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SÃO PAULO
2019
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Cf. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Realismo, Parnasianismo, Simbolismo. In:
Presença da Literatura Brasileira: das origens ao Realismo. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2008. p. 288
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foi fria e hostil; a obra foi quase que completamente ignorada pela imprensa local
(AZEVEDO, 1991, p. 10). O descaso da crítica maranhense é explicado pela guerra travada
de 1879 a 1881 (PRECIOSO, 2011, p. 4) entre dois periódicos de São Luís, o positivista e
anticlerical O Pensador, que contava com Aluísio Azevedo na redação, e o jornal católico A
Civilização. Essa rivalidade atingiu seu ápice com a publicação d’O mulato, pois, ao longo de
todo o enredo, Azevedo relata as hipocrisias da sociedade maranhense e, não por acaso,
atribui a um padre o papel de vilão principal, como afirma Precioso:
Apesar das críticas — ou, talvez, justamente por causa delas — O mulato teve um
número expressivo de exemplares vendidos na província, segundo Carvalho:
maranhense criada na fazenda” (IDEM, 1991, p. 17) (Maria Bárbara), o sacerdote vaidoso e
respeitado (cônego Diogo), e assim por diante.
É considerável o esmero do narrador ao pintar o quadro da história que pretende
contar, demorando-se em detalhar cada uma dessas personagens. Esses estereótipos são fruto
das impressões de pessoas reais que Azevedo observava não só enquanto jornalista e
intelectual, mas também como frequentador dos meios sociais maranhenses; um bom exemplo
é a personagem dona Amância Souselas, que, segundo Menezes (1958 apud GOFFREDO,
2012, p. 33), “não é outra senão Ana Leger, figura muito popular na cidade, conhecida pelo
hábito de contar anedotas baixas e grosseiras”. A competência de Azevedo ao criar um
narrador capaz de retratar tão vivamente tais tipos é um dos elementos que o distingue na
historiografia, como notam Candido e Castello:
Azevedo, cuja ambição de se tornar pintor foi frustrada ainda na juventude2, lança mão
de sua habilidade nas artes plásticas ao voltar-se para as letras. Por meio de uma arguta e
afinada capacidade de observação, desenvolvida, especialmente, durante sua maturação
enquanto jornalista, Azevedo constrói um narrador que desenha cuidadosamente os cenários e
a trama e que reflete suas próprias impressões sobre a vida e a sociedade maranhense.
Definido, singelamente, nosso narrador onisciente, e levando em consideração o bom
senso, passo agora à parte final e central do que anunciei linhas atrás: a ambiguidade de Ana
Rosa, Dias e Diogo e o sentido que podemos dela extrair.
Antes que Ana Rosa seja descrita individualmente, o narrador apresenta as
personagens que a cercam — seu pai, sua mãe, sua avó materna — e é a partir de sua mãe,
Mariana, um espírito de grande “sensibilidade romântica” (AZEVEDO, 1991, p. 19) que o
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Segundo Cruz (2008, p. 56), “a precária situação financeira da família não permitiu que o futuro
caricaturista do jornal satírico O Mequetrefe fosse para a Itália estudar artes plásticas”.
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leitor começa a deduzir a personalidade de Ana. Em seu leito de morte, quando Ana Rosa
ainda era criança, Mariana lhe deu um conselho que marcou a menina: jamais case-se sem
amor (IDEM, 1991, p. 19). No tempo da história, Ana já tem vinte anos e seu maior desejo é
constituir família; sempre pensando nas palavras de sua mãe, a menina sente que já ama um
noivo que ainda não conhece. Ama tanto esse ideal que, aos dezoito anos, o celibato começa a
lhe causar crises nervosas (IDEM, 1991, p. 21), cujo remédio, receitado pelo médico, é o
casamento. Na primeira noite da chegada de Raimundo à São Luís, Ana Rosa descobre nele o
noivo que tanto esperava; a menina passa toda a madrugada pensando no primo, descontente
com a indiferença do rapaz, que, “ao mesmo tempo que lhe pungia e atormentava o orgulho,
levantava-lhe, na sua vaidade de mulher, um apetite nervoso de ver rendido a seus pés aquela
misteriosa criatura” (IDEM, 1991, p. 63). Eventualmente, Ana Rosa revela a Raimundo sua
paixão, que não lhe nega reciprocidade, embora seja contrastantemente mais racional na
ocasião; quando surge a oportunidade, o rapaz pede a mão da moça em casamento à Pescada
durante a viagem dos dois à Rosário, mas a união é negada pelo português, obrigado a revelar
à Raimundo sua condição, que ele, até então, desconhecia, de filho de escrava e forro à pia
(IDEM, 1991, p. 130). Seu casamento com Ana Rosa abalaria os escrúpulos da sociedade
maranhense, a começar pela própria avó da moça, e Pescada jamais permitiria semelhante
escândalo. A história de Raimundo e Ana Rosa termina de forma trágica: a menina engravida
do primo, numa tentativa infrutífera de forçar sua família a aceitar o casamento; Raimundo é
morto por Luís Dias, sob influência do padre Diogo e Ana Rosa, ao ver o cadáver do amante,
sofre um aborto espontâneo. Dois anos após esses acontecimentos, Ana Rosa casa-se com
Dias.
Não é a minha proposta tentar julgar, nestas linhas, a natureza ou a veracidade do
amor de Ana Rosa por Raimundo, mas vale ressaltar que, embora possa parecer estranho que
a moça, depois de tanto lutar para ficar com o primo, à despeito dos conselhos de todos e das
implicações sociais atreladas à mestiçagem de Raimundo, tenha, no último capítulo, casado-se
com Dias e o trate com tanto carinho3, Goffredo bem nota que
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“— Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...” (AZEVEDO,
1991, p. 190)
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O que eu quero frisar é que Ana Rosa, no fim das contas, fazendo aquilo que é
esperado dela e adequando-se a uma nova realidade, apenas parece mudar de caráter; a moça,
na verdade, sempre quis alguém para amar, e o leitor menos romântico d’O mulato não chega
a se surpreender ao saber como ela termina, já que o que realmente importava para ela foi
alcançado: seu sonho de construir uma família, por fim, consumou-se. No sistema de valores
do romance, essa adequação iguala a moça aos outros personagens brancos; Ana Rosa
aplaina-se e, não sendo mais do que um produto da sociedade em que vive, passa, de uma vez
por todas, a integrar a mesma, que é o alvo das críticas de todo o romance.
Seguimos, então, para a apresentação do caixeiro português Luís Dias, primeiramente
narrado por meio de uma sequência de adjetivos positivos, criando a imagem de um rapaz
Mas tal aparência não demora a ser desfeita pelo narrador; essa construção inicial nada
tem a ver com a real essência da personagem, de modo que o leitor reconhece a ironia nessa
primeira descrição. Nessa citação, conhecemos Dias tal como as pessoas à sua volta o vêem.
Já no segundo capítulo, o caixeiro é assim descrito:
O narrador passa, então, a uma descrição física que expõe a figura asquerosa
constituída por Dias:
(...) magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa
curta e olhos fundos. (...); quando estava perto da gente sentia-se logo um
cheiro azedo de roupas sujas. (IDEM, 1991, p.31-32)
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Mesmo antes de se aliar ao cônego Diogo para acabar com o romance de Raimundo e
Ana Rosa, já sabemos, graças à onisciência do narrador, que Dias é um arrivista da pior
espécie, dado, até mesmo, a cometer infantilidades, como empretecer a imagem de São
Raimundo que ficava no quarto de Maria Bárbara (IDEM, 1991, p. 88), de tal modo que é
inútil buscar qualquer espécie de inocência ou ingenuidade na sua ação de atirar em
Raimundo, mesmo sob a escusa de ser influenciado pelo cônego. Não obstante, à despeito
desse episódio, nas últimas páginas, o leitor é informado de que Dias não apenas se casou
com Ana Rosa, mas também virou sócio de Manuel Pescada e adquiriu “certo emproamento
de ricaço” (IDEM, 1991, p. 190).
A última figura que aqui me interessa, o cônego Diogo de Melo, é a personificação do
mau padre e do sentimento anticlerical de Azevedo e do narrador. Diogo também é português
e serve como conselheiro espiritual à todos os personagens centrais da história, manipulando
Pescada, Ana Rosa, Maria Bárbara e Dias de acordo com seus próprios interesses. A vilania
de Diogo é exagerada e maniqueísta; o padre não age sem cálculo e só se preocupa com o
próprio bem estar; é racista, vaidoso, arrogante, luxurioso, dissimulado e homicida. A sua
primeira descrição já revela algumas dessas características:
Era um velho bonito; teria quando menos sessenta anos, porém estava ainda
forte e bem conservado; o olhar vivo, o corpo teso, mas ungido de brandura
santarrona. Calçava-se com esmero, de polimento; mandava buscar na
Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria, mostrava
dentes limpos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos;
mãos brancas e cabelos alvos que faziam gosto. (IDEM, 1991, p. 24) (grifo
meu)
saiu a bala responsável pela morte do ex-traficante de escravos. Sempre acima de qualquer
suspeita, Diogo consegue manipular até mesmo Raimundo, na cena em que o bacharel acusa
Diogo de ser o assassino de seu pai4. Arquiteto dos dois assassinatos do livro, porém, Diogo
só revela parte de sua personalidade aos outros personagens em dois momentos diferentes: o
primeiro, quando é flagrado pelo pai de Raimundo no quarto da mulher deste, e o segundo
quando quer forçar Ana Rosa a se confessar5. No capítulo final, o narrador revela, sem
nenhuma intervenção, o destino final do cônego: Diogo está nas últimas, por causa de uma
“retenção de urina” (IDEM, 1991, p. 189).
Dessas três personagens, a primeira, Ana Rosa, parece ser ambígua no campo
sentimental: acompanhamos durante todo o romance uma moça apaixonada e disposta a lutar
contra tudo e todos para se casar Raimundo, apenas para, no último capítulo, nos depararmos
com uma Ana Rosa diferente, que seguiu sua vida após a morte do amado e se casou com
quem antes desprezava. A ambiguidade de Ana Rosa, narrativamente, reforça a tese
determinista que rege o romance; a moça segue aquilo que a sociedade espera dela. As duas
outras figuras, os portugueses Dias e Diogo, são ambíguas no que se refere à oposição entre
aparência e essência, especialmente Diogo; ambos são respeitados pela sociedade
maranhense, que não imagina e nem tenta adivinhar a personalidade do par, e ambos são
assassinos inescrupulosos. No relato do narrador, os dois são uma forma de apontar o
depravamento da dita “raça superior”, não necessariamente oposta aos negros, que
permanecem mudos durante todo o romance, mas à essa nova geração miscigenada, que
representa o futuro; a única personagem verdadeiramente positiva é Raimundo, o “mulato”
inteligente, bem apessoado, culto, moral, e ele não sobrevive, simbolicamente, aos homens e
mulheres de São Luís. A impressão do leitor sobre a sociedade maranhense da época, ao fim
d’O mulato, é a de uma sociedade atrasada, hipócrita e conservadora, que se mantém
resistente ao futuro republicano e abolicionista, e tal impressão não é mais do que o reflexo
das crenças do narrador e, nesse caso, também do autor.
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Raimundo é desarmado frente às palavras de Diogo, que vitimiza-se diante da acusação.
(AZEVEDO, 1991, p. 137)
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Nesse momento, inclusive, vale notar o empenho do narrador em demonstrar que Diogo não tem a
mínima decência e é a mais desprezível das personagens da obra, pois o cônego, ao ver Ana Rosa
desmaiada em frente ao confessionário, demora-se um instante a “contemplá-la naquela posição, que a
fazia mais bonita e, perdido em saudosas reminiscências da sua mocidade, admirava a curva macia dos
seios, palpitantes, sob a compressão da seda (...)” (IDEM, 1991, p. 168)
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Referências bibliográficas
AZEVEDO, Aluísio. O mulato. 10. ed. São Paulo: Editora Ática, 1991.
CARVALHO, Adherbal de. Capítulo XI. In: O naturalismo no Brasil. São Luís, MA: Ramos
de Almeida & C., 1894. p. 149-183.
HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIM, José Luis (Org.) Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992. p. 11-43.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São
Paulo: Editora Ática, 1985.