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O poema do ocaso: estudo sobre Ferreira Gullar

Eleonora Ziller Camenietzki


 
 

O poema

Ferreira Gullar escreveu o Poema sujo no exílio, na cidade de Buenos Aires, em 1975. Sua
divulgação no Brasil, no ano seguinte, provocou forte impacto entre intelectuais e artistas,
facilitando o seu retorno ao país meses depois. Por ser uma doída canção do exílio e pelo seu papel
circunstancial, as primeiras leituras críticas se limitaram às reminiscências do poeta, ao retrato do
Brasil, à vida cotidiana da cidade de São Luís do Maranhão. Entretanto, mais do que um "poema
engajado", de tradição nacional-popular, é um inventário da herança das vanguardas estéticas do
século XX e, por isso mesmo, recriação deste legado. Uma síntese que reúne a bagagem pessoal e
familiar do autor, sua formação cultural (como poeta e crítico de arte) e suas escolhas políticas e
filosóficas. Nele Ferreira Gullar recupera o caminho que o lançou, o livro Luta corporal, incorpora
os procedimentos de vanguarda dos anos 50 e se mantém comprometido com a crítica social.

Quando o poema foi escrito o conceito tradicional de obra de arte estava completamente
comprometido. Também a poesia, o autor, o livro, a teoria, a razão, a verdade, a subjetividade,
estavam sob suspeita. Um gigantesco naufrágio das utopias revolucionárias, as derrotas acumuladas
em vários continentes e o aprofundamento das contradições nos países socialistas enriqueciam o
solo com um profundo ceticismo e descrença em relação a toda tradição cultural européia. Estava
decretado o "fim" da arte moderna. Seria a conclusão de uma revolta que começou na França de
1850, com Baudelaire?

Pode-se chegar ao Poema sujo por diversos caminhos. São noventa e duas páginas que parecem
escritas num único fôlego, como se fossem versos brotados de um fluxo constante da memória,
rompendo intempestivamente as barreiras do consciente. Podemos perceber Mnemosyne e suas
musas a guiar o poeta para os mais recônditos refúgios do ser e do tempo, presentificando o
passado, dissolvendo-o no ritmo frenético das imagens e sons que formam seus versos. Apolo e
Dionísio se enfrentam, expansão e construção, explosão e contenção. Há versos em que as palavras
mais vulgares ou as imagens tradicionalmente menos poéticas ficam ressaltadas, funcionando como
uma provocação ao senso comum e subversão aos padrões de bom gosto e de literariedade. Mas não
é essa a sua matéria principal.

O poema, escrito durante alguns meses (maio/outubro de 1975), é o resultado de inúmeras buscas
realizadas em décadas anteriores. Seus versos mimetizam o jogo espontâneo do fluxo da memória,
de livres associações, mas o que o sustenta é uma construção poética, um prolongado trabalho de
criação, articulação e escolhas. A retomada de versos e temas anteriores, que desde sempre
estiveram presentes na obra de Gullar, indicam que Poema sujo surge de uma incansável procura da
poesia, que, como nos recorda Calvino, é a "busca de uma expressão necessária, única, densa,
concisa, memorável"1 .

O poema é constituído por quatro temas principais: infância/família - corpo/prazer - tempo/tempos -


cidade/vida. Diante da dimensão trágica dos dilemas de sua existência, através do poema, é possível
ao poeta se por fora da cena e assim atenuar a singularidade de seu sofrimento, sem perder a
vitalidade da crítica social.
O ritmo se percebe através de diversos processos que atuam simultaneamente, em que se
entrecruzam movimentos e velocidades, metáfora da pluralidade de movimentos e velocidades da
cidade que evoca. Além dos recursos tradicionais da linguagem poética, juntam-se o espaçamento
dos versos e a paginação rigorosa. Nas primeiras edições, as páginas do poema eram sempre
idênticas, formando um único desenho em cada uma delas. Essa construção, bastante precisa, não
comporta um fluxo associativo automático sem qualquer intervenção da consciência. São noventa e
duas páginas, onde, em cada uma delas, depreende-se um núcleo significativo, formando uma
estrofe que se completará sempre na página seguinte. Em alguns momentos, as estrofes parecem se
completar.

Acompanhando o movimento de versos, estrofes e páginas, pressente-se a arquitetura do corpo


poético. A indagação sobre o sentido desta paginação sugere algumas hipóteses. Uma delas é a de
que obedecem a um formato de partituras (que sempre serão idênticas em qualquer edição que se
faça de uma obra musical), além do número de páginas do poema corresponder à média de páginas
que possui a edição de uma sinfonia. Esta leitura é confirmada à medida que se articulam os
momentos e pausas do poema aos movimentos de uma sinfonia clássica2.

Além da característica fundamental do poema, que é o sentido de orquestração e coralidade, tem


sido assinalada a vontade de síntese, de reunião, de busca de uma totalidade fundada no movimento
e na diversidade. Mesmo o autor, em diversas entrevistas faz referência ao poema como uma obra
sinfônica. Em Sonoridades amarelas, uma composição cênica, de Wassily Kandinsky, há alguma
semelhança que amplia ainda mais a sua leitura. Em Sonoridades temos o seguinte texto (os grifos
são meus): "Introdução. Alguns acordes confusos na orquestra. Sobe o pano. No palco crepúsculo
azul-escuro, a princípio esbranquiçado, depois de um azul escuro intenso"3 . E nos primeiros versos
de Poema Sujo encontramos: "turvo/turvo... escuro/mais que escuro: /claro/ como água? Como
pluma? claro mais que claro: coisa alguma ... azul/era o gato/azul/era o galo/ azul/ o teu cu " (TP, p.
297)

No poema de Gullar, como afirmei anteriormente, os movimentos são percebidos após algumas
leituras de toda a obra, com certa facilidade. Nas pausas depreendi os movimentos. O segundo
movimento se inicia assim: "claro claro/mais que claro/raro/ o relâmpago clareia os continentes
passados:/ noite e jasmim/junto à casa" (TP, p. 311). Se retornarmos ao texto de Kandinsky, temos,
ao passar para o segundo quadro de sua composição cênica, as cores que estarão em cena: "Segundo
quadro: O vapor azul cede pouco a pouco à luz, que se torna de uma brancura perfeita, crua. Atrás
da cena, uma colina verde-cru, a maior possível, toda redonda. O fundo violeta bastante claro"4 .

O terceiro movimento do Poema sujo começa por: "Muitos/muitos dias há num só/ porque as coisas
mesmas os compõem" (TP, p. 323). Este é o movimento mais longo, onde na cidade da memória
suas histórias se criam e se multiplicam, onde o poeta se desdobra e se funde, onde as velocidades e
os tempos dentro do tempo se fragmentam e se recuperam, e são, então, apresentados em diversos
andamentos, como pequenos movimentos dentro de um maior.

O quarto movimento não contém o padrão de repetição como os anteriores, destacando-se, portanto,
do conjunto. É a finalização, em que a cidade e o homem se recuperam, num jogo textual, um no
outro, de um para o outro. Podemos depreendê-lo pela forma aproximada de rondó, típico no último
movimento das sinfonias clássicas. Acompanhando o poema, poderíamos chegar a uma proposta
mais detalhada:

10 movimento - Alegro jocoso: Arte e vida (da página 297 a 310)


turvo turvo: O poema começa por imprecisões, a memória busca na juventude as recordações
impressas no corpo: as sensações, os cheiros, as coisas vividas. Misturam-se, em seqüência rápida,
fatos, coisas, cores, luminosidades, sons "tão reais que /se apagaram para sempre" (TP, p.300). Ou
não? Recolhendo suas lembranças, para carregá-las sobre os continentes e mares ou para rastejar
com elas pelas noites clandestinas à espera do dia, o poeta traz um a um os sons e cheiros da vida na
sua cidade natal. "E depois de tanto/ que importa um nome?" (TP, p. 301).

São temas recorrentes na poética de Gullar o fluir do tempo, a deterioração, a morte e a


representação do lugar da poesia diante desse processo. O tempo da memória (passado), o tempo da
criação e o presente do poeta "perfeitamente fora do rigor cronológico" (TP, p.300) encontram-se
no espaço poético, que subverte a lógica formalista das coisas "tão reais que/ se apagaram para
sempre/ Ou não?" (TP, p.300).

No Poema sujo, as mais prosaicas recordações, de atos banais ou marginais, retornam com a busca
incessante pelo sentido da vida. Esta vida se afirma nas formigas que brotam, nos tomates que
crescem do esgoto, nos capins "mais verdes que a esperança". (TP, p. 302). O retorno ao corpo não
é mero sensualismo ou um hedonismo ingênuo. A intensidade do prazer instala a fragilidade e
fugacidade da vida, provocando uma tensão permanente, que se multiplica, desdobra e recomeça
sempre. O corpo do poeta é limitado, finito. Nesta passagem, os corpos, as palavras, os sentidos, o
prazer, são tão intensos e verdadeiros quanto frágeis. É a materialidade dos corpos que produzem o
pensamento e as palavras:

fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento

e as palavras

e as mentiras

e os carinhos mais doces mais sacanas

mais sentido

para explodir como uma galáxia

de leite

no centro de tuas coxas no fundo

de tua noite ávida

cheiros de umbigo e de vagina

graves cheiros indecifráveis

como símbolos

do corpo

do teu corpo do meu corpo

corpo
que pode um sabre rasgar (TP, p. 305)
 
 

O corpo, no texto, não é um amontoado orgânico funcionando com alguma eficiência. Ao corpo-
biológico ("cão e dono") se contrapõe um corpo-texto histórico, de uma família e de uma geografia
particulares. Este corpo-texto também é cultural, iconoclasta, desierarquizado, em que se misturam
o lixo, a cultura popular e as artes plásticas do século XVI à modernidade no Brasil:
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio

de tudo como um monturo

de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias

sambas e frevos azuis

de Fra Angelico verdes

de Cézanne

matéria sono de Volpi

(TP, p. 308 )
 
 

Ao indagar sobre a existência e a finitude humanas, o poeta levanta os olhos para os céus, não vê o
Criador, não pergunta pelo mistério da criação. Neste gigantesco infinito, quase cognoscível, onde
está o sentido da existência? A pergunta pulsa intensamente em todos seus versos, é a busca
desesperada de um sentido para tudo isso que passa, inexoravelmente, passa por nós e por onde
passamos.

O Poema sujo é a expressão de uma profunda irreligiosidade que, segundo Freud, é um sentimento
que se caracteriza não apenas pela negação a Deus, mas pelo enfrentamento doloroso de nosso
restrito, frágil e pequeno tamanho individual no mundo: "O homem que não vai além, mas
humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande
mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra"5 . Depois
de tanto, o corpo do poeta ainda carrega um coração "combatente clandestino aliado da classe
operário" (TP, p. 310).

Esta é uma apresentação sintética dos temas que se desdobrarão nos próximos movimentos. Numa
sinfonia, o primeiro movimento é quase sempre um Alegro, podendo ou não ser sintético. É através
do humor e da ironia que sentimos a forma mais solta e rápida dos versos que caracterizam este
alegro do primeiro movimento do poema. Nas seqüências "azul/teu cu" (TP, p. 297), "bela bela/
mais que bela/ como era mesmo o nome dela?" (TP, p. 298), "Pelo Brasil salve salve /Stalingrado
resiste" (TP, p. 303), o acento paródico predomina, numa cadência marcadamente distinta dos
outros movimentos.

20 movimento - Andante: Paisagens modernistas (da página 311 a 322)


claro claro: O menino experimentou uma solidão condenada ao fim, num planeta em acelerado
processo de urbanização. A imagem mais forte deste movimento é o trem com a sua impressionante
locomotiva que surge sobre os trilhos "bufando pânico/ prestes/ a explodir" (TP, p. 316) Com os
barulhos do trem, surge a melodia de Villa-Lobos e a letra para o Trenzinho caipira é uma das mais
felizes e inspiradas composições do poeta. Esta é a melhor face da modernidade no Brasil, que
urbaniza o país até os anos setenta. E o menino sai daquela pequena cidade para, junto com o pai,
descobrir o tamanho do mundo que existe sem ele. E assim descobre que "nada vale quem não tem
nada no vale" (TP, p. 322).

O trem que atravessa o sertão nordestino é o mesmo que atravessou o planeta, ao longo dos últimos
cento e cinqüenta anos. O momento de ruptura de uma perspectiva local, provinciana, agrícola, para
uma experiência metropolitana, cosmopolita, urbana é responsável pelas mais belas e fortes criações
artísticas nos mais diversos países. A aceleração da modernização atingiu a todos, e a saída do
menino para a cidade, o trem atravessando grandes distâncias (antes impensadas para a maioria da
população) e o êxodo para os grandes centros urbanos são imagens típicas de uma nova
sensibilidade urbana. A esperança e a possibilidade de um dia novo, de uma nova era, de uma nova
sociedade, é a melhor representação do modernismo, que, crítico em relação ao capitalismo, ainda
aposta na construção coletiva a partir do progresso da técnica e da ciência, como nos versos mais
famosos do poema:

lá vai o trem com o menino

lá vai a vida a rodar

lá vai ciranda e destino

cidade e noite a girar

lá vai o trem sem destino

pro dia novo encontrar

(TP, p.316)

30movimento - Adágio ma non troppo: Os dias e as noites da cidade (da página 323 a 384).

Muitos/muitos: Os muitos dias que há num só, os dias dentro do dia da memória da cidade natal,
atravessam o poeta "em pleno coração/ de Buenos Aires" (TP, p. 325), trinta anos depois: o dia na
quinta, "um dia/ de açúcar se fazendo na polpa", (TP, p.326) "um urubu/ que é ele mesmo um dia
preto farejando carniça" (TP, p. 327), e tudo isso que os anos "trazem cada vez mais" (TP, p.328).
Eram os dias em que "se fabricava a noite" (TP, p.329). Os dias se multiplicam em simultaneidades,
de "fronteiras impalpáveis" (TP, p.326), diversos centros, e o cerne de cada um deles está em cada
um dos animais, coisas, ruas, pessoas.

As muitas noites da cidade do poeta, depois que a natureza silenciou o dia, se tornam apenas duas:
aquela em que a luz elétrica hipnotiza e aquela em que a lamparina bruxuleia. São, agora, noites
"culturais", porque o que as distancia é a mão do homem, do trabalho, da tecnologia, da
desigualdade. O mau cheiro distancia uma noite da outra. É a disparidade entre o amanhecer nas
casas da cidade (onde "a torneira do tanque de lavar roupas/desanda a jorrar manhã", TP, p. 333) ou
nas casas pobres da Baixinha ("onde não há água encanada: /ali/o clarão contido sob a noite/ não é /
como na cidade/ o punho fechado da água dentro dos canos: / é o punho/ da vida/ fechada dentro da
lama" TP, p. 335) que dá o tom desse movimento. E o tempo não flui, apodrece: as duas noites
estão distantes, mas não se separam. Uma está na outra, uma nasce da outra. O que se deteriora tem
seu próprio tempo.

O andamento mais vagaroso deste movimento começa com o prolongamento das primeiras sílabas
dos dois primeiros versos, "Muitos/muitos", mais lento que os outros movimentos, que repetiam a
primeira palavra no mesmo verso ("turvo turvo" e "claro claro"). Os versos falam da "água
vertiginosamente parada" (TP, p.323), da morte, da noite, do silêncio e da miséria. Como este é um
movimento muito grande, ele se subdivide em movimentos menores, de andamentos um pouco
diferenciados:

Mezzo andante: Histórias de pássaros

Ao falar do surgimento da sua cidade, o poeta se refere aos guerreiros, índios que habitavam a mata,
e à imaginação dos homens da cidade que foi construída. Mas os guerreiros, que não existem mais,
existem nos pássaros azuis e vermelhos que foram vistos por eles. Há histórias de pássaros das
gaiolas, dos urubus que se parecem com humanos, histórias de prisões e hipocrisias das mulheres da
cidade. Nos pássaros há tanto tempo presos e nos homens e mulheres da cidade não se reconhecem
mais os guerreiros. O prosaísmo dos fatos, nas histórias de pássaros da gaiola, é acompanhado por
um texto poético em tom narrativo, quase prosa, quase fala quotidiana da vida pequena e das
pequenas prisões da vida da cidade. Um andamento mais ligeiro do que o anterior sem, no entanto,
ultrapassar a cadência lenta da rotina provinciana:

Adágio: Cidade da memória: imagens do pai

Na quitanda de Newton Ferreira o tempo não flui, se amontoa. Sua quitanda é o ponto de interseção
entre duas redes que se cruzam: a dos armazéns e seus produtos e fornecedores para a quitanda e a
das famílias que, depois de passar por ela, vão para casa se sentar à mesa do jantar. A cidade se
movimenta sob os telhados, nos sistemas de ventos, nas diversas velocidades, nas aranhas. Mas, do
avião, ela parece imóvel. "Nem a pé, nem andando de rastros, /nem colando o ouvido no chão/
voltarás a ouvir nada do que ali se falou" (TP, p. 363) depois que os anos passaram. A cidade do
poeta, a cidade da memória é verde, úmida, canora, suja, doída. O poeta se funde na cidade e a
cidade está completamente dentro dele, o poeta se desdobra e é a cidade:

Me lavo no Ribeirão.

Mijo na Fonte do Bispo.

Na Rua do Sol me cego,

na Rua da Paz me revolto

na do Comércio me nego

mas na das Hortas floresço;

(TP, p. 369).
O andamento dos versos, que falam dos sofrimentos, do passado e da vida da pequena cidade do
poeta é mais uma vez lento, arrastando-se pelos dias de sol e trabalho. Chega o momento de sair,
"que a vida/ passava por sobre nós/ de avião" (TP, p. 373). Esta decisão marca uma mudança na
cadência dos versos, que se tornarão mais pontuados.

Andante energico: Velocidades.

A cidade tem muitas velocidades. No domingo ou na sexta-feira, na sala ou na cozinha, na


circulação de mercadorias, mais rápida na indústria, mais lenta nos legumes, a cidade se movimenta
incessantemente:

É impossível dizer,

em quantas velocidades diferentes

se move uma cidade

(TP, p. 378)

Os corpos formam os vários centros e se movem. E quando um pote se quebra, outro se faz, e não
há nada que separe a vida dentro e fora de casa, dentro e fora de cada um. O tempo e as suas
múltiplas velocidades se cruzam simultaneamente, formando o tempo geral da cidade e dos corpos,
presença humana de gestos que, carregados de significado, dão sentido à existência. O poeta, para
falar das múltiplas velocidades da cidade, perde o tom íntimo que predominava, das tristezas e
limites da vida pequena, e descreve os movimentos, a variedade de sons, cheiros e coisas há muito
existidos.

40movimento - Alegro (rondó): O homem e a cidade (da página 385 a 389).

A cidade permanece em mutações. E o homem, poeta no exílio, a carrega consigo, nas lembranças,
nas suas marcas, carrega-a em si, no que se tornou. No texto poético, o homem, a cidade e as coisas
são palavras e se recuperam mutuamente, refletindo-se uma na outra, incansavelmente, onde não se
distingue mais imagem, linguagem e realidade:

a cidade está no homem

mas não da mesma maneira

que um pássaro está numa árvore

não da mesma maneira que um pássaro

(a imagem dele)

está/va na água

e nem da mesma maneira

que o susto do pássaro


está no pássaro que eu escrevo

a cidade está no homem

quase como a árvore voa

no pássaro que a deixa

cada coisa está em outra

de sua própria maneira

e de maneira distinta de como está em si

a cidade não está no homem

do mesmo modo que em suas

quitandas praças e ruas


 
 

À semelhança de um rondó, o tema A (a cidade e o homem) remete ao tema B (pássaros e árvores)


e este, retorna ao A (a cidade e o homem), para começar o tema C (uma coisa na outra) e depois
novamente A (a cidade e o homem), retornando, para finalizar, tema D (quitandas praças ruas). Um
sistema, um movimento, uma circularidade. Uma cidade que é (mas o poeta sabe que não é) São
Luís; que existe no corpo e nas sensações do homem, mas que não existe fora dele; que resiste
também nas ruas, praças e quitandas, e foi radicalmente transformada em palavra, jogo e enigma.

Conclusão

É preciso responder porque teria o Poema sujo a forma referenciada no passado, sendo uma
produção tão marcadamente da segunda metade do século XX. A sinfonia é uma obra
necessariamente de execução coletiva, que só se faz conhecer se ouvida em seu conjunto. Cada
instrumento compõe o todo, assim como esta totalidade só existe a partir da multiplicidade de sons
e melodias que são executadas simultaneamente. Os mesmos temas são desenvolvidos por cada
instrumento, preservadas as suas diferenças. O compositor explora a variedade de recursos sonoros
que cada um desses instrumentos possui: cordas, metais, percussão, sopro. Juntos, eles formam um
sistema complexo, que só existe no instante de sua realização, em movimento e em processo de
execução. É uma forma musical bastante sintonizada com uma nova sensibilidade urbana, que
começa a despontar na Europa do século XVII. O intenso movimento da cidade, o ir e vir de tantas
pessoas, as casas, ruas e lojas: um conjunto em movimento constante, um grande mosaico, cheio de
detalhes e surpresas no seu desenho.

Se do ponto de vista da execução a sinfonia é uma obra coletiva, do ponto de vista da sua
composição é a apoteose do autor. Surge no instante histórico em que emergem o público anônimo,
a classe média das cidades e uma nova relação entre o artista e a sociedade. Ele começa a se libertar
das relações de mecenato com a nobreza, que já dá sinais de decadência e impossibilidade de
financiar as artes como nos períodos anteriores. Será esta nova relação que consagrará o artista
como gênio criador e, ao mesmo tempo, incompreendido. Agora ele se encontra livre, porém
isolado e excluído de função social imediata, sem a proteção da nobreza. No século XVIII surge a
base que sustentará o conceito de arte, originalidade e bom gosto, que prevalecem até o
desenvolvimento pleno das sociedades industriais: é a modernidade.

O Poema sujo pressupõe, na sua forma, uma relação entre o individual e o coletivo, entre o passado
e o presente. Refere-se ao surgimento das condições estruturais da sociedade para a autonomia do
campo literário no momento em que se desenvolvem as condições de sua apropriação pela nova
estrutura econômica. O poeta está livre de suas antigas funções sociais, porém subordinado às leis
do mercado, e para se contrapor a isso, busca uma arte que subverta e se contraponha ao processo
de reificação de que é vítima. O poema é marcado por tensões que se expressam no encontro entre a
subjetividade do poeta e a vida social, entre as reminiscências da infância e o adulto exilado, entre a
perspectiva de engajamento político e a subversão da linguagem.

O Poema sujo está vinculado a Sonoridades amarelas pela evocação de uma utopia da "síntese das
artes", em que Kandinsky anuncia o rompimento com os limites e as barreiras que foram impostos,
ao longo dos anos, à arte, separando a dança, o teatro, a música, a poesia, a pintura, a escultura uma
da outra e da vida da maioria das pessoas. A busca de uma "síntese das artes" é um princípio
importante na construção do Poema sujo. Seja através da introdução de melodias já compostas
(Villa-Lobos e o Trenzinho caipira), seja na referência explícita a diversos quadros e pintores
famosos ou ainda na intertextualidade com os diversos autores do Modernismo brasileiro, o poeta
quer reunir tudo (como sempre afirma em diversos depoimentos e entrevistas) e este tudo a que se
refere é muito mais do que imagens de São Luís, reminiscências da infância ou o cotidiano
empobrecido do Brasil. O poeta se lança numa tentativa de apropriação da idéia de totalidade que
não submeta nem oblitere as diferenças, que não cristalize ou reduza a diversidade da vida, mas que
questione as certezas do pensamento hegemônico.

Entretanto, algumas indagações ainda precisam ser respondidas. O Poema sujo recusa o idealismo
filosófico, e a presença de Kandinsky na sua composição é no mínimo paradoxal. Afinal, muitos
identificariam mais facilmente a presença de Maiakovski, o poeta da revolução, já que estamos
falando de russos. Existem muitas possibilidades de interpretação e neste trabalho arrisquei
algumas. A inclusão do sentido utópico, o reencontro com uma relação integral e harmônica das
artes com a vida, é de certa forma responsável por um certo abrandamento da negatividade do
poema. "Topamos aí com a contradição típica de todas as utopias: suas próprias imagens de
harmonia seqüestram os impulsos radicais que elas pretendem promover" 6, conforme Terry
Eagleton, a respeito do debate proposto por Marcuse sobre a "arte afirmativa". Mas, ao reduzir sua
força negativa, o poema produz uma grande carga de emoção e permite a empatia com o leitor,
fustigado demais pela fragmentação e estilhaçamento contemporâneo.

O poema incorpora na sua forma a representação da fissura entre a materialidade das coisas (e de
sua historicidade e movimento incessante) e o desejo de transcedência e universalidade. É a sua face
histórica, impressa sobre as crises e desencantos do pensamento humanista. O cotidiano de uma
pequena cidade latino-americana é, portanto, o que se lê imediatamente no Poema sujo. A evocação
da infância e da cidade natal, entretanto, desprendem-se da vida do poeta e se colocam a serviço da
memória da arte ocidental do século XX. Situado historicamente num momento em que se
considera encerrado o ciclo modernista no Brasil e o fim da arte moderna européia, o Poema sujo é,
ainda, sua exaltação e crítica. Afirma seu vigor ao denunciar sua falência.

Além dos desafios estéticos, que remontam aos primeiros anos do século XX, a poética de Gullar se
defronta, em fins do milênio, com a dificuldade de se produzir uma "arte engajada" ou uma "poesia
revolucionária". Distinto das experiências otimistas do início da década de 60, o Poema sujo está
inscrito na derrota, no ruir de um edifício utópico construído com a Revolução Russa de 1917, de
onde surgiram Maiakovski e Eisenstein.
Trata-se agora da releitura desse mito, bastante diversa da que fizeram Pablo Neruda e Carlos
Drummond de Andrade (para ficar com os mais famosos), ao escreverem poemas sobre a batalha de
Stalingrado, a memorável luta da cidade que resistiu seis meses ao cerco alemão. O terror dos
campos de concentração e o impressionante esforço de guerra dos soviéticos marcariam
profundamente suas vidas. A batalha de Stalingrado (por mais que seu nome desagrade à
sensibilidade contemporânea pós-stalinista) representou a primeira derrota do exército nazista, que
até aquele momento avançava por toda a Europa, contando com a colaboração dos governos de
diversos países, inclusive os "neutros". A batalha é também signo de uma guerra que se estendeu
pelas populações civis, e, entre colaborar ou resistir, os soviéticos escolheram lutar até o limite de
suas forças. O cerco prolongado a Stalingrado foi acompanhado em todo o mundo, passo a passo,
principalmente pela determinação de luta da sua população. Foi símbolo e orgulho do "bravo e
heróico povo soviético" durante décadas.

As reminiscências de Gullar provocam uma profunda revisão do legado da cultura socialista e de


sua história oficial. No cenário político dos anos setenta, quando foi composto o poema, não há
mais lugar para a retórica, a ingenuidade e o otimismo. O Poema sujo é uma obra latino-americana,
escrita através do continente, tributária de uma poética de engajamento, mas que se recusa à
subordinação a tradição cultural. A derrota política amadurece e dá mais complexidade à poética do
autor, que consegue expressar a vida das cidades latino-americanas, as contradições e limites de
uma vida provinciana, num continente de economia periférica, a partir da recriação das imagens de
sua cidade natal. No trecho que transcrito pode-se perceber melhor esta relação:

Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade

sob

as sombras da guerra:

a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg

catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os


nazistas

os comunistas o repórter esso a discussão na quitanda o quero-

sene o sabão andiroba o mercado negro o racionamento o

blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado

na Praça João Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães

troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Sta-

lingrado resiste.

Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que

passava rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro,

por seu Neco que fazia charutos ordinários, pelo sargento


Gon-
zaga que tomava tiquira com mel de abelha e trepava com a

janela aberta,

pelo meu carneiro manso

por minha cidade azul

pelo Brasil salve salve,

Stalingrado resiste.

A cada nova manhã

nas janelas nas esquinas na manchete dos jornais.

(TP, p.303)

A guerra era sombra das notícias de jornais, que traziam nomes, lugares, números que se misturam
ao cotidiano da província, onde se mesclam sonhos e fatos. O emaranhado de referências dilui sua
tragicidade e as desierarquiza diante do miúdo dia-a-dia de uma família qualquer. O patriotismo e o
heroísmo são fundidos a atos banais e prosaicos, provoca ironia pelo deslocamento e recusa a
retórica laudatória.

O momento histórico de desesperança e militarização da América Latina colocou Ferreira Gullar no


centro de uma encruzilhada onde já não fazia sentido abraçar velhas utopias, ao mesmo tempo em
que abandoná-las seria pior. O Poema sujo é o resultado dessa tensão. Diante de uma realidade
esmagadora, um lugar sem saída e desencantado, o poeta busca afirmar a poesia como única
possibilidade de resistir, mesmo que esse gesto pudesse parecer absolutamente inútil. Contra o
exílio, empreendeu uma viagem de volta a sua cidade natal. Contra a possibilidade de morte e
esquecimento, opôs uma poesia nascida do sujo e da lama, como é a vida mesma de cada um. Do
sofrimento individual fabricou a possibilidade de diálogo com o mundo, com a cultura, e com os
tempos. Este diálogo se estabelece através da memória e da evocação da cidade natal, mas o poeta
não volta no tempo:

As casas, as cidades,

são apenas lugares por onde

passando

passamos

(ora sentado ora deitado

ora comendo na mesa

bebendo água do pote

ora debruçado
no peitoril da janela, o frango

pingando ensopado debaixo

do jirau de plantas)

Nem a pé, nem andando de rastros,

nem colado o ouvido no chão

voltarás a ouvir nada do que ali se falou.

(TP, pp. 362,363)

Filho do desencanto, o Poema sujo é muito mais do que uma canção do exílio pós-moderna. Recusa
a ordem estabelecida sobre uma ética formalista e denuncia a violência de uma subjetividade que
pretende ser negação do corpo e de suas sensações. O poeta quer romper as tramas do poder no
tecido inconsciente da vida cotidiano, onde o consenso se manifesta. A denúncia da exceção do ato
político arbitrário é secundária na construção poética. O Poema sujo é um nome e um corpo se
contrapondo a uma forma de organização da sociedade que transforma as pessoas em simples
mercadorias a serem rapidamente substituídas. Os versos não denunciam atos de governo,
denunciam a condição aporética e contingente das relações entre a linguagem e a realidade.

A matéria principal de que trata o Poema sujo é a vida do poeta, debatendo-se num continente
periférico. Trata-se de uma procura que não se restringe a um protesto no campo político, social e
econômico, mas que se configura numa inquietante investigação filosófica, existencial, estética. A
sua impossibilidade de ser a voz dos oprimidos é a matéria do poema, fruto da dor do homem diante
de seu próprio abismo.

______
 

Notas

1
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p.61.

2
Infelizmente esta leitura está prejudicada nas últimas edições do poema (5 a de Toda Poesia e a 6a do Poema sujo). A
editora, por razões comerciais, diminuiu grosseiramente os espaços em branco, desfigurando a obra.

3
KANDINSKY, Olhar sobre o passado Trad.Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 146.

4
idem p. 147.

5
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão/ Mal estar na civlização. In: Obra completa 23 vols. Trad. Christiano
Monteiro Oiticica, Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol.XXI , s/d, p. 41.

6
EAGLETON, Terry, 1993, opus cit, p. 268
 
 

Bibliografia
1. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 4ed.
São Paulo: Editora Brasiliense, [1985].

2. _____ . Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins
Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

3. CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

4. EAGLETON, Terry. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

5. _____ . Capitalismo, modernismo e pós-modernismo. Trad. João Roberto Martins Filho.


Crítica Marxista Vol. I, n o 2, [São Paulo: Brasiliense], 1995, pp 53-68.

6. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão/ mal estar na civlização. Obra completa 23
vols. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol. XXI, s/d.

7. _____ . Além do princípio do prazer. Obra completa 23 vols, Trad. Christiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol.XVIII, s/d.

8. GULLAR, Ferreira. Toda Poesia - 1950/1980, 2ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1981.

9. _____ . Vanguarda e subdesenvolvimento - ensaios sobre arte. 2ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1978.

10. GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

11. KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Trad. Álvaro Cabral e Antonio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

12. _____ . Olhar sobre o passado Trad.Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.

13. LAFETÁ, João Luiz. Traduzir-se (ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar). In: ZILIO,
Carlos e CHIAPPINI, Lígia M. L.(Org.), O nacional e o popular na cultura brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1982.

14. _____ . Dois pobres, duas medidas. In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na
literatura brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983

15. VILLAÇA, Alcides. A poesia de Ferreira Gullar. Tese de doutorado, USP, 1984, mimeo.

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