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O poema
Ferreira Gullar escreveu o Poema sujo no exílio, na cidade de Buenos Aires, em 1975. Sua
divulgação no Brasil, no ano seguinte, provocou forte impacto entre intelectuais e artistas,
facilitando o seu retorno ao país meses depois. Por ser uma doída canção do exílio e pelo seu papel
circunstancial, as primeiras leituras críticas se limitaram às reminiscências do poeta, ao retrato do
Brasil, à vida cotidiana da cidade de São Luís do Maranhão. Entretanto, mais do que um "poema
engajado", de tradição nacional-popular, é um inventário da herança das vanguardas estéticas do
século XX e, por isso mesmo, recriação deste legado. Uma síntese que reúne a bagagem pessoal e
familiar do autor, sua formação cultural (como poeta e crítico de arte) e suas escolhas políticas e
filosóficas. Nele Ferreira Gullar recupera o caminho que o lançou, o livro Luta corporal, incorpora
os procedimentos de vanguarda dos anos 50 e se mantém comprometido com a crítica social.
Quando o poema foi escrito o conceito tradicional de obra de arte estava completamente
comprometido. Também a poesia, o autor, o livro, a teoria, a razão, a verdade, a subjetividade,
estavam sob suspeita. Um gigantesco naufrágio das utopias revolucionárias, as derrotas acumuladas
em vários continentes e o aprofundamento das contradições nos países socialistas enriqueciam o
solo com um profundo ceticismo e descrença em relação a toda tradição cultural européia. Estava
decretado o "fim" da arte moderna. Seria a conclusão de uma revolta que começou na França de
1850, com Baudelaire?
Pode-se chegar ao Poema sujo por diversos caminhos. São noventa e duas páginas que parecem
escritas num único fôlego, como se fossem versos brotados de um fluxo constante da memória,
rompendo intempestivamente as barreiras do consciente. Podemos perceber Mnemosyne e suas
musas a guiar o poeta para os mais recônditos refúgios do ser e do tempo, presentificando o
passado, dissolvendo-o no ritmo frenético das imagens e sons que formam seus versos. Apolo e
Dionísio se enfrentam, expansão e construção, explosão e contenção. Há versos em que as palavras
mais vulgares ou as imagens tradicionalmente menos poéticas ficam ressaltadas, funcionando como
uma provocação ao senso comum e subversão aos padrões de bom gosto e de literariedade. Mas não
é essa a sua matéria principal.
O poema, escrito durante alguns meses (maio/outubro de 1975), é o resultado de inúmeras buscas
realizadas em décadas anteriores. Seus versos mimetizam o jogo espontâneo do fluxo da memória,
de livres associações, mas o que o sustenta é uma construção poética, um prolongado trabalho de
criação, articulação e escolhas. A retomada de versos e temas anteriores, que desde sempre
estiveram presentes na obra de Gullar, indicam que Poema sujo surge de uma incansável procura da
poesia, que, como nos recorda Calvino, é a "busca de uma expressão necessária, única, densa,
concisa, memorável"1 .
No poema de Gullar, como afirmei anteriormente, os movimentos são percebidos após algumas
leituras de toda a obra, com certa facilidade. Nas pausas depreendi os movimentos. O segundo
movimento se inicia assim: "claro claro/mais que claro/raro/ o relâmpago clareia os continentes
passados:/ noite e jasmim/junto à casa" (TP, p. 311). Se retornarmos ao texto de Kandinsky, temos,
ao passar para o segundo quadro de sua composição cênica, as cores que estarão em cena: "Segundo
quadro: O vapor azul cede pouco a pouco à luz, que se torna de uma brancura perfeita, crua. Atrás
da cena, uma colina verde-cru, a maior possível, toda redonda. O fundo violeta bastante claro"4 .
O terceiro movimento do Poema sujo começa por: "Muitos/muitos dias há num só/ porque as coisas
mesmas os compõem" (TP, p. 323). Este é o movimento mais longo, onde na cidade da memória
suas histórias se criam e se multiplicam, onde o poeta se desdobra e se funde, onde as velocidades e
os tempos dentro do tempo se fragmentam e se recuperam, e são, então, apresentados em diversos
andamentos, como pequenos movimentos dentro de um maior.
O quarto movimento não contém o padrão de repetição como os anteriores, destacando-se, portanto,
do conjunto. É a finalização, em que a cidade e o homem se recuperam, num jogo textual, um no
outro, de um para o outro. Podemos depreendê-lo pela forma aproximada de rondó, típico no último
movimento das sinfonias clássicas. Acompanhando o poema, poderíamos chegar a uma proposta
mais detalhada:
No Poema sujo, as mais prosaicas recordações, de atos banais ou marginais, retornam com a busca
incessante pelo sentido da vida. Esta vida se afirma nas formigas que brotam, nos tomates que
crescem do esgoto, nos capins "mais verdes que a esperança". (TP, p. 302). O retorno ao corpo não
é mero sensualismo ou um hedonismo ingênuo. A intensidade do prazer instala a fragilidade e
fugacidade da vida, provocando uma tensão permanente, que se multiplica, desdobra e recomeça
sempre. O corpo do poeta é limitado, finito. Nesta passagem, os corpos, as palavras, os sentidos, o
prazer, são tão intensos e verdadeiros quanto frágeis. É a materialidade dos corpos que produzem o
pensamento e as palavras:
e as palavras
e as mentiras
mais sentido
de leite
como símbolos
do corpo
corpo
que pode um sabre rasgar (TP, p. 305)
O corpo, no texto, não é um amontoado orgânico funcionando com alguma eficiência. Ao corpo-
biológico ("cão e dono") se contrapõe um corpo-texto histórico, de uma família e de uma geografia
particulares. Este corpo-texto também é cultural, iconoclasta, desierarquizado, em que se misturam
o lixo, a cultura popular e as artes plásticas do século XVI à modernidade no Brasil:
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de Cézanne
(TP, p. 308 )
Ao indagar sobre a existência e a finitude humanas, o poeta levanta os olhos para os céus, não vê o
Criador, não pergunta pelo mistério da criação. Neste gigantesco infinito, quase cognoscível, onde
está o sentido da existência? A pergunta pulsa intensamente em todos seus versos, é a busca
desesperada de um sentido para tudo isso que passa, inexoravelmente, passa por nós e por onde
passamos.
O Poema sujo é a expressão de uma profunda irreligiosidade que, segundo Freud, é um sentimento
que se caracteriza não apenas pela negação a Deus, mas pelo enfrentamento doloroso de nosso
restrito, frágil e pequeno tamanho individual no mundo: "O homem que não vai além, mas
humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande
mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra"5 . Depois
de tanto, o corpo do poeta ainda carrega um coração "combatente clandestino aliado da classe
operário" (TP, p. 310).
Esta é uma apresentação sintética dos temas que se desdobrarão nos próximos movimentos. Numa
sinfonia, o primeiro movimento é quase sempre um Alegro, podendo ou não ser sintético. É através
do humor e da ironia que sentimos a forma mais solta e rápida dos versos que caracterizam este
alegro do primeiro movimento do poema. Nas seqüências "azul/teu cu" (TP, p. 297), "bela bela/
mais que bela/ como era mesmo o nome dela?" (TP, p. 298), "Pelo Brasil salve salve /Stalingrado
resiste" (TP, p. 303), o acento paródico predomina, numa cadência marcadamente distinta dos
outros movimentos.
O trem que atravessa o sertão nordestino é o mesmo que atravessou o planeta, ao longo dos últimos
cento e cinqüenta anos. O momento de ruptura de uma perspectiva local, provinciana, agrícola, para
uma experiência metropolitana, cosmopolita, urbana é responsável pelas mais belas e fortes criações
artísticas nos mais diversos países. A aceleração da modernização atingiu a todos, e a saída do
menino para a cidade, o trem atravessando grandes distâncias (antes impensadas para a maioria da
população) e o êxodo para os grandes centros urbanos são imagens típicas de uma nova
sensibilidade urbana. A esperança e a possibilidade de um dia novo, de uma nova era, de uma nova
sociedade, é a melhor representação do modernismo, que, crítico em relação ao capitalismo, ainda
aposta na construção coletiva a partir do progresso da técnica e da ciência, como nos versos mais
famosos do poema:
(TP, p.316)
30movimento - Adágio ma non troppo: Os dias e as noites da cidade (da página 323 a 384).
Muitos/muitos: Os muitos dias que há num só, os dias dentro do dia da memória da cidade natal,
atravessam o poeta "em pleno coração/ de Buenos Aires" (TP, p. 325), trinta anos depois: o dia na
quinta, "um dia/ de açúcar se fazendo na polpa", (TP, p.326) "um urubu/ que é ele mesmo um dia
preto farejando carniça" (TP, p. 327), e tudo isso que os anos "trazem cada vez mais" (TP, p.328).
Eram os dias em que "se fabricava a noite" (TP, p.329). Os dias se multiplicam em simultaneidades,
de "fronteiras impalpáveis" (TP, p.326), diversos centros, e o cerne de cada um deles está em cada
um dos animais, coisas, ruas, pessoas.
As muitas noites da cidade do poeta, depois que a natureza silenciou o dia, se tornam apenas duas:
aquela em que a luz elétrica hipnotiza e aquela em que a lamparina bruxuleia. São, agora, noites
"culturais", porque o que as distancia é a mão do homem, do trabalho, da tecnologia, da
desigualdade. O mau cheiro distancia uma noite da outra. É a disparidade entre o amanhecer nas
casas da cidade (onde "a torneira do tanque de lavar roupas/desanda a jorrar manhã", TP, p. 333) ou
nas casas pobres da Baixinha ("onde não há água encanada: /ali/o clarão contido sob a noite/ não é /
como na cidade/ o punho fechado da água dentro dos canos: / é o punho/ da vida/ fechada dentro da
lama" TP, p. 335) que dá o tom desse movimento. E o tempo não flui, apodrece: as duas noites
estão distantes, mas não se separam. Uma está na outra, uma nasce da outra. O que se deteriora tem
seu próprio tempo.
O andamento mais vagaroso deste movimento começa com o prolongamento das primeiras sílabas
dos dois primeiros versos, "Muitos/muitos", mais lento que os outros movimentos, que repetiam a
primeira palavra no mesmo verso ("turvo turvo" e "claro claro"). Os versos falam da "água
vertiginosamente parada" (TP, p.323), da morte, da noite, do silêncio e da miséria. Como este é um
movimento muito grande, ele se subdivide em movimentos menores, de andamentos um pouco
diferenciados:
Ao falar do surgimento da sua cidade, o poeta se refere aos guerreiros, índios que habitavam a mata,
e à imaginação dos homens da cidade que foi construída. Mas os guerreiros, que não existem mais,
existem nos pássaros azuis e vermelhos que foram vistos por eles. Há histórias de pássaros das
gaiolas, dos urubus que se parecem com humanos, histórias de prisões e hipocrisias das mulheres da
cidade. Nos pássaros há tanto tempo presos e nos homens e mulheres da cidade não se reconhecem
mais os guerreiros. O prosaísmo dos fatos, nas histórias de pássaros da gaiola, é acompanhado por
um texto poético em tom narrativo, quase prosa, quase fala quotidiana da vida pequena e das
pequenas prisões da vida da cidade. Um andamento mais ligeiro do que o anterior sem, no entanto,
ultrapassar a cadência lenta da rotina provinciana:
Na quitanda de Newton Ferreira o tempo não flui, se amontoa. Sua quitanda é o ponto de interseção
entre duas redes que se cruzam: a dos armazéns e seus produtos e fornecedores para a quitanda e a
das famílias que, depois de passar por ela, vão para casa se sentar à mesa do jantar. A cidade se
movimenta sob os telhados, nos sistemas de ventos, nas diversas velocidades, nas aranhas. Mas, do
avião, ela parece imóvel. "Nem a pé, nem andando de rastros, /nem colando o ouvido no chão/
voltarás a ouvir nada do que ali se falou" (TP, p. 363) depois que os anos passaram. A cidade do
poeta, a cidade da memória é verde, úmida, canora, suja, doída. O poeta se funde na cidade e a
cidade está completamente dentro dele, o poeta se desdobra e é a cidade:
Me lavo no Ribeirão.
na do Comércio me nego
(TP, p. 369).
O andamento dos versos, que falam dos sofrimentos, do passado e da vida da pequena cidade do
poeta é mais uma vez lento, arrastando-se pelos dias de sol e trabalho. Chega o momento de sair,
"que a vida/ passava por sobre nós/ de avião" (TP, p. 373). Esta decisão marca uma mudança na
cadência dos versos, que se tornarão mais pontuados.
É impossível dizer,
(TP, p. 378)
Os corpos formam os vários centros e se movem. E quando um pote se quebra, outro se faz, e não
há nada que separe a vida dentro e fora de casa, dentro e fora de cada um. O tempo e as suas
múltiplas velocidades se cruzam simultaneamente, formando o tempo geral da cidade e dos corpos,
presença humana de gestos que, carregados de significado, dão sentido à existência. O poeta, para
falar das múltiplas velocidades da cidade, perde o tom íntimo que predominava, das tristezas e
limites da vida pequena, e descreve os movimentos, a variedade de sons, cheiros e coisas há muito
existidos.
A cidade permanece em mutações. E o homem, poeta no exílio, a carrega consigo, nas lembranças,
nas suas marcas, carrega-a em si, no que se tornou. No texto poético, o homem, a cidade e as coisas
são palavras e se recuperam mutuamente, refletindo-se uma na outra, incansavelmente, onde não se
distingue mais imagem, linguagem e realidade:
(a imagem dele)
está/va na água
Conclusão
É preciso responder porque teria o Poema sujo a forma referenciada no passado, sendo uma
produção tão marcadamente da segunda metade do século XX. A sinfonia é uma obra
necessariamente de execução coletiva, que só se faz conhecer se ouvida em seu conjunto. Cada
instrumento compõe o todo, assim como esta totalidade só existe a partir da multiplicidade de sons
e melodias que são executadas simultaneamente. Os mesmos temas são desenvolvidos por cada
instrumento, preservadas as suas diferenças. O compositor explora a variedade de recursos sonoros
que cada um desses instrumentos possui: cordas, metais, percussão, sopro. Juntos, eles formam um
sistema complexo, que só existe no instante de sua realização, em movimento e em processo de
execução. É uma forma musical bastante sintonizada com uma nova sensibilidade urbana, que
começa a despontar na Europa do século XVII. O intenso movimento da cidade, o ir e vir de tantas
pessoas, as casas, ruas e lojas: um conjunto em movimento constante, um grande mosaico, cheio de
detalhes e surpresas no seu desenho.
Se do ponto de vista da execução a sinfonia é uma obra coletiva, do ponto de vista da sua
composição é a apoteose do autor. Surge no instante histórico em que emergem o público anônimo,
a classe média das cidades e uma nova relação entre o artista e a sociedade. Ele começa a se libertar
das relações de mecenato com a nobreza, que já dá sinais de decadência e impossibilidade de
financiar as artes como nos períodos anteriores. Será esta nova relação que consagrará o artista
como gênio criador e, ao mesmo tempo, incompreendido. Agora ele se encontra livre, porém
isolado e excluído de função social imediata, sem a proteção da nobreza. No século XVIII surge a
base que sustentará o conceito de arte, originalidade e bom gosto, que prevalecem até o
desenvolvimento pleno das sociedades industriais: é a modernidade.
O Poema sujo pressupõe, na sua forma, uma relação entre o individual e o coletivo, entre o passado
e o presente. Refere-se ao surgimento das condições estruturais da sociedade para a autonomia do
campo literário no momento em que se desenvolvem as condições de sua apropriação pela nova
estrutura econômica. O poeta está livre de suas antigas funções sociais, porém subordinado às leis
do mercado, e para se contrapor a isso, busca uma arte que subverta e se contraponha ao processo
de reificação de que é vítima. O poema é marcado por tensões que se expressam no encontro entre a
subjetividade do poeta e a vida social, entre as reminiscências da infância e o adulto exilado, entre a
perspectiva de engajamento político e a subversão da linguagem.
O Poema sujo está vinculado a Sonoridades amarelas pela evocação de uma utopia da "síntese das
artes", em que Kandinsky anuncia o rompimento com os limites e as barreiras que foram impostos,
ao longo dos anos, à arte, separando a dança, o teatro, a música, a poesia, a pintura, a escultura uma
da outra e da vida da maioria das pessoas. A busca de uma "síntese das artes" é um princípio
importante na construção do Poema sujo. Seja através da introdução de melodias já compostas
(Villa-Lobos e o Trenzinho caipira), seja na referência explícita a diversos quadros e pintores
famosos ou ainda na intertextualidade com os diversos autores do Modernismo brasileiro, o poeta
quer reunir tudo (como sempre afirma em diversos depoimentos e entrevistas) e este tudo a que se
refere é muito mais do que imagens de São Luís, reminiscências da infância ou o cotidiano
empobrecido do Brasil. O poeta se lança numa tentativa de apropriação da idéia de totalidade que
não submeta nem oblitere as diferenças, que não cristalize ou reduza a diversidade da vida, mas que
questione as certezas do pensamento hegemônico.
Entretanto, algumas indagações ainda precisam ser respondidas. O Poema sujo recusa o idealismo
filosófico, e a presença de Kandinsky na sua composição é no mínimo paradoxal. Afinal, muitos
identificariam mais facilmente a presença de Maiakovski, o poeta da revolução, já que estamos
falando de russos. Existem muitas possibilidades de interpretação e neste trabalho arrisquei
algumas. A inclusão do sentido utópico, o reencontro com uma relação integral e harmônica das
artes com a vida, é de certa forma responsável por um certo abrandamento da negatividade do
poema. "Topamos aí com a contradição típica de todas as utopias: suas próprias imagens de
harmonia seqüestram os impulsos radicais que elas pretendem promover" 6, conforme Terry
Eagleton, a respeito do debate proposto por Marcuse sobre a "arte afirmativa". Mas, ao reduzir sua
força negativa, o poema produz uma grande carga de emoção e permite a empatia com o leitor,
fustigado demais pela fragmentação e estilhaçamento contemporâneo.
O poema incorpora na sua forma a representação da fissura entre a materialidade das coisas (e de
sua historicidade e movimento incessante) e o desejo de transcedência e universalidade. É a sua face
histórica, impressa sobre as crises e desencantos do pensamento humanista. O cotidiano de uma
pequena cidade latino-americana é, portanto, o que se lê imediatamente no Poema sujo. A evocação
da infância e da cidade natal, entretanto, desprendem-se da vida do poeta e se colocam a serviço da
memória da arte ocidental do século XX. Situado historicamente num momento em que se
considera encerrado o ciclo modernista no Brasil e o fim da arte moderna européia, o Poema sujo é,
ainda, sua exaltação e crítica. Afirma seu vigor ao denunciar sua falência.
Além dos desafios estéticos, que remontam aos primeiros anos do século XX, a poética de Gullar se
defronta, em fins do milênio, com a dificuldade de se produzir uma "arte engajada" ou uma "poesia
revolucionária". Distinto das experiências otimistas do início da década de 60, o Poema sujo está
inscrito na derrota, no ruir de um edifício utópico construído com a Revolução Russa de 1917, de
onde surgiram Maiakovski e Eisenstein.
Trata-se agora da releitura desse mito, bastante diversa da que fizeram Pablo Neruda e Carlos
Drummond de Andrade (para ficar com os mais famosos), ao escreverem poemas sobre a batalha de
Stalingrado, a memorável luta da cidade que resistiu seis meses ao cerco alemão. O terror dos
campos de concentração e o impressionante esforço de guerra dos soviéticos marcariam
profundamente suas vidas. A batalha de Stalingrado (por mais que seu nome desagrade à
sensibilidade contemporânea pós-stalinista) representou a primeira derrota do exército nazista, que
até aquele momento avançava por toda a Europa, contando com a colaboração dos governos de
diversos países, inclusive os "neutros". A batalha é também signo de uma guerra que se estendeu
pelas populações civis, e, entre colaborar ou resistir, os soviéticos escolheram lutar até o limite de
suas forças. O cerco prolongado a Stalingrado foi acompanhado em todo o mundo, passo a passo,
principalmente pela determinação de luta da sua população. Foi símbolo e orgulho do "bravo e
heróico povo soviético" durante décadas.
sob
as sombras da guerra:
lingrado resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que
janela aberta,
Stalingrado resiste.
(TP, p.303)
A guerra era sombra das notícias de jornais, que traziam nomes, lugares, números que se misturam
ao cotidiano da província, onde se mesclam sonhos e fatos. O emaranhado de referências dilui sua
tragicidade e as desierarquiza diante do miúdo dia-a-dia de uma família qualquer. O patriotismo e o
heroísmo são fundidos a atos banais e prosaicos, provoca ironia pelo deslocamento e recusa a
retórica laudatória.
As casas, as cidades,
passando
passamos
ora debruçado
no peitoril da janela, o frango
do jirau de plantas)
Filho do desencanto, o Poema sujo é muito mais do que uma canção do exílio pós-moderna. Recusa
a ordem estabelecida sobre uma ética formalista e denuncia a violência de uma subjetividade que
pretende ser negação do corpo e de suas sensações. O poeta quer romper as tramas do poder no
tecido inconsciente da vida cotidiano, onde o consenso se manifesta. A denúncia da exceção do ato
político arbitrário é secundária na construção poética. O Poema sujo é um nome e um corpo se
contrapondo a uma forma de organização da sociedade que transforma as pessoas em simples
mercadorias a serem rapidamente substituídas. Os versos não denunciam atos de governo,
denunciam a condição aporética e contingente das relações entre a linguagem e a realidade.
A matéria principal de que trata o Poema sujo é a vida do poeta, debatendo-se num continente
periférico. Trata-se de uma procura que não se restringe a um protesto no campo político, social e
econômico, mas que se configura numa inquietante investigação filosófica, existencial, estética. A
sua impossibilidade de ser a voz dos oprimidos é a matéria do poema, fruto da dor do homem diante
de seu próprio abismo.
______
Notas
1
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p.61.
2
Infelizmente esta leitura está prejudicada nas últimas edições do poema (5 a de Toda Poesia e a 6a do Poema sujo). A
editora, por razões comerciais, diminuiu grosseiramente os espaços em branco, desfigurando a obra.
3
KANDINSKY, Olhar sobre o passado Trad.Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 146.
4
idem p. 147.
5
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão/ Mal estar na civlização. In: Obra completa 23 vols. Trad. Christiano
Monteiro Oiticica, Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol.XXI , s/d, p. 41.
6
EAGLETON, Terry, 1993, opus cit, p. 268
Bibliografia
1. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 4ed.
São Paulo: Editora Brasiliense, [1985].
2. _____ . Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins
Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
3. CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
6. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão/ mal estar na civlização. Obra completa 23
vols. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago Editora, Vol. XXI, s/d.
7. _____ . Além do princípio do prazer. Obra completa 23 vols, Trad. Christiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol.XVIII, s/d.
8. GULLAR, Ferreira. Toda Poesia - 1950/1980, 2ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1981.
10. GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993.
11. KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Trad. Álvaro Cabral e Antonio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
12. _____ . Olhar sobre o passado Trad.Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.
13. LAFETÁ, João Luiz. Traduzir-se (ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar). In: ZILIO,
Carlos e CHIAPPINI, Lígia M. L.(Org.), O nacional e o popular na cultura brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1982.
14. _____ . Dois pobres, duas medidas. In: SCHWARZ, Roberto (Org.). Os pobres na
literatura brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983
15. VILLAÇA, Alcides. A poesia de Ferreira Gullar. Tese de doutorado, USP, 1984, mimeo.