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1 «Quis dizer o que isso diz». Resposta de Rimbaud à mãe quando ela lhe perguntou o que queria ele dizer
com Une saison en enfer... (registado por Paterne Berrichon). Salvo indicação em contrário, todas as
traduções são minhas.
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21/03/2023, 19:20 Maria Irene Ramalho – Sophia e as Artes (Dança, Forma, Música, Performance)
Na poesia de Sophia, as palavras que dão forma aos seus poemas são
as palavras que a poeta, decerto a pensar no «sentido mais puro» de
Mallarmé, se empenha em despir da roupa da literatura para, como
ela escreve no poema «O jardim e a noite» (1944 [ed.ut. 1995: 20-
21]), «lhes dar a sua forma primitiva e pura».[2] É dessa forma
originária que as palavras encerram, ao inevitavelmente se disporem,
necessárias, no poema, que falo hoje aqui. Sophia sabe, como todo o
grande poeta sabe, que, num poema, é preciso que cada palavra seja
absolutamente necessária e esteja no sítio certo. Assim mesmo o
disse ela numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos em 1991. [3]
Mas antes, uma pequena digressão ilustrativa.
Um dos últimos livros de poesia do grande poeta, e sempre
sarcástico desconstrutor, Alberto Pimenta, intitulado Zombo (2019:
115), termina com um «Soneto errático». Assim:
SONETO ERRÁTICO
pois é
parece que
lamentar esse
tempo que se diz
pouco fá-lo maior
mas já não é o que foi
só finge ter sido mas não é.
2 Em «Poesia e revolução», apenso a O nome das coisas (1977), Sophia faz expressamente referência ao
«Tombeau de Edgar Poe», onde Malarmé fala do poeta como «o anjo» que deu «un sens plus pur aux mots
de la tribu».
3 Cf. «Sophia: a luz dos versos». Entrevista de José Carlos de Vasconcelos, JL nº468, 25 de Junho-1 de
Julho de 1991.
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No breve texto que sobre este livro escrevi para o JL, e que fiz
rematar justamente com este poema, o «Soneto errático» apareceu
assim reproduzido, certamente por questões de economia
jornalística:
«Soneto errático»/Com duas caudas/(codas, para gente distinta)/foi já há
muito tempo/mas eu não lamento/eu não lamento/o
pouco/tempo/que/foi./pois é/parece que/lamentar esse/tempo que se
diz/pouco fá-lo maior/mas já não é o que foi/só finge ter sido mas não/é
(Ramalho 2019).
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Que é como quem diz, se a ideia não trouxer consigo a forma, não
haverá poema digno desse nome. Por isso se insurgiu Susan
Sontag, em ensaio célebre, contra a interpretação que assenta na
«ilusão» dessa «distinção entre forma e conteúdo», ao mesmo
tempo que busca o que o poema «quer dizer», esquecendo o que o
poema «é» (Sontag 1966: 12-23; cf. Ramalho-Santos 2017: 226-
234). Em português, talvez tenha sido Clarice Lispector quem
melhor expressão teórica deu a este velho problema:
Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever;
até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o
problema é que não há de um lado um conteúdo, e do outro a forma. Assim
seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o
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Semi-Rimbaud
Seu rosto é uma caverna
Onde frios ventos cantam
Passa rasgando o luar
E desesperando a noite
Pelas ruas oblíquas da cidade
Em madrugadas duvidosas
Constrói o mal com gestos cautelosos
E sonha a inversão total das coisas
Constrói o mal com gestos rigorosos
Lúcido de vício e de noitada
Íntegro como um poema
Completo lógico sem falha
A aurora desenha o seu rosto com os dedos
As suas órbitas iguais às das caveiras
Seu rosto voluntário e inventado
Magro de solidão verde de intensa
Vontade de negar e não ceder
De caminhar de mão dada com o nojo
De ser um espectro para terror dos vivos
E uma acusação escrita nas paredes.
4 Anna Klobucka escreveu algumas páginas luminosas sobra a recepção de Pessoa por Sophia. Cf.
Klobucka 2009: cap. III. Mas ver também Silvina Rodrigues Lopes em Andresen 1989: 20-22.
5 Cf. Carta a Georges Izambard, 13 Maio 1871, e carta a Paul Demeny, 15 Maio 1871.
7 Na já citada entrevista conduzida por José Carlos de Vasconcelos, Sophia revela que aprendeu isso
mesmo em Ponge
8 Jorge de Sena, O dogma da trindade poética (Rimbaud) e outros ensaios (Porto: ASA, 1994). Sena tinha 22
anos quando primeiro proferiu esta conferência nos cinquenta anos do nascimento do poeta, em 1891. O
texto da conferência, repleto de citações da obra toda de Rimbaud, com destaque para Une saison en enfer
e Illuminations, seria publicado um ano mais tarde, na revista Aventura, e logo a seguir em separata
(Homenagem a Arthur Rimbaud, 1942). No volume de Obras de Jorge de Sena, de que me sirvo, a «O
dogma da trindade poética» segue-se outro ensaio, «Rimbaud, revisitado», primeiro publicado no
Suplemento Literário do Comércio do Porto de 22 de Dezembro de 1953, para comemorar os cem anos da
morte do poeta, em 1854. Suspeito que no «Semi-Rimbaud» de Sophia repercute o perturbado juízo final
sobre o «homem pérfido» e «maravilhoso poeta» que Sena sabe «muito» amar (51). Não cabe aqui
desenvolver o tema da relação poética entre Sena e Rimbaud, tratada por muitos especialistas, a começar
por Carlo Vittorio Cattaneo. Ver a sua introdução à antologia bilingue da poesia de Jorge de Sena, Esorcismi
(Milão: Academia, 1974), mais tarde reelaborada como «Testemunho e linguagem» e incluída em AA. VV.,
Estudos sobre Jorge de Sena (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984) 239-258. Ver também Luís
Adriano Carlos, Fenomenologia do discurso poético. Ensaio sobre Jorge de Sena (Porto: Campo das Letras,
1999), esp. 45-58 (“A vidência”).
9 Cito da edição, da responsabilidade de Paul Claudel, que foi, sem dúvida, a que esteve à mão de Sena:
Rimbaud 1937: 144-146. O poema «Chanson de la plus haute Tour» é invocado, com diferença, em Une
saison en enfer, 289-290 («Délires II, Alchimie du verbe») [Claudel é mencionado por Sena na página 35].
Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei
Tão breve o começo
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a palavra real. E que forma mais real que a poesia? Não disse
Emerson que cada palavra foi outrora um poema? «Every word was
once a poem».[12]
11 Leia-se o poema de Ramos Rosa na revista Relâmpago nº 9, 10/2001 - número de homenagem a Sophia.
A citação de Rimbaud é de “Mauvais sang” (Une saison en enfer).
Bibliografia
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/ma
irene-ramalho-bibliografia/)
Sophia e a Dança (https://sophiaeasartes.ilcml.com/joana-providencia-
2/)
Joana Providência
Sophia e as Artes. Sophia e a Forma.
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/teresa-andresen/)
Teresa Andresen
(https://sophiaeasartes.ilcml.com/)
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