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REMÉDIOS

Carolina tirou os olhos do livro, pousou-o aberto na mesa de cabeceira e ele não se
fechou, tais eram a sua grossura e peso. A menina passou alguns segundos ainda deitada, com
os olhos fixos no teto, como se esquecida da necessidade fisiológica de piscar. Cutucou uma
espinha, até ela começar a sangrar. Só então ergueu o tronco, apoiando-se nos cotovelos e
começou a vasculhar o quarto com os olhos, a procura de alguma coisa que não parecia estar
na sua estante, entre os bichos de pelúcia e as bonecas, mas também não estava no assento da
cadeira em cujo encosto se acumulavam os vestidos da mãe. Muito do perfume do quarto
vinha daqueles vestidos longos. Carolina, com um impulso, virou seu corpo de bruços e fez
um movimento rastejante no grande colchão da cama de casal até chegar aos seus limites e
pender, meio de cabeça para baixo, para que o rosto pudesse ver o vão escuro entre a cama e
o chão. Piscou e sorriu: estavam ali. Esticou o braço magricela para a escuridão e finalmente
alcançou a caneta bic e a folha de papel na qual vinha traçando desde o início da semana a
árvore genealógica da família Buendía.
A adolescente desfez a complicada posição, voltou a deitar, pegou de novo o livro
grosso, dobrou a ponta da página em que tinha parado a leitura e o fechou. Sua cabeça
pulsava ligeiramente, e seus seios estavam um pouquinho doloridos: antes deles chegarem era
mais fácil para ela fazer aquele tipo de “estripulia”, como sua mãe chamava. Usando a capa
do livro como superfície de apoio, Carolina pousou a folha de fichário ornamentada nas
bordas com imagens do Ursinho Pooh e Seus Amigos, que continha a tal árvore. Era
complicadíssima, mas cuidadosamente esquematizada. Com a caneta, puxou da união dos
nomes de Aureliano Segundo e Fernanda del Carpio um traço meticuloso sob o qual
escreveu, já pela quarta vez naquela folha, "José Arcadio Buendía". Se perguntou quantas
vezes mais teria que escrever esse nome, e quanto tempo demoraria até aparecer novamente
um "Aureliano" - mas, em todo caso, agradeceu mentalmente ao senhor de bigode por aquela
dica preciosa.
A própria motivação para ler um livro tão imenso viera desse tal vizinho, que morava
no andar de cima, fazia o tipo musculoso e tinha um bigode muito preto. Um dia, quando eles
subiam juntos o elevador, ele fizera algum comentário sobre o livro que ela tinha na mão. Era
qualquer coisa de um autor português morto no século retrasado, que a sua turma fora
obrigada a ler para o colégio; o homem perguntou se ela estava gostando, e se ela gostava de
ler em geral. Ela disse não duas vezes. No dia seguinte o vizinho tocou a campainha do
apartamento com uma sacola abarrotada de livros, foi a mãe que atendeu. Carolina conseguia
ouvir tudo do corredor: o sujeito queria lhe emprestar aqueles livros, a mãe agradecia mas
queria saber se eles eram decentes, ele argumentava que não seria educativo dar a uma
adolescente leituras demasiado infantis e no fim os dois chegaram ao acordo de que ele
emprestaria apenas aquele volume, Cem Anos de Solidão. A história de várias gerações de
uma família em uma vila fantástica cheia de acontecimentos mágicos foi a única que pareceu
suficientemente decente para a mãe. Carolina foi chamada na sala para receber o livro e
agradecer. Foi então que o homem de bigode sugeriu, com uma imensa mão pesando sobre
seu ombro:

– Faça uma árvore genealógica para não se perder. É uma família complicada.

Ela correu para o computador, para descobrir que espécie de árvore era aquela.

**********

Carolina leu até anoitecer, e não se deu conta dos Barulhos: o Molho de Chaves, o
Salto Alto batendo no chão de tacos de madeira, os Cliques dos Interruptores se acendendo e
aquele Assovio que diariamente anunciavam a chegada de sua mãe. A melodia se repetia
enquanto a mulher cruzava o longo corredor que ligava a sala de estar ao quarto, até ela
entrar, abarrotada de sacolas, carregando uma grande bolsa e exalando o perfume usual. À
sua entrada, a vila de Macondo desapareceu da mente de Carolina como uma tela de TV que
fosse desligada. Ela ergueu os olhos do livro, apenas meio consciente da chegada de uma
outra pessoa no quarto, mas enquanto isso a mãe já falava em alto tom.

– Esse trânsito, onde já se viu! Minha filha, esse livro do vizinho não é pra você ficar
lendo em dia de semana, não! Em dia de semana só se lê antes de dormir, não foi esse o
combinado? Qual foi o combinado? Olha, assim fica difícil… Sabe quem eu encontrei hoje
na rua? A Gláucia! Filha, você lembra da Gláucia? Filha, larga esse livro!

A mulher não esperava respostas. Falava e ia se desfazendo pelo quarto das suas
coisas de rua: a bolsa no assento da cadeira, os brincos na caixa de jóias e os sapatos embaixo
da escrivaninha. As sacolas ficaram encostadas na porta espelhada do armário embutido, em
frente ao qual a mãe de Carolina parou e continuou falando enquanto se mirava. Era elegante,
e a única coisa que fazia sua aparência destoar das outras mulheres do bairro eram os cabelos,
que não tinham tinta e já estavam bastante grisalhos. Ajeitou-os e continuou, agora voltando a
falar do livro:

– Desse jeito dá desgosto de te pagar a escola. Sabe o quanto está custando a escola?
Não é barato não, aliás não tem nada barato nessa cidade. Hoje eu fui comprar um
comprimido e na volta tive que sacar dinheiro outra vez, senão não conseguia pegar o táxi,
está tudo uma loucura…

A mãe não parava de tagarelar enquanto saia do quarto e andava até o banheiro.
Carolina respirou fundo e olhou para o ursinho Pooh no canto da folha. Desenhou um
bigodinho azul nele, com a esferográfica. A voz da mãe era apenas um murmúrio indefinido,
misturado a outros Barulhos que ela conhecia muito bem. Mijo caindo na água do vaso
(“número um”, se corrigiu). Descarga. Chuveiro e aquecedor sendo ligados. A voz da mãe,
agora berrando, nítida:

– Carolina, meu amor, eu não vou esperar a noite toda, você não vem?

A “tradição” de todas as noites. Carolina se levantou da cama e foi arrastando os pés


em direção ao banheiro. Ainda no corredor, tirou mecanicamente a camisa da escola que
usava desde de manhã. Já entrando no banheiro, tentou tirar o sutiã também, mas ele
continuou preso por um dos dentes do fecho. Faltava-lhe prática. A mãe, já completamente
nua, virou seu corpo de um jeito meio exasperado e desatou por completo a peça. Fez um
carinho breve em suas costas marcadas e disse:

– Esse está te apertando muito? Quer que eu compre um maior?

Carolina odiava sutiãs. Dera um jeito de sumir com os três primeiros que ganhara, e
só concordou em usar aquele por conta de alguns olhares estranhos que passou a receber na
escola. Sabendo que era uma batalha perdida, resmungou qualquer coisa e entrou no chuveiro
junto com a mãe, como fazia desde que se entendia por gente. Ela se lembrava que, quando
era bem pequena, a mãe que ensaboava seu corpo inteiro, e passava shampoo nos seus
cabelos. Depois, o que passou a acontecer é que ela própria se ensaboava, mas a mãe
frequentemente tirava a esponja de suas mãos para “esfregar direito” alguma parte do seu
corpo. Atrás das orelhas. Entre os dedos dos pés. Na periquita. Segundo a mãe, esse era o
momento “de mãe e filha” de ambas.
Só neles fazia perguntas e esperava pelas respostas:

– Está gostando do livro?


– Sim.
– O que aconteceu com aquela personagem que você gostou?
– Foi para o céu.
– Ah, morreu, é?
– Não, tipo, foi pro céu. Voando. E não voltou.
-Esse livro deve ser insuportável. Os personagens mais legais somem!
– Hm. Eu não estou entendendo muito bem não.
– Qual parte?
– Várias.
– Na novela é a mesma coisa. Aquele médico que a gente gosta parou de aparecer
também. Abre aqui, você não está esfregando direito! Deve ter acontecido alguma coisa com
o ator.
***********
Mais tarde, enquanto a mãe tomava os comprimidos para dormir ao seu lado na cama
de casal, Carolina tentou fantasiar que ascendia aos céus, sem ter morrido, viva e com o
corpo brilhando. Imaginou-se flutuando acima das nuvens, deixando para trás uma cidade
cheia de bananeiras e todas aquelas pessoas com nomes iguais, que agora pareciam também
ter os corpos iguais, pequenininhos, depois corpo nenhum: eles é que sumiam, ela não. Do
seu lado, as omoplatas da mãe se expandiam e contraíam de um jeito meio ameaçador, no
ritmo da respiração.
Alguns anos antes, na escola, Carolina tinha descoberto que nenhuma outra de suas
amigas tomava banho com a mãe, nem dormia na mesma cama que a mãe, e nem tinha regras
em casa sobre fazer o “número dois” de porta aberta. Se sentiu como se tivesse uma doença e
demandasse cuidados especiais. A mãe, apressada e distraída, sem olhar para ela, respondeu
que aquilo era porque as amigas dela tinham pai, e que um dia também ela tomaria banho
sozinha e teria um quarto só seu. Quando menstruou, Carolina achou que a hora tinha
chegado, mas nada mudou. Em compensação, naquele dia ela ganhou muitos brinquedos e
jogos de computador: sabia que eram para distraí-la do sangue, mas a mãe disse que eram
para fazê-la parar de correr que nem uma louca pela casa. De fato, a menina gostava de correr
no imenso apartamento, pelo grande corredor, até sentir o corpo ficar absolutamente exausto.
Esquisitices como essa coisa do banho acabaram por afastá-la da maior parte das
amigas do colégio, o que até tinha seu lado positivo: não precisava aturá-las falando de
seriados, namorados e outras idiotices. Em compensação, por mais de uma vez desconfiou
que as amigas tinham começado a falar dela também, ou quem sabe sobre sua doença.
Cochichando às escondidas, como sempre.
Ao seu lado, a mãe começou a roncar.

*********

Domingo era seu momento preferido da semana, porque o combinado com a mãe era
que ela podia, ainda de manhã, atravessar a rua que separava o apartamento da praia e ficar
jogando vôlei até o anoitecer. Não precisava levar celular (“pra que, se você vai perder ou
afundar ele na areia?”). Durante praticamente a metade de um dia Carolina ia de rede em rede
pela orla pedindo para entrar em um time, e então participava das partidas daquele grupo
específico até que todos se cansassem e fossem embora. Respondia sempre sorrindo quando
lhe perguntavam alguma coisa, mas não fazia qualquer outro esforço para socializar. No que
dizia respeito ao jogo em si, não chegava a ser especialmente talentosa, mas não havia pessoa
mais disposta a se arremessar no chão e encher o corpo de areia lutando por uma bola que
parecesse perdida. Independentemente do sucesso da jogada, levantava-se sempre mais feliz
depois de um desses lances. Às vezes se ralava toda.
Assim como suas amigas, os homens da praia tinham começado também a sussurrar
enquanto olhavam para ela, o que era incômodo mas não chegava a ser grave. Ao contrário
das meninas da sua idade, aqueles caras pelo menos serviam para jogar vôlei. No final do dia,
queimada, suada, ralada e muito suja, Carolina ia em direção ao mar e mergulhava sem ao
menos olhar detidamente para o pôr-do-sol entre as montanhas à beira-mar, um cenário pelo
qual muitos pagavam milhões. Quando tinha vontade, ia até o fundo e fazia o número um.
Voltava para casa cheia de areia e sal, sabendo que encontraria a mãe já bêbada, entre muitos
cascos de cerveja, conversando com alguma amiga e pronta para dar uma bronca por ela ter
se esquecido do filtro solar. Nesses dias, e só neles, Carolina tomava banho sozinha, exausta
e feliz.

**********
Na manhã daquele domingo específico, ela acordou bem cedo, engoliu qualquer coisa,
colocou um biquini e um short de lycra velho, manchado e meio sem elástico, o melhor do
mundo para a prática do voleibol. Olhou pela janela, confirmou que o céu estava azul e
muitas bolas pululavam na areia da praia, entre jornadas nas estrelas e viagens ao fundo do
mar.
Só então se lembrou que na noite anterior tinha abandonado a família Buendía e os
demais habitantes de Macondo em uma situação difícil: o Coronel Aureliano, que ela
imaginava sempre como tendo o mesmo rosto do bigodudo do elevador, e que tinha se
tornado seu segundo personagem favorito, havia morrido. Esse Aureliano específico era uma
das únicas figuras presentes desde o iniciozinho da história, e Carolina estava curiosa para
saber como tudo poderia continuar sem ele. Mas o que tornava o livro ainda mais convidativo
naquela manhã era o silêncio da casa: a mãe tinha saído para bater perna no shopping e não
tinha hora para voltar. A menina correu para a cama, mergulhou de volta no lençol, pegou os
Cem Anos, a árvore genealógica e a esferográfica. Prometeu-se meia hora de leitura, e então
vôlei:

“As últimas férias de Meme coincidiram com o luto pela morte do Coronel Aureliano
Buendía. Na casa fechada não havia lugar para festas. Falava-se por sussurros, comia-se
em silêncio, rezava-se o rosário três vezes por dia e até os exercícios de clavicórdio, no
calor da sesta, tinham uma ressonância fúnebre…”

Ler aquilo, mesmo sem saber o que era um clavicórdio, era como ser fisgada pelo
mar, no momento em este recolhe os restos de alguma onda grande. Meia hora se passou, e
passou outra vez. Por toda a volta de Carolina, enquanto ela lia, as sombras projetadas na
parede do quarto diminuiam progressivamente, conforme o sol ia subindo e torrando os
banhistas lá embaixo, naquele princípio de verão. Na altura em que Úrsula atingiu os cem
anos de idade, a menina começou a sentir fome e, sem tirar os olhos do romance, se forçou a
programar as próximas ações. Estipulou na cabeça um plano em três fases:

1) ler até o fim daquela página.


2) Engolir um pão com manteiga na cozinha.
3) Descer para a praia e não desperdiçar o seu domingo em uma cama, ainda por cima
lendo.
Mas o primeiro passo do plano ia sempre se revelando o mais complicado, por conta
de mais algum personagem irresistível que se apresentava, preenchendo os vazios deixados
pelos muitos que morriam quase sem deixar marcas na história. Era uma espécie de hipnose
seletiva: o livro paralisava praticamente todo o seu corpo em um torpor estúpido, mas
mantinha móveis os olhos e a ponta dos dedos para permiti-la seguir aquele desfile de
Aurelianos e Arcádios que não acabava nunca. Estes, tão extravagantes e indistinguíveis um
do outro, iam começando a se assemelhar em sua mente com aquela massa de gente
emplumada que ela via nos desfiles de escola de samba na TV. Carolina nem reparou que
tinha chutado para longe os lençóis e agora lia com as pernas muito abertas e esticadas,
ocupando a cama de casal inteira. O dia avançava, e o calor beirava o insuportável.

“Com uma vassourada, acabou com as lembranças funerárias e os montes de cacarecos


inúteis e instrumentos de superstição que se amontoavam pelos cantos, e a única coisa que
conservou, por gratidão a Úrsula, foi o retrato de Remédios na sala. “Olhem que
maravilha”, gritava morrendo de rir. “Uma bisavó de quatorze anos!” Quando um dos
pedreiros contou que a casa estava cheia de fantasmas e que a única maneira de espantá-los
era procurar os tesouros que tinham deixado enterrados, ela respondeu às gargalhadas que
não acreditava em superstições de homens.”

Lá pelas tantas, Carolina conseguiu desviar os olhos do livro e mirou a janela. Eram
cinco da tarde, talvez. Continuava quente pra caramba. A mãe, milagrosamente, se demorava,
devia estar no cinema, no botequim, quem sabe. Era tempo suficiente para que a menina
descesse e jogasse ainda uma partidinha de vôlei, ou tomasse um banho de mar. Tinha que,
pelo menos, comer alguma coisa. Mas a essa altura, qualquer dessas hipóteses era ridícula: a
casa da família Buendía já não estava mais assombrada só por fantasmas, era também
devorada por formigas, e não ela não tinha outra escolha a não ser continuar a habitá-la.
Quando foi retomar a leitura, Carolina reparou que seu pulso direito doía: já fazia horas que
apenas essa mão segurava o livro tão grosso, enquanto a esquerda coçava distraidamente a
periquita. E daí? Procurou o trecho em que parara, quando Aureliano e Amaranta Úrsula

perderam o sentido da realidade, a noção tempo, o ritmo dos hábitos cotidianos. Tornaram a
fechar portas e janelas para não demorarem nos trâmites de desnudamento, e se espojavam
em pêlo nos barreiros do quintal, e uma tarde por pouco não se afogaram quando se
amavam na caixa-d’água. Em pouco tempo fizeram mais que as formigas ruivas: quebraram
os móveis da sala, rasgaram com as suas loucuras a rede que resistira aos tristes amores de
acampamento do Coronel Aureliano Buendía e abriram os colchões e os

Afoita, sem parar de ler, Carolina se deu conta de que durante todo aquele dia não
tinha recorrido à árvore genealógica nem sequer uma vez: tinha se esquecido de incluir nela
os tantos personagens novos que se amontoavam. Não fazia a mais pálida ideia de quem eram
aquele Aureliano nem aquela Amaranta Úrsula, nem nenhum dos sujeitos, situações ou
lugares que tinham aparecido nas últimas três horas. Não importava: ler o livro, para ela, não
era mais assistir Macondo e seus personagens extravagantes como se numa TV interna. Ler
tinha virado uma espécie de música, de ritmo, que emanava das páginas do livro sobrepondo-
se ao silêncio no qual a casa estava mergulhada. Um ritmo que mantinha a menina sempre
presa e tonta porque nunca parava de acelerar.

********
Enquanto devorava parágrafos e virava folhas cada vez mais rápido, ela não
conseguia evitar a sensação de que algo, ou alguém, a esperava no fim daquela leitura. Ou
melhor: algo ou alguém avançava em sua direção, vindo sabe-se lá de onde, e se chocaria
com ela em torno do último ponto final. Ia doer? Seria talvez como despencar de cara na areia
da praia para salvar de manchete uma bola desesperada.
Caiu a noite. Nas duas últimas páginas, quando dentro do livro um vendaval tomava
conta da vila de Macondo, arrancando telhados, paredes e fazendo voar por todos os lados as
páginas dentro das páginas que um certo personagem lia, finalmente ele chegou. O comichão
entre as pernas que Carolina vinha sentindo sem se dar conta há pelo menos uma hora ganhou
uma intensidade inédita, virou um tremor que tomou conta do seu estômago e foi subindo
pela espinha acima. De susto, ela interrompeu a leitura. Teve medo: só então reparou que
estava com o corpo inteiramente contorcido no colchão, os dentes apertando com força o
lábio inferior, suando, o coração desabalado. Ameaçou fechar o livro, mas, em uma espécie
de intuição, descobriu que não queria ter interrompido o que quer que estivesse acontecendo.
Então mais um arrepio forte veio e ela compreendeu que não cabia mais a si a decisão de
interromper ou não.
Retomou a leitura, febril. E enquanto as linhas de Gabriel Garcia Marquez falavam
sobre um bebê devorado por formigas, sobre destino e, finalmente, sobre a tragédia que é não
haver para os que vivem uma segunda oportunidade sobre a terra, Carolina urrou e gemeu,
urrou e gemeu. Depois permaneceu de olhos fechados, ofegante, encolhida, mas com o livro
obscenamente aberto ao seu lado. Não sabia o que tinha acabado de acontecer com seu corpo.
Não mudou de posição. Só bem depois, quando ouviu o Barulho do molho de chaves
da mãe na porta, anunciando sua chegada, é que deu ao que acabara de acontecer o nome de
remédio.

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