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“OS MAIAS” EM TEMPOS SOMBRIOS

Breno Góes
PUC-Rio
CNPQ
Orientadora: Profa. Dra. Izabel Margato

Na noite do dia 24 de Novembro de 1945, com a presença do Presidente da República


Óscar Carmona, estreou no Teatro Nacional D. Maria II de Lisboa o espetáculo teatral Os
Maias. Tratava-se de uma adaptação do famoso romance queirosiano escrita pelo intelectual
açoriano José Bruno Carreiro e encenada pela companhia Colaço-Robles, residente no Teatro
Nacional desde 1929. A peça foi anunciada e divulgada para o público como fazendo parte do
extenso ciclo oficial de comemorações do primeiro centenário de nascimento de Eça de
Queirós promovido pelo SNI (a peça estreou na véspera do aniversário do escritor). O
espetáculo fez uma carreira de sucesso naquele teatro, com quase uma centena de
apresentações, muitas delas com casa cheia, e ainda viajaria para o Porto, onde repetiria o
êxito.
No bojo de uma pesquisa mais ampla a respeito do centenário de nascimento de Eça,
na qual procuro analisar de que maneira a figura queirosiana foi apropriada politicamente
pelo regime fascista de António Oliveira Salazar, este trabalho tem o objetivo de reconstituir
a sequência de eventos que culminou com a encenação de Os Maias, e sobretudo analisar o
possível impacto que o contexto político tenso vivido por Portugal no período teve no
espetáculo encenado. Isso porque alguns documentos encontrados no arquivo da Torre do
Tombo sobre o centenário queirosiano sugerem que o texto de José Bruno Carreiro teve
partes censuradas de maneira extra-oficial por motivações políticas. A investigação desse
episódio razoavelmente obscuro dos assuntos ligados a Eça de Queirós dá ensejo à uma
reflexão sobre as relações sempre tensas entre política e ficção.

PARTE I - O ESTRANHO QUINTO ATO

A primeira parte do trabalho fará uma análise (resumida, é verdade) do próprio texto
de José Bruno Carreiro. Isso só é possível porque felizmente esse texto recebeu uma edição
razoavelmente cuidada da Imprensa Nacional Casa da Moeda, em 1984, acompanhada não
apenas por um interessante estudo de Carlos Reis como também por um pequeno porém
fundamental documento de época. Trata-se do registro escrito de uma entrevista radiofônica
concedida por José Bruno Carreiro à Emissora Nacional portuguesa (órgão radiofônico
oficial do regime) no próprio mês de Novembro de 1945. Nessa pequena entrevista Carreiro
fornece algumas declarações que se revelarão úteis, entre elas:

- que a peça fora escrita quatro décadas antes, em sua juventude, mais precisamente no
ano de 1903;
- que ele, Carreiro, conscientemente optara por fazer de sua adaptação de Os Maias “o
drama passional de Carlos e Maria Eduarda”, privilegiando portanto a narrativa do

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incesto e apenas aludindo pontualmente às muitas cenas que tratavam da vida social
lisboeta.
- que seu texto nunca fora encenado na íntegra antes de 1945, mas nos anos 20 fora
parcialmente montado por um grupo amador sob o título de Maria Eduarda.
- que, após isso, o texto fora dado como perdido em um incêndio, e Carreiro não tinha
mais ouvido falar nele até 1944, quando fora procurado pelo ator Robles Monteiro
com a notícia de que a peça seria integrada às comemorações do centenário.
- Que para aquela montagem ele não tinha alterado nada do texto escrito em 1903,
exceto “umas seis ou sete frases sem importância.

A leitura dos primeiros quatro atos do texto endossa completamente o que diz Bruno
Carreiro em sua entrevista: de fato, pode-se notar um engenhoso esquema de condensação
das muitas cenas e personagens que compõem tudo o que, no romance, não está
fundamentalmente ligada à trama de amor entre Carlos e Maria Eduarda. Desaparecem, em
primeiro lugar, personagens como Pedro da Maia e Maria Monfortes, pois toda a porção da
trama protagonizada por eles ainda na década de 1850 é reduzida a um recordatório no
primeiro ato. Entre os personagens contemporâneos de Carlos, desaparecem alguns tão
importantes como Tomás de Alencar, a Condessa de Gouvarinho, o casal Cohen, o maestro
Cruges e Palma Cavalão. Todas essas ausências são índices da escolha de Bruno Carreiro em
não aprofundar-se nas muitas cenas em que Eça traça um panorama social de Lisboa, e
também de sua preocupação em reduzir os espaços nos quais a trama se desenvolve. Afinal,
sem Palma Cavalão, desaparece o cenário da redação da Corneta do Diabo. Sem Cruges e
Alencar, desaparecem Sintra e o Teatro da Trindade. É preciso lembrar que a preocupação em
concentrar a ação no espaço e no tempo é, afinal, um dos clássicos preceitos do texto
dramatúrgico desde a poética de Aristóteles, ao qual Bruno Carreiro é rigidamente fiel.
Por outro lado, o autor não economiza espaço para seu casal principal, que
protagoniza uma imensa cena romântica logo no segundo ato do espetáculo. Carlos e Maria
Eduarda possuem tempo suficiente de cena para desenvolverem-se enquanto personagens, o
que inclusive justifica que uma versão condensada do texto de Bruno Carreiro tenha chegado
a se chamar Maria Eduarda: nos quatro primeiros atos de sua peça, a personagem realmente
ocupa, junto com Carlos, o centro da ação (o que inclusive contrasta com a qualidade algo
evasiva e elusiva dessa personagem do romance). O quarto ato da peça, marca o ápice desse
desenvolvimento da história do casal: é coroado pela cena do perdão que Carlos concede a
Maria Eduarda após Castro Gomes revelar que ela não seria quem parece ser. A belíssima e
melodramática cena é transposta por Bruno Carreiro do romance para a peça com meticulosa
fidelidade, aproveitando inclusive as descrições queirosianas como marcações de cena. Tal
cuidado é endossado pela entrevista do autor à Emissora Nacional, em que este confessa ter
sido esta a cena do romance que motivara-o a realizar a adaptação dramática.
A grande questão é que, no quinto ato, algo estranhíssimo acontece: a personagem de
Maria Eduarda desaparece. Depois que ela e Carlos decidem casar-se no final do ato anterior,
o espectador simplesmente não vê mais a personagem. Toda a ação do desenlace da peça se
divide em três “quadros”. O primeiro deles encena o diálogo entre Ega e Guimarães, em que
este passa ao melhor amigo de Carlos os documentos que comprovam o parentesco do casal
protagonista. Cai o pano, encerra-se o primeiro quadro. No segundo quadro, Ega narra a

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Carlos e Afonso o que descobriu, e Afonso determina que se dê a Maria Eduarda a notícia a
respeito de sua verdadeira identidade. Carlos e Ega discutem sobre quem deve dar a notícia,
em um diálogo inteiramente igual ao do romance. Quando Ega vai embora, Carlos
protagoniza sozinho uma cena muda em que se arruma furtivamente. Trata-se de uma
levíssima sugestão de que irá visitar Maria Eduarda, mesmo já estando consciente do incesto.
Cai o pano novamente, encerrando o segundo quadro. Quando o pano sobe novamente, dá-se
um diálogo extremamente curto entre Ega e Afonso, no qual o avô revela saber que seu neto
está cometendo o incesto consciente. Ega não tem resposta para as acusações. Carlos
reaparece e é surpreendido pelos dois ao tentar voltar furtivamente para seu quarto. Após uma
última troca de olhares entre avô e neto, Afonso cai no chão, morto, com um “ah!” trágico.
Enquanto Carlos chora desesperadamente, uma voz em off anuncia que simplesmente que
“Dois dias depois cerraram-se para um grande luto os portões do Ramalhete. Carlos partiu
para Santa Olávia, Maria Eduarda para a França – e nunca mais se encontraram na vida”.
Como se vê, portanto, trata-se de um final substancialmente diferente do
encerramento do livro. A maior parte das mudanças e supressões é inteiramente coerente com
o plano original de Bruno Carreiro e com as necessidades mais ou menos inerentes à
adaptação dramática de um romance realista: desaparece o longo périplo de Ega por Lisboa,
em dúvida quanto ao que fazer com o conhecimento que possui a respeito do incesto.
Desaparece a figura mediadora de Vilaça, bem como a estranha cena cômica em que ele
procura um chapéu durante a revelação do incesto para Carlos. Sobretudo, desaparece a
viagem de volta ao mundo que Carlos dá, e o epílogo situado dez anos depois quando este
volta de Paris para Lisboa.
Contudo, se todos esses episódios suprimidos podem ser compreendidos como não
essenciais à trama amorosa, nada explica que a própria figura de Maria Eduarda esteja
ausente do desenlace da trama que vinha protagonizando pelos quatro atos anteriores.
Especificamente, desaparecem da peça duas cenas fundamentais em torno dessa personagem
que existem no romance original: a primeira é o último encontro entre ela e Carlos, quando
eles fazem sexo estando ele já ciente de que ela é sua irmã. A segunda é o icônico embarque
de Maria Eduarda na estação de Santa Apolônia, em que, no romance, a personagem está
inteiramente enlutada e dialoga brevemente com João da Ega. Ainda que se possa argumentar
que essas cenas não teriam espaço numa adaptação teatral por conta da questão das mudanças
de cenário, haveria uma série de adaptações e soluções cênicas possíveis para incluir a
heroína no ato derradeiro – soluções que Bruno Carreiro foi plenamente capaz de dar em
outros momentos de sua adaptação. O resultado final que foi levado à cena é no mínimo
bizarro: toda a trama construída para levar dois personagens ao reconhecimento de que
estariam cometendo incesto é concluída sem que um dos dois tenha qualquer desfecho em seu
arco dramático.

PARTE II -

Ao estranhamento causado pelo quinto ato da peça de José Bruno Carreiro vem
somar-se um outro, que adensa o mistério em torno do texto. Em um livro que escreveu sobre
Carreiro, a pesquisadora Ana Maria Almeida Martins publica uma carta que este escreveu
para o escritor também açoriano Vitorino Nemésio, datada de 1940. Essa carta desmente

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frontalmente algumas das informações ditas pelo próprio Carreiro cinco anos depois à
Emissora Nacional (que, não custa lembrar novamente, era a emissora de rádio oficial do
governo salazarista). Nela, Carreiro conta em detalhes para Vitorino como acabara de
descobrir que Robles Monteiro estava em posse do texto de sua adaptação de Os Maias e
desejava a permissão do autor para encená-la. Não é verdade, portanto, a informação que o
próprio Carreiro concede na entrevista de que só soubera que seu texto fora encontrado em
1944, e também não é verdade que desde o primeiro contato com Robles Monteiro este teria
associado uma possível encenação da peça às comemorações do Centenário de Eça. O fato é
que ambos já conversavam sobre uma possível encenação da adaptação de Os Maias desde
1940.
Carreiro, na mesma carta, menciona brevemente a questão do quinto ato: ele diz para
Vitorino que não se recorda se este se encerraria com a morte de Afonso ou com o embarque
de Maria Eduarda em Santa Apolônia. É um fato, portanto, que o autor da adaptação no
mínimo considerava a hipótese de sua heroína estar presente no último ato do texto – e
certamente tinha em mente a necessidade dramática de dar um fecho à história de sua
protagonista feminina. Mas porque José Bruno Carreiro teria mentido à Emissora Nacional?
Antes que possamos responder essa pergunta, é necessário se fazer a menção a um
último documento: em novembro de 1944, o diretor do SNI António Ferro deu uma entrevista
ao Diário de Notícias em que descreve detalhadamente os planos oficiais de celebração do
Centenário de Eça de Queirós. A entrevista, portanto, regula com o momento que, segundo a
entrevista “mentirosa” dada por Carreiro à Emissora Nacional, este teria sido informadode
que pretendiam incluir sua adaptação no conjunto de comemorações do centenário.
Entretanto, em sua entrevista ao DN, na qual é extremamente detalhista e não deixa passar
qualquer detalhe sobre seus planos, António Ferro em momento nenhum menciona uma
encenação de Os Maias. Mais do que isso: ele anuncia que a contribuição a ser dada pelo
teatro para o centenário seria apenas a encenação do espetáculo Philidor, traduzido por Eça a
partir do original de Joseph Bouchardy. Portanto, podemos supor com razoável certeza que
não apenas Carreiro e Robles Monteiro vinham debatendo desde 1940 uma encenação de Os
Maias como também que até o final de 1944 essa possível encenação não estava atrelada às
celebrações do centenário de Eça de Queirós.
Toda a estranha situação descrita até aqui – de uma peça com um estranho final
escrita por um autor que dá uma estranha entrevista – talvez jamais possa ser completamente
elucidada, mas há um documento que nos permite supor com bastante segurança o que
provavelmente aconteceu. Trata-se de uma carta escrita por António Eça de Queirós (filho do
romancista e vice-diretor do SNI, portanto uma figura altamente envolvida na celebração do
centenário) endereçada a um certo Pastor de Macedo, que na altura era o “Delegado do
Governo junto ao Teatro Nacional D. Maria II”. Como este texto é apenas um resumo e o
documento me parece ser inédito, me privo de citá-lo diretamente. Entretanto adianto que o
documento deixa claro, em linhas gerais, que

- A peça foi montada pela companhia Robles-Monteiro para estrear em Julho,


desatrelada do programa oficial de comemorações.
- Às vésperas da estreia, a temporada de Julho foi autoritariamente adiada para
Novembro por António Eça de Queirós, com prejuízo para a companhia.

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- O final original do texto de Bruno Carreiro foi censurado, sob o argumento de que
irritaria os “Jornais Católicos”.

PARTE III

A terceira parte do trabalho, ainda menos desenvolvida, partirá da conclusão de que a


peça foi censurada para perscrutar o motivo dessa censura (supomos que tenha sido o caráter
escandaloso e supostamente imoral do incesto) e debater a tensão interna do salazarismo que
levou o regime a simultaneamente glorificar Eça e repudiar elementos fundamentais da sua
obra.

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