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FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA

LITERATURA
AULA 4

Prof. Phelipe de Lima Cerdeira


CONVERSA INICIAL

Nesta aula vamos estudar algumas particularidades dos gêneros


literários, cotejando, sempre que possível, exemplos de fragmentos da literatura
ou mesmo de reflexões teóricas que irão acompanhar o seu horizonte discursivo
como estudante e pesquisador. Cabe-nos, neste momento, dedicar atenção
especial para um gênero que tem a musicalidade das palavras e a expressão de
quem enuncia como o seu grande atributo. Estamos falando, como podemos
inferir, da poesia, ou, se preferir, do gênero lírico.
A escolha por dedicar esta aula especificamente ao gênero lírico cumpre
com a necessidade de alinhar questões que foram iniciadas em sua formação
no Ensino Médio, mas que, talvez, acabaram sendo tratadas de maneira estática
ou pouco producente sob o ponto de vista dos estudos literários. Muitos mais do
que memorizar formas fixas ou a técnica de metrificação de um poema, espera-
se, pois, que este trabalho aguce o seu envolvimento e interesse pelo texto
poético, valorizando o quanto a poesia pode – e faz – parte de nossa rotina
discursiva. Sob uma perspectiva bastante semelhante a do mexicano Octavio
Paz, toma-se a poesia como um exemplo de enunciados múltiplos, uma
expressão do desenvolvimento humano intimamente ligada à expressão e à
expressividade linguística.
Para garantir um diálogo contínuo e proveitoso, da mesma forma que
instituído para falar do gênero narrativo, serão buscados excertos e poemas que
possam ilustrar todo o nosso raciocínio. De maneira objetiva e em caráter
introdutório, dar-se-á destaque à inevitável relação entre a poesia e os sons das
palavras (a música), o que é fundamental para que você, como estudante de
Letras, entenda como a poesia nos exige atenção para o ritmo e nos convida a
uma leitura em voz alta. Após darmos ênfase a algumas das diferenças entre a
lírica arcaica e a lírica moderna, nossa aula ajudará a mapear algumas das
formas fixas do gênero lírico. Além disso, ganharão breve atenção elementos
como o eu lírico, algumas das figuras de linguagem presentes no texto poético
para a construção de sentidos e, ainda, uma breve retomada da explicação para
que você seja capaz de realizar o processo de escansão de um poema
(contagem e reconhecimento das sílabas poéticas).
Seguindo a nossa praxe, esta aula conta com uma divisão em seções, o
que permite a organização das principais ideias e, claro, a retomada dos temas

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que você desejar estudar. Sendo assim, a disciplina apresenta as seguintes
etapas:

1. Contextualizando;
2. Algumas formas fixas da lírica;
3. O eu lírico;
4. O processo de escansão;
5. Figuras de sonoridade, pensamento e contiguidade;

É sempre importante reforçar que, ao falar de literatura, espera-se que a


leitura seja sempre uma ação presente e necessária. Que possamos
estabelecer um diálogo profícuo até o final desta aula, (re)descobrindo um
mundo chamado literatura.

TEMA 1 – CONTEXTUALIZANDO

Se o gênero narrativo parece seguir gozando da maior predileção e da


atenção dos leitores contemporâneos, não parece ser exagero dizer que a
poesia – mesmo para aqueles que não são da área de Letras – segue
conservando certo status quo como ferramenta de expressão e da emoção
humana. A razão mais epidérmica, talvez, deve-se a uma herança de uma
compreensão não da lírica como nos tempos clássicos, mas de uma aspiração
que nasceu no século XVIII, com o Romantismo alemão.
Ainda nos tempos clássicos, Platão foi o primeiro a pensar a respeito da
poesia, percebendo-a, no entanto, de forma negativa, uma vez que o seu
discurso estava arquitetado em uma perspectiva que destoava daquilo que o
filósofo intitulava como mundo ideal ou mundo das ideias. Mais uma vez, foi
Aristóteles o responsável por dar vazão à expressão poética, justamente a partir
de uma obra comentada em nosso encontro passado: a Poética. Ao valorizar a
função do poeta e enaltecer a capacidade de imitação da realidade, a
perspectiva aristotélica acabou permitindo um novo tempo de atenção e de
valorização do que hoje chamamos de lírica.
Cria-se a ideia da lírica como um termo posterior ao período helênico,
justamente porque o lirismo foi uma definição generalizada perpetuada
principalmente na Modernidade. Para a tradição clássica, a lírica era apenas uma
das possibilidades de expressão da poesia, relacionada à forma como os gregos
cantavam os temas com base no acompanhamento da lira, um instrumento

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musical. Tratava-se, pois, de uma espécie de harpa, confeccionada, muitas
vezes, a partir de chifres de bode. Suas cordas provinham de tendões ou tripas
de animais, tais como bois e carneiros. Na Figura 1, é possível observar uma
ilustração que retrata o deus Dionísio tocando a lira:

Figura 1 – Dionísio tocando uma lira

Fonte: Eroshka/Shutterstock.

No período helenístico, entre os séculos IV. a. C. e II a. C., a nomenclatura


utilizada para se referir ao que chamamos de gênero lírico ou lírica era, na
verdade, mélica (etimologicamente, ligada à ideia de canção). Essa simples
diferenciação tipológica – mélica para a tradição helênica e lírica a partir da
Modernidade – já nos ajuda a perceber uma das grandes características entre a
lírica grega arcaica e a lírica moderna: para os gregos, a poesia sempre foi uma
ação, um artifício da cultura oral e uma manifestação para eventos que poderiam
ser desde banquetes até mesmo funerais. Em contrapartida, na era Moderna, o
gênero lírico se forja com base no caráter íntimo com o qual estamos
acostumados, relacionando a poesia a um contexto escrito, uma manifestação
literária fruída, em geral, por meio do silêncio e da introspecção. Ao discorrer
exatamente sobre as diferenças entre a lírica arcaica grega e a lírica moderna,
o professor Rocha (2012, p. 85) ajuda-nos a contextualizar:

As composições dos nove autores do chamado Cânone da poesia lírica


grega arcaica, ou seja, Álcman, Safo, Alceu, Estesícoro, Íbico,
Anacreonte, Simônides, Píndaro e Baquílides, foram produzidas para
serem cantadas com acompanhamento de um instrumento musical,
geralmente da família dos cordofones, como a lira ou a cítara. Muitas
vezes essas canções eram acompanhadas de dança também. Sendo

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assim, do ponto de vista do modo de apreensão/apreciação, a lírica
grega arcaica era transmitida de uma maneira completamente diversa
do modo como a poesia é publicizada hoje em dia, através da leitura
geralmente silenciosa de um texto.

Como dito no parágrafo anterior, se a invenção dos tipos móveis na


imprensa catapultou o desenvolvimento do gênero narrativo, no caso da poesia,
parece que a difusão da cultura letrada e do plano escrito acabou fazendo com
que a relação com a lírica se afastasse de sua verve oral, sonora, com caráter
“funcional e [que] estava ligada ao contexto social, religioso e histórico em que
estava inserida” (Rocha, 2012, p. 91). Na obra Análise de textos literários: poesia
(2017), a pesquisadora Silvana Oliveira (2017, p. 21) ratificará como “com o
advento da escrita – a prática de composições líricas afastou-se
significativamente da música e do acompanhamento por instrumentos musicais,
mas manteve a estrutura de ritmo que diferencia um texto lírico de um texto de
outra natureza”.
O fato é que o impacto de uma cultura voltada ao plano escrito acabou
privilegiando uma espécie de mitificação do gênero lírico, uma resolução
apressada na qual a poesia acabou se transformando, muitas vezes, em algo
mais distante, complexo e elaborado. Como estudantes de Letras, é exatamente
tal raciocínio que precisamos ajudar a fissurar, buscando uma chave distinta para
estudar e, principalmente, fruir o texto poético.
Um texto seminal que nos ajuda a pensar no gênero lírico, na poesia,
diante de todo o seu potencial é o ensaio “O arco e a lira”, texto de 1956, do
teórico Octavio Paz. Do ponto de vista dos olhos críticos de Paz, seremos
convidados a (re)descobrir e experimentar as múltiplas características da lírica:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação


capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por
natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A
poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito.
Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração,
respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a
ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero.
Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia.
Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão
histórica de raças, nações, classes. (Paz, 1982, p. 15)

Ao longo de toda a sua obra, Paz oferecerá um raciocínio potente para


pensar nas sinuosidades e características da lírica, exemplificando o quão atual
é o texto poético para a produção de sentidos. Em sua reflexão, acaba não
passando despercebida a forma como o gênero lírico acabou sendo enlaçado

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por uma perspectiva desenvolvida no Romantismo, em que a interioridade e a
subjetividade se fundamentam como os grandes eixos discursivos:

De acordo com o conceito de poesia lírica que nós herdamos do


Romantismo, poesia lírica é aquela na qual o “eu” do poeta se expressa
de modo declarado, colocando no texto suas emoções, suas opiniões
pessoais, suas impressões sobre o mundo, a natureza,
acontecimentos históricos ou particulares. De acordo com essa
tradição, que encontra seu principal sistematizador em Hegel, na
poesia lírica se derrama a subjetividade e a interioridade do poeta. Por
isso, ela precisa ser verdadeira e precisa tratar de experiências reais
vividas pelo poeta. E, em se tratando de sentimentos, um tema
muito comum na poesia lírica romântica e moderna é o amor.
(Rocha, 2012, p. 89, grifos nossos)

Em língua portuguesa, a temática do amor, presente na poesia, encontrou


em distintos nomes da literatura uma fonte irradiadora de ideias, projetos
poéticos que se tornaram parte do imaginário de muitos de nós. Em nossa
formação na Educação Básica, fomos apresentados ao gênero lírico com a ajuda
de nomes como Cruz e Souza, Gregório de Matos, Álvares de Azevedo, Olavo
Bilac, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Paulo
Leminski, entre outros. Como não saber de memória alguns dos versos do
soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís Vaz de Camões?

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

(Camões, 1963, p. 278).

Presentes em nosso imaginário e retomado por diversos escritores e até


mesmo cantores da música popular brasileira, os versos do poema anterior
acabam assumindo duas funções fundamentais para a discussão desta
disciplina: a primeira – e, talvez, a mais importante –, reforçando o quanto o
gênero lírico tem total relação com a sonoridade e escolha das palavras, com o

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nosso envolvimento enquanto leitor, apresentando como única exigência a
nossa paciência para frui-lo sem pressa; a segunda, para nos fazer pensar que
a poesia não está limitada à temática amorosa, sendo um gênero aberto para
expressar diferentes sentimentos com base no eu lírico (da voz do poema). Com
o auxílio da ótica das diferentes contribuições de pesquisadores dos estudos
literários, é possível vislumbrar como o gênero lírico foi também escolhido como
manifestação para versar a respeito da angústia do homem moderno, dos
silêncios impostos por tempos de ditadura, de temas frívolos e rotineiros e, claro,
até mesmo dos limites da própria literatura (bastaríamos pensar nos projetos
poéticos de Charles Baudelaire, Carlos Drummond de Andrade, Ana Cristina
César, Oswald de Andrade etc.).

TEMA 2 – ALGUMAS FORMAS FIXAS DA LÍRICA

Em nossa experiência nas aulas de literatura no Ensino Médio, é habitual


que os estudos atrelados ao gênero lírico acabem sendo limitados à verificação
do rigor com a estrutura a partir do reconhecimento de certas formas fixas
possíveis. Tal como destacado desde as nossas aulas anteriores, nosso desafio
é justamente retomar questões importantes e que servirão de base para a sua
análise crítica ao longo do seu percurso como estudante de Letras, mas, ao
mesmo tempo, reforçar que a relação com o literário deve ir além de uma
memorização ou apreço pela taxonomia, pela classificação. O que se quer dizer
com isso? Não é importante saber as formas da lírica? Claro que sim. Significa
apenas que tão importante quanto identificar mecanicamente uma forma como
o soneto é dar sentido a tal estrutura para o funcionamento e a criação de
significados de um dado poema. Como aluno de Letras, devemos nos basear
sempre no pressuposto de desconfiar de certa ordem vigente, questionando
verdades congeladas e refletindo sobre a tradição. Mediante essa postura crítica,
será possível entender que a forma é mais do que um padrão para escrever,
reverberando questões como um contexto histórico e cultural, além de viabilizar
mecanismos para expandir efeitos e sensações.
Esclarecido tal ponto, podemos voltar a nos dedicar a pensar em
características específicas do gênero lírico. Se a narratologia aponta elementos
específicos para toda e qualquer narrativa (narrador, enredo, personagens,
tempo e espaço), na poesia, também podemos pensar em formas e padrões
escolhidos para definir a arquitetura de tal gênero. É válido relembrar, claro, que,
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desde o Modernismo, no caso do Brasil, diferentes escritores parecem dispostos
a discutir e fissurar padrões clássicos mais rígidos. No entanto, vale sempre
lembrar que mesmo os projetos líricos que quebram a lógica da estrutura e de
padrões de metrificação, de alguma maneira, acabam dialogando com certa
tradição.
De forma preliminar, no que diz respeito ao encadeamento de enunciados,
pode-se atestar que o gênero lírico está caracterizado pelo uso de versos (a
unidade, cada linha de um poema) e estrofes (conjunto de versos agrupados).
Com base nesses dois elementos formais que caracterizam, comumente, a lírica,
é possível arrolar algumas formas que foram utilizadas por poetas, desde
Petrarca até Leminski. Listaremos abaixo alguns exemplos que serão estudados
por você ao longo do curso e que servirão com um guia em um momento de
consulta e futura análise:

2.1 Soneto

Trata-se, sem dúvida, da forma mais tradicional e revisitada por


diferentes escritores e escolas literárias. Composto por dois quartetos (estrofes
com quatro versos) e dois tercetos (estrofes com três versos), a criação do
soneto está diretamente ligada ao nome de Petrarca. Uma de suas marcas é a
sua isometria, ou seja, o fato de todos os seus versos serem compostos pelo
mesmo número de sílabas poéticas (em geral, dez ou doze sílabas poéticas).
Por conta de sua estabilidade e apreço pela forma, o soneto acabou sendo a
forma fixa mais utilizada por escolas como o Parnasianismo, por exemplo. Em
muitos casos, o soneto usa o último verso como uma espécie de chave de ouro,
sendo responsável por apresentar o eixo temático de todo o poema. Outra
característica é o uso de rimas, seguindo uma formulação ABAB ou ABBA para
quartetos; e CDC, DCD ou CDE, no caso dos tercetos.
Para ilustrar a nossa explicação, observe na página seguinte o poema “Ao
dia do juízo”, do escritor brasileiro Gregório de Matos (2012):

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Ao dia do juízo

O alegre do dia entristecido, A


O silêncio da noite perturbado B
O resplandor do sol todo eclipsado, B
E o luzente da lua desmentido! A

Rompa todo o criado em um gemido, A


Que é de ti mundo? onde tens parado? B
Se tudo neste instante está acabado, B
Tanto importa o não ser, como haver sido. A

Soa a trombeta da maior altura, C


A que a vivos, e mortos traz o aviso D
Da desventura de uns, d’outros ventura. C

Acabe o mundo, porque é já preciso, D


Erga-se o morto, deixe a sepultura, C
Porque é chegado o dia do juízo. D

2.2 Rondó

A forma rondó tem relação direta com a tradição literária portuguesa,


fazendo alusão à ideia de roda, de movimento em marcha, que se repete. Sobre
a forma, os poemas são compostos por estrofes com quatro ou oito versos e
os versos, em geral, têm sete sílabas poéticas.

2.3 Epigrama

Bastante presente na lírica clássica, a forma epigrama se caracteriza por


sua brevidade. Usada para contextos festivos ou de sátira, o epigrama busca
sempre formulações que pareçam bem realizadas, não usuais e criativas.

2.4 Elegia

Trata-se, também, de outra forma tradicional da lírica arcaica grega. Em


geral, é utilizada para construir um eu lírico que tem um grande pesar ou
tristeza, sendo utilizada, muitas vezes, para homenagens a mortos.

2.5 Ode

Ao contrário da elegia, a forma ode é dedicada a contextos mais


positivos ou de comemorações. No período moderno, por exemplo, essa
forma acabou ganhando relevância por estar atrelada a sentimentos elevados
do eu lírico, ajudando a cantar vitórias em batalhas. Para valorizar o tom de

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celebração, a ode é escrita para ser cantada em coro e acompanhada por uma
música. Quanto à estrutura, as estrofes são simétricas.

2.6 Haicai

Diferente das demais formas apresentadas anteriormente, o haicai


provém de uma tradição oriental do gênero lírico. O termo japonês haicai
(podendo ser encontradas variantes como haicu e haikai) é o resultado da
justaposição de dois morfemas hai e cai, que significam, respectivamente,
brincadeira e harmonia. Por conta da explicação etimológica, é possível inferir
que tal forma fixa prima pelo jogo e sincronia com a natureza das palavras.
Tal como o epigrama, o haicai é um poema breve, composto apenas por três
versos, sendo que o primeiro e terceiro devem conter cinco sílabas poéticas e o
segundo sete sílabas. O poeta paranaense Paulo Leminski apresenta diferentes
poemas compostos com base nessa forma fixa.

TEMA 3 – O EU LÍRICO

Ao pensarmos no gênero lírico, é fundamental termos em nosso horizonte


de perspectiva um elemento que se revela como a voz do poema: o eu lírico ou
eu poético. Quando estudamos os elementos da narratologia, foi destacada a
função do narrador como uma espécie de “olho da câmera”, a força que conduz
e determina o foco narrativo, isto é, a forma como determinado enredo e história
serão contados. No caso da poesia, o eu lírico se constitui como a fonte de
enunciação, a voz que irá impactar certa coletividade. Ao pensar a partir do
contraste entre os gêneros narrativo e lírico, a pesquisadora Silvana Oliveira
define o eu lírico como “a voz poética que expressa as emoções e os sentimentos
presentes no texto” (Oliveira, 2017, p. 52).
Por meio da voz e da construção do eu lírico, teremos, como leitores,
acesso ao poema, acompanharemos o seu discurso e, assim, construiremos
significados com base no que foi dito. O eu lírico é uma construção enunciativa,
que só existe na diegese, ou seja, no próprio poema. É preciso, portanto,
diferenciar eu lírico e poeta, o responsável pela escrita de determinado texto.
Para pensar nessa importante diferenciação, Oliveira (2017, p. 52-53) traça o
seguinte raciocínio:

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Quando escrevemos uma carta de amor para nos declararmos a
alguém, estamos expressando um sentimento pessoal, íntimo, que só
diz respeito a nós mesmos e à pessoa a quem se dirige a carta. Já
quando se escreve um poema de amor, no entanto, a voz que fala no
poema atinge a coletividade, não se limitando a expressar algo pessoal
e singular.

Para pensar no eu lírico como agente discursivo e eixo para a construção


da voz do gênero lírico, poderíamos voltar ao soneto de Gregório de Matos
apresentado na seção anterior. Em “Ao dia do juízo”, será possível perceber um
eu lírico que ajuíza sobre a morte e que parece se preparar para o desligamento
do plano com os vivos. Usando perguntas retóricas – “Que é de ti mundo?”;
“Onde tens parado?” – o eu lírico se faz questionador, escancara como o dia do
juízo é ambíguo e revela-se como uma potente antítese. Milagre para alguns,
fonte de tristeza e desespero para outros. Usando a sonoridade das rimas e o
efeito de oximoro (claro-escuro) entre pares de palavras como
alegre/entristecido, resplendor/eclipsado, não ser/haver sido, em tom crítico,
parece atirar-se do precipício que é o instante e anunciar ao morto a hora de
encarar o que lhe resta no além-vida.

TEMA 4 – O PROCESSO DE ESCANSÃO

No caso do gênero lírico, em uma análise crítica de um poema, é


fundamental termos conhecimento de como se deve realizar a observação da
metrificação dos versos. Também chamada como escansão, é com base na
metrificação que definimos o número de sílabas poéticas de cada verso. A
primeira pergunta que pode lhe ocorrer com essa explicação simples é: mas,
afinal, por que contamos as sílabas poéticas dos versos? A explicação se deve
à gênese, isto é, à natureza do gênero lírico. Em nossa “Contextualização”,
destacamos o fato de a lírica estar diretamente ligada com o metro, com a ideia
de ação, de musicalidade, da palavra como canção. Desde o período clássico,
portanto, o gênero lírico buscou o uso das palavras por meio do ritmo. Ao
escrever um poema, será exatamente o número de sílabas poéticas que
permitirá que um texto construa a ideia de solenidade, de sátira, de alegria, de
tom prosaico etc. É por isso que, como estudantes e pesquisadores de Letras,
precisamos conhecer e dominar a escansão de um poema.
Depois da breve explicitação, é possível que a sua segunda dúvida seja
de ordem pragmática: mas, afinal, como se faz a metrificação de um poema?
Talvez a resposta mais estratégia seja que é necessário ler o poema em voz

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alta e se ouvir. A escansão está diretamente ligada com a identificação e a
separação das sílabas poéticas, que não são o mesmo que as sílabas que
aprendemos em nosso momento de alfabetização. Para pensar em sílabas
poéticas, é preciso observar cada palavra do ponto de vista de sua sonoridade,
levando em consideração que, por conta da leitura, podemos justapor duas
sílabas em uma, por exemplo. Além disso, na metrificação de um verso, só
contamos até a última sílaba tônica, dispensando as demais sílabas que,
porventura, possam fazer parte da última palavra.
Para que fique claro o processo de escansão, propomos a retomada do
poema “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís de Camões, citado no início
desta aula:

Amor é fogo que arde sem se ver

/A/ mor / é / fo/ go/ que ar / de / sem/ se/ ver; 10 sílabas poéticas
/É/ fe/ ri/ da/ que/ dói/ e/ não/ se/ sen/te; 10 sílabas poéticas
/É/ um/ con/ ten/ ta/ men/ to/ des/ con/ten/te; 10 sílabas poéticas
/É/ dor/ que/ de/sa/ti/na/ sem/ do/er; 10 sílabas poéticas

/É/ um/ não/ que/rer/ mais/ que/ bem/ que/rer; 10 sílabas poéticas
/É/ so/li/tá/rio an/dar/ por/ en/tre a /gen/te; 10 sílabas poéticas
/É/ nun/ca/ con/ten/tar/-se/ de/ con/ten/te; 10 sílabas poéticas
/É/ cui/dar/ que/ se/ ga/nha em/ se/ per/der; 10 sílabas poéticas

/É/ que/rer/ es/tar/ pre/so/ por/ von/ta/de; 10 sílabas poéticas


/É/ ser/vir/ a/ quem/ ven/ce, o /ven/ce/dor; 10 sílabas poéticas
/É/ ter/ com/ quem/ nos/ ma/ta/ le/al/da/de. 10 sílabas poéticas

/Mas/ co/mo/ cau/sar/ po/de/ seu/ fa/vor 10 sílabas poéticas


/Nos/ co/ra/ções/ hu/ma/nos/ a/mi/za/de, 10 sílabas poéticas
/Se/ tão/ con/trá/rio a/ si/ é o /mes/mo A/mor? 10 sílabas poéticas
(Camões, 1963, p. 278, grifos nossos)

Ao observar a escansão feita no poema do escritor português, será


possível perceber como a contagem das sílabas poéticas destoa de uma
separação silábica comum. Já no primeiro verso, atente-se ao fato de que há
uma junção sonora entre a conjunção “que” e a primeira sílaba da palavra “arde”,
fazendo com que tenhamos uma única sílaba poética: “que ar”. Haverá, portanto,
sempre a união entre duas vogais átonas (que não são fortes), justapondo a
vogal átona final com a outra vogal átona que inicia a palavra que segue. Tal
fenômeno é chamado na escansão de elisão (fenômeno que ocorre no poema
analisado de Camões nos versos 1, 6, 8, 10 e 12).
Com base na metrificação, será possível classificar os versos por conta
de suas sílabas poéticas. No caso do soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”,
temos a tradicional marca da estabilidade rítmica, com rimas ABBA-ABBA-CDC-
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DCD, apresentando sempre versos decassílabos (versos com dez sílabas
poéticas). Além de versos decassílabos, na tradição lírica, os versos mais
comuns são:

• Pentassílabos (versos com cinco sílabas poéticas, conhecidos também


como redondilha menor);
• Heptassílabos (versos com sete sílabas poéticas, chamados de
redondilha maior);
• Dodecassílabos (versos com doze sílabas poéticas, intitulados nos
estudos literários como versos alexandrinos; são bastante frequentes em
poetas clássicos e parnasianos, que buscam o refinamento sonoro e o
apuro pela forma).

Ainda sobre o que diz respeito aos versos, é fundamental saber que esses
podem ser classificados em regulares, brancos, polimétricos e livres. Versos
regulares, como é possível inferir, são aqueles que seguem uma regularidade,
um padrão métrico; os brancos são aqueles que não apresentam rimas comuns
entre si, ainda que uma métrica possa existir; os polimétricos representam os
casos em que há métricas distintas para formar um padrão melódico específico;
por último, os livres fazem alusão à liberdade, ao fato de não existir qualquer
padrão métrico (no Modernismo brasileiro, trata-se, inclusive, de um dos
parâmetros adotados para decretar a identidade de uma escola aberta à
inovação e avessa aos paradigmas anteriores).

TEMA 5 – FIGURAS DE SONORIDADE, PENSAMENTO E CONTIGUIDADE

Desde o início de nossa aula, buscamos ratificar o quanto o gênero lírico


está diretamente ligado à ideia da sonoridade e do ritmo das palavras. Na já
mencionada obra Análise de textos literários: poesia, Oliveira (2017, p. 114)
pondera sobre o fato de que “[p]ara uma percepção mais geral das diferenças
entre um texto poético e um texto não poético, o ritmo é um elemento
fundamental”.
Ainda que saibamos que o ritmo não será sempre uma obrigatoriedade da
lírica, é inevitável tomar tal característica como um ponto inicial de discussão e
reconhecimento. Para alcançar o efeito rítmico, ganha destaque o uso de
diferentes figuras de sonoridade, pensamento e contiguidade, que serão
mais ou menos frequentes de acordo com a forma fixa escolhida ou, ainda,

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atendendo a um interesse específico de cada eu lírico. Neste encontro, estão
destacadas a seguir algumas das figuras de linguagem fundamentais e que
poderão ser vislumbradas por você em futuras leituras críticas:

5.1 Aliteração

Trata-se da repetição de uma mesma consoante em um ou mais versos


do poema, construindo diferentes efeitos e sensações. Na escola simbolista
brasileira, especialmente em poemas de Cruz e Souza, é possível observar o
uso dessa figura de linguagem.

5.2 Assonância

Tal como ocorre na aliteração, a assonância se dá com base no processo


de repetição de um mesmo fonema. A grande diferença é que, nesse caso, a
multiplicação existente ocorre com sons de uma mesma vogal.

5.3 Antítese

Com base nessa figura de linguagem, o eu lírico pode construir imagens


destoantes e até mesmo antagônicas. A antítese caracteriza-se pelo uso de
imagens ou ideias contrárias, exatamente como podemos observar nos
poemas “Amor é fogo que arde sem se ver” e “Ao dia do juízo”, ambos citados
nesta aula.

5.4 Anáfora

Também voltada à ideia de repetição, essa figura de linguagem se


caracteriza, no entanto, pela redundância de uma palavra ou de termos ao
longo de um poema. Tal repetição se dá a partir do uso de um mesmo léxico
em certa posição do texto lírico (início, meio ou fim), tal como no poema “Belo
Belo II”, de Manuel Bandeira. O crivo pela repetição no caso do poema citado,
por exemplo, ajuda a construir a sensação de badaladas, valorizando ainda a
relação da consoante oclusiva [b] e a vibração ou onomatopeia criada pelo ruído
emitido por um sino.

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5.5 Hipérbole

Essa figura se caracteriza pela construção de exageros, marca comum


de eu líricos do período romântico, por exemplo.

5.6 Hipérbato

Caracteriza-se pela inversão sintática (ordem natural das palavras em


uma oração) para a construção dos versos. Essa figura é bastante recorrente na
poesia de uma fase de Gregório de Matos e, de forma geral, do que chamamos
como poesia barroca. As contorções sintáticas ajudam a valorizar certa ideia de
oposição e de conflito vividos pelo eu lírico.

5.7 Sinestesia

Em O estudo analítico de um poema (2006), o teórico brasileiro Antonio


Candido dedicará reflexão especial à capacidade de o gênero lírico construir
imagens sensoriais com base no uso de palavras e das sinuosidades da língua
como código. A sinestesia é, assim, a figura que personifica tal preceito,
valorizando o uso de diferentes sentidos (visão, tato, paladar, olfato e audição)
por parte do eu lírico.

5.8 Metáfora

De certa forma, constitui-se como uma das figuras mais comuns e


identificáveis. A metáfora é uma comparação estabelecida entre partes, mas de
maneira indireta, requisitando certa atenção por parte do leitor do poema.

5.9 Metonímia

Ao estudar a metonímia como exemplo de figura de linguagem, temos a


informação de que se trata de uma forma de tomar a parte pelo todo. Em um
poema, trata-se de uma figura de contiguidade, isto é, expressa a associação
de uma ideia com outra.

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NA PRÁTICA

Com base nas reflexões a respeito do gênero lírico, reflita:

1. A que se deve a transformação sofrida pela recepção da poesia ao longo


dos séculos?
2. Escolha um poema e nele identifique e explique como se constitui a voz
do eu lírico. Além disso, procure analisar quais são os elementos formais
utilizados (forma, tipo de verso, figuras de linguagem etc.) para a
construção dos significados no poema.

FINALIZANDO

Ao longo de nossas aulas tratamos de dar dimensão ao gênero lírico,


reforçando a sua relação simbiótica com a ideia de ação e da musicalidade.
Para tanto, foi necessário contextualizar algumas premissas da lírica grega
arcaica, ponderando o fato de que grande parte da nossa lógica para pensar a
poesia se fixou num preceito moderno, forjado principalmente com o romantismo
alemão.
Da mesma maneira, nos dedicamos nesta aula a pensar em elementos
constituintes da lírica, tal como o eu lírico, relacionado à voz plasmada em um
poema, assim como algumas das formas fixas utilizadas por algumas das
escolas literárias. Foi ainda possível destacar o processo de metrificação ou
escansão, retirando algumas das eventuais dúvidas sobre as sílabas poéticas.
Para finalizar o nosso diálogo, após discutir brevemente sobre o conceito de
estrofe e verso, arrolamos algumas das figuras de sonoridade, contiguidade e
pensamento utilizadas pelo texto poético e que são responsáveis pela
construção de diferentes sensações e significados.

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REFERÊNCIAS

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