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21/03/2023, 19:20 Maria Irene Ramalho – Sophia e as Artes (Dança, Forma, Música, Performance)

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ÍNTEGRO COMO UM POEMA.


SOPHIA. POESIA. FORMA

MARIA IRENE RAMALHO


Universidade de Coimbra

[Uma homenagem a Sophia, mas sobretudo uma


homenagem à Arte da Poesia, que ela é]
j’ai voulut dire ce que cela dit
(Rimbaud) [1]

1 «Quis dizer o que isso diz». Resposta de Rimbaud à mãe quando ela lhe perguntou o que queria ele dizer
com Une saison en enfer... (registado por Paterne Berrichon). Salvo indicação em contrário, todas as
traduções são minhas.

Tive a honra e o gosto de fazer parte do júri que em 1999 atribuiu


o Prémio Camões a Sophia de Mello Breyner Andresen pelo
conjunto da sua obra e pelo seu contributo para o enriquecimento
do património literário e cultural da língua portuguesa. Os
membros do júri, três intelectuais brasileiros e três portugueses,
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não tiveram dificuldade em chegar a acordo: poucos poetas da


nossa língua souberam tão bem descobrir o nome das coisas como
Sophia. Ler-lhe a escrita é entender duas diferentes concepções de
linguagem: a que encontramos na Bíblia e a que encontramos no
Alcorão. Na Bíblia, como muito oportunamente notou Jacques
Derrida, Deus concede aos humanos o poder de nomear animais e
coisas e, por isso, o poder de dominar e subjugar animais e coisas; é
decerto desse imperial gesto inicial que resulta a espoliada
natureza em que hoje nos encontramos a viver (Derrida 2006; cf.
Génesis I, 26-30; II, 5-24). No Alcorão, ao contrário, é privilégio
dos humanos aprender de Quem-Tudo-Sabe os nomes de animais e
coisas (II, 29). Embora o bispo D. António Ferreira Gomes tenha
exaltado eloquentemente o «conteúdo cristão na eidética e noética
de Sophia», ao ouvido desta leitora é mais audível na obra da poeta
uma voz corânica (Gomes 1997: 38). Como observou já Silvina
Rodrigues Lopes, em Sophia nomear não implica definição, é
antes descoberta (Andresen 1989: 28-32). Confessa Sophia em
«Arte poética V» que a princípio «nem sabia que os poemas eram
escritos por pessoas (…) julgava que eram consubstanciais ao
universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo
dito por ele próprio» (1996: 349). Quem alguma vez leu Ralph
Waldo Emerson não pode deixar de recordar aquilo que o poeta e
pensador de Concord escreveu no seu ensaio sobre «o poeta». Em
«The Poet» (1844), diz Emerson:
É que a poesia foi toda escrita antes que houvesse o tempo e, sempre que
conseguimos entrar nesse lugar onde o ar é música, ouvimos os gorjeios
primevos e tentamos reduzi-los a escrito, mas uma vez por outra escapa-nos
uma palavra ou um verso, e então introduzimos algo da nossa lavra, e eis que
assim nos sai mal o poema.    
 
[For poetry was all written before time was, and whenever we are so finely
organized that we can penetrate into that region where the air is music, we
hear those primal warblings and attempt to write them down, but we lose ever
and anon a word or a verse and substitute something of our own, and thus
miswrite the poem. (1957: 224)]  

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Na poesia de Sophia, as palavras que dão forma aos seus poemas são
as palavras que a poeta, decerto a pensar no «sentido mais puro» de
Mallarmé, se empenha em despir da roupa da literatura para, como
ela escreve no poema «O jardim e a noite» (1944 [ed.ut. 1995: 20-
21]), «lhes dar a sua forma primitiva e pura».[2] É dessa forma
originária que as palavras encerram, ao inevitavelmente se disporem,
necessárias, no poema, que falo hoje aqui. Sophia sabe, como todo o
grande poeta sabe, que, num poema, é preciso que cada palavra seja
absolutamente necessária e esteja no sítio certo. Assim mesmo o
disse ela numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos em 1991. [3]
            Mas antes, uma pequena digressão ilustrativa.
            Um dos últimos livros de poesia do grande poeta, e sempre
sarcástico desconstrutor, Alberto Pimenta, intitulado Zombo (2019:
115), termina com um «Soneto errático». Assim:

SONETO ERRÁTICO   

Com duas caudas  


(codas, para gente distinta)    

foi já há muito tempo  


mas eu não lamento  
eu não lamento  
o pouco  
tempo  
que                                 foi.    

pois é  
parece que   
lamentar esse   
tempo que se diz  
pouco fá-lo maior  
mas já não é o que foi  
só finge ter sido mas não                   é.  
2 Em «Poesia e revolução», apenso a O nome das coisas (1977), Sophia faz expressamente referência ao
«Tombeau de Edgar Poe», onde Malarmé fala do poeta como «o anjo» que deu «un sens plus pur aux mots
de la tribu».

3 Cf. «Sophia: a luz dos versos». Entrevista de José Carlos de Vasconcelos, JL nº468, 25 de Junho-1 de
Julho de 1991.

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No breve texto que sobre este livro escrevi para o JL, e que fiz
rematar justamente com este poema, o «Soneto errático» apareceu
assim reproduzido, certamente por questões de economia
jornalística:
«Soneto errático»/Com duas caudas/(codas, para gente distinta)/foi já há
muito tempo/mas eu não lamento/eu não lamento/o
pouco/tempo/que/foi./pois é/parece que/lamentar esse/tempo que se
diz/pouco fá-lo maior/mas já não é o que foi/só finge ter sido mas não/é
(Ramalho 2019).
 

O resultado da transformação que o poema de Alberto Pimenta a


fechar Zombo sofre quando citado no texto por mim publicado no
JL merece alguma reflexão. A verdade é que o «soneto errático» de
Alberto Pimenta não subsiste sem a forma que o poeta lhe deu ou,
mais bem dito, sem a forma que o poeta lhe descobriu, incluindo as
duas bem destacadas codas, isto é, para gente menos fina, as duas
caudas («foi» e «é»). «Traduzido» em mera comunicação, como
decerto diria Walter Benjamin, ou seja, reduzido a mero conteúdo,
o poema deixa de existir enquanto tal (cf. Benjamin 1969: 69-82).
O poema deixa de existir enquanto poema «íntegro». Por poema
íntegro não vejo que possa entender-se outra coisa senão o poema
que não suscita a famigerada distinção entre forma e conteúdo.  
      Disse Blake em The Marriage of Heaven and Hell (1793) que o
maior erro de todos os códigos sagrados foi distinguir o corpo da
alma (Blake 1965: 34). Muito mais tarde, Fernando Pessoa haveria
de sublinhar, com evidente aprovação, o “contrário” blakiano
desse erro fatal:  
O Homem não tem um corpo distinto da Alma pois que isso a que se chama
Corpo é uma parte da Alma apreendida pelos cinco Sentidos, os principais
acessos à alma neste tempo    
 
[Man has no Body distinct from his Soul for that calld Body is a portion of Soul
discerned by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age]   
 

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Não admira que o nome de William Blake, juntamente com o de


Walt Whitman (outro poeta que ostensivamente nega a nefasta
distinção entre corpo e alma), apareça nos apontamentos de
Pessoa sobre o sensacionismo. No rascunho de uma carta escrita
em francês, provavelmente datada de 1915 e aparentemente
destinada a ser enviada a Marinetti por Álvaro de Campos, o poeta
apresenta-se como o único e verdadeiro «Sensationiste» (no
original escrito com maiúscula, em itálico e entre aspas), ao
mesmo tempo que indica Blake e Whitman como os seus
antepassados neste particular (Pessoa 2009: 337). Em outra carta,
agora em inglês e presumivelmente destinada a um editor em
Inglaterra, Pessoa explica que, na poesia dos «sensationists»
(entre aspas no original), «o espírito e a matéria se interpenetram
e inter-transcendem» (Pessoa 1966: 126-133). Espírito e matéria?
Ou forma e conteúdo? Vale a pena voltar ao inspirador «Poeta» de
Emerson:
(…) o que faz o poema não é a métrica, mas uma ideia que faz métrica – um
pensamento tão apaixonado e tão vivo que, tal como o espírito de uma
planta ou de um animal, tem uma arquitectura muito própria, adornando a
natureza com algo novo. (Emerson, «The Poet»: 184)    
 
[(…) it is not meters, but a meter-making argument that makes a poem, – a
thought so passionate and alive that like the spirit of a plant or an animal it
has an architecture of its own, and adorns nature with a new thing. (225)]  
 

Que é como quem diz, se a ideia não trouxer consigo a forma, não
haverá poema digno desse nome. Por isso se insurgiu Susan
Sontag, em ensaio célebre, contra a interpretação que assenta na
«ilusão» dessa «distinção entre forma e conteúdo», ao mesmo
tempo que busca o que o poema «quer dizer», esquecendo o que o
poema «é» (Sontag 1966: 12-23; cf. Ramalho-Santos 2017: 226-
234). Em português, talvez tenha sido Clarice Lispector quem
melhor expressão teórica deu a este velho problema:
Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever;
até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o
problema é que não há de um lado um conteúdo, e do outro a forma. Assim
seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o
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conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio


pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se
pode pensar num conteúdo sem a sua forma. Só a intuição toca na verdade
sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão
inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à
tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está
com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em
duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do
conteúdo, do próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir em sua
forma adequada e às vezes única. (Lispector 1999: 254-255)
 

Em «Métrica», de O búzio de Cós (1997), dá Sophia expressão


poética a esta mesma ideia:
O poema clássico compõe seu contraponto olímpico   
Entre o fogoso sopro e o vasto espaço da sílaba medida  
Inventa a ordem sem lacuna onde nada  
Pode ser deslocado ou traduzido (Andresen 2004: 9)  

O «fogoso sopro» e a «sílaba medida», ou vida e poesia, juntos, são


«ordem sem lacuna». Sophia disse, numa carta a Jorge de Sena
datada de 10 de Junho de 1963, que não via razão para escolher entre
a poesia e a vida porque ambas lhe pareciam a mesma coisa (cf.
Andresen/Sena 2006: 65). E não será exactamente assim que os
heterónimos pessoanos devem ser entendidos? Como indeclinável
assumpção e reconhecimento de integridade poética? O conteúdo de
imediato se assumindo como forma? Alberto Caeiro, Álvaro de
Campos, Ricardo Reis, Fernando Pessoa, Bernardo Soares ... Por isso
lhes inventou Pessoa vidas. Anna Klobucka e Silvina Rodrigues
Lopes comentaram já o modo tão original como Sophia leu-e-
escreveu Pessoa.[4] Por isso espera ela que o ser-poeta seja tão
«íntegro como um poema».
Esta frase que me empresta o título – «íntegro como um poema» – é
um verso de um magnífico poema de Mar novo (1958) curiosamente
intitulado «Semi-Rimbaud» (Andresen 1958: 56-57). Curiosamente,
digo eu, porque é intrigante aquele semi. A poeta escreve um poema
ostensivamente sobre Rimbaud, de quem diz «íntegro como um
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poema». Em muitos dos seus poemas, «Bateau ivre», por exemplo,


Rimbaud é poeta e poema. No entanto, o poema de Sophia oferece-
se como metade-de-si-próprio-poeta. Atendendo ao memorável «Je
est un autre» de Rimbaud, que sujeito parece atrair aqui Sophia?[5]
O eu ou o outro? Ou falará ela da impossibilidade corporizada em
Rimbaud? Eis o belíssimo poema, primeiro incluído em Mar novo
em 1958:

Semi-Rimbaud
 
Seu rosto é uma caverna  
Onde frios ventos cantam    
 
Passa rasgando o luar  
E desesperando a noite    
 
Pelas ruas oblíquas da cidade  
Em madrugadas duvidosas  
Constrói o mal com gestos cautelosos  
E sonha a inversão total das coisas    
 
Constrói o mal com gestos rigorosos  
Lúcido de vício e de noitada  
Íntegro como um poema  
Completo lógico sem falha    
 
A aurora desenha o seu rosto com os dedos  
As suas órbitas iguais às das caveiras   
Seu rosto voluntário e inventado  
Magro de solidão verde de intensa    
 
Vontade de negar e não ceder  
De caminhar de mão dada com o nojo  
De ser um espectro para terror dos vivos  
E uma acusação escrita nas paredes.    
4 Anna Klobucka escreveu algumas páginas luminosas sobra a recepção de Pessoa por Sophia. Cf.
Klobucka 2009: cap. III. Mas ver também Silvina Rodrigues Lopes em Andresen 1989: 20-22.

5 Cf. Carta a Georges Izambard, 13 Maio 1871, e carta a Paul Demeny, 15 Maio 1871.

O título de imediato frustra as expectativas de quem concebe um


Rimbaud «inteiro». Sophia esforça-se por imaginar um poeta
congenial, de palavras cautelosas e rigorosas, prenhes de desespero
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e lucidez, e sobretudo capazes de saber do mal, de acusar e de tudo


inverter. E por que tem «vontade de negar» o inventado rosto do
Rimbaud de Sophia, que até fala, com ressonâncias bíblicas, de uma
«acusação escrita nas paredes»?[6] O que me parece é que este
semi-Rimbaud de Sophia revela quão longe ela está, ou se deseja, do
extraordinário poeta de Une saison en enfer, que o jovem Jorge de
Sena soube ler como ninguém. Vem à ideia a «descoberta» de
Sophia, nessa entrevista a José Carlos de Vasconcelos de 1991, de que
«só nos influencia aquilo que já se parece connosco».[7] Suspeito, no
entanto, que o meio-Rimbaud de Sophia, embora dele se
distanciando, muito deve ao Rimbaud que Sena revela no ensaio que
concebeu em 1941, tinha ele pouco mais de 20 anos, e publicou no
ano seguinte na revista Aventura. O que estou a sugerir é que este
ensaio de Sena sobre Rimbaud teve algum impacto na teoria e
prática poéticas de Sophia, se bem que ela se tivesse deixado ficar,
por assim dizer, de pé atrás.[8] Ao contrário de Sena, Sophia não “se
parece” com Rimbaud. Enquanto Sena insiste «por inteiro», Sophia
diz «semi».
Sophia leu em Sena que «Rimbaud é um caso excepcional de
unidade e plenitude psíquicas» (Sena 1994: 21). Deve ter-se deixado
impressionar pelas reflexões de Sena sobre a «complexidade
extraordinária» do poeta francês e sobre a sua preocupação com «a
matéria e a forma» e com «a integridade». Sena fala eloquentemente
do poeta Rimbaud como «homem total», «inteiro» e uma
«personalidade intrínseca», que acaba sendo tudo o que dele se
disser e o seu contrário (22). É assim mesmo que dele se quer
apropriar Sophia no seu poema – «íntegro», «completo», «lógico»,
«sem falha». Mas o contraditório «semi» do título dá que pensar.
Pois enquanto Sena fala da maestria do poète maudit que
revolucionou a tal ponto a língua e a tradição poética francesas, e o
que por poesia se entende em geral, que nunca mais nada ficou como
dantes, Sophia ouve com alguma inquietação a rebeldia e a «vontade
de negar» do homem empírico que desespera do status quo e «sonha
a inversão total das coisas». É provável que, ao escrever «Semi-
Rimbaud», Sophia tenha de igual modo em mente o «Rimbaud
revisitado» (1953), onde muito mais tarde Sena parece reconsiderar
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a sua relação com o poeta francês, a quem chama agora «homem


pérfido» e «poeta maravilhoso», e a quem não perdoa o que nele
admira e a quem «muito» ama. Carlo Vittorio Cattaneo fala, com
toda a propriedade, de um amo e odi de Sena.
O contraditório sentimento reverbera no poderoso poema de
Sophia. Repare-se na violência das associações-em-choque das
palavras que dão forma ao poema: lúcido, rosto e caverna; aurora e
noite; luar e desespero; gestos e mal; vício e noitada; rosto, órbitas e
caveiras; mão e nojo; espectro, vivos e acusação. A leitora chega ao
último verso – «E uma acusação escrita nas paredes» – e julga nele
ouvir, na boca de Sophia, uma condenação de Rimbaud-por-
Rimbaud. Do poeta retém a poeta a «delicadeza» de como se perde a
vida ao sucumbir à ilusão. Esse outro poema de Sophia, a que aludo
agora, claramente inspirado em «Chanson de la plus haute Tour», de
Rimbaud,[9] porventura através de Sena (que do poema cita os dois
versos cruciais – «Par delicatesse / J’ai perdu ma vie» – 31) – chama-
se justamente «Por delicadeza» e diz assim:
6 A alusão à escrita na parede do Livro de Daniel associa o poeta à palavra profética, que desvenda e
denuncia.

7 Na já citada entrevista conduzida por José Carlos de Vasconcelos, Sophia revela que aprendeu isso
mesmo em Ponge

8 Jorge de Sena, O dogma da trindade poética (Rimbaud) e outros ensaios (Porto: ASA, 1994). Sena tinha 22
anos quando primeiro proferiu esta conferência nos cinquenta anos do nascimento do poeta, em 1891. O
texto da conferência, repleto de citações da obra toda de Rimbaud, com destaque para Une saison en enfer
e Illuminations, seria publicado um ano mais tarde, na revista Aventura, e logo a seguir em separata
(Homenagem a Arthur Rimbaud, 1942). No volume de Obras de Jorge de Sena, de que me sirvo, a «O
dogma da trindade poética» segue-se outro ensaio, «Rimbaud, revisitado», primeiro publicado no
Suplemento Literário do Comércio do Porto de 22 de Dezembro de 1953, para comemorar os cem anos da
morte do poeta, em 1854. Suspeito que no «Semi-Rimbaud» de Sophia repercute o perturbado juízo final
sobre o «homem pérfido» e «maravilhoso poeta» que Sena sabe «muito» amar (51). Não cabe aqui
desenvolver o tema da relação poética entre Sena e Rimbaud, tratada por muitos especialistas, a começar
por Carlo Vittorio Cattaneo. Ver a sua introdução à antologia bilingue da poesia de Jorge de Sena, Esorcismi
(Milão: Academia, 1974), mais tarde reelaborada como «Testemunho e linguagem» e incluída em AA. VV.,
Estudos sobre Jorge de Sena (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984) 239-258. Ver também Luís
Adriano Carlos, Fenomenologia do discurso poético. Ensaio sobre Jorge de Sena (Porto: Campo das Letras,
1999), esp. 45-58 (“A vidência”).

9 Cito da edição, da responsabilidade de Paul Claudel, que foi, sem dúvida, a que esteve à mão de Sena:
Rimbaud 1937: 144-146. O poema «Chanson de la plus haute Tour» é invocado, com diferença, em Une
saison en enfer, 289-290 («Délires II, Alchimie du verbe») [Claudel é mencionado por Sena na página 35].

Bailarina fui  
Mas nunca dancei  
Em frente das grades  
Só três passos dei    
 
Tão breve o começo  
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Tão cedo negado  


Dancei no avesso  
Do tempo bailado    
 
Dançarina fui   
Mas nunca bailei  
Deixei-me ficar  
Na prisão do rei    
 
Onde o mar aberto  
E o tempo lavado?  
Perdi-me tão perto  
Do jardim buscado    
 
Bailarina fui  
Mas nunca bailei  
Minha vida toda   
Como cega errei    
 
Minha vida atada  
Nunca a desatei  
Como Rimbaud disse  
Também eu direi    
 
«Juventude ociosa.  
Por tudo iludida  
Por delicadeza  
Perdi minha vida» (Andresen 1977: 73-74) [10]
10 A repetida primeira e última estrofe de «Chanson de la plus haute Tour», de Rimbaud, a que Sena faz
referência no seu ensaio, surge reinterpretada no fecho do poema de Sophia. «Oisive jeunesse / À tout
asservie, / Par delicatesse / J’ai perdu ma vie» (144; 146), passa a ser «Juventude ociosa / Por tudo iludida /
Por delicadeza / Perdi minha vida».

Mas será realmente do poeta-poema Rimbaud que o «Semi-


Rimbaud» de Sophia fala? Ou mesmo este «Por delicadeza», com
seu ritmo baladesco, que é também o do poema de Rimbaud mas
igualmente o da «Nau Catrineta», que Sophia aprendeu a recitar
antes mesmo de saber ler? (Andresen 1996: 349). Sugiro que os
Rimbauds de Sophia, como aliás toda a poesia de Sophia, falam
antes do poema como ela o imagina, da forma poética como ela a
concebe: poema íntegro – conteúdo e forma – poesia inteira, lisa,
limpa, plena, lúcida, clara, justa, exacta, rigorosa, pura, perfeita,
límpida, intacta. Poema-palavra.  
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      Quem está minimamente familiarizado com a poesia de Sophia


reconhece nos adjectivos que acabo de enumerar palavras que se
lhe impõem para dar forma-em-conteúdo à sua poesia. [No que se
segue, cito dos poemas: «Corpo» (1954), «Projecto I» (1974-75),
«Nunca mais» (1944), «Navegações» (1977) e «Antínoo» (1967)]. É
na «pureza» (II, 74), «lisura» (III, 200) e «plenitude» (I, 51) das
palavras que reside «a inteireza do possível» (III, 253) e a «ordem
intacta do mundo» (III, 67).  Afinal, palavra-de-poeta é «A forma
justa» (1977, III, 238), que suspende a distinção entre vida e
poesia, e que Sophia reinventa na página em branco como seu
ofício de poeta/cidadã:  
Sei que seria possível construir o mundo justo  
As cidades poderiam ser claras e lavadas  
Pelo canto dos espaços e das fontes  
O céu o mar e a terra estão prontos   
A saciar a nossa fome do terrestre  
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse proporia   
Cada dia a cada um a liberdade e o reino  
– Na concha na flor no homem e no fruto  
Se nada adoecer a própria forma é justa  
E no todo se integra como palavra em verso  
Sei que seria possível construir a forma justa   
De uma cidade humana que fosse  
Fiel à perfeição do universo    
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco  
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo  

O que Sophia pede à musa no poema desse nome («Musa» [1962]) é,


afinal, o «justo irmão das coisas» que é o «canto» (II, 102). Não é por
acaso que António Ramos Rosa, um poeta do «intacto» e grande
admirador do «complexo» Rimbaud – desse que disse «moi, je suis
intact, et ça m'est égal» – não é por acaso que Ramos Rosa dedica a
Sophia um poema cheio do rigor das palavras dela: claridade de
cúpulas, evidências solares, ímpetos claros, palavras límpidas, rosto
intacto, atmosfera límpida, amizade inteira e firme, atenção pura,
claridade, equilíbrio justo, realidade e a realidade da palavra.[11] Ou
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a palavra real. E que forma mais real que a poesia? Não disse
Emerson que cada palavra foi outrora um poema? «Every word was
once a poem».[12]
11 Leia-se o poema de Ramos Rosa na revista Relâmpago nº 9, 10/2001 - número de homenagem a Sophia.
A citação de Rimbaud é de “Mauvais sang” (Une saison en enfer).

12 «The Poet», cit. 226.

Bibliografia
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/ma
irene-ramalho-bibliografia/)
Sophia e a Dança (https://sophiaeasartes.ilcml.com/joana-providencia-
2/)
Joana Providência
Sophia e as Artes. Sophia e a Forma.
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/teresa-andresen/)
Teresa Andresen

(https://sophiaeasartes.ilcml.com/)

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