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A poesia, ao longo dos séculos, mostrou-se como a atividade humana capaz

de apresentar-nos as palavras em seu mais alto nível de plenitude, de


transcendência, de sofisticação. Desde a Ilíada de Homero até a poesia
concreta, o fazer poético vai nos encantando e se reinventando conforme se
alteram as realidades materiais e estéticas a que ele está sujeito; contudo, por
sob as diferentes roupagens que essa arte assume, um atributo essencial
permanece intacto: sua força criativa e transformadora que influencia
profundamente a forma com que o homem vive e sente o mundo.

É inegável o poder enriquecedor que a poesia exerce sobre a experiência


humana. O poeta, fazendo uso do “impossível verossímil” – no dizer de
Aristóteles 1 – abre as portas do imaginário, do indizível, e amplia a percepção
que o indivíduo vai adquirindo do mundo, tornando-a mais rica, mais plural –
em suma, mais completa. Homero, ao começar sua grande obra com seu verso
interpelador: “Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles a ira tenaz” 2, estabelece
uma comunicação entre o seu fazer poético e o dizer das musas (também
chamadas de Piérides, por terem nascido no Monte Piero, conhecidas como as
Musas protetoras das artes, das ciências e das letras) e, assim, traz o elemento
divino para a realidade concreta do ser humano, enriquecendo-a num processo
criativo que Otávio Paz considera como “operação alquímica limítrofe da
magia”3, que nada mais é do que o que chamamos singelamente de poesia.

Por meio dos seus elementos constitutivos dos âmbitos formal, vocabular e
temático, quais sejam metro, rima, ritmo, “comparações, símiles, metáforas,
jogos de palavras, paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas” 4, a
poesia consegue expressar, tanto em forma quanto em conteúdo, o que
nenhuma outra manifestação de conhecimento consegue expressar, daí que
(para citar outra vez Aristóteles) o sábio autor da Poética costumava dizer o
seguinte: “A poesia é mais profunda e mais filosófica que a história.” 5 E de fato
é, pois ao passo que as ciências humanas e naturais abordam o mundo como
ele é, a poesia, como bem observou o filósofo grego citado, revela o mundo
não apenas como ele é, mas como ele poderia ser também. Daí a sua
peculiaridade e importância no que tange à forma de apreendermos a nossa
experiência individual e coletiva, bem como no guiar de nossas condutas
cotidianas.
Certo, mas em relação à teologia, o que a poesia possui que a distingue e a
eleva em face da ciência da religião? Em outras palavras, o que faz com que o
fazer poético se torne uma atividade tão reveladora e sublime quanto – ou até
mais do que – a expressão teológica? Recorramos, para responder à tal
pergunta, ao exemplo de Dante.

Em sua época, Dante testemunhava uma enorme desvalorização que os


acadêmicos e intelectuais da Idade Média relegavam à poesia, ao passo que a
ciência mais valorizada era disparadamente a teologia, cultivada e moldada
especialmente por Santo Agostinho e por Tomás de Aquino. Para reverter essa
situação de desprestígio à poesia, o poeta florentino percebeu que deveria
inventar uma fórmula nova, que unisse os procedimentos retóricos de
persuasão típicos da teologia (forma tractandi) e a estrutura formal destinada a
organizar a elaboração do seu poema (forma tractatus). Com isso, o célebre
autor da Comédia, de um modo surpreendentemente original, transformou o
seu monumental poema em uma espécie de revelação divina, não apenas no
conteúdo, mas também na sua forma (tripartida, com três partes, trinta e três
cantos em cada parte e organização em tercetos, também chamados de terza
rima, dos versos decassílabos). Note-se que, em consequência disso, o poeta
conseguiu que o seu ofício, outrora desvalorizado pelas mentes dominantes,
ganhasse um status mais do que especial, quase que superando em
complexidade composicional os tratados de teologia, uma vez que abordou “ao
mesmo tempo poesia, ficção, descrição, digressão e metáfora (elementos
puramente da poética e da retórica) e, do mesmo modo que um tratado
teológico, a definição, divisão, prova (argumento), refutação (a dialética do
contra-argumento) e citação de exemplo."6

É de se notar, pois, as razões pelas quais a poesia pode ser considerada


uma atividade humana tão elevada e milagrosa, e porque o nosso crítico
mexicano a considerou como limítrofe da magia. E por falar em Otávio Paz, ele
também ressalta, em sua obra intitulada Signos em rotação, a importância que
a imagem tem na composição de um poema. Ele designa como palavra
imagem “toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que
unidas compõem um poema.”7 É marcada por sua plurissignificação, por seu
intrínseco valor psicológico e por ser um produto imaginário que o poeta evoca.
Em suma, todo poema é perpassado por essas palavras imagens, que
constituem o sentido do poema, pois sem imagem não há significação.

O próprio Paz, no ensaio mencionado, afirma que a imagem “é cifra da


condição humana.” (p. 38). E exemplifica: “a figura de Antígona, despedaçada
entre a piedade divina e as leis humanas. A cólera de Aquiles tampouco é
simples e nela se unem os contrários: o amor por Pátroclo e a piedade por
Príamo, o fascínio ante uma morte gloriosa e o desejo de uma vida longa. Em
Sigismundo a vigília e o sonho se entrelaçam de maneira indissolúvel e
misteriosa. Em Édipo, a liberdade e o destino...” (p. 38)

Enfim, essa pluralidade de significados e oposição de ideias é um traço


característico do que Paz chama de palavra imagem, o que acaba por
enriquecer, sem dúvida, as composições poéticas.

Outro fator que é imperativo mencionar é o ritmo do poema. Abramos alas


para o nosso Fernando Pessoa nos falar:

“A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como


a música é essa mesma expressão, mas direta, sem o intermédio da
ideia. Musicar um poema é acentuar-lhe a emoção, reforçando-lhe o
ritmo. (...) Um poema é uma impressão intelectualizada, ou uma ideia
convertida em emoção, comunicada a outros por meio de um ritmo.
Esse ritmo é duplo num só, como os aspectos côncavo e convexo do
mesmo arco: é constituído por um ritmo verbal ou musical ou de imagem
que lhe corresponde, internamente.”8

Ou seja, o que o maior poeta português do século passado está querendo


dizer é que não há poesia sem ritmo, elemento este que funciona como uma
espécie de canal através do qual o pensamento do poema nos é transmitido.
Esse ritmo pode ser produzido através do metro – como nos poemas
camonianos, por exemplo, majoritariamente decassílabos, ou nos poemas
alexandrinos franceses, analisados por Cohen em Estrutura da Linguagem
Poética9 – ou mesmo sem o metro, como no caso dos poemas modernistas,
caracterizados por versos livres e brancos, porém sempre ritmados, cabendo
ao leitor decifrar o ritmo presente nessas composições.
E falando em modernismo, não podemos deixar de lembrar da chamada
poesia concreta – corrente literária que se desenvolveu a partir da metade do
século XX – e que trabalhava bastante com os objetos gráficos em seus
poemas. Vejamos o que nos diz o seu manifesto:

“o POEMA CONCRETO aspira a ser: composição de elementos básicos


da linguagem, organizados ótico-acusticamente no espaço gráfico por
fatores de proximidade e semelhança, como uma espécie de ideograma
para uma dada emoção, visando à apresentação direta – presentificação
do objeto.”10

Desse trecho se depreende alguns fatores interessantes da poesia concreta.


O primeiro é a questão do ideograma, unidade linguística utilizada em algumas
línguas orientais, muito diferente das palavras que utilizamos provindas do
nosso sistema alfabético. Na linguagem de ideogramas, cada objeto referido
tem um símbolo que lhe corresponde, mas diferentemente dos signos que
utilizamos, essas unidades linguísticas que serviram de inspiração para os
concretistas fazem uso de recursos gráficos bem peculiares, de modo que duas
palavras – como por exemplo, rosa bonita – são resumidas em um único
símbolo, diferente de todos os outros presentes no conjunto lexical.

Já o segundo fator que se pode destacar do trecho citado é a questão da


presentificação do objeto. Os concretistas ambicionavam a criação do chamado
“poema-produto” – também chamado de poema-objeto – que seria uma
composição com um forte apelo visual, em que forma e conteúdo funcionassem
como uma unidade e que valessem por si mesmos, gerando um poema quase
que pictórico na sua representação, dando uma ideia, assim, de um produto
inteiramente bem encaixado, em que as palavras ganhassem um relevo e uma
significação especial por meio de sua relação visceral com a forma utilizada.

Assim, surgem, a partir dos anos 50 no Brasil, poemas cada vez mais
sugestivos, unindo a forma e as palavras de uma maneira original, provocativa
e, sobretudo, concisa. Pode-se mencionar, como exemplo, um poema do
Marcelo Moura, em que, por meio das letras da palavra “giro”, ele vai formando
uma estrutura circular em que as letras que formam tal palavra vão ocupando
as camadas da estrutura, até ela se formar num círculo perfeito.
Outro tipo de composição poética que também tem a concisão como uma de
suas características principais é o haicai, analisado por Otávio Paz em mais um
de seus interessantes ensaios, A Consagração do Instante11.

De origem japonesa, o haicai tem como prioridade temática a contemplação


da natureza, a relação entre o ser humano e o seu espaço natural e os
momentos de epifania que advêm dessa conexão. Há uma valorização
extremamente poética da singeleza da vida, do instante que passa, do
momento no qual a princípio podemos não perceber nada de especial, mas que
com um olhar atento e com uma sensibilidade aguçada podemos perceber uma
riqueza valiosa, que se transmuta na própria essência do fazer poético. Autores
como James Joyce e Marcel Proust – dois dos principais romancistas do século
XX – certamente inspiraram-se nessa tradição, ao explorarem minuciosamente
sensações e experiências simples da vida, mas que ganham dimensões
extraordinárias, como o barulho de um trem atravessando o túnel, o som que é
produzido pelo choque entre uma bola de basebol e o taco do jogador, a vista
de uma igrejinha provinciana, o gosto de uma madeleine mergulhada no chá, e
coisas do tipo.

Já no plano formal, sua estrutura é curta, com geralmente três versos na


primeira estrofe e dois versos na segunda – na maioria das vezes escritos em
redondilhas, como vemos eventualmente, por exemplo, na poesia do saudoso
Guilherme de Almeida, um dos maiores cultivadores do haicai na poesia
moderna brasileira.

Por fim, não podemos deixar de lembrar também da nossa poesia de cordel,
tão identificada com o Nordeste brasileiro, bem como com a poesia medieval e,
inclusive, com a poesia de autores consagrados da Literatura portuguesa,
como Gil Vicente, por exemplo.

Por meio de uma estrutura bem delimitada, com estrofes de seis versos
(estes hepta ou pentassílabos), e com rimas bem ritmadas e carismáticas, o
cordel teve suas influências nos saudosos cancioneiros medievais, e foi
desenvolvido no sertão nordestino durante séculos, inclusive com contribuições
europeias. Sua expressão máxima veio com o poeta Leandro Gomes de
Barros, autor do famoso Romance da Donzela Teodora, de 1905, que narra a
luta de uma mulher em busca de sua libertação, num cenário extremamente
opressor para as mulheres como era o cenário medieval.

Um fato curioso – ou melhor, cito dois – é que Leandro Gomes de Barros


conheceu o romancista Ariano Suassuna quando este era ainda criança, e
chegou a recitar-lhe alguns de seus poemas que influenciaram a formação
literária do grande autor do Auto da Compadecida.

Além disso, é curioso notar também que, assim como a poesia épica, o
cordel é uma narrativa em versos que se destina a um ideal coletivo, identitário,
que geralmente narra as histórias de um herói – como a Donzela Teodora – ou
de um povo, de uma cultura, de uma região. Note-se também que essas
narrativas geralmente são feitas em terceira pessoa, centrada nos eventos dos
protagonistas da história, e não necessariamente nos fenômenos subjetivos
que se passam no íntimo do narrador (preocupação essa que se encontrava no
centro da poesia homérica, como bem destaca Donald Schuller em seu ensaio
A Produção da Ilíada)12.
REFERÊNCIAS:

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