Inicialmente, tratando do visual e o cenário, o espaço entre o público e os atores é
próximo; não há palco; e todo o solo, tanto do espetáculo quanto do espectador, é do mesmo nível, com muitos à frente sentados ao chão. A encenação ocorre em ambiente livre de ornamentações e objetos. Ao adentrar o salão, o público se depara com uma gaiola contendo quatro caranguejos; um ambiente obscuro e enfumaçado, que dá forma a um local lúgubre; desta forma, o público já permeia pelo espetáculo. A centro do salão consta uma caixa de areia, a cerca de 2 x 1 metro, no canto direito de quem vê está uma bateria e do lado esquerdo, uma tela com bloco de desenho. Todos os demais objetos do espetáculos estão expostos, organizadamente, sendo, gradativamente, acessados de acordo com sua utilização da peça. Lâmadas alvas fortemente refletidas para a gaiola de caranguejos, para a bateria e para o quadro de desenho sobre a caixa de areia, com um sistema de seis spots de luz. Esse jogo de iluminação bem como o trabalho corporal, onde os movimentos são partes significantes da encenação, faz um show de performance que fortelece o sentido de cada cena assim como no auxílio ao espectador e na sua interpretação do que se sucede. Uma peça altamente subjetiva, contundente tanto quanto inusitada. Pedro Kosovski escreveu, engenhosamente, ao criar o personagem chamado Cosme para conduzir o fio de história. Este nasceu na região do mangue no Rio de Janeiro, onde atualmente fica a Praça Onze e, pela historia era chamada de Rocio Pequeno no século XIX. Ele cresceu ali naquele lugar imundo, repleto de doenças, à margem da sociedade. As autoridades, porém, lembraram de sua existência para convocá-lo para a Guerra do Paraguai, mandando-o para o campo de batalha. Dispensado por ter enlouquecido durante a guerra, ele volta para a cidade, mas ela está diferente, passando por sua primeira grande obra de saneamento, e o mangue não está mais lá. Cosme se sente um exilado no próprio lar. Ele é, novamente, um nada, um marginalizado. Primeiro, lhe tiraram de seu espaço e, depois, tiraram o próprio espaço dali. São vários acontecimentos simultâneos. Em um mesmo momento, por exemplo, um ator fala, outro fica nu e se lambuza dos pés à cabeça de lama, outro interage com um caranguejo em cima de um mapa, e outro faz uma performance enrolado em um fio luminoso. Para onde olhar? A escolha é de cada um. O espetáculo é bastante dinâmico, com novidades visuais a todo momento. Cheia de referências históricas e políticas, a narrativa dá abertura para várias interpretações. O espectador tende a sair do teatro ligando pontos, atribuindo sentido e tirando suas conclusões – o que, por si só, é um mérito para qualquer espetáculo: não terminar no aplauso. O texto começa falando de um ciclo vital do mangue: os caranguejos comem os dejetos humanos e os humanos comem os caranguejos. É como se a matéria de excretos não saísse dali. Analisando a vida do Cosme – um nada, transformado em soldado, e por fim novamente um nada (“uma coisa”, como diz um personagem) – percebe-se a reflexão sobre esses ciclos fechados. Em um dos melhores momentos do espetáculo, uma prostituta paraguaia explica para Cosme tudo que aconteceu desde sua ida para a guerra. Ela fala sobre as obras que não acabam nunca, e é inevitável traçar um paralelo com os dias atuais, e ao que o Rio passa desde a Copa do Mundo e mais acentuadamente rumo às Olimpíadas. O mais interessante é que, fazendo uma quebra na verossimilhança e se apropriando desse pensamento natural do público, ela segue narrando os acontecimentos do país nos séculos XX e XXI, os personagens, entretanto, situados estão no século XIX. A direção de Marcos André Nunes. No elenco, estão Carolina Virguez (de “Guerrilheiras”), Alex Nader (de “Répétition”), Eduardo Speroni (de “Bicho”), Fellipe Marques e Matheus Macena , esse último como Cosme. O homem meio caranguejo interpretado pelo ator é surpreendente. “Caranguejo Overdrive”, uma peça instigante! Toca a arte das artes, com encenações e presença corporal que enaltecem todo espetáculo. Não há como “dormir” pelo apresentado contexto!... Vale à pena!!
FICHA TÉCNICA:
Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski Elenco: Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques e Matheus Macena Músicos em cena: Felipe Storino, Mauricio Chiari, Samuel Vieira e Pedro Nêgo Direção Musical: Felipe Storino Iluminação: Renato Machado Instalação Cênica: Marco André Nunes Ideia Original: Maurício Chiari Produção: Aquela Cia. de Teatro