o que é: alguma relíquia dos Santos Lugares, se ele com efeito de lá
vem, que o bom do velho vos quer dar… como tais coisas se dão a pessoas da
vossa qualidade… a troco de uma esmola avultada. É o que ele há de querer: é o
costume.

Madalena – Pois venha embora o romeiro! E trazei-mo aqui, trazei.

Cena XII

Jorge – Que é preciso muita cautela com estes peregrinos! A vieira no chapéu e o
bordão na mão às vezes não são mais do que negaças para armar à caridade dos
fiéis. E nestes tempos revoltos…

Cena XIII

Miranda (Da porta)


- Aqui está o romeiro.

Madalena – Que entre. E vós, Miranda, tornai para onde vos mandei; ide já, e
fazei como vos disse.

Jorge (Chegando à porta da direita.)


- Entrai, irmão, entrai. (O romeiro entra devagar.) Esta é a senhora D. Madalena de
Vilhena. É esta a fidalga a quem desejais falar?

Romeiro – A mesma.
(A um sinal de Frei Jorge, Miranda retira-se.)

Cena XIV

Jorge – Sois português?

Romeiro – Como os melhores, espero em Deus.

Jorge – E vindes?...

Romeiro – Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo.

Jorge – E visitastes todos os Santos Lugares?

Romeiro – Não os visitei; morei lá vinte anos cumpridos.

Madalena – Santa vida levastes, bom romeiro.


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Romeiro – Oxalá! Padeci muita fome, e não a sofri com paciência; deram-me
muitos tratos, e nem sempre os levei com os olhos n’ Aquele que ali tinha padecido
tanto por mim… Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se
obrou… e as paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus
segundo a carne, tratavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar
com Deus, nem naquela terra que é toda Sua. Oh! Eu não merecia estar onde
estive: bem vedes que não soube morrer lá.

Jorge – Pois bem: Deus quis trazer-vos à terra de vossos pais: e, quando for Sua
vontade, ireis morrer sossegado nos braços de vossos filhos.

Romeiro – Eu não tenho filhos, padre.

Jorge – No seio de vossa família…

Romeiro – A minha família… Já não tenho família.

Madalena – Sempre há parentes, amigos…

Romeiro – Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava achar…


contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela; hão de jurar que
não me conhecem.

Madalena – Haverá tão má gente… e tão vil, que tal faça?

Romeiro – Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder!

Madalena – Não façais juízos temerários, bom romeiro.

Romeiro – Não faço. De parentes, já sei mais do que queria. Amigos tenho um;
com esse conto.

Jorge – Já não sois tão infeliz.

Madalena – E o que eu puder fazer-vos, todo o amparo e agasalho que puder dar-
vos, contai comigo, bom velho, e com meu marido, que há de folgar de vos
proteger…

Romeiro – Eu já vos pedi alguma coisa, senhora?

Madalena – Pois perdoais, se vos ofendi, amigo.

Romeiro – Não há ofensa verdadeira senão as que se fazem a Deus. Pedi-lhe vós
perdão a Ele, que vos não faltará de quê.

Madalena – Não, irmão, não decerto. E Ele terá compaixão de mim.

Romeiro – Terá…
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Jorge (Cortando a conversação.)


- Bom velho, dissestes trazer um recado a esta dama: dai-lho já, que haveis mister
de ir descansar…

Romeiro (Sorrindo amargamente.)


- Quereis lembrar-me que estou abusando da paciência com que me têm ouvido?
Fizestes bem, padre: eu ia-me esquecendo… talvez me esquecesse de toda a
mensagem a que vim… Estou tão velho e mudado do que fui!

Madalena – Deixai, deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir; dir-me-eis o vosso
recado quando quiserdes… logo, amanhã…

Romeiro – Hoje há de ser. Há três dias que não durmo nem descanso, nem pousei
esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje, para
vos dar meu recado… e morrer depois ainda que morresse depois: porque jurei…
faz hoje um ano – quando me libertaram, dei juramento sobre a pedra santa do
Sepulcro de Cristo…

Madalena – Pois éreis cativo em Jerusalém?

Romeiro – Era: não vos disse que vivi lá vinte anos?

Madalena – Sim, mas…

Romeiro – Mas o juramento que dei foi que, antes de um ano cumprido, estaria
diante de vós e vos diria a parte de quem me mandou…

Madalena (Aterrada)
- E quem vos mandou, homem?

Romeiro – Um homem foi, e um honrado homem a quem unicamente devi a


liberdade… a ninguém mais. Jurei fazer-lhe a vontade, e vim.

Madalena – Como se chama?

Romeiro – O seu nome, nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no cativeiro.

Madalena – Mas, enfim, dizei vós…

Romeiro – As suas palavras trago-as escritas no coração com as lágrimas de


sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que me
correram por estas faces. Ninguém o consolava senão eu… e Deus! Vede se me
esqueceriam as suas palavras.

Jorge – Homem, acabai!

Romeiro – Agora acabo: sofrei, que ele também sofreu muito. Aqui estão as suas
palavras: “Ide a D. Madalena de Vilhena e dizei-lhe que um homem que muito bem
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lhe quis aqui está vivo por seu mal e daqui não pode sair nem mandar-lhe novas
suas de há vintes anos que o trouxeram cativo.”

Madalena (Na maior ansiedade)


- Deus tenha misericórdia de mim! E esse homem… esse homem… Jesus! Esse
homem era… esse homem tinha sido… levaram-no aí de onde?... De África?

Romeiro – Levaram.

Madalena – Cativo?...

Romeiro – Sim.

Madalena – Português… cativo da batalha de…

Romeiro – De Alcácer-Quibir.

Madalena (Espavorida)
- Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo dos meus pés?... Que não
caem estas paredes, que me não sepultam já aqui?...

Jorge – Calai-vos, D. Madalena: a misericórdia de Deus é infinita; esperai. Eu


duvido, eu não creio… estas não são coisas para se crerem de leve. (Reflete e logo
como por uma ideia que lhe acudiu de repente.) Oh! Inspiração divina… (Chegando
ao romeiro.) Conheceis bem esse homem, romeiro, não é assim?

Romeiro – Como a mim mesmo.

Jorge – Se o víreis… ainda que fora noutros trajos… com menos anos – pintado,
digamos – conhecê-lo-eis?

Romeiro – Como se me visse a mim mesmo num espelho.

Jorge – Procurai nesses retratos, e dizei-me se algum deles pode ser.

Romeiro (Sem procurar, e apontando logo para o retrato de D. João.)


- É aquele.

Madalena (com um grito espantoso)


- Minha filha, minha filha, minha filha! (Em tom cavo e profundo) Estou… estás…
perdidas, desonradas… infames! (Com outro grito do coração.) Oh! Minha filha,
minha filha! (Foge espavorida e a gritar.)

Cena XV

Jorge – Romeiro, romeiro! Quem és tu?!

Romeiro (Apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal.)


- Ninguém!
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(Frei Jorge cai prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna. O
pano desce lentamente.)

ATO TERCEIRO

Parte baixa do palácio de D. João de Portugal, comunicando, pela porta à


esquerda do espectador, com a capela da Senhora da Piedade na igreja de S. Paulo
dos Domínicos de Almada: é um casarão sem ornato algum. Arrumadas às paredes,
em diversos pontos, escadas, tocheiras, cruzes, ciriais e outras alfaias e
guisamentos de igreja, de uso conhecido. A um lado um esquife dos que usam as
confrarias, do outro, uma grande cruz negra de tábua com o letreiro J.N.R.J., e
toalha pendente como se usa nas cerimónias da semana santa, mais para a cena
uma banca velha com dois ou três tamboretes: a um lado, uma tocheira baixa, com
tocha acesa e já bastante gasta; sobre a mesa, um castiçal de chumbo, de
credencia, baixo e com vela acesa também, e um hábito completo de religioso
domínico, túnica, escapulário, rosário, cinto, etc. No fundo, porta que dá para as
oficinas e aposentos que ocupam o resto dos baixos do palácio. – É alta noite.

Cena I

Manuel (Sentado num tamborete, ao pé da mesa, o rosto inclinado sobre o peito,


os braços caídos e em completa prostração de espírito e de corpo; num tamborete,
do outro lado, Jorge, meio encostado para a mesa, com as mãos postas e os olhos
pregados no irmão.)
– Oh! Minha filha, minha filha! (Silêncio longo) Desgraçada filha, que ficas órfã!...
órfã de pai e de mãe… (pausa) e de família e de nome, que tudo perdeste hoje…
(Levanta-se com violenta aflição.) A desgraçada nunca os teve. Oh! Jorge, que esta
lembrança é que me mata, que me desespera! (Apertando a mão do irmão, que se
levantou após ele e o está consolando do gesto.) É o castigo terrível do meu erro…
se foi erro… crime sei que não foi. E sabe-o Deus, Jorge, e castigou-me assim, meu
irmão.

Jorge – Paciência, paciência: se os Seus juízos são imperscrutáveis. (Acalma e faz


sentar o irmão; tornam a ficar ambos como estavam.)

Manuel – Mas eu em que mereci ser feito o homem mais infeliz da terra, posto de
alvo à irrisão e ao discursar do vulgo?... Manuel de Sousa Coutinho, o filho de Lopo
de Sousa Coutinho, o filho do nosso pai, Jorge!

Jorge – Tu chamas-te o homem mais infeliz da terra… Já te esqueceste que ainda


está vivo aquele…

Manuel (Caindo em si.)


- É verdade. (Pausa, e depois, como quem se desdiz.) Mas não é, nem tanto;
padeceu mais, padeceu mais longamente, e bebeu até às fezes o cálix das
amarguras humanas… (Levantando a voz.) Mas fui eu, eu que lho preparei, eu que
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lho dei a beber, pelas mãos… inocentes mãos!... dessa infeliz que arrastei na minha
queda, que lancei nesse abismo de vergonha, a quem cobri as faces, as faces puras
e que não tinham corado doutro pejo senão do da virtude e do recato… cobri-lhas
de um véu de infâmia que nem a morte há de levantar, porque lhe fica, perpétuo e
para sempre, lançando sobre o túmulo, a cobrir-lhe a memória de sombras… de
manchas que não se lavam! Fui eu o autor de tudo isto, o autor da minha desgraça
e da sua desonra deles… Sei-o, conheço-o: e não sou mais infeliz que nenhum?

Jorge – Vê a palavra que disseste: “desonra”. Lembra-te dela e de ti, e considera


se podes pleitear misérias com esse homem a quem Deus não quis acudir com a
morte antes de conhecer essa outra agonia maior. Ele não tem…

Manuel – Ele não tem uma filha como eu, desgraçado… (pausa) Uma filha bela,
pura. Adorada, sobre cuja cabeça – oh! por que não é na minha! – vai cair toda
essa desonra, toda a ignomínia, todo o opróbrio que a injustiça do mundo, não sei
porquê, me não quer lançar no rosto a mim, para pôr tudo na testa branca e pura
de um anjo, que não tem outra culpa senão a da origem que eu lhe dei.

Jorge – Não é assim, meu irmão; não te cegues com a dor, não te faças mais
infeliz do que és. Já não és pouco, meu pobre Manuel, meu querido irmão! E Deus
há de levar em conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos
beiços, que tu padeces há de ser descontado nela, há de resgatar a culpa.

Manuel – Resgate! Sim, para o Céu: nesse confio eu… mas o mundo?

Jorge – Deixa o mundo e as suas vaidades.

Manuel – Estão deixadas todas. Mas este coração é de carne.

Jorge – Deus, Deus será o pai de tua filha.

Manuel – Olha, Jorge: queres que te diga o que eu sei de certo, e que devia ser
consolação… mas não é, que eu sou homem, não sou anjo, meu irmão, - devia ser
consolação, e é desespero, é a coroa de espinhos de toda esta paixão que estou
passando… É que a minha filha… Maria… a filha do meu amor, a filha do meu
pecado, se Deus quer que seja pecado, não vive, não resiste, não sobrevive a esta
afronta. (Desata a soluçar, cai com os cotovelos fixos na mesa e as mãos apertadas
no rosto; fica nesta posição por longo tempo. Ouve-se de quando em quando um
soluço comprimido. Frei Jorge está em pé, detrás dele, amparando-o com o seu
corpo, e os olhos postos no céu.)

Jorge (Chamando timidamente.)


- Manuel.

Manuel – Que queres, meu irmão?

Jorge (Animando-o.)
- Ela já não está tão mal: já lá estive hoje…

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Manuel – Estiveste?... Oh! Conta-me, conta-me: eu não tenho… não tive ainda
ânimo de a ir ver.

Jorge – Haverá duas horas que entrei na sua câmara, e estive ao pé do leito.
Dormia, e mais sossegada da respiração. O acesso de febre, que a tomou quando
chegámos de Lisboa e que viu a mãe naquele estado, parecia declinar… quebrar-se
mais alguma coisa. Doroteia e Telmo pobre velho, coitado!... estavam ao pé dela,
cada um de seu lado… disseram-me que não tinha tornado a… a…

Manuel – A lançar sangue? Se ela deitou o do coração!... Não tem mais. Naquele
corpo tão franzino, tão delgado, que mais sangue há de haver? Quando ontem a
arranquei de ao pé da mãe e a levava nos braços, não mo lançou todo às golfadas
aqui no peito? (Mostra um lenço branco todo manchado de sangue.) Não o tenho
aqui… o sangue… o sangue da minha vítima?... que é o sangue das minhas veias…
que é o sangue da minha alma – é o sangue da minha querida filha! (Beija o lenço
muitas vezes.) Oh! Meu Deus, meu Deus! Eu queria pedir-Te que a levasses já… e
não tenho ânimo. Eu devia aceitar por mercê de Tuas misericórdias que chamasses
aquele anjo para junto dos teus, antes que o mundo, este mundo infame e sem
comiseração, lhe cuspisse na cara com a desgraça do seu nascimento. Devia,
devia… e não posso, não quero, não sei, não tenho ânimo, não tenho coração.
Peço-Te vida, meu Deus, (ajoelha e põe as mãos.) peço-Te vida, vida, vida… para
ela, para a minha querida filha!... saúde, vida para a minha querida filha!... e
morra eu de vergonha, se é preciso, cubra-me o escárnio do mundo, desonre-me o
opróbrio dos homens, tape-me a sepultura uma lousa de ignomínia, um epitáfio
que fique a bradar por essa eras desonra e infâmia sobre mim!... Oh! Meu Deus,
meu Deus! (Cai de bruços no chão… Passado algum tempo, Frei Jorge chega-se
para ele, levanta-o quase a peso e torna-o a assentar.)

Jorge – Manuel, meu bom Manuel, - Deus sabe melhor o que nos convém a todos:
põe nas Suas mãos esse pobre coração, põe-no resignado e contrito, meu irmão, e
Ele fará o que em Sua misericórdia sabe que é melhor.

Manuel (Com veemência e medo)


- Então desenganas-me… desenganas-me já?... é isso que queres dizer? Fala,
homem: não há que esperar?... não há que esperar dali, não é assim? Dize: morre?
(Desanimado) Também fico sem filha!

Jorge – Não disse tal. Por caridade contigo, meu irmão, não imagines tal. Eu disse-
te a verdade: Maria pareceu-me menos oprimida: dormia…

Manuel (Variando.)
- Se Deus quisera que não acordasse!

Jorge – Valha-me Deus!

Manuel – Para mim, aqui está esta mortalha: (Tocando no hábito.) morri hoje…
vou amortalhar-me logo: e adeus tudo o que era mundo para mim! Mas minha filha
não era do mundo… não era, Jorge: tu bem sabes que não era; foi um anjo que
veio do Céu para me acompanhar na peregrinação da terra, e que me apontava
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sempre, a cada passo da vida, para a eterna pousada de onde viera e aonde me
conduzia… Separou-nos o arcanjo das desgraças, o ministro das iras do Senhor,
que derramou sobre mim o vaso cheio de lágrimas e a taça rasa das amarguras
ardentes de Sua cólera… (Caindo de tom.) Vou com esta mortalha para a
sepultura… e, viva ou morta, cá deixo a minha filha no meio dos homens, que a não
conheceram, que a não hão de conhecer nunca, porque ela não era deste mundo,
nem para ele… (pausa) Torna lá, Jorge, vai vê-la outra vez, vai e vem-me dizer:
que eu ainda não posso… mas hei de ir, oh! Hei de ir vê-la e beijá-la antes de
descer à cova… Tu não queres, não podes querer…

Jorge – Havemos de ir… quando estiveres mais sossegado… havemos de ir ambos:


descansa, hás de vê-la. Mas isto ainda é cedo.

Manuel – Que horas serão?

Jorge – Quatro, quatro e meia. (Vai à porta da esquerda e volta.) São cinco horas,
pelo alvor da manhã, que já dá nos vidros da igreja. Daqui a pouco iremos, mas
sossega.

Manuel – E a outra… a outra desgraçada, meu irmão?

Jorge – Está – imagina por ti – está como não podia deixar de estar; mas a
confiança em Deus pode muito: vai-se conformando. O Senhor fará o resto. Eu
tenho fé neste escapulário (tocando no hábito em cima da mesa) para ti e para ela.
Foi uma resolução digna de vós, foi uma inspiração digna de vós, foi uma
inspiração divina que os aluminou a ambos. Deixa estar: ainda pode haver dias
felizes para quem souber consagrar a Deus as suas desgraças.

Manuel – E isso está tudo pronto? Eu não sofro nestes hábitos, eu não aturo, com
estes vestidos de vivo, a luz desse dia que vem a nascer.

Jorge – Está tudo concluído. O arcebispo mostrou-se bom e piedoso prelado nesta
ocasião, e é um santo homem, é. O arcebispo já expediu todas as licenças e mais
papéis necessários. Coitado! O pobre do velho velou quase toda a noite com o
vigário para que não faltasse nada desde o romper do dia. Mandou-se ao provincial,
e pela sua parte e pela nossa tudo está corrente. Frei João de Portugal, que é o
Prior de Benfica, e também vigário do Sacramento, sabes, chegou haverá duas
horas, noite fechada ainda, e cá está: é quem te há de lançar o hábito, a ti e a
Dona… a minha irmã. Depois ireis, segundo vosso desejo, um para Benfica, outro
para o Sacramento.

Manuel – Tu és um bom irmão, Jorge. (Aperta-lhe a mão.) Deus to há de pagar.


(pausa) Eu não me atrevo… tenho repugnância… mas é forçoso perguntar-te por
alguém mais. Onde está ele… e o que fará?...

Jorge – Bem sei, não digas mais: o romeiro. Está na minha cela, e de lá não há de
sair – que foi ajustado entre nós – senão quando… quando eu lho disser. Descansa:
não verá ninguém, nem será visto de nenhum daqueles que o não devem ver.
Demais, o segredo de seu nome verdadeiro está entre mim e ti, além do arcebispo,
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a quem foi indispensável comunicá-lo para evitar todas as formalidades e delongas,


que aliás havia de haver numa separação desta ordem. Ainda há outra pessoa com
quem lhe prometi – não pude deixar de prometer, porque sem isso não queria ele
entrar em acordo nenhum – com quem lhe prometi que havia de falar hoje e antes
de mais nada.

Manuel – Quem? Será possível?... Pois esse homem quer ter a crueldade de
rasgar, fevra a fevra, os pedaços daquele coração já partido? Não tem entranhas
esse homem: sempre assim foi, duro e desapiedado como a sua espada. É D.
Madalena que ele quer ver?...

Jorge – Não homem; é o seu aio velho, é Telmo Pais. Como lho havia eu de
recusar!

Manuel – De nenhum modo; fizeste bem: eu é que sou injusto. Mas o que eu
padeço é tanto e tal… Vamos: eu ainda me não entendo bem claro com esta
desgraça. Dize-me, fala-me a verdade: minha mulher… - minha mulher! Com que
boca pronuncio eu ainda estas palavras! – D. Madalena o que sabe?

Jorge – O que lhe disse o romeiro naquela fatal sala dos retratos… o que já te
contei. Sabe que D. João está vivo, mas não sabe onde: supõe-no na Palestina
talvez; é onde o deve supor, pelas palavras que ouviu.

Manuel – Então não conhece, como eu, toda a extensão, toda a indubitável
verdade da nossa desgraça. Ainda bem! Talvez possa duvidar, consolar-se com
alguma esperança de incerteza.

Jorge – Ontem de tarde, não: mas esta noite começava a raiar-lhe no espírito
alguma falsa luz dessa vã esperança. Deus lha deixe, se é para bem seu.

Manuel – Por que não há de deixar? Não é para desgraçada bastante? E Maria, a
pobre Maria!... Essa confio no Senhor que não saiba, ao menos por ora…

Jorge – Não sabe. E ninguém lho disse, nem dirá. Não sabe senão o que viu: a
mãe quase nas agonias da morte. Mas o motivo, só se ela o adivinhar. Tenho medo
que o faça…

Manuel – Também eu.

Jorge – Deus será connosco e com ela! Mas não: Telmo não lhe diz nada, por
certo. Eu já lhe asseverei – e acreditou-me – que a mãe estava melhor, que tu ias
logo vê-la… E assim espero que, até lá por meio do dia, a possamos conservar em
completa ignorância de tudo. Depois ir-se-lhe-á dizendo pouco a pouco, até onde
for inevitável. E Deus… Deus lhe acudirá.

Manuel – Minha pobre filha, minha querida filha!

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Cena II

Telmo (Batendo de fora à porta do fundo.)


- Acordou.

Manuel (Sobressaltado)
- É a voz de Telmo.

Jorge – É. (Indo abrir a porta.) Entrai, Telmo.

Telmo – Acordou.

Jorge – E como está?

Telmo – Melhor, muito melhor, parece outro. Está muito abatida, isso sim; muito
fraca, a voz lenta, mas os olhos serenos, animados como dantes e sem aquele
fuzilar de ontem. Perguntou por vós… ambos.

Manuel – E pela mãe?

Telmo – Não: nunca mais falou nela.

Manuel – Oh! filha, filha!...

Jorge – Iremos vê-la. (Pega na mão do irmão.) Tu prometes-me?...

Manuel – Prometo.

Jorge – Vamos. (Chamando a Telmo para a boca da cena.) Ouvi, Telmo: lembrai-
vos do que vos disse esta manhã?

Telmo – Não me hei de lembrar?

Jorge – Ficai aqui. Em nós saindo, puxai aquela corda que vai dar à sineta da
sacristia: virá um irmão converso; dizei-lhe o vosso nome, ele ir-se-á sem mais
palavras, e vós esperai. Fechai logo esta porta por dentro, e não abrais se não à
minha voz. Entendestes?

Telmo – Ide descansado.

Cena III

Telmo (Vai para deitar a mão à corda, para suspenso algum tempo, e depois…)
- Vamos; isto há de ser. (Ouve-se tocar longe uma sineta. Telmo fica pensativo e
com o braço levantado e imóvel.)

Converso – Quem sois?

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Telmo (Estremecendo.)
- Telmo Pais.
(O Converso faz vénia e vai-se.)

CENA IV

Telmo (só) – Virou-me a alma toda com isto: não sou já o mesmo homem. Tinha
um pressentimento do que havia de acontecer… parecia-me que não podia deixar
de suceder… e cuidei que o desejava enquanto não veio. Veio, e fiquei mais
aterrado, mais confuso que ninguém! Meu honrado amo, o filho do meu nobre
senhor, está vivo… o filho que eu criei nestes braços… vou saber novas certas dele
– no fim de vinte anos de o julgarem perdido; e eu, eu que sempre esperei, que
sempre suspirei pela sua vinda… - era um milagre que eu esperava sem o crer! –
eu agora tremo… É que o amor desta outra filha, desta última filha, é maior, e
venceu… venceu… apagou o outro. Perdoe-me, Deus, se é pecado. Mas que pecado
há de haver com aquele anjo? Se me ela viverá, se escapará desta crise terrível!
Meu Deus, meu Deus! (Ajoelha.) Levai o velho que já não presta para nada. Levai-o
por quem sois! (Aparece o romeiro à porta da esquerda e vem lentamente
aproximando-se de Telmo, que não dá por ele.) Contentai-vos com este pobre
sacrifício da minha vida, Senhor, e não me tomeis dos braços o inocentinho que eu
criei para Vós, Senhor, para vós… mas ainda não, não mo leveis ainda! Já padeceu
muito, já trespassaram bastantes dores aquela alma: esperai-lhe com a morte
algum tempo!...

Cena V

Romeiro – Que não oiça Deus o teu rogo!

Telmo (Sobressaltado)
- Que voz! Ah! É o romeiro. Que me não oiça Deus! Porquê?

Romeiro – Não pedias tu por teu desgraçado amo, pelo filho que criaste?

Telmo (À parte)
- Já não sei pedir senão pela outra. (Alto) E que pedisse por ele, ou por outrem, por
que me não há de ouvir Deus, se lhe peço a vida de um inocente?

Romeiro – E quem te disse que ele o era?

Telmo – Esta voz… esta voz! Romeiro, quem és tu?

Romeiro (Tirando o chapéu e levantando o cabelo dos olhos.)


- Ninguém, Telmo, ninguém: se nem tu já me conheces.

Telmo (Deitando-se-lhe as mãos para lhas beijar.)


- Meu amo! Meu senhor!... sois vós? Sois, sois D. João de Portugal, oh! Sois vós,
senhor?

Romeiro – Teu filho já não?


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Telmo – Meu filho!... Oh!... Oh! É o meu filho todo: a voz, o rosto… Só estas
barbas, este cabelo não… Mais branco já que o meu, senhor!

Romeiro – São vinte anos de cativeiro e miséria, de saudades, de ânsia que por
aqui passaram. Para a cabeça bastou uma noite como a que veio depois da batalha
de Alcácer; a barba acabaram de a curar o sol da Palestina e as águas do Jordão.

Telmo – Por tão longe andastes!

Romeiro – E por tão longe eu morrera! Mas não quis Deus assim.

Telmo – Seja feita a Sua vontade.

Romeiro – Pesa-te?

Telmo – Oh! Senhor!

Romeiro – Pesa-te…

Telmo – Há de me pesar da vossa vida? (À parte) Meu Deus! Parece-me que


menti…

Romeiro – E porque não, se já me pesa a mim dela, se tanto me pesa ela a mim?
Amigo, ouve… tu és meu amigo?

Telmo – Não sou?

Romeiro – És. Bem sei. E contudo, vinte anos de ausência e de conversação de


novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!... Mas tu és meu amigo. E se tu
não foras, quem o seria?

Telmo – Senhor!

Romeiro – Eu não quis acabar com isto, não quis pôr em efeito a minha última
resolução sem falar contigo, sem ouvir da tua boca…

Telmo – O que quereis que vos diga, senhor? Eu…

Romeiro – Tu, bem sei que duvidaste sempre da minha morte, que não quiseste
ceder a nenhuma evidência: não me admirou de ti, meu Telmo. Mas também não
posso – Deus me ouve – não posso criminar ninguém porque o acreditasse: as
provas eram de convencer todo o ânimo; só lhe podia resistir o coração. E aqui… o
coração que fosse meu… não havia outro.

Telmo – Sois injusto.

Romeiro – Bem sei o que quereis dizer. E é verdade isso? É verdade que por toda
a parte me procuram, que por toda a parte ela mandou mensageiros, dinheiro?
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Telmo – Como é certo estar Deus no Céu, como é verdade ser aquela a mais
honrada e virtuosa dama que tem Portugal.

Romeiro – Basta: vai dizer-lhe que o peregrino era um impostor, que


desapareceu, que ninguém mais houve novas dele, que tudo isto foi vil e grosseiro
embuste dos inimigos de… dos inimigos desse homem que ela ama. E que
sossegue, que seja feliz. Telmo, adeus!

Telmo – E eu hei de mentir, senhor, eu hei de renegar de vós, como um vilão que
não sou?

Romeiro – Hás de, porque eu te mando.

Telmo (Em grande ansiedade)


- Senhor, senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo. É que vós não sabeis… D.
João, meu senhor, meu amo, meu filhos, vós não sabeis…

Romeiro – O quê?

Telmo – Que há aqui um anjo… uma outra filha minha, senhor, que eu também
criei…

Romeiro – E a quem já queres mais que a mim: dize a verdade.

Telmo – Não mo pergunteis.

Romeiro – Nem é preciso. Assim devia de ser. Também tu! Tiraram-me tudo.
(pausa) E têm um filho eles?... Eu não… E mais, imagino… Oh! Passaram hoje pior
noite do que eu. Que lho leve Deus em conta e lhes perdoe como eu perdoei já.
Telmo, vai fazer o que te mandei.

Telmo – Meu Deus, meus Deus! Que hei de eu fazer?

Romeiro – O que te ordena teu amo, Telmo. Dá-me um abraço. (Abraçam-se.)


Adeus, adeus, até…

Telmo (Com ansiedade crescente)


- Até quando, senhor?

Romeiro – Até ao dia do juízo.

Telmo – Pois vós?

Romeiro – Eu… Vai, saberás de mim, quando for tempo. Agora é preciso remediar
o mal feito. Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel. E para quê? D. João de
Portugal morreu no dia em que sua mulher disse que ele morrera. Sua mulher
honrada e virtuosa, sua mulher que ele amava. – Oh! Telmo, Telmo, com que amor
a amava eu! – sua mulher que ele já não pode amar sem desonra nem vergonha!...
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Na hora em que ela acreditou na minha morte, nessa hora morri. Com a mão que
deu a outro, riscou-me do número dos vivos. D. João de Portugal não há de
desonrar a sua viúva. Não; vai: dito por ti terá dobrada força. Diz-lhe que falaste
com o romeiro, que o examinaste, que o convenceste de falso e impostor… diz o
que quiseres, mas salva-a, a ela da vergonha, e ao meu nome da afronta. De mim
já não há senão esse nome, ainda honrado; a memória dele, que fique sem
mancha. Está em tuas mãos, Telmo, entrego-te mais que a minha vida. Queres
faltar-me agora?

Telmo – Não, meu senhor: a resolução é nobre e digna de vós. Mas pode ela
aproveitar ainda?

Romeiro – Por que não?

Telmo – Eu sei! Talvez…

Cena VI

Madalena – Esposo, esposo! Abri-me, por quem sois! Bem sei que aqui estais:
abri.

Romeiro – É ela que me chama, Santo Deus! Madalena que chama por mim…

Telmo – Por vós?

Romeiro – Pois por quem? Não lhe ouves gritar: “esposo, esposo”?

Madalena – Marido da minha alma, pelo nosso amor te peço, pelos doces nomes
que me deste, pelas memórias da nossa felicidade antiga, pelas saudades de tanto
amor e tanta ventura, oh! Não me negues este último favor.

Romeiro – Que encanto, que sedução! Como lhe hei de resistir?

Madalena – Meu marido, meu amor, meu Manuel!

Romeiro – Ah! E eu tão cego que já tomava para mim!... Céu e Inferno, abra-se
esta porta… (Investe para a porta com ímpeto, mas para de repente.) Não: o que é
dito é dito. (Vai precipitadamente à corda da sineta, toca com violência, aparece o
mesmo irmão converso e, a um sinal do Romeiro, ambos desaparecem pela porta
da esquerda.)

Cena VII

Madalena (Ainda de fora)


- Jorge, meu irmão, Frei Jorge, vós estais aí, que eu bem sei: abri-me por caridade,
deixai-me dizer uma única palavra a meu… a vosso irmão: e não vos importuno
mais, e farei tudo o que de mim quereis, e… (Ouve-se do mesmo lado ruído de
passos apressados, e logo depois a voz de Frei Jorge.)

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Jorge (De fora)


- Telmo, Telmo, abri, se podeis… abri já.

Telmo (Abrindo a porta.)


- Aqui estou eu só.

Madalena (Entrando desgrenhada e fora de si, procurando, com os olhos, todos os


recantos da casa.)
- Estáveis aqui só, Telmo. E ele para onde foi?

Telmo – Ele quem, senhora?

Jorge (Vindo à frente.)


- Telmo estava aqui aguardando por mim, e com ordem de não abrir a ninguém
enquanto eu não viesse.

Madalena – Aqui havia duas vozes que falavam: distintamente as ouvi.

Telmo (Aterrado)
- Ouvistes?

Madalena – Sim, ouvi. Onde está ele, Telmo? Onde está meu marido… Manuel de
Sousa?

Manuel (Que tem estado no fundo, enquanto Madalena, sem o ver, se adiantara
para a cena, vem agora à frente.)
- Esse homem está aqui, senhora; que lhe quereis?

Madalena – Oh! Que ar, que tom, que modo esse com que me falas!...

Manuel – Madalena… (Caindo em si e gravemente.) Senhora, como quereis que


vos fale, que quereis que vos diga? Não está tudo dito entre nós?

Madalena – Tudo! Quem sabe? Eu parece-me que não. Olha: eu sei… mas não
daríamos nós, com demasiada precipitação, uma fé tão cega, uma crença tão
implícita a essas misteriosas palavras de um romeiro, um vagabundo… um homem,
enfim, que ninguém conhece? Pois dize…

Telmo (À parte a Jorge)


- Tenho que vos dizer, ouvi. (Conversam ambos à parte.)

Manuel – Oh! Madalena, Madalena! Não tenho mais nada para te dizer. Crê-me,
que to juro na presença de Deus: a nossa união, o nosso amor é impossível.

Jorge (Continuando a conversação com Telmo e levantando a voz com aspereza.)


- É impossível já agora… e sempre o devia ser!

Madalena (Virando-se para Jorge.)


- Também tu, Jorge.
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Jorge (Virando-se para ela.)


- Eu falava com Telmo, minha irmã. (Para Telmo) Ide, Telmo, ide onde vos disse,
que sois mais preciso lá. (Fala-lhe ao ouvido; depois alto.) Não ma deixeis um
instante, ao menos até passar a hora fatal. (Telmo sai com repugnância, e
rodeando para ver se chega ao pé de Madalena. Jorge, que o percebe, faz-lhe um
sinal imperioso; ele recua, e finalmente retira-se pelo fundo.)

Cena VIII

Madalena – Jorge, meu irmão, meu bom Jorge, vós que sois tão prudente e
refletido, não dais nenhum peso às minhas dúvidas?

Jorge – Tomara eu ser tão feliz que pudesse, querida irmã.

Madalena – Pois entendeis?...

Manuel - Madalena, senhora! Todas estas coisas são já indignas de nós. Até
ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava na boa fé
e seguridade de nossas consciências. Essa acabou. Para nós já não há senão estas
mortalhas (tomando os hábitos de cima do banco.) e a sepultura de um claustro. A
resolução que tomámos é a única possível, e já não há que voltar atrás. Ainda
ontem falávamos dos condes de Vimioso… Quem nos diria… Oh! Incompreensíveis
mistérios de Deus!... Ânimo, e ponhamos os olhos naquela cruz! Pela última vez,
Madalena, pela derradeira vez, neste mundo, querida… (Vai para a abraçar e
recua.) Adeus! Adeus! (Foge precipitadamente pela porta da esquerda.)

Cena IX

Madalena – Ouve, espera: uma só, uma só palavra; Manuel de Sousa!... (Toca o
órgão dentro.)

Coro (Dentro)
- De profundis clamavi ad te, Domine; Domine exaudi vocem meam.

Madalena (Indo abraçar-se com a cruz.)


- Oh! Deus: Senhor meu! Pois já, já? Nem mais um instante, meu Deus? Cruz do
meu Redentor, é cruz preciosa, refúgio de infelizes, ampara-me tu, que me
abandonaram todos neste mundo, e já não posso com as minhas desgraças… e
estou feita um espetáculo de dor e de espanto para o Céu e para a terra! Tomai,
Senhor, tomai tudo… A minha filha também?... Oh! A minha filha, a minha filha…
também essa Vos dou, meu Deus. E agora, que mais quereis de mim, Senhor?
(Toca o órgão outra vez.)

Coro (Dentro)
- Fiant aures tuae intendentes in vocem deprecationis meae.

Jorge – Vinde, minha irmã, é a voz do Senhor que vos chama. Vai começar a santa
cerimónia.
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Madalena (Enxugando as lágrimas e com resolução.)


- Ele foi?

Jorge – Foi sim, minha irmã.

Madalena (Levantando-se.)
- E eu vou. (Saem ambos pela porta do fundo.)

Cena X

Corre o pano de fundo e aparece a igreja de S. Paulo; os frades sentados no coro.


Em pé, junto ao altar-mor, o Prior de Benfica. Sobre o altar, dois escapulários
dominicanos. Manuel de Sousa, de joelhos, com o hábito de noviço vestido, à
direita do Prior. O arcebispo, de capa magna e barrete, no seu trono, rodeado dos
seus clérigos em sobrepelizes. Pouco depois entra Jorge acompanhando Madalena,
também vestida de noviça e que vai ajoelhar à esquerda do Prior. Toca o órgão.

Coro – Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit?

Prior (Tomando os escapulários de cima do altar.)


- Manuel de Sousa Coutinho, irmão Luís de Sousa, pois em tudo quisestes despir o
homem velho, abandonando também ao mundo o nome que nele tínheis! Soror
Madalena! Vós ambos, que já fostes senhores do mundo, e aqui estais prostrados
no pó da terra, nesse humilde hábito de pobres noviços, que deixastes tudo, até
vos deixar a vós mesmos… filhos de Jesus Cristo, e agora de nosso padre S.
Domingos, recebei com este bento escapulário…

Cena XI

Maria entra precipitadamente pela igreja em estado de completa alienação: traz


umas roupas brancas desalinhadas e caídas, os cabelos soltos, o rosto macerado,
mas inflamado com as rosetas hécticas; os olhos desvairados; para um momento,
reconhece os pais, e vai direta a eles. Espanto geral: a cerimónia interrompe-se.

Maria – Meu pai, meu pai, minha mãe! Levantai-vos, vinde! (Toma-os pelas mãos;
eles obedecem maquinalmente, vêm ao meio da cena; confusão geral.)

Madalena – Maria, minha filha!

Manuel – Filha, filha!... Oh! Minha filha!... (Abraçam-se ambos nela.)

Maria (Separando-se com eles da outra gente, e trazendo-os para a boca de cena.)
- Esperai: aqui não morre ninguém sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias
são estas? Que Deus é esse que está nesse altar e quer roubar o pai e a mãe e a
sua filha? (Para os circunstantes) Vós quem sois, espectros fatais?... Quereis-mos
tirar de meus braços? Essa é a minha mãe, este é o meu pai. Que me importa a
mim como o outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os
vivos, que se fique na cova ou que ressuscite agora para me matar? Mate-me,
Professora: Filipa Machado Português 11.º ano Módulo 5
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mate-me, se quer, mas deixei-me este pai, esta mãe, que são meus. Não há mais
do que vir ao meio de uma família e dizer: “Vós não sois marido e mulher… e esta
filha do vosso amor, esta filha criada ao colo de tantas meiguices, de tanta ternura,
esta filha é…”. Mãe, mãe, eu bem o sabia, nunca to disse, mas sabia-o; tinha-mo
dito aquele anjo terrível que me aparecia todas as noites para não me deixar
dormir… aquele anjo que descia com uma espada de chamas na mão, e a
atravessava entre mim e ti, que me arrancava dos teus braços quando eu
adormecia neles… que me fazia chorar quando meu pai ia beijar-me no teu colo.
Mãe, mãe, tu não hás de morrer sem mim… Pai, dá cá um pano da tua mortalha…
dá cá, eu quero morrer antes que ele venha. (Encolhe-se no hábito do pai.) Quero-
me esconder aqui, antes que venha esse homem do outro mundo dizer-me na
minha cara e na tua, aqui diante de toda a gente: “Essa filha é a filha do crime e do
pecado!...” Não sou: dize, meu pai, não sou. (Vai para Madalena.) Pobre mãe, tu
não podes… coitada! Não tens ânimo… Nunca mentiste?... Pois mente agora, para
salvar a honra da tua filha para que lhe não tirem o nome de seu pai.

Madalena – Misericórdia, meu Deus!

Maria – Não queres? Tu também não, pai? Não querem. E eu hei de morrer assim…
e ele vem aí.

Cena XII

Romeiro (Para Telmo)


- Vai, vai: vê se ainda é tempo; salva-os, salva-os, que ainda podes… (Telmo dá
alguns passos para diante.)

Maria (Apontando para o Romeiro)


- É aquela voz, é ele, é ele. Já não é tempo… Minha mãe, meu pai, cobri-me bem
estas faces, que morro de vergonha… (Esconde o rosto no seio da mãe.) Morro,
morro… de vergonha. (Cai e fica morta no chão. Manuel de Sousa e Madalena
prostram-se ao pé do cadáver da filha.)

Manuel (Depois de algum espanto, levanta-se de joelhos.)


- Minha irmã, rezemos por alma… encomendemos a nossa alma a este anjo, que
Deus levou para Si. Padre Prior, podeis-me lançar aqui o escapulário?

Prior (Indo buscar o escapulário ao altar-mor e tornando.)


- Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se
dá senão no Céu.

(Toca o órgão, cai o pano.)

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SUGESTÃO DE ANÁLISE FREI LUÍS DE SOUSA

O texto dramático tem como principal objetivo a sua representação, sendo


quase sempre constituído por dois textos: um com indicações para o encenador
(didascálias) e outro com a ação propriamente dita. Além disso, pressupõe um
cenário, uma iluminação, um guarda-roupa, uma representação e espetadores. No
teatro clássico, as cenas dividem-se em atos. O Frei Luís de Sousa é constituído por
três atos e cada ato divide-se em cenas.

1. CONTEXTO HISTÓRICO

Para compreender e interpretar melhor esta obra literária, é necessário ter


em conta o seu contexto histórico:

 A situação criada pela Batalha de Alcácer Quibir assume um papel determinante


no futuro das personagens. Esta Batalha ocorreu no Norte de África, no dia 4 de
agosto de 1578. O exército português, comandado pelo rei D. Sebastião, foi
destroçado pelos Mouros, provocando a morte e o aprisionamento de milhares de
portugueses.
 Uma época de luta contra o domínio filipino, uma vez que Portugal esteve sob o
domínio filipino entre 1580 e 1640.
 A ação decorre no final do século XVII (1599).

2. ESPAÇO FÍSICO, SOCIAL E PSICOLÓGICO

A principal característica da estruturação do espaço em Frei Luís de Sousa é


a concentração. Os espaços desta peça são em número reduzido, sendo que a
mudança de ato implica a alteração de cenário.

1.º Ato: Palácio de D. Manuel de Sousa Coutinho

No Ato I, a ação desenrola-se numa sala do palácio de Manuel de Sousa


Coutinho, onde predomina o luxo, a riqueza, a elegância e o bom gosto: “câmara
antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância”.
O ambiente é aristocrata e tradicional (nobreza), de conforto e bem-estar,
com grandes janelas viradas para o rio Tejo. Estas janelas permitem a união entre
o interior e o exterior, e a visualização de um plano de toda a cidade de Lisboa.
Esta amplitude está relacionada com a liberdade das personagens, evidenciando a
sua autonomia que será progressivamente negada com a evolução dos
acontecimentos.
O retrato de Manuel de Sousa Coutinho que está nesta sala é um elemento
simbólico: ao ser devorado pelas chamas que consomem o palácio, funciona como
indício de desgraça.

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Espaço psicológico: O aspeto colorido do espaço remete para a felicidade


(aparente) vivida pelas personagens.

2.º Ato: Palácio de D. João de Portugal (após D. Manuel ter incendiado o


seu palácio)

No Ato II, as personagens encontram-se num salão do Palácio de D. João de


Portugal, caracterizado por uma decoração melancólica e pesada, com a presença
dos retratos de D. João, Camões e D. Sebastião. Trata-se de um “salão antigo, de
gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de família”, que trazem à
memória o passado que D. Madalena quer esquecer e receia que emerjam. Os
reposteiros cobrem as portas que dão acesso ao interior e ao exterior, significando
a clausura das personagens abandonadas à sua ansiedade e ao seu sofrimento.
Este espaço já permite observar o local onde decorrerá “a morte social” de Manuel
de Sousa Coutinho e D. Madalena, e a morte física de Maria: a capela de Nossa
Senhora de Piedade.
No salão deste palácio, a vontade própria das personagens desvanece, a
abertura dá lugar ao fechamento e as portas "cobertas de reposteiros" fazem o
mundo exterior desaparecer.

Espaço psicológico: Este ambiente remete para a melancolia, a tristeza e o


saudosismo (prenúncio a desgraça fatal).

3.º Ato: Caves do Palácio de D. João de Portugal e Igreja de São Paulo

As personagens encontram-se na parte inferior do Palácio (sem qualquer


ornamentação), que comunica com a capela de Nossa Senhora da Piedade e
simboliza uma descida, pressupondo uma passagem para outro estado da
existência humana.
Com efeito, D. Madalena e D. Manuel de Sousa Coutinho acabam por
se desprender de todos os seus bens e preocupações materiais e mundanas,
quando abraçam uma vida religiosa. Como alternativa ao escândalo social, o casal
“morre” (socialmente) e renasce sob outra identidade. Podemos concluir que o
afunilamento gradual do espaço em Frei Luís de Sousa anda a par com o avolumar
da tragédia.

Desta forma, o espaço físico retrata o espaço psicológico. Este espelha


os sentimentos e pensamentos das personagens, sendo constituído essencialmente
a partir dos monólogos e sonhos de Madalena. As coordenadas do espaço
psicológico da obra são delimitadas pelos sonhos proféticos e devaneios de Maria,
assim como por diversos monólogos:

– o monólogo de D. Madalena, que reflete sobre uns versos d' Os Lusíadas, dando
conta das preocupações constantes em que vive (cena I, ato I);
– o monólogo de Manuel de Sousa Coutinho, quando decide incendiar o seu palácio
(cena XI, ato I);
- as reflexões ponderadas de Frei Jorge, que parece antever a desgraça que se vai
abater sobre a família de seu irmão (cena IX, ato II);

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- o monólogo de Telmo, que revela verdadeiramente o seu conflito interior no final


da peça (cena IV, ato III).

No que diz respeito à sociedade, existem várias indicações que contribuem


para a integração das personagens numa classe social elevada – a nobreza: D.
Madalena tem o epíteto "dona", que só se dava no século XVII às senhoras da
aristocracia ("D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem vindes,
senhora"); Manuel de Sousa Coutinho é cavaleiro de Malta, uma ordem religiosa
unicamente para nobres; D. João de Portugal pertence à família de Vimiosos e
Maria, a "dona bela", tem "sangue dos Vilhenas e dos Sousas".
O espaço social é também delimitado pela crítica que o autor dirige à
opressão social causada pelo domínio filipino e ao preconceito que recai sobre a
ilegitimidade (problema que afetou a própria filha de Garrett).

3. TEMPO CRONOLÓGICO, S IMBÓLICO E PSICOLÓGICO

O Ato I tem início no final da tarde do dia 28 de julho (6.ª feira); o Ato II
começa na tarde do dia 4 de agosto (6.ª feira) e o III no mesmo dia, mas de
madrugada (4h30).
É possível situar a ação desta peça em 1599, pois sabemos que D. João
regressa 14 anos após o segundo casamento de D. Madalena e 21 anos depois do
seu desaparecimento na Batalha de Alcácer Quibir. Mais concretamente, a ação de
Frei Luís de Sousa desenrola-se entre os dias 28 de julho e 5 de agosto de
1599, portanto durante pouco mais de uma semana, iniciando e terminando à
sexta-feira, dia que possui um elevado valor simbólico (aziago), dado que nele
coincidem vários acontecimentos na vida das personagens:

 Casamento de Madalena com D. João de Portugal (antes de 1578).


 Madalena vê Manuel de Sousa Coutinho pela primeira vez e apaixona-se por
ele, mesmo estando casada com D. João de Portugal.
 Desaparecimento de D. João na Batalha de Alcácer Quibir (4 de agosto de
1578), na qual desapareceu também o rei D. Sebastião.
 Manuel de Sousa Coutinho incendeia a sua casa (motivado pelo domínio
filipino/espanhol), o que origina a mudança para o palácio de D. João, onde
irá aparecer a figura do Romeiro.

Apesar de Garrett não respeitar as regras rígidas da unidade de tempo


clássica (a ação deveria decorrer em 24 horas), a estruturação do tempo assenta
na concentração e no afunilamento progressivo.

No que diz respeito ao número sete e aos seus múltiplos:

 Madalena procura o primeiro marido durante sete anos.


 O seu casamento com Manuel dura catorze anos.
 D. João de Portugal regressa após vinte e um anos de cativeiro.
 Este número corresponde ao número de dias que constituem uma semana,
ligando-se à conclusão de um ciclo e ao início de outro. Neste caso,

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relaciona-se com o final da vida do casal e, consequentemente, com a sua


tragédia pessoal.

Tempo psicológico

À medida que o tempo passa, as personagens vão ficando cada vez


mais frágeis, os seus receios aumentam e o sofrimento intensifica-se face ao
futuro. A coincidência entre o tempo dramático e o tempo psicológico é conseguido
através do terror de Madalena pela sexta-feira, enfatizado pelo advérbio de tempo
“hoje” - anunciador de desgraça, fatalidade e solidão. Com efeito, encontramos
evidências do tempo psicológico sobretudo em D. Madalena – "Tenho este medo,
este horror de ficar só… de vir a achar-me só no mundo!" – e em Maria: "a perda
do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma
desgraça inesperada, mas certa (…)", "E há…oh! há grande desgraça a cair sobre
meu pai decerto! E sobre minha mãe também, que é o mesmo."

4. CARACTERIZAÇÃO DA S PERSONAGENS

Logo no início da peça, D. Madalena de Vilhena está a ler o episódio de


Inês de Castro d’ Os Lusíadas e compara-se à desafortunada Inês, cujos amores
por D. Pedro tiveram um desfecho trágico. Deste modo, pressupõem-se que nunca
viveu em plena felicidade devido ao profundo conflito íntimo, visto que não tem a
certeza da morte do seu primeiro marido.
D. Madalena revela-se insegura, angustiada e constantemente inquieta
perante o passado, presente e futuro. Casou por amor com D. Manuel de Sousa
Coutinho, mas o regresso do primeiro marido impossibilita essa união e acaba por
seguir a vida religiosa.

D. Manuel de Sousa Coutinho é um homem decidido, corajoso, honrado,


patriota, bom esposo e bom pai. Num ato de coragem e patriotismo, este nobre
incendeia o próprio palácio a fim de impedir a sua ocupação pelos espanhóis. Com
o regresso do Romeiro, D. Manuel é obrigado a adotar o hábito eclesiástico para
salvar a honra.

D. Maria de Noronha é uma jovem precoce física e psicologicamente.


Apesar de possuir características da alma infantil (pureza, meiguice e imaginação),
revela uma estranha sensibilidade e manifesta atributos típicos de um adulto, já
que é inteligente, intuitiva, lúcida e culta (leu Camões e Bernandim Ribeiro, por
exemplo).
A sua obsessão pelo rei D. Sebastião representa uma trágica ironia, na
medida em que o regresso de alguém que acompanhou D. Sebastião na Batalha de
Alcácer Quibir irá destruir a sua vida.
A emoção e a tuberculose conduzi-la-ão até à morte. Na verdade, ela
consegue ver e observar a grandes distâncias, o que constitui um terrível sinal da
doença.

Telmo Pais assume o papel de fiel servidor de D. João de Portugal e, mais


tarde, de D. Maria. De certa forma, critica a precipitação de Madalena e sempre
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acreditou que o seu amo poderia ainda estar vivo, honrando sempre a memória
deste. Os seus agoiros e pressentimentos sempre assustaram D. Madalena, embora
seja o conselheiro e confidente da mãe e da filha.
O facto de D. João estar vivo provoca um conflito em Telmo, dividido entre o
amor que tem pelo seu antigo amo e a afeição que sente por Maria (educada e
criada como uma filha). Porém, quando D. João regressa, Telmo constata que o seu
amor por Maria é mais forte.

Frei Jorge representa o conselheiro, o confidente e o amigo de todos os


intervenientes.

Apesar de ausente fisicamente, a presença de D. João de Portugal é


evidente no pensamento de D. Madalena e de Telmo. Trata-se de um nobre valente
e patriota, que parte para Alcácer Quibir pela defesa da fé cristã e acaba prisioneiro
em Jerusalém, na Palestina. O seu nome aparece associado ao Apóstolo S. João
que difundiu a vida de Cristo. Vinte e um anos após a Batalha de Alcácer Quibir,
reaparece cansado, velho, sem força, com barbas brancas e completamente
irreconhecível. Simboliza o destino triste e decadente de uma geração.
Por um lado, D. João assume-se como ninguém, porque perdeu a família, a
posição social, a riqueza e a juventude. Por outro lado, é alguém que destrói o
casamento e a vida social de D. Manuel e D. Madalena (tornando a união ilegítima).

Características Românticas Personagens


Desejo de liberdade ansiando quebrar todas as Madalena, Maria,
correntes que prendem a liberdade do eu. Manuel de Sousa
Coutinho
Pessimismo, melancolia, desespero, angústia de Madalena
existir, superstição.
Evasão ou fuga para mundos imaginários, sonho, Madalena, Maria, Telmo
devaneio.
Nacionalismo, culto da ideologia patriótica. Manuel de Sousa
Coutinho
Defesa da Pátria e da justiça. Irreverência humana. Maria
Protótipo de mulher-anjo fragilizada.

5. ELEMENTOS TRÁGICO S

No texto "Memória ao Conservatório Real", Garrett refere que, apesar de se


contentar com o título de drama para a sua obra, esta apresenta características do
antigo género trágico ("Contento-me para a minha obra com o título modesto de
drama: só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa
composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da
categoria, pela índole há de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.").
Ora a tragédia clássica centra a sua ação num conflito entre os Homens e os
deuses: à arrogância do ser humano em ansiar pela liberdade, os deuses
respondem com um castigo que se traduz na catástrofe. Por outro lado, o drama
romântico assenta no real, que resulta da combinação do sublime e do grotesco; o
drama espelha a realidade social num dado momento e retrata o Homem não como

Professora: Filipa Machado Português 11.º ano Módulo 5


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vítima do destino e dos deuses, mas como ser responsável pelos seus próprios atos
e paixões.

Características da tragédia clássica presentes em Frei Luís de Sousa

– Existência de um número reduzido de personagens.


– Personagens pertencentes a estratos sociais elevados.
– Condensação do tempo em que a ação decorre.
– Existência de poucos espaços.
– Ação sintética, isto é, existe um número reduzido de ações a convergir para a
ação trágica.
– Reminiscência do coro da tragédia clássica em Frei Jorge e Telmo Pais.
– Existência de momentos que retardam o desenlace trágico.
– Ambiente trágico marcado por uma solenidade clássica.
– Presença de elementos da tragédia clássica como.

Efetivamente, desde o início, é percetível a presença de uma personagem


oculta no pensamento das personagens, que as irá arrastar para o destino fatal
(anankê): força superior que tudo domina e a quem ninguém pode escapar. A
atmosfera de superstição também é evidente: a sexta-feira sugere um dia azarado,
os números parecem escolhidos intencionalmente para marcarem o destino. Maria,
por exemplo, vive apenas treze anos (número indicador de azar).
O notório sofrimento (pathos) age sobre os espetadores, através de
sentimentos como o terror (phobos) e a piedade (eleos), e purifica as paixões
(catarse): o desfecho dramático culmina com a morte física de Maria e a morte
para a vida secular dos seus pais – purificação. O reconhecimento (anagnórise) do
regresso de D. João de Portugal desencadeia este desenlace trágico
(katastrophé), atingindo o clímax (a tensão emocional vai aumentando
gradualmente até ao momento de maior tensão) no final do segundo ato, com esse
reconhecimento.
No caso da hybris (desafio), D. Madalena não comete propriamente um
crime, embora tenha confessado a Frei Jorge a sua paixão por Manuel de Sousa
Coutinho, enquanto ainda estava casada com D. João, mantendo-lhe fidelidade.
Manuel também desafia o destino quando incendia o palácio. Também se evidencia
o agón (conflito), nos dilemas vividos por Telmo e por D. Madalena.
Assim, o fatalismo é uma presença constante e o presságio da desgraça
percorre toda a obra: as superstições; os pressentimentos de Madalena; a hipótese
de Maria ser filha ilegítima e, consequentemente, uma vítima sacrificada; a crença
de Telmo no Sebastianismo; as chamas que destroem a casa onde outrora os pais e
respetiva filha foram felizes.

6. CARACTERÍSTICAS DO DRAMA ROMÂNTICO PRESENTE S

– O texto escrito em prosa;


– A crítica social aos preconceitos que vitimam inocentes (como Maria);
– A situação real que subjaz à ação da peça, o que reitera a preocupação de Garrett
com a verdade e realidade dos acontecimentos;
– O Homem como alvo de atenção analítica;
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– A exaltação dos valores patrióticos e nacionais (sobretudo através de Manuel de


Sousa Coutinho);
– As superstições e agouros populares que retratam a cultura portuguesa;
– A religião cristã como um consolo;
– O realismo psicológico que caracteriza a transformação dos sentimentos de
Telmo, dividido entre o amor a D. João e a D. Maria de Noronha;
– A projeção da experiência pessoal do autor, que possuía uma filha ilegítima de
Adelaide Pastor Deville, por quem se apaixonara ainda casado com Luísa Midosi;
– A morte de Maria em palco;
– O não cumprimento da lei das três unidades da tragédia (unidade de ação, de
espaço e de tempo).

7. SEBASTIANISMO

D. Sebastião nasceu em Lisboa a 20 de janeiro de 1554, filho do príncipe D.


João e de D. Joana de Áustria, e morreu a 4 de agosto de 1578 na batalha de
Alcácer Quibir. Foi o décimo sexto rei de Portugal e é, até hoje, conhecido pelo
cognome de "O Desejado", tendo herdado o trono de seu avô, D. João III, em
1557, mas, como era menor, ficou sua avó, D. Catarina de Portugal, como regente.
Desde muito cedo, sentiu a necessidade de readquirir a glória passada e continuar
a cruzada de conquistar a terra dos infiéis, em nome de Deus. Assim, quando
atinge os catorze anos, reorganiza o exército, preparando-se para a guerra no
Norte de África, de onde nunca iria regressar.
Com a perda do jovem monarca, na Batalha de Alcácer Quibir, e a posterior
anexação de Portugal a Espanha, em 1580, o nosso país atravessa um dos períodos
mais negros da sua História. D. Sebastião não deixa descendência, o que afunda
Portugal numa época de inércia e de brumas, à espera de um heroico rei salvador.
Da relutância em reconhecer que, com a morte do rei, morria também o velho
Portugal, nasce um mito: o Sebastianismo. O mito sebastianista sustenta a
esperança messiânica e a crença nacional no regresso de D. Sebastião. O rei
"Desejado" iria vencer toda a opressão, sofrimento e miséria em que Portugal vivia,
restituindo-lhe o brilho e a glória de tempos passados.
A leitura interpretativa de Frei Luís de Sousa não pode esquecer a atuante
presença do Sebastianismo e o que este mito do "Desejado" significava na
conceção de Portugal: uma nação à procura da sua identidade, assombrada por
mitos do passado. A possibilidade teórica do regresso de D. Sebastião é
simbolicamente representada na peça pelo regresso de D. João de Portugal, na
figura do Romeiro. As personagens que melhor simbolizam a esperança no seu
regresso são Telmo e Maria.
Ao longo da peça, são várias as referências expressas à mítica figura de D.
Sebastião que, segundo Garrett, inserem esta obra "(...) no rico intertexto e
interdiscurso literário e cultural do Sebastianismo (...)" (Memória ao Conservatório
Real):

No primeiro diálogo entre D. Madalena e Telmo, D. Madalena censura ao


velho aio as suas crendices sebásticas: "(...) as tuas alusões frequentes a esse
desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis
acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade.", (Ato I,
cena II). Telmo acreditava no regresso do seu velho amo, D. João de Portugal, que

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acompanhara o jovem monarca D. Sebastião na sangrenta Batalha de Alcácer


Quibir.
As crenças sebastianistas de Telmo são assimiladas pela influenciável jovem
Maria de Noronha que acredita indubitavelmente no regresso do desejado
monarca, D. Sebastião: "(...) que não morreu e que há de vir, um dia de névoa
muito cerrada (...)" — (Ato I, cena III). Esta influência de Telmo no espírito de
Maria provoca grande aflição a D. Madalena de Vilhena: "(...) não vês que estás
excitando com tudo isso a curiosidade daquela criança, aguçando-lhe o espírito
(...)" — (Ato I, cena II).
O incêndio da casa de Manuel de Sousa Coutinho permite a mudança de
espaço físico, para o palácio de D. João de Portugal, e o contacto com o retrato de
D. Sebastião, que merece a curiosa e entusiasmada atenção de Maria: "(...) é o
do meu querido e amado rei D. Sebastião" — (Ato II, cena I). Aliás, o incêndio da
casa de Manuel de Sousa Coutinho não é só um viril ato de patriotismo, mas é
fulcral para o entendimento do Sebastianismo na peça: o incêndio espelha a
determinada busca de um novo espaço, e mesmo de uma nova ordem, para uma
família assombrada pelo passado que representa uma nação assombrada por mitos
e sonhos, como o do Sebastianismo. Garrett parece dizer-nos que Portugal não se
pode imobilizar na fixidez de um passado mítico, mas tem de mudar o rumo da sua
história, procurar uma nova ordem.
Podemos então concluir que o mito do Encoberto assume uma conotação
negativa em Frei Luís de Sousa, sendo perspetivado como sinal de paragem no
tempo, de estagnação e de sacrifício do herói na catástrofe final: Maria de Noronha
representa o sacrifício necessário para expiar os fantasmas do passado e definir o
futuro do país.
Com o regresso de D. João de Portugal na figura do Romeiro, o rumo da
história altera-se e precipita-se o aniquilamento da harmonia da família de Manuel
de Sousa Coutinho e de D. Madalena e a morte de Maria. D. João é o anti-herói, o
anti mito, cuja simples presença provoca destruição. De facto, há nesta obra uma
conceção destruidora deste regresso, já que não conduz à redenção ou salvação,
mas origina catástrofe e desgraça. Garrett parece sugerir que o Passado saudosista
e a sua passividade prejudicam a dinâmica do Presente, impedindo a regeneração
ativa do país.
Mais do que meras personagens de um drama familiar, na peça de Garrett
temos seres simbólicos, representativos do destino coletivo português, num
momento de profunda crise política, devido à perda da independência. Neste
sentido, a resposta “Ninguém!” do Romeiro a Frei Jorge pode ser associada a
Portugal, um país subjugado pelo domínio filipino.
Por isso, a espera sebástica em Frei Luís de Sousa simboliza a
problematização do modo de ser português, a autointerrogação de um Portugal que
busca a sua identidade e não se encontra.

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8. LINGUAGEM E ESTILO

Modos de representação
– diálogo/monólogo
Registos de língua:
– familiar;
– cuidado.
Em termos lexicais:
– recorrência de palavras conotadas com emoções;
– repetições;
– interjeições e locuções interjetivas;
– concentração frásica através de substituição lexical.
Em termos sintáticos:
– frases inacabadas e concentradas.
Prosódia:
– entoação, pausa e ritmo.
Pontuação:
– pontos exclamativos;
– pontos interrogativos;
– reticências.

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Análise do poema «O Sentimento dum Ocidental»
TEMA:
O tema deste longo poema (quarenta e quatro quadras) é o sentimento do desespero e protesto
que atormenta um português (um “ocidental”) face à cidade de Lisboa, percorrida desde o anoitecer até
à completa escuridão das «horas mortas». «Mas a cidade também representa o todo da civilização
ocidental a que Portugal pertence, e o sentimento que ela provoca (“melancolia”; “enjoo”; “desejo
absurdo de sofrer”) e ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela.

ESTRUTURA INTERNA:

O poema, como uma sinfonia em quatro andamentos, desenvolve-se em quatro secções, cada
uma com onze quadras. Trata-se de um registo das “perceções e impressões de um observador
caminhando nas ruas noturnas da cidade”, desde o anoitecer (“Ave-Marias”), continuando na “Noite
Fechada”, depois já com a iluminação pública acesa (“Ao Gás”) e, finalmente, altas horas da noite (“Horas
Mortas”). Este “passeio não é apenas um movimento no espaço das ruas da cidade; é também um
processo no tempo, uma viagem para dentro da noite durante a qual o “narrador” (sujeito poético)
penetra e confronta o mundo simbólico das sombras reais que é a cidade noturna. Noite e Cidade […] são
equivalentes simbólico¹.

1. «AVE-MARIAS»

A primeira secção do poema, intitulada «Ave-Marias» — designação das seis da tarde


ironicamente sugestiva da organização da vida segundo os ritmos bem ordenados de uma comunidade
unida pela devoção religiosa — abre com a descrição de uma angustiada reação psicológica ao impacto
das múltiplas impressões sensoriais do anoitecer nas ruas familiares (“as nossas ruas”) de Lisboa.
A vida das sombras que se acentuam, o escutar dos sons incessantes gradualmente abafados e o
cheiro a maresia exalado pelo rio despertam um generalizado desejo absurdo de sofrer que é a expressão
subjetiva da soturna melancolia da própria cidade. A noite desce como uma barreira opressiva que vem
fechar a cidade também de cima; na crescente escuridão, os prédios e os seres começam a fundir-se numa
massa informe, num todo orgânico que torna o ar saturado com a sua sombria humanidade (est. 1-2)
A cor que escurece os prédios e as chaminés e que transforma as pessoas numa escura multidão
– a turba – é caracterizada como monótona e londrina, o que ao mesmo tempo vem contrair e expandir
a gama de associações evocadas pela descrição da cidade. Londres era a grande capital mercantil da
civilização industrial […]
O efeito aprisionador da cidade, que se fecha sobre si própria, à medida que as sombras
escurecem e o ar se contamina com o cheiro nauseante do gás extravasado, provoca no poeta uma ânsia
inacessível de fugir, não necessariamente para qualquer outra das cidades enumeradas mas para a vasta
totalidade delas, o mundo, ironicamente representada na passagem dos carros de aluguer que levam à
via-férrea os que literalmente se vão (est. 3).
Mas, a lembrar-lhe o espaço real e o objetivo do momento presente, logo vê também a cidade
aprisionante a propagar-se, desmultiplicando-se em novas pequenas prisões ainda inacabadas (est. 4). A
edificação das gaiolas da cidade surge, assim, como uma atividade crepuscular e sinistra, associada com
a imagem nefasta do morcego, a personificação tradicional das forças escuras do mal. Nesse mundo
crepuscular que, no contexto do poema, vai adquirindo gradações simbólicas sucessivamente
identificada, o passeante solitário penetra nas ruas que se abrem como abismos e em estreitas passagens
que subitamente se fecham, os boqueirões e os becos junto ao cais de onde emergem os calafates, em
grupos, escurecidos da fuligem (est. 5)
Os pequenos barcos atracados ao longo dos cais renovam o desejo de evasão; mas enquanto na
terceira quadra a passagem dos carros de aluguer representara a ânsia de abarcar espacialmente o mundo
real, este desejo exprime-se agora na ânsia pelo mundo do passado heroico (o das descobertas

1
marítimas), por uma viagem nostálgica no tempo (est.6). a evocação de Camões, que representa a grande
fase criadora do passado português, concentra numa só imagem multifacetada o impulso heroico que
tornou possível lançar ao mar as soberbas naus que o poeta, reduzido a cismar junto aos botes atracados,
não verá jamais.
O contraste, central à estrutura temática do poema, entre a realidade objetiva do presente e o
seu significado subjetivo para o poeta, é assim expresso na alternância do tema do aprisionamento na
cidade sombria com o tema da fuga para um mundo de liberdade simbolizado, nesta quadra, pelas
heroicas viagens de descobrimento narradas nas crónicas navais. Mas o poeta não pode mais do que
saudosamente evocar esse mundo: as soberbas naus já há muito que partiram e ele está em terra
amarrado ao presente crepuscular do fim da tarde nas ruas da cidade (est. 7).
A justaposição dos hotéis da moda com o couraçado inglês não é apenas o resultado de uma
associação acidental no contexto da realidade objetivamente observada. Símbolos da riqueza da alta
burguesia citadina e do poder naval que a garantia, os hotéis da moda e os couraçados ingleses são
representações interrelacionadas da mesma ordem social.
É no contexto desta caracterização social do meio que várias personagens da fantasmagoria
citadina começam a emergir (est. 8): os vociferantes dentistas, o patético arlequim cujo ganha-pão é
caminhar em andas pelas ruas da cidade, os flutuantes querubins do lar (as crianças) e as lojistas
displicentemente `espera de fregueses, são relacionados uns aos outros pelo uso adjetival das formas
verbais que descreve as suas atividades (arengam, flutuam, enfadam-se) de forma a criarem uma imagem
da vacuidade da vida burguesa citadina. A visão desse mundo é imediatamente justaposta com o
contrastante mundo das massas trabalhadoras (est. 9). Com efeito, como um sopro de liberdade vindo do
mar, o cardume negro das varinas entra na cidade (est. 9-10). A grandeza épica das varinas, como a do
passado heroico simbolizado por Camões, é uma dimensão que não cabe na realidade estagnada do
presente. A associação implícita entre essas mulheres hercúleas e o mundo épico das crónicas navais é
subtilmente reforçada na relação, que dinamicamente aproxima o passado e o presente, entre a imagem
do naufrágio de Camões, no sul, salvando um livro a nado, com a imagem dos filhos das varinas que depois
naufragam nas tormentas. Esta denúncia moral é revoltadamente reforçada pela revelação compadecida
das condições de vida das varinas (est. 11).

2. «NOITE FECHADA»

A quadra inicial da segunda secção reintroduz o tema da prisão (est. 12). O desejo absurdo de
sofrer despertado pela soturnidade e pela melancolia do anoitecer nas ruas da cidade tem aqui o seu
paralelo nas loucuras mansas deixadas pelo som mortificante que anuncia a noite nas celas da prisão. Mas
esta prisão é real; o aljube, um mico equivalente da cidade, o cárcere de mulheres e de crianças que só
muito raramente não vêm das classes populares.
A explícita denúncia social destes versos desenvolve a crítica social implícita no contaste entre os
hotéis da moda, flamejantes na escuridão de luz na escuridão circundante, com a vizinhança sórdida
estridentes e de peixe podre.
Com o acender do gás nas ruas, o desejo absurdo de sofrer despertado pelo anoitecer acentua-
se numa melancolia tão profunda que o sujeito poético chega a suspeitar de que padece de uma doença
mortal (est. 13). A sua mórbida depressão é assim relacionada diretamente com as prisões, a Sé e as
cruzes, que se tornam simbolicamente equivalentes pela sua relação e pelo efeito psicológico que têm
sobre ele.
A rítmica iluminação das ruas e dos prédios transforma a lua numa aparição irreal conjurada por
um falso mundo de ilusões – o circo e os jogos malabares (est. 14). Nesta luz fantasmagórica, as sombras
ameaçadoras de duas igrejas num saudoso largo são tanto uma perceção sensorial quanto uma projeção
psicológica da imaginação que mais uma vez se aventura e se alarga pela História. Mas o passado agora
ressuscitado é o mundo sinistro da Inquisição (est. 15).
A cidade do presente (as suas ruas) ainda está dominada pelo negro e fúnebre do passado: os
prédios que muram o poeta (o desenho de compasso e esquadro da baixa pombalina) são os que se
ergueram sobre os corpos soterrados do terramoto de 1755 e o tanger monástico e devoto dos sinos

2
apaga a demarcação (separação) entre os séculos. Em contraste com esta perseguição religiosa e de
celibato monástico associado com os muros encarceradores dos prédios da cidade, há o mundo laico dos
bancos de namoro num recinto público e vulgar (que diz respeito ao vulgo – povo) que é também onde
pertence, como sua expressão mais sublime, a estátua monumental de proporções guerreiras, de um
épico de outrora (est. 17).
A estátua de Camões serve, assim, para lembrar que houve um outro passado, associado ao povo
e ao mar, bem diferente do passado sinistro da Inquisição e do terramoto, associado à cidade, ao clero e
às prisões. Porém, o passado épico cantado por camões não contínuo com o presente, é o seu oposto. O
contraste é dramaticamente acentuado pela diferença entre as nobres proporções guerreiras da estátua
monumental e a massa acumulada de corpos enfezados na realidade espectral da cidade (est. 18) […] um
mundo social onde palácios, simbólicos do poder estabelecido e da riqueza, existem Lado a lado com
casebres.
A recolha dos soldados – os defensores sombrios e espectrais da ordem social – é imediatamente
seguida pela partida das patrulhas de cavalaria: a ronda da cidade é inexorável. Às formas passadas de
repressão seguiu-se também a repressão presente (os atuais quartéis são os antigos conventos) (est. 19).
[…] a inquietante recordação da paixão defunta é relacionada com as elegantes, curvadas a sorrir às
montras dos ourives, cujo alvejar, sob os lampiões distantes lança luto sobre o poeta. Estas perturbadoras
personagens do mundo artificial da moda entram em contraste com as empregadas cujo ganha-pão é
servi-las (est. 21).
Esta secção do poema termina com o autorretrato irónico do poeta e do seu método poético
(est. 22).
O seu soturno isolamento na cidade sombria e a essencial solidão da sua consciência social é
acentuada pelo contraste irónico entre a sua obsessiva inquietação e a aparente despreocupação dos
emigrados, porventura foragidos políticos que ao riso e à crua luz, jogam dominó nas brasseries
(cervejarias).
O observador isolado que acha sempre assunto a quadros revoltados é também o poeta que os
regista através do monólogo interno do poema. A ironia do quadro que de si próprio representa sugere
que está consciente de que a sua luneta de uma só lente pode levá-lo a ter uma visão limitada do real. A
metáfora irónica, no entanto, é de dois gumes: a visão através de uma só lente pode ser limitada, mas é
também a única possível, porque há sempre causas para revolta na realidade objetiva. O que está
registado no poema é a representação significativa da realidade objetiva e não a própria realidade
objetiva. Parte integrante dessa representação é a perspetiva ideológica em que o “eu” do poema se
coloca para ver o mundo e o critério moral implícito nessa perspetiva […].

3. «AO GÁS»

Na terceira secção do poema, Ao Gás, a opressão crescente da noite (“A noite pesa, esmaga”)
cria uma atmosfera de alucinação e de histeria em que a realidade externa e a sua interpretação subjetiva
se fundem indissociavelmente.
O tema da doença, presente nas duas primeiras secções (a náusea, o desejo absurdo de sofrer, a
morbidez imaginada de um aneurisma, o apodrecimento do peixe em focos de infeção, a visão
apocalíptica da cólera e da febre), reentra no poema como um significante social na aparição das
prostitutas (est. 23). […] A associação entre as prostitutas e os hospitais é paralela à associação entre o
comércio e a Igreja. Cercado por lojas tépidas o poeta, numa visão alucinatória, pensa estar numa imensa
catedral profana: as lâmpadas de gás são os círios laterais; as lojas sucessivas, as filas de capelas; os
manequins nas montras, as imagens dos santos; os clientes, a congregação dos fiéis; a mercadoria, os
andores, ramos e velas dos altares (est. 24).
Nessa perspetiva, a falta aparente de conexão e de desenvolvimento lógico na referência às
histéricas burguesinhas do Catolicismo na quadra seguinte revela, pelo contrário, a profunda
interdependência de dois mundos relacionados (est. 25). O regresso ao tema religioso associado à
perseguição e à repressão (“a nódoa negra e fúnebre do clero, / […] um ermo inquisidor severo /[…] E

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afrontam-me […] os sinos de um tanger monástico e devoto”) funciona, assim, como um desenvolvimento
do tema da doença e do histerismo da sociedade.
Em contraste com esta desvitalização doentia, a imagem flamejante de um forjador brandindo
um malho e o cheiro acalentador do pão no forno tornam-se emblemáticos de vigor, de honestidade e de
saúde (est. 26). Estes versos conseguem uma extraordinária concentração de efeitos através da
justaposição da imagem dinâmica e visual do forjador com a imagem simultaneamente tátil, olfativa e
moral do pão no forno […] criando uma complexa sensação orgânica que é comunicada como uma visão
objetiva de saúde, de calor e de honestidade opostos à doença, à hipocrisia e ao histerismo da sociedade.
Este contacto revigorante com a vitalidade e a energia traz para a consciência imediata do poeta o
propósito da sua própria função criadora (est. 27-28).
O registo e a análise dos factos significativos do real não é, portanto, um fim em si próprio mas
um meio: a expressão crítica de uma realidade social complexa através do registo dos seus factos objetivos
no contexto de um discurso.[…] da mesma maneira, a atitude do poeta perante a realidade social é
deduzível do próprio +poema que a representa: uma empenhada compaixão humanitária.
Na soturna escuridão, literal e metafórica, da cidade, as longas descidas das suas ruas íngremes
são esguios canais de luz que reverberam com a mórbida melancolia de uma palidez romântica e lunar
que o poeta vê como sua função representar em versos cuja verdade estética (“ versos magistrais”) e
probidade moral (“versos sinceros”) definam os padrões críticos “salubres” da compreensão do real.
Como parte integrante da noturna melancolia […] define-se a consciência aguda das diferenças
sociais num mundo onde as lojas elegantes, que ficam abertas até à noite para servir as suas valiosas
clientes, também atraem a cobiça do pobre ratoneiro imberbe, que fica timidamente a olhar de fora para
o luxo amontoado nos balcões de mogno a que não tem acesso legal (est. 29).
A lúbrica pessoa cujo mortífero magnetismo é concentrado na metáfora cobra é uma figura
familiar nos poemas de Cesário (est. 30). A mistura de espanto e de escárnio na apresentação exclamativa
da velha de bandós, ao convidar o leitor a ser cúmplice do poeta perante o espetáculo da vaidade
decrépita, torna o seu retrato imediatamente vivo.
Este mundo luxuoso de compradore4s altivos e solícitos vendedores é sintetizado numa última
visão justaposta da sua esterilidade sufocadora (est. 31).
As luzes apagam-se ao ritmo em que se tinham acendido, o grito rouco de um vendedor de lotaria
corta o súbito silêncio da noite, as armações fulgentes transformam-se em mausoléus; a cidade sepulcral
é gradualmente abandonada à sua escuridão (est. 32). Porém, como uma assombração espectral ou um
pesadelo acusador, o lamento suplicante de um mendigo ainda persiste na noite solitária (est. 33).

4. «HORAS MORTAS»

Na parte final do poema, a viagem noturna do poeta levou-o até ao momento da escuridão mais
profunda. As luzes da cidade […] já se apagaram todas. Reintegrada assim na noite natural, a noite da
cidade já não esmaga e, embora enclausurante, o seu teto fundo de oxigénio parece permitir a quimera
azul de transmigrar (est. 34).
Esta vaga promessa de liberdade é no entanto contradita pela compadecida luz natural das
estrelas longínquas, os astros com olheiras cansados de chorar lágrimas de luz. O desejo de evasão (de
outros momentos no texto) é agora uma ânsia metafísica de quebrar os limites confinadores do próprio
ser. Por baixo do teto fundo de oxigénio continua a haver os portões, os taipais, as fechaduras, os
arruamentos e, em suma, a cidade da sua identidade bloqueada (est. 35).
Os pormenores significativos da realidade observada confirmam a prisão fantasmagórica da
cidade onde, sob a luz natural das estrelas, os faróis próximos de uma carruagem são olhos sangrentos,
de pesadelo. A imagem desses olhos fixos e grotescos, emblemáticos do pavor alucinatório da escuridão
constritora (que constringe) da cidade noturna, surge lado a lado com o som pastoril de uma flauta
distante, emblemática da liberdade associada ao campo (est. 36). O som da melancolia pastoril nas ruas
silenciosas da cidade, com a sua nostálgica mensagem de que o campo invisível não está longe, torna-se
simbólico da ânsia espiritual do poeta pela eternidade –a libertação da prisão final da morte – e do seu
equivalente desejo de uma maneira perfeita de viver em que a intemporalidade do amor tomasse o lugar

4
da solidão e do desespero (est. 37). A satisfação existencial do amor partilhado é associada a uma forma
de habitação que, ao permitir a entrada da luz, é metaforicamente oposta à cidade (o amor só é possível
na liberdade).
O anseio pela perfeição da eternidade e do amor é, no entanto, apenas outra quimera azul. A
morte é certa e a esperança possível pertence apenas às gerações futuras (est.38). A esperança do
presente é, assim, a esperança num futuro equivalente ao passado heroico de Camões e das soberbas
naus, em que a opressão gerada na cidade seja de novo trocada pelas vastidões aquáticas, que são o seu
oposto simbólico (est. 39). Assim, o anseio da liberdade, que é um tema recorrente do poema, é
transformado num programa de ação cujo carácter necessariamente coletivo é acentuado pelo uso
enfático do pronome nós. Mas dentro da cidade – ou da esterilizante estrutura social por ela significada
– a renovação da vitalidade criadora é uma esperança vã (est. 40). A liberdade dos nómadas ardentes é
impossível no vale escuro das muralhas encarceradores da cidade avessa à natureza.
Em “O Sentimento dum Ocidental” – obra-prima da sua maturidade – todos estes níveis de
significação convergem na metáfora amplificada da cidade como uma prisão labiríntica e infernal
identificada com a escuridão, a esterilidade, a miséria, a solidão e a morte.
A situação pessoal do poeta é apresentada exemplarmente representativa da de todos aqueles
que, como ele, vivem oprimidos na velha cidade (“os emparedados”). O desfalecer da esperança é
marcado pelo regresso da náusea doentia dos primeiros versos do poema. No labirinto dos nebulosos
corredores, as tabernas, como ventres fétidos, oferecem um refúgio temporário da solidão (est. 41).
Numa última justaposição significativa do aprisionamento e da doença da cidade, os guardas-
noturnos (os detentores das chaves simbólicas da prisão) fazem a sua ronda, enquanto as doentias
prostitutas, os moles hospitais, emblemáticos da sociedade enferma (a antítese das imaginadas
castíssimas esposas em mansões de vidro) tossem e fumam nos balcões de pedra (est. 43).
A tensão dialética que caracterizou a imagística de todo o poema é sustida e amplificada na visão
panorâmica final com que ele termina (est. 44). É uma visão de um mundo às avessas, de enormes prédios
sepulcrais projetando sombras sobre o vale escuro onde a dor humana, aprisionada pelas vastas muralhas
do seu cerco esmagador, procura os amplos horizontes que, bloqueados, tornam o próprio impulso para
a liberdade nas marés frutes (de qualidade inferior) de um sinistro mar de fel.

Extratos do comentário de Hélder Macedo em “Nós” – “Uma leitura de Cesário Verde”, in “Introdução à leitura de Cesário Verde”
de Avelino Cabral, Ed. Sebenta. (texto adaptado)

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A origem da Literatura Portuguesa

Em pleno século XII, Idade Média, surge o reino de Portugal (1143),


sendo que só a partir desta data podemos considerar a literatura como
sendo portuguesa. A língua que se falava era o galego-português, ou
seja, português arcaico, que tinha muitas influências da província
vizinha, a Galiza.
Surgiu então a poesia, o género literário pioneiro, pois era aquele que
surgia oralmente, associado à música e ao canto. Esta tinha um caráter
lúdico e artístico e era transmitida oralmente. A poesia trovadoresca
começa assim, no século XII, sendo as letras de canções que retratam o
quotidiano, as vivências e os sentimentos dos da altura.
Estas cantigas duraram até meados do século XIV.

Poesia Trovadoresca galego-portuguesa

A poesia trovadoresca começou por ser influenciada pela Galiza,


dando origem a uma poesia de caráter espontâneo e oral, de raiz
tradicional. Esta poesia era cultivada pelos jograis (poetas e músicos do
povo) e eram maioritariamente cantigas de mulher jovem.
Mais tarde, veio sobrepor-se uma outra influência, desta vez vinda do
sul de França (lirismo provençal), mais trabalhada em termos técnicos e
ao nível do conteúdo. Esta poesia, por oposição à anterior, foi difundida
pelos trovadores (poetas da nobreza).
Toda esta poesia foi compilada em Cancioneiros galego-portugueses,
sendo esses: o Cancioneiro da Ajuda; o Cancioneiro do Vaticano; o
Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Os Cancioneiros incluem três
géneros diferentes de composições:
- Cantigas de amigo (influência tradicional)
- Cantigas de amor (influência francesa)
- Cantigas de escárnio e maldizer
Cantigas de Amigo

→ O sujeito poético é uma mulher, de baixa condição social; dá voz à


mulher
→ Os autores são masculinos (jograis)
→ O tema principal é a lamentação da mulher pela ausência do amigo
(amado); é o drama sentimental
→ Variedade de sentimentos
→ O ambiente é normalmente um episódio do quotidiano
→ Lirismo autóctone (fala-se de quem vive naquele lugar)
→ Presença de confidentes (humanos ou inanimados)
→ Valor documental histórico-social
→ Presença do paralelismo

Cantigas de Amor

→ O sujeito poético é um homem


→ Os autores são masculinos (trovadores)
→ O ambiente é palaciano
→ Poesia de imitação provençal
→ Tema principal: coita do “eu” lírico face à “senhor”, a mulher amada,
de elevado estatuto social e idealizada, perfeita
→ Sentimento não correspondido
→ Código do amor cortês: distanciamento entre os dois; superioridade e
indiferença da mulher em relação ao homem, havendo uma certa
relação de vassalagem; amor não correspondido; gosto do homem pelo
sofrimento amoroso
Cantigas de Escárnio e Maldizer

→ Os autores são masculinos (trovadores)


→ Crítica individual ou social que constitui uma caricatura do alvo
→ As cantigas de escárnio não fazem uma referência direta ao alvo da
crítica
→ As cantigas de maldizer dirigem-se diretamente ao seu alvo, com
utilização do nome
→ Recurso à sátira e ao cómico
→ Valor documental histórico-social
→ Os temas incluem a paródia do amor cortês, a crítica à falta de dotes
poéticos de jograis nobres e a vassalagem de nobres em campo de
batalha

Alice Correia
2017
PORTUGUÊS 10ºANO

Conteúdos a saber:

1. Textos de domínio transacional:


 Contrato
 Regulamento
 Declaração
 Requerimento
 Relatório
2. Textos dos media:
 Artigo científico e técnico
 Crónica literária
 Entrevista
 Publicidade/ Discurso publicitário
 Artigo de apreciação crítica
3. Textos de carácter autobiográfico:
 Textos literários - Camões Lírico:
i. Aspetos gerais da poesia de Camões
ii. Reflexão do eu lírico sobre a sua própria vida (redondilhas e sonetos)
 Textos expressivos e recreativos - poetas do século XX (breve antologia):
i. Modos/géneros líricos
ii. Convenções poéticas
iii. Ritmo
iv. Sonoridades
v. Elementos estruturadores de sentido
4. Textos narrativos e descritivos:
 Contos/novelas de autores do século XX:
i. Modo/género
ii. Organização do texto
iii. Ordenação da narrativa
iv. Construção de sentidos
Textos de domínio transacional

 Contrato

Texto geralmente escrito que estabelece um consenso mútuo entre dois ou mais indivíduos ou entidades.
Para tal, cada uma das partes submete-se a determinadas obrigações e usufrui de certos direitos. Exemplo:
contrato de leitura.

Características:

i. Registo formal
ii. Vocabulário claro, objetivo e denotativo – possibilita a correta interpretação das cláusulas
iii. Recurso a palavras ou expressões específicas deste tipo de texto: outorgante, contraente,
contratante, cláusula, etc.
iv. Uso da 3ª pessoa do singular ou plural

Estrutura:

i. Abertura (identificação do tipo de contrato e das pessoas envolvidas)


ii. Encadeamento (condições do contrato)
iii. Fecho (local e data onde foi celebrado e assinatura dos outorgantes, devidamente reconhecida)

 Regulamento

Texto de carácter normativo que reúne um conjunto de regras, em que o objetivo é estabelecer um modo
de funcionamento de um grupo ou atividade. Deve, deste modo, haver uma discussão e consenso prévios de
vários membros do grupo.

Características:

i. Registo formal
ii. Linguagem denotativa
iii. Predomínio de frases do tipo declarativo
iv. Uso de numerais e ordinais na identificação das normas
v. Uso da 3ª pessoa do singular e/ou plural
 Declaração

Corresponde à exposição de uma situação ou de um facto em que o declarante assume a veracidade do


que é declarado. A declaração pode ser feito por escrito ou oralmente.

Características:

i. Registo formal
ii. Utilização de palavras ou expressões específicas: declaro, certifica, declarante, etc.
iii. Recurso a uma fórmula introdutória generalizada: para os devidos efeitos, etc.
iv. Verbos declarativos: declarar, afirmar, garantir, atestar, etc.
v. Uso da 1ª ou 3ª pessoa do singular

Estrutura:

i. Abertura (identificação da entidade declarante)


ii. Encadeamento (identificação da pessoa que solicita a declaração, finalidade e conteúdo nuclear da
mesma)
iii. Fecho (local, data e assinatura do declarante)

 Requerimento

É uma petição dirigida a uma entidade oficial, organismo ou instituição, através da qual se solicita a
satisfação de uma necessidade ou interesse.

Características:

i. Registo formal
ii. Linguagem objetiva
iii. Inclusão de elementos como identificação, morada, cartão de cidadão, etc.
iv. Recurso a palavras ou expressões típicas: requerente, deferimento, requerer, etc.
v. Uso da 3ª pessoa do singular ou plural

Estrutura:

i. Abertura (identificação da identidade a quem é dirigido)


ii. Encadeamento (elementos de identificação do requerente e motivo)
iii. Fecho (local, data e assinatura do requerente)
 Relatório

É um texto que descreve ou narra acontecimentos passados que se viram, ouviram, observaram e/ou
analisaram. Exemplo: relatório de física

Características:

i. Registo formal com recurso a frases curtas e diversos conectores textuais


ii. Segue uma apresentação específica (tipo e tamanho da letra, margens, espaçamento, etc.)
iii. Uso da 1ª e/ou 3ª pessoa

Estrutura:

i. Cabeçalho ou página de rosto (título, nome do destinatário, data, local e nome do relator)
ii. Introdução (apresentação dos objetivos e do assunto que se vai relatar)
iii. Corpo ou parte central (desenvolvimento do assunto)
iv. Conclusão (exposição das conclusões e balanço)
v. Anexos, agradecimentos e bibliografia

Textos dos media

 Artigo científico e técnico

Texto que desenvolve um determinado assunto no âmbito da ciência e/ou da técnica, apresentando um
avanço do conhecimento na área abordada.

Características:

i. Registo formal
ii. Recurso a termos científicos e/ou técnicos
iii. Ordenação lógica das ideias ao longo do texto

Estrutura:

i. Título (tema principal do artigo)


ii. Resumo (descrição precisa do tópicos fundamentais do artigo)
iii. Texto: introdução (apanhado geral do conteúdo do artigo) ; corpo do trabalho (desenvolvimento
do tema); conclusão (síntese que reforça as ideias principais)
iv. Bibliografia (fontes utilizadas)
 Crónica

Corresponde a um tipo de narrativa que constitui o registo de um facto ou incidente, normalmente


retirado do quotidiano e que é aparentemente destituído de significado relevante.

Características:

i. Registo geralmente informal


ii. Linguagem subjetiva e conativa
iii. Pontuação expressiva
iv. Emprego de recursos estilísticos variados

 Entrevista

Corresponde a uma conversa formal entre um inquisidor e um indivíduo de quem se pretende saber
alguma informação particular. Deste modo, o objetivo da entrevista é dar a conhecer algo.

 Discurso Publicitário

Tem como objetivo captar a atenção do recetor para a mensagem que pretende passar e fazer com que
esta permaneça na sua memória. Existem dois tipos de publicidade: comercial (venda de um produto ou
serviço) e institucional (divulgação de ideias, informações ou sensibilização do público)

Características:

i. Respeita geralmente a AIDMA (atenção, interesse, desejo, memória e ação)


ii. Uso da 1ª pessoa do plural ou 2ª pessoa do singular
iii. Recurso a frases predominantemente imperativas

Estrutura:

 Título (variável e acompanha a imagem)


 Slogan (frase que define o produto ou a marca)
 Texto icónico (imagem – deve captar o olhar do consumidor pelo estímulo visual)
 Texto argumentativo (informa, argumenta e apela à ação)
 Logótipo (símbolo da marca ou instituição)
 Artigo de apreciação crítica

Corresponde a um texto informativo e interpretativo, no qual são emitidas apreciações pessoais


(valorativas ou depreciativas) sobre um dado tema. Para tal, o especialista recorre à argumentação e
respetiva exemplificação para fundamentar a sua perspetiva e persuadir o público-alvo.

Características:

i. Uso de frases predominantemente declarativas e exclamativas


ii. Linguagem valorativa ou depreciativa
iii. Seleção de um título sugestivo
iv. Recurso a figuras de estilo

Estrutura:

i. Introdução (breve apresentação do facto, ideia ou objeto que suscita a crítica)


ii. Corpo do texto (informações sobre o objeto visado, opiniões/apreciações pessoais e argumentação)
iii. Conclusão (apreciação final e referência às ideias mais relevantes)

Textos de carácter autobiográfico

Uma autobiografia corresponde à biografia de alguém, realizada pelo próprio, de tal forma que o narrador
e o objeto narrado sejam equivalentes.

Características:

i. Narrador autodiegético
ii. Linguagem subjetiva e conativa
iii. Presença de deíticos

 Textos literários - Camões Lírico:

A lírica camoniana é constituída por poemas escritos de acordo com corrente tradicional (medida velha)
ou com a corrente clássica (medida nova).
A corrente tradicional ou medida velha, de influência castelhana, corresponde à utilização da
redondilha menor (pentassílabo) ou da redondilha maior (heptassílabo). É ainda possível dividir as
redondilhas em dois grupos, de acordo com a presença ou não de um mote (estrofe geralmente curta que
introduz o assunto do poema e a partir da qual se desenvolvem as estrofes seguintes, chamadas voltas, e cujo
conjunto se designa por glosa).

mote + glosa (conjunto de voltas) = poema

Composições sujeitas a mote:

 Vilancete – poema essencialmente dedicado a temas amorosos ou bucólicos (paisagem campestre


e pastoril), constituída por: um mote curto (2/3 versos) e uma glosa de uma ou mais estrofes
(7versos)
 Cantiga – poema constituído por um mote de 4/5 versos e uma glosa de 8/9 versos

Composições não sujeitas a mote:

 Esparsa – poema de tom melancólico (sentimento de tristeza profunda), composta por uma única
estrofe (8-16 versos) em redondilha.
 Endechas/trovas – composições com um número variável de estrofes, geralmente quadras ou
oitavas

A medida velha engloba temas como:

 O mar e a fonte,
 O sofrimento amoroso
 As futilidades
 A vida/experiências do poeta
 O cenário campestre e pastoril.

Por sua vez, corrente clássica ou medida velha, de influência italiana ou petrarquista, corresponde à
utilização decassílabo (verso de dez sílabas métricas). Trata, geralmente, de assuntos mais filosóficos e de
carácter mais elevado do que as redondilhas.

Os géneros poéticos em que foi usada esta vertente são, entre outros:

 Soneto – poema com 14 versos, distribuídos 2 quadras e 2 tercetos decassilábicos (esquema abba
nas quadras e cdc/dcd ou cde/cde nos tercetos). Relativamente à estrutura: a primeira quadra
corresponde à apresentação do tema, a segunda quadra corresponde ao desenvolvimento do tema,
o primeiro terceto corresponde à confirmação e o segundo terceto corresponde à conclusão.
 Canção – poema destinado a ser cantado, constituído por um número de estrofes regulares cujo
número de versos varia entre 7 e 21, terminando com uma estrofe menor.
 Ode – semelhante à canção, corresponde a uma composição para ser cantada, mas de ordem muito
importante

A medida nova engloba temas como:, o amor carnal (sentimento incontrolável), o destino, a saudade,
erros e o amor, o desconcerto do mundo, a mudança, temas religiosos, o absurdo (aspetos sociais e morais e
a metafísica enquanto eterno problema do mal), a vida do poeta e, por último, a mulher.

 Amor petrarquista – platónico, ideal e espiritual:


 A mulher ideal – cabelos loiros, pele branca, lábios vermelhos, face rosada, gesto suave,
pensar maduro, riso terno e subtil, olhos claros, etc.
 Tentativa, falhada, de libertação da sensualidade e do desejo
 A Natureza é a salvação – capacidade de sentir e vibrar com o Homem (a Natureza é um
espelho da figura feminina)
 O amor carnal:
 Mulher carnal – contornos físicos bem definidos e atraentes; personificação de Vénus.
 O sentimento incontrolável
 A saudade da:
 Mulher petrarquista, inacessível
 Mulher carnal que morreu ou não corresponde
 Pátria ausente – o exílio
 A mudança:
 Mudança reversível da Natureza (tempo natural, cíclico) e irreversível do Homem
 O passado que já não volta
 A mudança da própria mudança – mudança imprevista
 O pessimismo e a morte
 O desconcerto do mundo
 As injustiças sociais
 Os cataclismos (tragédias ambientais de carácter generalizado) naturais e desconcertantes
 A morte no horizonte e sem explicação lógica
 O fracasso do sonho e dos projetos
 O destino
 Temas religiosos
 A vida do poeta
 Textos expressivos e recreativos – poetas do século XX

A poesia do século XX pretendia romper com as tradições, caracterizando-se pelo/pela:

 Ausência de pontuação
 Uso indiscriminado da maiúscula/minúscula
 Liberdade estrófica e métrica
 Aproveitamento poético da linguagem quotidiana

Alguns poetas do século XX:

 Sophia de Mello Breyner


 Miguel Torga
 Manuel Alegre
 Eugénio de Andrade
 Ruy Belo

 Sophia de Mello Breyner Andresen

Nasceu no Porto e viveu junto do mar, da praia e dos pinhais, estando, portanto, em pleno contacto com a
natureza. Por este motivo, a natureza é símbolo de perfeição porque permite atingir a harmonia, o equilíbrio
e a justiça e, por oposição, a cidade limita os horizontes do Homem.

A noite também adquire um carácter importante, sendo o “espaço imenso” que lhe permite a libertação do
ser pelo sonho. Por sua vez, a infância representa o tempo eterno e a vida adulta representa o tempo
fragmentado, dividindo-se entre aquilo que somos e o que seremos.

Sophia denuncia as injustiças, a escravidão, a hipocrisia e a opressão, recorrendo muitas vezes a


metáforas, comparações, personificações, anáforas e enumerações.

 Miguel Torga

Miguel Torga revoltou-se contra a “observação” feita por Deus e contra a falta de igualdade, dado que
não compreendia o porquê de as melhores pessoas estarem a morrer e Deus não condenar, deste modo, os
maus atos.

Entre os temas desenvolvidos, o poeta faz distinção entre a água doce do rio, símbolo de vida, e a água
salgada do mar, símbolo de morte/tragédia. A fronteira estabelecida será então entre a angústia e a esperança.
Por último, o poeta refere que a Terra é fonte de vida e que esta está ligada ao sagrado.

 Manuel Alegre

Manuel Alegre foi outro poeta a criticar as injustiças sociais, a opressão e a ditadura.

De entre os temas desenvolvidos pelo poeta, encontramos:

 A liberdade
 A luta
 O sofrimento e a dor
 Portugal; a nação

 Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade defendia que as palavras tinham um grande poder na transformação da vida, dado
que nas palavras existe a música e o silêncio, o rumor, a luz e a sombra e é com isto que se constrói imagens
que fundem o amor com o mundo natural.

Para o poeta, os efeitos do tempo são conhecidos e o tempo adquire um carácter cíclico. A pureza será,
entretanto, um outro tema desenvolvido pelo poeta. Esta só é possível procurar através dos quatro elementos
da Natureza.

 Ruy Belo

O poeta faz uma clara distinção entre a infância e a atualidade. Assim, a infância representa o sonho, a
felicidade, a realização de tudo aquilo que era idealizado e a facilidade da vida. Por oposição, a atualidade
representa a insatisfação, a infelicidade, o desalento e a falta de inspiração.

Com estes dois conceitos, Ruy Belo faz ainda uma reflexão sobre o tempo e a morte, pelo que a sua
ironia é muitas vezes caracterizada como trágica ironia.
Textos narrativos e descritivos

 Contos/novelas de autores do século XX:

Torna-se agora necessário estabelecer a diferença entre os contos, novelas, romances e epopeias.

❖ Conto: texto mais curto, com uma ação restrita ou determinante, onde há espaço, tempo e
personagens limitados/reduzidos.

❖ Novela: texto um pouco mais extenso, com uma ação um pouco mais complexa e um maior
número de personagens.

❖ Romance: texto extenso com uma ação muito complexa, englobando um grande número de
personagens e espaços e com um tempo ilimitado.

❖ Epopeia: poema épico no qual há o enaltecimento de um herói e dos seus feitos, à medida que é
narrada a história de um povo ou nação. Por este motivo, engloba uma ação mais complexa do
que os textos narrativos anteriores e um maior número de personagens.
PORTUGUÊS 11ºANO

Conteúdos a saber:

1. Textos argumentativos/expositivo-argumentativos:
 Discursos políticos
 Sermão de Santo António aos Peixes
i. Objetivos programáticos da eloquência (docere, delectare, movere)
ii. Estrutura argumentativa
iii. Crítica Social
iv. Eficácia persuasiva
2. Textos de teatro:
 Frei Luís de Sousa:
i. Características do modo dramático
ii. Categorias do texto dramático
iii. Intenção pedagógica
iv. Sebastianismo
v. Ideologia romântica
vi. Valor simbólico de alguns elementos
3. Textos narrativos e descritivos:
 Leitura de um romance de Eça de Queirós:
i. Categorias do texto narrativo
ii. Contexto ideológico e sociológico
iii. Valores e atitudes culturais
iv. Características da prosa queirosiana
4. Textos líricos:
 Poesia de Cesário Verde:
i. O repórter quotidiano
ii. Oposição cidade-campo
Textos argumentativos/expositivo-argumentativos

Um texto argumentativo é um texto que expressa uma opinião ou tese fundamentada por diversos
argumentos sólidos e válidos. Como exemplo temos os discursos políticos e o Sermão de Santo António aos
Peixes.

Estrutura:

1. Introdução/Tese – apresentação clara da ideia/opinião que se quer defender


2. Desenvolvimento/Corpo argumentativo – apresentação das razões que justificam e sustentam a tese
3. Conclusão – demonstração clara da tese defendida

 Sermão de Santo António aos Peixes

Um Sermão é um género de discurso de conteúdo e intenção religiosa ou moralizante, pretendendo, deste


modo, formar pessoas mais conscientes através do ensino da religião e moral, da persuasão e do agrado. Os
temas são, então, desenvolvidos a partir de versículos da Sagrada Escritura.

O Sermão de Santo António aos Peixes foi escrito pelo Padre António Vieira.

Estrutura:

i. Introdução: Exórdio (conceito predicável – apresentação da tese) e Invocação


ii. Desenvolvimento: Exposição (divisão do assunto) e Confirmação
iii. Conclusão: Peroração
Exórdio – Capítulo I

Por que motivo o Padre António Vieira se refere a Santo António no exórdio?

 Padre António Vieira menciona Santo António na sua obra, mais concretamente no exórdio, pelo
facto de, naquele momento, se celebrar o dia de Santo António, momento esse que antecede 3 dias
a partida do autor para os índios do Brasil.
 Por outro lado, tanto António Vieira como Santo António pretendem transmitir uma mensagem,
dado que ambos são pregadores. Porém, contrariamente a outros “santos doutores da Igreja”, Santo
António é considerado não só o sal da terra, como também o sal do mar, motivo pelo qual será ele
o escolhido como exemplo para tornar a obra de Padre António Vieira o mais plausível e fiável
possível.

O conceito predicável

Os conceitos predicáveis são expressões retiradas das Sagradas Escrituras que encerram uma determinada
verdade que vai servir de introdução ao sermão.

Nesta obra, o conceito predicável é: Vos estis sal terrae (“Vós sois o sal da terra”)

 Vós = pregadores
 Sal = doutrina (mensagem bíblica)
 Terra = auditório (ouvintes)

Teoricamente, o sal tem como função conservar os alimentos e evitar que os microrganismos ou outro tipo
de animais entrem. Relacionando agora com o Sermão, a função do sal será conservar a mensagem bíblica e
evitar a corrupção. Por sua vez, os pregadores devem louvar o bem e impedir o mal.

A Terra está corrupta porque:

I. O sal não salga, dado que os pregadores:


 Não pregam a verdadeira doutrina
 Dizem uma coisa e fazem outra
 Pregam-se a si mesmos e não a Cristo
II. A Terra não se deixa salgar, dado que os ouvintes:
 Não querem receber a verdadeira doutrina
 Querem imitar o que os pregadores fazem e não o que dizem
 Querem servir aos seus apetites em vez de servir a Deus
Qual será a solução que Santo António arranja?

 Mudou de púlpito
 Mudou de auditório

“Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que não
me querem ouvir os Homens, ouçam-me os peixes. (…) António pregava e eles ouviam”.

Capítulo II – Louvores em Geral

A partir deste capítulo, todo o Sermão é uma alegoria porque os peixes são uma metáfora ou personificação
dos Homens. Assim, as virtudes dos peixes servem de contraste aos comportamentos humanos, mas os vícios
dos peixes coincidem com os vícios humanos.

Será neste capítulo que o pregador se dirige aos peixes, tendo como principal alvo não estes, mas o Homem.
Assim, ao apresentar os louvores em geral, demonstra que os peixes são melhores que os Homens, pelo que,
quanto mais longe destes estiverem, melhor.

Deste modo, os peixes:

 São um bom auditório: ouvem e não falam *


 Foram os primeiros animais a serem criados por Deus
 Foram os primeiros a ser nomeados pelo Homem
 São os mais numerosos e os mais volumosos (de maiores dimensões)
 * São obedientes a Deus e atentos à sua palavra
 Não são domáveis ou domesticáveis; são livres
 Escaparam todos do dilúvio porque não tinham pecado

Capítulo III – Louvores em particular

Neste capítulo são apresentados os louvores em particular:

1. Tobias – o fel cura a cegueira e o coração expulsa os demónios


2. Rémora – é pequena mas tem muita força, travando o leme das naus e a consequente ambição dos
Homens
3. Torpedo – executa descargas elétricas que fazem tremer o braço do pescador, impedindo a pesca*
4. Quatro-olhos – evita e está atento aos perigos vindo do céu (as aves) e do mar (os outros peixes),
representando a capacidade de distinguir o bem do mal
Comparação com Santo António:
1. Alumiava e curava as cegueiras dos ouvintes, lançava os demónios fora de casa
2. A língua de Santo António, tão pequena como a rémora, domou a fúria das paixões humanas:
soberba, vingança, cobiça e sensualidade
3. 22 Pescadores tremeram ao ouvir as suas palavras e converteram-se
4. Santo António consegue distinguir o bem do mal e, olhando apenas diretamente para cima ou para
baixo, não vê a vaidade do mundo

*na descrição das virtudes do torpedo são descritas as etapas pelas quais a descarga elétrica passa até chegar
ao Homem (“passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao
braço do pescador”), o que corresponde ao processo de conversão do Homem pelas palavras de Santo António.

O capítulo termina com o pedido do Padra António Vieira para que os peixes, que tanto servem os ricos
como os pobres, se multipliquem e cresçam, dado que “mais e melhor o farão os vivos!”.

Capítulo IV – Repreensões em Geral

Neste capítulo são apresentadas as repreensões dos vícios em geral, de modo a criticar os vícios semelhantes
ou superiores dos Homens.

Assim:

 Os peixes comem-se uns aos outros (ictiofagia)


 Os maiores comem os mais pequenos, pelo que são precisos muitos pequenos para um grande
 Também os Homens se comem uns aos outros (e fazem-no enquanto estes estão vivos!).
Exemplos: povos indígenas, morte de algum e réu em julgamento
 Os peixes são ignorantes e cegos (perdem a vida porque são enganados por um pedaço de pano, não
entendendo o significado deste, atirando-se cegamente e ficando presos)
 Também o Homem é ignorante e cego, não conseguindo resistir à tentação e à vaidade.
Exemplo: as guerras entre exércitos (são dadas cores que os fazem lutar entre si e morrer ao
engolir um ferro) e a vaidade no vestuário (são-lhes apresentados trapos, uma e outra vez,
cada vez mais caros. Compram-nos e ficam endividados)

O Padre pede, finalmente, aos peixes para que pensem se, de facto, não existirá outro meio de sustentação,
dado que o ato de se comerem uns aos outros não é estatuto da natureza, mas sim pecado físico e sevícia.

Capítulo V – Repreensões em Particular


Neste capítulo são apresentadas as repreensões aos vícios em particular.

1. Roncadores – são pequenos mas têm muita língua e facilmente são pescados, representando o
orgulho, a vaidade e a arrogância.
2. Pegadores – vivem na dependência dos grandes e morrem sem ter comido, dado que são pescados
juntamente com os grandes. Representam o parasitismo, o oportunismo e a bajulação
3. Voadores – foram criados peixes e não aves, mas insistem em voar, sendo mortos pelos pescadores
ou pelos caçadores. Representam a ambição e presunção.
4. Polvo – é o maior traidor do mar, porque se esconde e ataca às escuras, de emboscada, as suas
vítimas desacauteladas. Representa a traição, a hipocrisia e o disfarce. Aparentemente são santos
(capelo – monge), belos (raio – estrela) e bondosos (ausência de ossos). É realizada uma
comparação com Judas, que abraçou cristo e traiu-o às claras (sendo menos traidor do que o polvo)

Comparação com Santo António:


1. Era detentor do saber e do poder e não se vangloriava por isso
2. Pegou-se somente a Cristo e tornou-se imortal
3. Tinha duas asas (sabedoria natural e sobrenatural) e não as usou para exibir o seu valor
4. Esteve sempre afastado da traição e da mentira, sendo sempre verdadeiro e sincero

Finalmente, o Padre conclui ao dizer que acabou os louvores e as repreensões ao seu auditório, relembra
os ofícios do sal e aconselha os peixes a não se pegarem aos perigos da riqueza e da matéria.

Capítulo VI – Peroração

Neste último capítulo o Padre António Vieira despede-se dos peixes, referindo que:

 Antigamente, Deus escolheu animais que haveriam de ser sacrificados. Os peixes eram os únicos
que não o podiam ser, dado que não conseguiam chegar vivos ao sacrifício, contrariamente aos
restantes animais. Deus não quer que Lhe ofereçam coisas mortas.
 Os Homens, como os animais, também chegam mortos ao altar porque vão em pecado mortal e,
deste modo, Deus não os quer.
 Os animais (fora os peixes) devem oferecer a Deus o ser sacrificado; os peixes devem oferecer o
ato de não serem sacrificados, ou seja, devem comportar-se de tal forma que os seus atos não
precisem de ser punidos.
 Os animais (fora os peixes) devem oferecer o sangue e a vida a Deus; os peixes, o respeito e
obediência.
De seguida, o orador enumera algumas diferenças entre a sua pessoa e os peixes e relata factos:
 Tem inveja dos peixes por estes terem mais vantagens do que o pregador
 Padre António Vieira ofende a Deus com as palavras, com a memória, com o pensamento e com a
vontade e não atinge o fim para que Deus o criou (servir unicamente a Deus)
 Os peixes não falam (só escutam), não entendem, não desejam e atingem sempre o fim que lhes foi
destinado (servir o Homem).
 Com isto, o Padre apresenta um retrato de si próprio como pecador
 Os peixes podem apresentar-se a Deus porque não pecaram e o Padre é pecador e não poderia
apresentar-se a Deus.

Por último, o orador faz um apelo aos peixes (Homens) para que louvem e respeitem Deus, seu criador.

Resumindo…
1. Os Homens têm os defeitos dos peixes mas não as suas qualidades
2. Os Homens devem seguir os exemplos dos peixes virtuosos e tomar como exemplo os vícios destes
para perceber e tomar consciência dos seus
3. Todo o Sermão é uma alegoria porque os peixes são uma personificação do Homem
4. O Sermão representa uma crítica social
5. A mensagem de Vieira ainda deve ser recebida na atualidade

Textos de Teatro

O texto dramático é escrito para ser representado, pressupondo o recurso à linguagem gestual, sonoplastia
e luminotécnica.

É composto por dois tipos de texto:

1. Texto principal – fala das personagens:


 Monólogo
 Diálogo
 Aparte
2. Texto secundário – (didascálias ou indicações cénicas) que se destinam ao leitor, encenador e/ou
atores
 Gestos, entoação, movimento das personagens no palco, vestuário, etc.
 Frei Luís de Sousa
A obra Frei Luís de Sousa foi escrita por Almeida Garrett e representa ambos os géneros dramáticos:
tragédia clássica e drama romântico. No primeiro caso, porque envolve uma catástrofe, simplicidade e índole.
No segundo caso, porque é utilizada linguagem dramática, a composição é em prosa e existe o objetivo de
ensinar algo.

Almeida Garrett baseou-se na sua vida pessoal para escrever este drama, tendo em conta a situação íntima
e socialmente insustentável que fora criada pelas imposições da Igreja católica. Por outro lado, o drama
também tem em conta o lado histórico de Portugal e das consequentes relações que neste tempo se
estabeleceram ou existiram.

Estrutura Interna e Externa, respetivamente:

1. Exposição/ Ato I, cenas 1-2 – representação do conflito e dos seus antecedentes


2. Conflito/ Ato I, cena 3 até Ato III, cena 9 – evoluir do conflito e clímax
3. Desenlace – Ato III, cenas 10-12 – resolução do conflito e catástrofe

A mudança de atos deve-se a alterações de cenário e a mudança de cenas deve-se à entrada ou saída de
personagens.

ATO I

Cena 1

 Inicia-se no fim da tarde, com Madalena


 Madalena encontra-se sentada, a ler repetidamente um excerto d’Os Lusíadas, relativo a Inês de
Castro
 M pensa na sua felicidade e no facto de a ter mas de não usufruir dela, devido ao seu medo, em
semelhança ao que aconteceu com Inês de Castro

Cena 2

 Telmo entre e começa a falar com Madalena sobre o seu marido, Sr. Manuel de Sousa Coutinho e,
mais tarde, sobre a filha do casal: Maria
 Maria tem 13 anos (número do azar) e cresceu demais, tornando-se numa personagem fora do
contexto temporal e numa pessoa frágil, débil
 Telmo diz que Maria é um anjo, devido à sua pureza, brandura e inocência
 Madalena, mais tarde, confessa a Telmo que, após a partida de D. João de Portugal (que a deixou
viúva e órfã. Esta última porque a relação que Madalena estabeleceu com D. João não foi amorosa
mas paternal), foi Telmo quem passou a ser um pai para si e foi a Telmo que obedeceu como filha
 Madalena refere que procurou D. João por todo o mundo mas que, sem resultados positivos, não
restou dúvidas de que este estaria morto. Telmo rapidamente afirma que ainda lhe restam dúvidas
 D. João estava desaparecido há 21 anos
 Telmo confessa que Manuel nunca seria o espelho de D. João
 Madalena disse que o seu casamento com Manuel partira do consenso e aceitação de todos e que
Maria fora uma bênção de Deus. Porém, disse a Telmo que este estava sempre a reviver o seu
passado com a pequena Maria e que esse facto era suficiente para as desonrar – era uma dúvida fatal
 Por último, Madalena pede a Telmo que vá ter com Frei Jorge Coutinho para ver se este tem notícias
do irmão (Manuel de Sousa Coutinho.

Cena 3

 Maria entra em cena e diz a Telmo que está à espera que este lhe conte o romance que lhe prometeu,
relativo ao el-rei D. Sebastião, que ainda poderá estar vivo
 Madalena, ao ouvir isto, diz que isso é a imaginação do povo a falar
 Porém, nunca uma pura falsidade chega a obter crédito total
 Maria diz que o seu pai também não pode sequer ouvir falar no regresso de D. Sebastião e, confusa,
pergunta se ele está do lado de D. Filipe
 Madalena começa a chorar e Maria consola-a. O assunto é posto de parte
 Indícios da doença de Maria (tuberculose)
* A crença sebastianista de Maria e Telmo pressupõe a vida de D. João de Portugal

Cena 4

 Maria pergunta à mãe porque é que os seus pais estão sempre preocupados consigo. Madalena
responde-lhe que é por a amarem tanto, mas Maria diz que não estará relacionado com isso e que
ouve coisas e lê olhos.
 As flores que Maria trazia murcharam. Eram flores do sono, para a fazerem dormir e não sonhar
(papoulas)
 Maria pergunta-se ainda porque não podia ela ser aquilo que o seu pai sempre quis

Cena 5

 Jorge chega com notícias más: os governadores querem sair da cidade e hospedar-se na casa de
Madalena.
 Maria ouve o seu pai chegar (mais um indício da sua doença, dado que mais ninguém o ouviu)

Cena 6
 Miranda (empregada) diz que Manuel chegou. Madalena espanta-se com o facto de Maria ter
mesmo bom ouvido (pode significar que não tem noção de que a sua filha está doente)
 Jorge diz que a fantástica audição de Maria é um “terrível sinal naqueles anos”

Cena 7

 Manuel chega e diz à sua família que têm de sair de casa porque Luís de Moura (arcebispo) e os
outros governadores se vão, efetivamente, hospedar na sua casa. Dá ordens para arrumarem as
coisas mais importantes o mais rapidamente possível
 Maria fica radiante com a decisão e Madalena pede para falar a sós com Manuel, tendo ficado
atormentada
 Maria vai com o seu tio, Jorge, arrumar as suas coisas: livros e papéis; segredos

Cena 8

 Manuel tinha dito a Madalena que iriam para a antiga casa de Madalena: casa de D. João de Portugal
 Madalena suplicou para que não o fizessem mas Manuel acabou por iniciar um discurso no qual
refere que ela não tinha de se preocupar com o passado porque o seu coração e as suas mãos estavam
puras

Cena 9

 Telmo alerta para a chegada antecipada dos governadores


 Manuel dá ordens para saírem imediatamente

Cena 10

 Dá-se a continuação da saída

Cena 11

 Manuel incendeia a própria casa e faz antecipadamente uma analogia sobre a morte de seu pai e a
sua possível morte

Cena 12

 Madalena espanta-se com o ato do seu marido e este responde-lhe que ilumina a sua casa para
aqueles que a queriam invadir.
 Com isto, o retrato de Manuel é também incendiado – indício da morte do amor de Madalena por
Manuel e, consequentemente, da união entre estes
 Todos fugiram
ATO II

Cena 1

 Maria arrasta Telmo para uma sala, para finalmente conversarem.Têm o cuidado de não fazer
barulho para não acordar Madalena que não dorme há oito dias, desde que estão naquela casa.
 Maria confessa que o incêndio a fascinou, apesar de ter destruído a sua mãe. Agora, era Maria quem
tinha de se fazer de forte e sensata/discreta, que tinha de fingir não acreditar nos destinos e
presságios, apesar de neles acreditar fortemente. Tinha a noção de que uma desgraça estava por vir.
 Telmo diz-lhe que justiça será feita e que o seu pai, Manuel, é um exemplo de Homem, apesar de
só agora lhe ter começado a dar o devido valor.
 Maria dirige-se para os três retratos ao fundo da sala e, apontando para o de D. João de Portugal,
pergunta a Telmo de quem se trata. Inicialmente este não lhe disse toda a verdade, mas Maria, que
já o conhece, tentou perceber o porquê de tanto mistério.

Cena 2

 Entra Manuel, que diz a Maria que o retrato misterioso é de D. João de Portugal
 Manuel pergunta a Maria por Madalena e esta responde-lhe que a mãe está outra pessoa, mas que
continua a dormir

Cena 3

 Maria e Manuel vão conhecer melhor o palácio e partilhar ideias


 Maria pergunta se o pintor foi justo e realista ao fazer o retrato de D. João I. A resposta foi afirmativa
e Manuel acrescentou que apenas as qualidades daquele Homem é que não estavam ali
representadas. (…) E que qualidades!
 Manuel: “se ele vivesse… não existia tu agora, não te tinha eu aqui nos meus braços.”

Cena 4

 Jorge aparece com notícias relativas à invasão: os governadores cederam


 Manuel decide ir a Lisboa e Maria pede para ir com ele, de modo a conhecer Joana de Castro (Joana
de Castro separou-se de Luís de Portugal e seguiram, cada um separadamente, a vida religiosa –
indício trágico)

Cena 5

 Madalena diz-se curada dos maus pensamentos e pede a Manuel para que não saia de perto de si
 Manuel diz que é sexta-feira (dia da paixão de Cristo) mas que tem de ir a Lisboa e volta à noite (a
noite está associada ao romantismo)
 Jorge fica a fazer companhia a Madalena e Maria vai com o pai
Cena 6

 Madalena diz a Manuel que não quer que Telmo fique no palácio a fazer-lhe companhia, ao invés
de ir acompanhar Maria. E assim foi.

Cena 7

 Madalena começa a chorar mas logo acaba por se despedir deles

Cena 8

 Madalena pede precaução e Manuel diz que nada vai acontecer, que Maria só vai conhecer Joana
de Castro
 Rapidamente a história de amo desta surge na conversa: “depois de tantos anos de amor… e
convivência… condenarem-se a morrer longe um do outro, sós, sós! E quem sabe se nessa tremenda
hora... Arrependidos! (…)”

Cena 9

 Jorge pensa que o mal se instalou nos corações da sua família e, talvez, também se instalará no seu

Cena 10

 Hoje, sexta-feira, faz anos que Madalena casou com D. João I, que se perdeu el-rei D. Sebastião e
que Madalena viu pela primeira vez Manuel de Sousa
 Crime: Madalena amou Manuel assim que o amou

Cena 11

 Miranda chega a casa com um recado; um romeiro, que vem de Roma e dos Santos-lugares, quer
ver e falar a Madalena
 Madalena diz a Miranda para o trazer perto de si, já que este insiste em falar com Madalena e não
com Jorge

Cena 12

 Jorge pensa que se trata de uma fraude

Cena 13

 O romeiro entra e Miranda volta para o local onde inicialmente estava


 O romeiro identifica Madalena como sendo a pessoa a quem se quer dirigir (mesmo após tantos
anos)
Cena 14 - CLÍMAX

 O romeiro diz que viveu 20 anos nos Santos-Lugares e que é português. Teve uma vida miserável,
sem filhos e “perdeu” a família
 Fez um juramento há um ano atrás, de que iria estar ali, hoje, diante de Madalena, a pedido de D.
João de Portugal, para lhe dizer que este ainda está vivo, para mal de muitos
 Madalena fica atormentada, assustada, perdida ao saber isto

Cena 15

 Jorge pergunta ao romeiro quem ele é e este responde “Ninguém!”


 Negação total da sua identidade

ATO III

Cena 1

 Manuel diz que Maria ficou órfã de pais, família e nome e que Deus o castigou pelo erro que
cometeu, sendo que é, de momento, o homem mais infeliz da terra
 Jorge tenta consolar o irmão e refere que já visitou Maria hoje e que ela já não está tão mal
 Manuel pergunta-lhe por Madalena e este diz-lhe que ela se vai conformando, com o apoio de Deus
 Entretanto, o romeiro está na cela, para que ninguém o veja. Jorge promete-lhe que falará com
Telmo Pais (seu aio velho)
 D. Madalena não sabe que o romeiro é D. João de Portugal e Maria desconhece a razão de todo o
sofrimento (a não ser que entretanto a adivinhe, refere Jorge)

Cena 2

 Telmo diz que Maria acordou


 Jorge e Manuel vão-se embora e dizem a Telmo para ali ficar. Telmo terá de puxar uma corda com
uma sineta, de modo a chamar um Irmão Converso (frase) que se encarregará de o levar para junto
do romeiro

Cena 3

 Telmo puxa a sineta e o Converso abre-lhe a porta.

Cena 4

 Monólogo de Telmo: já tinha um pressentimento de que algo mau iria acontecer e tinha mesmo
chegado a desejar a vinda de D. João mas, agora que este veio, ficou mais confuso do que ninguém
 Telmo refere que o amor que tem por Maria venceu o amor que tinha por D. João
 Teme, agora, pela vida de Maria e pede a Deus para que leve D. João I. O romeiro ouve este seu
último pedido

Cena 5

 Romeiro entra em cena e Telmo percebe que este é D. João de Portugal


 D. João diz-lhe que sabe que Telmo foi dos únicos a duvidar da sua morte, apesar de todas as
provas de que de facto estava morto e pergunta depois se é verdade que D. Madalena se esforçou
por o procurar por toda a parte. Recebe, então, uma resposta afirmativa
 Ao saber que o casal tem uma filha (Maria), D. João pede a Telmo para que lhes vá dizer que o
romeiro era um impostor

Cena 6

 Aparece Madalena aos gritos, à procura de seu esposo


 D. João pensa que esta se refere a si, mas depressa Madalena diz o nome de Manuel e o romeiro
toca a sineta novamente e desaparece com Telmo

Cena 7

 Jorge chega e Telmo, a pedido deste, abre a porta. Madalena entra e pergunta novamente pelo seu
esposo, dado que tinha ouvido duas vozes
 Manuel aparece e diz a Madalena que o seu amor é impossível e que está tudo dito entre eles

Cena 8

 Estabelece-se um diálogo entre Madalena, Jorge e Manuel.


 Madalena questiona a veracidade do que foi dito pelo romeiro. No entanto, Jorge e Manuel sabem
a verdadeira identidade deste e, como tal, sabem que não há volta a dar: Madalena terá de ir para o
convento.
 Manuel termina com uma despedida de Madalena.

Cena 9

 Madalena chama novamente por Manuel, mas não obtém resposta.


 Jorge chama-a porque vai começar a santa cerimónia (da tomada do Hábito)

Cena 10

 O Prior (superior de convento) dirige-se a Manuel e Madalena, referindo o crime ou erro por estes
cometido
Cena 11

 Maria interrompe a cerimónia da Tomada do Hábito e, alienada pela febre que exprime, chama
pelos seus pais. Depressa pergunta que cerimónia é aquela e dirige-se a Deus, pedindo-Lhe que não
mate os seus pais, mas que a mate a ela
 Maria refere que sabia o motivo de todo aquele sofrimento e pede aos pais para que mintam, para
salvarem a honra da sua filha. Estes não atuam

Cena 12

 O Romeiro pede a Telmo que salve a família de todo aquele sofrimento, porque ainda vai a tempo
 Maria ouve a voz do Romeiro e morre (morre de vergonha)
 A cerimónia religiosa prossegue

O Passado e a Atualidade – pequena análise

Num país ligado às grandes e longas viagens marítimas, é provável que episódios semelhantes aos relatados
na tragédia se tenham repetido, entre os quais, os pensamentos que invadiam a mente das esposas abandonadas
e dos maridos que poderiam posteriormente encontrá-las casadas com outro.
Atualmente, o tema do homem que vai para longe e que, de certo modo, abandona a sua família para
descobrir novos mundos (ou até para se descobrir a si mesmo), faz ainda parte da nossa realidade, dado que
vivemos num mundo de guerras, conflitos, interesses e curiosidades

Textos narrativos e descritivos

 Leitura de um romance de Eça de Queirós

Eça de Queirós viveu no século XIX e abordava temas relacionados com o realismo, impressionismo e
naturalismo.

O Realismo defendia a inovação e um maior contacto com as realidades sociais, manifestando-se pela maior
abertura às evoluções científica e literária.

Seguiu-se o Naturalismo, que se preocupava com as questões mais fundamentais levantadas pelo contacto
com as diferentes realidades. Deste modo, enquanto o Realismo se limitava a dar uma pequena impressão do
mundo exterior, o Naturalismo tentava compreender, através da análise, os problemas sociais, económicos e
políticos.

O Impressionismo nasceu numa exposição de pintura francesa e estendeu-se até à literatura, manifestando-
se como uma maior preocupação pelos efeitos da luz e da cor, pela descrição e acentuação de traços visíveis
nas personagens, entre outros. De uma maneira geral, o impressionismo literário pretendia transparecer as
impressões que ficavam da realidade observada, sendo necessário dar uma maior importância à atenção, ao
pormenor e à subjetividade que provém da opinião pessoal.

Os temas tratados por Eça de Queirós referem-se a uma constante crítica social, englobando:

 A educação
 O jornalismo
 A política
 O ser/parecer
 O adultério e o incesto
 A corrupção
 A decadência e a falta de mudança

Relativamente à escrita, a prosa queirosiana apresenta as seguintes características:

 Ironia/sarcasmo
 Metáforas e comparações
 Hipálages (ex.: fumei um cigarro pensativo)
 Sinestesia
 Diminutivo – crítica/ironia, carinho e pequenez (tamanho)
 Estrangeirismos, principalmente franceses e ingleses
 Recurso a verbos expressivos
 Adjetivação dupla ou múltipla, ligada muitas vezes às sensações
 Discurso indireto livre
 Neologismos (criação de novas palavras/expressões ou atribuição de novos significados a outras já
existentes)
 Registo de língua familiar e corrente, por vezes, com função crítica

Discurso direto, indireto e indireto livre


 Discurso direto – processo de citação de uma voz, que ocorre normalmente em diálogos e é introduzido
por um verbo declarativo (dizer, afirmar, declarar, responder, confessar, etc.).
Virgília ouvia-me calada; depois disse:
– Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do mesmo modo.

 Discurso indireto – processo enunciativo em que o locutor incorpora outra voz diferente da sua (de um
enunciador). As falas do enunciador são também introduzidas por um verbo declarativo.
Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do céu que eu era obrigado a
descer, mas que não deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles frias que ela escutou sem
dizer nada

 Discurso indireto livre – processo enunciativo, em que a voz do narrador e a voz do personagem se
confundem, sendo uma espécie de interseção entre o discurso direto e o indireto.

O marquês gostava de Gambetta: fora o único que durante a guerra mostrara ventas de
homem; lá que estivesse “comido” ou que “quisesse comer” como diziam – não sabia nem
lhe importava.

Textos líricos

 Poesia de Cesário Verde

A poesia de Cesário Verde é marcada por três movimentos estético-literários:


1. Realismo – apresentação do real objetivo, representação da sociedade e crítica de denúncia social
 Atenção ao detalhe
 Linguagem burguesa, popular e rica em termos concretos
 Predomínio do cenário urbano:
 O campo é vida, fertilidade, vitalidade, rejuvenescimento e liberdade
 A cidade é ganância, miséria, sofrimento , poluição e exploração
 Valorização do natural em detrimento do artificial
 Situa espácio-temporalmente as cenas apresentadas – marcas da estrutura narrativa
 Preocupação social sentida
2. Parnasianismo – reação antirromântica
 Recusa da divulgação dos sentimentos
 Os sentimentos e sensações ficam registados nas lembranças: poeta do imediato mas
também da memória
 Objetividade e impessoalidade
 Rigor na forma
3. Impressionismo – fuga ao sentimento de decadência
 Impressão pura e perceção imediata: uso de sinestesias
 Cor, luminosidade e textura
 Construções impessoais
 A qualidade ótica do objeto é mais importante que o objeto em si
 Recurso à hipálage: preocupação com a beleza formal

Embora já tenham sido referidas algumas, encontram-se agora apresentadas as características temáticas de
Cesário Verde:
 Oposição cidade-campo – a esta oposição associam-se as oposições: belo/feio, claro/escuro,
força/fragilidade
 Oposição passado/presente – o passado é visto como um tempo de harmonia com a natureza, ao
contrário do presente contaminado pelos malefícios da cidade
 A inviabilidade do Amor na cidade
 A humilhação sentimental, estética e social
 Preocupação com as injustiças sociais
 Sentimento anti burguês
 Perpétuo fluir do tempo, que só trará esperança para as gerações futuras
 Presença obsessiva da figura feminina, vista:
 Negativamente – contaminada pela civilização urbana: mulher opressora, fria, nórdica e
geradora de um erotismo da humilhação
 Positivamente – relacionada com o campo, podendo ser:
a) Mulher anjo, com visão angelical, reflexo de uma entidade divina, símbolo de pureza
campestre
b) Mulher regeneradora, frágil, pura, natural, simples, representante dos valores do
campo na cidade e que estimula a imaginação
c) Mulher oprimida, resignada, vítima da opressão social urbana, com a qual o sujeito
poético se identifica ou por quem nutre paixão
 Como objeto de estímulo erótico: mulher objeto que é vista como impulso erótico

Figuras de estilo mais usadas

 Assíndeto (as ideias não são ligadas por nenhuma conjunção) – ritmo mais violento e agressivo
 Ironia
 Comparação e metáfora
 Sinestesia
 Estrangeirismos
 Hipálage
 Adjetivação e enumeração
 Antítese
 Transporte (continuação da ideia no verso seguinte)
PORTUGUÊS 12ºANO

Conteúdos a saber:

1. Textos épicos e épico-líricos:


 Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões
i. Visão global
ii. Mitificação do herói
iii. Reflexões do poeta: críticas e conselhos aos portugueses
 Mensagem, de Fernando Pessoa
i. Estrutura e valores simbólicos
ii. O sebastianismo e o mito do Quinto Império
iii. Relação intertextual com Os Lusíadas
2. Textos líricos:
 Fernando Pessoa Ortónimo
i. Fingimento artístico
ii. Dor de pensar
iii. Nostalgia da infância
 Heterónimos de Fernando Pessoa:
i. Alberto Caeiro
 A poesia das sensações
 A poesia da natureza
ii. Ricardo Reis
 O neopaganismo
 Epicurismo e estoicismo
Textos épicos e épico-líricos

Um texto épico “é essencialmente uma narrativa de fundo histórico em que se registam poeticamente as
tradições e os ideais de um grupo étnico sob a forma de aventuras de alguns heróis”.

– António José Saraiva

Por sua vez, um texto épico-lírico engloba as características da epopeia e da lírica, pressupondo a junção
da conceção narrativa e da grandiosidade de assunto do texto épico com a função emotiva e a subjetividade
do texto lírico.

 Os Lusíadas

Os Lusíadas¸ trata-se de uma obra épica que conjuga, portanto, a realidade e o mito. Esta epopeia obedece,
entre outras, às seguintes regras:

 A ação épica manifesta-se com grandeza e solenidade e expressa o heroísmo


 O protagonista (herói) revela grande valor moral
 Os episódios mitológicos e históricos enriquecem a obra, sem quebrar a unidade da ação
 O maravilhoso intervém na ação da epopeia

Estrutura Interna da obra:

i. Proposição – apresentação do assunto que se vai cantar


ii. Invocação – súplica de inspiração às Musas/Tágides para escrever o poema
iii. Dedicatória – referência a D. Sebastião, como o monarca a quem a obra é dedicada
iv. Narração – desenvolvimento do assunto in media res (a narração da viagem de Vasco da Gama até
à Índia começa a ser feita quando os portugueses já percorreram metade do caminho). A narração
d’Os Lusíadas constrói-se através da articulação de quatro planos estruturais:
 Plano da Viagem (plano central) – confere unidade ao poema
 Plano da História de Portugal (plano encaixado) – relata e enaltece a História de Portugal
 Plano da Mitologia (plano paralelo) – confere beleza, ação e diversidade ao poema, ajudando
no processo de divinização dos portugueses
 Plano das Reflexões do Poeta (plano ocasional) – transmite as posições do poeta face ao
mundo, aos outros e a si mesmo
Estrutura Externa da obra:

Relativamente à estrutura externa, Os Lusíadas são uma narrativa com:

 Dez cantos
 Uma organização em oitavas (estrofes com oito versos)
 Versos decassilábicos
 Rimas cruzadas nos seis primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos de cada estrofe (abababcc)

Análise de alguns episódios:

Canto I – estâncias 105 e 106

Est. 105

 Após o consílio dos Deuses no olimpo, onde se formaram duas correntes (uma de apoio e outra de
oposição) e onde Júpiter decide apoiar os portugueses a chegarem à Índia, Baco decide preparar-
lhes várias ciladas em Quiloa e Mombaça. Deste modo, o acontecimento motivador da reflexão é a
aproximada chegada da armada portuguesa a Mombaça.
 Há uma alusão à traição que espera os portugueses, dado que o “recado” (mensagem) é
aparentemente amiga mas, na realidade, perigosa. Contudo, a traição acaba por não se consumar
porque é descoberta (v.4)
 Os versos seguintes demonstram a insegurança e fragilidade da vida humana, exposta a tantos
perigos.

Est. 106

 Referência aos perigos que o ser humano enfrenta, tanto na terra como no mar.
 Poderá o Homem, um “bicho da terra tão pequeno”, ultrapassar a sua pequenez face ao Universo,
muito mais poderoso do que ele?
 O ser humano é frágil e dificilmente encontra um lugar onde pode estar e sentir-se seguro

Palavras-chave: efemeridade da vida; circunstâncias da vida

Conclusão: apesar da pequenez ou fragilidade do ser humano, este consegue vencer os obstáculos e evitar
os perigos, o que demonstra o seu valor elevado, digno de um herói.
Canto III – estâncias 142 e 143

O acontecimento motivador desta reflexão centra-se no tema do amor. Deste modo, a figura feminina é tão
esbelta e encantadora que cria um desejo imediato de amar, o que é percetível através do amor entre Inês de
Castro e D. Pedro.

Est. 142

 Existe uma clara definição da figura feminina, comparando-a com rosas (lábios ou maçãs do rosto),
ouro (cabelos loiros), neve pura (pele) e alabastro transparente (pescoço)
 Apresentação dos efeitos do amor e das suas capacidades transformantes: a petrificação ou
imobilidade que surge ao observar a figura feminina

Est. 143

 Nenhum homem resiste aos encantos da figura feminina (vv. 1-4)


 Apresentação da história de amor de D. Fernando (casado com D. Leonor Teles, amante do conde
Andeiro. D. Fernando amava-a tanto que, apesar da traição, continuava a gostar das suas qualidades
e a estar junto dela)
 Quem experimenta o amor é capaz de desculpar, tal como D. Fernando. Quem nunca amou, não
percebe a posição do rei e talvez ainda o julgue

Canto V – estâncias 92 até 99

O acontecimento motivador é o fim da narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde (plano da História
de Portugal: viagem de Belém a Melinde) e o elogio do rei de Melinde à bravura, lealdade e nobreza dos
portugueses

Est. 92

 Comenta a narrativa de Vasco da Gama, referindo que é agradável ouvir glorificar os próprios feitos
(vv. 1-2)*. De seguida, refere que qualquer nobre se esforça para que a sua memória não fique atrás
dos seus antepassados (vv. 3-4).
 A inveja da história dos outros é a causa das grandes ações (vv. 5-6) e o louvor é estimulado pela
prática de obras de valor (vv. 7-8)

*A exclamação nestes dois primeiros versos justifica-se como forma de enaltecer o valor das vitórias
quando são divulgadas. Expressa a felicidade e emotividade pelos feitos conseguidos.
Est. 93

 Alexandre não apreciava tantos os feitos de Aquiles em combate como apreciava Homero por ter
escrito belos versos em que o contou (vv. 1-4)
 Os troféus das vitórias de Temístocles eram o que despertava a inveja de Milcíades e nada o
encantava/agradava tanto como ouvir contar os seus feitos (vv. 5-8)

Est. 94

 Vasco da Gama mostra que os feitos de Ulisses e Eneias, tão celebrados no mundo, não merecem
tanta glória como os seus feitos/navegações (vv. 1-4)
 Isto é verdade, mas Virgílio canta Eneias e difunde a glória de Roma porque há um herói que o sabe
estimar com presentes e favores

Ideia geral: ingratidão da pátria para quem a celebra

Est. 95

 Portugal também produz guerreiros e reis mas não lhes dá as qualidades que os impedem de ser
homens rudes e toscos

Ideia geral: rudeza dos heróis portugueses

Est. 96

 César, ao mesmo tempo que ia conquistando Gália, ia escrevendo num estilo comparável ao de
Cícero (vv.1-4). A arte da comédia aprendeu de Cipião e lia os feitos de Alexandre, por Homero,
tendo este livro à cabeceira.

Ideia geral: cultivo das Letras pelos heróis da Antiguidade

NOTA: As referências feitas a figuras históricas como Octávio, César e Alexandre pretendem demonstrar
que também Portugal tem grande Homens mas que, não sendo registados no papel, não ficavam na memória
do povo. Pelo contrário, Portugal vivia demasiado centrado no seu ouro e nas suas conquistas e desprezava as
letras e a literatura.

Est. 97

 O poeta sente vergonha pelo facto de a nação portuguesa não ter capitães letrados, pois quem não
sabe arte, também não a pode apreciar
 Será por este motivo que não existem capitães portugueses celebrados na poesia. São ignorantes e
desprezam a cultura
Est. 98

 O destino fez os portugueses fez os portugueses tão rudes e insensíveis, tão desleixados, que poucos
se importam com a falta de poetas que há em Portugal.

Est. 99

 Vasco da Gama deve a sua fama ao seu amor pela pátria. Se este amor não existisse, a estima da
Musa não iria receber e as Ninfas do Tejo não teriam interrompido as finas telas de ouro

Conclusões:

 Se a nação portuguesa prosseguir no costume da ignorância, não teremos homens ilustres nem
corajosos
 O embrutecimento dos espíritos desmotivará futuros cantores dos feitos portugueses
 É necessário ocorrer uma mudança!

Canto VI – estâncias 95 até 99

O acontecimento motivador da reflexão é a tempestade e o agradecimento de Vasco da Gama a Deus pela


proteção recebida durante a viagem.

Est. 95

 Alcance da imortalidade e das maiores distinções através da coragem, da capacidade de luta e


sofrimento demonstradas em situações de perigo
 Esta distinção não seria conseguida se os portugueses nada fizessem

Est. 95 (vv. 5-8) + Est. 96

 Identificação dos obstáculos à obtenção da fama e da glória, ou seja, dos meios que não se devem
usar para as atingir:
▪ Viver à custa dos antepassados: a glória não é herdade (vv. 5-6)
▪ Viver só rodeado de conforto e facilidades (v. 7)
▪ Viver rodeado de luxo e requintes supérfluos (vv. 7-8)
▪ Manjares, vidas ociosas, prazeres que enfraquecem os fidalgos (vv. 1-3)
▪ Viver para saciar apetites (v. 4)
▪ Viver em famílias privilegiadas e não ter de se esforçar para ter a fortuna e a glória
(v. 6)
▪ Ficar indiferente face a uma “obra heroica de virtude”, sem intervenção na mudança
e sem cultura ( vv. 7-8)
 O poeta, deste modo, critica todos os que desejam ser reconhecidos na vida, apoiando-se apenas
na herança, nos luxos, nos prazeres e numa vida ociosa, sem praticarem qualquer tipo de “obra
heroica de virtude” – crítica à comunidade nobre portuguesa: gula, vida sem objetivos, sem
ambição e sem rumo, ganância e gastos inúteis

Est. 97

 Apresentação das ações que fazem o verdadeiro herói e que permitem alcançar a fama e a glória:
▪ Obtenção das honras pelos seus atos/ações e pelo esforço (vv. 1-2)
▪ Disponibilidade para a guerra (v. 3)
▪ Ter força para enfrentar e ultrapassar situações de grande sofrimento: tempestades,
navegações por lugares inóspitos, consumo de alimentos deteriorados ou quase sem
mantimentos, doenças e mortes (vv. 4-8)

Est. 98

 Apesar dos heróis estarem conscientes do perigo eminente, nunca revelam fraqueza (vv. 1-4).
Só assim se pode alcançar uma honra desprezadora de dinheiro ou títulos obtidos pela sorte (vv.
5-8)
 O herói é corajoso, mesmo quando tem de assistir à morte dos amigos ou companheiros (v. 4)

Est. 99

 Entendimento daquilo que será a verdadeira virtude: o bom Homem irá distinguir-se do Homem
de baixo trato:
▪ O Homem que levar uma vida honesta tem direito a ser valorizado
▪ A dignidade e heroísmo só são conseguidos através do esforço e de forma
espontânea, sendo humilde, sofredor e corajoso
▪ Não sobe por pedir reconhecimento, mas por direito
 Vasco da Gama ficou imortalidade graças ao seu esforço, sofrimento, perseverança e humildade
– ideal renascentista

Canto VII – estâncias 78 até 87

O acontecimento motivador é o pedido do Catual a Paulo da Gama para que este lhe explique o significado
das figuras desenhadas nas bandeiras da nau. As figuras dizem respeito a feitos e heróis da história.

Contudo, o poeta acha que os portugueses não têm uma visão global e completa sobre o que é ser herói,
pelo que se sente obrigado a refletir sobre o assunto.
Est. 78

 O poeta começa por pedir às Ninfas do Tejo e do Mondego apoio para a sua jornada (escrita
d’Os Lusíadas), devido às dificuldades pelas quais já passou e tem medo de reviver
 A metáfora do verso 9 permite que o poeta aproxime a viagem turbulenta, descrita ao longo da
obra, à sua escrita, pedindo então a ajuda das Ninfas para que a obra se finalize com sucesso.

Est. 79

 O poeta queixa-se do facto do seu trabalho não ser reconhecido, pois já canta os feitos dos
portugueses há muito tempo e continua na miséria (vv. 1-4)
 O poeta já enfrentou os perigos e as aventuras pelo mar, a participação na guerra e a errância no
mundo
 Deste modo, não há incentivo para futuros escritores

Est. 80-83

 Continuação do pedido de inspiração/apoio às Ninfas


 O poeta já enfrentou a pobreza sofrida no Oriente, o desterro e os trabalhos passados em regiões
estranhas, as esperanças e desilusões, os perigos nas navegações, o naufrágio e a ingratidão do
povo português perante o seu trabalho

Ideia geral: crítica os portugueses que só dão importância à faceta do herói e se esquecem daqueles que
cantam os seus feitos, passando por diversas dificuldades

Est. 84-86

 O poeta dirige-se às Ninfas e critica aqueles que não irá cantar na sua obra, ou seja, ao contrário
de um herói:
▪ Os que colocam o interesse pessoal à frente do bem-estar comum e do interesse do
rei (est. 84, vv. 2-3)
▪ Os ambiciosos que ascendem ao poder para se servirem a si mesmos e abusar desse
poder (est. 84 vv. 5-6)
▪ Os que exploram o povo através da simulação e do pagamento injusto (est. 85, v.8)
 O Homem deve exercer corretamente o poder em defesa do bem comum e das leis divinas e
humanas. Não deve ser demasiado ambicioso, egoísta, falso, desonesto e injusto.
Canto VIII – estâncias 96 até 99

Acontecimento motivador: traições sofridas por Vasco da Gama em Calecute (nomeadamente o sequestro),
que são ultrapassadas pela entrega dos valores materiais.

Est. 96

 Tanto os ricos como os pobres têm sede de dinheiro e esta sede é tal que o dinheiro os leva a
fazer determinadas coisas que seriam impensáveis à luz de outro motor

Est. 98 e 99

 “Este” refere-se ao ouro e o facto de surgir no início de vários versos demonstra o poder que o
ouro tem sobre o Homem, provocando neste um efeito negativo, pois leva à execução de vários
tipos de traições
 O poeta critica a:
▪ Traição (est. 98, v.2)
▪ Arbitrariedade (est. 99, v.1)
▪ Mentira/perjúrio e corrupção (est. 99, vv.3-4)
▪ Tirania (est. 99, v.4)
▪ Infidelidade (est. 98. 4)

Canto IX – estâncias 92 até 95

Acontecimento motivador: conquista da imortalidade, apenas reservada aos seres superiores, por parte do
povo lusitano. Por outro lado, dá-se a chegada da armada portuguesa à Ilha dos Amores (ilha preparada por
Vénus e Cupido, seu filho)

Est. 92

 O poeta convida os heróis a fazer justiça à fama que têm

Est. 93

 A melhor forma de merecer a fama e glória é não se deixarem contagiar pela preguiça, ambição
e tirania.
 O que tem um verdadeiro valor é o espírito e as suas recompensas deverão ser apenas merecidas
se estas forem atribuídas de forma justa. A melhor forma de obter fama e honra é conquistar
feitos verdadeiramente memoráveis
Est. 94

 A fama e honra também se alcançam se foram justos para com os mais pobres (vv. 1-2) e lutarem
contra os mouros (vv. 3-4). Como resultado, conseguirão aumentar as riquezas dos reinos,
tornando-os maiores e mais poderosos (vv. 5-6) e irão conseguir riquezas merecidas e honrosas
(vv. 7-8)

Est. 95

 Ao lutarem pela pátria, conseguirão o apoio do rei (v.1)


 Se tudo isto for respeitado, atingirão a imortalidade e serão recebidos na Ilha dos Amores

O Homem é apresentado como um ser grandioso e importante porque é recebido na Ilha de Vénus e torna-
se imortal.

Canto X – estâncias 145 até 156

Est. 145

 O poeta queixa-se à sua musa: não quer cantar mais porque a sua Lira está desafinada e a sua
voz enrouqueceu; não porque muito cantou, mas por causa da “gente surda e endurecida” a quem
se dirige.
 Está cansada, desiludido e sente-se incompreendido porque a pátria não lhe dá o prémio que
estimula o engenho poético: o reconhecimento pelo seu trabalho e o devido valor
 O povo só pensa na ganância e sofre de uma estupidez triste, soturna, apagada e mesquinha

Est. 146

 Tudo isto origina uma ausência de ânimo e de orgulho na pátria.


 O poeta terá de levantar o ânimo para continuar a escrever
 Por último, dignifica a obra de D. Sebastião

Est. 147 e 148

 O poeta deseja que o rei veja como os portugueses, pelos vários caminhos do mundo, se expõem
a todos os perigos da guerra e do mar, prontos a tudo para o servir, obedecendo calados a todas
as ordens deste.
 Basta que os portugueses pensem que o rei os está a observar para desafiarem o inferno – e é
certo que sairiam vencedores
 O poeta mostra-se orgulhoso dos “vassalos excelentes”, pois representam glória, coragem e
espírito patriótico e deseja que o rei reconheça o valor destes, dado que estes vassalos são
necessários para a restauração do orgulho e grandeza da pátria

Est. 149 até 152

 Inicia as recomendações ao rei D. Sebastião:


▪ Recompensa-los, favorece-los e alegrá-los com a sua presença e trato alegre e
humano
▪ Aliviá-los de leis rigorosas, cruéis e injustas, dado que o caminho para a santidade é
tratar os Homens com humanidade
▪ Promover os mais experientes
▪ Apoiá-los a todos, sem distinção, nos seus ofícios
▪ Velar para que ninguém possa dizer que os portugueses constituem uma nação servil,
em vez de senhorial
▪ Receber conselhos apenas dos mais experientes (valorização do conhecimento
prático em detrimento do saber teórico e valorização maior daqueles que conjugam
estes dois saberes)
▪ Que os clérigos se ocupem em rezar penitências pelos pecados de todos, deixando
qualquer ambição de glória ou dinheiro

Est. 151

 Pede a D. Sebastião que estime os cavaleiros, pois não só alargaram a fé à custa do seu sangue
como também o império.
 Os que vão servir em regiões remotas vencem dois inimigos: os homens que os atacam e os
padecimentos que sofrem, ou seja, o sofrimento

Est. 152

 Pede ao rei que não permita que os estrangeiros desvalorizem a capacidade dos portugueses
gerirem o seu destino, ou seja, que não possam dizer que os portugueses são feitos
principalmente para obedecer e não para mandar

Est. 153

 Formião era um filósofo grego que discurso diante do general Anibal sobre a arte de combater e
que foi gozado por este
 Do mesmo modo, a arte da guerra, a disciplina, não se aprende teoricamente, mas sim com a
prática e com a observação
Est. 154

 O poeta começa por traçar o seu autorretrato, designando-se como alguém “humilde, baxo e
rudo”
 Porém, com que autoridade falava ele, poeta, homem obscuro, que o rei não conhecia nem em
sonhos? Sabia, no entanto, que os mais perfeitos louvores saem da boca dos pequenos.
 O poeta era um possuidor de “honesto estudo” e de “engenho” (talento), misturado com “longa
experiência”, coisas que raramente se encontram juntas

Est. 155

 O poeta estava pronto para servir o rei em combate, pois tinha o braço exercitado na guerra e a
mente inclinada às Musas. Só lhe faltava a aceitação do rei, que devia prezar o valor deste.
 Por fim, mostra disponibilidade para cantar os seus feitos futuros, caso Deus o conceda.

Est. 156

 Neste última estância é realizada uma comparação entre o olhar petrificante da Medusa e o
grandioso poder do rei. A Medusa petrificou Atlas (Atlante) porque este a contemplou. Do
mesmo modo, o rei D. Sebastião enviaria um exército e faria tremer de longe ou, por outro lado,
combateria ele próprio em Marrocos, nos campos de Ampelusa, à frente da expedição,
prosseguindo a guerra cruzada no Norte de África.
 Por último, o poeta promete a D. Sebastião que a sua musa feliz e estimada o fará conhecido em
todo o mundo, de tal modo que nem Alexandre invejaria Aquiles, pois a glória de D. Sebastião
seria muito superior.

 Mensagem

A Mensagem¸ de Fernando Pessoa, é uma obra épico-lírica na qual o autor se assume como cantor do fim
do império português, relatando a situação do império um pouco antes deste se desmoronar.

Deste modo, e contrariamente a Camões, Pessoa assume o cargo de anunciador de um novo ciclo, o Quinto
Império, que não precisa de ser material mas civilizacional (e da qual já havia falado Vieira). Neste contexto,
o valor material – domínio territorial – dará espaço ao valor civilizacional – valores espirituais e morais.

O objetivo de Pessoa é perseguir uma “Índia que não há”, uma Índia nova, resultante do imaginário e para
onde viajam apenas as naus construídas no pensamento.

Por último, falta cumprir-se Portugal! Trata-se de reconquistar uma identidade perdida, reconquistar o
orgulho e glória dos portugueses, através da substância do nosso passado e do mito sebástico, reinventando,
deste modo, o futuro.
Estrutura da obra:

I. O Brasão – Nascimento da Pátria


 Referência e apresentação dos heróis fundadores da nacionalidade, presentes nos elementos
dos brasões
 Referência a um lado mítico, que corresponde à inspiração divina importante na realização
dos atos heroicos
II. Mar Português – Crescimento da Pátria
 Referência à construção do grande destino da nação, graças às descobertas marítimas e ao
sonho
 Apresentação das personalidades e acontecimentos impulsionadores dos Descobrimentos,
que exigiram uma luta contra o desconhecido e contra os elementos naturais
 Como “tudo vale a pena”, a missão foi cumprida
III. O Encoberto – Declínio e morte da Pátria, com esperança na ressurreição
 Em 1580, Portugal perdeu a nacionalidade, visto que D. Sebastião deixou a nação entregue
aos Filipes de Espanha
 A esperança do aparecimento de um messias salvador imbuído do mesmo espírito forte,
louco, sonhador e destemido de D. Sebastião, – capaz de gerar um novo ciclo que trará a
regeneração e instaurará um novo tempo (Quinto Império) – preenche a mente do povo.

Mitos e Heróis

Mensagem é uma obra épico-lírica porque toma os heróis e feitos da nossa história como um exemplo a
seguir. Porém, também corresponde a uma obra mítica e simbólica.

É irrelevante saber se as figuras míticas de facto existiram realmente. O que importa é o que elas
representam. Do mesmo modo, não importa se D. Sebastião ou outra figura messiânica virá salvar a pátria da
decadência. Importa, sim, acreditar nesse mito, dado que “o mito é o nada que é tudo”!

As figuras incorpóreas servem, assim, para representar ou ilustrar o ideal de ser português, pelo que todos
os heróis referidos por Pessoa são heróis mitificados
Textos líricos

 Fernando Pessoa Ortónimo

Fernando Pessoa coloca o pensar num plano paralelo e superior ao sentir. Isto porque sentir é algo pessoal,
inconsciente e proveniente tanto da perceção como da imaginação (e todos nós sabemos que estas últimas nos
enganam), enquanto pensar é algo consciente, involuntário e ligado à inteligência. Ser é ser objeto de
conhecimento e pensar é necessário para transmitir o que sentimos. Citando Pessoa, Pensar é querer transmitir
aos outros aquilo que se julga que se sente. (…) O que se sente não se pode comunicar. Só se pode comunicar
o valor do que se sente.

Assim, podemos afirmar que o poeta é um criador. Num primeiro momento, porque a emoção nasce
consigo, sendo ele o seu criador. Num segundo momento, porque para a transmitir, recorda-a e finge-a de tal
modo que a intelectualiza num poema. Um poema surge, então, da racionalização das emoções, facto que é
possível perceber no seu poema Autopsicografia, em O poeta é um fingidor/ (…)/ Que chega a fingir que é
dor/ A dor que deveras sente.

Porém, apesar da valorização do pensar em relação ao sentir, todos sabemos a dor que esta trituração mental
provoca, sem nos levar a conclusão alguma, facto esse que incentiva o poeta a apresentar no seu poema Ela
canta, pobre ceifeira o desejo de ser conscientemente inconsciente, Ter a tua alegre inconsciência/ E a
consciência disso!, algo paradoxal e, por isso, de impossível aplicação no mundo real. Será então esta
contraditória ambição que o levará à plena insatisfação e à procura da felicidade eternamente perdida. Será
neste contexto que surge a tentativa de evasão pelo sonho e a nostalgia pela infância, dado que é nestes que se
encontra a inconsciência, a felicidade longínqua e a simplicidade tão procuradas em situações de sofrimento.

Num mundo onde não se conhece e se vê impossivelmente feliz, o total tédio, angústia e desalento
proporcionam a instalação da fragmentação do eu, numa tentativa de completar o que há de mais incompleto
em si: o eu.

Será portanto, com esta fragmentação que surgem os diferentes heterónimos, entre os quais:

 Alberto Caeiro
 Ricardo Reis
 Álvaro de Campos
 Alberto Caeiro

Alberto Caeiro é considerado o Mestre de Fernando Pessoa e dos restantes heterónimos. Nasceu em 1889,
em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Cara rapada [...] louro sem cor, olhos azuis. Não teve
profissão, nem educação quase alguma, tendo apenas a 4ª classe. Os seus pais morreram cedo e, por isso, ficou
a viver com a sua tia-avó, sobrevivendo de uns pequenos rendimentos. Morreu tuberculoso, em 1915.

Apresenta-se como um simples guardador de rebanhos, que contacta constantemente com a Natureza. É o
poeta do que é espontâneo. Vê a constante renovação da Natureza e está de acordo com ela, pelo que deambular
pelo campo é contemplar o mundo e estar atento à eterna novidade deste.

Vê a realidade de forma objetiva e natural, repreendendo qualquer tipo de pensamento filosófico. De facto,
não há necessidade de explicações porque o Universo não pode ser explicado, só pode existir. Quem não
entendeu um objeto do mundo, nunca o poderá entender porque tal não pode ser explicado. É considerado
como um poeta anti metafísico porque pensar é estar doente dos olhos e pensar não é compreender. Insiste
ainda na aprendizagem de desaprender, isto é, na necessidade de aprender a não pensar, para se libertar de
todos os modelos ideológicos, culturais, etc. e poder ver a realidade como ela é. A infância adquire uma
posição importante na sua poesia, sendo sinónimo de pureza, inocência e simplicidade, dado que a criança não
pensa, conhece pelos sentidos.

Deste modo, a aquisição do conhecimento (do real objetivo) realiza-se através das sensações (não
intelectualizadas). É sensacionista. Só lhe interessa o que capta pelas sensações, principalmente pelo olhar,
pelo que cada coisa é o que é. O sentido das coisas reduz-se à perceção da cor, da forma e da existência destas.

Visto isto, o poeta nunca foge para o sonho ou para a recordação, porque fugir para o sonho é fugir da
realidade e recordar é pensar. Por este motivo, vive no presente, sem pensar nos arrependimentos do passado
e nas possibilidades do futuro, onde a morte definitivamente se inclui.

Contudo, apesar desta valorização da simplicidade e espontaneidade, existe uma contradição entre aquilo
que o poeta diz e o que faz, dado que é necessário pensar e trabalhar a sua poesia para que esta se apresente
ao mundo de forma simples.

Quando Fernando Pessoa escreve em nome de Caeiro, diz que o faz “por pura e inesperada inspiração, sem
saber ou sequer calcular que iria escrever.”
 Ricardo Reis

Reis é um vago moreno mate, que nasceu em 19 de Setembro de 1887, no Porto. Latinista por educação e
semi-helenista foi estudante num colégio de jesuítas tendo adquirido uma educação fortemente clássica, que
podemos claramente reconhecer na sua linguagem e estrutura frásica. Formou-se, posteriormente, em
Medicina mas não exerceu a profissão. Este seu lado mais intelectual e objetivo faz com que Reis acabe por
apresentar a sua poesia como uma doutrina.

Uma das temáticas presentes na escrita de Ricardo Reis é o epicurismo. Esta filosofia teve origem em
Epicuro e encontra-se diretamente relacionada com o carpe diem, que significa “aproveita o dia”. Assim,
devemos aproveitar o presente e não nos preocuparmos com o futuro, tendo em conta que a vida é breve e que
a morte é certa e correspondente ao fim natural da existência (fatalismo). Do mesmo modo, devemos aceitar
o poder do fatum (dado que até os deuses estão sujeitos ao destino) e, por isso, a ideia de que não temos
liberdade deve ser tida em conta sem receios ou preocupações, com tranquilidade (ataraxia).

Em concordância com esta vertente, temos o estoicismo, fundado por Zenão, que defende que o sábio se
deve conformar com a Natureza e não lutar contra ela, sendo que só é possível sermos felizes se nos
contentarmos com aquilo que temos, sem desejarmos algo mais e evitando os prazeres excitantes através da
indiferença face aos bens materiais. Uma vez que as emoções também são causadoras de perturbações do
espírito, estas devem ser evitadas (apatia) de modo a não provocarem dor ao agente da ação como aos
indivíduos que o rodeiam.

Deste modo, se abdicarmos dos prazeres terrestres e das emoções que nos conduzem ao sofrimento,
conseguimos atingir uma liberdade que não pertence ao mundo dos bens materiais ou dos corpos, mas que
pertence à consciência de cada Homem, pelo que ser verdadeiramente livre é reinar em todo o seu ser.

No entanto, não devemos fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas. Estas devem ser encaradas
com dignidade e sem grandes queixas, como se se tratasse de um sofrimento contido.

Apesar de Ricardo Reis defender que estes são alguns dos meios para caminhar calmamente em direção à
felicidade, sabe que esta é impossível de alcançar na totalidade, pelo que podemos referir que a sua filosofia
é um epicurismo triste.

Inspirado pela civilização grega, Reis acreditava que os deuses estavam presentes nas coisas e na Natureza
(nos rios, nos campos, nos bosques, …) e que a substituição desta crença pelo cristianismo impediu a
verdadeira visão intelectual da realidade. O poeta desejava alcançar a quietude e perfeição dos deuses, apesar
de saber que também estes estavam sujeitos ao Fado, como já foi referido anteriormente.

Tudo o que este heterónimo defende acaba por se traduzir num esforço lúcido e disciplinado para obter a
tranquilidade na vida que se sabe ter certamente um fim.
Resumo Global da Matéria de Português para o Exame Nacional (11º e 12º Ano- Obras Leccionadas)

Frei Luís de Sousa

1. Acção dramática
Frei Luís de Sousa contém o drama que se abate sobre a família de Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena. As
apreensões e pressentimentos de Madalena de que a paz e a felicidade familiar possam estar em perigo tornam-se gradualmente
numa realidade. O incêndio no final do Ato I permite uma mutação dos acontecimentos e precipita a tensão dramática. No
palácio que fora de D. João de Portugal, a ação atinge o seu clímax, quer pelas recordações de imagens e de vivências, quer pela
possibilidade que dá ao Romeiro de reconhecer a sua antiga casa e de se identificar a Frei Jorge.

O ato I inicia-se com Madalena a repetir os versos d'Os Lusíadas:


"Naquele engano d'alma ledo e cego,
que a fortuna não deixa durar muito…"

As reflexões que se seguem transmitem, de forma explícita um presságio da desgraça que irá acontecer. Obedecendo à lógica do
teatro clássico desenvolve a intriga de forma a que tudo culmine num desfecho dramático, cheio de intensidade: morte física de
Maria e a morte para o mundo de Manuel e Madalena.

2. Do drama clássico ao drama romântico

Se se pretender fazer uma aproximação entre esta obra e a tragédia clássica, poder-se-á dizer que é possível encontrar quase
todos os elementos da tragédia, embora nem sempre obedeça à sua estruturação objectiva.

A hybris é o desafio, o crime do excesso e do ultraje. D. Madalena não comete um crime propriamente na ação, mas sabemos
que ele existiu pela confissão a Frei Jorge de que ainda em vida de D. João de Portugal amou Manuel de Sousa, apesar de
guardar fidelidade ao marido. O crime estava no seu coração, na sua mente, embora não fosse explícito como entre os clássicos.

Manuel de Sousa Coutinho também comete a sua hybris ao incendiar o palácio para não receber os governadores. A hybris
manifesta-se em muitas outras atitudes das personagens.

O conflito que nasce da hybris, desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos que modifica a ação e
conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca a catástrofe. O desencadear da ação dá-nos conta
do sofrimento (páthos) que se intensifica (clímax) e conduz ao desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, através dos
sentimentos de terror e de piedade, para purificar as paixões (catarse). A reflexão catártica é também dada pelas palavras do
Prior, quando na última fala afirma: "Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa da glória não se dá senão
no céu".

Tal como na tragédia clássica, também o fatalismo é uma presença constante. O destino acompanha todos os momentos da vida
das personagens, apresentando-se como um força que as arrasta de forma cega para a desgraça. É ele que não deixa que a
felicidade daquela família possa durar muito.

Garrett, recorrendo a muitos elementos da tragédia clássica, constrói um drama romântico, definido pela valorização dos
sentimentos humanos das personagens; pela tentativa de racionalmente negar a crença no destino, mas psicologicamente deixar-
se afectar por pressentimentos e acreditar no sebastianismo; pelo uso da prosa em substituição do verso e pela utilização de uma
linguagem mais próxima da realidade vivida pelas personagens; sem preocupações excessivas com algumas regras, como a
presença do coro ou a obediência perfeita à lei das três unidades (ação, tempo e espaço).

3. Tempo
A ação dramática de Frei Luís de Sousa acontece em 1599, durante o domínio filipino, 21 anos após a batalha de Alcácer-
Quibir. Esta aconteceu a 4 de Agosto de 1578.

"A que se apega esta vossa credulidade de sete… e hoje mais catorze… vinte e un anos?" , pergunta D. Madalena a Telmo (Ato
I, cena II).

"Vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos "(Ato I,cena II).

"Faz hoje anos que… que casei a primeira vez, faz anos que se perdeu el-rei D. Sebastião, e faz anos também que… vi pela
primeira vez a Manuel de Sousa", afirma D. Madalena (Ato II, cena X).

"Morei lá vinte anos cumpridos" (…) "faz hoje um ano… quando me libertaram", diz o Romeiro (Ato II, cena XIV).

A ação reporta-se ao final do século XVI, embora a descrição do cenário do Ato I se refira à "elegância" portuguesa dos
princípios do século XVII. O texto é, porém, escrito no século XIX, acontecendo a primeira representação em 1843.

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4. Personagens
D. Madalena de Vilhena é a primeira personagem que aparece na obra, mas pode-se afirmar que toda a família tem um relevo
significativo. São as relações entre esposos, pais e filha, o escudeiro e os seus amos ou mesmo o apoio de Frei Jorge que estão em
causa. Um drama abate-se sobre esta família e enquanto Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena se refugiam na vida
religiosa, Maria morre como vítima inocente. D. Madalena tinha 17 anos quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de
Alcácer-Quibir. Durante 7 anos procurou-o. Há catorze anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho. Tem agora 38 anos (17
+ 21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia do seu amor.
Racionalmente, não acredita no mito sebastianista que lhe pode trazer D. João de Portugal, mas teme a possibilidade da sua
vinda. É com medo que a encontramos a reflectir sobre os versos de Camões e a sentir, como que em pesadelo, a ideia de que a
sobrevivência de D. João destrua a felicidade da sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se
pressentimento, dor e angústia. É neste terror que se vê na necessidade de voltar para a habitação onde com ele viveu.

Manuel de Sousa Coutinho (mais tarde Frei Luís de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo, que queima o seu próprio palácio,
para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os sentimentos, por vezes, estes sobrepõem-se quando se
preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido.

Maria de Noronha tem 13 anos, é uma menina bela, mas frágil, com tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião
regressará. Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente.
Será ela a vítima sacrificada no drama.

Telmo Pais, o velho escudeiro, confidente privilegiado, define-se pela lealdade e fidelidade. Não quer magoar nem pretende a
desgraça da família de D. Madalena e Manuel de Sousa. Mas, ao acreditar no mito sebastianista, acredita que D. João de
Portugal há-de regressar. No fim, acaba por trair um pouco a lealdade de escudeiro pelo amor que o une à filha daquele casal,
D. Maria de Noronha. Representa um pouco o papel de coro da tragédia grega, com os seus diálogos, os seus agoiros ou os seus
apartes.

O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-
no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo
contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como "Ninguém". O seu fantasma paira sobre a felicidade
daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.

Frei Jorge Coutinho, irmão de Manuel de Sousa, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão
angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que na sua presença indicará o quadro
de D. João de Portugal.

5. Cenário
O Ato I passa-se numa "câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância dos princípios do século XVII ", no
palácio de Manuel de Sousa Coutinho, em Almada. Neste espaço elegante parece brilhar uma felicidade, que será, apenas,
aparente.

O Ato II acontece "no palácio que fora de D João de Portugal, em Almada, salão antigo, de gosto melancólico e pesado, com
grandes retractos de família…". As evocações do passado e a melancolia prenunciam a desgraça fatal.

O Ato III passa-se na capela, que se situa na "parte baixa do palácio de D. João de Portugal". "É um casarão vasto sem ornato
algum". O espaço denuncia o fim das preocupações materiais. Os bens do mundo são abandonados.

6. A Atmosfera
Há ao longo da intriga dramática uma atmosfera psicológica do sebastianismo com a crença no regresso do monarca
desaparecido e a crença no regresso da liberdade. Telmo Pais é quem melhor alimenta estas crenças, mas Maria mostra-se a sua
melhor seguidora. Percebe-se também uma atmosfera de superstição, nomeadamente desenvolvida em redor de D Madalena.

7. Simbologia
Vários elementos estão carregados de simbologia, muitas vezes a pressagiar o desenrolar da ação e a desgraça das personagens.
Apenas como referência, podemos encontrar algumas situações e dados simbólicos:

- A leitura dos versos de Camões referem-se ao trágico fim dos amores de D. Inês de Castro que, como D. Madalena, também
vivia uma felicidade aparente quando a desgraça se abateu sobre ela.

- O tempo dos principais momentos da ação sugere o dia aziago: sexta-feira, fim da tarde e noite (Ato I), sexta-feira, tarde (Ato
II), sexta-feira, alta noite (Ato III); e à sexta-feira D. Madalena casou-se pela primeira vez; à sexta-feira viu Manuel pela
primeira vez; à sexta-feira dá-se o regresso de D. João de Portugal; à sexta-feira morreu D. Sebastião, vinte e um anos antes.

- A numerologia (1) parece ter sido escolhida intencionalmente. Madalena casou 7 anos depois de D. João haver desaparecido
na batalha de Alcácer-Quibir; há 14 anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho; a desgraça, com o aparecimento do

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Romeiro, sucede 21 anos depois da batalha (21=3x7). 0 número 7 é um número primo que se liga ao ciclo lunar (cada fase da
Lua dura cerca de sete dias) e ao ciclo vital (as células humanas renovam-se de sete em sete anos), representa o descanso no fim
da criação e pode-se encontrar em muitas representações da vida, do universo, do homem ou da religião; o número 7 indica o
fim de um ciclo periódico. O número 3 é o número da criação e representa o círculo perfeito. Exprime o percurso da vida:
nascimento, crescimento e morte. O número 21 corresponde a 3x7, ou seja, ao nascimento de uma nova realidade (7 anos foi o
ciclo da busca de notícias sobre D. João de Portugal e o descanso após tanta procura); 14 anos foi o tempo de vida com Manuel
de Sousa (2x7, o crescimento de uma dupla felicidade: como esposa de Manuel e como mãe de Maria; 14 é gerado por 1+4=5,
apresentando-se como símbolo da relação sexual, do ato de amor); 21 anos completa a tríade de 7 apresentando-se como a
morte, como o encerrar do círculo dos 3 ciclos periódicos. O número 7 aparece, por vezes, a significar destino, fatalidade
(imagem do completar obrigatório do ciclo da vida), enquanto o 3 indica perfeição; o 21 significa, então, a fatalidade perfeita.

- Maria vive apenas 13 anos. Na crença popular o 13 indica azar. Embora como número ímpar deva apresentar uma conotação
positiva, em numerologia é gerado pelo 1+3=4, um número par, de influências negativas, que representa limites naturais. Maria
vê limitados os seus momentos de vida.

Marcas da linguagem e estilo


- As frases inacabadas e reticentes, a traduzir o estado de perturbação das personagens;
- As frases exclamativas, a exprimir emoções, sentimentos e vivências;
- As frases interrogativas com o objetivo de obter respostas;
- A linguagem cuidada e rica, de acordo com o estatuto das personagens (nobreza); (…)

Romantismo

Origens do movimento romântico em Portugal


Em Portugal, o Romantismo está directamente ligado às lutas liberais, porque os escritores românticos mais
representativos deste movimento estético – Garrett e Herculano – foram combatentes liberais. Qualquer destes escritores foi
exilado político na altura das lutas liberais, tendo vivido em França e Inglaterra. Ao regressarem, trouxeram consigo os ideais
deste novo movimento estético-literário que introduziram em Portugal.
Assim, é o poema Camões de Garrett, publicado em Paris em 1825, que assinala o início do Romantismo em
Portugal. Porém, como esta obra não teve sequência imediata, será mais correto datá-lo a partir de 1836, data da publicação de
A Voz do Profeta de Alexandre Herculano.

Características do Romantismo
1. O individualismo – O “eu” é o valor máximo para os românticos. Por isso, o romântico afirma o culto da personalidade
(egocentrismo), da expressão espontânea de sentimentos, do confessionalismo e a subjectividade.
2. O idealismo – O romântico aspira ao infinito e a um ideal que nunca é atingido. Por isso, valoriza o devaneio e o sonho.
3. A inadaptação social – Por isso, mantém uma atitude de constante desprezo e rebeldia face à realidade e às normas estabelecidas,
considerando-se inadaptado e vítima do destino.
4. Privilegia a liberdade como um valor máximo – Contrariamente ao classicismo que cultiva a razão, o romântico cultiva o
sentimento e a liberdade, daí a expressão “Viva a liberdade!”.
5. A atracção pela melancolia, pela solidão e pela morte como solução para todos os males.
6. A sacralização do amor – O amor é um sentimento vivido de forma absoluta, exagerada e contraditória, precisamente por ser
um ideal inatingível. A mulher ou é um ser angelical bom (mulher-anjo, que leva à salvação), ou é um ser angelical mau (mulher-
demónio, que leva à perdição).
7. O “mal du siède” ou o “spleen” – É o pessimismo, o cansaço doentio e melancólico, a solidão, uma espécie de desespero de
viver, resultante da posição idealista que mantém perante a vida. Por isso, o romântico é sempre um ser incompreendido que
cultiva o sofrimento e a solidão.
8. O gosto pela natureza nocturna – Para os românticos, a natureza é a projecção do seu estado de alma, em geral tumultuoso e
depressivo. Assim, esta é representada de forma invernosa, sombria, agreste, solitária e melancólica (“locus horrendus”),
contrariamente ao “locus amoenus” dos clássicos, que é uma natureza luminosa, harmoniosa e primaveril. Esta natureza
nocturna traduz a atracção que o romântico tem pela própria morte.
9. O amor a tudo o que é popular e nacional – Para o romântico, é no povo que reside a alma nacional. Daí o gosto pela Idade
Média, pelas lendas, pelas tradições, pelo folclore, por tudo o que é nacional.
10. A linguagem é declamativa e teatral, porém o vocabulário é muitas vezes mais corrente e familiar.

3
Frei Luís de Sousa
Características do teatro clássico
As principais características da tragédia antiga são as seguintes:
1. Na tragédia antiga, o Homem é um mero joguete do Destino. Este é uma força superior que age de forma inexorável
sobre o protagonista, sem que ele tenha qualquer culpa.
2. Dividia-se em prólogo, três actos e epílogo.
3. Tem poucas personagens. Estas são nobres de sentimentos ou de condição social.
4. A ação dispõe-se sempre em gradação crescente, terminando num clímax.
5. Contém sempre vários elementos essenciais – o desafio, o sofrimento, o combate, o destino, a peripécia, o
reconhecimento, a catástrofe e a catarse.
6. Existia um coro que tinha como função comentar e anunciar o desenrolar dos acontecimentos.
7. A tragédia clássica obedece à lei das três unidades – unidade de espaço (não há em geral mudança de cenário e os
acontecimentos passam-se todos no mesmo lugar), unidade de tempo (todos os acontecimentos têm de se desenrolar
no espaço de 24 horas, mostrando que a ação do Destino é imperativa e fulminante) e unidade de ação (a tragédia
antiga exige que o espectador se centre apenas no problema central, sem desvio para ações secundárias).
8. A linguagem da tragédia é em verso.

Elementos essenciais da tragédia


Consiste num desafio que o protagonista realiza, após
Hybris um momento de crise. Tal desafio pode ser contra a lei
O desafio dos deuses, a lei da cidade, as leis e os direitos da
família, ou, finalmente, contra as leis da natureza.
A sua decisão, o seu desafio, a sua revolta, têm como
Pathos consequência o seu sofrimento, que ele aceita e que lhe é
O sofrimento imposto pelo Destino e executado pelas Parcas. Tal
sofrimento será progressivo.
É o combate ou a luta que nasce do desafio e se
desenrola na oposição de homens contra deuses, de
Agón
homens contra homens ou de homens contra ideias.
O combate
Pode ser físico, psicológico, individual ou colectivo. O
conflito é a alma da tragédia.
É o Destino, sombria potestade a que nem aos deuses é
A Anankê
permitido desobedecer. É, pois, cruel, implacável e
O Destino
inexorável.
É a súbita mutação dos sucessos, no contrário. A
peripécia é, pois, um acontecimento quase sempre
A Peripétia
imprevisto que altera completamente o rumo da ação,
A peripécia
invertendo a marcha dos acontecimentos e precipitando
o desenlace.
É o aparecimento de um lado novo, quase sempre a
A Anagnórisis identificação de uma personagem culta. Para Aristóteles,
O reconhecimento o reconhecimento devia dar-se juntamente com a
peripécia.
Desenlace fatal onde se consuma a destruição das
personagens. A catástrofe deve vir indiciada desde o
A Katastophé
início, dado que ela é a conclusão lógica da luta entre a
A catástrofe
Hybris e a Anankê, luta que é crescente (clímax) e atinge
o ponto culminante (acmê) na anagnórise.
É o efeito completo da representação trágica que visa
Katársis
purificar os espectadores de paixões semelhantes às dos
A catarse
protagonistas, pelo terror e pela piedade.

4
Características do drama romântico
1. Foi criado por Victor Hugo, o grande mestre do Romantismo francês.
2. O Romantismo valoriza a ação do Homem, por isso o herói já não é joguete do destino, mas das próprias paixões humanas.
3. O drama romântico pretende fazer uma maior aproximação da realidade. Assim Victor Hugo propõe uma aproximação entre o
sublime e o grotesco, conforme a vida real. Tem também preferência por temas nacionais.
4. A linguagem deverá corresponder à realidade e por isso é em prosa.
5. A personagem imaginária constituída pelo coro desaparece.

Génese de Frei Luís de Sousa


1. Manuel de Sousa Coutinho, nascido em 1556, era fidalgo de linhagem e levou uma vida acidentada por terras de África e de
Ásia. Consta que lançara fogo ao seu palácio de Almada, em 1599, por divergências políticas ou pessoais com os governadores
do Reino em nome dos Filipes. Casara com D. Madalena de Vilhena, anteriormente mulher de D. João de Portugal, que morreu
em Alcácer Quibir, em 4 de agosto de 1578. O seu biógrafo Frei António da Encarnação regista a tradição segundo a qual a
entrada de ambos os cônjuges na ordem dominicana, em 1612, se deveria ao regresso inesperado de D. João de Portugal.
2. Na Memória do Conservatório Real, Garrett afirma conhecer bem a tradição literária sobre Frei Luís de Sousa. Ora as
principais fontes que tinha lido eram a “Memória do Sr. Bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo”, e a “romanesca mas
sincera narrativa do padre Frei António da Encarnação”. Afirma Garrett na referida Memória que “discorrendo um verão pela
deliciosa beira-mar da província do Minho, fui dar com um teatro ambulante de atores castelhanos fazendo suas récitas numa
tenda de lona no areal da Póvoa do Varzim. (…) Fomos à noite ao teatro: davam a comédia famosa não sei de quem, mas o
assunto era este mesmo de Frei Luís de Sousa.” Esta representação teve lugar na Póvoa em 1818.
3. Garrett consultou ainda muitas coleções de “comédias famosas” mas não encontrou mais nada a respeito de Frei Luís de Sousa.
Ouviu na sala do Conservatório, a leitura do relatório sobre o drama O Cativo de Fez. Nessa altura, Garrett sentiu a diferença
entre a fábula engenhosa e complicada desse drama e a história tão simples de Frei Luís de Sousa. Tal facto inspirou-lhe a
vontade de fazer o seu drama.
4. Tem-se escrito que este drama é a projeção poética da sua própria vida. Não se devendo confundir a obra e autor, não deixa de
ser curioso mostrar as coincidências entre ambos.

Garrett Frei Luís de Sousa


Casamento com Luísa Cândida Midosi, sem
Casamento de Madalena com D. João de Portugal
descendência
Separado de Luísa Midosi, passa a viver com Adelaide Casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa
Pastor Deville – o seu grande amor Coutinho – o seu grande amor
Do casamento com Manuel de Sousa Coutinho, nasce a
Da sua ligação com Adelaide, nasce a única filha: Maria
única filha: Maria de Noronha (segundo a história,
Adelaide, por quem sente grande desvelo
chamava-se Ana de Noronha)
O problema da legitimidade de Maria Adelaide
D. Madalena vive atormentada pelo mesmo problema
atormenta Garrett
Adelaide Pastor morre tuberculosa Maria de Noronha é tuberculosa

Memória ao Conservatório Real


A representação da peça foi precedida da sua leitura feita pelo próprio autor em 6 de maio de 1843 no Conservatório
Real de Lisboa perante um auditório muito exigente.
A 1ª representação foi feita num teatro particular na Quinta do Pinheiro em 4 de julho de 1843, por oito atores. Por
impossibilidade de um ator, o próprio Garrett fez o papel de Telmo. A censura terá cortado certas partes, sendo o texto integral
representado apenas em 1850 no Teatro Nacional D. Maria II, num momento em que já não havia censura.
A memória ao Conservatório é um texto teorizador que acompanhará para sempre a própria peça, da qual é anúncio,
justificação e interpretação. Dado o seu grande valor, apresentamos aqui as grandes linhas do seu conteúdo.

1. A história de Frei Luís de Sousa, legada pela tradição, contém toda a simplicidade de uma fábula trágica antiga, com a vantagem
de ser perpassada pela delicada sensibilidade da esperança cristã. Ali não há desespero pagão.
“Casta e severa como as de Ésquilo, apaixonada como as de Eurípedes, enérgica e natural como as de Sófocles, tem, de mais do
que essas outras, aquela unção e delicada sensibilidade que o espírito do Cristianismo derrama por toda ela, molhando de
lágrimas contritas o que seriam desesperadas ânsias num pagão, acendendo, até nas últimas trevas da morte, a vela da esperança
que não se apaga com a vida.”
2. Paralelo entre as personagens de Frei Luís de Sousa e algumas personagens mitológicas: Prometeu, Édipo e Jocasta, para
evidenciar a superioridade daquelas.

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3. Frei Luís de Sousa é uma verdadeira tragédia:
“Não lhe dei todavia esse nome porque não quis romper de viseira com os estafermos respeitados dos séculos que, formados de
peças que nem ofendem nem defendem no atual guerrear, inanimados, ocos, e postos ao canto da sala para onde ninguém vai de
propósito – ainda têm contudo a nossa veneração, ainda nos inclinamos diante deles quando ali passamos por acaso.
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão
desabusado, contudo, que me atreva a dar uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à
mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.(…)
Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama: só peço que não a julguem pelas leis que regem, ou devem
reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há de ficar
pertencendo sempre ao antigo género trágico.”
4. A simplicidade e a não-violência, tentativas dum teatro novo, são capazes de provocar nas plateias, gastas pelos dramas
ultrarromânticos, a piedade e o terror.
5. “O drama é a expressão literária mais verdadeira do estado da sociedade”. Garrett afirma que as suas teorias de arte se reduzem a
“pintar do vivo, desenhar do nu, e a não buscar poesia nenhuma nem de invenção nem de estilo fora da verdade e do natural.”
6. Não segue a cronologia
“Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo
quanto a severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às
de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!»
7. A missão do escritor é “falar ao coração e ao ânimo do povo pelo romance e pelo drama”.
“Este é um século democrático; tudo o que se fizer há de ser pelo povo e com o povo... ou não se faz. (...)
Os sonetos e os madrigais eram para as assembleias perfumadas dessas damas que pagavam versos a sorrisos: – era talvez a
melhor e mais segura letra que se vencia na carteira do poeta. Os leitores e espectadores de hoje querem pasto mais forte, menos
condimentado e mais substancial: é povo, quer verdade. Dai-lhe a verdade do passado no romance e no drama histórico - no
drama e na novela de atualidade oferecei-lhe o espelho em que se mire a si e ao seu tempo, a sociedade que lhe está por cima,
abaixo, ao seu nível, – e o povo há de aplaudir porque entende: é preciso entender para apreciar e gostar.”

Estrutura externa e interna


Atos Estrutura externa
Cenas I-IV
Informações sobre o passado das
personagens
Ato I Cenas V-VIII
Decisão de incendiar o palácio
Ação: incêndio do palácio
Cenas IX-XII
Cenas I-III
Informações sobre o que se passou
depois do incêndio
Cenas IV-VIII
Ato II Preparação da ação: ida de Manuel
de Sousa Coutinho a Lisboa
Ação: chegada do romeiro
Cenas IX-XV
Cena I Informações sobre a solução
adotada
Ato III
Cenas II-IX Preparação do desenlace
Cenas X-XII Desenlace

Conclusão: Garrett construiu o seu drama, realizando o que tinha anunciado na Memória ao Conservatório Real. São notáveis a
simplicidade de construção e a harmonia dos três atos.

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Elementos essenciais da ação dramática
Ação
Toda a ação se passa nos finais do séc. XVI, após o desaparecimento de D. Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir.
Com ele parte D. João de Portugal, personagem vital que desaparece também desencadeando toda a ação dramática em Frei Luís
de Sousa. Todos estes acontecimentos decorrem sob domínio Filipino.
Após o desaparecimento de D. João de Portugal, D. Madalena manda-o procurar durante sete anos mas em vão. Casa
então com D. Manuel de Sousa, nobre cavaleiro, de quem tem uma filha de 14 anos. D. Madalena vive uma vida infeliz, cheia
de angústia e de intranquilidade, no receio de que o seu primeiro marido esteja vivo e acabe por voltar. Tal facto acarretaria para
Madalena uma situação de bigamia e a ilegitimidade de Maria, sua filha. Esta é tuberculosa e vive, em silêncio, o drama da sua
mãe que será o seu. Efectivamente D. João de Portugal acaba por regressar, acarretando o desenlace trágico de toda a ação.

A natureza trágica da ação


Elementos
Trágicos Hybris Agón Pathos Katastrophé
(o desafio) (o conflito) (o sofrimento) (a catástrofe)
Personagens
Sofrimento por
causa do adultério
Interior, de
Sofrimento pela
Contra as leis e os consciência
incerteza da sorte do
direitos da família: Contínuo
1º marido
-adultério no Crescente
Sofrimento violento Causada pelo regresso de D.
coração Gerador de
pela volta ao palácio João: morte psicológica
D. Madalena de -consumação pelo conflitos:
do 1º marido (separação do marido e
Vilhena casamento com D. -com D. Manuel
Sofrimento cruel profissão religiosa)
Manuel (I,7 e 8)
após conhecimento Salvação pela purificação
-profanação de um -com D. João (I,1,
da existência do 1º
sacramento 2, 3, 7 e 8)
marido:
-bigamia -com Maria (I,3)
-pela perda do
-com Telmo (I,2)
marido
-pela perda de Maria
Revolta contra as
autoridades de Não tem conflito de
Lisboa (I,8,11 e 12; consciência
Sofre a angústia pela Morte psicológica:
II,1) Não entra em
situação da sua -separação da esposa
Desafia o destino ao conflito com as
mulher (III,8) -separação do mundo
Manuel de Sousa incendiar o palácio outras personagens
Sofre a angústia pela -profissão religiosa
Coutinho (I,11 e 12) A sua hybris
situação presente e Glória futura de escritor:
Recusa o perdão desencadeia e
futura da filha -Frei Luís de Sousa: glória de
(II,1) agudiza os conflitos
(III,1) santo
Inconscientemente das outras
participante da personagens
hybris de sua esposa
Sofre com o
Abandona a família esquecimento a que
Não tem conflito
Não pode dar foi votado
Alimenta os Morte psicológica:
notícias da sua Sofre pelo
conflitos dos outros -separação da mulher
D. João de Portugal existência casamento da sua
Agudiza todos os -a situação irremediável do
Aparece quando mulher
conflitos com o seu anonimato
todos o julgavam Sofre por não poder
regresso
morto travar a marcha do
Destino (III,2)
Revoltada contra a Não tem conflito Sofre fisicamente
D. Maria de Morre fisicamente
profissão religiosa Entra em conflito: (tuberculose)
Noronha Vai para o céu
dos pais -com sua mãe (I, 3 e Sofre

7
Revoltada contra D. 4) psicologicamente
João de Portugal -com seu pai (I, 3 e (não obtém resposta
Revoltada contra 5) a muitos agoiros e
Deus -com Telmo (II,1) tem vergonha da
Convida os pais a -com D. João de ilegitimidade)
mentir Portugal (I,4; II, 1 e
2; III, 11 e 12)
Conflito de Sofre pela dúvida
consciência (III,4) constante que o
Conflito com outras assalta acerca da
personagens: morte de D. João de
Afeiçoa-se a Maria
-com D. Madalena Portugal
Deseja que D. João Não poderá resistir a tantos
Telmo Pais (I,2) Sofre hesitando
de Portugal tivesse desgostos
-com D. Manuel (I, entre a fidelidade a
morrido (II, 4 e 5)
2) D. João e a D.
-com Maria (I,2) Manuel
-com D. João de Sofre a situação de
Portugal (III, 4 e 5) Maria

Personagens
D. Madalena de Vilhena
- Nobre: família e sangue dos Vilhenas (I,8)
- Sentimental: deixa-se arrastar pelos sentimentos muito mais do que pela razão
- Pecadora
- Torturada pelo remorso do passado: não chega a viver o presente por impossibilidade de abandonar o passado
- Redimida pela purificação no convento: saída romântica para solução de conflitos
- Modelo da mulher romântica: para os românticos, a mulher ou é anjo ou é diabo
- Personagem modelada: profundidade psicológica evidente; capacidade de gerir conflitos (I,7)
- Marcada pelo destino: amor fatal
- Apesar de ser uma heroína romântica, D. Madalena não luta por nenhuma ordem de valores superiores, nem por nenhum
idealismo generoso, pois nela não se evidencia de forma particular a luta por qualquer ideal
- O que nela transparece acima de tudo é a sua natureza feminina, o seu amor de mulher a que prioritariamente se entrega, pois
há nela um conceito ou um desejo de felicidade que assenta numa vida objetiva, concreta à dimensão humana
- De qualquer modo, D. Madalena é uma personagem que se impõe à compreensão, à estima e à simpatia do leitor, talvez pela
espontaneidade com que vive a sua vida sentimental e moral. Embora procure no segundo casamento uma proteção para a sua
instabilidade, mantém sempre uma integridade moral em relação à sua própria condição e até uma dignidade de classe que
naturalmente a impõe
- Marcas psicológicas: angústia, remorso, inquietação, insegurança, amor, medo e horror à solidão e é uma personagem
tendencialmente modelada porque apresenta bastante densidade psicológica.

Manuel de Sousa Coutinho


- Nobre: cavaleiro de Malta (só os nobres é que ingressavam nessa ordem religiosa) (I,2 e 4)
- Racional: deixa-se conduzir pela razão no que contrasta com a sua mulher
- Bom marido e pai terno (I,4; II,7)
- Corajoso, audaz e decidido (I,7, 8, 9, 10, 11, 12; III, 8)
- Marcado pelo destino (I, 11; II, 3 e 8)
- Encarna o mito romântico do escritor: refúgio no convento, que lhe proporciona o isolamento necessário à escrita
- Até à vinda do romeiro, representa o herói clássico racional, equilibrado e sereno. A razão domina os sentimentos pela ação
da vontade
-Tem como ideal de vida o culto pela honra, pelo dever, pela nobreza de ações (daí o seu nacionalismo e o incêndio do palácio)
- Porém, no início do ato III, após o aparecimento do romeiro, Manuel de Sousa perde a serenidade e o equilíbrio clássico que
sempre teve e adquire características românticas. A razão deixa de lhe disciplinar os seus sentimentos, e estes manifestam-se com
descontrolada violência. Exemplos:
- Revela sentimentos contraditórios (deseja simultaneamente a morte e a vida da filha)
- Utiliza um vocabulário trágico e repetitivo, próprio do código romântico (“desgraça”, “vergonha”, “escárnio”, “desonra”,
“sepultura”, “infâmia”, etc.)

8
- Opta por atitudes extremas (a ida para o convento) como solução para uma situação socialmente condenável
- Ao optar por esta atitude, encarna o mito do escritor romântico, como um ser de exceção, que se refugia na solidão para se
dedicar à escrita
- Embora esteja ausente, de uma forma expressa, de todo o mito sebastianista que atravessa o drama, Manuel de Sousa insere-se
nele pela defesa dos valores nacionalistas

D. João de Portugal:
- Nobre: família dos Vimiosos (I,2)
- Cavaleiro: combate com o seu rei em Alcácer Quibir (II,2)
- Ama a pátria e o seu Rei
- Representante da época de oiro portuguesa
- Imagem da Pátria cativa
- Ligado à lenda de D. Sebastião (I,2)
- D. João é uma personagem dupla. Por um lado, é uma personagem abstrata porque só por si não participa no conflito. Por
outro, é uma personagem concreta, porque mesmo ausente ele é a força desencadeadora de toda a energia dramática da peça,
permanecendo permanentemente em cena através das outras personagens (através das evocações de Madalena, das convicções de
Telmo, do Sebastianismo de Maria, das crenças, dos agouros e dos sinais)
- Porém, uma vez que a sua figura se concretiza em cena (a partir do fim do II ato, é como se toda a sua força simbólica se
esgotasse pois que a personagem carece de força e de convicção para poder existir. De tal modo é assim que no final da peça
ninguém se compadece dele como marido ultrajado, mas das outras personagens trágicas.
- D. João é assim uma personagem simbólica que movimenta todas as outras personagens. Simboliza a fatalidade, a força do
Destino que atua inexoravelmente sobre as outras personagens, levando a ação a um desfecho trágico.

D. Maria de Noronha
- Nobre: sangue dos Vilhenas e dos Sousas (I,2)
- Precocemente desenvolvida, física e psicologicamente (I,2, 3 e 6)
- Doente: tuberculose, a doença dos românticos
- Culto de Camões: evoca constantemente o passado (II,1)
- Culto de D. Sebastião: martiriza a mãe involuntariamente (II,1)
- Poderosa intuição e dotada do dom da profecia (I,4; II,3; III,12)
- Marcada pelo Destino: a fatalidade atinge-a e destrói-a (III,12)
- Modelo da mulher romântica: a mulher-anjo bom
- A ameaça que percorre o texto é-lhe essencialmente dirigida, razão pela qual se torna vítima inocente e consequentemente
heroína. Quer atuando, quer através das falas das outras personagens, Maria está sempre em cena, tornando-se assim o núcleo de
construção de toda a peça.
- Maria não nos aparece nunca como uma personagem real pois a sua figura é altamente idealizada. Como consequência dessa
idealização, Maria não tem uma dimensão psicológica real, porque é simultaneamente criança e adulto, não se impondo com
nenhum destes estatutos.
- Maria apresenta algumas marcas de personalidade romântica:
- É intuitiva e sentimental
- É idealista e fantasiosa, acreditando em crenças, sonhos, profecias, agoiros, etc.
- Tem capacidade de desafiar as convenções pois ama a aventura e a glória
- Tem o culto do nacionalismo, do patriotismo e do Sebastianismo
- Apresenta uma fragilidade física em contraste com uma intensa força interior (é destemida)
- Morre como vítima inocente

Telmo Pais
- Não nobre: escudeiro
- Ligado sempre à nobreza
- Confidente de D. Madalena
- Elo de ligação das famílias
- Chama viva do passado: alimenta os terrores de D. Madalena
- Desempenha três funções do coro das tragédias clássicas: diálogo, comentário e profecia
- Ligado à lenda romântica sobre Camões
- Telmo tem como que uma dupla personalidade (uma personalidade convencional e outra autêntica). A personalidade
convencional é a imagem com que Telmo se construiu para os outros, através dos tempos (a do escudeiro fiel). A personalidade

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autêntica é a sua parte secreta, aquela que ele próprio não conhecia, e que veio à superfície num momento trágico da revelação
em que Telmo teve que decidir entre a fidelidade a D. João de Portugal ou a fidelidade a Maria.
- Telmo vive assim um drama inconciliável entre o passado a que quer ser fiel e o presente marcado pelo seu amor a Maria. É
este drama da unidade/fragmentação do “eu”, ou seja, este espetáculo da própria mudança feito em cena que é uma novidade e
uma nota de modernidade no teatro de Garrett.
- Claro que esta autorrevelação é provocada por uma acontecimento externo que é o Destino, sem a atuação do qual esta
revelação não se teria dado.

Frei Jorge
- É confidente e conselheiro e à semelhança do coro clássico, faz comentários aos factos
- Pressente o desenlace trágico, contribuindo assim para que os acontecimentos sejam suavizados por uma perspetiva cristã

Espaço

Palácio de Manuel de Sousa Coutinho: moderno, luxuoso, aberto


para o exterior: Lisboa

Palácio de D. João de Portugal: salão antigo,


melancólico

Sala dos retratos

Parte baixa do palácio de D.


João de Portugal

Tempo

Capela

Tempo
Tempo da ação Tempo simbólico
Ato I  Visão de Manuel de Sousa Coutinho pela
28/07/1599 primeira vez, à sexta-feira
Sexta-feira  Alcácer-Quibir
Fim da tarde 04/08/1578
Noite Sexta-feira
Ato II  Casamento com Manuel de Sousa Coutinho: 7
04/08/1599 anos depois da batalha
Sexta-feira

10
Tarde Sexta-feira
Ato III  Regresso de D. João de Portugal no 21º
04/08/1599 aniversário da batalha
Sexta-feira 04/08/1599
Alta noite Sexta-feira

Integração da obra na lei das três unidades


Ação  Os acontecimentos encadeiam-se extrínseca e intrinsecamente
 Nada está deslocado nem pode ser suprimido
 O conflito aumenta progressivamente provocando um sofrimento cada vez mais atroz
 A catástrofe é o desenlace esperado
 A verosimilhança é perfeita
 A unidade da ação é superiormente conseguida
Tempo 1599 Julho Agosto
Sábado, Domingo, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª,
29 30 31 1 2 3 4

6ª feira, 28
Ato II
Ato I
Tarde
Fim da tarde
Ato
Noite
III

Alta
noite
Uma semana

 Não respeita a duração de 24 horas


 A condensação do tempo é evidente e torna-se um facto trágico
 O afunilamento do tempo é evidente: 21 anos, 14 anos, 7 anos, tarde noite, amanhecer
 Uma semana justifica-se pela necessidade de distanciamento do acontecimento do ato I e da
passagem a primeiro plano dos referentes ao regresso de D. João de Portugal
 O simbolismo do tempo: a sexta-feira fatal: II,10 – o regresso de D. João de Portugal faz-se
no 21º aniversário da batalha de Alcácer-Quibir (sexta-feira); morte de D. Sebastião (sexta-
feira); visão de D. Manuel pela 1ª vez (sexta-feira)

Espaço Espaço físico: Almada

Ato I: Palácio de Manuel de Sousa Coutinho: luxo, grandes janelas sobre o Tejo – felicidade aparente
Ato II: Palácio de D. João de Portugal: melancólico, pesado, escuro – peso da fatalidade, a desgraça
Ato III: Parte baixa do palácio de D. João: casarão sem ornato algum – abandono dos bens deste mundo.
A cruz: elemento conotador de morte e de esperança.

Marcas clássicas na obra


- A nível formal divide-se em três atos conforme a tragédia clássica
- Apresenta um reduzido número de personagens e estas são nobres de condição social e de sentimentos
- A ação desenvolve-se de forma trágica, apresentando todos os passos da tragédia antiga (o desafio, o sofrimento, o combate, o
conflito, o destino, a peripécia, o reconhecimento, o clímax e a catástrofe)
- O coro da tragédia clássica não existe mas está representado, de forma esporádica, nas personagens Telmo e Frei Jorge

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Marcas românticas na obra
- A crença no Sebastianismo
- O patriotismo e o nacionalismo – tais sentimentos estão bem patentes no comportamento de Manuel de Sousa Coutinho e no
idealismo de Maria
- As crenças – Agoiros, superstições, as visões e os sonhos, bem evidentes em Madalena, Telmo e Maria
- A religiosidade – A permanente referência ao cristianismo e ao culto
- O individualismo
- O tema da morte
Carácter inovador de Frei Luís de Sousa
1. A reestruturação e modernização do teatro nacional a nível do conteúdo e da forma. A peça é atual mas é enraizada
nos valores nacionais.
2. A linguagem é simples, coloquial, emotiva, adaptada a todas as circunstâncias.
3. O gosto pela realidade quotidiana:
a. Descrição de espaços concretos (casa, ambientes, decorações)
b. Descrição de relações familiares (marido-mulher, pai-filha, tio-sobrinha, etc.)
c. Descrição de ações do quotidiano (ler, escrever, passear, dormir, etc.)
d. Preocupações que revelam a vida privada das personagens (doença, visitas, etc.)

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Sermão de Santo António aos Peixes

Constituído o sermão por seis capítulos, muitos estudiosos tendem a estabelecer uma correspondência linear entre estes e as
quatro partes da retórica clássica: exórdio (Cap. I), exposição (Cap. II e III), confirmação (Cap. IV e V) e peroração (Cap.
VI).

Porém, atendendo a que o Padre António Vieira teve o cuidado de declarar que dividia o sermão em duas partes (início do
Cap. II), o que se verifica é a existência de dois diferentes momentos de exposição e dois diferentes momentos de confirmação.

Assim, temos o primeiro momento de exposição no Cap. II, momento em que fala dos louvores dos peixes em geral, seguindo-
se a respectiva confirmação, no Cap. III, com os louvores em particular (peixe de Tobias, rémora, torpedo e quatro-olhos). O
segundo momento de exposição surge no Cap. IV, ao falar da repreensão dos vícios em geral, seguindo-se a respectiva
confirmação, no Cap. V, com as repreensões em particular (roncadores, pegadores, voadores e polvo).

Estrutura do Sermão

1. INTRODUÇÃO (Exórdio) - cap.I

A partir do conceito predicável "vós sois o sal da terra": "Santo António foi sal da terra e foi sal do mar."

2. DESENVOLVIMENTO (Exposição e Confirmação) - cap. II a V

"(...) para que procedamos com alguma clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as
vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios."

2.1. LOUVOR DAS VIRTUDES

"Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, ..."

2.1.1. LOUVORES EM GERAL - cap. II

a) "ouvem e não falam"


b) "vós fostes os primeiros que Deus criou"
c) "e nas provisões (...) os primeiros nomeados foram os peixes"
d) "entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os maiores"
e) "aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor"
f) "aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca do seu servo António. (...) Os homens
perseguindo a António (...) e no mesmo tempo os peixes (...) acudindo a sua voz, atentos e suspensos às suas palavras,
escutando com silêncio (...) o que não entendiam."
g) "só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam"

2.1.2. LOUVORES EM PARTICULAR - cap. III

2.1.2.1. SANTO PEIXE DE TOBIAS

"o fel era bom para curar da cegueira"; "o coração para lançar fora os demónios"

2.1.2.2. RÉMORA

"(...) se se pega ao leme de uma nau da índia (...) a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir
por diante."

2.1.2.3. TORPEDO

"Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo, começa a lhe
tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito?"

2.1.2.4. QUATRO-OLHOS

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"e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que direitamente
olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos
peixes."

2.2. REPREENSÃO DOS VÍCIOS

"Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões."

2.2.1. REPREENSÕES EM GERAL - cap. IV

a) "(...) é que vos comedes uns aos outros."


b) "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos."
c) "Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos,
não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."

2.2.2. REPREENSÕES EM PARTICULAR - cap. V

2.2.2.1. RONCADORES

"É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?"

2.2.2.2. PEGADORES

"Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros
maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram."

2.2.2.3. VOADORES

"Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? (...) Contentai-vos com o mar e com
nadar, e não queirais voar, pois sois peixes."

2.2.2.4. POLVO

"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar."

3. CONCLUSÃO (Peroração) - cap. VI

"Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que
não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em
que se publicou o Levítico.”

Virtudes dos Peixes

PEIXE DE TOBIAS
- o fel sara a cegueira;
- o coração lança fora os demónios;
RÉMORA
- tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder;
TORPEDO
- descarga eléctrica que faz tremer o braço do pescador;
QUATRO-OLHOS
- dois olhos voltados para cima para se vigiarem das aves;
- dois olhos voltados para baixo para se vigiarem dos peixes.

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Defeitos dos Peixes

RONCADORES
- embora tão pequenos roncam muito (simbolizam a arrogância e a soberba);
PEGADORES
- sendo pequenos, pregam-se nos maiores, não os largando mais (simbolizam o parasitismo);
VOADORES
- sendo peixes, também se metem a ser aves (simbolizam a presunção (vaidade) e a ambição);
POLVO
- com aparência de santo, é o maior traidor do mar (simboliza a traição).

Cultismo
O CULTISMO, caracterizado por uma linguagem rebuscada, culta, extravagante, descritiva, serve-se sobretudo de três
artifícios (jogo de palavras (ludismo verbal), jogo de imagens e jogo de construções) para esconder, sob um burilado excessivo
da forma, uma temática estéril e banal. Trocadilhos, aliterações, homonímia, sinonímia, perífrases e extravagância de vocábulos
são alguns dos artifícios de que se serve. É também designado por gongorismo devido ao escritor espanhol Luís de Gôngora,
que serviu de modelo aos nossos poetas.

Concetismo
O CONCETISMO é, pois, caracterizado por um jogo de ideias ou conceitos, seguindo um raciocínio lógico, racionalista, que
utiliza uma retórica aprimorada. Para tal, recorre a um conjunto de artifícios estilísticos como comparações, metáforas e
imagens de enorme ousadia, ou ainda sinédoques e hipérboles, entre outros, que conduzem a uma tal densidade concetual que
obscurece o seu conteúdo. Um dos principais cultores do concetismo foi o espanhol Quevedo.

Conceitos Predicáveis

Os conceitos predicáveis consistem em «figuras» ou alegorias pelas quais se pode realizar uma pretensa demonstração de fé, ou
verdades morais, ou até juízos proféticos. O processo, como notou António Sérgio, deriva da interpretação do Velho
Testamento como conjunto de «prefigurações» do que narra o Novo Testamento. Depois, os passos bíblicos tornaram-se
pretexto para construções mentais arbitrárias, em que brilha o virtuosismo do orador. (Coelho, Jacinto do Prado,
DICIONÁRIO DA LITERATURA)

Alguns Recursos Estilísticos do Padre António Vieira


O SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES, do Padre António Vieira, é um discurso longo, tendo sido criado
com a finalidade de ser pregado. Não sendo fácil manter um auditório atento durante muito tempo, compreende-se a
necessidade do autor recorrer a um conjunto de artifícios que, valendo-se do uso de variações de intensidade e inflexão da voz,
asseguram, na perfeição, a verificação permanente de que a assistência está em condições de continuar a ouvir atentamente o
sermão. Vejamos, pois, alguns dos recursos estilísticos de que se serviu o Padre António Vieira.
Apóstrofes:
Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes..."
"Ah moradores do Maranhão..."
"Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador (...)"
"Peixes, contente-se cada um com o seu elemento."
"Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo (...)"
"Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade (...)"

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Antíteses:
Tanto pescar e tão pouco tremer!"
"No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (...)"
"(...) deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima (...) e outros dois que direitamente olhassem para baixo (...)"
"A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar (...)"
"(...) traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras."
"(...) António (...) o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou
engano."
"Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar!"

Comparações:
Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo António."
"O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens."
"(...) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (...)"
"As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia (...)"
"(...) e o salteador, que está de emboscada (...) lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas?"
"Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor

Paralelismos e Anáforas:
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores...;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes...
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores...;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes...
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores...;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes..."
"Deixa as praças, vai-se às praias;
deixa a terra, vai-se ao mar..."
"Quantos, correndo fortuna na Nau Soberba (...), se a língua de António, como rémora (...)
Quantos, embarcados na Nau Vingança (...), se a rémora da língua de António (...)
Quantos, navegando na Nau Cobiça (...), se a língua de António (...)
Quantos, na Nau Sensualidade (...), se a rémora da língua de António (...)"
"(...) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (...)"
"Se está nos limos, faz-se verde;
se está na areia, faz-se branco;
se está no lodo, faz-se pardo (...)"

Enumeração:
No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os
bastões e até os ceptros pescam (...)"
"(...) que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições."
"Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com palavras; eu lembro-me, mas não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro,
mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade."

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Metáforas
"Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está
muda (...) se vêem e choram na terra tantos naufrágios."
"(...) pois às águias, que são os linces do ar (...) e aos linces que são as águias da terra (...)"
"(...) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!"
" (...) vestir ou pintar as mesmas cores (...)"
"(...) e o polvo dos próprios braços faz as cordas

Paradoxos:
a terra e o mar tudo era mar."
"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar."
"hipocrisia tão santa"

Trocadilhos
Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra."
"E porque nem aqui o deixavam os que o tinham deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal."
"(...) o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar."

Interrogações retóricas
qual será, ou qual pode ser, a causa desta corrupção?"
"Não é tudo isto verdade?"
"(...) que se há-de fazer a este sal, e que se há-de fazer a esta terra?"
"Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? (...) Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia?
Daria tempo ao tempo?"
"(...) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!"

Ironia
Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes."
"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar."

17
Capítulo I

Exórdio ou Introdução: exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender (ll.1-59).

Conceito Predicável: texto bíblico que serve de tema e que irá ser desenvolvido de acordo com a intenção e o objectivo do autor
"Vos estis sal terrae".

Invocação: pedido de auxílio divino (ll.60-61).

As simetrias evidenciam e são um exemplo da estruturação do sermão um exercício mental da grande lógica, que permitem aos
ouvintes atingirem mais facilmente o objectivo da mensagem nas respostas à justificação do facto de a terra estar corrompida e
na resposta ao que se há-de fazer ao sal que não salga e à terra que se não deixa salgar.

Para atingir a inteligência dos ouvintes, o orador usa argumentos lógicos, sucessivas interrogações retóricas e a autoridade dos
exemplos de Cristo, Santo António e da Bíblia. Para atingir o coração dos ouvintes, usa interjeições e exclamações.

Ao relatar o que fez Santo António quando foi perseguido em Arimino usa frases curtas (Deixa as praças, vai-se às praias…),
ritmo binário, anáforas, enumeração.

É evidente que os tipos de frase têm relação directa com a entoação. A frase interrogativa termina num tom mais alto, a
declarativa num tom mais baixo, etc.

O titulo do Sermão foi retirado do milagre ou lenda que se conta a respeito de Santo António. Este terá sido mal recebido
numa pregação em Arimino, mesmo perseguido, e ter-se-á dirigido à praia e pregado o sermão aos peixes que o terão escutado
atentamente, contrastando com os homens.

O pregador invocou Nossa Senhora porque era habitual fazê-lo e ainda porque o nome Maria quer dizer Senhora do mar; os
ouvintes do sermão eram pescadores que A invocavam na faina da pesca.

Capítulo II

O sermão é uma alegoria porque os peixes são metáfora dos homens, as suas virtudes são por contraste metáfora dos defeitos
dos homens e os seus vícios são directamente metáfora dos vícios dos homens. 0 pregador fala aos peixes, mas quem escuta são
os homens.

Os peixes ouvem e não falam. Os homens falam muito e ouvem pouco.

O pregador argumenta de forma muito lógica. Partindo de duas propriedades do sal, divide o sermão em duas partes: o sal
conserva o são, o pregador louva as virtudes dos peixes; o sal preserva da corrupção, o pregador repreende os vícios dos peixes.
Para que fique claro que todo o sermão é uma alegoria, o pregador refere frequentemente os homens. Utiliza articuladores do
discurso (assim, pois…), interrogações retóricas, anáforas, gradações crescentes, antíteses, etc. Demonstra as afirmações que faz
tirando partido do contraste entre o bem e o mal, referindo palavras de S. Basílio, de Cristo, de Moisés, de Aristóteles e de St.
Ambrósio, todas referidas aos louvores dos peixes. Confirma-as com vários exemplos: o dilúvio, o de Santo António, o de Jonas
e o dos animais que se domesticam.

Virtudes que dependem sobretudo de Deus Virtudes naturais dos peixes


• foram as primeiras criaturas criadas por Deus
• não se domam
• foram as primeiras criaturas nomeadas pelo homem
• não se domesticam
• são os mais numerosos e os maiores
• escaparam todos do dilúvio porque não tinham pecado
• obediência, quietação, atenção, respeito e devoção com que
ouviram a pregação de Santo António

Os peixes não foram castigados por Deus no dilúvio, sendo, por isso, exemplo para os homens que pouco ouvem e falam muito,
pouco respeito têm pela palavra de Deus.

Evidencia-se que os animais que convivem com os homens foram castigados, estão domados e domesticados, sem liberdade.

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Animais que se domesticam Animais que vivem presos
cavalo, boi, bugio, leões, tigres, aves que se criam e vivem com
rouxinol, papagaio, açor, bugio, cão, boi, cavalo, tigres e leões
os homens, papagaio, rouxinol, açor, aves de rapina

O discurso é pregado; por isso, envolve toda a pessoa do orador. Os gestos, a mímica, a posição do corpo - a linguagem não
verbal - têm um lugar importante porque completam a mensagem transmitida.

Alguns Recursos de Estilo

 A antítese Céu/lnferno, que repete semanticamente a antítese bem/mal, está ligada quer à divisão do Sermão em duas
partes, quer às duas finalidades globais do mesmo.
 A apóstrofe refere directamente o destinatário da mensagem e do pregador, aproximando os dois pólos da
comunicação: emissor e receptor.
 A interrogação retórica como meio de convencer os ouvintes.
 A personificação dos peixes associada à apóstrofe e às atitudes dos mesmos.
 A gradação crescente na enumeração dos animais que vivem próximos dos homens mas presos.
 A comparação, "como peixes na água", tem o carácter de um provérbio que significa viver livremente.

Santo António foi muito humilde, aceitando sem revolta o abandono a que foi votado por todos, ele que conhecia a sua
sabedoria. O pregador pretende condenar os homens que possuem vícios opostos às virtudes dos peixes.

Capítulo III

O peixe de Tobias A Rémora O Torpedo O Quatro-Olhos


Efeitos
• sarou a cegueira do pai de • faz tremer o braço do
• pega-se ao leme de uma nau • defende-se dos peixes
Tobias pescador
• prende a nau e amarra-a • defende-se das aves
• lançou fora os demónios • não permite pescar
Comparação
peixe de Tobias
Rémora
Torpedo Quatro-Olhos
Santo António
Santo António
Santo António o pregador
• alumiava e curava as cegueiras
• a língua de S. António
dos ouvintes • 22 pescadores tremeram • o peixe ensinou o pregador e
domou a fúria das paixões
ouvindo as palavras de S. olhar para o Céu (para cima) e
humanas: Soberba, Vingança,
• lançava os demónios fora de António e converteram-se para o Inferno (para baixo)
Cobiça, Sensualidade
casa

O pregador usa o imperativo verbal, a repetição anafórica, a exclamação, a apóstrofe, a leve ironia ( "Mas ah sim, que me não
lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes!").

A língua de Santo António teve a força de dominar as paixões humanas, guiando a razão pelos caminhos do bem; foi o freio do
cavalo porque impediu tantas pessoas de caírem nas mais variadas desgraças

Imagens
Nau Soberba Nau Vingança Nau Cobiça Nau Sensualidade
Elementos
Vocabulário essencial:
• substantivos • velas, vento • artilharia, bota-fogos • gáveas • cerração
• adjectivos • inchadas • abocada, acesos • sobrecarregada, aberta • enganados
• verbos • desfazer, rebentavam • corriam, queimariam • incapaz de fugir • perder
Efeitos do poder da a sua língua detém a a sua língua detêm a
mão no leme a sua língua contêm-nos
língua de S. António fúria cobiça
Finalidade das
Convencer os ouvintes
interrogações
Comentário sobre cada Usadas sempre com a finalidade de chamar a atenção dos ouvintes para as várias tentações que
imagem precisam ser evitadas.

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A língua de Santo António foi a rémora dos ouvintes enquanto estes ouviram; quando o não ouvem, são atingidos por muitos
naufrágios (desgraças morais).

Recursos estilísticos:

 Anáforas: Ah homens… Ah moradores… Quantos, correndo… Quantos, embarcados… Quantos, navegando… Quantos na
nau… A interjeição visa atingir o coração dos ouvintes; a repetição do pronome indefinido realiza uma enumeração.
 Gradações: Nau Soberba, Nau Vingança, Nau Cobiça, Nau Sensualidade; "passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do
anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador." O sentido é sempre uma intensificação para mais ou para menos.
 Antíteses: mar/terra, para cima/para baixo, Céu/Inferno. Palavras de sentido oposto indicam as duas direcções do sermão:
peixes - homens, bem - mal.
 Comparações: "… parecia um retrato maritimo de Santo António"; o peixe de Tobias, com um burel e uma corda, era uma
espécie de Santo António do mar: as suas virtudes eram como as de Santo António. "… unidos como os dois vidros de um
relógio de areia,": o peixe Quatro-Olhos possuía grande visão e precisão.
 Metáforas: "… águias, que são os linces do ar; os linces, que são as águias da terra": sentido de rapidez e de visão excepcional.

Conclusão: os homens pescam muito e tremem pouco; 2ª. conclusão: "Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo
António, eu os fizera tremer." (Deve salientar-se que o verbo pescar é também metáfora de guerra; crítica aos holandeses.); 3ª.
conclusão: "… se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo". Os peixes são o
sustento dos membros de várias ordens religiosas. Há peixes para os ricos e peixes para os pobres. Esta distinção tem por
finalidade criticar a exploração dos ricos sobre os pobres.

Capítulo IV

Para comprovar a tese de que os homens se comem uns aos outros, o orador usa uma lógica implacável, apelando para os
conhecimentos dos ouvintes e dando exemplos concretos. Os seus ouvintes sabiam a verdade do que ele afirmava, pois
conheciam que os peixes se comem uns aos outros, os maiores comem os mais pequenos. Além disso, cita frequentemente a
Sagrada Escritura, em que se apoia. Lendo hoje este capitulo, assim como todo o Sermão, não se pode ficar indiferente à lógica
da argumentação.

As conclusões são implacáveis, pois são fruto claríssimo dos argumentos usados.

O ritmo é variado: lento, rápido e muito rápido. Quando as frases são longas, o ritmo é repousado; quando as frases são curtas,
quando se usam sucessivas anáforas nessas frases, o ritmo torna-se vivo, como acontece no exemplo do defunto e do réu. O
discurso deste sermão, como doutros, é semelhante ao ondular das águas do mar: revoltas e vivas, espraiam-se depois pela areia
como que espreguiçando-se. Uma das características maravilhosas do discurso de Vieira é a mudança de ritmo, que prende
facilmente os ouvintes.

A repetição da forma verbal "vedes", que deverá ser acompanhada de um gesto expressivo, serve para criar na mente dos
ouvintes (e dos leitores) um forte visualismo do espectáculo descrito.

O uso dos deícticos demonstrativos tem por objectivo localizar os actos referidos, levando os ouvintes a revê-los nos espaços
onde acontecem. A substantivação do infinitivo verbal está também ao serviço do visualismo. O verbo deixa de indicar acção
limitada para se transformar numa situação alargada.

Há uma passagem semelhante no momento em que o orador refere a necessidade de o bem comum prevalecer sobre o apetite
particular: "Não vedes que contra vós se emalham…".

O orador expõe a repreensão e depois comprova-a como fez com a primeira repreensão: dá o exemplo dos peixes que caem tão
facilmente no engodo da isca, passa em seguida para o exemplo dos homens que enganam facilmente os indígenas e para a
facilidade com que estes se deixam enganar. A crítica à exploração dos negros é cerrada e implacável. Conclui, respondendo à
interrogação que fez, afirmando que os peixes são muito cegos e ignorantes e apresenta, em contraste, o exemplo de Santo
António, que nunca se deixou enganar pela vaidade do mundo, fazendo-se pobre e simples, e assim pescou muitos para salvação.

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Capítulo V

Peixes Defeitos Argumentos Exemplos de homens


pequenos mas muita língua;
Pedro
facilmente pescados
soberba Golias
os peixes grandes têm pouca
Os Roncadores
língua
orgulho Caifás
muita arrogância, pouca
Pilatos
firmeza
vivem na dependência dos
grandes, morrem com eles Toda a família da corte de
Herodes
Os Pegadores parasitismo
os grandes morrem porque
comeram, os pequenos morrem Adão e Eva
sem terem comido
foram criados peixes e não aves
presunção
são pescados como peixes e
Os Voadores Simão mago
caçados como aves
ambição
morrem queimados
ataca sempre de emboscada
O Polvo traição Judas
porque se disfarça

Comparação entre os peixes e Santo António

Peixes Santo António


tendo tanto saber e tanto poder, não se orgulhou disso, antes se
Os Roncadores: soberbos e orgulhosos, facilmente pescados
calou. Não foi abatido, mas a sua voz ficou para sempre
Os Pegadores: parasitas, aduladores, pescados com os grandes pegou-se com Cristo a Deus e tornou-se imortal
tnha duas asas: a sabedoria natural e a sabedoria sobrenatural.
Os Voadores: ambiciosos e presunçosos Não as usou por ambição; foi considerado leigo e sem ciência,
mas tornou-se sábio para sempre
Foi o maior exemplo da candura, da sinceridade e verdade,
O Polvo: traidor
onde nunca houve mentira

Episódio do Polvo

Divisão em partes:

 Introdução: a aparência do polvo "O polvo… mansidão" (ll.177-179).


 Desenvolvimento: a realidade "E debaixo… pedra" (ll.179-187).
 Conclusão: a consequência "E daqui… fá-lo prisioneiro" (ll.187-189).
 Comparação: "Fizera… traidor" (ll.190-196).

A expressão "aparência tão modesta" traduz a aparente simplicidade e inocência do polvo, que encobre uma terrível realidade.
O orador usa a ironia. A expressão "hipocrisia tão santa" contém em si um paradoxo: a hipocrisia nunca é santa; de novo, o
orador usa uma fina e penetrante ironia: o polvo apresenta um ar de santo, mas encobre uma cruel realidade. Tem a máscara
(que é o que quer dizer em grego hipócrita), o fingimento de inofensivo.

O mimetismo é o que o polvo usa para enganar: faz-se da cor do local ou dos objectos onde se instala.

No camaleão, o mimetismo é um artifício de defesa contra os agressores, no polvo é um artifício para atacar os peixes
desacautelados.

21
O orador refere a lenda de Proteu para contrapor o mito à realidade: Proteu metamorfoseava-se para se defender de quem o
perseguia; o polvo, ao contrário, usa essa qualidade para atacar.

Os deícticos demonstrativos implicam a linguagem gestual e têm por intenção criar o visualismo na mente dos ouvintes
(leitores). A anáfora, repetição da mesma palavra em início de frase, insiste no mesmo visualismo.

Os verbos que se referem ao polvo estão no presente do indicativo, traduzindo uma realidade permanente e imutável; a forma
"vai passando" gerúndio perifrástico, acentua a forma despreocupada dos outros peixes que lentamente passam pelo local onde
se encontra o traidor; os verbos que se referem a Judas estão no pretérito perfeito do indicativo porque referem acções do
passado. Há ainda o imperativo "Vê", que traduz uma interpelação directa ao polvo, tornando o discurso mais vivo.

O polvo nunca ataca frontalmente, mas sempre à traição: primeiro, cria um engano, que consiste em fazer-se das cores onde se
encontra; depois, ataca os inocentes.

O texto deste capítulo segue a variedade de ritmos dos outros capítulos e apresenta os mesmos recursos para conseguir tal
objectivo. Basta atentar no parágrafo que começa por "Rodeia a nau o tubarão… " e no texto referente ao polvo.

Elemento comum entre Judas e o polvo: a traição. Ambos foram vítimas deste defeito.

Elementos diferentes entre Judas e o polvo: Judas apenas abraçou Cristo, outros o prenderam; o polvo abraça e prende. Judas
atraiçoou Cristo à luz das lanternas; o polvo escurece-se, roubando a luz para que os outros peixes não vejam as suas cores. A
traição de Judas é de grau inferior à do polvo.

Capítulo VI

Peroração: conclusão com a utilização de um desfecho forte, capaz de impressionar o auditório e levá-lo a pôr em prática os
ensinamentos do pregador.

Animais/Peixes Peixes Homens


não foram escolhidos para os sacrifícios
foram escolhidos para os sacrifícios
só poderiam ir mortos. Deus não quer que
estes podiam ir vivos para os sacrifícios os homens também chegam mortos ao
Lhe ofereçam coisa morta
altar porque vão em pecado mortal.
ofereçam a Deus o ser sacrificado Assim, Deus não os quer.
ofereçam a Deus não ser sacrificados
ofereçam a Deus o sangue e a vida
ofereçam a Deus o respeito e a obediência

O orador quer que os homens imitem os peixes, isto é, guardem respeito e obediência a Deus. Numa palavra, pretende que os
homens se convertam (metanóia).

Orador Peixes
tem inveja dos peixes
• têm mais vantagens do que o pregador
ofende a Deus com palavras
• a sua bruteza é melhor do que a razão do orador
tem memória
• não ofendem a Deus com a memória
ofende a Deus com o pensamento
• o seu instinto é melhor que o livre arbítrio do orador; não
falam; não ofendem a Deus com o pensamento; não ofendem a
ofende a Deus com a vontade
Deus com a vontade; atingem sempre o fim para que Deus os
criou
não atinge o fim para que Deus o criou
• não ofendem a Deus
ofende a Deus

As interrogações têm por objectivo atingirem preferencialmente a inteligência, enquanto as exclamações visam mais o
sentimento dos ouvintes. As repetições põem em realce o paralelismo entre o orador e os peixes; as gradações intensificam um
sentido.

22
A repetição do som /ai/ (11 vezes) cria uma atmosfera sonora cada vez mais intensa e optimista; a repetição das palavras
"Louvai" e "Deus" apontam para a finalidade global do sermão: o louvor de Deus, que todos devem prestar. O verbo no
imperativo realiza a função apelativa da linguagem: depois de ter inventariado os louvores e os defeitos dos peixes/homens, não
poderia deixar de apelar aos ouvintes para que louvem a Deus. A escolha do hino Benedicite cumpre fielmente esse objectivo,
encerrando o Sermão com um tom festivo, adequado à comemoração de Santo António, cuja festa se celebrava. A palavra Ámen
significa "Assim seja", "que todos louvem a Deus". O quiasmo realizado na colocação em ordem inversa das palavras glória e
graça sugere a transposição dos peixes para os homens: já que os peixes não são capazes de nenhuma dessas virtudes, sejam-no
os homens. Sugere também uma mudança: a conversão (metanóia), porque só em graça os homens podem dar glória a Deus.

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Fernando Pessoa- Ortónimo

A arte poética pessoana

Teoria do fingimento – processo de criação poética


Dicotomias:
Sinceridade/fingimento; consciência/inconsciência; sentir/pensar;

A poesia do ortónimo (diferente de pseudónimo) é uma tentativa de resposta a várias inquietações que perturbam o
poeta. A realidade por si percecionada causa-lhe uma atitude de estranheza e, consequentemente, condu-lo a uma situação de
negação face ao que as suas perceções lhe transmitem. Assim, Fernando Pessoa recusa o mundo sensível, privilegiando o mundo
inteligível (platónico), aquele a que ele não tem acesso ("Essa coisa é que é linda", em "Isto").
Segundo Pessoa, os poetas sinceros estão confinados ao estrito convencionalismo sentimental. Um dos seus
heterónimos, Álvaro de Campos, afirma “O poeta superior diz efetivamente o que pensa. O poeta médio diz o que decide
sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem a ver com a sinceridade...A maioria da gente sente
convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade
intelectual, e essa é que importa ao poeta”. (Fernando Pessoa, Páginas de Estética, Teoria e Crítica Literárias)
Assim, o poeta questiona-se sobre a sinceridade poética e conclui que “fingir é conhecer-se” daí a despersonalização
do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. Lugar de destaque
ocupa o poema Autopsicografia (teorizador da poética pessoana), em que se definem claramente os lugares da inteligência e do
coração (sentimento) na criação artística. É assim que este poeta, possuidor de uma impressionante capacidade de
despersonalização (sem contudo deixar de ser um), procura, através da fragmentação do eu ("Continuamente me estranho", em
"Não sei quantas almas tenho"), atingir a finalidade da Arte, servindo-se da intelectualização do sentimento que fundamenta o
poeta fingidor. Neste contexto as obras dos heterónimos constituem-se como uma requintada expressão da sinceridade
intelectual e os seus autores, embora fictícios, são a expressão da mais elevada veracidade artística.
Neste jogo de tensão permanente sinceridade/fingimento o artista tem de conseguir a veracidade intelectual,
disfarçando e fingindo sentimentos, ideologias, modos de pensar, numa desidentificação contínua, para uma total
disponibilidade artística.
Consequentemente a capacidade do poeta para fingir é, por ele, elevada a princípio criador
absoluto que afirma “A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da
recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de
si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência de uma emoção é a sua existência na inteligência – isto é, na
recordação, única parte da inteligência propriamente tal, que pode conservar uma emoção.” (Fernando Pessoa, Páginas de
Estética, Teoria e Crítica Literárias)

A dor de pensar
Uma das principais características de Pessoa ortónimo é a dor de pensar que o persegue desde sempre e que manifesta
em vários poemas. Como tal, são frequentes as tensões ou dicotomias que espelham a sua complexidade interior. Para além da
sinceridade/fingimento debate-se ainda frequentemente com as dialéticas sentir/pensar e consciência/inconsciência, tentando
encontrar um ponto de equilíbrio, o que não consegue.
Em Ela canta pobre ceifeira, o poeta vive intensamente estas dicotomias: deseja ser a ceifeira que canta
inconscientemente ("Ter a tua alegre inconsciência") e simultaneamente "a consciência disso!". Enquanto ela se julga feliz por
apenas sentir, não intelectualizar as suas emoções ("Ah, canta, canta sem razão!"), o poeta está infeliz porque pensa, porque
racionaliza em excesso ("O que em mim sente, 'stá pensando"). Na mesma linha, cita-se o poema Gato que brincas na rua, no
qual o poeta reforça a ideia da felicidade de não pensar ("És feliz porque és assim") e a dor do sujeito poético devido à

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incapacidade de racionalização do animal.
Em Leve, breve, suave, Pessoa manifesta o seu desalento, a sua frustração quando o "eu" consciente do poeta intervém
("Escuto, e passou... / Parece que foi só porque escutei / Que parou."). A frustração é o resultado de uma incapacidade de
atingir plenamente a satisfação, a felicidade ("Nunca, nunca, em nada, / Raie a madrugada, / Ou 'splenda o dia, ou doire no
declive. / Tive / Prazer a durar / Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir / gozar.").
A luta incessante entre as várias dialéticas origina a dor de pensar e a angústia existencial que tão bem caracterizam
este poeta que é "um mar de sargaço" (Tudo o que faço ou medito) pois, quando quer, "quer o infinito", "Fazendo, nada é
verdade".
Poeta da desilusão, Pessoa tem uma visão negativa do mundo e da vida, como o manifesta no poema Abdicação, onde
se entrega à "noite eterna" (morte) como se fosse a sua própria mãe.

A nostalgia da infância
Outro problema que perpassa a poesia do ortónimo é a desagregação do tempo. Para o poeta, o tempo é um fator de
desagregação, porque tudo é breve, efémero. Esta fugacidade da vida fá-lo desejar ser criança de novo, visto que a infância lhe
surge como o único momento possível de paz e felicidade, como documentam os poemas de carácter tradicionalista O menino
da sua mãe e Não sei, ama, onde era.
Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, Pessoa refugia-se numa infância, regra geral, desprovida
de experiência biográfica e submetida a um processo de intelectualização. A infância é a possibilidade do bem, da unidade, da
inconsciência, da verdade e da posse. Tudo é longe, impreciso, sem carga real, como convém às construções do sonho e
aspiração da fuga. Nela, permanecem sempre imortais o pai, a mãe, as tias, as casas, os primos e todos os amigos; e são imutáveis
os espaços, as casas que habitou, as paisagens, os objetos e todas as coordenadas de relação pessoal e afetiva.
Infância é sempre sinónimo de inconsciência, segurança, pureza, felicidade. Ela é o sonho, a felicidade longínqua, uma
idade perdida e remota que possivelmente nunca existiu a não ser como reminiscência. À nostalgia alia-se um desejo de
esperança:” O que me dói não é / O que há no coração / Mas essas coisas lindas / Que nunca existirão...”. De tudo isto resulta
o timbre melancólico e o sabor irremediável desta poesia: “Outros terão/ Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo, / A
inteira, negra e fria solidão / Está comigo.”

O Sonho, a Evasão, a Angústia, o Tédio, a Frustração


Separado do seu passado, cortado do ser que fora e que se tornou um mito de felicidade impossível, os anos vividos
não foram para o poeta preparação de qualquer coisa que pudesse viver; e isso talvez porque sempre se recusou a projetar, a
desejar, a decidir conquistá-lo.
O sonho é muitas vezes para Pessoa, uma compensação para a realidade amarga e hostil ( Não sei se é sonho, se
realidade, / Se uma mistura de sonho e vida...). Perante a realidade dececionante, o sonho aparece não só como o único
caminho, mas também como uma forma de evasão,( Viajar! Perder países! / Ser outro constantemente,...) de esquecimento e de
refúgio. Assim a vida definha-se na inatividade e consome-se na inércia de resolver, de decidir e de fazer e, por isso, o sonho
surge como o projeto falhado que traz a desilusão e a angústia que se transmite através das interrogações que representam a
procura de uma saída para este mundo de desilusão.
O poeta desperdiçou os seus dias erguendo sonhos inúteis a um céu impassível. Não tentou construir uma vida: os
propósitos são mortos e perdidos, os sonhos são impossíveis e sem razão. Assim tudo se funde numa vida vã, perdida, morta já
que lhe provoca tédio. (Bóiam leves, desatentos / Meus pensamentos de mágoa…). Esta é uma visão amargamente pessimista
da vida que o leva à desistência, à abdicação total de escolher, de decidir.

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Álvaro de Campos
Perfil biográfico
Em oposição a Ricardo Reis, surge "impetuosamente" um novo indivíduo "branco e moreno, tipo vagamente de judeu
português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo", de nome Álvaro de Campos. Teve "uma educação
vulgar de liceu, depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval".
Álvaro de Campos é o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa, e também o mais nervoso e emotivo, por
vezes até à histeria.

As três fases poéticas de Álvaro de Campos


Com algumas composições iniciais que algo devem ao Decadentismo ("Opiário"), Álvaro de Campos é, sobretudo, o
futurista da exaltação da energia até ao paroxismo (cúmulo), da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro,
patentes na "Ode Triunfal".
É o único heterónimo que reconhece uma evolução ("Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já
o não sou"). Passa por três fases: a decadentista, a futurista e sensacionista e, por fim, a intimista.

1 ª Fase: decadentista
Esta fase poética traduz-se por sentimentos de tédio, enfado, náusea, cansaço, abatimento e necessidade de novas
sensações. Tal é o reflexo da falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. Esta fuga era feita
habitualmente à base de estupefacientes, como era o caso do ópio. Um dos poemas mais exemplificativos desta fase é o
"Opiário", escrito por Fernando Pessoa em 1915 para o primeiro número do Orpheu, todavia, datado de Março de 1914 para
documentar, mistificando, uma primeira fase de Campos.

2ª Fase: futurista e sensacionista


A fase futurista-sensacionista assenta numa poesia repleta de vitalidade, manifestando a predileção pelo ar livre e pelo belo
feroz que virá contrariar a conceção aristotélica de belo ("Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza
disto totalmente desconhecida dos antigos". -"Ode Triunfal").
Após a descoberta do futurismo (de Marinetti) e do sensacionismo (de Walt Whitman), Campos adoptou, para além do
verso livre, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas, anafórico, exclamativo, interjetivo,
monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes e enumerações, mas vivificado pela fantasia verbal
duradoura e inesgotável.
Álvaro de Campos, além de celebrar o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna, canta também os
escândalos e corrupção da contemporaneidade, em sintonia com o futurismo.
O ideal futurista em Álvaro de Campos fá-lo distanciar-se do passado para exaltar a necessidade de uma nova vida futura,
onde se tenha a consciência da sensação do poder e do triunfo.
Esta fase também está marcada pela intelectualização das sensações ou pela sua desordem. Como verdadeiro sensacionista,
procura o excesso violento de sensações à maneira de Walt Whitman. Contudo, o seu sensacionismo distingue-se do seu mestre
Alberto Caeiro, na medida em que este considera a sensação captada pelos sentidos como a única realidade, mas rejeita o
pensamento. O mestre, com a sua simplicidade e serenidade, via tudo nítido e recusava o pensamento para fundamentar a sua
felicidade por estar de acordo com a Natureza; já Campos, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura
sentir a violência e a força de todas as sensações ("sentir tudo de todas as maneiras").
O poema "Ode Triunfal" exemplifica claramente esta fase poética do heterónimo Álvaro de Campos. O título sugere logo
qualquer coisa de grandioso, não só no conteúdo como na forma. A irregularidade métrica e estrófica, típicas da poesia
modernista, afastam logo o poema da lírica tradicional portuguesa. Este ritmo irregular traduz a irreverência e o nervosismo do
próprio poeta. A nível estilístico, sobressaem inúmeras metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas (entre outras), a
fim de realçar o sensacionismo de Campos. Há que destacar que nem tudo é entusiasmo nesta ode. Assim, logo no início, o
poeta escreve “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica” e tem “febre”. Ao longo do texto há um desfilar
irónico dos escândalos da época: a desumanização, a hipocrisia, a corrupção, a miséria, a pilhagem, os falhanços da técnica
(desastres, naufrágios), a prostituição de menores, entre outros. O poeta tanto manifesta o desejo de humanizar as máquinas,
através das apóstrofes (“Ó rodas, ó engrenagens, ó máquinas!...”), como também de se materializar ao identificar-se com as
máquinas (Ah! poder eu exprimir-me como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! ").O mais surpreendente
no poema é que, depois de o poeta ironizar os ridículos da sociedade moderna, ele identifica-se com eles ao exprimir (“Ah,
como eu desejava ser o souteneur disto tudo!").

3ª Fase: intimista
Esta fase caracteriza-se por uma incapacidade de realização, trazendo de volta o abatimento. O poeta vive rodeado pelo
sono e pelo cansaço, revelando desilusão, revolta, inadaptação, devido à incapacidade das realizações. Após um período áureo de
exaltação heróica da máquina, Álvaro de Campos é possuído pelo desânimo e frustração.
Parece apresentar pontos comuns com a 1ª fase – a decadentista –, contudo, há que sublinhar que a intimista traduz a
reflexão interior e angustiada de quem apenas sente o vazio depois da caminhada heróica.
Segundo Jacinto do Prado Coelho, este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa
ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, é o único heterónimo que
comparticipa da vida extraliterária de Fernando Pessoa, afirmando o próprio “eu e o meu companheiro de psiquismo Álvaro de
Campos".

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Em "Lisbon revisited" (1923), o poeta debate-se com a inexorabilidade da morte, desejando até morrer (“Não me venham
com conclusões! / A única conclusão é morrer.").
Todo o poema é disfórico, daí a acumulação de construções negativas. Recusa a estética, a moral, a metafísica, as ciências,
as artes, a civilização moderna, apelando ao direito à solidão, apontando a infância como símbolo da felicidade perdida ("Ó céu
azul - o mesmo da minha infância - / Eterna verdade vazia e perfeita! ").
Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido (“O que há em mim é sobretudo cansaço -"; "Três
tipos de idealistas, e eu nenhum deles: / Porque eu amo infinitamente o finito, / Porque eu desejo impossivelmente o
possível"). A construção antitética destes versos é, sem dúvida, o espelho do interior do poeta.

Síntese
A poesia de Álvaro de Campos apresenta:
 o predomínio da emoção espontânea e torrencial;
 o elogio da civilização industrial, moderna, da velocidade e das máquinas, da energia e da força, do progresso;
 um poeta virado para o exterior, que tenta banir o vício de pensar e acolhe todas as sensações;
 a ansiedade e a confusão emocional - angústia existencial;
 o tédio, a náusea, o desencontro com os outros;
 a presença terrível e labiríntica do "eu" de que o poeta se tenta libertar;
 a fragmentação do "eu, a perda de identidade;
 o sentido do absurdo;
 a excitação da procura, da busca incessante;
 o verso livre e longo;
 um estilo esfuziante, torrencial, dinâmico;
 exclamações, interjeições, enumerações caóticas, anáforas, aliterações, onomatopeias;
 uma desordem de ritmos, violência de metáforas - desespero por não poder meter as sensações nas palavras.

Glossário:
Decadentismo – surge como uma atitude estética que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações. Traduz a
falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga a monotonia. Característica visível em Álvaro de Campos, na sua 3ª fase
literária, quando, perante a incapacidade das realizações futuristas, o poeta se ressente sob a forma de abatimento.
Disforia – pessimismo, abulia, abatimento, negativismo.
Euforia – exaltação, entusiasmo.
Futurismo – propõe o esquecimento do passado e pretende criar e construir o futuro; o desprezo do clássico, do tradicional e
estético; o repúdio do sentimentalismo e o ingresso frenético na vida activa (exaltação do homem de acção); o culto da
liberdade, da velocidade, da energia, da força física, da máquina, da violência, do perigo; a veneração da originalidade. Defende o
versilibrismo (uso indiscriminado do verso longo); as palavras em liberdade, mesmo como sacrifício da correcção gramatical; a
comunicação de ideias de inteligência, sem interferência de imagens e símbolos; a exploração da alma, da inquietação, da
insatisfação, do que se não tem e esta para vir, das ciências ocultas e da astrologia; a proscrição do idealismo romântico.
Marinetti (Filippo Tommaso) – escritor italiano (1876-1944); poeta, ficcionista e ensaísta, foi o pai do Futurismo. Segundo
ele, a arte devia romper com o passado e com o sentimentalismo para apenas exaltar tudo o que é moderno e todas as vitórias do
homem no domínio da técnica.

Walt Whitman - poeta norte-americano (1818-1892). Culturalmente, foi um autodidata que se alimentou das fontes mais
diversas. Ingénuo e sonhador, dilacerado por contradições que ora atingem o patético ora o cómico, dá largas à sua inspiração
torrencialmente difusa, exaltadora da liberdade e da sensualidade. Introduz uma nova subjetividade na conceção poética e faz da
sua poesia um hino à vida. O seu optimismo romântico e o seu poder encantatório exerceram uma vasta influência em todo o
lirismo contemporâneo sem exceção.

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Alberto Caeiro
Perfil biográfico
Considerado Mestre dos outros heterónimos (Ricardo Reis e Álvaro de Campos) e do próprio ortónimo, é aquele a quem
o seu criador vai dar características que se coadunam com a sua formação escolar e o meio em que viveu.
É Pessoa quem o cria e, como tal, atribui-lhe um nome, uma data de nascimento, uma formação literária e insere-o num
determinado ambiente. É numa carta a Adolfo Monteiro, sobre a origem dos heterónimos, que o "pai do Mestre" afirma:
"...lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada (…) foi em
8 de Março de 1914 (…) e escrevi trinta e tantos poemas a fio (…). Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderia ser outro
assim. Abri com o título "O Guardador de Rebanhos" e o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei
desde logo o nome de Alberto Caeiro (…)”. Quase paradoxalmente, afirma mais adiante: "Alberto Caeiro nasceu em 1889 e
morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. (…) Caeiro, louro sem cor, olhos azuis; (…)
não teve educação quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo
de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó.".

Perfil literário
Os aspetos biográficos poderão contribuir para explicar a simplicidade que Caeiro, para si, reclama. Vendo-se como um
simples "guardador de rebanhos", não admira que prefira a objetividade e a naturalidade próprias dos mais simples. Privilegia os
órgãos dos sentidos, principalmente a visão e a audição, porque são estes que lhe permitem uma perceção exata das coisas que
existem na natureza e com ela e nele evoluem sem precisarem de uma explicação metafísica ou intelectual.
Para ele, só há a realidade, por isso, o tempo não existe e, consequentemente, não faz referência ao passado, nem ao futuro,
mesmo porque todos os instantes refletem a unidade do próprio tempo.
O facto de se interessar apenas por aquilo que as sensações captam faz dele um sensacionista. Adere espontaneamente às
coisas e identifica-se com elas, interrogando-se sobre o porquê de se procurar o mistério das coisas e afirmando não saber mais
que o rio ou a árvore ("O mistério das coisas, onde está ele? / (...) Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? / E eu, que não sou
mais do que eles, que sei disso?"). Por isso, vai recusar o pensamento e rir daqueles que pensam ("Sempre que olho para as coi-
sas e penso no que os homens pensam delas, / Rio como um regato que soa a fresco numa pedra.").

Estas afirmações de Caeiro reforçam o carpe diem, filosofia de vida que adota o fruir da realidade, de uma forma livre e
despreocupada, não vendo nas coisas nenhum sentido oculto, reduzindo-as à perceção que delas têm, à sua forma, à sua cor e à
sua concretez.
Diz-se contrário à filosofia e apologista dos sentidos ("Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…"), mas a verdade é que cria a
sua própria filosofia e um pensamento incomum, uma vez que, ao recusar o pensamento, teve de pensar nas razões que o
levaram a fazê-lo.
De qualquer modo, após a leitura dos poemas de "O Guardador de Rebanhos", parece não restarem dúvidas quanto ao seu
pendor simplista e reducionista, de forma a poder viver sem dor e a envelhecer sem angústia, o que é confirmado pelo conjunto
de processos estilísticos que emprega na sua poesia, realçando-se a abundância de substantivos concretos, a quase ausência dos
adjetivos (utiliza fundamentalmente os de teor cromático ou formal, isto é, sem valoração); recorre, ainda, ao presente do
indicativo e à coordenação, excluindo as figuras do pensamento como a metáfora, a sinédoque, a hipérbole, a antítese, o que
confirma também a sua tendência para a objetividade e para a redução. Em contrapartida, a poesia de Caeiro apresenta
comparações e alguns paradoxos como forma de objetivar o próprio sujeito. A nível fónico, também não são visíveis recursos
como as aliterações, assonâncias, ou onomatopeias, dado que a palavra, em Caeiro, praticamente se anula em favor do seu re-
ferente, facto que também pode ser explicado pelo versilibrismo (uso indiscriminado do verso livre) que este adota, indiciando a
lógica subjacente à poesia deste heterónimo pessoano e que assenta na crença na singularidade das coisas, mas que marca uma

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rutura com os sistemas literários ainda vigentes.
Em conclusão, parece oportuno referir que a criação deste heterónimo terá permitido ao ortónimo libertar-se, quanto mais
não fosse momentaneamente da dor de pensar que sempre o atormentou, e com ele aprender a viver a vida de uma forma
simples e espontânea, justificando-se, deste modo, a designação de Mestre.

Na poesia de Caeiro verifica-se que:

 Vive de impressões, fundamentalmente visuais;


 Identifica-se com a natureza e vive de acordo com as suas leis;
 É instintivo e espontâneo;
 Prefere a objetividade;
 Abre-se para o mundo exterior;
 Recusa a introspeção e a subjetividade;
 Repudia a expressão sentimental;
 Vive no presente;
 Defende a existência em vez do pensamento;
 Faz poesia involuntariamente;
 Transforma o abstrato no concreto;
 Usa uma linguagem simples, familiar e denotativa;
 Prefere a coordenação;
 Cultiva o verso livre.

CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS

 Objetivismo:
 Verso livre, avesso, portanto, a quaisquer esquemas
o Apagamento do sujeito métricos, rimáticos ou melódicos;
o Preferência pela exterioridade  Prosaísmo da linguagem;
 Integração e comunhão com a Natureza;  Raras assonâncias, aliterações ou onomatopeias;
 Sensacionismo: preferência pelas sensações visuais e  Pobreza lexical;
auditivas;  Paralelismos, assíndetos, polissíndetos, tautologias e
 Recusa do pensamento, da metafísica, do mistério, da comparações;
filosofia e do misticismo;  Raras metáforas, metonímias e sinestesias;
 Predomínio do presente do indicativo;
 A ruralidade;
 Estilo discursivo;
 O paganismo;
 Marcas de oralidade;
 A desvalorização do tempo:”Não quero incluir o
 Ritmo lento remetendo para a aceitação das coisas.
tempo no meu esquema”.

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Ricardo Reis
Perfil biográfico
Ao dar conta da tendência para criar em seu torno, desde criança, um mundo fictício, Pessoa afirma: " (...) Aí por 1912,
salvo erro (...), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (...) e abandonei o
caso. Esboçara-se-me contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha
nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis) ". Contudo, é só depois de ter tido necessidade de arranjar uns discípulos para
Caeiro que vai arrancar Ricardo Reis "do seu falso paganismo (...) porque nessa altura já o via". Mais adiante diz: " (...) Eu vejo
diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-
lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (...), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil". Acrescenta que
foi educado num colégio de jesuítas e desde 1919 vivia no Brasil porque, por ser monárquico, se havia expatriado, e é "latinista
por educação alheia, e um sem-helenista por educação própria". Fisicamente, Reis é mais baixo e mais forte que Caeiro e de tez
morena.

Características temáticas e estilísticas


Com este heterónimo Pessoa projeta-se na antiguidade grega. E em termos de semelhança com o Mestre, estas são visíveis
apenas na preferência pelo mundo exterior, muito embora este não seja por ele comentado e lhe sirva unicamente de
contemplação. Mas Reis, tal como Caeiro, aconselha a aceitar a ordem das coisas e a gozar a vida pensando o menos possível,
um pouco ao jeito das crianças ("Depois pensemos, crianças adultas, que a vida / Passa e não fica...”). As afinidades entre
Caeiro e Reis restringem-se aos aspectos apontados, porque, na realidade, é notória a vivacidade e a ingenuidade, o prazer e a
alegria, a naturalidade e espontaneidade no Mestre, enquanto no discípulo tudo é calculado, ponderado, refletido e bem
percetível num tom triste que transparece na sua poesia e que é, certamente, resultante duma atitude racional, que o leva a
procurar um prazer relativo que, ilusoriamente, o leva a sentir-se livre por poder conter-se, mas que não lhe permite afastar a
tristeza experimentada por saber que as suas emoções não são tão autênticas como as daquele em que estas são espontâneas.
Infere-se então que o paganismo de Reis não é instintivo como o de Caeiro. O de Reis assenta numa ideologia classicista
que lhe permite elevar-se acima do cristianismo e assumir perante ele uma atitude de desprezo.
Reis revela-se detentor de uma dignidade sóbria, de uma perfeita clareza de ideias, e de uma conceção de vida simples.
Prefere o silêncio nostálgico para enfrentar a sorte a que os deuses o votaram.
Esta é a atitude que adota para evitar a dor, para procurar a calma, autodisciplinar-se, nem que para isso tenha de abdicar
dos prazeres da vida, tal como preconizava o estoicismo. Reis revela um comportamento refletido e ponderado, resultante da
adoção do epicurismo, que defendia que o sofrimento só pode ser evitado quando não há entrega às grandes paixões ou aos
instintos profundos. O prazer, para ser estável e duradoiro, não pode resultar de sentimentos fortes, deve ser ponderado, isto é,
doseado pela razão. Por isso, e para se evitarem as preocupações, deve viver-se o momento presente (Carpe diem) e acreditar no
poder da razão, remetendo a emoção para a indiferença, "sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz", deixando
fluir o tempo, simbolizado nas águas do rio, ou amando as rosas, que com ele se identificam pela fragilidade e transitoriedade a
que estão sujeitas ("Nascem nascido já o Sol, e acabam / Antes que Apolo deixe / O seu curso visível").
Ricardo Reis procura a ataraxia, que patenteia em vários poemas, por exemplo, em "Prefiro rosas, meu amor, à pátria",
onde emite o desejo de que a vida não o canse ("Logo que a vida não me canse..."), ou no curto texto que se segue:
Tão cedo passa tudo quanta passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo e tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
O poema apresentado reflete bem a tristeza que parece acompanhar este heterónimo pessoano e que ilustra a seriedade de
um homem que se situa, tal como afirma Isabel Monteiro, "entre o não pensamento de Caeiro e a abulia presente num certo
Fernando Pessoa (e no Campos da última fase) ".
Ricardo Reis é o poeta clássico, por isso, cultiva a ode e recorre frequentemente à mitologia e aos latinismos. Preconiza o
regresso à Grécia antiga por considerá-la um modelo de perfeição. Acredita na liberdade concedida pelos deuses ("Só esta
liberdade nos concedem / Os deuses...") e propõe que os imitemos ("Nós, imitando os deuses, (...) / Ergamos a nossa vida / E
os deuses saberão agradecer-nos / o sermos tão como eles").

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A poesia de Reis é de cariz moralista. Nela revela-se um estilo sentencioso, cheio de conselhos morais e um apelo
constante à indiferença, factores que lhe conferem um intenso dramatismo e fatalismo, sendo este traçado pelo destino que
atribui ao homem uma vida efémera.
As linhas ideológicas presentes na poesia de Reis refletem um homem que sofre e vive o drama da transitoriedade da vida,
facto que lhe provoca sofrimento por imaginar antecipadamente a morte. Ressalta, também, o amor à vida rústica e à natureza, a
procura da perfeição, a intelectualização das emoções, facetas reveladoras de um homem lúcido e cauteloso, que procura
construir uma felicidade relativa, um misto de resignação e gozo moderado, de forma a não comprometer a sua liberdade
interior, liberdade esta que só existe quando há ilusão. Propõe a fruição das coisas sem demasiado esforço ou risco e a aceitação
de tudo, uma vez que considera o destino mais importante que a força humana. Aceita a condição de ser humano,
transformando-se num moralista que aconselha a evitar as grandes paixões.
Poeta da razão e defensor de um epicurismo temperado de estoicismo, acaba por se aproximar do Campos da terceira fase e
do ortónimo, pelo tom melancólico que se liberta da sua poesia.
A nível estilístico, a poesia de Reis revela um estilo densamente trabalhado, de sintaxe alatinada, recorrendo aos hipérbatos,
às apóstrofes, às metáforas, às comparações, ao gerúndio e ao imperativo. Apresenta preferência pela ode e pelo verso irregular e
decassilábico.

Síntese
Na poesia de Ricardo Reis verifica-se que:
- faz dos Gregos o modelo de sabedoria (visível na aceitação do destino, de forma digna e ativa);
- opõe a moral pagã à cristã, uma vez que considera a primeira uma moral de orientação e de disciplina, enquanto a segunda se
impõe como a moral da renúncia e do desapego;
- segue as filosofias do epicurismo, do estoicismo e do carpe diem;
- considera que a sabedoria consiste em gozar a vida moderadamente e através do exercício da razão;
- recusa as grandes emoções e as paixões por considerá-las confinadoras da liberdade;
- é um moralista;
- tem consciência da dor provocada pela natureza transitória/ efémera do homem;
- receia a velhice e a morte;
- dramatiza o pensamento;
- é clássico ao nível do estilo;
- emprega monólogos;
- utiliza a ode e o versilibrismo;
- usa hipérbatos, latinismos, metáforas, comparações;
- prefere o presente, o gerúndio e o imperativo.

Glossário:
Abulia – alteração patológica que leva à perda da vontade, que dá lugar ao desinteresse, à apatia.
Ataraxia – estado de tranquilidade, serenidade, indiferença, ausência de perturbação
Carpe diem – atitude defendida pelo poeta Horácio e que consiste no usufruir do dia-a-dia, no aproveitar o dia, isto é, o
momento presente.
Classicista – que segue o classicismo, isto é, a doutrina literária e artística baseada no respeito pela tradição clássica e que
consistiu na adoção do conjunto de características próprias da literatura e das artes da Antiguidade (grega e latina) e que
proliferou no século XVI (no Renascimento) e no XVIII (com o Neoclassicismo).

Epicurismo – filosofia moral de Epicuro (341-270 a. C) que defendia o prazer como caminho da felicidade. Contudo, a
satisfação estável dos desejos, sem desprazer ou dor, impõe um estado de ataraxia, de tranquilidade, sem qualquer perturbação.
O prazer, o bem supremo, há de ser encontrado na prática da virtude e na cultura do espírito.

Estoicismo – corrente filosófica que considera a possibilidade de encontrar a felicidade quando se vive em conformidade com as
leis do destino que regem o mundo, mostrando-se indiferente aos males e às paixões, porque perturbam a razão.
Fatalismo – atitude ou doutrina que admite que o curso da vida humana está previamente fixado. Relaciona-se também com
acontecimentos funestos, com o destino, com o fado.
Latinismos – vocábulos ou construções gramaticais peculiares à língua latina.
Ode – composição poética lírica de assunto elevado; subgénero lírico cultivado segundo modelos greco-latinos, desde o
renascimento até à época contemporânea. Caracteriza-se pela eloquência, solenidade e elevação do estilo.
Paganismo – atitude assumida perante o mundo e que consiste em aceitar qualquer religião e a existência de deuses em tudo e
em todas as coisas.

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Os Lusíadas
Estrutura Interna de “Os Lusíadas”

“Os Lusíadas” são constituídos pelas seguintes partes:

Proposição Invocação Dedicatória Narração

Canto I
Canto I Canto I Canto I
est.·1-3
est. 4-5 est. 6-18 – in media res - expressão latina que significa quando
a acção já vai a meio. Inicia-se no Canto I, est. 19 e
termina no Canto X. Canta os feitos heróicos dos
(define o
(pedido de (dedica o poema a D. portugueses, tendo como acção central a Viagem de
objectivo
inspiração às Sebastião - parte Vasco da Gama à Índia.
da Epopeia)
Tágides) facultativa)

Ainda dentro da narração, estão presentes as categorias do género narrativo:

- a acção;
- as personagens;
- o espaço;
- o tempo.

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Dentro da narração, mas ao nível da acção distinguem-se quatro planos:

O plano da viagem de Vasco da Gama; FULCRAL

O plano dos Deuses; PARALELO

O plano da História de Portugal; ENCAIXAD


O

O plano das reflexões e considerações do VOZ DO


poeta (geralmente no final de cada canto). POETA

A EPOPEIA
1. Noção: narrativa, geralmente numa estrutura de poema, que traduz as façanhas ou o espírito de um povo e que tem interesse
para esse povo e para a Humanidade. Exige, por isso, na sua estrutura (construção) a presença de uma acção ou enredo, desempenhada
por personagens, num determinado tempo e espaço.
O estilo é elevado e grandioso e o género possui uma estruturação própria.

2. Partes de uma epopeia (estrutura interna):


 Existência de uma Proposição em que o autor apresenta a matéria do seu poema;
 Existência de uma Invocação às musas ou outras divindades e entidades míticas protectoras das artes;
 Uma Dedicatória (facultativa);
 Uma Narração «in media res», isto é, em que a acção não é narrada pela ordem cronológica dos acontecimentos, mas
se inicia já no decurso dos mesmos acontecimentos, sendo a parte inicial narrada posteriormente, num processo de
retrospetiva, ou «flash-back», ou analepse, pelo próprio herói.

2.1. Partes d’OS LUSÍADAS (estrutura interna):


Camões respeitou com bastante fidelidade a estrutura clássica da epopeia. N' Os Lusíadas são claramente identificáveis quatro
partes.
 Proposição (apresentação do assunto) – nesta parte (Canto I, estâncias 1 a 3), Camões propõe-se cantar as navegações e
conquistas no Oriente nos reinados de D. Manuel a D. João III (est. 1); as vitórias em África de D. João I a D. Manuel
(estância 2, vv. 1 a 4); e a organização do país durante a 1ª dinastia (estância 2, vv. 5 a 8).

 Invocação 1ª – (Canto I, estâncias 4 e 5) -O poeta dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência
necessários à execução da sua obra; um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado, uma eloquência superior; daí a
necessidade de solicitar o auxílio das entidades protetoras dos artistas.
Para além desta há mais três invocações:

- 2ª (canto II, ests. 1 e 2) – súplica a Calíope, porque estão em causa os mais importantes feitos lusíadas,
- 3ª (canto VII), ests. 78 a 87) – súplica às ninfas de Tejo e do Mondego, queixando-se dos seus infortúnios;
- 4ª (canto X, ests. 6 a 18) – nova invocação a Calíope.

 Dedicatória (Canto I, estâncias 6 a 18) – É a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião. A dedicatória não
fazia parte da estrutura das epopeias primitivas; trata-se de uma inovação posterior, que reflecte o estatuto do artista,
intelectualmente superior, mas social e economicamente dependente de um mecenas, um protetor.

 Narração (Canto I, estância 19 até ao fim da obra) – Constitui o núcleo fundamental da epopeia. Aqui, o poeta procura
concretizar aquilo que se propôs fazer na "proposição".

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Os Narradores presentes n’Os Lusíadas:

Podemos distinguir na obra os seguintes narradores:


 Camões, que nos relata a viagem de Vasco da Gama desde Moçambique até à Índia e toda a viagem de regresso (Cantos I, II,
VI, VII, VIII, IX e X).

 Vasco da Gama, que conta ao rei de Melinde:


- a viagem desde Lisboa até Moçambique (Canto V);
- a História de Portugal (Cantos III e IV).

 Paulo da Gama, que relata, em Calecut, ao Catual alguns factos da nossa História e explica o significado das 23 figuras
representadas nas bandeiras (Canto VIII).

 Fernão Veloso, que descreve o episódio dos Doze de Inglaterra (Canto VI).

3. Estrutura externa:
- Forma narrativa;
- Versos decassílabos (geralmente heróicos, com o acento rítmico na 6ª e 10ª sílabas);
- Rimas com esquema abababcc (rima cruzada nos primeiros seis versos e emparelhada nos dois últimos);
- Estâncias – oitavas;
- Poema dividido em dez cantos (1102 estâncias, sendo o canto mais longo o X com 156 estrofes e o mais pequeno o VII com
87 estrofes).

4. Elementos de uma epopeia:


- Acção (o assunto e seu desenvolvimento);
- Personagem/Herói (o agente principal / actante-sujeito);
- Maravilhoso (intervenção de seres superiores);
- Forma (forma natural de Literatura, estrutura versificatória).

4.1. Elementos d’OS LUSÍADAS:


Acção - a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, como acontecimento culminante da História de
Portugal até à data da composição da obra e definidor de perfil do herói, «o peito ilustre lusitano», isto é, o povo português.

Herói/personagem - o povo português, um herói coletivo, que na obra é representado simbolicamente na figura do comandante
das naus, Vasco da Gama.

O maravilhoso, que consiste na intervenção de entidades sobrenaturais na ação, umas favorecendo (Vénus, Marte, o próprio pai
dos deuses, Júpiter), outras dificultando (Baco). Cada interventor tem as suas razões para desejar o sucesso ou o insucesso dos
marinheiros portugueses. Diga-se, no entanto, desde já, que Vénus favorece os Portugueses por várias razões:
- o sentimentalismo lusitano;
-.lembram-lhe os Romanos, sempre seus protegidos, mesmo porque seu filho Eneias (resultante de uma relação com Anquises)
fora já o herói da Eneida de Virgílio, epopeia clássica que Camões seguiu de perto;
- mostraram bravura na «terra Tingitana» (Norte de África);
- falam uma língua, «na qual quando imagina, / Com pouca corrupção crê que é a latina».

Por outro lado, Marte não pode deixar de tomar uma atitude dura, consentânea com a sua qualidade de deus da guerra, e fá-lo
também por razões muito especiais:
- O «amor antigo» por Vénus;
- Os actos heróicos praticados em combate pelo povo português e que, sendo deus da guerra, o dignificavam.

Júpiter, no seu discurso de abertura do consílio, manifesta-se impressionado pelo rol de feitos ilustres praticados pelos
Portugueses desde longa data e sabe que lhes está «prometido» o sucesso pelo «Fado eterno, /Cuja alta lei não pode ser
quebrada». Prevê que hão-de dominar o Oriente, sabe que navegam já no Índico e é de parecer que lhes seja «mostrada a nova
terra» (a Índia). Pelo contrário, Baco opõe-se à viagem. Ele simboliza os obstáculos naturais à viagem e os interesses estabelecidos
no Oriente (de Mouros ou Turcos das Repúblicas Italianas ou mesmo de Portugueses) e que seriam feridos de morte pelo
sucesso da viagem do Gama.

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Há, n’Os Lusíadas, vários tipos de maravilhoso:
O maravilhoso pagão – intervenção de numerosas divindades da mitologia pagã;

O maravilhoso cristão – o recurso ao Deus dos cristãos (a «divina Guarda, angélica, celeste»), sobretudo nas súplicas do Gama
em momentos de aflição e em algumas das considerações do poeta;

O maravilhoso céltico ou mágico – intervenção da feitiçaria, da magia, de crenças populares;

Consideram alguns autores que, na obra, haverá o maravilhoso misto, pois tanto Deus, a chamada Divina Providência
(maravilhoso cristão) como os deuses pagãos (maravilhoso pagão) intervêm na sua acção.

A forma - Os Lusíadas são uma narrativa em verso, dividida em dez cantos, com um número aproximado de cento e dez estrofes
cada. As estrofes são oitavas em verso decassilábico, geralmente heróico. O esquema rimático é fixo – ABABABCC, sendo,
portanto, a rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últimos.

5. Estrutura da Narração – Planos:

A quarta parte da epopeia, a narração, é que constitui a acção principal que, à maneira clássica, se inicia «in media
res», isto é, quando a viagem já vai a meio, encontrando-se os marinheiros portugueses em pleno Oceano Índico. A
narrativa desenvolve-se em quatro planos diferentes, mas estreitamente articulados entre si.

5.1. Plano da viagem (plano central): a narração dos acontecimentos ocorridos durante a viagem realizada entre Lisboa e Calecut:
- Partida, peripécias da viagem, paragem em Melinde, chegada a Calecut (Índia);
- Regresso e chegada a Lisboa (22 de Agosto de 1499).

5.2. Plano da História de Portugal (plano encaixado): Relato dos factos marcantes da História de Portugal:
- Em Melinde, Vasco da Gama narra ao rei os acontecimentos de toda a nossa História, desde Viriato até ao reinado de D.
Manuel I;
- Em Calecut, Paulo da Gama apresenta ao Catual episódios e personagens representadas nas bandeiras;
- A História posterior à viagem do Gama é-nos narrada, em prolepse, através de profecias.

5.3. Plano da Mitologia (plano paralelo): a mitologia permite a evolução da acção (os deuses assumem-se, uns como adjuvantes,
outros como oponentes dos Portugueses) e constitui, por isso, a intriga da obra.
Os deuses apoiam os portugueses: Consílio dos deuses no Olimpo; Consílio dos deuses Marinhos; A Ilha dos Amores; etc.

Nota: constituindo os Planos da Viagem e o dos Deuses a ação central do Poema, a eles são atribuídas 773 estrofes, ou seja,
cerca de 70% do total das estrofes do Poema.

5.4. Plano do Poeta (plano ocasional): Considerações e opiniões do autor expressas, nomeadamente, no início e no fim dos
Cantos

Destacam-se os momentos em que o Poeta:


- Refere aquilo que o homem tem de enfrentar: - «os grandes e gravíssimos perigos…/No mar, tanta tormenta e tanto dano,
/…Na terra, tanta guerra, tanto engano» (I, 105-106).
- Põe em destaque a importância das Letras e lamenta que os Portugueses nem sempre saibam aliar a força e a coragem ao saber e
à eloquência (V, 92-100).
- Realça o valor das honras e da glória alcançadas por mérito próprio (VI, 95-99).
- Faz a apologia da expansão territorial para divulgar a fé cristã; critica os povos que não seguem o exemplo do povo português
que, com atrevimento, chegou a todos os cantos do mundo «e, se mais mundos houvera, lá chegara» (VII, 2-14).
- Lamenta a importância atribuída ao dinheiro, fonte de corrupções e de traições (VII, 96-99).
- Explica o significado da Ilha dos Amores (IX, 89-92).
- Dirige-se a todos aqueles que pretendem atingir a imortalidade, dizendo-lhes que a cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs
que não dão verdadeiro valor ao homem (IX, 93-95).
- Confessa estar cansado de «cantar a gente surda e endurecida» que não reconhecia nem incentivava as suas qualidades artísticas.
Mesmo assim reafirma-o nos últimos quatro versos da estância 154 do Canto X ao referir-se ao seu «honesto estudo», à longa
experiência», ao «engenho», «cousas que juntas se acham raramente». Reforça a apologia das Letras (V, 92-100).
- Manifesta o seu patriotismo e exorta D. Sebastião a dar continuidade à obra grandiosa do povo português (X, 145-156).

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Introdução
«Camões apresenta-se nas suas reflexões como guerreiro e poeta a quem não “falta na vida honesto
estudo,/ Com longa experiência misturado,/ Nem engenho” (C. X, est. 154). Um poeta que, ainda que perseguido
pela sorte e desprezado pelos seus contemporâneos, assume o papel humanista de intervir, de forma pedagógica, na
vida contemporânea. Por isso critica a ignorância e o desprezo pela cultura dos homens de armas (C. V); denuncia o
desprezo pelo bem comum, a ambição desmedida, o poder exercido com tirania, a hipocrisia dos aduladores do Rei, a
exploração dos pobres (C. VII); denuncia o poder corruptor do ouro (C. VIII) e propõe um modelo humano ideal
de "Heróis esclarecidos" que terão ganho o direito de ser na "Ilha de Vénus recebidos" (C. IX, est.95).
Mas o poema, acima de tudo, evidencia a grandeza do passado de Portugal: um pequeno povo que cumpriu ao longo
da sua História a missão de dilatar a Cristandade, que abriu novos rumos ao conhecimento, que mostrou a
capacidade do Homem de concretizar o sonho.
Ao cantar a gesta heróica do passado, o poeta pretende mostrar aos seus contemporâneos a falta de grandeza do
Portugal presente, metido "No gosto da cobiça e na rudeza/Dhua austera, apagada e vil tristeza ." (C. X, est.145) e
incentivar o Rei a conduzir os portugueses para um futuro glorioso, para uma nova era de orgulho nacional.» ( In
Plural, Lisboa Editora)
O Poeta tece, ao longo de Os Lusíadas, diversas considerações, no início (Canto I – Dedicatória) e no fim dos
Cantos da sua epopeia, criticando e aconselhando os Portugueses.
Por um lado, refere os «grandes e gravíssimos perigos», a tormenta e o dano no mar, a guerra e o engano em terra;
por outro lado, faz a apologia da expansão territorial para divulgar a Fé cristã, manifesta o seu patriotismo e exorta
D. Sebastião a dar continuidade à obra grandiosa do povo português.
Nas suas reflexões, que assumem uma feição didática, moral e severamente crítica, há não só louvores, mas também o
lamento e o queixume de quem sente amargamente a ingratidão, ou os desconcertos do mundo. Se realça o valor das
honras e da glória alcançadas por mérito próprio, lamenta, por exemplo, que os Portugueses nem sempre saibam aliar
a força e a coragem ao saber e à eloquência, destacando a importância das Letras. Se critica os povos que não seguem
o exemplo do povo português que, com atrevimento, chegou a todos os cantos do Mundo, não deixa de queixar-se de
todos aqueles que pretendem alcançar a imortalidade, dizendo-lhes que a cobiça, a ambição e a tirania são honras vãs
que não dão verdadeiro valor ao homem. Daí, também, lamentar a importância atribuída ao dinheiro, fonte de
corrupção e de traições.
Lembrando o seu «honesto estudo», «longa experiência» e «engenho», «Cousas que juntas se acham raramente»,
confessa estar cansado de «cantar a gente surda e endurecida» que não reconhecia nem incentivava as suas qualidades
artísticas.

Canto I (est. 103 – 106)

Acontecimento motivador das reflexões - chegada a Mombaça, cujo rei fora avisado por Baco para receber os
portugueses e os destruir.

Reflexões do poeta
Depois de ter contado as traições e os perigos a que os navegadores estiveram sujeitos – ciladas, hostilidade
disfarçada que reduz as defesas e cria esperanças – o poeta interrompe a Narração para expor as suas reflexões sobre a
insegurança da vida e a impotência do homem, «um bicho da terra tão pequeno», exposto a todos os perigos e
incertezas e vítima indefesa do «Céu sereno». São palavras-chave: veneno, engano, gravíssimos perigos, nunca certo,
pouca segurança, mar, tormenta, dano, morte, guerra, engano. Não será por acaso que esta reflexão surge no final do
Canto I, quando o herói ainda tem um longo e penoso percurso a percorrer. Ver-se-á, no Canto X, até onde a
ousadia, a coragem e o desejo de ir sempre mais além pode levar o "bicho da terra tão pequeno", tão dependente da
fragilidade da sua condição humana. Os perigos que espreitam o ser humano (o herói), tão pequeno diante das forças
poderosas da natureza (tempestades, o mar, o vento...), do poder da guerra e dos traiçoeiros enganos dos inimigos.

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Principais recursos expressivos:

 Metáfora - «Mas debaxo o veneno vem coberto» - traduz a falsidade e a cobardia dos traidores
 Interjeições e frases exclamativas - «Oh! Grandes e gravíssimos perigos, /Oh! Caminho de vida nunca certo» -
acentuam a visão angustiada e expressiva do poeta face às traições e à precariedade da vida humana assinalada
através da metáfora Caminho de vida. Através desta exclamação sentenciosa, o poeta apresenta uma síntese do
negrume trágico que dá a medida da grandeza épica da história da gente lusitana.
 Anáfora, «Onde», «Onde» a personificação, «Céu sereno», e a interrogação retórica «Onde….bicho da terra tão
pequeno?» acentuam a visão pessimista e profundamente angustiada da condição humana marcada pelo
sentimento de impotência de um ser que, perante o Céu sereno, não passa de um bicho da terra tão pequeno.
 Antítese e paralelismo de construção - «No mar tanta tormenta e tanto dano,(…)/Na terra tanta guerra, tanto
engano.» - destacam a insegurança e os perigos que surgem em qualquer lugar. O homem, e em particular a
gente lusa, não tem um lugar onde se possa sentir segura o que, mais uma vez, contribui para a glorificação deste
«bicho da terra tão pequeno» que apesar de todas as adversidades vai alcançar o seu objectivo conquistando
terra e ultrapassando todos os limites que lhe são impostos pelo mar.

Canto V (est. 92 – 100)

Acontecimento motivador das reflexões – final da narração de Vasco da Gama (História de Portugal e a Viagem
de Belém a Melinde) e elogio do Rei de Melinde à bravura, à lealdade e à nobreza dos portugueses.

Reflexões do poeta
Ao longo destas estâncias, Camões apresenta uma invectiva contra os portugueses seus contemporâneos que
desprezavam a poesia. O poeta começa por mostrar como o canto, o louvor, incita à realização dos feitos; dá em
seguida exemplos do apreço dos Antigos pelos seus poetas, bem como da importância dada ao conhecimento e à
cultura, que levava a que as armas não fossem incompatíveis com o saber. Não é, infelizmente, o que se passa com os
portugueses: não se pode amar o que não se conhece, e a falta de cultura dos heróis nacionais é responsável pela
indiferença que manifestam pela divulgação dos seus feitos. Apesar disso, o poeta, movido pelo amor da pátria,
reitera o seu propósito de continuar a engrandecer, com os seus versos, as "grandes obras" realizadas. Manifesta,
desta forma, a vertente pedagógica da sua epopeia, na defesa da realização plena do Homem, em todas as suas
capacidades.

Est. 92 – O sujeito poético começa por exprimir, com alguma comoção, a ideia de que louvar os nossos próprios
feitos, ou que outros os cantem, é irrelevante.

Est. 93 – Camões dá o exemplo de Alexandre Magno que prezava mais o poeta Homero do que os gloriosos feitos
guerreiros de Aquiles.

Est. 94 – Vasco da Gama «trabalha» para mostrar as navegações cantadas pelos antigos poetas não são mais
grandiosas do que a sua. O imperador Augusto ao mostrar com «mercês e favores», a sua estima pelo poeta romano
Virgílio, contribuiu para que Eneias (herói da Eneida) fosse cantado e, desta forma, espalhada a glória de Roma.

Est. 95 – Portugal tem grandes chefes políticos e militares tão ilustres como os estrangeiros (Césares, Alexandros, e
Augustos) porém «não lhe dá contudo aqueles dões/Cuja falta os faz duros e robustos.», a sensibilidade para as
letras e, por isso, tornam-se «duros e robustos» o que os impede de cultivarem e apreciarem o canto dos escritores e
poetas portugueses.

Est. 96 – Camões dá o exemplo de Júlio César, grande imperador e escritor romano, («numa mão a pena e noutra a
lança»), que foi um orador tão eloquente como Cícero (orador romano) e um guerreiro da craveira de Cipião
(general romano) que, por sua vez, além de ser um grande general, era também amigo e protector do comediógrafo
Terêncio. O próprio Alexandre Magno apreciava tanto o poeta Homero que tinha sempre as suas obras «à
cabeceira».

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Est. 97 – Utilizando o articulador «Enfim» com valor conclusivo, o poeta afirma que todos os grandes guerreiros
(Capitão) da Antiguidade foram eruditos e sabedores, «douto e ciente», dados às letras e ao conhecimento. Com
mágoa e vergonha constata que em Portugal tal não acontece, os nossos chefes militares não protegem nem prezam
«o verso e a rima», porque «quem não sabe arte» não a pode estimar. O poeta lastima o desdém a que os Portugueses
votam as letras. Estes, apesar de serem de terra de heróis, não reconhecem o valor da arte.

Est. 98 – Assim, como consequência da falta de erudição e de gosto pela poesia, não só não há em Portugal grandes
poetas como Virgílio e Homero como também, «se este costume» continuar nem guerreiros (Eneias e Aquiles)
haverá porque não há quem os cante. «Mas o pior de tudo é que» estes guerreiros são «tão ásperos», «tão austeros» e
«tão rudes» que se tornaram frouxos de espírito o que os impede de prezarem e estimarem a poesia.

Est. 99 – A ironia está presente em toda a estrofe desde o primeiro verso, onde o poeta manda «o nosso Gama»
agradecer «às Musas» «o muito amor da pátria, que as obriga/A dar aos seus, na lira, nome e fama», até ao último
onde Camões afirma que, se fosse pela amizade que tinham a Gama, nunca as Tágides deixariam «As telas de ouro
fino» para o cantarem, pois nunca houve nenhum laço afectivo entre os Gamas e a poesia, ou seja, estes contam-se
entre os que a desprezam, logo, são pelas ninfas desprezados.

Est. 100 – O poeta explica que o único objectivo das Tágides é louvar os feitos lusitanos. O amor à pátria e o apreço
pelas grandes feitos, que devem ser perpetuadas, constituem a grande motivação para a escrita do poema.

Principais recursos expressivos:


 Exclamação - «Quão doce é o louvor e a justa glória/Dos próprios feitos, quando são soados!» (Est. 92)-
traduz a frustração do poeta por verificar que aquilo que parece tão óbvio aos olhos de todos, não é entendido.
 Hipérbole - «Fazem mil vezes feitos sublimados» (Est. 92) - realça a importância da poesia para espalhar os
feitos gloriosos.
 Enumeração de figuras da Antiguidade (Est. 93 a 96) com o objectivo de reforçar as consequências da falta de
protecção aos homens das letras «Alexandro…Augusto…Césares, Alexandros….Cícero…Cipião…»
 Paralelismo anafórico «Tão ásperos…tão austeros/Tão rudos…tão remissos» (est. 98) – insiste na ideia de que
os guerreiros portugueses são ignorantes, rudes e desleixados de espírito.
 Ironia (Est. 99) – (ver explicação acima)

Canto VI (est. 95 – 99)

Acontecimento motivador das reflexões – Após Vénus ter acalmado os ventos que deram origem à tempestade
desencadeada por Neptuno, a pedido de Baco, a armada portuguesa, guiada pelo piloto melindano, avista Calecut e
Vasco da Gama agradece a Deus.

Reflexões do poeta
Continuando a exercer a sua função pedagógica, o poeta defende um novo conceito de nobreza, espelho do modelo
da virtude renascentista: a fama e a imortalidade, o prestígio e o poder adquirem-se pelo esforço - na batalha ou
enfrentando os elementos, sacrificando o corpo e sofrendo pela perda dos companheiros; não se é nobre por herança,
permanecendo no luxo e na ociosidade, nem pela concessão de favores se deve alcançar lugar de relevo. Nestas
estâncias, o Poeta realça o verdadeiro valor das honras e da glória alcançadas por mérito próprio. O herói faz-se pela
sua coragem e virtude, pela generosidade da sua entrega a causas desinteressadas.

Est. 95 e 96 – É por esforço e árduo trabalho (« trabalhos graves e temores») que se alcançam «As honras imortais e
graus maiores», e não por ter herdado a nobreza dos «Troncos nobres de seus antecessores» ou por se viver
luxuosamente «Nos leitos dourados, entre os finos/Animais de Moscóvia zebelinos.», (peles de marta), ou por se
comer «manjares esquisitos», ou por se dar passeios ociosos ou por se ter vários e infinitos prazeres.

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Est. 97 e 98 – Utilizando o articulador «Mas» com valor adversativo, o poeta declara que a fama se alcança por
mérito próprio, («…com buscar, co seu esforço braço/ As honras que ele chame próprias suas»),pelo esforço na
batalha,«vigiando e vestindo o forjado aço», sofrendo«tempestades e ondas cruas», vencendo «os torpes frios» em
regiões inóspitas, passando necessidades «engolindo» alimentos apodrecidos, vencendo o medo que se tem face ao
«pelouro ardente que assovia» e ao ver os companheiros ficarem mutilados, sem «pernas»ou sem «braços» ,
aprendendo a desprezar as «honras e dinheiro» dadas pela sorte («…que a ventura /Forjou…») e não obtidas pela
virtude e valor próprios(« …não vertude justa e dura.»).

Est. 99 – Desta forma se cria um entendimento sereno da vida certo de que ela passa ( «Destarte se
esclarece…humano embaraçado.»)e só esse será o caminho justo e certo sem compadrios nem favoritismos,«Direito
e não de affeitos ocupado», para se chegar a ilustre mando sem pedidos.
Nota – Estas estâncias, particularmente a 98 e 99, contêm a afirmação, única na obra de Camões, de que o Homem
pode escolher o seu percurso de vida e determinar-se impondo a sua própria vontade.

Principais recursos expressivos:


 Sinédoque – Moscóvia - toma-se a parte, principado de Moscovo, pelo todo que é a Rússia do Norte, famosa
pelas martas, animal valioso pela pele que fornece.
 Adjectivação – hórridos, graves – realça o esforço gigantesco que o Homem tem de fazer para se ultrapassar a si
próprio e alcançar a imortalidade. A anteposição do adjectivo hórridos em relação ao nome, reforça a sua carga
semântica e evidencia a sua forte sonoridade.
 Paralelismo anafórico e anáfora - «Não encostados… Não nos leitos… Não cós…» -traduzem a ideia do poeta
da necessidade do Homem recusar a fama imerecida. Insiste na ideia de que o Homem pode escolher o seu
percurso de vida e autodeterminar-se.
 Metáforas - «calo honroso» e «corrupto mantimento» - intensificam a ideia de sofrimento necessário para se
alcançar a fama.
 Conjunção adversativa - Mas (est.. 97) – Nas estrofes anteriores o poeta enumerou uma série de vícios que não
conduzem à fama. Usando este articular com valor de oposição o poeta passa a enumerar as virtudes que
conduzem o Homem à fama e à imortalidade.

Canto VII (est. 78 – 87)

Acontecimento motivador das reflexões – Após o desembarque de Vasco da Gama o Catual visita a nau capitaina,
onde é recebido por Paulo da Gama, a quem pergunta o significado das figuras presentes nas bandeiras de seda.

Reflexões do poeta
Nesta reflexão Camões queixa-se da ingratidão de que é vítima. Ele que sonhava com a coroa de louros dos poetas,
vê-se votado ao esquecimento e à sorte mais mesquinha, não lhe reconhecendo, os que detêm o poder, o serviço que
presta à Pátria. Usando um texto de tom marcadamente autobiográfico Camões faz referência a várias etapas da sua
vida. O poeta exprime um estado de espírito bem diferente do que caracterizava, no Canto I, a Invocação às Tágides
- «cego, … insano e temerário», percorre um caminho «árduo, longo e vário», e precisa de auxílio porque, segundo
diz, teme que o barco da sua vida e da sua obra não chegue a bom porto. Uma vida que tem sido cheio de
adversidades, que enumera: a pobreza, a desilusão, perigos do mar e da guerra, «Nua mão sempre a espada e noutra a
pena», Como não ver neste retrato a intenção de espelhar o modelo de virtude enunciado em momentos anteriores?
Em retribuição, recebe novas contrariedades - de novo a critica aos contemporâneos, e o alerta, para a inevitável
inibição do surgimento de outros poetas, em consequência de tais exemplos. Mas a crítica aumenta de tom na parte
final, quando são enumerados aqueles que nunca cantará e que, implicitamente, denuncia abundarem na sociedade do
seu tempo: os ambiciosos, que sobrepõem os seus interesses aos do «bem comum e do seu Rei», os dissimulados, os
exploradores do povo, que não defendam "que se pague o suor da servil gente". No final, retoma a definição do seu
herói - o que arrisca a vida «por seu Deus, por seu Rei».

Est. 78 – O poeta invoca as Ninfas do Tejo e do Mondego primeiro porque vai dar início, através da voz de Paulo
da Gama, à narrativa da História de Portugal e para isso precisa de ajuda sobrenatural; em segundo lugar, porque,

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percorre um caminho «árduo, longo e vário», e segundo diz, teme que o barco da sua vida e da sua obra não chegue a
bom porto. São tantas as adversidades, que ao longo da vida lhe têm surgido, que receia não conseguir alcançar os
seus objectivos: terminar o poema e imortalizar os portugueses e a História de Portugal.

Est. 79 – O poeta realça a sua persistência no cumprimento da sua missão como poeta, «…cantando/O vosso Tejo
e os vossos Lusitanos», como viajante «Agora o mar…» e como guerreiro «…agora exprimentando/Os perigos
Mavórcios inumanos.», em suma, como um verdadeiro humanista «Nua mão sempre a espada e noutra a pena.

Est. 80 e 81– O poeta faz referência aos seguintes aspectos da sua vida:
- à pobreza, à errância e ao desterro (est.80 vv.1,2);
- às desilusões (est. 80 vv.3,4);
- ao naufrágio sofrido na foz do rio Mecon, do qual escapou com vida e salvou o manuscrito do poema (est. 80 vv.5
a 8);
- às expectativas frustradas pelo facto daqueles que detêm o poder não reconhecerem a grandiosidade da sua obra
(est. 81, vv. 1 a 4);
- ao sofrimento causado pela insensibilidade dos detentores do poder que, para além de não lhe darem as «capelas de
louro» em sinal de reconhecimento ainda lhe «lhe inventaram mais trabalhos».

Est. 82 – Recorrendo à ironia, o poeta chama a atenção das Ninfas para estes «engenhos de senhores» que o «Tejo
cria valerosos», denunciando o menosprezo destes pelos escritores e alertando para as consequências futuras da
separação entre escritores e senhores.

Est. 83 – O poeta pede inspiração às Ninfas, «vosso favor …./Dai-mo vós, sós » para continuar a cantar os
portugueses que o mereçam,«que eu tenho já jurado/Que não no empregue em quem o não mereça».

Est. 84 a 86 – O poeta enumera aqueles que considera como seus preteridos e indignos do seu canto:
- quem antepuser o seu próprio interesse ao do bem comum e ao do rei(84, vv. 1,2);
- os ambiciosos que pretendem subir a «grandes cargos» com o objectivo de «com torpes exercícios» satisfazerem os
seus vícios;
- os egoístas, hipócritas e falsos que mudam de acordo com os seus interesses (85, vv. 1 a 4);
- os que para ficarem bem vistos pelo Rei não hesitam em explorar, «despir e roubar o pobre povo»;
- os que são muito diligentes e severos no cumprimento da lei do Rei, mas exploram o povo (86, vv.1 a 4);
- os exploradores que se empenham em aplicar impostos e não pagam com justiça os «trabalhos» dos outros (86, vv.
5 a 8).

Est. 87 – O poeta termina o seu discurso afirmando que cantará somente os heróis que arriscam a vida «por seu
Deus» e «por seu Rei»

Principais recursos expressivos:


- Metáfora - «Por alto mar … que meu batel se alague cedo…»- remete para as adversidades que surgem quer na
realização da sua obra quer na sua vida.
- Adjectivação múltipla - «caminho tão árduo, longo e vário…» - reforça as dificuldades da vida do poeta.
- Anáfora - «Agora….Agora…» - realça a variedade de situações e estados de alma do sujeito poético e cria um
efeito de simultaneidade de vivências.
- Anáfora – «Nenhum» (pronome) e «Nem» (conjunção) – estes dois elementos linguísticos apresentam uma carga
negativa e servem para o sujeito poético enumerar e destacar os que considera indignos do seu canto.
- Ironia (est 82) – Recorrendo às frases exclamativas e ao valor conotativo do adjectivo «valerosas», o sujeito poético
critica o menosprezo dos poderosos pelos escritores e alerta para as consequências futuras desse divórcio entre
escritores e senhores que levará à estagnação artística.

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Canto VIII (est. 96 – 99)

Acontecimento motivador das reflexões – Traição e suborno do Catual. Regresso de Gama às naus.

Reflexões do poeta
Nesta reflexão o poeta retoma a função pedagógica do seu canto e apontando para um dos males da sociedade sua
contemporânea, orientada por valores materialistas e faz uma severa crítica: o alvo é o poder corruptor do dinheiro e
do «ouro». A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos navegadores, são agora
enumerados os efeitos perniciosos do ouro - provoca derrotas, faz dos amigos traidores, mancha o que há de mais
puro, deturpa o conhecimento e a consciência; os textos e as leis são por ele condicionados; está na origem de
difamações, da tirania de Reis, corrompe até os sacerdotes, sob a aparência da virtude.

Est. 96 – Os primeiros quatro versos pertencem à sequência narrativa: Gama regressa às naus e espera para ver o que
acontece.
No verso cinco o poeta inicia a sua reflexão sobre a corrupção, «…o vil interesse e sede immiga/ Do dinheiro que a
tudo nos obriga», tanto «no rico assi como no pobre».

Est. 97 – O poeta exemplifica o seu ponto de vista através de exemplos míticos: o Rei Treício, exemplo de um
senhor rico, apodera-se do ouro que Polidoro levava e mata-o; Tarpeia, a mulher romana que deveria abrir as portas
da cidade, exemplo de um ser pobre, também morre.

Est. 98 a 99 – O poeta enumera os actos de corrupção, mostrando que eles percorrem todas as classes sociais e em
particular as elites:
- Entregam-se bem fortificadas «fortalezas» (98, v.1);
- Atraiçoam-se os amigos (98, v.2);
- Os nobres cometem baixezas, atraiçoando os capitães (98, vv. 3,4);
- Corrompem-se as virgens (98, vv. 5,6);
- Mistifica-se a ciência (98, vv. 7,8);
- Interpretam-se os textos de acordo com as conveniências (99, vv.2,3);
- Alteram-se as leis (99, v.3)
- Fazem-se difamações (99, v. 4);
- Os Reis tornam-se «mil vezes tiranos» (99, v.5)
- Corrompem-se os sacerdotes que, apesar de hipocritamente terem uma aparência de grande virtude, se deixam
seduzir pelo ouro. (99, vv. 6 a 8).

Principais recursos expressivos


- Antítese – «rico… pobre» (est.96) – evidencia que o poder corruptor do dinheiro surge em todas as classes sociais.
- Adjectivação - «metal luzente e louro» (est. 97) – realça o poder do vil metal especialmente através da sensação
visual que provoca.
- Anáfora - «Este…» - a repetição do pronome demonstrativo insiste no poder corruptor do dinheiro, salientando
que a maior parte dos desvios em relação aos valores que o Homem devia preservar se devem à ganância e à cobiça
motivada pelo ouro.
- Oxímoro - «faz e desfaz» (est. 99) – através da contradição com a mesma palavra mães realça-se a facilidade com
que as leis são alteradas.
- Hipérboles - «mil vezes Reis… mil vezes ourives» (est. 99) – através deste exagero prova-se que ninguém está
imune ao valor vil do dinheiro: nem os Reis que já são ricos, nem os sacerdotes que, segundo os valores cristãos, não
deviam interessar-se por questões materiais.

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Canto IX (est. 51- 87 – Ilha dos Amores; est. 88 – 92, v.4 – Significado da ilha; est. 92, v. 5 – 95 Exortação
do poeta dirigida aos que suspiram por imortalizar o seu nome).

Estando os navegantes na viagem de regresso a Portugal, Vénus prepara-lhes, com a ajuda das ninfas e de seu filho,
Cupido, uma recompensa pelos perigos e tormentas que enfrentaram, vitoriosos. Fá-los aportar a uma ilha
paradisíaca, povoada de ninfas amorosas que lhes deleitam os sentidos. Numa atitude estudada de sedução, as
divindades fingem assustar-se com a presença dos marinheiros, mas logo se rendem aos prazeres do amor. Esta ilha
não existe na realidade, mas na imaginação, no sonho que dá sentido à vida. O sonho que permite atingir a plenitude
da Beleza, do Amor, da Realização. A grandeza dos Descobrimentos também se mede pela grandeza do prémio, e
esse foi o da imortalidade, simbolicamente representada na união homens-deusas o que faz com que os Portugueses
deixem de ser simples mortais, transcendam a condição humana e recebam os dotes de uma experiência divina – são
heróis - por isso poderão regressar à Pátria sem perigo. Através deste contacto deusas-heróis, estes tornam-se imortais
bem como a História de Portugal. O poeta não perde o ensejo, no final do Canto, de esboçar o perfil dos que podem
ser "nesta ilha de Vénus recebidos", reiterando valores como a justiça, a coragem, o amor à Pátria, a lealdade ao Rei.
No canto X, no banquete com que homenageiam os navegantes (est. 1-4), uma ninfa profetiza futuras vitórias dos
portugueses (est.5-7). Tétis, a ninfa com cujo amor Vasco da Gama fora premiado, condu-lo agora ao cume de um
monte para lhe mostrar a "Máquina do Mundo" (est. 74-90) e lhe dar a noção do que será o Império Português. É o
auge da glorificação - Vasco da Gama vê o que só aos deuses é dado ver. É a glorificação simbólica do conhecimento,
do saber proporcionado pelo sonho da descoberta. O "bicho da terra tão pequeno" venceu as suas próprias
limitações e foi além "do que prometia a força humana". A nível da estrutura do poema, significativamente, os três
planos sobrepõem-se: os viajantes confraternizam com as entidades mitológicas e ouvem a História de Portugal
futura.

Est. 51 – Viagem de regresso e avistamento da «Ilha namorada».


Est. 52 – Aparecimento e início da descrição da ilha feita através de uma gradação decrescente, do geral «De longe a
Ilha viram, fresca e bela/ Que Vénus pelas ondas lha levava» para o particular.

A descrição da Ilha obedece a um rigor na apresentação dos elementos que a constituem seguindo as regras usadas
para a descrição de uma paisagem real como se pode verificar:

Elementos Adjetivos ou expressões adjetivas Sensações


 enseada curva e quieta
 areia branca
 conchas ruivas
 Visuais
fermosos… com soberba
- «branca areia»
 três outeiros graciosa…de gramíneo esmalte se
- «ruivas conchas»
adornavam
Est. 53 a 55 - «claras fontes e límpidas»
Aspecto geral  fontes claras … límpidas - - «…verdura tem viçosa»
 verdura viçosa - «pedras alvas»
- «Arvoredo»
 pedras alvas
 Auditivas
 ribeiros de águas claras - «sonorosa linfa»
 vale ameno
 arvoredo gentil

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Elementos Adjetivos ou expressões adjetivas Sensações
 laranjeira
 Visuais
 cidreira - «a cor que tinha Dafne nos
 árvores agrestes cabelos»
Est. 56 a 57  álamos - «..pesos amarelos»
Árvores  loureiros
 Olfativas
 mirtos
- «pomos odoríferos»
 pinheiros - «limões ali, cheirando»
 ciprestes agudo Laranjeira, cidreira, loureiros

Elementos Adjetivos ou expressões adjetivas Sensações


 cerejas purpúreas  Visuais
 pêssegos - «cerejas purpúreas»
 amoras - «a romã … rubicunda cor»
Est. 58 a 59 - «cachos roxos e verdes»
 romã rubicunda
Frutos - «peras piramidais»
 uvas jucunda, roxas, verdes
 Gustativas
 peras piramidais - «Os dões…diferentes nos sabores»;
as diversas frutas

Elementos Adjetivos ou expressões adjetivas Sensações


 narcisos
 anémonas  Visuais
 violetas da cor dos amadores - «... e na terra as mesmas cores…»
 lírio roxo -« as violetas»
Est. 60 a 62
- «o lírio roxo»
(até ao v.6)  rosa fresca, bela
Flores
 açucena cândida  Olfativas
 manjeronas - «violetas»
- «manjeronas »
 jacintos agudo
 boninas

Elementos Adjetivos ou expressões adjetivas Sensações


 cisne níveo  Visuais
 rouxinol - «níveo cisne»
Est. 62 e 63  veado -«água cristalina»
(est.62 desde
 lebre fugace
v.7)  Auditivas
Animais  gazela tímida
- «aves no ar cantando voam»
-« níveo cisne canta»
 passarinho leve -

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Elementos Adjetivos ou expressões adjetivas Sensações
 Visuais
- «belas Deusas»
Est. 64 e 65 -«arcos de ouro»
Habitantes da  Auditivas
 deusas incautas … belo corpo …
Ilha - «doces cítaras tocavam»
-« harpas e sonoras flautas»
- «o lírio roxo»

Nota – Não há dúvida que a Ilha dos Amores apresenta uma das mais belas descrições da nossa literatura clássica: o
Poeta, utilizando uma gradação decrescente, partindo do geral para o particular, apresenta esse locus amoenos
seguindo as regras da descrição duma paisagem real.

Est. 64 – Os marinheiros desembarcam na Ilha Namorada onde as «belas Deusas» se deixam andar como incautas.
Argonauta foi o nome dado aos navegantes que, a bordo da nau Argos, fizeram a primeira viagem marítima,
percorrendo o mar Negro.

Est. 65 – As Ninfas mostram-se (esta estância não consta no manual)

Est. 66 e 67 – Os marinheiros colocam os pés em terra e perseguem as Ninfas.

Est. 68 – Descobrem-se as Ninfas.

Est. 69 e 70 (v. 2) – Exortação de Veloso «Senhores (…) /Sigamos estas Deusas, e vejamos/Se fantásticas são, se
verdadeiras.» e início da perseguição das Ninfas

Est. 70 (vv. 3 a 8) a 74 – perseguição das Ninfas «Isto dito, velozes mais que gamos, /Se lançam a correr pelas
ribeiras. /Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos…».
Est. 75 a 82 – Aventura de Lionardo, marinheiro sem sorte aos amores, é o único que terá de correr durante mais
tempo atrás da sua Ninfa.

Est. 83 e 84 – Casamentos entre Ninfas e Navegantes.

Est. 85 e 86 – Tethis, divindade marinha e a mais célebre de todas as Nereidas, dá a Vasco da Gama a razão deste
maravilhoso encontro.

Est. 87 – Tethis toma Gama pela mão e leva-o até ao seu palácio.

Est. 88 a 92 (v.4) – Sentido alegórico da ilha.

Est.88 – Este repouso é compensação de «trabalhos tão longos» e «o prémio bem merecido»

Est. 89 - As Ninfas, Tethis e a «Ilha angélica pintada» constituem as «deleitosas honras, os triunfos, a coroa de
louros (símbolo de honra, de vitória, de glorificação).
Est. 90, 91 92 (vv. 1 a 4) - Afinal também os deuses inventados na Antiguidade («…imortalidade que fingia a
antiguidade») eram deuses porque os homens os tinham transposto a esse estado glorioso, pelas grandes façanhas,
«obras valerosas», pelo «trabalho imenso que se chama/Caminho da virtude, alto e fragoso» (pedregoso) que tinham
realizado enquanto homens («O mundo cos varões que esforço e arte/Divinos os fizeram sendo humanos;/Que
Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte…/Todos foram de fraca carne humana»). Este percurso de árduo trabalho tornou-
se «no fim, doce, alegre e deleitoso» porque estes deuses, anteriormente humanos, receberam como «prémio» e
recompensa o Olimpo (a glória) e a Fama exaltando-lhes tais «obras» contribuiu para que passassem ser chamados de
«Deuses», de heróis, de Magnos.

45
Acontecimento motivador das reflexões – Encontro dos marinheiros com as Deusas - Ilha dos Amores.

Exortação e reflexão do poeta : exortação dirigida aos que aspiram a imortalizar o seu nome. O poeta retoma a
função pedagógica do seu canto e apontando para um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada

Est. 92 a 95 - O poeta dirige-se a todos os que aspiram a ser heróis exortando-os a:


- despertar «já do sono ignavo», fugindo da indolência deprimente, que torna as almas escravas (est.92, vv.5 a 8);
- refrear a cobiça, a ambição, o «torpe (desonesto) e escuro/Vício da tirania» porque não acrescentam valor a
ninguém: a recompensa deve ser alcançada através de esforço árduo, de honestidade de rectidão e não de forma
desonesta. Por isso, o Poeta afirma que é preferível merecer os prémios (honras e riquezas) e nunca ser
recompensado, do que não merecer esses prémios e, de forma desonesta, sórdida e desprezível, ser recompensado.
(est. 93, vv. 4 a 8);
- fazer leis equitativas (justas) que não dêem aos «grandes» o que é dos «pequenos» (est. 94, vv. 1,2)

46
- lutar contra os «Sarracenos» (Mouros)

Seguindo estes conselhos, todos os que quiserem alcançar a glória e a fama, sairão vencedores:
- os reinos tornar-se-ão mais fortes e todos ganham (est. 94 vv.5 e 6);
- as riquezas serão atribuídas àqueles que, por mérito próprio as merecerem (est. vv. 7,8);
- o Rei sairá glorificado através dos conselhos e da ajuda na militar que os tornará dignos dos seus antepassados (est.
95, vv. 1 a 4);
Seguindo estes conselhos e guiando-se por valores como a justiça, a coragem, o amor à Pátria e a lealdade ao Rei,
serão inscritos («numerados» est. 95, v.6) com «entre os heróis esclarecidos» e acolhidos na Ilha de Vénus.

Principais recursos expressivos


- Antítese – «livre… escravo» (est.92) – evidencia a ideia de que a liberdade se pode tornar numa derrota, se estes
que aspiram a heróis não despertarem da apatia em que se encontram.
- Hipérbole - «Tomais mil vezes» (est. 93, v.3) - permite uma crítica mais acutilante.
- Quiasmo – «Melhor é merecê-los (1) sem os ter (2) /Que possuí-los(3) sem os merecer(4)» (est. 93). Emprego de
palavras ou expressões agrupadas duas a duas, cuja ordem se inverte, num esquema de paralelos que faz lembrar o X
(o 1º elemento corresponde ao 4º e o 2º elemento ao 3º): destaca um dos valores essenciais do humanismo –o
homem só pode obter o prémio se o tiver merecido. Daí que é um desprestígio obter honras sem as merecer.

Canto X (est. 144 – 156)

Acontecimento motivador das reflexões – Após o banquete oferecido por Tethys, esta mostra a Gama uma miniatura
do Universo, descobrindo, no globo terrestre, os lugares, onde os Portugueses vão praticar altos feitos e despede-se
dos marinheiros que embarcam. Chegada à Pátria

Est. 144 – A viagem de regresso corre com tranquilidade como se pode verificar pelos adjectivos e advérbios usados
«mar sereno (…)/Com vento sempre manso e nunca irado (», bem como pelo uso da conjugação perifrástica «foram
cortando o mar». A armada entra «no Tejo ameno» e entregam os prémios à Pátria e ao Rei, concedendo-lhe novos
títulos «E com títulos novos se ilustrou».

Est. 145 – O Poeta invoca a Musa «No mais, Musa, no mais...» e desabafando, mostra-lhe o seu cansaço e o seu
desânimo «que a Lira tenho/ Destemperada e a voz enrouquecida,», por verificar que canta «a gente surda e
endurecida» e que a Pátria não reconhece o seu trabalho, não o aplaude («o favor com que mais se acende o
engenho»), pois está cega pela cobiça«que está metida/No gosto da cobiça e da rudeza…».

Est. 146 – O Poeta refere que não sabe por que a Pátria se encontra assim, por isso, dirige-se ao Rei, pedindo-lhe
dizendo-lhe que os seus vassalos são excelentes, mesmo quando comparados com outros povos «(e vede as outras
gentes)».

Est. 147 – Continuando com um discurso apelativo, pede ao Rei que veja como os seus vassalos são corajosos e
bravos como «leões e touros» tanto na terra como no mar: na guerra, nas conquistas de «quentes regiões a plagas
frias», na expansão da fé cristã e no espírito de cruzada, «A golpes de Idolatras e de Mouros», e nas navegações «A
naufrágios, a pexes, ao profundo».

Est. 148 – Estes vassalos estão sempre preparados, «aparelhados» para servir o Rei, mostrando obediência e
lealdade («sempre obedientes/A quaisquer vossos ásperos mandados,/sem dar resposta, prontos e contentes»),
coragem para enfrentarem «Demónios infernais, negros e ardentes», o fará com que D. Sebastião seja um vencedor e
nunca um vencido («Que vencedor vos façam, não vencido»).

Est. 149 – Atendendo à excelência que D. Sebastião tem no seu reino, o Poeta pede-lhe que os favoreça com a sua
presença e que os liberte de leis rigorosas. Aconselha-o ainda a prestar especial atenção aos mais velhos («os mais

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experimentados levantai-os») porque estes têm o saber possuem um saber de experiência feito e, por isso, «sabem O
como, o quando, e onde as cousas cabem».

Est. 150 – Pede-lhe que seja justo e que reconheça a competência, «talento», dos seus vassalos nos «ofícios»
(profissão/trabalho) que desempenham. Assim deve reconhecer o trabalho do «bom religioso» que cumpre com as
suas obrigações e não se deixa levar pela «Glória vã» nem pelo «dinheiro».

Est. 151 – Pede-lhe que respeite que tenha «em muita estima» os Cavaleiros que de forma corajosa espalham «não
somente a Lei de cima» (a Fé), mas também o «Império», «vencendo» a oposição de «os vivos» e «os trabalhos
excessivos».

Est. 152 – Por tudo isso, o Rei não poderá permitir que os outros povos «Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses»
possam alguma vez dizer que os Portugueses foram feitos para serem «mandados». Pede-lhe que «só» ouça os mais
velhos, «Que viram largos anos, largos meses» pois são os que têm experiência para melhor o poderem aconselhar.

Est. 153 – Para reforçar a importância do saber de experiência feito, refere como Aníbal, general cartaginês,
«escarnecia» de Formião, filósofo grego, por este falar teoricamente da guerra, «das artes bélicas», quando estas só
se «aprendem» através da experiência «vendo, tratando e pelejando».

Est. 154 – O Poeta volta o discurso para si «Mas eu», questionando-se sobre quem é. Mostrando que tem
consciência do seu valor, refere não lhe «falta na vida honesto estudo, /Com longa experiência misturado»,
conhecimentos teóricos e muita experiência, nem «engenho» (talento), «Coisas que juntas se acham raramente». O
estudo, a experiência e o engenho constituem os princípios fundamentais do Humanismo e, por conseguinte, do
Homem Humanista.

Est. 155 – 156 – O Poeta coloca-se à disposição do Rei: como guerreiro, «braço às armas feito»; como poeta e com
o seu engenho para o exaltar «Pera cantar-vos, mente às Musas dada», cantando as proezas futuras, «como a pressaga
mente o vaticina», quer de D. Sebastião, quer dos Portugueses. Falta-lhe, no entanto, ser por ele reconhecido «Só me
falece ser a vós aceito». Se «isto» o «Céu» lhe conceder ou se D. Sebastião e os Portugueses fizerem tremer de horror
o monte Atlante, vencendo os Mouros promete «que em todo o mundo de vós cante», de tal forma que Alexandre
«em vós se veja» (se reveja em D. Sebastião), sem ter «inveja à dita (glória) de Aquiles.

Principais recursos expressivos


- Perífrase– «vista do terreno/Em que naceram» (est. 144) – evidencia que o poder corruptor do dinheiro surge em
todas as classes sociais.
- Adjetivação - «Dua austera, apagada e vil tristeza» (est. 145) – a tripla adjectivação com uma carga negativa intensa
e usada para caracterizar um substantivo também ele com um efeito negativo, permitem a hiperbolização com que
realça o poder do vil metal especialmente através da sensação visual que provoca.
- Antíteses – «quentes regiões, a plagas frias» (est.147) – evidencia que estes súbditos são excelentes em locais
díspares e inóspitos.
- «Que vencedor vos façam, não vencido» (est.148) – jogando com palavra com a mesma raiz e com o advérbio de
negação, reforça a certeza de que D. Sebastião será um vencedor.
- Sinédoque - «monte Atlante…campos de Amplusa…Trudante…» (est. 156) através de algumas partes designa-se
o todo – Norte de África (actualmente Marrocos) - território extenso e dominado por Mouros, o que realça o
espírito de cruzada sempre presente em todo o poema.

48
Mensagem
Génese; contextualização; saudosismo e o épico-lírico da obra
A Mensagem, publicada em 1934, é uma coletânea que reúne poemas de carácter
nacionalista e sebastianista.
Na opinião do poeta, havia-se perdido a identidade pessoal, os feitos heróicos perderam-
se como tempo e só já restava a memória. Então, nada melhor que recuperar um mito para
fazer ressurgir das cinzas uma nação ("O mito é o nada que é tudo", em "Ulisses").
Pessoa acreditava no destino messiânico de Portugal e acreditava também que o
saudosismo que preenchia os corações dos portugueses poderia ser o ponto de partida, a
motivação para a tentativa de recuperação de uma imagem que morrera como passado.
Camões cantara os feitos gloriosos dos portugueses, na época dos Descobrimentos; Fernando
Pessoa pretendeu essencialmente enobrecer a maneira grandiosa que está subjacente à
realização dos acontecimentos que engrandeceram a História nacional. Nesta obra, são
enunciados factos históricos, exaltados de uma maneira que faz ecoar a epopeia, contudo,
sentidos por um "eu" que impregna os poemas de uma subjectividade misturada de uma
simbologia que não permite uma interpretação ingénua dos mesmos. Assim, a Mensagem,
apesar de possuir um carácter lírico, apresenta uma faceta épica, carácter épico-lírico, diferente
da de Camões (que cantava os feitos gloriosos de um herói), pois o poeta modernista enaltece
a heroicidade do ser humano, através da espiritualização progressiva, tirando partido do mito
sebastianista. Através do sonho, poder-se-ia construir um império perfeito e espiritual que
teria como finalidade a construção da paz universal.
A hipótese de salvação e regeneração que D. Sebastião representa para o povo português é
a base desta obra, pois é a partir do mito que se deve tentar transformar a realidade.
Já quando da sua participação na revista A Águia, Fernando Pessoa se revelava
sebastianista, prevendo até o aparecimento de um Super-Camões, cantor do Quinto Império,
que seria um Super-Portugal. Este Quinto império, já vaticinado por Padre António Vieira,
profeta e visionário, não é um império terreno, mas sim espiritual. Pessoa opõe ao
sebastianismo passadista e tradicional um outro para o futuro, concretamente virado para a
construção de um império da língua e cultura portuguesa ("Minha pátria é a língua
portuguesa", Fernando Pessoa).
O que Fernando Pessoa realiza, através da Mensagem, é um apelo para que se entenda que
os feitos do passado não se extinguiram – na sua essência, existe uma força propulsora cujo
dinamismo é a própria natureza humana, que se projecta sempre que há um ideal ("Deus
quer, o homem sonha, a obra nasce", em "O Infante").
A literatura assumia, para o poeta, um papel importantíssimo, capaz de influenciar várias
épocas e transmitir civilização. Como tal, o autor da Mensagem acreditava que, através da sua
produção literária, realizaria o seu grande objetivo: arrancar Portugal do século XX, da
estagnação que o caracterizava, lançando no país a agitação que permitiria ao português sentir
novamente a ânsia da sua grandeza esquecida e vivida numa nostalgia sem brilho nem
esperança. O importante é ser-se genuíno e que, como os portugueses do século XV, se
contribua para a construção de um império unificador e cultural que se encontra para além do

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material. A missão dos portugueses ainda não está cumprida, isto é, a conquista do mar não
foi suficiente; há que sonhar novamente para se cumprir Portugal ("Cumpriu-se o Mar, e O
Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal!", em "O Infante").

A estrutura da obra
A Mensagem encontra-se dividida em três partes, cada a uma delas subdivididas
noutras. Esta tripartição é simbólica e tem como base o facto das profecias se realizarem três
vezes, ainda que de modo diferente e tempos diferentes. Corresponde à evolução do Império
Português que, tal como o ciclo da vida, passa pelo nascimento, realização e morte. Todavia,
esta morte não poderá ser entendida como um fim definitivo, visto que a morte pressupõe
uma ressurreição. Esta ressurreição culmina como aparecimento de um novo império, desta
vez não terreno, mas sim espiritual e cultural, a fim de atingir a paz universal ("E a nossa
grande Raça partira em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são
construídas daquilo de que os sonhos são feitos" - Fernando Pessoa).
Fernando Pessoa, que desejava ser um criador de mitos, apela ao mito sebastianista, à vin da de
um messias que viria cumprir Portugal. Assim, o Encoberto (D. Sebastião) foi o escolhido
para realizar o sonho do Quinto Império. Esta tarefa só seria cumprida com muita
determinação, loucura e sonho que tão bem caracterizam D. Sebastião ("Louco, sim, louco,
porque quis grandeza", em "D. Sebastião, Rei de Portugal").
Cada uma das partes da Mensagem começa com uma expressão latina, adequada à parte
simbólica a que pertence. Fernando Pessoa inicia a obra com a expressão latina Benedictus
Dominus Deus noster que deditno bissignum("Bendito o Senhor Nosso Deus que nos deu o
sinal") que nos remete para o carácter simbólico e messiânico que percorre a Mensagem. Cada
uma das partes do poema inicia-se também com uma expressão latina: na primeira surge
Bellum sine bello (Guerra sem guerra) a sugerir, pelo jogo de oximoros, que, no início, havia
um espaço que tinha de ser conquistado pois fazia parte de um desígnio; na segunda parte
ocorre Possessio maris (Posse do mar), a traduzir o domínio dos mares e a expansão; na
terceira parte, há uma Paxin excelsis (Paz nos céus), que marcará o Quinto Império. O poema
termina com um Valete Fratres (Felicidade irmãos), acreditando no desígnio de um reino de
fraternidade, graças ao Quinto Império, e assumindo um carácter de incentivo (“Força,
irmãos”) para a construção desse novo Portugal.
A 1ª parte - Brasão - faz desfilar os heróis lendários ou históricos, desde Ulisses a D.
Sebastião, ora invocados pelo poeta, ora definindo-se a si próprios. O poeta começa por fazer
a localização de Portugal na Europa e em relação ao Mundo, salientando a sua grandiosidade
e o valor simbólico do seu papel na civilização ocidental quando afirma “ O rosto com que
fita é Portugal!”; apresenta a definição do mito (de modo paradoxal, "O mito é o nada que é
tudo"), realçando o seu valor na construção da realidade; apresenta ainda o povo português
como sendo heróico, guerreiro e construtor do império marítimo; valoriza os predestinados,
responsáveis pela construção do país; refere as mulheres portuguesas, mães dos fundadores,
celebradas como “antigo seio vigilante” ou “humano ventre do império”.

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A 2ª parte - Mar Português - apresenta poesias inspiradas na ânsia do Desconhecido e no
esforço heróico da luta com o Mar. É nesta parte que o poeta salienta a grandeza do sonho
convertido em ação, unificando o ato humano e o Destino traçado por Deus. Surge a cabeça
desta parte o poema "O Infante", para vincar a relação entre o poder de Deus na criação, o
Homem como agente intermediário e a obra como resultado de toda esta relação lógica
("Deus quer, o homem sonha, a obra nasce"). Os outros poemas evocam as glórias e as
tormentas passadas, o que valeu a pena pois se concretizou o sonho dos Descobrimentos.
A 3ª parte - O Encoberto - apresenta o actual Império moribundo, Portugal baço "a
entristecer", pois "Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro."
("Nevoeiro"). Face a esta constatação, o poeta considera que chegou a hora de despertarmos
para a nossa missão: a constituição de um Quinto Império, um reino de liberdade de espírito
e de redenção ("Ó Portugal, hoje és nevoeiro... / É a Hora! ", em "Nevoeiro"). A Mensagem
termina com a expressão latina Valete Fratres ("Felicidade, irmãos"), um grito de felicidade e
um apelo para que todos lutem por um novo Portugal.
Mensagem recorre ao cultismo para criar o herói, o Encoberto, que se apresenta como D.
Sebastião. Note-se que o cultismo remete para um sentimento de mistério, indecifrável para a
maioria dos mortais. Daí que só o detentor do privilégio esotérico (= oculto/secreto) se
encontra legitimado para realizar o sonho do Quinto Império. Para Fernando Pessoa, só
alguns aparecem predestinados a decifrar o sentido das sombras do mundo sensível
(influência platónica). O nosso mundo sensível e Portugal só se cumprirão por força e
vontade criadora do mundo inteligível, onde está a ideia como verdadeira realidade perpétua e
essencial.

51
Memorial do Convento
Em 1711, decreta EL-REI D. João V que, por justus motivos, se erga na Vila de Mafra um convento a
Nossa Senhora e a Santo António, a ser entregue à Ordem dos Frades Arrábidos. D. João V escolhe o local (Alto da
Vela), compram-se os terrenos e iniciam-se as obras.
Desde o lançamento da primeira pedra, em 1717, à cerimónia de Sagração da Basílica, em 1730, o projeto,
sob a direção do arquiteto João Frederico Ludovice, sofreria inúmeras alterações, e de um convento para 13 frades
passar-se-ia a um palácio-mosteiro para 300.
Em 1730, a Real Obra de Mafra empregava tanta gente que se tornava difícil em qualquer outro lugar do
Reino encontrar um carpinteiro ou um balde de cal.
À exceção da pedra lioz de Pero Pinheiro e Sintra, quase tudo foi importado. Itália, Brasil, Holanda, França
e Antuérpia enviavam as encomendas de mármores, madeiras, esculturas, paramentos, baixelas, utensílios de culto,
sinos e carrilhões, e tudo pago com o ouro do Brasil, rapidamente transformado nas pedras de Mafra.
A 22 de Outubro de 1730, embora as obras ainda estivessem atrasadas, decidiu EL-REI que se celebrasse a
cerimónia de Sagração da Basílica, presidida pelo Cardeal Patriarca D. Tomás de Almeida, participando toda a
Família Real, Corte e representantes de todas as Ordens. Calcula-se que tenham assistido mais de 20 mil pessoas, sem
contar com os 45 mil operários, numa festa que durou oito dias e onde se ouviu pela primeira vez o som dos car-
rilhões.

Título
O título do romance remete para duas dimensões:
 dimensão temporal - o vocábulo "memorial" significa escrito em que se relatam factos
memoráveis, o que implica necessariamente um movimento de recuo no tempo;
 dimensão espacial - referência a um espaço concreto, um convento.

Classificação (tipo de romance)


Romance histórico, Memorial do Convento oferece-nos uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa do início
do século XVIII, marcada pela sumptuosidade da corte, associada à Inquisição, e pela exploração dos operários,
metaforicamente apreciados como se de tijolos se tratassem para a obra do convento de Mafra, A referência à guerra
da Sucessão, em que Baltasar se vê amputado da mão esquerda, a imponência bárbara dos autos-de-fé, a que não falta
a "alegria devota", a construção do convento, os esponsais da princesa Maria Bárbara, a construção da passarola
voadora pelo Padre Bartolomeu de Gusmão e tantos outros acontecimentos confirmam a correspondência
aproximada ao que nessa época ocorre e conferem à obra a designação de romance histórico,
Dentro da linha neorrealista, preocupado com a realidade social, em que sobressai o operariado oprimido, Memorial
do Convento apresenta-se também como um romance social ao ser crónica de costumes de uma época, reinterpretada
para servir os objetivos do autor empírico. E, nesta medida, pode afirmar-se como romance de intervenção que visa a
história repressiva portuguesa da primeira metade do século XX.
Note-se que o passado se presentifica e sugere um presente atuante, quer pela intemporalidade de comportamentos,
desejos ou anseios, quer pela denúncia de situações de opressão, repressão e censura no momento da escrita. Em
Memorio/ do Convento há uma tentativa de encontrar um sentido para a história de uma época que permita
compreender o tempo presente e recolher ensinamentos para o futuro.
Se optarmos por uma classificação de acordo com os elementos estruturais da narrativa - personagem, espaço e
acontecimento - designaremos por romance de espaço ao representar uma época, interessando-se por traduzir não
apenas o ambiente histórico, mas também por apresentar vários quadros sociais que permitem um melhor
conhecimento do ser humano. A riqueza do cenário, reconstruindo Lisboa e diversas povoações em seu redor,
permite observar as preocupações com os factos históricos e as vivências do povo humilde; espreitar a intimidade e os
deveres conjugais - "duas vezes por semana" - do rei D. João V, que necessita de herdeiros; assistir à construção de
um convento em Mafra; recordar a passarola voadora do Padre Bartolomeu Lourenço; ou reviver as perseguições
religiosas e políticas da Inquisição. Sempre que pode, uma voz narrativa insurge-se sarcasticamente contra os
repressores:

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"Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o retângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das
ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Ofício
para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é
certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul".

Em conclusão poderemos dizer que estamos diante de uma obra muito complexa que combina vários géneros de
discurso. Sendo fundamentalmente um romance histórico em que podemos distinguir longos trechos que se
assemelham a uma crónica da História, é um romance de espaço pela primazia que concede à pintura do meio
histórico e dos ambientes sociais nos quais decorre a intriga. Por outro lado contém em si, ligada por fios ténues à
história principal, uma belíssima história de amor.

Estrutura da obra
A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência de duas narrativas simultâneas: uma de carácter
histórico – a construção do convento de Mafra – e outra ficcionada – a construção da passarola que engloba a
história de amor entre Baltasar e Blimunda. Pela análise das sequências narrativas da obra, verifica-se a narrativa do
plano ficcional se cruza com a História, uma vez que a construção da passarola, evento a que a História se refere,
acaba por ser ficcionada quando se afirma que se moverá pela força das "vontades" que Blimunda recolhe.
A ação principal refere-se à concretização do plano de D. João V - a construção do convento. Mas nesta encaixam-se
outras ações, constituindo diferentes linhas de ação que se articulam com a primeira. Assim temos as seguintes linhas
de ação:
1ª linha de ação: A do rei D. João V – esta abrange todas as personagens da família real e relaciona-se com
a segunda linha de ação, uma vez que a promessa do rei é que vai possibilitar a construção do convento. Esta linha
tem como espaço principal a corte e, depois, o convento, na altura da sua inauguração, no dia de aniversário do rei.
2ª linha de ação: A dos construtores do convento – Esta é a linha da ação principal da história, a par da
quarta – a que respeita à construção da passarola. Esta segunda linha de ação vai ganhando relevo e une a primeira à
terceira: se o convento é obra e promessa do rei, é ao sacrifício dos homens, aqui representados por Baltasar e
Blimunda, que ela se deve. Glorificam-se aqui os homens que se sacrificam, passam por dificuldades, mas que também
vencem.
3ª linha de ação: A de Baltasar e Blimunda – Nesta linha relata-se uma história de amor e o modo de vida
do povo português. As duas personagens (Baltasar e Blimunda) são as construtoras da passarola; a figura masculina é
também, depois, construtora do convento, constituindo-se como paradigma da força que faz mover Portugal – o
povo.
4ª linha de ação: A de Bartolomeu Lourenço – Esta relaciona-se com o sonho e o desejo de construir uma
máquina voadora. Articula-se com a 1ª e 2ª linhas de ação, porque o padre é o mediador entre a corte e o povo.
Também se enquadra na 4ª linha, uma vez que a construção da passarola resulta da força das vontades que Blimunda
tem que recolher para que a passarola voe.

A AÇÃO
Construção do Convento de Mafra
Ocupa a parte mais extensa do enunciado narrativo. Nela estão presentes as relações entre a Coroa e a Igreja que
detêm o poder sobre o povo. Esta ação contempla a narração de eventos, de histórias variadas, de sonhos, de diálogos
entretecidos, bem como sentenças e comentários do narrador. É ainda possível observar interiores e exteriores,
pormenorizadamente descritos. São três os momentos fundamentais relacionados com o Convento de Mafra: a
escolha do local, o lançamento da primeira pedra, a sagração da Basílica.
A trama inicia-se com a promessa de D. João V mandar erigir em Mafra um Convento de franciscanos, caso a esposa
desse à luz um filho, no prazo de um ano.
Após o nascimento de uma princesa, em 1712, e do seu batizado, o rei cumprirá a sua promessa, lançando, em
Mafra, a primeira pedra do Convento, no dia 17 de Novembro de 1717.
As obras iniciam-se, sendo os trabalhadores recrutados à força. Os anos passam e o transporte de uma enorme pedra
de Pêro Pinheiro para Mafra ocupa uma longa sequência. D. João V pede ao arquiteto alemão João Frederico

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Ludovice que construa uma Basílica igual à de S. Pedro. Perante a impossibilidade de tal projeto megalómano, o rei
ordena que o Convento seja aumentado para instalar trezentos frades, agendando a sagração da Basílica para o ano de
1730, no dia do seu aniversário. Tal implica novo recrutamento, à força, de milhares de homens. Uma extensa
sequência é dedicada aos casamentos dos príncipes D. José e D. Maria Bárbara com D. Maria Vitória e D. Fernando,
respetivamente.
O transporte das estátuas dos santos provenientes de Itália constitui outra sequência.
A narrativa respeitante à construção do Convento termina com a sagração da Basílica (esta ocorre efetivamente no dia
do aniversário do rei, em 1730), cujas obras ainda estavam por terminar.

Construção da passarola (narrativa encaixada)


O sonho do Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão concretiza-se na construção da passarola. Esta narrativa
encaixada alterna irregularmente com a primeira, apresentando-se em sequências diferentes.
Na construção da passarola, na quinta de S. Sebastião da Pedreira, intervêm, além de Frei Bartolomeu, Baltasar e
Blimunda, mulher estranha cujo poder especial de vidência permitirá encher as esferas com as vontades que recolherá
entre os humanos. O primeiro voo da passarola é agitado, pois o Padre Bartolomeu, perseguido pela Inquisição,
apressa essa viagem extraordinária. A passarola voa sobre Lisboa, passando por Mafra e cai em Monte Junto. Nessa
noite, o Padre Bartolomeu desaparece e, mais tarde, é Domenico Scarlatti que dá informações sobre a sua morte em
Toledo.

O amor verdadeiro de Baltasar e Blimunda (narrativa encaixada)


O encontro entre Baltasar e Blimunda dá-se durante o auto-de-fé em que a mãe de Blimunda, Sebastiana, é condenada
ao degredo em Angola. Nessa mesma noite, o casal une-se, tendo sido anteriormente abençoado pelo Padre
Bartolomeu. A intensidade e perfeição deste amor será uma constante nesta relação de cumplicidade e entendimento
totais. Depois de Baltasar desaparecer, levado pela passarola, Blimunda procura-o durante nove anos. Encontra-o
num auto-de-fé, sendo Baltasar um dos supliciados pela Inquisição. Entre os condenados à morte está o infeliz
escritor António José da Silva, o Judeu.

Encaixe de outras narrativas


Trata-se de uma técnica narrativa que possibilita um determinado desvio da atenção do leitor no seguimento da
narrativa principal, para atentar em aspetos paralelos da História, personagens menos importantes, acontecimentos de
segunda ordem, mas que influenciam a linha diegética primeira.
Daí a necessidade de alargamento do número de sub-narradores neste romance e a intenção quase lúdica que parece
estar por detrás da sua utilização. É o que acontece já durante a descrição dos trabalhos do convento, num domingo
em que, depois da missa, Baltasar vai beber com outros companheiros.
Neste dia, são sete os narradores intradiegéticos que, cada um na sua vez, organizam pequenas narrativas secundárias
encaixadas na narrativa principal. Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes,
Julião Mau-Tempo e o próprio Baltasar Mateus são os narradores que, além de contarem as suas histórias pessoais,
apresentam visões particulares e restritas da História oficial e da construção do convento de Mafra. Estas focalizações
internas e feitas do ponto de vista de personagens desprivilegiadas vêm, mais uma vez, reforçar a ideia do romance
histórico.
(...) não é totalmente inocente a escolha de sete narradores para a narração de sete narrativas diferentes. Em cada
uma delas apercebemo-nos das diferentes realidades vividas no país pela classe popular, em tudo diferentes da vida na
corte que também o texto retrata de forma soberba. Desde o interior ao litoral, do norte ao sul, a construção do
convento tornou-se num projeto nacional e os homens nas pedras da sua construção, força braçal indefinida que o
narrador não quer ver esquecida.
O relato destas sete pequenas narrativas pretende funcionar como uma pequena parte de todas aquelas que os
vinte mil homens que ergueram o convento devem ter trocado entre si, enquanto bebiam, nos poucos momentos de
descanso a que tinham direito (…)

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Caracterização das personagens/aspetos simbólicos
Em Memorial do Convento há dois grupos antagónicos de personagens: a classe opressora, representada pela
aristocracia e alto clero, e os oprimidos, o povo.
No primeiro grupo destaca-se a atuação do Rei, enquanto que no segundo, além de Baltasar e Blimunda, se
integram o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, perseguido pela Inquisição, pela modernidade do seu espírito
científico, e Domenico Scarlatti que, pela liberdade de espírito e pelo poder subversivo da sua música, é uma figura
incómoda para o Poder.
É, ainda, importante referir que, em Memorial do Convento, as personagens históricas convivem com as fictícias,
conduzindo à fusão entre realidade e ficção.

D. João V
Rei de Portugal de 1706 a 1750, desempenha o papel de monarca de setecentos que quer deixar como marca do
seu reinado uma obra grandiosa e magnificente - o Convento de Mafra. Este é construído sob o pretexto de que
cumpre uma promessa feita ao clero, classe que "santifica" e justifica o seu poder. É símbolo do monarca absoluto,
vaidoso, megalómano, egocêntrico, e mantém com a rainha apenas uma relação de "cumprimento do dever" e, em
alguns momentos, pretende ser um déspota esclarecido, à semelhança dos monarcas europeus da sua época (favorece,
durante algum tempo, o projeto do padre Bartolomeu de Gusmão e contrata Domenico Scarlatti para ensinar música
a sua filha, a infanta Maria Bárbara).
Dado aos prazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos bastardos e a sua amante favorita era a Madre
Paula do Convento de Odivelas), sacrificou todos os homens válidos e a riqueza do país na construção do convento.

 Protagonista da ação
 Casado com D. Maria Ana Josefa, de Áustria, com a qual tem uma relação de dever conjugal e não de amor –
«D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que
chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.»
(p. 11)
 Libertino – «... abundam no reino bastardos da real semente...» (p. 11)
 Ainda não fez 22 anos, aquando da promessa da construção do Convento de Mafra «...um homem que ainda
não fez vinte e dois anos...» (p. 12)
 Caprichoso, diverte-se a construir uma miniatura da basílica de S. Pedro de Roma – «É uma construção sem
caboucos nem alicerces...» (p. 12)
 Megalómano, promete construir um convento em Mafra, inicialmente um pequeno empreendimento, que se
transforma num projeto megalómano, do mesmo modo que diz ao arquiteto do convento de Mafra que quer
construir na sua corte uma igreja como a de S. Pedra de Roma – «É minha vontade que seja construída na corte
uma igreja como a de S. Pedro de Roma» (p. 289), como se de uma brincadeira modular em miniatura se
tratasse. O guarda-livros adverte-o de que as finanças do reino não estão bem, mas o monarca diverte-se com a
situação: «Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês
passado me disseste o mesmo» (p. 293).
 Excessivo – «El-rei está a preparar-se para a noite. Despiram-no os camaristas...» (p.13).
 Rico e poderoso – «...senhor da Índia, África e Brasil...» (p. 116); «Medita D. João V no que fará a tão grandes
somas de dinheiro, a tão extrema riqueza...» (p. 234).
 Vaidoso, pretensioso, prepotente. Representa o poder autocrático – «Então é nesse dia que se fará a sagração da
basílica de Mafra, assim o quero, ordeno e determino, e quando isto ouviram foram os camaristas beijar a mão
do seu senhor...» (p. 300).

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Maria Ana Josefa
De origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é dar herdeiros ao rei para glória
do reino e alegria de todos. É símbolo do papel da mulher da época: submissa, simples procriadora, objeto da
vontade masculina.
 Beata, devota.
 Atormentada pelo facto de sonhar com o seu cunhado, o infante D. Francisco.
 Carinhosa, preocupada, cumpridora como esposa e como mãe.

Princesa Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara


 É a primeira filha de D. João Vede D. Maria Ana Josefa.
 Representa a subversão do ideal de beleza que caracteriza as princesas dos «contos de fadas», mas «...têm as
princesas tanta sorte que não perdem casamento por serem bexigosas e feias, assim convenha à coroa do senhor seu
pai». (p. 288).

D. Nuno da Cunha
 Bispo inquisidor que leva Frei António de S. José à presença de D. João V.

Frei António de s. José


 «Franciscano velho» e, consequentemente, portador da sabedoria e da experiência.
 Astuto, apresenta ao rei a solução para ter filhos: construir um convento franciscano em Mafra, o que era
desejado pelos franciscanos desde 1624.
 Arrábido, isto é, membro da Província Franciscana da Arrábida que, desde há muito tempo, aspirava à
construção de um convento na vila de Mafra.
 Morre antes do início da construção do Convento.

Baltasar Sete-Sóis
Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do
pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros.. (p. 35)
Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, deixa o exército depois de ter ficado maneta em combate contra os
espanhóis, conhece Blimunda em Lisboa, e com ela partilha a vida e os sonhos. De ex-soldado passa a açougueiro em
Lisboa e, posteriormente, integra a legião de operários das obras do convento. A sua tarefa máxima vai ser a
construção da passarola, idealizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão, passando a ser o garante da continuidade do
projeto, quando o padre Bartolomeu desaparece em Espanha. Baltasar acaba por se constituir como a personagem
principal do romance, sendo quase "divinizado" pela construção da passa rola: "maneta é Deus, e fez o universo. (...)
Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão de voar." (págs. 68-69)
– diz o padre Bartolomeu a propósito do seu companheiro de sonhos.
Após a morte do padre, Baltasar ocupa-se da passa rola e, um dia, num descuido, desaparece com ela nos céus. Só
é reencontrado, nove anos depois, em Lisboa, a ser queimado no último auto-de-fé realizado em Portugal.
O simbolismo desta personagem é evidente, a começar pelo seu nome: sete é um número mágico, aponta para
uma totalidade (sete dias da criação do mundo, sete dias da semana, sete cores do arco-íris, sete pecados mortais, sete
virtudes); o Sol é o símbolo da vida, da força, do poder do conhecimento, daí que a morte de Baltasar no fogo da
Inquisição signifique, também, o regresso às trevas, a negação do progresso.
Baltasar transcende, então, a imagem do povo oprimido e espezinhado, sendo o seu percurso marcado por uma
aura de magia, presente na relação amorosa com Blimunda, na afinidade de "saberes" com o padre Bartolomeu e no
trabalho de construção da passarola

 Protagonista da ação.
 Natural de Mafra, espaço de onde partira para «assentar praça na infantaria de sua majestade» (p. 36); «Estive
na guerra quatro anos e a minha terra é Mafra» (p. 63). No entanto, Baltasar Sete-Sóis, filho de Marta Maria e de
João Francisco, começara por trabalhar no campo.

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 Combateu na Guerra da Sucessão de Espanha.
 Vítima da guerra e da sociedade, é um herói abandonado à sua sorte por ter perdido a sua mão esquerda,
«estraçalhada por uma bala em frente a Jerez de los Caballeros».
 Descalço, o soldado, «de escapulário ao pescoço», pede esmola em Évora, onde consegue algumas moedas que
lhe permitem pagar ao ferreiro «o gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão».
 Tem 26 anos quando conhece Blimunda, que o descreve com as seguintes palavras: «só quero olhar para ti, cara
escura e barbada, olhos cansados, boca que é tão triste» (p. 83).
 Sente-se encantado por Blimunda, com a qual inicia uma relação de amor e cumplicidade.
 Em Lisboa, trabalha no açougue do Terreiro do Paço, sendo o seu trabalho «compensado por algumas sobras,
um pé de porco, uma franja de dobrada...» (p. 71).
 Desenvolve o projeto do padre Bartolomeu de Gusmão, construindo a sonhada «máquina de voar». Apesar de
ser iletrado, consegue descodificar o desenho do projeto da passarola, contribuindo para a marcha do progresso
tecnológico.
 Trabalha nas obras do convento de Mafra, após o primeiro voo da Passarola e o desaparecimento do padre
Bartolomeu de Gusmão.
 Baltasar é queimado pela Inquisição.

Blimunda Sete-Luas
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um
aperto na boca do estômago...» (p.55)

Blimunda de Jesus é "batizada" de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de Gusmão ("Tu és Sete-Sóis porque vês às
claras, (...) Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava,
que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um" - p. 94), conhece Baltasar quando assiste à partida de sua
mãe, acusada de feitiçaria, para o degredo.
Logo os dois se apaixonam, e este amor puro e verdadeiro foge às convenções, subvertendo a moral tradicional e
entrando no domínio do maravilhoso – cf. primeira noite de amor (págs. 56-57).
Blimunda tem um dom: vê o interior das pessoas quando está em jejum, herdou da mãe um "outro saber" e
integra-se no projeto da passarola, porque, para o engenho voar, era preciso "prender" vontades, coisa que só
Blimunda, com o seu poder mágico, era capaz de fazer.
Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que releva do domínio do maravilhoso, pelo dom que tem de ver
"o interior" das pessoas (poder que nunca exerce sobre Baltasar: "Nunca te olharei por dentro" - p. 57), porque amar
alguém é aceitá-lo sem reservas. Blimunda encerra uma dimensão trágica na vivência da morte de Baltasar.
Simbolicamente, o nome da personagem acaba por funcionar como uma espécie de reverso do de Baltasar. Para
além da presença do sete, Sol e Lua completam-se, são a luz e a sombra que compõem o dia – Baltasar e Blimunda
são, pelo amor que os une, um só.
A relação entre os dois é também subversiva, porque não existe casamento oficial e porque os dois têm os
mesmos direitos, facto inverosímil em pleno século XVIII.

 Protagonista da ação.
 Filha de Sebastiana Maria de Jesus, vítima da Inquisição, condenada ao degredo para Angola, sob a acusação de
que as suas visões e revelações eram fingimento e efeitos demoníacos.
 É sensível e carinhosa, mas reprime o choro quando vê a mãe no auto-de-fé, embora comunique com ela por
pensamento e chore copiosamente quando chega a casa.
 Tem 19 anos, quando conhece Baltasar, no espaço onde se realizava o auto-de-fé de Sebastiana Maria de Jesus, a
mãe de Blimunda.
 Corpo «alto e delgado» (p. 55) e «espessos cabelos […] cor de mel sombrio» (p. 91).
 Blimunda é uma personagem mística, dotada de poderes sobrenaturais. Durante o período da lua nova,
Blimunda não tem «mais olhos que os de toda a gente», o que lhe «dá paz e alegria» (p. 149).

57
 Vive com Baltasar sem estabelecer uma relação de casamento contratual, subvertendo as tradicionais convenções
matrimoniais. «Tens dormido com ela, Vivo lá, Repara que estão em pecado de concubinato, melhor seria
casarem-se» (p. 65).
 O padre Bartolomeu põe-lhe o epíteto de Sete-Luas.
 Colabora na construção da passarola, projeto que mostra a capacidade inventiva do Homem e a importância do
sonho no devir da História.
 Revela-se fiel, terna e amiga de Baltasar: «Mas nenhumas me tornam a dar a mão que perdi, diz Baltasar, Deixa
lá, tu e eu temos três mãos, isto responde Blimunda.» (p. 98)
 Persistente, procura Baltasar, após o seu desaparecimento, durante nove anos, encontrando-o a ser queimado na
fogueira do auto-de-fé. «Recolhe a sua vontade», sublimando o sonho e o amor.

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o Voador


O padre um pouco mais baixo e parecendo mais novo, mas não, têm ambos a mesma idade, vinte e seis anos,
como de Baltasar já sabíamos, porém são duas diferentes vidas, a de Sete-Sóis trabalho e guerra, uma acabada, outro
que terá de recomeçar, a de Bartolomeu Lourenço, que no Brasil nasceu novo e veio pela primeira vez a Portugal, de
tanto estudo e memória que, sendo moço de quinze anos, prometia, e muito fez do que prometeu, dizer de cor todo
Virgílio, Horácio, Ovídio, Quinto Cúrcio, Suetónio, Mecenas e Séneca. (p. 62)
O padre Bartolomeu, personagem real da História, forma com Baltasar e Blimunda o núcleo mágico e trágico do
romance, vive com uma obsessão, construir a máquina de voar, o que o leva a encetar uma investigação científica na
Holanda.
Como cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os princípios dogmáticos da Igreja. O
seu sonho de voar e as suas inabaláveis certezas científicas revelam orgulho, "ambição de elevar-se um dia no ar, onde
até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns santos eleitos" e tornam-no persona non grata para a Inquisição que o
acusa de bruxaria, obrigando-o a fugir para Espanha e a deixar o seu sonho/projeto nas mãos de Baltasar.
A sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que ele não se inibe de integrar no seu projeto um casal não
abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar.
A passarola, símbolo da concretização do sonho de um visionário, funciona de uma forma antagónica ao longo
da narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu, mas também é ela que vai acabar por separá-los.
 É um dos protagonistas da ação.
 Nasceu no Brasil.
 Teria 24 anos quando pôs o primeiro balão a voar: «Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que
ardeu, depois construí outro que subiu até ao teto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa
da índia e ninguém tornou a ver.» (p. 63).
 Tem 26 anos quando conhece Blimunda e Baltasar.
 Era amigo da mãe de Blimunda, mas não a consegue proteger das garras da Inquisição: «Ouvi dizer que ela tinha
visões [...] havia tal verosimilhança no que me contavam, que discretamente a fui visitar um dia, e depois ganhei-lhe
amizade.» (p. 65).
 Tem um sonho: construir a sua máquina de voar, a passa rola. Por isso, tem o epíteto de «O Voador»: «Aquele
que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador» (p. 161).
 Está ao serviço da Igreja e é protegido pelo rei: «talvez eu possa dizer uma palavra a sua majestade, que me
distingue com a sua estima e proteção» (p. 62).
 «Doutor em cânones» (p. 161), pela Universidade de Coimbra.
 Realiza o seu sonho: voa na passarola, mas, sentindo-se perseguido pela Inquisição, foge e refugia-se em
Espanha, onde morre: «O Voador era um padre, o padre Bartolomeu Lourenço, que depois veio a morrer em
Espanha, fez agora quatro anos, foi um caso de que se falou muito, o Santo Ofício meteu o nariz, quem sabe se
estaria Sete-Sóis nesse negócio...» (p. 313).
 Símbolo da importância do sonho na construção do progresso e da história.

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Domenico Scarlatti
Artista estrangeiro contratado por D. João V para iniciar a infanta Maria Bárbara na arte musical.
O poder curativo da sua música liberta Blimunda da sua estranha doença, permitindo-lhe cumprir a sua tarefa
("Durante uma semana (...) o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se,
sentava-se ao pé do cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, (...) Depois, a
saúde voltou depressa" - p. 192).
Scarlatti é cúmplice silencioso do projeto da passa rola ("Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda,
disfarçou um, o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e (...) fizesse logo seus
juízos muito duvidosos (p.231).
É, ainda, Scarlatti que dá a notícia a Baltasar e Blimunda da morte do padre Bartolomeu. A música do cravo de
Scarlatti simboliza o ultrapassar, por parte do homem, de uma materialidade excessiva, e o atingir da plenitude da
vida.

 Músico contratado pelo rei para dar lições à princesa.


 Leva um cravo para a abegoaria, onde toca a sua música, enquanto Baltasar e Blimunda, trabalham no projeto da
passarola.
 Sensível e idealista, Scarlatti projeta-se no sonho do padre Bartolomeu e manifesta o desejo de um dia poder vir
a tocar no céu: «Se a passarola do padre Bartolomeu de Gusmão chegar a voar um dia, gostaria de ir nela e tocar no
céu, e Blimunda respondeu, Voando a máquina todo o céu será música..." (pp. 184).
 A sua música produz efeitos catárticos e curativos, restabelecendo Blimunda da sua doença: «Durante uma
semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados de S. Sebastião da Pedreira, o músico
foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se..." (p. 192).
 Destrói o cravo que estava na Quinta com receio das perseguições da Inquisição.
 É ele que transmite a Blimunda a notícia da morte do padre Bartolomeu de Gusmão, revelando sentimentos de
respeito e de veneração pelo padre e pelo seu invento, mas também receio de ser visto com Blimunda, refletindo o
clima de opressão em que viviam: «o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para
onde tinha fugido, dizem que louco, e como não se falava de ti nem de Baltasar, resolvi vir a Mafra saber se
estavam vivos..." (p. 231).

O Povo - Personagem coletiva


Para construir o desejo megalómano de um rei, "gigantesca fábrica que será o assombro dos séculos" (171) é
preciso um número impressionante de trabalhadores que vai aumentando, à medida que crescem os devaneios quase
demenciais do monarca português. "Havia oficinas de ferreiros (. . .) mais tarde se juntarão as dos latoeiros, dos
vidraceiros, dos pintores, e quantas mais." (219) Os artesãos dormem em barracas de madeira e, no início da obra,
Baltasar conta mais de 57, cada um contendo pelo menos 200 homens (220). Trabalham arduamente, de sol a sol,
"setecentos, mil, mil e duzentos homens" (223), em condições precárias de trabalho, alojamento ou higiene. No
entanto, o trabalho maior será o transporte da pedra gigantesca, "destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da
igreja" (249) desde Pêro Pinheiro até Mafra, viagem onde se "gastaram oito dias completos" (273). São necessários
tantos milhares de homens que o narrador incapaz de referir a enorme e anónima massa humana, os enumera por
ordem alfabética: "Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino,
Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada
um para ficarem todos representados" (250). A primeira tragédia desta viagem acontece quando um homem é
mutilado num pé (255), irrisório acontecimento no meio de "seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser”,
"seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto" (266). Entretanto, em Mafra
vivem-se "Fatigosos dias, mal dormidas noites" (273). Os barracões alojam agora mais de vinte mil trabalhadores,
"acomodados em beliches toscos" (273), autênticos viveiros de doenças e de infeções. Mas el-rei quer uma basílica
maior a isso o obriga a sua vaidade excessiva, a sua vontade de marcar de modo indelével o seu reinado e ordena que
todos os homens válidos do reino sirvam o seu propósito ( ), "alguns, aliciados pela promessa de bom salário, por
gosto de aventura outros, por desprendimento de afetos também, à força quase todos." (). Sugando todos os homens

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disponíveis e válidos, dos mais jovens aos já entrados na idade, os funcionários reais eram escrupulosos, de tal modo
que" batiam-lhe se resistia, muitos eram metidos ao caminho a sangrar." () "Quanto pode um rei." ()

 Oprimido, explorado, trabalhador, submisso.


 Vítima da prepotência do sistema político e religioso: ”Saiba vossa excelência que aqueles homens vão trabalhar
para Mafra, nas obras do convento real, são do termo de Évora, gente de ofício, E vão atados porquê, Porque não
vão de livre vontade, se os soltam fogem, Ah, Recostou-se a princesa nas almofadas…”(p. 325).

Espaço
Esta categoria da narrativa pode ser objeto das seguintes abordagens:
1. Espaço físico representado por dois macro espaços:
 Lisboa – espaço físico fulcral onde se destacam outros micro espaços como o Palácio Real, o Rossio (palco dos
autos-de-fé, espetáculos que destroem a autoridade da Igreja pelo carácter lúdico e profano de que se revestem); as
ruas da capital (espaço onde o povo oprimido e ignorante sofre e, paradoxalmente, vibra com a desgraça dos seus
iguais e onde vive as principais celebrações do calendário religioso); a Quinta do Duque de Aveiro, em S. Sebastião
da Pedreira, nos arredores de Lisboa (espaço escolhido pelo padre Bartolomeu para a construção da passa rola,
espaço que escapa ao poder opressor da Igreja e à rígida hierarquia social da época);
 Mafra – espaço físico de construção do convento particularizado pela Vela local escolhido para a construção do
convento - e a "Ilha da Madeira" - local onde se alojam os 40 000 operários que edificaram o convento.

Macrocosmo: Lisboa Macrocosmo: Mafra


Espaços interiores Espaços exteriores Espaços interiores Espaços exteriores

Microcosmos: Microcosmos: Microcosmos: Microcosmos:


 Convento S. Francisco Terreiro do Paço, onde  Alto da Vela, local esco-  A casa de Sete-Sóis.
de Xabregas e Mosteiro da decorriam as touradas. lhido para a construção do A igreja de Mafra devi-
Cotovia dos padres da  Rossio, espaço dos convento (“El-rei foi a damente ornamentada, no
Companhia de Jesus autos-de-fé. Mafra escolher o sítio dia da sagração da
(episódio do misterioso  Quinta em S. Sebastião onde há de ser levantado o primeira pedra do con-
roubo das três lâmpadas da Pedreira, um espaço convento. Ficará neste sítio vento (“o teto todo
de prata). isolado, onde é a que chamam da Vela, toldado e forrado de ta-
 Casa de Blimunda (“um construída a passarola. daqui se vê o mar...”). fetás encarnados e
telhado e três paredes  Pêro Pinheiro (“a pedra amarelos...”).
inseguras, solidíssima a que é trazida de Pêro
quarta por ser a muralha Pinheiro”).
do castelo”).  A casa de Sete-Sóis,
 A abegoaria da Quinta (“muito perto da Igreja de
de S. Sebastião da Santo André e do palácio
Pedreira, onde Baltasar e dos viscondes”).
Blimunda ficam instalados.

Monte Junto, espaço localizado entre Lisboa e Mafra. É


o local que acolhe o objeto onírico, a passarola. A
máquina de voar aterra em Monte junto, na natureza
virgem, após o primeiro voo, com partida de Lisboa e
passagem por Mafra.

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2. Espaço social caracterizado por diferentes atmosferas sociais e por vivências protagonizadas por diversas
personagens:
 a vida no paço revela o código protocolar das relações do casal real e de todos que o rodeiam, em especial o
clero;
 as procissões (a procissão de Penitência, pela Quaresma, a procissão dos condenados da Inquisição, a cerimónia
de inauguração da construção do Convento de Mafra) ilustram a esfera de influência do clero na vida social;
 as vivências do povo miserável e explorado (João Elvas, Blimunda, Baltasar e sua família e a massa anónima dos
operários do convento) recriam uma atmosfera que reflete as desigualdades do reino;
 a intervenção do fantástico conseguida pela presença de superstições e de visionários, os que veem mais longe do
que os outros, os que conhecem uma verdade oculta à generalidade dos homens: Sebastiana de Jesus, uma mulher
de sensibilidade aguçada; Blimunda, "uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por
trás da pele das pessoas"; o padre Bartolomeu, porque" inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem
outro combustível que não seja a vontade humana"; Baltasar Sete-Sóis, o complemento de Blimunda Sete-Luas,
"porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um
e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra"; Domenico Scarlatti, com a arte musical do seu cravo, modela o
seu estado anímico e o dos outros, nomeadamente cura Blimunda de uma estranha doença.

3. Espaço psicológico caracterizado através de vivências, experiências, reflexões, meditações


 Este espaço é entendido através do monólogo interior em que as personagens revelam o seu íntimo ou
representado através do sonho/imaginação da evocação, da memória e da emoção, podendo, também, ser sugerido
através da descrição de atmosferas ilustrativas do pensamento predominante de uma época.
 Blimunda procura Baltasar: errância caracterizada por profunda angústia e dor.
 Meditações do rei, espécie de monólogos interiores.
 Sonhos da rainha com D. Francisco.

Tempo
Esta categoria narrativa assume diferentes aspetos, a saber:
1. Tempo histórico – os acontecimentos desenrolam-se no século XVIII, que é definido por eventos históricos:
 o casamento de D. João V com D. Maria Ana Josefa - 1708;
 o início da construção do Convento de Mafra - 1717;
 o último auto-de-fé onde é sentenciado António José da Silva - 1739.

2. Tempo diegético ou da história – as referências temporais são escassas e muitas delas são deduzidas:
 a narrativa inicia-se por volta de 1711 - "O. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua
mulher, O. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e
até hoje ainda não emprenhou" (p. 11); D. João V, "um homem que ainda não fez vinte e dois anos" (p. 12); "S.
Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze" (p. 21); "Em mil
setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo" (p. 292);
 a construção do convento é datada de "dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e
dezassete" (págs. 135-136);
 a sagração da basílica de Mafra, determinada pelo rei a um domingo "segundo o Ritual, e então el-rei mandou
apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de outubro, a um domingo, tendo os secretários
respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a dois anos, em mil
setecentos e trinta" (p. 291);
 o auto-de-fé onde Baltasar é queimado conjuntamente com António José da Silva, em 1739 (p. 359).

3. Tempo do discurso – o discurso ou a voz de um narrador omnisciente segue o fluir cronológico da ação,
registando-se, no entanto, alguns desvios ou anacronias:

61
 decorrentes do tratamento do tempo - a analepse que refere a vontade dos franciscanos de terem um convento
em Mafra (p. 114) 'e várias prolepses (a morte do sobrinho de Baltasar e do Infante D. Pedro (p. 107); a morte da
mãe de Baltasar, Marta Maria (p.139); o grande número de bastardos do rei D. João V (p. 93));
 decorrentes do estatuto de um narrador que não quer ocultar a sua personalidade de homem do século XX -
presença de comentários, de juízos críticos, de registos de língua ("que se lixam, com perdão da anacrónica voz" -
p. 259) e de ocorrências desse tempo ("os capelães de varas levantadas e molhos de cravos nas pontas delas, ai o
destino das flores, um dia as meterão nos canos das espingardas" - p. 156 - alusão ao 25 de Abril de 1974; "Não
faltava mais nada que conhecer Baltasar estes acontecimentos futuros, e outros mais cabais, como já terem ido dois
homens à lua, que todos os vimos lá" - p. 218);

Estes desvios decorrentes de o narrador se assumir como um homem do século XX esbatem a barreira entre dois
tempos diferentes: o presente reflete-se e revive-se no passado, interpenetrando-se.

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Felizmente Há Luar
Personagens
Gomes Freire - figura carismática que preocupa os poderosos, que arrasta os pequenos, na justiça e luta pela
liberdade. É apresentado como símbolo da defesa da liberdade, bipolarizando todas as outras personagens
contra ou a seu favor, mesmo quando não têm a coragem de o seguir abertamente, como é o caso dos populares
e de Sousa Falcão. O general é "capaz de se bater com os senhores do Rossio" porque é um estrangeirado. No
entanto, já que "não é nenhum santo, é um homem como todos nós", vai revelar-se impotente perante a
situação do país e ser uma vítima dela: será condenado não em função dos seus atos, mas do perigo da sua
influência que põe em risco, por razões diferentes, os interesses dos três governadores. Como diz D. Miguel, é o
homem ideal para ser declarado como chefe da revolta porque "é lúcido, é inteligente, é idolatrado pelo povo, é
um soldado brilhante, é Grão-Mestre da Maçonaria e é um estrangeirado”.
A personagem adquire uma dimensão mítica sobretudo na hora da morte, transformando-se em mártir-
símbolo da liberdade, obrigando todos a tomar partido.
Sendo o teatro épico um teatro narrativo, não é necessário que as personagens motores da ação estejam
presentes: o espectador analisa e decide em função do que lhe contam ou, melhor, do que lhe sugerem
verbalmente ou através de efeitos cénicos, e não em função de uma ação que seja representada.

D. Miguel - primo de Gomes Freire, prepotente, assustado com transformações que não deseja, corrompido
pelo poder, vingativo, frio, desumano e calculista. Nas palavras de Sousa Falcão, D. Miguel "é a personificação
da mediocridade consciente e rancorosa".

Principal Sousa - fanático, corrompido pelo poder eclesiástico, odeia os franceses porque “transformaram esta
terra de gente pobre as feliz num antro de revoltados!"; afirma, preocupado, que "por essas aldeias fora é cada
vez maior o número dos que só pensam em aprender a ler “.

Beresford - poderoso, mercenário, interesseiro, calculista, trocista, sarcástico; a sua opinião sobre Portugal fica
claramente expressa na afirmação “Neste país de intrigas e de traições, só se entendem uns com os outros para
destruir um amigo comum e eu posso transformar-me nesse inimigo comum, se não tiver cuidado.” Dos três
governantes, é o único que parece ter consciência da inevitabilidade das mudanças sociopolíticas, embora as
retarde, uma vez que não são do seu interesse.

Vicente - demagogo, sarcástico, falso humanitarista, movido pelo interesse da recompensa material, adulador
no momento oportuno, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado, capaz de recorrer à traição para ser
promovido socialmente. A sua inteligência é, sem dúvida, superior à dos outros populares, assim como os seus
conhecimentos. É ele quem coloca a questão mais revolucionária na obra - o condicionamento socioeconómico
do indivíduo determinado pelo seu nascimento.

Manuel – o “mais consciente dos populares”. Os andrajos com que se veste revelam a sua miséria, assim como
as suas atitudes mostram impotência para alterar a situação. Com efeito, apesar de no início da obra manifestar
esperança no general apresenta, também, alguma indecisão na ação. Esta será, aliás, a sua característica mais
marcante, evidenciada pela repetição das mesmas palavras no início dos dois atos, conferindo-lhe um certo
protagonismo.

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Sousa Falcão – “o inseparável amigo”, sofre junto de Matilde perante a condenação do general; assume as
mesmas ideias de justiça e de liberdade, mas não teve a coragem do general. Sente-se culpado por não ser
executado e diz a Matilde que está de luto por si próprio e não por Gomes Freire.

Matilde de Melo – “A companheira de todas as horas”. Corajosa, exprime romanticamente o amor, reage
violentamente perante o ódio e as injustiças, afirma o valor da sinceridade; desmascara o interesse e a hipocrisia.
Inicialmente ingénua, parece não se aperceber da importância de Gomes Freire, que ela insiste em dizer que não
conspirou, nem da realidade do mundo e nem da situação do povo, de quem espera um contributo para a
libertação do seu homem. Chega deste modo à ideia de que é necessário fazer com que o poder assuma o seu
despotismo, mesmo que isso não traga nenhum benefício imediato. É nesta perspetiva que decide visitar D.
Miguel, apesar de saber que não será recebida; que obriga Beresford a sugerir que vão matar o general de
qualquer modo, porque ele é incómodo; que consegue, através de um tom particularmente acusatório, que o
Principal Sousa assuma, finalmente de um modo aberto, o seu maquiavelismo. O seu desespero perante a morte
iminente de Gomes Freire vai aumentando até ao limite. É então que, por entre laivos de loucura, em que chega
a visualizar o espírito do general junto de si, tocando-lhe e falando com ele. É Matilde quem, verdadeiramente,
nos apresenta Gomes Freire como personagem mítica, que, até na morte, cumpre uma missão que lhe é
atribuída por Deus.

Morais Sarmento e Andrade Corvo - são "denunciantes que honraram a classe. Corvo é, segundo Beresford, um
"mau oficial, ignorante e pedreiro livre”. Morais Sarmento, que deseja adquirir dinheiro suficiente para
abandonar o regimento, mostra-se, no entanto, preocupado com o que a opinião pública e os filhos dirão de
ambos. Tendo pertencido à maçonaria, ambos são usados, mas não estimados pelos governadores que nem
sequer os cumprimentam.

Polícias - são iguais a todos os polícias fazendo sempre a mesma coisa: rondas, feiras, serviço à porta deste ou
daquele.

Rita - mulher do povo submissa à vontade do marido Manuel e solidária com o sofrimento de Matilde.

Vários Populares - são o pano de fundo permanente. Sem habitação, deslocam-se com os seus objetos pessoais
- cestos, mantas esfarrapadas...Revoltam-se contra a miséria, mas o medo do poder repressivo - simbolizado nos
polícias e no ruído de fundo torna-os passivos. Esperavam ajuda do general, mas com a sua prisão perderam a
esperança.

Antigo Soldado - mostra-nos a influência do general sobre os seus homens. Por um lado, fez deles defensores
da liberdade, por outro, deixou-lhes o orgulho e a saudade dos tempos em que combatiam com ele.

Frei Diogo de Melo - é um homem sério, que de algum modo contraria o poder religioso, mas não o enfrenta
abertamente.

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Linguagem

Perpassa, ao longo da obra, uma linguagem viva, natural, maleável e caracterizadora de algumas personagens,
quer do poder, quer do contrapoder/antipoder, os dois grandes núcleos da obra. Assim, ora nos aparece uma
linguagem relacionada com a esfera do material, onde impera a hipocrisia, a ironia e o sarcasmo, ora nos
deparamos com uma linguagem relacionada com os mais nobres sentimentos, sendo, por isso, mais poética.
Os fervorosos ideais patrióticos de D. Miguel Pereira de Forjaz, o político astuto, são frequentemente veiculados
através de frases de tipo declarativo:

Sonho com um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e
defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor. Sonho com uma nobreza orgulhosa, que, das suas casas,
dirija esta terra privilegiada. (p.69)

Há que procurar em cada regimento um oficial que se preste a dizer aos soldados que a Pátria se encontra
ameaçada pelos inimigos de dentro. Há que fazer tocar os tambores pelas ruas para se criar um ambiente de
receio. (p.73)

Tendo em conta o objetivo da peça, não é de estranhar que se recorra frequentemente à ironia e ao sarcasmo,
processos claramente explícitos no discurso de William Beresford e nas notas à margem do texto referentes a
esta personagem. O ambicioso generalíssimo do exército português não se coíbe, à semelhança de D. Miguel, de
combater o espírito revolucionário que começava a grassar em Portugal, não obstante o seu acentuado pendor
crítico em relação a uma sociedade que considera "atrofiar as almas" (p.55).

O tom é trocista. Beresford não perde ocasião de provocar o Principal. (p.53) O tom do marechal é sempre
jocoso. Sente-se que não toma os portugueses a sério, embora esteja disposto a colaborar com eles na medida
do necessário para a obtenção dos seus fins. (p.55)

Sente-se nesta frase do marechal um sarcasmo violento que reduz os presentes, a cidade e o país a uma
insignificância provinciana e total. (p.58)

O discurso de Principal Sousa, membro de uma Igreja deformada pelo obscurantismo e opressão, ilustra claramente
o desfasamento existente entre a verdadeira palavra e a palavra adulterada, ou seja, a mensagem bíblica é, não raras
vezes, um manto que oculta a hipocrisia e a falsidade. Deste modo, o prelado não só se socorre de um léxico de cariz
religioso como também utiliza metáforas estereotipadas do domínio bíblico a fim de legitimar os falsos argumentos
apresentados.

Vá meu filho, [referindo-se a Vicente] e ajude-nos a cuidar do rebanho, indicando-nos as ovelhas


tresmalhadas antes que elas contagiem as restantes. Que Deus o proteja na sua missão. (p.38)

Se a um ministro de Deus é permitido odiar, que o Senhor, um dia, perdoe o ódio que tenho aos
Franceses. (p.39)

O reino de Deus está a saque e os inimigos do Senhor já não se encontram apenas na rua ... (p41)

Relacionado ainda com a força do poder, surgem, aquando da condenação e execução do General, algumas
frases em latim com uma conotação irónica.

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Da linguagem ilustrativa do contrapoder, cingir-nos-emos apenas a duas personagens:
Manuel e Matilde de Meio. Aquele por simbolizar a consciência do povo oprimido e esta por ser não só a figura que
se destaca no segundo ato, como também a voz da razão junto daqueles que parecem não a possuir.
A desilusão, a frustração e a revolta sentidas por Manuel estão bem patentes nas frases de tipo interrogativo,
nos paralelismos de construção, nas enumerações e na trama:

Que posso eu fazer? Sim: que posso eu fazer? (p.15)


Deus todo poderoso para a frente ... Deus todo poderoso para trás ... Sua Majestade para a esquerda ...
Sua Majestade para a direita ... (p.16)
Apesar de tudo, surge aos olhos de Manuel, "que raras vezes se dá ao luxo de sonhar" (p.108), uma
ténue esperança ("Vem aí a madrugada ... ", p.108) explicitada através do pretérito imperfeito do conjuntivo e
do condicional, todavia rapidamente retoma o real e com ele o modo indicativo:

Ah! Senhora, se o general estivesse esta noite aqui (...) Que estranho exército não formaríamos! (p.108)

Matilde de Meio sofre porque ama, sofre porque se vê privada daquele que é a sua razão de ser, sofre porque
vê a injustiça triunfar, daí a predominância de frases curtas, concisas, reticentes e cheias de inflexõ es expressivas
(p.113), de repetições anafóricas, de paralelismos frásicos, de interrogações nos momentos interpelativos
(p.99), de exclamações nos momentos mais expressivos (p. 97).
Matilde é não só a mulher que se revolta mas também aquela que glorifica o seu "homem", o seu herói e,
numa atitude de devaneio, a dor dá lugar ao sonho e à esperança através de frases inacabadas e reticentes.

Na obra, presenciamos também várias características do registo oral, o que revela uma certa preocupação em
aproximar as personagens do seu estatuto.

 Expressões populares: [Vicente] "Nenhum de vocês tem onde cair morto"; "tens sete filhos com
fome e com frio e vais para casa com as mãos a abanar"(p.21); [Vicente] "Mas"? não há "mas"
nem meio "mas" (p.23); [Vicente] "Se eu souber fazer render o peixe, sou capaz de acabar com
uma capela... " (pp. 30-31).

 Provérbios: [Vicente] "Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és... " (p.39); [Manuel] "Entre os
três o diabo que escolha... " (p.16); E a sua adulteração: [Manuel] "Deus escreve torto por linhas
direitas." (pp.103-104; [Vicente] "Deus não nos deu nozes e os homens tiraram-nos os dentes"
(p.109).

 Frases sentenciosas: [Vicente] "Os degraus da vida são logo esquecidos por quem sobe a escada"
(p.31); [Vicente] "Nunca se fala de traição a quem sobe na vida... Quem sobe [...] passa a ser
julgado por outras leis" (p.32); [Matilde] "Ninguém consegue viver sem ouvir a voz da
consciência, António." (p.88); [Manuel] "Estamos presos à nossa miséria, ao nosso medo, à nossa
ignorância."

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Signos não linguísticos

O tom de voz e a entoação traduzem os sentimentos das personagens e as relações afetivas entre elas.

O ruído dos tambores funciona como símbolo da autoridade e repressão policial.

O som dos sinos mostra o envolvimento da igreja na repressão.

A ausência de som sugere o estado emotivo das personagens.

Didascálias: notas à margem do texto e indicações entre parênteses


As notas à margem do texto constituem comentários que interpretam, enquadram e explicitam
cenicamente as falas das personagens.
As indicações entre parênteses referem alterações de iluminação e marcam as pausas, o tom de voz, os gestos, a
postura e os movimentos cénicos das personagens.

A Dimensão Simbólica da Obra

A saia verde é o sinal do amor verdadeiro e transformador, pois Matilde, vencendo aparentemente a
revolta e a dor iniciais, comunica aos outros esperança através desta simples peça de vestuário. A saia encontra-
se associada à felicidade e foi comprada numa terra de liberdade, Paris, e no Inverno com o dinheiro resultante
da venda de duas medalhas. Qual seria o militar que se desprenderia destas ilustres insígnias só para comprar
uma simples saia para a sua esposa? É forçoso afirmar a força simbólica que este gesto adquire quando é
transformado numa simples indumentária geradora de novas "distinções". Se outrora foram significado de
distinção, coragem e valentia, agora - que Matilde veste essa saia, aquando da morte do seu companheiro -
convertem-se na esperança de um novo dia que virá após o luar da noite.
É ainda de referir o apelo que esta mulher, inconformada pela perda do marido, deixa transparecer do
reencontro no Céu. Aí, de certeza, ambos viverão eternamente o grande amor em paz e em liberdade.
"Olha, meu amor, vesti a saia verde que me compraste em Paris! (...) Dá-me um beijo o último na
Terra - e vai!"
O verde é a cor predominante da Natureza e dos campos na Primavera, associando-se à força, à
fertilidade e à esperança. «É uma cor tranquilizante, refrescante, humana. A cada Primavera, depois de o
Inverno ter convencido o homem da sua solidão e da sua precariedade, despindo e gelando a terra que habita,
esta reveste-se de um novo manto verde, que traz consigo a esperança, ao mesmo tempo que a terra se torna
alimentadora. O verde é cálido. E a vinda da Primavera manifesta-se pelo derretimento dos gelos e pela queda
das chuvas fertilizantes.
Verde é a cor do reino vegetal a reafirmar-se, das suas águas regeneradoras e lustrais, às quais o batismo
dá todo o seu significado simbólico. Verde é o despertar das águas primordiais, verde é o despertar da vida. (
... )
Certamente que não era por outras razões que os pintores da Idade Média pintavam a cruz de verde,
instrumento da regeneração do género humano, garantido pelo sacrifício de Cristo.» (Jean Chevalier e Alain
Cheerbrant, "Verde", in Dicionário dos Símbolos, pp. 682684)

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A luz, como metáfora do conhecimento dos valores do futuro (igualdade, fraternidade e liberdade) que
possibilita o progresso do mundo, vencendo a escuridão da noite (opressão, falta de liberdade e de
esclarecimento), advém quer da fogueira quer do luar. Ambas são a certeza de que o bem e a justiça triunfarão,
não obstante todo o sofrimento inerente a eles.
«A luz simboliza constantemente a vida, a salvação, a felicidade concedidas por Deus, ( ... ) que é, ele próprio, a
luz ( .. ). A lei de Deus é uma luz sobre o caminho dos homens ( ... ), da mesma forma que a sua palavra ( ... ).
O Messias também traz a luz ( ... ). As trevas são, por corolário, símbolo do mal, da infelicidade, do castigo, da
perdição e da morte ( ... ). Mas estas realidades não encobrem um poder estranho a Deus: foi ele quem criou
igualmente as trevas e é ele quem castiga, etc. Mais ainda, a --claridade de Deus penetra e dissipa as trevas ( ... )
e chama os homens à luz ( ... ).A simbologia cristã não faz mais do que prolongar estas linhas. Jesus é a luz do
mundo (n.); os crentes devem sê-lo também, tornando-se um reflexo da luz de Cristo (.n) e agindo de acordo
com ela.» (Jean Chevalier e Alain Cheerbrant, "Luz", in Dicionário dos Símbolos, p.424) Se a luz se encontra
associada à vida, à saúde, felicidade, a noite e as trevas relacionam-se com o mal, a infelicidade, o castigo, a
perdição e a morte. Refira-se, a título exemplificativo, que, na linguagem e nos ritos maçónicos, receber a luz é
ser admitido à iniciação, após um ritual no qual o neófito participou de olhos vendados e prestou juramento.

A luz do luar é a força extraordinária que permite o conhecimento e a lua poderá simbolizar a passagem
da vida para a morte e vice-versa, o que, aliás, se relaciona com a crença na vida para além da morte. Associa-se
ainda à dependência (da luz do solta privação de luz própria), à periodicidade (ciclo lunar/diferentes
fases/desaparece três noites em cada ciclo lunar, reaparecendo depois com mais esplendor) e à renovação
(crescimento e transformação).
«A Lua simboliza também o tempo que passa, o tempo vivo, de que ela é a medida, pelas suas fases
sucessivas e regulares. ( ... )
A Lua é um símbolo do conhecimento indireto, discursivo, progressivo, frio. A Lua, astro das noites, evoca
metaforicamente a beleza, e também a luz na imensidade tenebrosa. Mas não sendo esta luz mais que um
reflexo da luz do Sol, a Lua é apenas o símbolo do conhecimento por reflexo, isto é, do conhecimento teórico,
conceptual, racional.» (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, "Lua", in Dicionário de Símbolos, pp. 418-419)

O fogo (fogueira/lume) é um elemento destruidor e ao mesmo tempo purificador e regenerador, sendo a


purificação pela água complementada pela do fogo. «Da mesma forma que o Sol com os seus raios, assim o
fogo simboliza, pelas suas chamas, a ação fecundante, purificadora e iluminadora. ( ... )
O fogo é também ( ... ), na medida em que queima e consome, um símbolo de purificação e de
regenerescência. Encontramos assim, de novo, o aspeto positivo da destruição ( ... ). Também a água é
purificadora e regeneradora.»( Jean ChevaIier e ALain Gheerbrant, "Fogo", in Dicionário de Símbolos, p.
333).
Se, no presente, a fogueira se relaciona com a tristeza e escuridão, no futuro ela relacionar-se-á com a
esperança e liberdade. Aquando da prisão do General, o Antigo Soldado afirma, num tom profético, e com a
"voz triste" o seguinte: "Prenderam o general... Para nós, a
noite ainda ficou mais escura... O 1º Popular responde num tom também ele profético e revelador de
esperança: "É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras... ” . Finalmente, Matilde afirmará que
a fogueira de S. Julião da Barra ainda iria "incendiar esta terra", demonstrando que a chama da liberdade se
encontra ateada e jamais será apagada.

68
Moeda de cinco réis. No início do ato II, Manuel, profundamente desanimado e revoltado com a prisão
daquele que era voz dos que não têm voz "representa agora e quase simultaneamente dois papéis", isto é,
assume verdadeiramente o seu papel de pobre, ao mendigar algo por alma de alguém e finge ser aquele que
friamente dá uma esmola, uma moeda de cinco réis, apenas porque a caridade é uma virtude teologal e inerente
aos deveres de um cristão. Deste modo, se evidenciam as profundas desigualdades sociais e a prática deturpada
de uma religião que teima em se pautar pelo parecer e não pelo ser. Este gesto de Manuel satiriza o desrespeito
que os poderosos mantinham para com o próximo, contrariando os mandamentos de Deus.
Matilde não consegue obter a ajuda pretendida junto dos populares em virtude de a esperança se ter
desvanecido e estes se encontrarem desprovidos de força anímica. Só deste modo se compreenderá o seu
comportamento em relação a Matilde, dado que fingem ignorá-la e não lhe respondem. Por fim, Manuel
dirige-se a ela e, como porta-voz de todos os que vivem à mercê da "bem-aventurada" caridade, oferece-lhe
uma moeda de cinco réis: primeiro, como paradigma de toda a esmola dada e insuficiente para colmatar as
principais necessidades e posteriormente como medalha que ela deverá usar ao peito, tendo em conta a traição
de que foi vítima o General.

«Não é uma esmola. Dou-lha para que a use ao peito, como uma medalha. Tivesse eu mais, e dava-lhe
trinta - as trinta moedas por que se vende a alma. Quem as pague ou as receba, perde o direito à esperança,
senhora. (p. 110)

Após ter solicitado, em vão, a ajuda de D. Miguel Forjaz, que se recusara a receber a "amante de um
traidor", Matilde, profundamente indignada com a forma como fora tratada, refere-se à moeda de cinco réis
como esmola, corolário de uma vida em prol do bem, da caridade e solidariedade. Esta moeda é também,
segundo ela, "uma das trinta moedas com que se compram e vendem as almas" (p.120), e por isso, ela a lançará
aos pés de Principal Sousa, um dos vários traidores de Gomes Freire de Andrade (cf. p.134).

Felizmente há Luar! Por fim, não podíamos deixar de fazer menção ao título que aparece duas vezes ao
longo da peça, inserido nas falas de um elemento do Conselho de Regência, D. Miguel, e da “companheira de
todas as horas” Matilde de Melo.

[D. Miguel]
É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar... (p.131)

[Matilde]
Felizmente... Felizmente há luar! (p. 140)

Em primeiro lugar, não deixa de ser curioso e simbólico o facto de o título coincidir com as palavras
finais da obra, o que desde logo lhe confere circularidade. Em segundo, Sttau Monteiro revela-se fiel à verdade
histórica, uma vez que coloca na boca da personagem D. Miguel as palavras que ele teria proferido ipsis verbis
ao Intendente-Geral da Polícia, aquando da execução do General: "É verdade que a execução se prolongará
pela noite mas felizmente há luar e parece-me tudo tão sossegado que espero não cause isso prejuízo algum".
83

Como facilmente se constata, a mesma frase é proferida por personagens pertencentes a mundos completamente
opostos: D. Miguel, símbolo do poder, e Matilde, símbolo da resistência e do antipoder. Porém, o sentido
veiculado pelas mesmas palavras altera-se em virtude de uma simples afirmação dar lugar a uma eufórica

69
exclamação, adquirindo o texto uma circularidade simbólica.
Para D. Miguel, o luar permitiria que as pessoas saíssem mais facilmente das suas casas, vencendo assim o
medo e a insegurança na cidade, e que ficassem atemorizadas pelo clarão da fogueira que é o fim último para
aqueles que ousam pensar em enfrentar o regime vigente e lutam pela liberdade, tendo portanto um efeito
dissuasor. O luar associa-se, então, à noite, à morte, ao mal, à infelicidade, à opressão, às trevas e ao
obscurantismo. Refira-se como mera curiosidade o facto de, segundo Raul Brandão, o dia 18 de outubro de
1817 ter sido um dia "de sol, a prometer uma noite esplêndida" e ideal para uma execução a ser presenciada
por muitos e que serviria também de lição e exemplo.
Para Matilde de Meio, estas palavras são fruto de um sofrimento interiorizado e refletido, são a
esperança e o não conformismo nascidos após a revolta, a luz que vence as trevas, a vida que triunfa da morte.
A luz do luar (liberdade) vencerá a escuridão da noite (opressão) e todos poderão contemplar, enfim, a
injustiça que está a ser praticada e tirar dela ilações. Há que, imperiosamente, lutar no presente pelo futuro e
dizer não à opressão e falta de liberdade, há que seguir a luz redentora e trilhar um caminho novo.

70
10º ano
Camões Lírico
Três conceitos caracterizaram a grande viragem no pensamento humano:
renascimento, humanismo e classicismo.
O renascimento é um movimento cultural com origem em Itália (sec. XIV-XVI),
em que surge uma nova conceção de homem e natureza, caracterizando-se por uma
recuperação dos conhecimentos e modelos da antiguidade clássica. Humanismo é um
movimento intelectual e filosófico que coloca o homem no centro do conhecimento
(antropocentrismo), através de uma valorização do próprio homem e exaltação da sua
capacidade de entender o mundo e tudo o que o rodeia. Classicismo é uma tendência
estética que ganha corpo com os valores clássicos greco-latinos e introduz novas formas,
novas espécies, novos géneros nas artes plásticas e na literatura, como modelos a imitar;
preconiza o gosto das composições equilibradas, a simplicidade, a precisão, a busca da
harmoniza das formas e a idealização da realidade, de que a visão da natureza como um
locus amoenus, a mulher perfeita, idealiza de acordo com o cânone petrarquista, e o
amor platónico são exemplos.

Influencia tradicional vs influencia clássica ou renascentista


Luís de camões cultivou diversos géneros poéticos. Sendo um poeta de transição,
faz uma incorporação artística da corrente tradicional, de cariz peninsular (medida
velha), e dos modelos formais e das temáticas da corrente renascentista que se
cultivavam em Itália (medida nova), aos quais imprimiu um cunho muito pessoal.

Representação da mulher amada


A mulher é ideal de beleza, apresentada ora como símbolo de pureza, ora como
símbolo do amor físico e sensual:

• Ideal de mulher petrarquista: a mulher é apresentada como uma figura angelical,


a celeste fermosura, a Circe que pôde transformar o pensamento do eu que por
ela sofre, um ser superior de perfeição moral inacessível e intocável. Remete
para a dimensão espiritual do amor. O modelo de mulher petrarquista é laura, a
musa inspiradora de Petrarca.
• Ideal de Vénus: a mulher é apresentada como uma figura individualizada, uma
mulher de perfeição física, descrita como ser sensual, simbolizada por Vénus.
Evidencia uma exaltação da dimensão terrena do amor. A sensualidade da
mulher é uma inovação de camões, em relação aos poetas do renascimento
italiano.

No modelo renascentista, a mulher apresenta fisicamente cabelo louro, pele branca,


olhos azuis, sorriso longínquo, gesto suave, pensar maduro, alegria saudosa.
A representação da natureza
A natureza aparece associada à poesia amorosa como expressão de estados de
alma ou por contraste entre o estado de espírito do sujeito poético; apresenta-se como
objeto de contemplação, cenário ou pretexto para a reflexão do eu poético; é
geralmente uma paisagem diurna, natural, harmoniosa e agradável- descrição do tipo
locus amoenus.
O desconcerto

O poeta constata o desconcerto moral, social e existencial, que revela:

• Na desordem do mundo exterior, entre os homens: as injustiças sociais, a virtude


não recompensada adv. a desonestidade compensada, a mediocridade que tem
sucesso (os bons vi sempre passar/ no mundo graves tormentos/ e para mais me
espantar, / os maus vi sempre nadar/ em mar de contentamentos.);
• No conflito interior de cada homem: o sujeito poético como vítima; a desilusão
amorosa; o mundo em tumulto igual ao eu em tumulto; a ação do destino cruel;
o fracasso do sonho e dos projetos; o absurdo da morte.
A mudança
O tema da mudança aparece associado à temática do desconcerto e à temática
do destino. O poeta reflete sobre a mudança na natureza e a mudança do ser humano.
A mudança é cíclica na natureza (reversível) e é linear (irreversível) no homem.
A existência humana muda, mas é imprevisível e marcada pela adversidade, com
consequências negativas (pessimismo e morte). O poeta reflete ainda sobre a mudança
da própria mudança, de que o soneto Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades é
exemplo.
Formas poéticas/métrica

• Medida velha (influencia/ corrente tradicional)


• Medida nova (influência/ corrente clássica)

Os lusíadas, luís de Camões


Conceito de epopeia
A epopeia é um género narrativo em verso que remonta à antiguidade clássica.
A epopeia, marcada pelo estilo grandioso e solene, canta um facto heroico de interesse
nacional e universal que assegura a unidade de ação (em Os Lusíadas, a viagem à Índia);
os episódios retrospetivos e as profecias dão extensão e riqueza à obra.
Estrutura externa

O poema está escrito em versos decassilábicos, apresenta dez cantos; as estrofes


organizam-se geometricamente em oitavas, com esquema rimático abababcc; tem 1102
estrofes. Rima emparelhada e cruzada.

Estrutura interna

O poema está organizado em quatro partes: Proposição (I, 1-3); Invocação (I,4-
5); Dedicatória (I, 6-18 e X, 145-156); Narração (I-X).
Proposição, apresenta o assunto da epopeia, propondo-se cantar os feitos do
povo português.
Invocação; suplica, apelo, pedido.
Dedicatória, camões oferece a epopeia ao rei D. Sebastião.
Narração, o poeta narra os feitos das personagens.

Planos estruturais da Epopeia

O plano da viagem, constitui a ação central do poema. Compreende a narração


da viagem do descoberto do caminho marítimo para a Índia e o regresso para Portugal.
O plano mitológico, dado pela intervenção dos deuses pagãos na ação,
simbolizando, por um lado, as diversas adversidades superadas pelos heróis.
O plano da história de Portugal, assegurado por diversas vozes (Vasco da Gama,
Paulo da Gama, figuras mitológicas). São narrativas secundárias que se inserem no
propósito inicial do poeta sem perder a unidade da ação: o louvor dos feitos valorosos
do português.
O plano das considerações do poeta, revela-nos um autor atento ao seu tempo
e com uma intenção pedagógica e cívica que acompanha os diversos relatos. Assim,
críticas, tece lamentos e desabafos ou exorta os portugueses a seguirem o exemplo dos
verdadeiros heróis, o caminho da imortalidade, que é, como afirma, o Caminho da
virtude, alto e fragoso/ mas, no fim, alegre e deleitoso.

Principais considerações do poeta ao longo da epopeia

Nestas reflexões do poeta, destacam-se duas perspetivas diferentes.


Por um lado, constituem a visão do poeta renascentista relativamente à própria
condição humana, o que está, por vezes, ao serviço da construção do herói do poema,
que ultrapassa todas as dificuldades e será premiado pelo seu esforço e valentia, na ilha
dos amores, espaço simbólico de recompensa pela conclusão de um percurso heroico e
glorioso.
Todavia, o poeta revela também a sua perspetiva disfórica em relação a uma fase
do império português e aos valores dominantes no país, num momento em que o brilho
das grandes navegações começava a ser ofuscado pelo materialismo que dominava o
reino, pela indiferença em relação à arte; o poeta manifesta ainda o seu desalente pelo
desprezo a que a sua epopeia era votada.

Canto I- reflexões sobre os perigos a que o ser humano está sujeito.


Canto V- Considerações sobre os que desprezam a poesia.
Canto VI- reflexões sobre o valor da gloria.
Canto VII- exaltação do espírito de cruzada dos portugueses, espalhando a fé
cristã.
Canto VIII- considerações do poeta sobre os efeitos preciosos do vil metal. Critica
à sociedade orientada por valores materialistas.
Canto IX- reflexões sobre o significado e o valor da imortalidade.
Canto X- sentimentos contraditórios- desalento, orgulho, esperança.

11ºano

Sermão de santo António aos peixes, padre António vieira


O sermão de santo António é um longo discurso argumentativo, criado com a
finalidade de ser pregado. A partir das propriedades do sal (conservar o são e preservar
da corrupção) e das características da pregação de santo António (louvar o bem e
repreender o mal), o sermão de vieira assume uma dupla finalidade: louvar as virtudes
e repreender os vícios humanos.
Começando por referir as qualidades dos peixes, o pregador retira duas
conclusões: os peixes são melhores do que os homens e, para evitar a maldade, aqueles
devem manter-se afastados dos homens. De forma semelhante, santo António, para se
aproximar de deus, afastou-se dos homens.
Pelo contrário, os vícios, em geral, dos peixes, que se comem uns aos outros e
em que os grandes comem os pequenos, servem de pretexto para uma critica à
exploração dos poderosos sobre os mais humildes. Alem disso, os defeitos, em
particular, de certos peixes estão ao serviço da denuncia dos vícios humanos. É o caso
do roncador que simboliza a arrogância; o pegador, o oportunismo; o voador, a ambição
desmedida e vaidade; o polvo, a hipocrisia e a traição.
Louvores aos peixes:
• Peixe de Tobias: sara a cegueira e expulsa os demónios (critica-se a
heresia e a ausência de conversão por parte dos homens);
• Remora: peixe tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder
(travão dos ímpetos humanos(impulso/violência)) (critica-se a fraqueza
humana e a ausência de força de vontade);
• Torpedo: emite pequenas descargas elétricas que fazem tremer o braço
do pescador (voz da consciência) (critica-se a exploração do próximo,
corrupção e ambição desmedida);
• Quatro-olhos: vigia, noção do céu e do inferno (critica-se a vaidade
humana).
Repreensões aos peixes:

• Roncadores: embora tão pequenos, roncam muito, daí que representam


a arrogância e a soberba dos homens;
• Pegadores: sendo pequenos, pegam-se aos maiores, não os largando
mais, razão porque simbolizam o parasitismo, a vivencia à custa dos
outros (critica-se o parasitismo e o oportunismo);
• Voadores: apesar de serem peixes, também se metem a ser aves. Por
isso, simbolizam a presunção, a vaidade e a ambição (é criticada a
ambição, vaidade e o capricho dos homens);
• Polvo: maior traidor do mar (critica-se a falsa aparência dos homens, a
traição e a hipocrisia.
Critica social e alegoria
O sermão é uma sátira social em que o padre António vieira tece duras críticas à
exploração e à ganância humana, principalmente aquela que é exercida pelos colonos
sobre os índios. Por outro lado, o Sermão é uma longa alegoria (em que se apresentam
ideias através de imagens ou figuras concretas), funcionando os peixes como uma
metáfora dos homens. Deste modo, as virtudes dos peixes são pretexto para denunciar
os vícios humanos, da mesma forma que os defeitos dos seres marinhos são motivo para
criticar os defeitos morais e sociais dos homens.
Contudo, pode-se afirmar que o sermão aborda um assunto intemporal na
medida em que os homens procuram constantemente a ascensão social, ainda que de
forma impropria, revelando atitudes moralmente condenáveis.

Linguagem e estilo
Recursos expressivos:
a. Alegoria, que é todo o sermão, na medida em que os defeitos dos peixes
personificam a maldade humana;
b. Comparação, entre os peixes e os homens, pois os homens, com suas más e
perversas cobiças, vêm a ser como os peixes;
c. Metáfora, identificam os pregadores com o sal da terra;
d. Apostrofe, (invocação de pessoas ausentes, seres inanimados ou entidades
abstratas) em Vós, diz cristo senhor nosso, falando com os pregadores, sois o
sal da terra;
e. Enumeração, associada a uma gradação: começam a correr os peixes, os
grandes, os maiores, os pequenos;
f. Antíteses, deixa as praças vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar;
g. Anáfora, p.e mimetismo do polvo: se está nos limos faz-se verde, se está na
areia faz-se branco, se esta no lodo faz-se pardo.
Frei Luís de Sousa, Almeida Garret
O pano de fundo da obra romântica é um quadro tumultuoso, agreste, sombrio,
preferencialmente noturno- a dita paisagem romântica (locus horrendus) – que
contrasta com a sobriedade, harmonia, frescura, serenidade e elegância da paisagem
clássica (locus amoenus).
Sebastianismo: história e ficção
O sebastianismo é um mito criado apos o desaparecimento do rei D. Sebastião
na batalha de Alcácer Quibir em 1578 que apresenta várias características. O
desaparecimento misterioso de D. Sebastião; associação da sua morte à decadência do
império; esperança no seu regresso.
Fundada em superstições, a crença popular profetizava o regresso do rei numa
manhã de nevoeiro para libertar o país do domínio filipino e instaurar a gloria passada.
O mito tornou-se um traço de personalidade nacional que se caracteriza por viver as
glorias do passado e acreditar que os problemas serão resolvidos com a chegada de um
redentor, de um messias.
Em Frei Luís de Sousa, as personagens assumem posições contrárias
relativamente a este mito. Com efeito, Maria de Noronha confessa o seu culto por D.
Sebastião e acredita em lendas messiânicas sobre o seu regresso. Na mesma linha,
Telmo pais alia o sebastianismo à esperança do regresso do seu amo, D. João de
Portugal, desaparecido na mesma batalha. Pelo contrário, D. Madalena vive
atormentada pela imagem sempre obsessivamente presente do primeiro marido, D.
João de Portugal. Manuel de Sousa Coutinho, apesar do seu patriotismo, mas com uma
mentalidade racionalista, nega este mito. Por último, D. João de Portugal, na figura do
Romeiro, representa o Portugal do passado e o seu regresso desencadeará a tragédia
familiar.

Características de tragédia clássica e de drama romântico


A obra é um drama romântico, pois apresenta uma forma em prosa e não em
poesia. O dramaturgo assume uma atitude romântica perante a história, uma vez que a
ação se inspira em acontecimentos históricos, isto é, na figura o prosador Frei Luís de
Sousa que decidiu, juntamente com sua mulher, consagrar-se a deus num convento.
Alem disso, na obra, celebra-se o individualismo e o sentimento. Assim, Manuel de
Sousa afirma a sua individualidade através das suas excecionais qualidades de coragem
e patriotismo. Por outro lado, Madalena é o símbolo da mulher sentimental, vítima do
destino e do amor. Há uma valorização dos sentimentos em detrimento da razão.
Também as personagens apresentam um perfil romântico. Neste sentido, o herói
romântico caracteriza-se pela sua natureza excessiva, uma rutura com os valores da
sociedade, como é o caso de Manuel de sousa no gesto de incendiar o seu palácio, numa
clara oposição ao poder espanhol. No entanto, estas personagens românticas perdem a
compostura altiva e serena perante o destino traçado, recusando-o.
Todavia, pode classificar-se também como tragedia clássica, uma vez que
apresenta um número de personagens restrito e de condição social elevada. De igual
modo, regista-se a presença de peripécias (como o incendio do palácio e o regresso de
D. João de Portugal); a hybris (o desafio lançado às leis da sociedade, quando D.
Madalena contrai segundas núpcias sem a certeza da morte do primeiro marido); a
presença do destino, que determina a vida das personagens; o climax, que se atinge em
determinadas cenas como a destruição do retrato e o incendio do palácio; o conflito
interior e o pathos (sofrimento) continuo experimentados por D. Madalena; a
anagnórise (com a identificação do romeiro com D. João de Portugal; a catástrofe, com
a morte física de Maria, e D. Madalena e Manuel de Sousa para o mundo; verifica-se,
alem disso, a presença do coro da tragedia grega nas figuras de Frei Jorge e de Telmo.

A dimensão patriótica e a sua expressão simbólica


Há três personagens que evidenciam o seu patriotismo nacionalista. Manuel de
Sousa Coutinho transmite o seu amor à pátria não só por palavras, mas também pelos
atos, pois não hesita em incendiar o seu próprio palácio, evitando que o venham habitar
aqueles que governam o país em nome de um rei estrangeiro. Também Telmo e Maria
de Noronha, que partilham do mesmo idealismo sebastianista, afirmam o seu
patriotismo e admiram o gesto praticado por Manuel de Sousa.
O patriotismo é uma das marcas da dimensão romântica da obra que assume
uma dupla dimensão temporal. No tempo em que ocorrem os acontecimentos, Portugal
vive sob o domínio filipino e, na data da publicação da obra, 1844, o país vive sob a
ditadura cabralista.
É, portanto, na atmosfera psicológica do sebastianismo e na crença no regresso
do monarca que se vai desenrolar a tragedia que se abate sobre toda uma família,
arrastando-a de forma implacável para um final funesto, bem ao gosto do romantismo.

Personagens:
D. Madalena de Vilhena, a mais trágica das personagens, encarna a heroína
romântica.
Manuel de Sousa Coutinho, é a personagem que melhor define as contradições
do homem romântico. Oscilando entre a razão e o sentimento.
Maria, também ela uma heroína romântica, é o anjo inocente vítima da
sociedade, que acredita piamente no regresso de D. Sebastião. Treze anos com uma
maturidade e preocupações invulgares para a sua idade. Acentuada pela tuberculose,
deixa-se arrastar pela tragedia presente e a persegue, morrendo de vergonha em palco,
como convém a um final trágico.
Telmo Pais, escudeiro valido, o familiar quase parente, o velho amigo que foi de
D. João de Portugal e que permaneceu ao serviço de D. Madalena, apos o
desaparecimento daquele.
D. João de Portugal é, na verdade, a sombra que paira desde o início sobre os
Sousa Coutinho.
Frei Jorge, frade dominicano, irmão de Manuel, representa o papel dos
confidentes da tragédia clássica e pode ser considerado o verdadeiro culpado do
desfecho tráfico.

Cânticos do Realismo, Cesário Verde


Representação da cidade e dos tipos sociais
Esta vivência entre o campo e a cidade vai determinar decisivamente a temática
da sua poesia, marcada pela dicotomia cidade / campo. Esta oposição é um elemento
estruturante da obra poética de Cesário. Com efeito, divide-se entre a critica da cidade
e o elogio do campo. O espaço confinado da cidade opõe-se sistematicamente ao espaço
amplo do campo. Na cidade, o sujeito sente-se sufocado, encarcerado. O ambiente
citadino, símbolo do desenvolvimento e do progresso, metáfora do ocidente
(sentimento dum ocidental) aparece paradoxalmente como paradigma em todos os
males – a cidade como palco da doença: do lado da cidade, encontra-se a humilhação,
a noite, a morte, a solidão, o presente (cristalizações); do lado do campo, a liberdade
amorosa, a saúde, a vida, o passado infantil (De tarde). O campo simboliza a energia, a
vida, a saúde, o espaço onde se recuperam as forças perdidas na confusão da cidade. É
espaço de inspiração, presente no verso: “no campo; eu acho nele a musa que me
anima” (De verão). Por influência do realismo, Cesário Verde dá atenção às situações do
quotidiano. Com realidades aparentemente insignificantes, constrói quadros de grande
expressividade. O deambular constante pela cidade, as estadias no campo tornar-se-ão
motivos de inspiração da sua poesia. Os seus poemas deixam transparecer pequenos
quadros da vida real, do ambiente doméstico e familiar, tornando Cesário um poeta-
pintor da paisagem urbana e do mundo rural.
Tipos sociais:

• Povo/classes trabalhadoras: produtividade, vitalidade,


autenticidade. Alvo de simpatia e solidariedade por parte do
sujeito poético. Ex: vendedora de legumes, calafates, obreiras,
varinas…
• Burguesia: ociosidade, inércia, artificialidade. Alvo de critica e
ironia por parte do sujeito poético. Ex: criado do bairro burgues,
dentistas, lojistas…
• Marginais que vivem na cidade: degradação social e moral. Alvo
de critica por pare do sujeito poético. Ex: ladroes, jogadores,
prostitutas…
Dois tipos de mulher em Cesário Verde
A poesia de Cesário Verde apresenta dois tipos opostos de mulher: a mulher
esplêndida, madura, destrutiva e essencialmente frigida, associada com a cidade
(mulher fatal), e a jovem simples (mulher angelical) terna e vulnerável, associada com o
campo e com os valores opostos à cidade.

Deambulação e imaginação: o observador acidental

Deambulando, o poeta capta as impressões da realidade quotidiana, tornando


um observador acidental. O espaço urbano transforma-se num espaço de observação
do mundo e da vida. Ao deambular pelas ruas de lisboa, observa acidentalmente
pessoas e espaços, transformando-os num repórter do quotidiano. Ao estilo realista,
transporta para a sua poesia a realidade de todos os dias, concedendo particular
atenção aos lugares e, sobretudo, às pessoas com quem se cruza. Nessa sua
deambulação pelos vários espaços, o poeta apresenta-nos, por exemplo, uma vasta
galeria de figuras femininas de diferentes estratos sociais: as varinas, a engomadeira
tisica, a vendedeira de hortaliças, a atriz, a mulher fatal, a mulher altiva, as prostitutas…

Perceção sensorial e transfiguração poética do real


Relações com o poema épico
Cesário Verde, o sentimento dum ocidental

- Espírito antiépico (atitude face à realidade observada: descrença na capacidade


humana no universo citadino);
- Viagem pela cidade (representação da degradação social e moral);
- Personagens antiépicas:
- Marginais (ladrões, bêbados, jogadores, prostitutas);
- Ociosas, artificiais (dentistas, arlequins, lojistas).
Também há exaltação das personagens “épicas” (classes trabalhadoras).

Os Lusíadas, Luís de Camões

- Espírito épico- exaltação das capacidades humanas;


Também está presente o espírito antiépico.
- Viagem marítima (epopeia dos descobrimentos);
- Personagem coletiva épica: povo português (representado por vasco da gama e pelos
marinheiros que com ele percorrem o caminho marítimo para a índia).

Linguagem, estilo, estrutura

• Recurso às sinestesiasi (“Com choques rijos, ásperos e cantantes”);


• Parnasianismo ii (“e apuro-me em lançar originais e exatos, os meus
alexandrinos”);
• Comparação (“como morcegos, ao cair das badaladas, saltam de viga em
viga os mestres carpinteiros”);
• Metáfora (“há colos, ombros, bocas, um semblante nas posições de certos
frutos”);
• Tripla e dupla adjetivação (“saias curtas, frescas, engomadas”);
• Enumeração (“com santos e fiéis, andores, ramos e velas”);
• Hipérbole (“em uma catedral de um comprimento imenso”);
• Hipálage (“cheiro salutar e honesto ao pão do forno”);
• Assíndetoiii (“eu hoje estou cruel, frenético, exigente”).

i
Sinestesias, Associação de sensações resultantes da perceção sensorial de sentidos diferentes.
ii
Parnasianismo, procura a confeção perfeita através de uma poesia descritiva, baseada em temáticas
greco-latinas que defende a reação contra o romantismo, a obsessão pela beleza na perfeição formal
(em ritmo e rima) e a busca da impessoalidade e da impassibilidade.
iii
Assíndeto, acentua os valores individuais de cada palavra, registando as gradações subtis de uma
realidade mutável.
12º ano

Poesia do ortónimo, Fernando Pessoa

Fingimento artístico
Nos poemas «Autopsicografia» e «Isto», o eu lírico defende que o poeta não
pretende representar diretamente os seus sentimentos e as suas experiências interiores
tal qual as viveu. Nesta sua conceção de poesia, Pessoa afirma que o poeta parte das
emoções que experienciou («a dor que deveras sente») e representa-as poeticamente,
por palavras, transformando essas emoções em arte, através de um processo de
intelectualização. A escrita resulta, portanto de um processo de racionalização dos
sentimentos e da imaginação artística (trabalho poético) para escrever o poema.
Pessoa chama a este processo fingimento artístico: «o poeta é um fingidor». Mas
fingimento não significa aqui falta de autenticidade ou de sinceridade, o poeta apenas
ganha distanciação em relação aos seus sentimentos para os poder representar
estipticidade por palavras.
Fingimento artístico associada às dicotomias sentir/ Pensar, Coração/ Razão;
Sinceridade convencional/ Sinceridade Intelectual.

A dor de pensar
A consciência de si é um fardo, uma dor, por isso o poeta inveja aqueles que não
pensam e que não intelectualizam a sua condição humana e, num sentido mais lato, a
existência. No entanto, o “eu” acredita que aqueles que não pensam não podem ser
verdadeiramente felizes, uma vez que não tem consciência da sua suposta felicidade.
Surgem tentativas da fuga à dor de pensar: Alberto Caeiro, sonho, música e a
nostalgia da infância.
Ex: “gato que brincas na rua” e “ela canta pobre ceifeira”

Sonho e realidade
O “eu” lírico não encontra a felicidade na realidade do quotidiano, porque se
sente tomado pela frustração, pelo vazio ou pelo tédio. O sonho é a dimensão em que
se idealiza e onde cré conseguir realizar-se e atingir a plenitude ou o equilíbrio:
metaforicamente, refere-se a este como «um país/ onde ser feliz/ consiste/ apenas em
ser feliz» (“às vezes em sonho triste”).
Na poesia de pessoa, o espaço onírico, ou seja, o mundo do sonho, não funciona
como uma evasão ou escape, é antes um lugar onde o “eu” acredita que pode recuperar
uma experiência perdida (a da infância) ou ser o que não se é no mundo «real».
O “eu sonhado” não é uma outra pessoa, é sim uma outra faceta do «eu» lírico
(“não sei se é sonho, se realidade”). O sujeito sente-se, pois, dividido entre o que é
«realmente» e o que desejava ser.
Para pessoa, a sensação do sonho torna-se mais profunda que a própria realidade.
A nostalgia da infância
A melancolia no presente que marca o «eu» na poesia de Fernando Pessoa
ortónimo leva-o muitas vezes a manifestar um sentimento de nostalgia em relação à
infância. Nessa época, o “eu” não recorria ao pensamento analito que lhe permitiria ter
consciência do seu estado de alma. Deste modo, a evocação da infância não passa de
uma tentativa infrutífera de evasão da melancolia do presente através de um passado
que, porque concebido apenas ilusoriamente como um paraíso perdido, acaba por não
permitir ao «eu» libertar-se da tristeza, do tédio e da angústia que o atormentam.
Ex: “ó sino da mina aldeia”, “pobre velha música”

Poesia dos heterónimos, Fernando Pessoa

Alberto Caeiro, o poeta bucólico


Caeiro é o mestre de Fernando Pessoa ortónimo e dos heterónimos: aponta
soluções para os problemas existenciais e filosóficos (dor de pensar, a metafísica, a
consciência do mundo, etc). Defende que devemos percecionar, conhecer e fruir o
mundo através dos sentidos, sobretudo a visão, e que o real se reduz à materialidade.
Sente deslumbrado perante a Natureza e a sua diversidade. Advoga a comunhão do
Homem com a natureza – neste ponto, aproxima-se do paganismo («fui o único poeta
da natureza»).
É o poeta do real objetivo. Aceita de forma tranquila a natureza e o mundo («sei
a verdade e sou feliz»). Considera que só o presente existe e deve ser vivido. Afirma
recusar o pensamento, a filosofia e a existência de uma metafísica («eu não tenho
filosofia: tenho sentidos», «pensar é não compreender», «pensar é estar doente dos
olhos»).

Contradições:
• Caeiro diz desvalorizar ou recusar o pensamento, mas os seus poemas
são reflexões e não tanto descrições da Natureza.
• Analisa e reflete sobre as sensações, não se limita a captar impressões.
• Afirma-se contra a filosofia, mas expõe a sua doutrina nos seus poemas.

Estilo:
• Frases simples
• Domínio do campo lexical de «natureza»
• Marcas do discurso de oralidade (polissíndeto, repetição)
• Recursos retóricos: comparações, metáforas e imagens simples
• Irregularidade a nível da estrutura estrófica e métrica.
Ricardo Reis, o poeta clássico
Ricardo Reis é helenista (estudioso da língua e/ou civilização da antiga Grécia) e
latinista (conhece bem e estuda a língua e literaturas latinas).
Transmite nos poemas ensinamentos (uma filosofia de vida) para os indivíduos
saberem enfrentar as adversidades do mundo. Entre essas adversidades contam-se a
ação do destino (fado), o tempo que foge, a velhice, a doença, a morte e outras situações
que desencadeiam o sofrimento.
Aconselha a aceitar a ordem das coisas e a desfrutar a vida na terra.
Adota uma visão pagã do mundo, em que o homem vive em comunhão com a
Natureza e em que existem deuses, uma mitologia e o destino. «Abdica e sê rei de ti
próprio».

Epicurismo
• Na vida, devem procurar-se os prazeres serenos e moderados;
• Aconselha-se a fruição tranquila do presente em vez de recear a ação do destino,
a morte e outros problemas que ameaçam os indivíduos;
• Adota-se a firmeza e a autonomia na forma como se enfrentam as adversidades
do mundo e se evitam as ciladas da fortuna (do fado);
• Advoga-se uma atitude imperturbável e de distanciação face aos males que
podem surgir: ataraxia;
• Defende-se o carpe diem, a ideia de se procurar uma felicidade suave e tranquila
de prazeres moderados;
• Incentiva-se a aceitação de uma vida simples, sem grandes ambições e em
contacto com a natureza.

Estoicismo
• Autodisciplina e autocontrolo na vida e na escrita;
• Indiferença perante as paixões;
• Encoraja-se a «apatia», um estado de ausência do sofrimento como forma de o
sujeito enfrentar com determinação as contrariedades, a doença e a morte;
• Aconselha-se também a ataraxia.

Estilo:
• Recurso ao hipérbato e à anástrofe, sugerindo, assim, a construção da frase
latina.
• Uso de um vocabulário erudito de origem grega e latina.
Álvaro de campos, o poeta da modernidade
Evolução literária em 3 fases: 1º fase- decadentista; 2º fase- sensacionista e
futurista; 3º fase- intimista.
Após uma primeira fase mais associadas a temas característicos do
decadentismo (tédio profundo em relação à vida, desejo de experimentar novas
sensações), e que tem como paradigma o poema «opiário», a poesia de Álvaro de
Campos evolui para um período fortemente marcado pela influência do futurismo
(2ºfase).
É neste âmbito que o sujeito poético procede à exaltação da vida moderna, ou
sejam da crescente industrialização, da evolução tecnológica e do ritmo frenético dos
grandes centros urbanos, sobretudo em poemas como «Ode triunfal» e «Ode
marítimas»
A poesia de Álvaro de campos transmite nos seus poemas as sensações intensas
desencadeadas pelo ritmo alucinante das máquinas e da vida moderna. Por dar primazia
às sensações («sentir tudo de todas as maneiras», também é um exemplo de
sensacionismo.
Na terceira fase, todo este ambiente marcado pelo excesso se desfaz, acabando
por culminar uma atitude de apatia resultante de um desalento e ceticismo profundos
em relação à vida. A defetividade do presente desencadeia no «eu» uma profunda
nostalgia da infância, época supostamente feliz.
Em suma, Álvaro de Campos resulta no heterónimo mais complexo de Pessoa,
atravessando fases poéticas diferentes.

Mensagem, Fernando Pessoa

Estrutura da obra
Mensagem divide-se em três partes: Brasão, Mar Português e o Encoberto.
Na primeira parte, Brasão, alinham-se mitos e figuras históricas de Portugal.
Na segunda parte, Mar Português, fala-se dos descobrimentos.
Na terceira parte, Encoberto, sebastianismo e iminência da concretização do
quinto império.

A natureza épico-lírica da obra


A natureza épico-lírica de Mensagem assenta no facto de os 44 poemas que a
compõem revelarem marcas de ambos os domínios literários. O leitor reconhece um
caracter híbrido que resulta do cruzamento do género da epopeia e do modo lírico,
como se pode ver em «O infante» (segunda parte: «O mar português»).
A par da sua faceta épica emerge em mensagem uma dimensão lírica que se
manifesta numa vertente mais introspetiva dos poemas. Como é característica deste
modo literário, encontramos um sujeito poético que, no seu discurso, dá conta do seu
mundo interior, dos seus sentimentos, das suas reflexões sobre Portugal e o seu destino.
Ao contrário d’Os Lusíadas, que, num momento de abatimento e decadência,
narra a grandeza do passado, a Mensagem, exaltando os heróis e feitos do passado, na
primeira e segunda parte. A terceira parte da obra dissocia-se definitivamente da
epopeia camoniana, erigindo e alimentando o mito sebastianista.

Dimensão simbólica do herói


As figuras retratadas surgem como heróis que se enquadram no plano de deus
para Portugal. De acordo com a vontade divina, o nosso país deverá traçar até alcançar
o Quinto Império. Estes heróis são em geral figuras solitárias, dado que se elevam acima
da turba, que vive para a satisfação das suas necessidades básicas, ousando sonhar. A
sua «loucura» e febre do «longe» mostram que são ungidos por deus. O paradigma
deste tipo de herói é D. Sebastião. O preço a pagar por este desejo de elevação acima
da sua condição humana é o sofrimento. Aqueles que conseguem ultrapassar o medo e
a dor são elevados à condição de imortais.

O sebastianismo
Mensagem retoma o mito Sebástico com uma configuração própria. Fernando
pessoa é agora o profeta que, num contexto nacional difícil e de crise, fala do
ressurgimento de Portugal e do seu futuro traçado por deus. Nesta obra, D. Sebastião é
uma figura que surge no título de dois poemas, mas o seu valor é simbólico e não será
o seu regresso «carnal» que Pessoa aguarda; a noção de Salvador terá uma configuração
simbólica.
Mensagem é atravessada por figuras, símbolos («as ilhas afortunadas»,
«nevoeiro») e avisos («o bandarra», «nevoeiro») que anunciam uma nova era. Essa era
futura é o do Quinto Império. Um conceito bíblico que o padre António Vieira, Fernando
Pessoa e outros autores atualizaram. Para o poeta da Mensagem, depois dos impérios
grego, romano, cristão (medieval) e europeu marítimo chegará este novo tempo (quinto
império).
O Quinto Império é um conceito universal, pois envolve toda a humanidade e
não será conquistada pelas armas. Trata-se de um domínio espiritual, que por escolha
divina, tem Portugal à cabeça e que se propõe trazer fraternidade, paz, prosperidade a
todos os povos. Será uma espécie de regresso ao paraíso perfeito.
*Livro do desassossego, Bernardo Soares*

O quotidiano
Bernardo Soares reconhece que o fracasso que marca o seu quotidiano decorre,
em parte, da inaptidão para lidar com estas questões pragmáticas da existência («Nunca
aprendi a existir»). Consciente desta sua característica, acredita que todos os seus
sonhos estão à partida condenados ao malogro- motivo pelo qual se refugia numa
atitude de inércia.
Considera que a condição de ser pensante o torna superior aos indivíduos que o
rodeiam- seres marcados pela inconsciência que se contentam com uma existência
marcada pela mediocridade. É por este motivo que se refugia numa solidão voluntária.

Deambulação e sonho: o observador acidental


Em vários fragmentos do livro, o enunciador percorre as ruas de lisboa e regista
as perceções que tem da cidade recordando o que Cesário Verde tinha feito em «um
sentimento do ocidental».
A deambulação permite observar e fazer registos sobre diferentes lugares e
elementos do real que se cruzam com o sujeito. A relação desta personagem com a
realidade em que vive e o lugar em que se inscreve que o conduzem ao desassossego,
que tem origem na insatisfação, no tédio, no seu temperamento sonhador, nas
circunstâncias adversas da sociedade em que vive.
Os momentos descritivos e os narrativos são frequentemente o ponto de partida
para reflexões ou abrem portas para a imaginação e para o mundo do sonho: o «eu»
imagina-se «outro» noutro lugar que ele próprio cria atrás da imaginação. No fundo, é
no mundo onírico que se procura por termo ao seu desassossego.

Perceção e transfiguração poética do real


A perceção que o «eu» tem e regista do real é a que podemos apelidar de
objetiva.
É a imaginação que serve de ponte entre as paisagens exteriores e o mundo
interior e a realidade interior suplanta a exterior. Assim, substitui o real exterior pelo
interior. Há também as paisagens e as experiências que foram interiorizadas pelo «eu»
e que são caracterizadas como suas: “certos quadros, sem sombra de relevo artísticos,
certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas- passa a
realidade dentro de mim”. Nestes casos, o enunciador seleciona aspetos do mundo
exterior que transforma interiormente, de forma artística e imaginativa. O «eu»
transfigura assim o real, torna-o seu e/ou muda-lhe a forma pelas palavras usadas-
transfiguração poética: “os bancos do elétrico, de um entretecido da palha forte e
pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários…”.
Sermão de Santo António (aos Peixes)
De Padre António Vieira

1 – Tipo de texto

O sermão, é uma forma de oratória. A sua estrutura é a mesma de um texto argumentativo: o


exórdio corresponde à introdução; a narração/exposição e a confirmação correspondem ao
desenvolvimento e a peroração corresponde à conclusão.

2 – Síntese

O Sermão é uma obra que procura advertir para um conjunto de comportamentos humanos e
motivar para a sua alteração. Ao longo do Sermão, Vieira começa a louvar as virtudes dos peixes para, de
seguida, repreender com ironia, os seus defeitos.
Neste sermão, Padre António Vieira, através da identificação das virtudes e dos defeitos dos peixes,
aproveita para dar lições aos homens. O pregador destaca o vício que mais o escandaliza nos ei xes: o facto
de os peixes se comerem uns aos outros, o que é agravado pelo facto de serem os peixes grandes a
comerem os pequenos. Recorrendo à metáfora, Vieira denuncia a traição, o roubo, a exploração, todas as
ações criminosas cometidas pelos colonos do Brasil. Ou seja: tanto os peixes como os homens não se
devem aproveitar dos mais fracos, das suas desgraças e misérias, sob pena de serem amaldiçoados.
Para ele, a grande qualidade dos peixes resume-se à expressão: “Ouvem e não falam”. O que
sobressai de todo o Sermão é a censura ao comportamento dos homens, nomeadamente nas terras de
missão onde observa “falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais
perniciosas traições”…

3 – Razões para o título

 Homenagear Santo António (por ter sido pregado no dia de Santo António);
 Aproveitar o exemplo do sermão pregado aos peixes por Santo António;
 Tal como Santo António tentou converter os hereges (para que conseguissem expulsar os demónios
dentro de si), também o Padre António Vieira tenta convencer os colonos portugueses no Brasil a
mudar o seu comportamento.

4 – Objetivos a atingir com o Sermão

 Agitar as consciências;
 Conduzir à reflexão;
 Evitar o mal;
 Preservar o bem.
5 – As partes do Sermão de Santo António aos Peixes (síntese)
Capítulos do Sermão Conteúdo temático
Exórdio Capítulo I  Conceito predicável –
(exposição do plano a “Vos estis sal terrae”
desenvolver e das ideias a (“Vós sois o sal da terra”)
defender)  Exploração a Santo
António como modelo a
seguir
 Invocação à Virgem Maria
no final do capítulo –
“Ave-Maria”
Nota: Embora não fosse
obrigatório, os sermões
podiam conter também uma
Invocação (pedido de auxílio
divino).
Exposição e Confirmação Capítulo II Louvores aos peixes em geral
(desenvolvimento da (Exposição)
argumentação “para que
procedamos com clareza,
dividirei, peixes, o vosso sermão
em dois pontos: no primeiro
louvar-vos-ei as vossas atitudes,
no segundo repreender-vos-ei os
vossos vícios.”)
Capítulo III Louvores aos peixes em
(Confirmação) particular:
 Peixe de Tobias
 Rémora
 Torpedo
 Quatro-olhos
Capítulo IV Repreensões aos peixes em geral:
(Exposição)  Denúncia de casos de
antropofagia social
Capítulo V Repreensões aos peixes em
(Confirmação) particular:
 Roncadores
 Pegadores
 Voadores
 Polvo
Peroração Capítulo VI  Apelo aos ouvintes numa
(utilização de um desfecho forte (“Com esta última advertência última advertência aos
para impressionar o auditório) – vos despido, ou me despido de peixes (cf. “Peixes dai
uma conclusão com uma última vós, meus peixes. E para que muitas graças a Deus de
advertência aos peixes; retrato vades consolados do sermão, que vos livrar deste perigo
dele próprio como pecador; hino não sei quando ouvireis outro, […]”)
de louvor. quero-vos aliviar de uma  Retrato dele próprio como
desconsolação mui antiga, com pecador
que todos ficastes desde o tempo  Hino de Louvor a Deus (cf.
em que se publicou o Levítico.”) Repetição anafórica
“Louvai a Deus”)
5.1 – Capítulo I

Exórdio – Exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender a partir do conceito predicável
“vós sois o sal da terra”.
Uso do conceito predicável “Vós sois o sal da terra” para desenvolver a sua argumentação.

O sal - metáfora dos pregadores


A terra – metáfora dos ouvintes

Então, se a terra está corrupta/ “estragada” – de quem é a culpa?


Pode ser atribuída a duas causas

O pregador não prega (ensina) A terra não "ouve" a palavra


em condições do pregador

Os ouvintes não querem


Não pregam a verdadeira
receber a doutrina que lhes
doutrina
dão
Os ouvintes antes querem
Dizem uma coisa e fazem imitar o que os pregadores
outra fazem, do que fazer o que lhes
dizem
Os ouvintes em vez de
Pregam-se a si e não a Cristo servirem a Cristo, servem os
seus apetites

 A solução de Santo António: “Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da
doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar”.
A solução do orador: imitar Santo António.

5.2 – Capítulo II: Louvores em geral

Exposição – referência às obrigações do sal; indicação das virtudes dos peixes em geral; crítica aos
homens.

 As duas qualidades de ouvinte: ouvir e não falar.


 Retoma o conceito predicável. As propriedades das pregações de Santo António:
o Louvar o bem
o Repreender o mal
Sermão aos peixes (e obviamente aos homens) será divido em dois pontos:
o Louvar as qualidades
o Repreender os vícios

As qualidades e as virtudes dos peixes:


 A obediência;
 “ordem, quietação e atenção” com que ouviram as palavras de Santo António;
 Respeito e devoção ao ouvirem a Palavra de Deus;
 Seu “retiro” e afastamento relativamente aos homens (“Peixes! Quanto mais longe dos homens,
tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!”)
 “Só eles entre todos os animais não se domam nem domesticam”.

Santo António para se aproximar de Deus, afastou-se dos homens:


“que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens”;
“ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota”;
“tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens”.

5.3 – Capítulo III: Louvores em particular

Confirmação – os louvores a alguns peixes em particular; a crítica aos homens.

Outros peixes:
 Servem de alimento (as sardinhas – sustendo dos pobres; solhos e salmões –
sustento dos ricos);
 Ajudam à abstinência (jejum)
 Sustentam as Cartuxas, os Buçacos (ordens religiosas) e as santas famílias
 Com peixes, Cristo festejou a Páscoa
 Ajudam a ir ao Céu
 Multiplicam-se rapidamente (aqueles que são consumidos pelos pobres)

5.4 – Capítulo IV: Repreensões em geral

Exposição – indicação das repreensões aos peixes em geral; crítica aos homens.
As repreensões aos peixes vão ser feitas como objectivo se não for de corrigir, ao menos que seja,
de perturbar.O grande defeito dos peixes é comerem-se uns aos outros. Este defeito agrava-se quando os
grandes comem os pequenos, por isso, para alimentar um grande são precisos muitos pequenos.

Desde o início do sermão que o pregador prega aos peixes apontando-lhes os seus vícios e virtudes.
Agora, ao falar-lhes dos vícios, aponta-lhes como o exemplo os vícios dos homens. Ora, considerando a
alegoria do sermão – os peixes são a representação dos homens que Vieira utiliza indirectamente para os
poder criticar – é interessante, nesta parte, a forma hábil como fala directamente aos homens dos seus
vícios (inversão peixes/homens).

Sabendo que o grande defeito dos homens é comerem-se uns aos outros e tendo em conta que os
colonos pensariam imediatamente nos rituais antropófagos dos índios, o orador afirma que está a referir-
se aos brancos, pois ‘’muito mais se comem os brancos’’ – inferiorizam os escravos. Os defeitos apontados
são a ignorância e a cegueira originadas pela riqueza.

Momentos essenciais:
1ª parte – crítica e repreensão aos peixes grandes que comem os pequenos;
2ª parte – o escândalo: afinal os homens também se comem uns aos outros (“Morreu algum deles,
vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros…”);
3ª parte – o escândalo, o horror e a crueldade maior: “também os homens se comem vivos assim
como vós”.

5.5 – Capítulo V: Repreensões em particular

Confirmação – repreensões a alguns peixes em particular; crítica aos comportamentos dos homens
ambiciosos, vaidosos, hipócritas e traidores.

Neste capítulo do sermão, o pregador censura quatro criaturas marinhas em particular; estas
simbolizam os pecados ou vícios humanos condenáveis.

Os Roncadores, peixes pequenos e que emitem um som grave,


são sempre facilmente pescados e apesar de serem pequenos têm muita
língua («É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de
ser as roncas do mar?»). Representam a arrogância e o orgulhoso.

Os Pegadores/ Rémoras, pequenos e que se fixam a peixes


grandes ou ao leme dos navios («Pegadores se chamam estes de que
agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não
só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos
costados, que jamais os desferram.»). Representam o oportunismo, o
parasitismo social e a subserviência. Uma vez que vivem na
dependência dos grandes e morrem com eles, Vieira argumenta que
os grandes morrem porque comeram, os pequenos morrem sem
terem comido.

Os Voadores, peixes de grandes barbatanas que saltam


para fora de água como se voassem. Representam o defeito da
presunção e da ambição desmedida e desse modo, porque não se
contentam com o seu elemento, são pescados como peixes e
caçados como aves («Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves?
[...] Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.») . Simão Mago e Ícaro
exemplificam-no entre os homens. Por contraste, Santo António tinha sabedoria e poder, mas não se
vangloriou.

O Polvo, detentor de um «capelo», tentáculos, um corpo


mole e podendo camuflar-se, é considerado um hipócrita e
traidor pois utiliza a capacidade mimética (varia a sua coloração
e a sua forma, de acordo com o meio em que se encontra) para
atacar os peixes desprevenidos («E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa [...] o dito polvo é o
maior traidor do mar.»). Entre os homens, encontramo-lo em
Judas. Mais uma vez, por contraste, Santo António foi sincero e verdadeiro - nunca enganou.

5.6 – Capítulo VI

Peroração – Utilização de um desfecho forte para impressionar o auditório

Conclusão – Com uma última advertência aos peixes; retrato dele próprio como pecador; hino de louvor

O capítulo VI é a conclusão de todo “O Sermão de Santo António aos Peixes”, e Santo António tem
como objetivo a conversão dos homens á Fé de Deus.

Santo António revela que tem inveja dos Peixes, pois estes não ofendem Deus com a sua memória e
cumprem o objetivo da sua criação, enquanto que os Homens ofendem Deus com as suas palavras, com os
seus pensamentos e com a sua vontade, não atingindo o objetivo da sua criação.

Assim, Santo António reflete sobre os Peixes e os Homens e conclui que os Peixes são melhores que
os Homens, e que a única solução para o Homem é a conversão, porque só assim é que os Homens podem
dar glória a Deus.

6 – Linguagem e estilo
Alegoria:
“falando com os pregadores, sois o sal da terra; e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na
terra o que faz o sal”
“O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos,
parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma
mansidão”

Apostrofes:
“Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó
peixes..."
"Ah moradores do Maranhão..."
"Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador (...)"
"Peixes, contente-se cada um com o seu elemento."
"Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo (...)"
"Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade (...)"

Antíteses:
Tanto pescar e tão pouco tremer!"
"No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (...)"
"(...) deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima (...) e outros dois que direitamente
olhassem para baixo (...)"
"A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar (...)"
"(...) traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras."
"(...) António (...) o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo,
fingimento ou engano."
"Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar!"

Comparações:
Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de
Santo António."
"O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens."
"(...) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura (...)"
"As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia (...)"
"(...) e o salteador, que está de emboscada (...) lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera
mais Judas?"
"Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor

Paralelismos e Anáforas:
"Deixa as praças, vai-se às praias;
deixa a terra, vai-se ao mar..."
"Se está nos limos, faz-se verde;
se está na areia, faz-se branco;
se está no lodo, faz-se pardo (...)"

Enumeração:
“No mar, pescam as canas, na terra pescam as varas (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam
as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam (...)"
"(...) que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais
perniciosas traições."
"Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com palavras; eu lembro-me, mas não ofendeis a Deus com a
memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não
ofendeis a Deus com a vontade."

Metáforas
"(...) pois às águias, que são os linces do ar (...) e aos linces que são as águias da terra (...)"
"(...) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos ?!"
" (...) vestir ou pintar as mesmas cores (...)"
"(...) e o polvo dos próprios braços faz as cordas

Paradoxos:
“a terra e o mar tudo era mar."
"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor
do mar."
"hipocrisia tão santa"

Trocadilhos
Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o
levar vivo à terra."
"E porque nem aqui o deixavam os que o tinham deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e
finalmente Portugal."
"(...) o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não
queriam lavar."

Interrogações retóricas
qual será, ou qual pode ser, a causa desta corrupção?"
"Não é tudo isto verdade?"
"(...) que se há de fazer a este sal, e que se há de fazer a esta terra?"
"Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? (...) Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-
ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo?"
"(...) onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!"

Ironia
“Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes."
"E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor
do mar."
Síntese da unidade

Camilo Castelo Branco

✓ Nasce, em 1825, em Lisboa.

✓ Após a morte dos seus pais, vive grande parte da sua vida no Norte do país, em
casa de uma tia que o acolhe.

✓ Constrói uma carreira nas letras, a par da sua atividade jornalística.

✓ É preso entre 1860 e 1861, na Cadeia da Relação do Porto, devido à relação


adúltera que mantém com Ana Plácido.
Síntese da unidade

✓É na cadeia da Relação que escreve Amor de perdição, em apenas 15 dias,


publicando-o em 1862.

✓Suicida-se, em 1890, em S. Miguel de Ceide.


Síntese da unidade

O confronto obra-biografia, em Camilo, sustenta o quadro fundamental de


referências para a leitura dos seus textos.

Circunstâncias biográficas que se salientam nas suas obras:


▪Bastardia;
▪Orfandade;
▪As tradições romanescas da família;
▪Educação religiosa;
▪Convívio com a paisagem física e humana das províncias do Norte;
▪Conhecimento íntimo do meio portuense;
Síntese da unidade

▪ Aventuras sentimentais;

▪ Lances da vida boémia e turbulenta;

▪ Pobreza;

▪ Desgostos;

▪ Doença;

▪ Isolamento;

▪ Profissionalismo na carreira das letras.


Síntese da unidade

A obra O autor
Simão é preso na cadeia da Relação do Porto Camilo é preso na cadeia da Relação
pelo facto de ter assassinado o homem que se do Porto, no seguimento do seu caso
interpunha entre si e Teresa. adúltero com Ana Plácido.

Simão sente-se abandonado por toda a Camilo fica órfão em tenra idade.
família.
Simão sente que fez muita gente à sua volta Camilo envolveu-se com várias mulheres
desgraçada. que acabou por abandonar.

O irmão mais velho de Simão, Manuel, era o pai de Camilo. A irmã mais nova de Simão e de Manuel,
Rita, foi a tia que acolheu Camilo depois da morte dos pais. Foi esta tia que contou a história que
serviu de mote à obra Amor de perdição.
Síntese da unidade

Camilo Castelo Branco serve-se de um registo real, existente na Cadeia do Porto, e


opta pela sua transcrição, assumindo, desde o início, que aquilo que vai narrar é
baseado numa história verídica.

«Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das
entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte: Simão António Botelho, que assim disse
chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente
na ocasião de
sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D.
Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e
barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este
assento, que assinei – Filipe Moreira Dias.»
Amor de perdição
Síntese da unidade

Ação

Os filhos de duas famílias inimigas – Simão Botelho e Teresa Albuquerque – apaixonam-se e


estão dispostos a morrer pelo seu amor.

Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, descobre a relação e tenta levar a filha a casar com seu
primo, Baltasar. Perante a recusa de Teresa, o pai condena- a à clausura do convento.

Simão, numa tentativa de visita que faz a Teresa, no Convento de Viseu, discute com Baltasar,
mata-o e é preso.

Simão é abandonado pela família na prisão e é condenado a 10 anos de degredo, na Índia.


Mariana, a filha de João da Cruz que entretanto se apaixonara incondicionalmente por
Simão, mas que tudo fez para ajudar o par enamorado, acompanha-o. Simão parte, Teresa
morre. Depois de 9 dias no mar, Simão acaba por sucumbir e Mariana suicida-se.
Síntese da unidade

«Amou, perdeu-se, e morreu amando.»

Simão apaixona-se por O amor será a causa da Desenlace trágico com a


Teresa. destruição das morte, por amor.
personagens.
Síntese da unidade

Personagens

Simão Botelho
•Forte de compleição.
•Belo.
•Parecido com a mãe.
•Estudante de Humanidades, em Coimbra.
•Adepto dos ideais liberais.
•Jovem rebelde e turbulento, que acaba transformado pelo amor que sente por Teresa.
•Tio de Camilo Castelo Branco, com quem mantém algumas semelhanças biográficas (daí
que o subtítulo de Amor de perdição seja “Memórias de uma família”).
Síntese da unidade

Simão Botelho
•Personagem modelada.
•Com características de anti-herói (arruaceiro, responsável pela
morte de Baltasar).
•Homem sensível.
•Corajoso; determinado; digno; responsável e ansioso por
liberdade.

A construção deste herói romântico pode ser um reflexo do


próprio autor.
Síntese da unidade

Personagens

Teresa de Albuquerque

•Filha única de Tadeu de Albuquerque.


•Órfã de mãe.
•Fidalga.
•Herdeira de um grande património.
•Bonita.
•Mártir e anjo.

Simão e Teresa são ajudados por João da Cruz e Mariana. Como


opositores, surge o pai de Teresa, Baltasar e os pais de Simão.
Contudo, o Destino é o oponente invencível.
Síntese da unidade

Personagens

Mariana

•Filha de João da Cruz.


•Jovem do povo.
•Bela e de formas bonitas.
•Mártir e anjo.
Síntese da unidade

Personagens

Tadeu de Albuquerque

•Fidalgo de Viseu.
•Viúvo.
•Pai de Teresa.

Domingos Botelho

•Fidalgo de linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila Real.


•Magistrado e corregedor em Viseu.
Síntese da unidade

Personagens

Baltasar Coutinho
•Fidalgo de Castro Daire.
•Primo de Tadeu de Albuquerque.
•«refalsado, imagem odiosa, pessoa com absoluta carência de brios».

João da Cruz

•Mestre ferrador, com oficina perto de Viseu.


•Alberga Simão em sua casa, pois deve a sua liberdade e a sua vida a
Domingos Botelho.
Síntese da unidade

Herói romântico

✓ A solidão caracteriza-o, mesmo que não se trate de uma solidão física. O herói
romântico tem predisposição para o isolamento.

✓ É dotado de um dinamismo orientado para a superação de adversidades.


✓ O seu individualismo surge associado a um egocentrismo que remete para o
idealismo, provocando no herói romântico a ambição do infinito.

✓ Quando os seus ideais não são atingidos, o herói romântico entrega-se à destruição e
desilusão.

✓ O suicídio, comum no Romantismo, surge como solução.


Síntese da unidade

Em suma, são características do herói romântico a defesa da liberdade, que


pode conduzir a comportamentos de:
-rebeldia,
-individualismo,
-Idealismo,
-ânsia pelo absoluto,
traduzíveis no vigor anímico e na tentativa de superação do herói ou no seu
isolamento e desistência, quando finda a esperança de atingir certos ideais.
Síntese da unidade

Amor-Paixão

✓ Núcleo da ação.
✓ Sentimento avassalador, febril e egoísta.
✓ Condição que desperta o desejo de vingança e de conservação da honra.
✓ Responsável pela sacralização dos amantes, por aproximação com a paixão de Cristo.
Síntese da unidade

Amor de perdição - crónica de mudança social

✓Acusação contra a subordinação do amor a preconceitos de geração ou cálculos


materiais.

✓Crítica à sociedade aristocrática e fradesca, anterior a 1832, e à nova sociedade


burguesa do Constitucionalismo.

✓Condenação dos privilégios da aristocracia em relação a outras classes sociais.

✓Crítica ao sistema judicial e burocrático que se deixa dominar pelos poderosos.


Síntese da unidade

Amor de perdição - crónica de mudança social

Em suma, Amor de perdição apresenta-se como crónica da mudança


social, pois na obra critica-se a estrutura social da época, refletida nos
casamentos de conveniência: honra/estatuto social vs. amor; denuncia-se
a corrupção da justiça, à mão dos poderosos e satiriza-se o
comportamento inadequado
e mundano dos membros religiosos.
Síntese da unidade

Amor de perdição – Linguagem, estilo e estrutura


Narrador Diálogo Tempo Linguagem

Convoca frequentemente o Permite o avanço da Capítulo I – 40 anos Permite a identificação do


narratário ação (antecedentes) estatuto social das
personagens
– povo (viva, popular, familiar)
– nobreza, burguesia (cuidada,
literária)

Tece juízos de valor Imprime ritmo e Capítulos I a XX


dinâmica 7 anos (1801-1807)
teatral à narrativa
Flutua entre os diferentes Reflete o estatuto Conclusão
tipos de focalização social 9 dias
(predomínio da de quem fala
omnisciência)
Contextualização histórico-literária

Camilo Castelo Branco

✓ Nasce, em 1825, em Lisboa.

✓ Após a morte de sua mãe, vive grande parte


da sua vida no Norte do país, em casa de uma tia
que o acolhe.

✓ Desenvolve atividades jornalísticas, que lhe


trazem inimizades.
Contextualização histórico-literária

✓É preso, entre 1860 e 1861, na Cadeia da Relação do Porto, devido à relação


adúltera que mantém com Ana Plácido.

✓É na cadeia da Relação que escreve, em apenas 15 dias, Amor de perdição, cujo


protagonista, que é tio de Camilo Castelo Branco, revela uma vida amorosa
semelhante à do autor.

✓Suicida-se, em 1890, em S. Miguel de Ceide.


Contextualização histórico-literária

Movimento Romântico
(século XIX)

✓ Surge por oposição ao racionalismo do século anterior.

✓ Centra-se no indivíduo, no drama humano, no amor, na tragédia, no sonho,


na morte e nos desejos de fuga.

✓ Os ideais utópicos do Romantismo, em Portugal, coincidem com os do


Liberalismo, da Regeneração e da refundação do país.

✓ O Romantismo português foi desencadeado por aqueles que participaram na


Revolução Liberal.
Contextualização histórico-literária

Génese do Romantismo

Afirmação de direitos fundamentais da pessoa humana, em conexão com ideais


revolucionários como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, podendo estes ser
relacionáveis com:
a valorização da Natureza como espaço primordial;
a busca do absoluto (amoroso, estético, social, etc.);
a vivência de comportamentos de rebeldia, que colocava o sujeito em situação
de rutura com constrições sociais, morais e religiosas;
o culto de tradições populares e recuperação de cenários medievais;
uma atitude de superioridade e ironia relativamente às convenções burguesas.
Contextualização histórico-literária

Herói romântico

✓A solidão caracteriza-o, mesmo que não se trate de uma solidão física. O herói
romântico tem predisposição para o isolamento.

✓É dotado de um dinamismo orientado para a superação de adversidades.


✓O seu individualismo surge associado a um egocentrismo que remete para o
idealismo, provocando no herói romântico a ambição do infinito.

✓Quando os seus ideais não são atingidos, o herói romântico entrega-se à destruição
e desilusão.

✓O suicídio, comum no Romantismo, surge como solução.


Contextualização histórico-literária

Em suma, são características do herói romântico a defesa da liberdade, que


pode conduzir a comportamentos de:
-rebeldia,
-individualismo,
-idealismo
-ânsia pelo absoluto,
traduzíveis no vigor anímico e na tentativa de superação do herói ou no seu
isolamento e desistência, quando finda a esperança de atingir certos ideais.

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