Você está na página 1de 10

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

PALOMA LUIZA DA SILVA BEZERRA

A INFLUÊNCIA DO NARRADOR ONISCIENTE DE ALUÍSIO AZEVEDO EM O


MULATO

SÃO PAULO
2019
1

Paloma Luiza da Silva Bezerra


Noturno — 133.460

A INFLUÊNCIA DO NARRADOR ONISCIENTE DE ALUÍSIO AZEVEDO EM “O


MULATO”

Considerado pela historiografia1 o marco inicial do Naturalismo brasileiro, O mulato


foi publicado pela primeira vez em 9 de abril de 1881. É o segundo romance do autor
maranhense Aluísio Azevedo e, apesar do tom cientificista e positivista predominante,
característico dessa escola literária em ascensão e reflexo das opiniões do autor, ainda é
possível reconhecer traços românticos, especialmente nas descrições de paisagens do interior
do sertão. O título da obra refere-se ao seu protagonista, o bacharel Raimundo, fruto da união
de um ex-traficante de escravos português com uma escrava, e a trama é movida pelas tensões
geradas pela origem miscigenada do advogado, recém-chegado ao Brasil. Durante sua estada
em São Luís, onde tinha negócios imobiliários pendentes a resolver, Raimundo hospeda-se na
casa do irmão de seu pai, Manuel Pescada, que mora com a sogra, Maria Bárbara, e com a
filha, Ana Rosa; embora herdeiro de certa fortuna por parte de seu pai e formado em Coimbra,
o bacharel sofre com os preconceitos raciais da sociedade maranhense, a maior das injúrias
sendo a negativa que recebe quando pede a mão de Ana Rosa à Pescada, que já pretendia
casar a moça com um de seus caixeiros, o português Luís Dias. Pescada revela à Raimundo
que, por causa de sua origem mestiça, até então desconhecida por ele, sua união com Ana
Rosa seria malvista e era impossível dar-lhes a bênção. Num desfecho fatalista que evidencia
a lei do determinismo que rege a obra, Dias mata a tiros o advogado, sob influência do cônego
Diogo, confidente de Pescada e responsável também pela morte do pai de Raimundo, e
casa-se, dois anos depois, com Ana Rosa.
Vale notar que, curiosamente, à época de seu lançamento, enquanto O mulato era
muito bem aceito e criticado, tanto na Corte, quanto nas demais províncias do país, a recepção
do romance em São Luís do Maranhão, cidade onde se passa a história e terra natal do autor,

1
Cf. CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Realismo, Parnasianismo, Simbolismo. In:
Presença da Literatura Brasileira: das origens ao Realismo. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2008. p. 288
2

foi fria e hostil; a obra foi quase que completamente ignorada pela imprensa local
(AZEVEDO, 1991, p. 10). O descaso da crítica maranhense é explicado pela guerra travada
de 1879 a 1881 (PRECIOSO, 2011, p. 4) entre dois periódicos de São Luís, o positivista e
anticlerical O Pensador, que contava com Aluísio Azevedo na redação, e o jornal católico A
Civilização. Essa rivalidade atingiu seu ápice com a publicação d’O mulato, pois, ao longo de
todo o enredo, Azevedo relata as hipocrisias da sociedade maranhense e, não por acaso,
atribui a um padre o papel de vilão principal, como afirma Precioso:

Aluísio Azevedo pinta um quadro da sociedade maranhense das últimas


décadas da escravidão, desnudando os vícios torpes escondidos pelas batinas
e a perenidade de valores ligados à pureza de sangue, enfim, todo um orbe de
costumes e tradições provincianas. (PRECIOSO, 2011, p. 4)

Apesar das críticas — ou, talvez, justamente por causa delas — O mulato teve um
número expressivo de exemplares vendidos na província, segundo Carvalho:

No Maranhão, a despeito da campanha ingloria de discredito contra o autor e


o livro, venderam-se do Mulato dous mil exemplares em poucos dias. Desde
as camaras douradas até ás mansardas obscuras, desde o moço acadêmico até
o noticiarista e o negociante, desde o rico homem até o pobre diabo,
ninguém via, ninguém falava noutra cousa que não fosse o livro que todos
devoravam febrilmente, embriagadoramente. (CARVALHO, 1894, p. 156)

A contextualização desse ambiente belicoso é necessária não só por seu interesse


histórico, mas também porque explicita as motivações externas que inspiraram a concepção
da obra, ligadas à intenção de Azevedo, que, apesar de, sozinhas, não funcionarem como
definidoras de intencionalidade, inquestionavelmente regem elementos internos e importam
na construção de sentido do romance.
Na análise aqui pretendida, tentarei demonstrar, ao enquadrar o narrador de Azevedo e
seu foco narrativo dentro das categorias definidas por Friedman (1955 apud LEITE, 1985, p.
25), com elementos internos e externos, como esse mesmo narrador constrói uma crítica
social por meio do que, à primeira vista, aparece como ambiguidade de três personagens
específicos: Ana Rosa, Luís Dias e o cônego Diogo de Melo.
Em O mulato, temos um narrador observador cujo foco narrativo se encaixa na
definição de “narrador onisciente neutro”, ou seja, um narrador que, aparentemente, conhece
tudo “da história, das personagens, do encadeamento e do desdobramento das ações e do
3

desenvolvimento do conflito dramático” (JUNIOR, 2005, p. 41). O foco narrativo do narrador


onisciente neutro é assim descrito por Friedman (1955 apud LEITE, 1985, p. 32):

(...) tende ao SUMÁRIO embora aí seja bastante frequente o uso da CENA


para os momentos de diálogo e ação, enquanto, frequentemente, a
caracterização das personagens é feita pelo NARRADOR que as descreve e
explica para o leitor. As outras características referentes às outras questões
(ângulo, distância, canais) são as mesmas do AUTOR ONISCIENTE
INTRUSO, do qual este se distingue apenas pela ausência de instruções e
comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens,
embora a sua presença, interpondo-se entre o leitor e a HISTÓRIA, seja
sempre muito clara. (LEITE, 1985, p. 32)

A neutralidade, entretanto, que diferencia esse foco narrativo do foco de “autor


onisciente intruso”, não deve ser interpretada ao pé da letra. O narrador d’O mulato manifesta
claramente suas opiniões por meio do conjunto de adjetivos que atribui àquilo que julga
“bom” ou “mau” e é uma criação extremamente próxima da figura do autor. Como bem nota
Goffredo (2012, p. 37), para descobrir o sistema de valores que o narrador incorpora, basta
comparar as descrições de Dias e Diogo com a de Raimundo e “compreendemos logo quem
tem a simpatia do autor e quais são os meios que emprega para convencer os leitores”.
O narrador d’O mulato inicia seu relato com uma descrição panorâmica da cidade de
São Luís em “um dia abafadiço e aborrecido” (AZEVEDO, 1991, p. 15). Até o quinto
parágrafo do capítulo, o leitor é convidado a imaginar o quadro composto pela cidade e seus
habitantes, com a demarcação de lugares, atividades e tipos (a vendedeira de fatos de boi, o
quitandeiro, o leiloeiro, etc.); a seguir, adentramos pela varanda do sobrado de Manuel
Pescada (IDEM, 1991, p. 16), mas, a caracterização espacial só dá lugar, de fato, para a
primeira caracterização de personagem após outros seis parágrafos (IDEM, 1991, p. 17), com
a descrição física, psicológica e histórica do dono do sobrado citado acima. Manuel Pescada é
o primeiro da série de personagens planas-estereótipo (FORSTER, 1974 apud JUNIOR, 2005,
p. 38) introduzidos durante toda a obra, caracterizando, por sua vez, o estereótipo do
comerciante português na casa dos cinquenta anos, “forte, vermelho e trabalhador”
(AZEVEDO, 1991, p. 17). Todas as outras personagens funcionam dentro desse mesmo
padrão de construção de características e carregam em si a profundidade de terem sido
pensadas como retratos fiéis dos tipos maranhenses; temos o bacharel positivista (Raimundo),
a moça provinciana que almeja, mais do que tudo, o casamento (Ana Rosa), a “velha
4

maranhense criada na fazenda” (IDEM, 1991, p. 17) (Maria Bárbara), o sacerdote vaidoso e
respeitado (cônego Diogo), e assim por diante.
É considerável o esmero do narrador ao pintar o quadro da história que pretende
contar, demorando-se em detalhar cada uma dessas personagens. Esses estereótipos são fruto
das impressões de pessoas reais que Azevedo observava não só enquanto jornalista e
intelectual, mas também como frequentador dos meios sociais maranhenses; um bom exemplo
é a personagem dona Amância Souselas, que, segundo Menezes (1958 apud GOFFREDO,
2012, p. 33), “não é outra senão Ana Leger, figura muito popular na cidade, conhecida pelo
hábito de contar anedotas baixas e grosseiras”. A competência de Azevedo ao criar um
narrador capaz de retratar tão vivamente tais tipos é um dos elementos que o distingue na
historiografia, como notam Candido e Castello:

Nesse romancista avulta, pela primeira vez nas literaturas de língua


portuguesa, o impressionante poder de dar vida e corpo a agrupamentos
humanos. Soube movimentá-los com perfeito domínio das situações,
enquanto fixava as emoções particulares com traços de relevo das reações
coletivas, em que o indivíduo se dissolve num todo amorfo. Além disso,
tendo pesquisado, à maneira naturalista, tipos, fatos, situações em diferentes
circunstâncias e camadas sociais, contou com um material de observação
suficiente para dar ao seu romance uma categoria social de indiscutível valor
e importância. (CANDIDO; CASTELLO, 2008, p. 325)

Azevedo, cuja ambição de se tornar pintor foi frustrada ainda na juventude2, lança mão
de sua habilidade nas artes plásticas ao voltar-se para as letras. Por meio de uma arguta e
afinada capacidade de observação, desenvolvida, especialmente, durante sua maturação
enquanto jornalista, Azevedo constrói um narrador que desenha cuidadosamente os cenários e
a trama e que reflete suas próprias impressões sobre a vida e a sociedade maranhense.
Definido, singelamente, nosso narrador onisciente, e levando em consideração o bom
senso, passo agora à parte final e central do que anunciei linhas atrás: a ambiguidade de Ana
Rosa, Dias e Diogo e o sentido que podemos dela extrair.
Antes que Ana Rosa seja descrita individualmente, o narrador apresenta as
personagens que a cercam — seu pai, sua mãe, sua avó materna — e é a partir de sua mãe,
Mariana, um espírito de grande “sensibilidade romântica” (AZEVEDO, 1991, p. 19) que o

2
Segundo Cruz (2008, p. 56), “a precária situação financeira da família não permitiu que o futuro
caricaturista do jornal satírico O Mequetrefe fosse para a Itália estudar artes plásticas”.
5

leitor começa a deduzir a personalidade de Ana. Em seu leito de morte, quando Ana Rosa
ainda era criança, Mariana lhe deu um conselho que marcou a menina: jamais case-se sem
amor (IDEM, 1991, p. 19). No tempo da história, Ana já tem vinte anos e seu maior desejo é
constituir família; sempre pensando nas palavras de sua mãe, a menina sente que já ama um
noivo que ainda não conhece. Ama tanto esse ideal que, aos dezoito anos, o celibato começa a
lhe causar crises nervosas (IDEM, 1991, p. 21), cujo remédio, receitado pelo médico, é o
casamento. Na primeira noite da chegada de Raimundo à São Luís, Ana Rosa descobre nele o
noivo que tanto esperava; a menina passa toda a madrugada pensando no primo, descontente
com a indiferença do rapaz, que, “ao mesmo tempo que lhe pungia e atormentava o orgulho,
levantava-lhe, na sua vaidade de mulher, um apetite nervoso de ver rendido a seus pés aquela
misteriosa criatura” (IDEM, 1991, p. 63). Eventualmente, Ana Rosa revela a Raimundo sua
paixão, que não lhe nega reciprocidade, embora seja contrastantemente mais racional na
ocasião; quando surge a oportunidade, o rapaz pede a mão da moça em casamento à Pescada
durante a viagem dos dois à Rosário, mas a união é negada pelo português, obrigado a revelar
à Raimundo sua condição, que ele, até então, desconhecia, de filho de escrava e forro à pia
(IDEM, 1991, p. 130). Seu casamento com Ana Rosa abalaria os escrúpulos da sociedade
maranhense, a começar pela própria avó da moça, e Pescada jamais permitiria semelhante
escândalo. A história de Raimundo e Ana Rosa termina de forma trágica: a menina engravida
do primo, numa tentativa infrutífera de forçar sua família a aceitar o casamento; Raimundo é
morto por Luís Dias, sob influência do padre Diogo e Ana Rosa, ao ver o cadáver do amante,
sofre um aborto espontâneo. Dois anos após esses acontecimentos, Ana Rosa casa-se com
Dias.
Não é a minha proposta tentar julgar, nestas linhas, a natureza ou a veracidade do
amor de Ana Rosa por Raimundo, mas vale ressaltar que, embora possa parecer estranho que
a moça, depois de tanto lutar para ficar com o primo, à despeito dos conselhos de todos e das
implicações sociais atreladas à mestiçagem de Raimundo, tenha, no último capítulo, casado-se
com Dias e o trate com tanto carinho3, Goffredo bem nota que

(...) ela ignora a identidade do assassino do amante e que todos


esforçaram-se em mostrar-lhe que o casamento com o mulato teria sido uma
infâmia. A moral do grupo social prevaleceu sobre a vontade da moça.

3
“— Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...” (AZEVEDO,
1991, p. 190)
6

Depois que o estado passional acalmou-se e que o sistema nervoso foi


tratado, ela torna-se uma mulher obediente aos desejos do pai e do cônego,
seu conselheiro espiritual. (GOFFREDO, 2012, p. 36)

O que eu quero frisar é que Ana Rosa, no fim das contas, fazendo aquilo que é
esperado dela e adequando-se a uma nova realidade, apenas parece mudar de caráter; a moça,
na verdade, sempre quis alguém para amar, e o leitor menos romântico d’O mulato não chega
a se surpreender ao saber como ela termina, já que o que realmente importava para ela foi
alcançado: seu sonho de construir uma família, por fim, consumou-se. No sistema de valores
do romance, essa adequação iguala a moça aos outros personagens brancos; Ana Rosa
aplaina-se e, não sendo mais do que um produto da sociedade em que vive, passa, de uma vez
por todas, a integrar a mesma, que é o alvo das críticas de todo o romance.
Seguimos, então, para a apresentação do caixeiro português Luís Dias, primeiramente
narrado por meio de uma sequência de adjetivos positivos, criando a imagem de um rapaz

muito ativo, econômico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra e


estimado na Praça. Contavam a seu favor invejáveis partidas de tino
comercial, e ninguém seria capaz de dizer mal de tão excelente moço.
(AZEVEDO, 1991, p. 23)

Mas tal aparência não demora a ser desfeita pelo narrador; essa construção inicial nada
tem a ver com a real essência da personagem, de modo que o leitor reconhece a ironia nessa
primeira descrição. Nessa citação, conhecemos Dias tal como as pessoas à sua volta o vêem.
Já no segundo capítulo, o caixeiro é assim descrito:

O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pescada, era um tipo


fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão
interior. (...) Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos
fins; (...). Lama ou brasa — havia de passar por cima; havia de chegar ao
alvo — enriquecer. (IDEM, 1991, p. 31)

O narrador passa, então, a uma descrição física que expõe a figura asquerosa
constituída por Dias:

(...) magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa
curta e olhos fundos. (...); quando estava perto da gente sentia-se logo um
cheiro azedo de roupas sujas. (IDEM, 1991, p.31-32)
7

Mesmo antes de se aliar ao cônego Diogo para acabar com o romance de Raimundo e
Ana Rosa, já sabemos, graças à onisciência do narrador, que Dias é um arrivista da pior
espécie, dado, até mesmo, a cometer infantilidades, como empretecer a imagem de São
Raimundo que ficava no quarto de Maria Bárbara (IDEM, 1991, p. 88), de tal modo que é
inútil buscar qualquer espécie de inocência ou ingenuidade na sua ação de atirar em
Raimundo, mesmo sob a escusa de ser influenciado pelo cônego. Não obstante, à despeito
desse episódio, nas últimas páginas, o leitor é informado de que Dias não apenas se casou
com Ana Rosa, mas também virou sócio de Manuel Pescada e adquiriu “certo emproamento
de ricaço” (IDEM, 1991, p. 190).
A última figura que aqui me interessa, o cônego Diogo de Melo, é a personificação do
mau padre e do sentimento anticlerical de Azevedo e do narrador. Diogo também é português
e serve como conselheiro espiritual à todos os personagens centrais da história, manipulando
Pescada, Ana Rosa, Maria Bárbara e Dias de acordo com seus próprios interesses. A vilania
de Diogo é exagerada e maniqueísta; o padre não age sem cálculo e só se preocupa com o
próprio bem estar; é racista, vaidoso, arrogante, luxurioso, dissimulado e homicida. A sua
primeira descrição já revela algumas dessas características:

Era um velho bonito; teria quando menos sessenta anos, porém estava ainda
forte e bem conservado; o olhar vivo, o corpo teso, mas ungido de brandura
santarrona. Calçava-se com esmero, de polimento; mandava buscar na
Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria, mostrava
dentes limpos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos;
mãos brancas e cabelos alvos que faziam gosto. (IDEM, 1991, p. 24) (grifo
meu)

Enquanto Dias já externa, na aparência física, traços de sua repugnância interior,


Diogo passa longe disso. Embora essa primeira descrição da vaidade do cônego, que é
reiterada diversas outras vezes ao longo da história, nos ajude a entender porque Diogo era tão
bem quisto pelos integrantes de seu meio social, o leitor contemporâneo dificilmente
simpatiza com um sacerdote que dá tanta importância à materialidade. A antipatia, que
qualquer pessoa normal sente por Diogo, cresce à medida de suas declarações racistas e
intermináveis citações de provérbios latinos e ganha outro nível quando, no terceiro capítulo,
durante o flashback que narra a origem de Raimundo, descobrimos que Diogo tinha um caso
com a esposa do pai do protagonista, o português José Pedro, e que foi de seu revólver que
8

saiu a bala responsável pela morte do ex-traficante de escravos. Sempre acima de qualquer
suspeita, Diogo consegue manipular até mesmo Raimundo, na cena em que o bacharel acusa
Diogo de ser o assassino de seu pai4. Arquiteto dos dois assassinatos do livro, porém, Diogo
só revela parte de sua personalidade aos outros personagens em dois momentos diferentes: o
primeiro, quando é flagrado pelo pai de Raimundo no quarto da mulher deste, e o segundo
quando quer forçar Ana Rosa a se confessar5. No capítulo final, o narrador revela, sem
nenhuma intervenção, o destino final do cônego: Diogo está nas últimas, por causa de uma
“retenção de urina” (IDEM, 1991, p. 189).
Dessas três personagens, a primeira, Ana Rosa, parece ser ambígua no campo
sentimental: acompanhamos durante todo o romance uma moça apaixonada e disposta a lutar
contra tudo e todos para se casar Raimundo, apenas para, no último capítulo, nos depararmos
com uma Ana Rosa diferente, que seguiu sua vida após a morte do amado e se casou com
quem antes desprezava. A ambiguidade de Ana Rosa, narrativamente, reforça a tese
determinista que rege o romance; a moça segue aquilo que a sociedade espera dela. As duas
outras figuras, os portugueses Dias e Diogo, são ambíguas no que se refere à oposição entre
aparência e essência, especialmente Diogo; ambos são respeitados pela sociedade
maranhense, que não imagina e nem tenta adivinhar a personalidade do par, e ambos são
assassinos inescrupulosos. No relato do narrador, os dois são uma forma de apontar o
depravamento da dita “raça superior”, não necessariamente oposta aos negros, que
permanecem mudos durante todo o romance, mas à essa nova geração miscigenada, que
representa o futuro; a única personagem verdadeiramente positiva é Raimundo, o “mulato”
inteligente, bem apessoado, culto, moral, e ele não sobrevive, simbolicamente, aos homens e
mulheres de São Luís. A impressão do leitor sobre a sociedade maranhense da época, ao fim
d’O mulato, é a de uma sociedade atrasada, hipócrita e conservadora, que se mantém
resistente ao futuro republicano e abolicionista, e tal impressão não é mais do que o reflexo
das crenças do narrador e, nesse caso, também do autor.

4
Raimundo é desarmado frente às palavras de Diogo, que vitimiza-se diante da acusação.
(AZEVEDO, 1991, p. 137)
5
Nesse momento, inclusive, vale notar o empenho do narrador em demonstrar que Diogo não tem a
mínima decência e é a mais desprezível das personagens da obra, pois o cônego, ao ver Ana Rosa
desmaiada em frente ao confessionário, demora-se um instante a “contemplá-la naquela posição, que a
fazia mais bonita e, perdido em saudosas reminiscências da sua mocidade, admirava a curva macia dos
seios, palpitantes, sob a compressão da seda (...)” (IDEM, 1991, p. 168)
9

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Aluísio. O mulato. 10. ed. São Paulo: Editora Ática, 1991.

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Realismo, Parnasianismo, Simbolismo. In:


Presença da Literatura Brasileira: das origens ao Realismo. 13. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2008. p. 281-298.

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Aluísio Azevedo. In: Presença da


Literatura Brasileira: das origens ao Realismo. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2008. p. 325-331.

CARVALHO, Adherbal de. Capítulo XI. In: O naturalismo no Brasil. São Luís, MA: Ramos
de Almeida & C., 1894. p. 149-183.

CRUZ, Laura Camilo dos Santos. O Naturalismo em Cena: estudo da evolução da


linguagem naturalista de Aluísio Azevedo em O Mulato sob uma perspectiva genética. São
Paulo: Linear B, 2008.

GOFFREDO, Rafaela Vareda. Personagens e espaço em O mulato. Personagens e espaço em


romances de Aluísio Azevedo. Araraquara, SP: [s.n.], 2012. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/119277/000733707.pdf?sequence=1.
Acesso em: 20 mai. 2019. p. 33-38.

HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIM, José Luis (Org.) Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992. p. 11-43.

JUNIOR, Arnaldo Franco. Operadores de leitura da narrativa. In: Teoria literária:


abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá, PR: Eduem, 2005. p.
33-56.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São
Paulo: Editora Ática, 1985.

PRECIOSO, Daniel. O mulato de Aluísio Azevedo e as relações “raciais” no Maranhão


Oitocentista (São Luís, 1850-1881). In: SIMPÓSIO DE HISTÓRIA DO MARANHÃO
OITOCENTISTA, 2., 2011, São Luís. Anais… São Luís, MA: Universidade Estadual do
Maranhão, 2011. Disponível em: https://www.outrostempos.uema.br/anais/pdf/precioso.pdf.
Acesso em: 28 mai. 2019.

Você também pode gostar