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22/03/2023, 23:31 Pedro Eiras – Sophia e as Artes (Dança, Forma, Música, Performance)

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SOPHIA
E A MÚSICA
PEDRO EIRAS
Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

1. Da raridade...

Não devemos, não podemos ler a poesia de Sophia de Mello


Breyner Andresen sem ouvir os diálogos que ela estabelece com
outros textos, outras escritas, outras artes. Estes poemas
convocam, de tantos modos, obras de Homero, Dante, Byron,
Fernando Pessoa ou João Cabral de Melo Neto; telas de Maria
Helena Vieira da Silva ou Graça Morais; toda a tradição
escultórica da Grécia antiga; e o universo da dança. Um diálogo
tão intenso e plural implica uma afinidade entre as formas: o
poema responde a outros poemas, ou interroga a especificidade
de pinturas, esculturas, coreografias, que se tornam matéria da
própria reflexão poética, matrizes de uma escrita.
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      E contudo, surpreendentemente, o diálogo explícito da poesia da


Sophia com a música pode parecer muitíssimo raro. Numa
descrição simples, constato que o primeiro surgimento da palavra
«música» acontece apenas em Livro Sexto, de 1962; e claro que é já
muito íntima, essa «Música passando pelas veias» (1962: 470),
essa música-sangue, vital; mas é também esquiva ou quase
desaparecida na obra de Sophia. Só nos últimos dois livros de
poemas a palavra «música» se repetirá várias vezes;
nomeadamente em Musa, de 1994, aliás um livro dividido em três
«andamentos», e onde se diz de Orpheu, o príncipe dos poetas,
que «Ante seus pés se deitam mansas feras / Vencidas pela música
divina» (1994: 835). E apenas num poema de Ilhas, sobre uma
pintura de Maria Helena Vieira da Silva, Sophia recorre
extensamente ao vocabulário técnico da música, cruzando escrita
poética, representação pictórica, imaginário musical: «Um pouco
atrás as musas da penumbra tocam suas finas flautas. É o rigor da
música que estrutura a ordem das formas, as variações, o retomar
dos temas, o contraponto da repetição» (1989: 813).
      Para terminar esta descrição, necessariamente minimal,
constato que em toda a poesia de Sophia há apenas uma
referência a um compositor e a um intérprete, no poema «Bach
Segóvia guitarra», no livro Geografia, de 1967. Constato que, sendo
a palavra «música» tão rara, surgem inúmeras vezes vocábulos
como «voz», «canto», «ritmo», «silêncio». E lembro que, claro, não
é necessário usar a palavra «música», referir compositores ou
intérpretes, para haver na poesia uma meditação sobre uma
experiência musical que atravessa todas as coisas. Na verdade, a
mesma escassez ou ausência dos nomes de compositores, de
títulos de obras, do vocabulário da música – sugere uma intuição
fundamental: a música que seduz Sophia é anterior e avessa a
todo esse vocabulário, à musicologia, à história de uma
instituição; talvez a ausência da palavra «música» seja, afinal, uma
forma de a proteger – de a salvaguardar.  

2. …e da omnipresença da música
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Talvez se resolva então o paradoxo: a palavra «música» é rara em


Sophia, mas a música é omnipresente nos poemas – tão presente,
veremos, quanto o mar, as árvores, a alma, porque alma, árvores e
mar são, eles próprios, formas de música.
Por isso, Sophia escreve, num poema de Dia do Mar: «sinto / Cada
coisa vibrar como uma lira» (1947: 160). As coisas vibram; todas
as coisas consistem numa vibração própria, ou murmúrio, numa
forma de música espontânea, anterior à própria humanidade.
Assim, para Sophia a música é inerente à essência das coisas:
define-as e ordena-as. Sexto Empírico, no seu tratado Contra os
Matemáticos, lembra que, segundo Pitágoras, «todo o universo é
ordenado segundo uma afinação, e a afinação é um sistema de
três acordes» (apud Kirk, Raven & Schofield 1957: 243), com
relações matematicamente definidas; mesmo para lá das coisas
terrenas, a música das esferas segue o mesmo equilíbrio de
relações perfeitas, vibração impecável do cosmos, aquém e além
do humano. E quando qualquer poema de Sophia interroga uma
coisa, é esse acorde secreto, único e íntimo, que se ouve em
primeiro lugar.
As coisas vibrando «como uma lira» são a primeira forma de
música: coisas obedecendo a si próprias, à vibração ímpar que as
define, existindo «Dentro de um ritmo cego inumerável», como
diz No Tempo Dividido (1954: 317). Mas essa origem do som não
vem apenas do passado, ela pode ser surpreendida em qualquer
coisa presente, como um búzio, neste breve poema de O Nome das
Coisas:
COMO O RUMOR     
 
Como o rumor do mar dentro de um búzio  
O divino sussurra no universo  
Algo emerge: primordial projecto   
(1977: 659)  
 

O divino sussurra no universo, porque o divino é um sussurro,


porque o próprio universo se revela divino quando é som,
vibração, música espontânea das coisas no instante. Existe uma
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«música do ser» (1967: 517), porque ser é imediatamente ser


música, e cada coisa se define por um ritmo próprio, intrínseco: o
ritmo-mar, o ritmo-dia, o ritmo-búzio. Em La Leçon de Musique,
Pascal Quignard glosa uma velha lenda chinesa: um músico, Po
Ya, descobre a música quando, após uma tempestade assustadora,
reencontra o silêncio; mas o seu mestre, Tch’eng Lien, corrige-o:
«A música não é o fim da tempestade, a música é a própria
tempestade» (Quignard 1987: 107). Segundo esta reescrita da
lenda, a música não é um intervalo entre as coisas, um estado de
excepção, ainda menos um artifício humano; mas a própria
realidade das coisas: o ribombar da terrível tempestade – ou o
suave som de uma vassoura varrendo, que mestre e discípulo
ouvem, durante horas, com lágrimas nos olhos.
Em Sophia a música é um modo de existência das coisas, antes de
haver sequer ouvidos humanos e a techné da composição, escolas,
géneros, códigos e convenções. Esta consciência de que a música
não é um atributo das coisas, mas a sua essência, torna-se
cristalina nos muitos poemas de Sophia sobre o mar. Em Poesia,
podemos ouvir «A selvagem exalação das ondas / Subindo para os
astros como um grito puro.» (1944: 65); em Musa, o «impetuoso
arfar no mar imenso» (1994: 823). Em Dia do Mar, esse som
multímodo e essencial confunde-se com as pulsações de quem
ouve – «E no vasto cantar das marés cheias / Continuava o bater
das suas veias» (1947: 164) –, e em O Búzio de Cós e Outros Poemas,
a mesma pulsação resulta de uma medida poética natural – «A
maré alta sete vezes cresce / Sete vezes decresce o seu inchar / E a
métrica de um verso a determina» (1997: 882).
O mar, em suma, não produz som, não possui som: ele é som,
ritmo, princípio da música, que a poetisa deve apenas escutar e
dizer em palavras. Em 1905, numa carta ao crítico Pierre Lalo a
propósito do poema sinfónico La Mer, Claude Debussy afirmava:
«Eu amo o mar, e ouvi-o com o respeito apaixonado que lhe
devemos», tendo simplesmente transcrito «o que ele me ditou»
(Debussy 1905: 183): lendo esta frase à letra, La Mer não é senão a
representação, mais fiel possível, do mar; e, segundo Sophia, o
próprio mar já é música, uma música anterior, antiquíssima,
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primordial.
O compositor compõe e a poetisa escreve aquilo que lhes é ditado
pelas coisas, por essa voz anterior e anónima. Na verdade, mesmo
quem ouve e escreve é também constituído por uma música
interior, «Uma vida secreta e fugitiva, / Feita de sombra e luz,
terror e calma, / Que é o perfeito acorde da minha alma», lê-se em
Poesia (1944: 63); ou, em Coral: «o bater do meu coração sustenta
o ritmo das coisas» (1950: 224). Como John Cage procurando o
silêncio rigoroso numa câmara anecóica, mas descobrindo que
não podia deixar de ouvir a vibração do seu próprio corpo, assim
Sophia compreende o sujeito como uma vibração íntima. Dito de
outro modo, não existe um sujeito silencioso e, no exterior, a pura
música: o próprio sujeito ouvinte é pulsação que sustenta um
ritmo, ou, regressando à palavra de Sexto Empírico, «acorde»:
harmonia interior, em correspondência com a música das esferas,
universal. O que existe é um jogo polifónico, invenção a duas
vozes, acorde que harmoniza sujeito e existência, escuta íntima de
correspondências secretas.

3. O som ínfimo

Tudo é música – o mar mas também quem ouve o mar, o mundo e


o escutador do mundo. Ora, em Sophia, trata-se sempre de uma
música quase inaudível. Só muito excepcionalmente as ondas se
exaltam e o mar grita; o mais habitual é ouvirmos somente um
arfar, um sussurrar. E, se procurarmos instrumentos musicais em
Sophia, eles são alaúdes (1972: 610), cítaras (1977: 688), «A voz da
flauta na penumbra fina» (1994: 840), a «Incessante intensa a
lira» (ibidem: 852). Os dias podem ressoar «como harpas» (1997:
865), e num poema de Ilhas chamado «Guitarra» Sophia escreve:
«Na voz de oiro e de sombra da guitarra / Algo de mim a si próprio
renuncia» (1989: 799).
Existem aqui, portanto, instrumentos de sopro como a flauta, mas
não o oboé, o clarinete, o fagote, ainda menos a trompa ou a tuba;
instrumentos de cordas dedilhadas, como o alaúde, a guitarra, a
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harpa, a cítara, mas não de cordas friccionadas, como o violino, o


violoncelo, o contrabaixo. Não há uma única referência explícita,
em toda a poesia de Sophia, ao piano, ao órgão, à percussão, a
conjuntos orquestrais. A música, em Sophia, parece ser sempre
de uma intensidade mínima, explorando um pianissimo quase
imperceptível. Nos seus escritos sobre música, Vladimir
Jankélévitch tenta definir precisamente esse «limiar do
inaudível», esse «jogo com o quase-nada»; ou seja,
O pianissimo, embora ainda audível, é a forma quase insensível do supra-
sensível: é então sensível por pouco; na fronteira entre o material e o
imaterial, o físico e o transfísico, o quase-nada designa a existência mínima
além da qual haveria a inexistência, o nada puro e simples (1961: 158)
 

Mesmo se até o mar de Sophia pode ter instantes de


arrebatamento, a música mais frequente nesta poesia é
constituída por «sons infinitesimais da micro-música» (ibidem),
como em «Goesa», de O Búzio de Cós e Outros Poemas:
Uma rapariga descalça como bailarina sagrada  
Atravessou o quarto leve e lenta  
Num silêncio de guitarra dedilhada  
(1997: 874)  
 

Tudo aqui é ínfimo – a leveza, a lentidão, o som da guitarra que se


confunde com o silêncio, a própria brevidade do poema. Sophia
sabe que a revelação do ser não exige a dialéctica triunfal das
grandes orquestras oitocentistas; nada mais distante desta poesia
do que a tradição sinfónica e operática entre Beethoven, Berlioz,
Wagner, Mahler. Pelo contrário, nesta poesia apenas se ouve o
som lento dos pés descalços da bailarina, esse «silêncio de
guitarra dedilhada». Eis a medida ínfima, quase imperceptível, da
música do mundo em Sophia, provavelmente a mais silenciosa
das poetisas portuguesas.
Uma lenda grega antiga conta que, um dia, alguns forasteiros
foram visitar Heraclito; encontraram um simples homem
aquecendo-se junto de um fogo, e ficaram atónitos,
provavelmente desiludidos. Mas Heraclito convidou-os a
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aproximarem-se, dizendo: «Também aqui estão presentes


deuses…» (cf. Heidegger 1946: 86). Também aqui, junto a este
fogo humilde e familiar, também aqui, neste quarto onde passa
uma bailarina goesa descalça, também aqui, neste quase silêncio
– estão presentes deuses.

4. A escuta

Este quase silêncio tem uma consequência ética decisiva. O som


ínfimo exige ao ouvinte uma atenção suprema, infinitamente
disponível e sem falha – semelhante talvez àquela atenção perfeita
que Simone Weil descreve em tantos textos. Se o som do mundo é
pianissimo, ele apenas pode ser recebido pela audição mais subtil.
«Os meus passos escutam o chão», lê-se num poema em prosa de
Geografia (1967: 497), e este escutar subtil e humilde implica,
agora, uma suprema lição de ética.
Leio também esta frase de «Arte poética IV», incluída em Dual: «o
poeta é um escutador» (1972: 895), ou seja, o poeta é aquele que
escuta o poema, que o recebe e transcreve; e Sophia explica ainda:
«Direi que o poema falou quando eu me calei e se escreveu
quando parei de escrever» (ibidem: 897). Claro que aquela
primeira frase evoca o verso célebre de Pessoa, no início de
«Autopsicografia»: «O poeta é um fingidor» (1932: 94). Mas,
embora Sophia se reconheça tantas vezes na lição poética
pessoana, aqui o afastamento é evidente: enquanto em Pessoa o
poeta domina a techné do fazer e do fingir, em Sophia não há
domínio, apenas escuta, recebimento, obediência a um texto que
surge como que ditado, e que só acontece no silêncio de quem
aguarda. Neste sentido, desta vez Pessoa parece um interlocutor
menos pertinente do que Rimbaud, revisitado por Sophia em
poemas de Mar Novo e de O Nome das Coisas – aquele Rimbaud
que, numa célebre carta a Paul Demeny, afirmava: «É evidente
para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: observo-o,
escuto-o: lanço um movimento de arco: a sinfonia agita-se nas
profundezas ou invade o palco num salto» (1871: 186). Como
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Rimbaud escutando a emergência viva do seu pensamento, assim


Sophia escutando o advento do poema: eis uma lição poética, que
é também uma lição de ética.
Ouvir revela então a dimensão do mundo; a música em pianissimo
pede uma escutadora capaz de atenção ao ínfimo. Por isso num
poema de Coral se interroga o som das folhas:
ÁRVORES     
 
Árvores negras que falais ao meu ouvido,  
Folhas que não dormis, cheias de febre,  
Que adeus é este adeus que me despede  
E este pedido sem fim que o vento perde  
E esta voz que implora, implora sempre   
Sem que ninguém lhe tenha respondido?…   
(1950: 291)  
 

e noutro poema, de Geografia, essa mesma escuta atravessa a


própria natureza para auscultar uma voz divina: «Escuto mas não
sei / Se o que oiço é silêncio / Ou deus // Escuto sem saber se
estou ouvindo / O ressoar das planícies do vazio / Ou a
consciência atenta / Que nos confins do universo / Me decifra e
fita» (1967: 516). Mas talvez possa ler agora, finalmente, o único
poema de Sophia que nomeia um compositor e um intérprete:
BACH SEGÓVIA GUITARRA     
 
A música do ser  
Povoa este deserto  
Com sua guitarra  
Ou com harpas de areia    
 
Palavras silabadas  
Vêm uma a uma  
Na voz da guitarra    
 
A música do ser  
Interior ao silêncio  
Cria seu próprio tempo  
Que me dá morada    
 
Palavras silabadas  
Unidas uma a uma  
Às paredes da casa    
 
Por companheira tenho  
A voz da guitarra    
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E no silêncio ouvinte  
O canto me reúne  
De muito longe venho  
Pelo canto chamada    
 
E agora de mim  
Não me separa nada  
Quando oiço cantar  
A música do ser  
Nostalgia ordenada  
Num silêncio de areia  
Que não foi pisada  
(ibidem: 517-518)  
 

Tudo quando escrevi até aqui sobre a música em Sophia existe


claramente neste poema: o diálogo entre música e escrita, «voz da
guitarra» e «Palavras silabadas»; os acordes do universo que são
agora «música do ser»; a subtileza das cordas dedilhadas, ou das
«harpas de areia», o quase inaudível; a própria relação entre
música e silêncio, «A música do ser / Interior ao silêncio»; a
simplicidade das coisas – guitarra, areia, casa –, mas onde
também estão presentes os deuses; e a escuta atenta daquela que
escreve, «no silêncio ouvinte», e «Pelo canto chamada», aquela
cujo tempo depende de escutar, e que só no canto se reúne,
identifica, regressa a uma identidade inicial, reconhece o perfeito
acorde da alma própria, criada numa praia anterior à
humanidade: «Nostalgia ordenada / Num silêncio de areia / Que
não foi pisada».

5. O ruído

E contudo – também existe em Sophia o ruído. É raro, mas


quando surge ele instaura o terror, a violência, um exílio capaz de
negar o conhecimento da música das coisas.
Leio, por exemplo, «Nocturno da Graça», em Mar Novo. Diz-se,
nesse poema: «Há um rumor de bosque no pequeno jardim / Um
rumor de bosque no canto dos cedros» (1958: 398); porém, em
torno, «Brilha a cidade dos anúncios luminosos / Com espiritismo
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bares cinemas / Ruas densas de gritos abafados / Castanholas de


passos pelas esquinas / Viragens chiadas dos carros / […] / Numa
noite cega surda presa / Onde soluça uma queixa cortada»
(ibidem: 398-399). A «cidade alheia» é dada em fragmentos, por
agressivos apontamentos sonoros que nunca chegam a criar uma
tessitura. Essa impressão de incompletude – ou de
incomunicação – é particularmente vívida na referência àquela
«queixa cortada» que «soluça».
Claro que podemos adivinhar um subtexto político numa tal
descrição de Lisboa sob o salazarismo, onde todas as queixas são
cortadas num tempo dividido… Mas podemos ler o mesmo poema
lembrando «Ao longe os barcos de flores», de Camilo Pessanha;
também aí há um contraste violento entre os «Festões de som
dissimulando a hora» e um lamento inconsolável: «Só, incessante,
um som de flauta chora, / Viúva, grácil, na escuridão tranquila»
(1920: 131). Nos dois textos, compreende-se que a música da
cidade, dos bares, dos carros, ou da orgia, da orquestra – é apenas
ruído imponente e esmagador, que impede de ouvir as queixas, os
bosques, o som da flauta. Essa música de fundo, invadindo a
própria noite, não passa de ruído, isto é, encobrimento do ritmo
próprio das coisas.
Por isso em Sophia o ruído implica sempre violência: da cidade
contra aquela que quer ouvir o rumor dos bosques, do colectivo
contra o singular, da fúria contra a contemplação. Isto significa
que a definição de ruído não deve ser tanto musicológica quanto
ética: existe ruído onde existe violência e injustiça. Leio também
um poema de Dual: «De novo em Delphos o Python emerge / […] /
Ventos da Ásia em sua boca trazem / O estridente clamor da fúria»
(1972: 595). Ventos da Ásia trouxeram outrora à Grécia invasões,
guerras, chacinas, o caos metaforizado pela lendária serpente; e
se o poema acusa a reemergência do monstro no presente,
importa não esquecer que a Grécia visitada em Dual está
mergulhada numa ditadura militar: repete-se assim o caos antigo,
recente. E repete-se com ruído, «estridente clamor da fúria»,
negação da música e instauração do terror. O ruído é o outro
nome da violência.
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6. Os dois silêncios

Num mundo dominado por gritos abafados e queixas cortadas, há


o risco de uma perda absoluta da música, da atenção, da audição:
dadas as premissas do universo poético de Sophia, como pode a
escuta da música das coisas subsistir?
Não há música onde os deuses abandonaram a humanidade. Num
poema de Geografia, significativamente intitulado «Crepúsculo
dos deuses», Sophia recupera estas palavras do oráculo de Delfos:
«A água que fala calou-se» (Andresen 1967: 556). Numa poetisa
em que o mar é música, este oráculo soa radicalmente trágico: o
silêncio divino paira sobre o mundo humano, a música das coisas
esgotou-se. «A água que primeiro eu escutei já não se ouvia», lê-se
também num poema de Dual (1972: 592). E o perigo maior,
quando as coisas deixam de ser música, é a perda do próprio
canto poético: quando não há o que escutar, como pode o poeta
ser um escutador? É esse abandono que parece descrever um
poema de Navegações:
Canção rente ao nada  
No silêncio quieto  
Da noite parada    
 
Como quem buscasse  
Seu rosto e o errasse  
(1983: 745) 
  

O nada, o silêncio e a noite tornam o canto impossível. E se


conhecer as coisas era ouvir-lhes a música, então nesta forma de
silêncio nada se pode conhecer: quem perde a sua canção também
se perde a si próprio. O silêncio apaga o rosto, inaugura a
errância.
Mas a palavra silêncio exige uma segunda leitura. O poeta russo
Gennady Aygi, num texto muito elíptico intitulado «Poesia-
enquanto-silêncio (notas)», escreve: «Sim, – tanto o silêncio como
a quietude podem ser criados: pelo Verbo. / E a noção emerge:
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“Arte – do Silêncio.”» (1992: 183). Ao silêncio como retirada dos


deuses, mudez das coisas, ignorância de quem escreve, será
preciso contrapor este outro silêncio enquanto arte. Nenhum
vazio de águas caladas: pelo contrário, um silêncio denso, cheio,
lugar de escuta. Este silêncio não é uma consequência do ruído
que desfaz a música, não resulta da violência nem da injustiça;
pelo contrário, é um silêncio conseguido pela oficina poética, pelo
esforço ético de não impor o som, mas receber o mundo.
Talvez se encontre aqui o lugar de maior atenção em Sophia de
Mello Breyner Andresen. Em «Arte poética V», publicada em Ilhas,
lê-se: «No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema
imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim
ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem
silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização»
(1989: 898). Esta despersonalização, claro, não tem nada a ver
com o desconhecimento do rosto próprio: aí, tratava-se de uma
perda, do vazio que impede o canto; pelo contrário, o vazio de
«Arte poética V» é aquele que renuncia ao ruído da identidade –
para permitir o ofício do escutador. Para escutar, é fundamental
estar em silêncio.
É fundamental uma arte do silêncio, criada pelo verbo, diz
Gennady Aygi, contra o silêncio onde os deuses morrem. E a
escuta certa para aprender a destrinçar os dois silêncios – para
dizer: «E foi como se tudo se extinguisse, / […] / E um perfeito
silêncio me embalasse» (1947: 147). Um silêncio certo – para nele
finalmente se ouvir a música que se é:
O BÚZIO DE CÓS    
 
Este búzio não o encontrei eu própria numa praia  
Mas na mediterrânica noite azul e preta  
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais  
Rente aos mastros baloiçantes dos navios  
E comigo trouxe o ressoar dos temporais    
 
Porém nele não oiço  
Nem o marulho de Cós nem o de Egina  
Mas sim o cântico da longa vasta praia  
Atlântica e sagrada  
Onde para sempre minha alma foi criada  
(1997: 862)   
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Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Programa Estratégico «UIDP/00500/2020», financiado por Fundos Nacionais
através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Bibliografia
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/ped
eiras-bibliografia/)
Soror. Mariana-Beja (https://sophiaeasartes.ilcml.com/amilcar-vasques-
dias/)
Amílcar Vasques-Dias
Confusão de Harpista e Hartista
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/angelica-e-vuduvum/)
Angélica Salvi e Vuduvum

(https://sophiaeasartes.ilcml.com/)

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