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ROTEIRO DA AULA

"Samba, Território e Desencanto": a música em Gota d'água

Cantar "Sala de Recepção". Começar explicando que as culturas formadas no Rio de


Janeiro a partir da diáspora africana buscaram a todo momento construir laços simbólicos
de pertencimento com os territórios precários a que foram relegadas na cidade: lugares
então periféricos do centro, como a Gamboa, a Cidade Nova e o próprio morro da
Mangueira, além de regiões suburbanas e proletárias como Madureira. Daí a existência de
sambas elogiosos a esses lugares, como esse que vimos agora. Esses laços, por sua vez,
foram constituídos em uma certa lógica específica: a do encantamento. Ideia que remonta
ao conceito de "axé", uma mesma energia vital que em tudo habita e precisa ser
dinamizada para que a vida se dê, o encantamento supõe que haja uma relação mística,
intangível, entre um certo território e aqueles que o habitam, de modo que a energia de um
renove a do outro. Essa relação seria perceptível através de práticas culturais (religiosas,
artísticas) como o samba que "sacralizam" o espaço, dando a ele um sentido que vai além
do meramente utilitário. Isso se percebe na música de Cartola com as referências aos
cantos e orações que fazem do morro da mangueira o que ele é.

Por exemplo:

- Uma mera esquina de um desses bairros torna-se encantada se ali é colocada uma
oferenda para certo orixá.
- Uma avenida torna-se encantada se um bloco ou cortejo passa por ali.
- Um estádio de futebol se torna encantado se passa a ser frequentado por torcedores
que estabelecem um vínculo afetivo com ele.

O encantamento fortalece os laços dos habitantes não apenas com o ambiente, mas entre
eles próprios.

Cantar "Se Todos Fossem Iguais a Você". Explicar que em 1958, o poeta Vinicius de
Moraes (vindo da classe média branca e culta do Rio de Janeiro) decidiu usar exatamente
essa relação de encantamento típica das favelas e subúrbios cariocas como tema de uma
peça de teatro. A peça Orfeu da Conceição era baseada no mito grego de Orfeu, tinha a
forma de uma tragédia clássica e se passava numa favela carioca. Orfeu era um sambista,
e era exatamente a força de seu samba que "encantava" aquela comunidade e toda a
cidade: todos viviam felizes e em harmonia "a cantar" por causa do samba (como dito na
letra da canção). Quando Orfeu cai em desgraça e desce aos infernos para procurar sua
amada Eurídice, o morro fica triste e sem vida, "desencantado", o que demonstra a força
mística que o samba tinha sobre aquele lugar.
Mencionar (de passagem) a importância histórica do Orfeu, tanto como marco do encontro
entre Tom e Vinicius que gera a Bossa Nova quanto momento de internacionalização do
samba a partir do filme Orfeu Negro.

Cantar "Flor da Idade": Começar dizendo que em Gota D'água o tema do encantamento
também está presente, e a repetição da dobradinha tragédia grega x periferia carioca e
samba é uma clara referência ao Orfeu de Vinícius..
No entanto há uma diferença: na peça de Chico, sai de cena o morro. Os personagens
habitam um conjunto habitacional, e tentam reproduzir lá as mesmas relações de
sociabilidade que existiam na favela (samba, futebol, botequim). Tentam, enfim, "encantar"
o lugar, firmar laços de pertencimento. A música "Flor da Idade" fala disso: a Vila é o lugar
em que aqueles personagens vivem seus ritos de passagem da juventude, e esses marcos
são inesquecíveis: a primeira festa, o primeiro corpo, o primeiro drama, etc.
Se no Orfeu era a ausência do sambista que desencantava o lugar, na Gota d'água se dá o
oposto: o drama de Jasão é que se ele abandonar a Vila do Meio Dia, ele perderá o
encantamento que o permite escrever seus sambas. Conquistar a riqueza e o luxo da vida
ao lado dos poderosos significa, na peça, desencantar-se. (interessante: no Orfeu há uma
continuidade entre morro e cidade. Orfeu encanta ambas, e ambas se desencantam quando
ele desaparece. Na Gota há uma dicotomia: Jasão tem que decidir entre o conjunto ou seu
apartamento na cidade, e ter os encantos de um significa perder o outro).

Mencionar de passagem a obscura referência ao Quadrilha, do Drummond.

Cantar "Gota d'água": O ápice da aula, o grande samba em torno do qual gira a peça.
Começar dizendo que, se até aqui estávamos falando de uma ligação mística entre um
samba e um lugar, esta música é quando essa relação começa a se desfazer. Por um lado,
Jasão e Joana ainda atribuem a força do samba às relações encantadas entre Jasão e seu
território. Por outro, Creonte paga jabá pro samba tocar no rádio, e associa a música a um
poder alienante.
De uma forma ou de outra, a todo momento na peça é ressaltado o quanto a música é um
sambinha "arretado", um grande sucesso radiofônico. Seu refrão é repetido de forma
viciante em vários momentos do enredo, sempre animado e cheio de "batucada". No
entanto passamos a peça inteira sem ouvir a estrofe. Fica implícito (porque essa é a
tradição do samba e das canções que fazem sucesso no rádio) que ela seria coerente com
a animação do refrão. No entanto, no fim da peça, quando finalmente ouvimos a canção
inteira, descobrimos que a primeira parte é completamente inesperada: é um recitativo
trágico, sem ritmo marcado, descaracterizando a forma do samba. A estrofe é a própria
imagem do desencanto, o "samba brocha" com que Joana amaldiçoara Jasão. Podemos
ver que, na própria forma da música (metade samba, metade não) Chico Buarque coloca
claramente o drama de Jasão entre o mundo encantado pelo samba, de onde ele veio, e
sua cooptação pelo mundo frio e cruel, sem espaço para qualquer encanto, de Creonte.

Bônus, se sobrar tempo:

Cantar "Notícia de Jornal": Contar que, pesqusiando para esta aula, descobri que num disco
seu lançado em 1975 (portanto na época em que a peça foi escrita), Chico Buarque gravou
esse samba de Haroldo Barbosa (sambista histórico). Podemos supor que a peça deve
muito ao samba, talvez tanto quanto deve à Medeia: parece ser dali que Chico tirou o nome
da personagem principal, o suicídio do desfecho da peça e a relação entre tragédia e notícia
de jornal.

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