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“UM HOMEM SÉRIO”: UM ESBOÇO DO (MAU) CARÁTER DE ODORICO

PARAGUAÇU

SÃO PAULO
2022
1

“UM HOMEM SÉRIO”: UM ESBOÇO DO (MAU) CARÁTER DE ODORICO


PARAGUAÇU

UC Texto dramático no Brasil do século XIX ao XXI


Prof. Dr. Rodrigo Soares de Cerqueira
Paloma Luiza da Silva Bezerra
133.460 - Noturno

SÃO PAULO
2022
2

SUMÁRIO

1. Introdução 3
2. Sobre a peça: o enredo d’O bem-amado e algumas considerações 4
3. Odorico Paraguaçu, Zeca Diabo e Neco Pedreira: contrastes e paralelos 12
4. Considerações finais 14
5. Referências bibliográficas 14
3

1. Introdução

Inicio este artigo com uma obviedade que, apesar de tal condição, não perde em
relevância. Como se sabe, na divisão aristotélica perpetrada pela tradição e cujo fundamento
encontramos na República de Platão1, temos três grandes gêneros literários, que podemos
apresentar da seguinte forma: a Épica, facilmente reconhecida no romance, a Lírica, ou a
poesia, e o Drama, o teatro. Todas as formas literárias possuem, cada uma, sua evolução
própria, enquanto representações de uma realidade histórica, e, bem como não é possível
apontar a superioridade objetiva de uma sobre as outras, também não há como estabelecer
qual delas é a mais complexa. Porém, dentre os gêneros literários, o dramático talvez seja o
mais emblemático em termos de análise se pensarmos na diferença mais facilmente
reconhecível entre ele e os dois outros: sua forma.
Não desconsiderando que as peças, em sua maioria, se realizam a partir de um texto
teatral, é fato que o que realmente dá vida a ele é a ação dos atores. É por meio da ação que o
enredo se desenrola, que as personagens ganham vida e, por vezes, que o próprio cenário se
constrói na imaginação do espectador. Nem por isso, entretanto, deve-se assumir qualquer tipo
de insuficiência na análise de um texto dramático; autores há em demasia que provam
justamente o contrário e cumprem com maestria esse trabalho. A questão, então, é apenas a
forma de análise que deve ser aplicada, certamente não a mesma do romance ou da poesia.
Portanto, para o trabalho que desenvolverei nas próximas páginas, qual seja, a análise de três
personagens teatrais, é não apenas lógico, mas necessário, que eu me utilize de referências
voltadas para as funções específicas do teatro e que considerem a dimensão para além do
texto.
Em tempo, a peça a ser abordada é O bem-amado, título adaptado do original Odorico,
o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. Obra escrita em 1962 pelo dramaturgo e
romancista soteropolitano Alfredo de Freitas Dias Gomes, ou simplesmente Dias Gomes, foi
encenada pela primeira vez em 1969 pela companhia Teatro de Amadores de Pernambuco, em
Recife, mais especificamente no Teatro de Santa Isabel, e trata-se de uma “farsa

1
Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2014. Segundo o autor, essa divisão “é,
até certo ponto, artificial como toda a conceituação científica”, mas “se mantém, essencialmente,
inabalada” (p. 16).
4

sócio-político-patológica em 9 quadros”. Seu enredo retrata a ascensão do coronel Odorico


Paraguaçu ao posto de prefeito da fictícia cidade de Sucupira, prometendo a construção e
inauguração do primeiro cemitério da cidade. Um ano depois de eleito, contudo, Odorico
ainda não conseguiu encontrar um único defunto sequer para ser enterrado, condição imposta
por ele mesmo para que aconteça a inauguração. Constantemente atacado pela imprensa
opositora, personificada na figura do jornalista Neco Pedreira, o prefeito começa a se
desesperar. A partir daí, o leitor/espectador acompanha uma sucessão de artimanhas de
Odorico buscando conseguir o cadáver que deverá inaugurar sua obra, chegando ao ponto de
trazer de volta à Sucupira o matador Zeca Diabo, temido por todos e foragido da polícia. Tal
atitude sela o destino de Odorico: no desfecho da peça, abandonado por todos os seus aliados
e desmoralizado perante a cidade inteira, o prefeito é morto por Zeca Diabo e, em uma ironia
dramática, o próprio coronel é o defunto que inaugura o cemitério.
Enfim apresentado o ponto de partida literário do trabalho, passamos para a estrutura
do mesmo, que está dividido somente em três partes gerais para além desta introdução. No
tópico seguinte, faço um resumo minucioso do enredo da obra de Dias Gomes, a fim de situar
o leitor sobre o contexto e o caráter das personagens que pretendo analisar. Passamos, então,
para a próxima etapa, na qual focalizo a trajetória e a relação de três personagens centrais da
peça, não por acaso as únicas destacadas no resumo do parágrafo anterior: o coronel-político
Odorico Paraguaçu, o matador Zeca Diabo e o jornalista Neco Pedreira. Por fim, encerro com
algumas breves considerações finais a respeito dessa comparação.

2. Sobre a peça: o enredo d’O bem-amado e algumas considerações

Retomando o que nos revela o subtítulo citado anteriormente, O bem-amado se


enquadra no gênero teatral farsa. Segundo Rosenfeld2, a farsa faz parte do gênero dramático
na medida em que é um texto constituído “principalmente de diálogos e [por] se destinar a ser
levado à cena por pessoas disfarçadas que atuam por meio de gestos e discursos no palco”. A
farsa também se caracteriza pela sátira que faz de situações reais e de tipos sociais,
representados, geralmente, por personagens caricatas, com a intenção de se criar uma peça de
cunho cômico. Além disso, como seria esperado, O bem-amado não possui narrador, o que
reforça, em termos teóricos, seu enquadramento no gênero dramático, uma vez que se

2
Rosenfeld, op. cit., p. 17.
5

concretiza a autonomia das personagens. Em outras palavras, a apresentação e o


aprofundamento das personagens se dão por meio delas mesmas, nas três “vias principais”
retomadas dos manuais de playwriting por Décio de Almeida Prado: “o que a personagem
revela sobre si mesma, o que faz, e o que os outros dizem a seu respeito”3.
Sendo a peça teatral em questão, em uma visão simplista, uma sucessão de ações
linear, podemos estabelecer que vale para o desenvolvimento dramático d’O bem-amado o
que Rosenfeld chama de “rigoroso encadeamento causal”, onde cada uma das cenas, ou dos
quadros, seguindo a denominação do autor, é “a causa da próxima” e, ao mesmo tempo, “o
efeito da anterior”4. A cada apresentação, a ação dramática se inicia, se desenvolve
autonomamente graças ao seu “mecanismo dramático” interno, sem intervenção de um
“autor”5, e se encerra quando “a ação nitidamente definida chega ao fim”6. No caso d’O
bem-amado, a ação transcorre ordenadamente, em um número limitado de espaços, indicados
pelas rubricas que antecedem os momentos de diálogo, e a passagem de um quadro para o
outro marca também a passagem temporal.
Passando, então, para o enredo da peça em si, temos, logicamente, no primeiro quadro,
a origem da ação dramática, ou, seguindo o léxico da intriga7, o momento de exposição do
enredo. O cenário se resume a uma “pequena praça de uma cidadezinha de veraneio do litoral
baiano”, cuja paisagem é composta por “uma grande árvore, um coreto e uma venda”, que
pertence a Dermeval, “um mulato gordo e bonachão, de idade já avançada”8, que remenda
uma rede de pesca enquanto Chico Moleza, o típico vagabundo da cidade, dedilha um violão
debaixo da árvore. Nos primeiros momentos de cena, nada acontece, o que, juntamente com a
ordinariedade do próprio cenário, marca a serenidade da vida em Sucupira, típica de cidades
interioranas. Na rubrica, o autor descreve o caráter da cidade comparando-a com Chico
Moleza, cujo “apelido o define bem: gestos lentos, descansados, fala mole, é ele um retrato
vivo da cidade, onde a vida passa sem pressa”9.

3
Prado, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: Candido, Antonio et al. A personagem de
ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 83.
4
Rosenfeld, op. cit., p. 30.
5
Nos termos de Rosenfeld, o “autor” a que me refiro é um autor fictício, personificado no outros
gêneros como Eu lírico e narrador.
6
Rosenfeld, op. cit., p. 30.
7
Ryngaert, Jean-Pierre. A ficção e sua organização. In: Ryngaert, Jean-Pierre. Introdução à análise
do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 53-74.
8
Gomes, Dias. O bem-amado. 26. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014, p. [2].
9
Ibid., p. [2].
6

Ainda no primeiro quadro, o leitor/espectador é apresentado a dez das catorze figuras


que compõem o quadro de personagens da obra. Enquanto Dermeval remenda sua rede e
Chico Moleza dedilha seu violão, entram em cena os pescadores Mestre Ambrósio e Zelão,
carregando consigo o cadáver de um velho colega de profissão, Mestre Leonel. Os dois param
para tomar um trago na venda de Dermeval, Chico Moleza se aproxima, bebe com eles. Os
homens conversam amenidades e reclamam da distância ainda a ser percorrida com o defunto,
para enterrá-lo na cidade vizinha. Com essa deixa, que também marca a introdução ao
problema que é a essência da peça, entra em cena o coronel Odorico Paraguaçu, de terno
branco e chapéu panamá, um demagogo que se destaca por sua figura cativante e seu
“magnetismo pessoal”. Aproveitando, assim, a queixa de Mestre Ambrósio, Odorico inicia
um discurso que vai se inflamando à medida em que as outras personagens aparecem em seu
apoio, como que atraídas irresistivelmente por suas palavras. Enquanto o coronel discorre
sobre a vergonha que é os sucupiranos não terem seu lugar de descanso eterno, reúnem-se em
torno dele as irmãs Cajazeira, Dorotéa, Judicéia e Dulcinéa, esta última acompanhada por seu
marido, Dirceu Borboleta. No auge de seu palavrório, Odorico promete que, se eleito prefeito
de Sucupira, será responsável pela inauguração do primeiro cemitério da cidade. Neste
momento, surge Neco Pedreira, o jovem jornalista da cidade, que, com um
“espanta-moleque”, assusta e dissipa a multidão em volta do coreto. A cena se esvazia e
retoma-se o enterro de Mestre Leonel, acompanhado agora também pelas irmãs Cajazeira e
por Odorico. Dirceu, também se retira, preocupado com suas borboletas, e sobram Dermeval e
Neco Pedreira, que comenta como sua gazeta, A Trombeta, anda mal em uma cidade
“atrasada”10 como Sucupira.
Durante a transição do primeiro para o segundo quadro, a montagem da peça indica
que Odorico foi, de fato, eleito como prefeito e o quadro se inicia com ele discursando da
janela de uma sala da prefeitura. O coronel agradece ao povo sucupirano que lhe deu seu voto
e garante que sua promessa será cumprida: seu primeiro ato como prefeito é ordenar a
construção do primeiro cemitério da cidade e seus eleitores terão direito a enterro e cova
gratuitos. Presentes na sala e em cena, estão também Dorotéa, Judicéia, ou Juju, Dulcinéa,
Dirceu, empossado como secretário do novo prefeito, e o Vigário. Terminado o discurso,
Odorico começa a planejar, de fato, a construção do cemitério. Ao mesmo tempo em que se
inicia a sua gestão, também fica claro ao leitor/espectador a incompetência do coronel em

10
Ibid., p. [6].
7

matéria de gestão pública. Mesmo com o caixa da prefeitura em déficit, com apenas um
“restinho”11 de dinheiro destinado a obras de urgência, muito mais relevantes que o cemitério,
Odorico escolhe desviar a verba de outras áreas para cumprir sua promessa de campanha
eleitoral. O final da cena se dá com duas revelações em dois diálogos distintos que, de certa
forma, se completam: primeiro, a de que o prefeito e Dulcinéa têm um caso secreto e,
segundo, a de que Dirceu é irmão oblato e fez voto de castidade, casando-se com Dulcinéa
sob a condição de não quebrar tal promessa, confidência feita somente em vista da
consideração de que Odorico foi seu padrinho de casamento.
O terceiro quadro se passa, supostamente, no mesmo ambiente, com indicações de que
se trata da sala do prefeito. A ação parte da consternação de Odorico enquanto lê uma matéria
do jornal de Neco Pedreira a seu respeito, com o título “Odorico, o pastor de urubus” e uma
foto tirada durante a construção do cemitério, fato que já data de um ano. Dorotéa surge ainda
no início da cena, que se desenrola primordialmente por meio do diálogo que se trava entre
ela e o prefeito, pelo qual o leitor/espectador toma ciência de que o cemitério ficou pronto
graças a diversos desvios de verbas que desfalcaram, até o grupo escolar onde Dorotéa
trabalha como professora, o que serve de munição para a oposição. Além do déficit de contas
agravado pela construção do cemitério, há ainda a questão de que o campo-santo está há um
ano sem uso, visto que ninguém havia falecido desde o término das obras e essa havia sido a
condição que Odorico colocou para que a inauguração acontecesse. Está consolidado,
portanto, o nó que vinha se desenhando no enredo. Chega, em seguida, à sala do prefeito
Chico Moleza, agora coveiro do cemitério, o que, nas condições atuais do enredo, dá na
mesma que continuar desempregado, mesmo porque não há também dinheiro para pagar seu
salário. Moleza relata a “carência muito grande de defunto”12 na cidade, aumentando o
desespero de Odorico. No ato final da cena, entram Dirceu e Juju, que noticia a chegada à
cidade de um primo em segundo grau chamado Ernesto, desenganado pelos médicos com o
diagnóstico de “pneumonia galopante”. A morte iminente do moço em terras sucupirenses se
traduz na esperança renovada do prefeito e de seus apoiadores de que o cemitério possa ser,
finalmente, inaugurado.

11
Ibid., p. [8].
12
Ibidi., p. [11].
8

O quadro seguinte é breve e se passa em um terceiro cenário ainda não visto pelo
leitor/espectador: a “casa das solteironas”13, Dorotéa e Juju. O espaço se divide em dois
ambientes, uma sala, onde Odorico tenta decorar a oração fúnebre, e um quarto, onde o primo
Ernesto agoniza, rodeado pelas donas da casa, por Dirceu e pelo Vigário. Dorotéa passa do
quarto para a sala e, pelo diálogo que se dá entre ela e Odorico, explicita-se uma passagem
mais concreta de tempo desde o último quadro: já há três dias Ernesto se encontra naquele
estado, é um “agonizantista praticante”14 nas palavras do prefeito. Além disso, fica implícito
pela conversa que Odorico e Dorotéa também mantêm um caso secreto. A ação desse
momento é extremamente curta; em termos de texto dramático, tudo acontece em menos de
uma página. A meu ver, é uma cena de menor importância, cuja única função é demonstrar a
frustração dos planos de Odorico.
No quinto quadro, voltamos ao ambiente municipal e três meses se passaram desde a
última ação. Em contraste com o último, que foi o mais curto até então, essa parte possui uma
sucessão bem mais longa de acontecimentos. Dulcinéa e Dorotéa esperam por Odorico e
comentam como seu comportamento mudou desde o início do mandato: nos primeiros dias,
chegava às seis da manhã; no presente da ação, são quase dez horas e nem sinal de Odorico.
Chega Dirceu Borboleta, que, segundo Dulcinéa, está diferente nos últimos tempos; o
secretário do prefeito deixou até de caçar borboletas, hobby que lhe rendeu o apelido. Nota-se
que Dirceu carrega um ar desconfiado e ele deixa implícito o motivo: o recebimento de uma
carta anônima que acusa sua esposa de adultério. Sai, então, Dirceu e entra Odorico, que
recebe das duas irmãs a pior notícia possível para seu mandato: o primo Ernesto não apenas se
recuperou plenamente como está, na verdade, em sua melhor forma. Para completar, além de
recuperado, o homem ainda conquistou Juju, que está grávida do primo, mesmo com a
reprovação das outras duas irmãs.
Chegamos, estruturalmente, na metade da peça. Após a resolução do arco dramático,
ou peripécia, protagonizado pela situação de Ernesto, inicia-se um novo, que marca a escalada
do enredo até seu desfecho: a chegada de Zeca Diabo à cidade. Frustrado, Odorico reclama do
pacatismo sucupirense, cidade onde “ninguém mata, ninguém morre”15. Tais palavras
marcam, ironicamente, a entrada de Mestre Ambrósio na sala, trazendo consigo “o terror do

13
Ibid., p. [14].
14
Ibid., p. [14].
15
Ibid., p. [17].
9

Nordeste”16, o matador Zeca Diabo. Nascido em Sucupira, Zeca fugiu para o Nordeste para
não ser preso pelo assassinato de um coronel e toda sua família, caso motivado unicamente
por vingança, sob a lei de pagar sangue com sangue. Com Zeca Diabo na cidade, Odorico cria
esperanças de que alguém o provoque e de que, assim, o cemitério de Sucupira, finalmente,
ganhe seu defunto inaugural. Para dar maior garantia a seu plano, o prefeito institui Zeca
Diabo como delegado da cidade e ordena que se faça uma batida no jornal de Neco Pedreira.
O único problema com o qual não contava Odorico é que sua intenção está em desacordo com
o espírito de Zeca Diabo; o prefeito esperava um assassino sanguinário e recebe, na verdade,
um homem que busca sua regeneração e que desejava voltar a ser “o homem bom e pacato de
antigamente”17.
O sexto quadro se passa alguns dias após a nomeação do novo delegado e tudo parece
sair de acordo com os planos de Odorico, que, no momento da ação, está em sua sala
acompanhado de Dulcinéa. Ironicamente, para sua felicidade, Neco Pedreira publica uma
matéria intitulada “Odorico nomeia cangaceiro”, maldizendo tanto o prefeito quanto o novo
delegado, que vai tirar satisfações na redação da gazeta. O prefeito aguarda, portanto, em
companhia da esposa de Dirceu Borboleta, o desfecho do encontro, certo de que Zeca Diabo
mataria o jornalista. Não tarda, porém, para que se prove seu engano: Neco chega à prefeitura
caçoando de Odorico e revelando que comprou os direitos da vida de Zeca, cuja biografia será
publicada nas próximas edições d’A Trombeta. Com essa deixa, o delegado se junta a eles na
prefeitura e, após a saída de Neco, Odorico põe-se a xingar Zeca Diabo, visto a incompetência
do homem em cumprir os planos arquitetados pelo prefeito. Como não poderia ser diferente,
dado o passado de Zeca Diabo, a atitude de ofendê-lo não é a ideia mais brilhante de Odorico
e ele escapa por pouco de ser morto pelo ex-cangaceiro. Zeca só não atira graças ao seu
“Padim Pade Ciço”, que segura seu braço e o impede de quebrar sua promessa de
regeneração.
Após esse primeiro momento de tensão entre o prefeito e Zeca Diabo, este último se
retira e Dulcinéa revela que está esperando um filho de Odorico. Deixando este fato de lado,
por ora, ele pede que a Dulcinéa vá até a redação e traga de volta Neco, para que os dois
homens cheguem a um acordo. A irmã Cajazeira obedece e Dirceu entra assim que ela sai,
procurando-a. Como o grande oportunista que é, Odorico percebe na desconfiança do caçador

16
Ibid., p. [18].
17
Ibid., p. [19].
10

de borboletas uma nova oportunidade de dar cabo da vida de Neco. Dirceu, por si só, está
quase certo de que Dulcinéa tenha um caso com o jornalista: já havia recebido três cartas
anônimas e descoberto um teste de gravidez. Odorico dá, então, a Dirceu seu próprio revólver
e ele vai até a gazeta, descarregando cegamente a arma. Quando ele sai de cena, entra
Dorotéa. Mais uma vez, o resultado das ações não é aquele planejado por Odorico: quem
morre não é Neco Pedreira, mas sim Dulcinéa. Em frente à redação do jornal, forma-se uma
multidão querendo linchar Dirceu por ter matado a esposa. Ainda afobado pela adrenalina do
acontecido, ele volta à prefeitura, onde ainda estão Odorico e Dorotéa. O secretário devolve o
revólver e foge para a igreja, por recomendação do prefeito. Zeca Diabo entra logo em
seguida, em perseguição ao assassino, cuja localização é denunciada por Odorico. Vale
lembrar que o único cenário acessível ao leitor/espectador é a prefeitura; o que se passa fora
dela é revelado pelos diálogos que se desenrolam, assim, sempre que um personagem se
retira, outro o substitui. Do ponto de vista de Odorico, o desfecho do sexto quadro não
poderia ser melhor; resolveram-se dois problemas de uma vez só: ninguém mais saberá da
gravidez de Dulcinéa e finalmente Sucupira tem um defunto para inaugurar o cemitério.
O sétimo quadro se passa “no dia seguinte, à tarde”, já no enterro de Dulcinéa. Dirceu
Borboleta foi preso e se encontra incomunicável a mando de Odorico. A notícia que correu na
cidade foi que Dirceu encontrou Dulcinéa nos braços de Neco Pedreira e cometeu um crime
passional. Assim, os presentes no enterro “se entreolham” com a chegada de Neco, que
lamenta ter sido “uma das pedras do jogo”18 de Odorico. O prefeito, por outro lado, está
radiante, sem se preocupar em esboçar qualquer tristeza ou remorso pela morte de Dulcinéa.
Porém, se tudo corresse bem, é claro, assistiríamos a um desfecho anticlimático da ação
dramática e não é assim que as coisas se dão. Portanto, em mais uma reviravolta, chega ao
enterro o coronel Hilário Cajazeira, tio das três irmãs, que insiste em fazer cumprir o desejo
do leito de morte de seu irmão, pai delas: que todas as suas filhas sejam enterradas no
mausoléu da família, no Cemitério de Jaguatirica. Odorico, contudo, não está disposto a
deixar que o cadáver seja levado para outra cidade e insiste que Dulcinéa deve ser enterrada
no cemitério de Sucupira. Da mesma janela em que Odorico fez seu primeiro discurso como
prefeito, ele agora clama pelo apoio do povo da cidade, “se distanciando da realidade”,
ratificando sua derrocada à loucura e impedindo que o caixão de Dulcinéa saia da prefeitura.

18
Ibid., p. [28].
11

O oitavo e penúltimo quadro transcorre no mesmo ambiente e seu início é na manhã


do dia seguinte. Odorico passou a noite guardando o caixão de Dulcinéa e o povo, em seu
apoio, também pernoitou do lado de fora da prefeitura. A família Cajazeira, por outro lado,
também tomara suas providências para se fazer cumprir o desejo do pai da falecida:
conseguiram uma ordem judicial que os autoriza a levar o corpo para outro cemitério. Para
cumprir a decisão do juiz, chegam o delegado Zeca Diabo acompanhado de Dorotéa, Juju e o
coronel Hilário. Uma segunda vez, portanto, o matador vai contra os desejos de Odorico em
favor da lei. Cego pelo desejo de cumprir sua promessa de campanha eleitoral, Odorico
confronta Zeca Diabo e a decisão da Justiça, demitindo o delegado e praticamente
expulsando-o da cidade, de modo que Zeca volta a ser um fora da lei e, portanto, pode ser
preso. Consternado e confuso, o agora ex-delegado se retira, assim como o coronel Cajazeira.
Momentos depois, Neco Pedreira chega ao velório dizendo a Odorico que conseguiu
entrevistar Dirceu Borboleta na cadeia e está a par de tudo. O jornalista mostra ao prefeito a
nova edição d’A Trombeta, que revela para toda a cidade a verdade sobre a morte de Dulcinéa.
Com isso, Odorico se vê abandonado por todos os seus apoiadores, até mesmo por Dorotéa, a
única que continua em cena, que acredita, desta vez, ele “está liquidado”19.
No auge de seu desespero, o prefeito começa a planejar um atentado contra ele mesmo
para voltar às graças da opinião popular e, conforme retorna à cena Zeca Diabo, com os
“olhos cravados em Odorico”, este último começa a montar um cenário, contando com a
ajuda do matador. Escapa ao prefeito, entretanto, a percepção de que Zeca não está disposto a
prestar qualquer tipo de auxílio; ao contrário, o homem está decidido a matar Odorico, pois,
em suas palavras, “traidor não merece viver, quanto mais traidor de moça donzela”20. Zeca
Diabo manda, então, que o prefeito pegue seu revólver para se defender e, na na contagem até
três, as luzes se apagam e se escutam os barulhos de tiros. O desfecho da ação dramática
confirma-se no nono quadro, na medida em que se revela a morte de Odorico.
O quadro final pode ser descrito como um epílogo: trata-se do enterro de Odorico,
que, graças ao seu recém-adquirido status de defunto, passa de político safado a mártir
honrado. Seu túmulo sequer pode ser visto, completamente coberto por coroas de flores.
Reúnem-se em seu funeral quase todas as figuras da cidade, com exceção de Dirceu Borboleta
e de Zeca Diabo, de quem o leitor/espectador nada mais sabe. À Neco Pedreira coube o

19
Ibid., p.[37].
20
Ibid., p. [37].
12

discurso em tal momento de dupla “ilustreza”: a inauguração do cemitério e a despedida a


Odorico, “o Grande, o Pacificador, o Desbravador, o Honesto, o Bravo, o Leal, o Magnífico, o
Bem-Amado”21.

3. Odorico Paraguaçu, Zeca Diabo e Neco Pedreira: contrastes e paralelos

Odorico Paraguaçu, assim como outros personagens e como o próprio enredo da peça
O bem-amado, extrapola em muito suas dimensões teatrais; inspirado originalmente no
político Carlos Lacerda, é uma figura que representa a tão prolífica raça de políticos
demagogos que temos em solo brasileiro. De acordo com José Dias, autor de Odorico
Paraguaçu, O Bem-amado de Dias Gomes: História de um personagem larapista e
maquiavelento, livro que aborda especificamente tal personagem e cujo título brinca com uma
das mais famosas características do mesmo, Odorico surge “um tanto acanhado no início de
sua carreira no teatro” e “acaba chegando ao auge de sua contundência na televisão”22. Ainda
que seja bem verdade que a atuação de Paulo Gracindo como o Bem-amado na novela de
1973, adaptada pelo próprio Dias Gomes, tenha elevado o personagem a um sucesso de nível
nacional e internacional, o Odorico que se coloca diante do leitor/espectador da peça é, por si
só, uma figura fascinante. Assim, não foi possível resistir à tentação de dedicar as linhas da
análise deste trabalho a esse personagem que tanto representa a política brasileira e uma
faceta do espírito nacional.
Como expus no exercício que precedeu a escrita desse trabalho, não era bem essa a
minha intenção. A princípio, minha hipótese um tanto quanto vacilante era a de que Odorico e
Zeca Diabo representavam dois movimentos opostos e paralelos dentro da peça, de queda e
ascensão, respectivamente. Um olhar mais dedicado à peça, contudo, me fizeram rejeitar por
completo essa tese inicial. O principal motivo é que, dentro da peça, os arcos desses dois
personagens não se desenham de forma tão simples assim. Dessa forma, o caminho da análise
que faço aqui se distanciou daquele sugerido no primeiro exercício. Mesmo que amadurecida,
porém, a ideia de trabalhar somente com base no prefeito demagogo de Sucupira me parecia

21
Ibid., p. [39].
22
Dias, José. Odorico Paraguaçu, O Bem-amado de Dias Gomes: História de um personagem
larapista e maquiavelento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
13

insuficiente e resolvi, durante a composição do artigo, trazer de volta Zeca Diabo, outra
personagem interessantíssima, e uni-lo ao jornalista Neco Pedreira, buscando observar com
mais cuidado essas três personagens centrais para o desenrolar da ação da obra de Dias
Gomes.
Zeca Diabo é outro personagem que, assim como Odorico, consolidou-se no
imaginário nacional. Odorico e Zeca ganharam tanta simpatia do público que são tema de
duas outras obras de Dias Gomes, os livros de contos adaptados de seriados televisivos
Sucupira, Ame-a ou Deixe-a: Venturas e desventuras de Zeca Diabo e sua gente na terra de
Odorico, o Bem-Amado e Odorico na cabeça, onde a biografia do prefeito é reescrita e ele é
ressuscitado. Introduzindo-se na ação da peça apenas a partir do quinto quadro, ou seja, na
metade do enredo, Zeca Diabo pode ser considerado um anti-herói, cuja personalidade
complexa contrasta com a de Odorico e também com a de Neco Pedreira. O que sabemos de
sua vida é que ele nasceu em Sucupira, tinha um irmão que foi morto a mando de um coronel
da cidade e, ao matar esse coronel e sua família por vingança, fugiu para o Maranhão para não
ser preso; o fato lhe rendeu ainda o epíteto de “terror do Nordeste”. No entanto, desde sua
primeira aparição na peça, sua fama de feroz matador parece injustificada, até mesmo pela
rubrica, que o descreve como um homem de “fala macia, delicado, [com] voz adocicada [que]
está em completo contraste com a lenda”23.
Além de sua aparência, sua subjetividade, expressa por suas falas e atitudes, reforça
ainda mais a ideia de que Zeca Diabo é um homem relativamente calmo, até mesmo razoável,
como prova o episódio de seu encontro com Neco Pedreira: enquanto se esperava que o
delegado empossado assassinasse o jornalista, da interação entre eles resulta, na verdade, um
acordo para publicar episodicamente a biografia de Zeca. Apenas em dois momentos o
leitor/espectador vê sua outra face: primeiro, quando é ofendido por Odorico no sexto quadro
e, depois, na penúltima cena, momento em que Zeca já está decidido a matar o prefeito.
Observa-se, portanto, que o erro — ou um dos erros — de Odorico que culmina em sua morte
é o desrespeito com que trata Zeca Diabo.
Passando às considerações sobre Neco Pedreira, temos nele uma figura que me
pareceu muito promissora na primeira leitura, mas que não cumpriu minhas expectativas,
talvez altas demais. Não por isso trata-se de uma personagem irrelevante: suas ações são
decisivas para o desenrolar da trama, mesmo porque é ele o responsável por desmascarar

23
Gomes, op. cit., p. [18].
14

Odorico frente ao povo sucupirense. Ainda assim, mesmo estando presente em seis dos noves
quadros da peça, em comparação com Zeca Diabo, Neco parece ficar à margem do enredo
principal, tendo menos falas do que o matador. Ideologicamente, o jornalista é oposto a tudo o
que Odorico Paraguaçu representa; Neco é a personificação da oposição que tanto ataca e
aumenta a paranoia do prefeito. Se concordarmos que Odorico é o protagonista, podemos
também dizer que Neco é o antagonista, na medida em que suas ações estão, desde o primeiro
momento, em conflito com as do prefeito. Curiosamente, os valores morais atribuídos, em
geral, a essas posições estão aqui invertidos. Assim, ainda que seja injusto colocar as
personagens de Dias Gomes na dialética maniqueísta de bem ou mal, é seguro dizer que as
atitudes de Odorico o aproximam mais de um arquétipo de vilão do que de herói; a própria
figura representada pelo coronel-prefeito na peça, o político corrupto, oportunista, autoritário
e demagogo, é quase como um vilão da realidade histórica.

4. Considerações finais

Odorico, inegavelmente, é uma personagem cômica, carismática, mas, no espaço


dramático, suas ações têm graves consequências para o povo de Sucupira: além da morte de
Dulcinéa, provocada indiretamente por ele, seus desvios de verba que financiaram a
malfadada construção do cemitério prejudicou a cidade como um todo, fechando o grupo
escolar e parando obras de maior urgência, tudo em prol de um bem-maior que só interessa ao
próprio Odorico. O Bem-amado é um fenômeno tupiniquim, um protagonista que ilustra toda
uma espécie de político que se mantém viva e atuante nas esferas de poder do nosso país.
Magistral em sua criação como um todo, capaz de expandi-la para além das margens do
teatro, Dias Gomes foi capaz de cristalizar na imagem de Odorico Paraguaçu uma forma de
combate à alienação política que cega parte do eleitorado nacional.

5. Referências bibliográficas

DIAS, José. Odorico Paraguaçu, O Bem-amado de Dias Gomes: História de um


personagem larapista e maquiavelento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
15

GOMES, Dias. O bem-amado. 26. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: CANDIDO, Antonio et al. A


personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 81-102.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2014.

RYNGAERT, Jean-Pierre. A ficção e sua organização. In: RYNGAERT, Jean-Pierre.


Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 53-74.

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