Você está na página 1de 17

32698

Brazilian Journal of Development


Cuscús, suor e céu rasgado – sensualidade e imaginação:
A cosmovisão carnavalesca na poesia popular de Zé da Luz

Cuscus, sweat and torn sky - sensuality and imagination:


Carnival cosmovision in the popular poetry of Zé da Luz
DOI:10.34117/ bjdv6n5-641

Recebimento dos originais: 20/04/2020


Aceitação para publicação: 31/05/2020

Maria Silvânia Santos de Oliveira


Mestranda do Curso Ciências da Educação Pela Atenas College University
Instituição: Atenas College University
Endereço: Rua Urcicino de Albertins, 17 A- Loteamento Maracajá, Surubim –PE, Brasil,
CEP: 55750-000
E-mail: silvaniafernendes2@hotmail.com

Graciela Ferreira Da Silva


Mestranda do Curso Ciências da Educação Pela Atenas College University
Instituição: Atenas College University
Endereço: Rua Manoel José Pessoa,93 A- Bairro São Sebastião, Surubim –PE, Brasil,
CEP: 55750-000
E-mail: gfsilva22@hotmail.com

Nagraely Dos Prazeres Sousa


Mestranda do Curso Ciências da Educação Pela Atenas College University
Instituição: Atenas College University
Endereço: Aroeiras, 05 – Zona Rural, Bom Jardim –PE, Brasil, CEP: 55730-000
E-mail: nagraely@gmail.com

Nataely Prazeres Sousa Tomas


Mestranda do Curso Ciências da Educação Pela Atenas College University
Instituição: Atenas College University
Endereço: Rua A 481, Umari, Bom Jardim –PE, Brasil, CEP: 55730-000
E-mail: nataelysousatomas@gmail.com

Josivaldo Custódio da Silva


Doutor em Literatura e Cultura pelo PPGL/UFPB e Pós-Doutor em Teoria da Literatura, com
ênfase em Literatura Popular pelo PPGL/UFPE. Professor de Literatura Brasileira e Literatura
Popular do Curso de Letras da UPE - Campus Mata Norte
Endereço: Rua Amaro Maltês De Farias, Nazaré Da Mata PE- 55800-000
E-mail: josivaldocsilva@yahoo.com.br

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32699
Brazilian Journal of Development
RESUMO
No plano artístico, a obra carnavalizada tomada em sua essência é instrumento transformador e
renovador da realidade oficial. Estudiosos como Bakhtin, discorrem sobre a carnavalização na obra
de arte, especialmente na literatura, no nosso caso a poesia matuta de Zé da Luz. Nosso objetivo é
mostrar na poética do poeta paraibano as principais características da carnavalização como a
ambivalência e a universalidade, pois na perspectiva carnavalesca, sua poesia nos releva elementos
que num só momento degenera e regenera o comportamento da raça humana. Assim, há elementos
específicos que caracterizam sua poética como carnavalizada, porque o eu poético muitas vezes nos
revela a inversão da ordem com sua multiplicidade de sentidos, uso de elementos subversivos, o
destronamento e regeneração do que é oficial. A poesia carnavalizada de Zé da Luz é ousada na
medida em que nos remete ao sensual, quebrando as regras do comportamento estético da poética
convencional.

Palavras-chave: Zé da Luz, Literatura Popular, Poesia Matuta, Carnavalização.

ABSTRACT
On the artistic level, the carnivalized work taken in its essence is transforming and renewing
instrument of official reality. Scholars such as Bakhtin, discourse on the carnivalization in the
artwork, especially in literature, in our case Matuta poetry Zé da Luz Our goal is to show the poetics
of Paraiba poet key features of carnivalization as ambivalence and universality, because in
carnivalesque perspective, his poetry falls on the elements in a single moment degenerates and
regenerates the behavior of the human race. Thus, there are specific elements that characterize his
poetic as carnivalized, because the poetic self often reveals reversing the order with its multiplicity
of meanings, use of subversive elements, the dethronement and regeneration of what is official. The
carnivalized poetry Zé da Luz is bold in that it reminds us of the sensual, breaking the rules of
conventional poetic aesthetic behavior.

Keywords: Zé da Luz, Popular Literature, Matuta Poetry, Carnivalization.

1 INTRODUÇÃO
A poesia é universalmente considerada como algo que desperta sentimentos, beleza, encanto
e humor, ao mesmo tempo em que nos atrai e nos humaniza como toda obra literária (CANDIDO,
1995). Uma variante do gênero lírico é a poesia popular com todas suas formas e sentidos, e que
possui como uma de suas grandes expressões o poeta Severino de Andrade Silva, conhecido
popularmente como Zé da Luz1. Sua poesia matuta2 é rica em elementos característicos do povo
nordestino, apresentando muitas vezes uma linguagem objetiva, crítica, que assume muitas vezes o
tom carnavalesco, nos despertando a reflexão e ao riso. As reflexões são por causa da carga poética
que possuem as palavras e da maneira crítica como são dispostas no texto lírico; o riso é provocado
por conta da roupagem que se dá a elementos naturais do dia a dia, estes quando dispostos no texto

1
Nasceu em 29 de março de 1904 no município de Itabaiana-PB e faleceu no Rio de Janeiro em 12 de fevereiro de
1965.
2
O termo matuto é decorrente do uso de palavras não usadas pela norma culta. No entanto, esse estilo poético não causa
nenhum prejuízo quanto à linguagem literária do poema.
Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761
32700
Brazilian Journal of Development
assumem uma imagem grotesca e ao mesmo tempo bela, despertando o interesse, aflorando
sensações íntimas do leitor.
Pensar a poesia desse autor a partir dos pressupostos da carnavalização é possibilitar novas
leituras de sua obra, uma vez que ainda há escassez de estudos sobre esse poeta popular. Com base
nos conhecimentos prévios a respeito da carnavalização, fica evidente que há ainda muito que se
esclarecer na poética de Zé da Luz, como mostrar não apenas o discurso lírico que
convencionalmente, de uma forma geral, mostra-se belo, mas o lírico que revela a ambivalência, o
belo e o feio amalgamados.
Quando falamos em poesia, a primeira imagem que nos vem à mente é inegavelmente de
algo belo, com palavras encantadoras, sobretudo, as que nos despertam sensações maravilhosas. Ao
lermos a poesia de Zé da luz, em algumas passagens, nos deparamos com vocábulos que, no primeiro
momento, nos causam estranhamento, seguidos da imediata sensação de repulsa, visão
degeneradora, porém, esquecemos o lado regenerador de sua produção. Assim, pretendemos neste
breve estudo, discutir a carnavalização e evidenciar a função ambivalente na poesia popular escrita
desse poeta matuto.
Dessa forma, pois, elucidamos algumas análises que nos mostram como a poesia de Zé da
Luz é lírica amorosa e ao mesmo tempo, recheada de elementos subversivos, forte característica da
carnavalização que eleva o feio, o baixo e alto corporal, o grotesco, ridiculariza o perfeito, a
seriedade sem medida, a fidelidade à estética.
Buscando refletir sobre o conceito de carnavalização e sua aplicabilidade nos textos poéticos
da Literatura Popular, enquanto os embeleza e os recria, sob uma nova visão entre o belo e o feio,
tomamos como base a poesia de Zé da Luz, poeta paraibano como uma rica poesia popular cantada
nas feiras, nas ruas e valorizada pelo povo. Povo este de quem tomou emprestada a voz, elemento
transformador e revelador, para torná-la a poesia popular escrita, com índice de oralidade
(ZUMTHOR, 1993), conhecida por sua métrica, ritmo, rimas e oração (linguagem poética).

2 PERCURSO TEÓRICO E ANÁLISE CRÍTICA DA POESIA DE ZÉ DA LUZ


Falar sobre carnavalização na cultura popular é antes de tudo admitir uma quebra com o
padrão oficial da literatura, visto que esta, a carnavalização, se constitui na lógica da inversão, na
qual quase sempre o medo é vencido pelo riso. É interessante notar como os poetas populares lançam
mão deste recurso para darem as suas criações a forma e tom necessário para despertar o riso, o
gracejo e de repente o que se mostrava feio tornar-se bonito. A disposição das palavras, dentro de
um contexto situacional, que vai além do que os nossos olhos podem ver, criam imagens

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32701
Brazilian Journal of Development
significativas e transformadoras da realidade descrita, ou seja, a forma como se diz algo, a seleção
das palavras é determinante para obter-se o resultado esperado, a palavra oral ou escrita é assim
elemento fundamental ao sucesso da produção literária popular carnavalizada.
Atentos ao fato de a origem da poesia popular estar diretamente relacionada à oralidade
de forma direta ou indireta, julgamos necessária a compreensão do poder das palavras como
elemento fundamental à construção do texto na poética popular. Como nos diz Zumthor (1997, p.
15):

A enunciação da palavra ganha em si mesmo valor de ato simbólico: graças á voz,


exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro;
interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o objeto de seu
desejo: o som vocalizado vai interior a interior e liga, sem mediação, duas
existências.

Na poesia carnavalizada, a palavra tem valor ambivalente, degenerador e regenerador, o alto


e o baixo corporal são integralizados. Tendo como órgão reprodutor a boca, responsável dentre
outras coisas pela sucção, a voz tem em si o poder de nos chamar atenção, mais que um gesto ousado
ela sensualiza nossas atitudes pela maneira de nos expressarmos, é possível se apaixonar pela voz
mesmo frente a uma aparência física desgastada, o contrário pode não acontecer. Torna-se a voz
instrumento sensual expelido pela boca: adentra os ouvidos, estremece o corpo e domina o coração,
desprezando a razão, a lógica.
Zé da Luz tem uma maneira peculiar de nos envolver em sua poesia carnavalizada, primeiro
porque se utiliza de uma linguagem simples depois porque, com o jogo de grafemas adequados, cria
imagens fortes que nos fazem parar e refletir, nos levando para dentro do contexto que o eu lírico
vivencia. Vejamos um pequeno trecho de seu poema A cacimba:

Quando eu vejo essa cacimba,


Qui ispio a minha cára
E a cára torno a ispiá,
Naquélas água quilára
Pégo logo a desejá...

...Desejo, praquê negá?


Desejo sê um caçote,
Cum dois óio dêsse tamanho!
Prá vê, aquêle magóte
De moça tumando banho!!
(LUZ, 1999, p. 47, grifo nosso).

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32702
Brazilian Journal of Development
Podemos ver que não existe a preocupação com o vocabulário oficial, porém não deixa de
existir a literariedade, pois o poeta ao transmitir o seu pensamento, expondo o seu mundo excêntrico
que permite ao exprimido expressar-se livremente, cria um efeito estético e sedutor, indo além do
sentido denotativo, pois como afirma Perrone-Moisés (1990, p. 14) “O extremo desse desvio (ou
sedução) se chama poesia”. Aqui, o que é marginal torna-se central na perspectiva carnavalesca.
Quando se fala do desejo que é algo pertencente ao baixo corporal, através dos nossos órgãos
genitais, desejamos porque podemos ver, sentir, mesmo que não seja permitido socialmente relatar
tais desejos. Sendo a função regeneradora do rebaixamento grotesco responsável pela cosmovisão
carnavalesca do desejo, da ânsia que sente o eu lírico em ser um “caçote” que é a personificação do
homem, só para poder ver as moças tomando banho da forma que vieram ao mundo com seus corpos
femininos desnudos.
Podemos ver que nessas duas quintilhas heptassilábicas, o poeta apenas transmite o seu
pensamento com uma linguagem simples, expõe o seu mundo excêntrico que permite ao reprimido
expressar-se livremente, ou seja, o que é marginal torna-se central, livre e universalizante na
perspectiva carnavalesca, o desejo de ver algo.
Falando da linguagem lírica, que é de domínio subjetivo, temos a voz com o fio que liga os
elementos linguísticos dispersos em nossa mente, por isso é característico nos poetas populares um
vasto domínio da palavra vocalizada. Notemos, no trecho acima que por meio da linguagem
subversiva, a simples passagem de moças tomando banho em uma cacimba, com o jogo articulado
entre as palavras e os sinais de pontuação, torna-se um acontecimento rico em expressão literária.
A linguagem utilizada realiza a transposição do ato real e recria o imaginário astuto do eu lírico por
meio de uma voz particular idealizada em seu mundo utópico carnavalizado. Em Zumthor (1997, p.
13-14) a linguagem e a voz nos são apresentadas da seguinte maneira:

[...] a voz ultrapassa a palavra. [...] A voz não traz a linguagem: a linguagem nela
transita, sem deixar traço. Talvez, em nossa mentalidade mais profunda, a voz
exerça uma função protetora: a de preservar um sujeito que ameaça sua linguagem,
de frear a perda de substância que constituiria uma comunicação perfeita. A voz se
diz enquanto diz; em si ela é pura exigência. Seu uso oferece um prazer, alegria de
emanação que, sem cessar, a voz aspira a reatualizar no fluxo lingüístico que ela
manifesta e que, por sua vez, a parasita.
As emoções mais intensas suscitam o som da voz, raramente a linguagem: além ou
aquém desta, murmúrio e grito, imediatamente implantados nos dinamismos
elementares.
Cada sílaba é sopro, ritmado pelo batimento do sangue; e a energia deste sopro,
com o otimismo da matéria, converte a questão em anúncio, a matéria em profecia,
dissimula as marcas do que se perdeu e que afeta irremediavelmente a linguagem
e o tempo.

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32703
Brazilian Journal of Development
Na poética de Zé da Luz, apesar de ser uma obra escrita, mesmo assim, percebemos o uso
da linguagem oral e cotidiana do caboclo sertanejo. Na perspectiva do eu lírico, as aspirações são
simples, mas nos trazem imagens vislumbrantes do desejo contido no eu lírico e num tom de gracejo
e carnavalizado, livre das amarras impostas pela ordem social.
Discorrendo sobre o princípio da carnavalização, Bakhtin (1987, p. 8) faz o seguinte
comentário:

Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação


temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de
todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.

A ambivalência das imagens representadas realiza a permutação do alto e do baixo ou a


inversão da lógica habitual, onde os grandes são destronados e o inferiores elevados, fazendo valer
o princípio da literatura cômica popular que trata do inacabamento de tudo o que há e o dos baixos
regenerados, porque são também regeneradores de uma nova visão.
Tal inversão da ordem já acontecia nas manifestações carnavalescas da Idade Média
representadas em praça pública. Com o destronamento dos poderosos, recaia sobre o público o riso
livre, naquele momento não havia ali receios de punição, pois todos se igualavam sem quaisquer
hierarquização de pessoas e/ou papéis sociais, pois tudo era livremente aceito, levado ao tom da
brincadeira e da descontração momentânea. Portanto, havia nesse momento uma espécie de
liberdade total nas ações e comportamentos sociais.
Temos assim o grotesco como elemento da cosmovisão carnavalesca, este se justifica pelas
degradações próprias da cultura cômica popular, na qual os poemas aqui analisados fazem parte da
segunda categoria denominada por Bakhtin de “Obras cômicas verbais”. Vejamos a inversão da
ordem presente no poema Ai! Se Sêsse!..., do poeta Zé da Luz:

Se pró céu nós assubisse!?


Mas porém, se acontecêsse,
Qui São Pêdo não abrisse,
As portas do Céu e fôsse,
Te dizê quarquê toulíce?
(LUZ, 1999, p. 167, grifo nosso).

De acordo com a Bíblia Sagrada, sabemos que São Pedro é o dono das chaves da porta do
céu, é ele quem primeiro nos recebe, através de nossos espíritos, portanto, numa perspectiva cristã
devemos respeito e adoração a esse ser celestial. Mas o que faz o eu lírico? Ele rebaixa São Pedro a
condição humana, capaz de dizer alguma tolice, ou seja, traz o santo para o contato íntimo, “familiar
Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761
32704
Brazilian Journal of Development
e grosseiro”, terceira categoria da cultura cômica popular (BAKHTIN, 1987, p. 4). Pois só se fala
com tal liberdade quando se tem proximidade. Em situações normais, nenhum mortal temente iria
rebaixar São Pedro desta maneira, tratá-lo como a um amigo pessoal, participante de nossas
brincadeiras mais deselegantes. É esta disposição multifacetada que caracteriza a poesia de Zé da
Luz como popular carnavalizada, cria um São Pedro que não é o santo de nossa devoção, que tem a
sentença final, mas um camarada que nos conta tolices, uma situação inimaginável. Em sua obra
Introdução ao pensamento de Bakhtin, Fiorin fala sobre o aspecto familiar da carnavalização com
seu objeto de recreação e as múltiplas possibilidades de reescrita que a obra literária nos possibilita:

No carnaval, cria-se um tipo de relações humanas que se contrapõe às relações


sócio-hierárquicas da vida normal. As condutas, os gestos, as palavras liberam-se,
pois, da dominação das situações hierárquicas. Eles tonam-se excêntricos,
deslocados no ponto de vista da lógica habitual (homens vestem-se de mulher; a
linguagem torna-se obscena, não respeitando os limites da decência, do decoro; a
cueca é colocada na cabeça, etc). Questiona-se ludicamente todas as normas.
(2006. p. 92).

A carnavalização na poesia dá ao poeta maior liberdade para expressar o que deseja,


principalmente o grotesco. Um sentimento marcante nas obras carnavalizadas é o riso que
dessacraliza e relativiza as coisas mais sérias, por meio da zombaria e gozação, gerando a alegria.
Para isso a carnavalização buscará sempre trabalhar com conotações duplas, tratando, por exemplo,
do nascimento e da morte, da bênção e da maldição, do jovem e do velho, do agradável e do
desagradável, do bonito e do feio.
O poema As Flô de Puxinanã é uma paródia de As Flô de Gerematáia, do poeta cearense
Napoleão de Menezes, e “fala” a respeito das características físicas corporais de três irmãs:

A mais véia, a mais ribusta,


Era mêrmo uma tentação!
Mimosa flô dos sertão,
Qui o pôvo chamava Orgusta.

A sigunda, a Guilhéimina,
Tinha uns ói qui ô! Mardição!
Matava quarqué cristão
Os oiá dessa menina!
[...]
A tercêra, era a Maroca.
Cum côipo munto má feito.
Mas porém, tinha, nos peito
Dois cuscús de mandioca.

Dois cuscús, qui, prú capricho,

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32705
Brazilian Journal of Development
Quando éla passou prú eu,
Minhas venta se acendeu
Cum o chêro vindo dos bicho!
[...]
Iscuiendo a minha cruz
Prá saí dêsse embaráço,
Desejei, morrê nos bráço,
Da dona dos dois cuscús!!!
(LUZ,1999, p. 19-20, grifo nosso).

Verificamos neste trecho que, apesar da moça ter um corpo muito mal feito, há nela um
atributo que atrai ao homem, seus peitos são comparados a dois cuscuz de mandioca, uma
comparação com tom grotesco, porém, ambivalente. Cuscuz, símbolo de alimento primário para o
nordestino, algo forte, gostoso de comer e ainda muito cheiroso, ao ponto de despertar o olfato.
Hipoteticamente é uma situação engraçada, forma uma imagem grotesca que embeleza o fato. A
personagem Maroca não é apenas uma mulher de um corpo muito mal feito, ela é também uma
mulher que desperta desejos pela beleza de seus seios, e mesmo suas irmãs tendo atributos atrativos
é ela a escolhida do eu lírico para que ele possa morrer em seus braços, envolvido pela fortaleza dos
dois cuscuz. A paródia por si só já representa um tipo de carnavalização, justamente por seu caráter
ambivalente, onde se encontra respectivamente a voz do parodiado, voz séria, e do parodiante, voz
alegre e renovada, possibilitando a realização da relatividade das coisas. Seria em outras palavras,
criar uma nova situação, agora desprovida do compromisso com a seriedade, com a verdade ou
denotação, o bom é subverter a ordem das coisas provocando o riso desmedido nas pessoas.
Desde os primórdios da civilização, é sabido que a mulher tem o poder de envolver o homem
de diversas maneiras, e mesmo que este homem deseje se afastar, por vezes pode não conseguir.
Como mostra a poesia acima citada, quando a mulher é caracterizada como sendo a cruz, objeto
pesado relacionado na religião à punição ao “possível” pecado de Jesus Cristo, significa que o
símbolo da Sagrada Cruz é rebaixado a condição uma simples convivência entre duas pessoas. E
isso é provocado sob a pressão do desejo que já o consome, desejo esse que corresponde a uma das
características inata aos humanos. Dessa forma, o eu lírico deseja que ela, a mulher, entre e
permaneça em sua vida, para que o mesmo sinta-se realizado.
Aqui se esquece da moral, do sublime, da pureza, visto que é comum que na literatura
carnavalizada o baixo ocupe seu lugar como sendo algo positivo do ponto de vista da renovação que
ele traz, através da liberdade, igualdade, abundância e universalidade das coisas excêntricas que põe
tudo ao contrário. Em se tratando do riso e sua força corrosiva como instrumento carnavalizado,
Fiorin nos expõe:

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32706
Brazilian Journal of Development
A força corrosiva do riso leva a uma explosão de liberdade, que não admite nenhum
dogma, nenhum autoritarismo, nenhuma seriedade tacanha. O carnaval é uma festa
em que se bebe e se come muito. Tem uma força regeneradora, pois permite
vislumbrar que um outro mundo é possível, um universo onde reinam a abundância,
a liberdade, a igualdade. É a esfera da liberdade utópica, em que a cosmovisão
alternativa se mostra. (2006. p. 92- 93).

São nos pilares do riso por meio da representação de elementos que se encontram separados,
fechados em si mesmo, fazendo uso do sagrado e do profano, da sabedoria e da tolice, que a
carnavalização se situa como um movimento centrífugo, estabelecendo-se que: o carnaval é apenas
uma passagem, portanto, não deve ser levado tão a sério, mas valorizar a relatividade alegre das
coisas numa dada descontração de um discurso franco apoiado no contato livre e familiar, permitido
em um mundo sem barreiras, sem restrições, sem medo das hierarquias. Assim, a vida é posta
temporariamente ao contrário. Por sua força corrosiva o riso se faz presente na cultura carnavalizada
desde seus primórdios, é notado desde sempre em situações protagonizadas por diferentes homens,
nas ruas, tavernas, estradas, bordéis, estes são por ventura seus espaços favoritos. A literatura
carnavalizada é da praça, por ser um lugar que propicia o contato livre entre as pessoas, favorecendo
também a igualdade.
Na Idade Média, pouco se entendeu profundamente o riso popular e suas formas,
principalmente por parte dos intelectuais. Por muito tempo, observou-se o riso e a cultura cômica
popular da praça como indigna de estudos mais aprofundados. Por este motivo, o riso ocuparia
inicialmente apenas um lugar modesto na cultura popular, mas tinha sua importância e já se
mostrava oposto ás formas oficiais, sendo por isso possivelmente considerado não merecedor de
estudos específicos por parte de especialistas do folclore e histórias literárias na Idade Média e no
Renascimento:

No entanto, sua amplitude e importância na Idade Média e no Renascimento eram


consideráveis. O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se a
cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade,
essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos
cômicos especiais, os bufões e os tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de
diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. –
possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas na cultura cômica
popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (BAKHTIN,
1987, p. 3-4).

Não era realizada nenhuma festividade sem a presença de uma manifestação cômica para
divertir a multidão, quase sempre dirigida para a classe dominante feudal ou a religião, e ao longo
dos séculos tais manifestações ou rituais originaram uma linguagem de grande riqueza, para

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32707
Brazilian Journal of Development
expressar as formas e símbolos do carnaval, transmitindo a percepção carnavalesca do mundo. Nesta
linguagem própria, valoriza-se a expressão dinâmica das coisas, de modo que, todas as formas e
símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação,
da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Suas principais
características são: a lógica pelo avesso, permutações do baixo e do alto e diversas formas de
paródias que trazem a vista as profanações, como vimos no poema citado. Mas não podemos negar
que mesmo possuindo uma linguagem livre de regras conceituais, a paródia carnavalesca, que visa
despertar o riso, diferencia-se das paródias modernas, pois mesmo negando ressuscita e renova ao
mesmo tempo.
De modo geral, podemos dizer que a negação pura e simples quase sempre é ausente da
literatura popular, que não nega, mas recria a realidade oficial. Obras verbais em língua vulgar eram
comuns á literatura popular, o riso era ambivalente e festivo. A importância do riso na Idade Média
se evidencia ainda pela duração das festividades que poderiam durar até três meses seguidos.
Para ser carnavalizada, além do riso, uma obra precisa nos remeter a imagens renovadoras
por meio do grotesco, esclarecendo os aspectos de tais imagens, temos em Bakhtin:

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de


metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do
crescimento e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço
constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca. (1987, p. 21-22).

Para bem entendermos a imagem grotesca, vejamos um trecho da poesia As Flô de Puxinanã:

Três muié, ou três irmã,


Três cachôrra da mulesta,
Eu ví, num dia de festa,
No lugar Puxinanã.

A mais véia, a mais ribusta,


Era mêrmo uma tentação!
Mimosa flô dos sertão,
Qui o pôvo chamava Orgusta.
(LUZ,1999, p. 19, grifo nosso).

A mulher desde os tempos passados é tida socialmente, ou deveria ser, como algo delicado,
bonito de se ver. Poetas e escritores a enaltece em suas criações, no Romantismo ela era intocável,
a donzela idealizada como pura e bela. A mulher em Zé da luz é compara a uma cachorra. Aqui
percebemos que ele não trata do animal, mas das características da mulher e para mostrar sua
disposição, o poeta a rebaixa a um animal irracional. Sabemos ainda que uma mulher cachorra, por
Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761
32708
Brazilian Journal of Development
assim dizer, é aquela sem moral, presa fácil e desfrutável. Veja que a imagem criada é inicialmente
grotesca, mas a sua essência não, pois com o acréscimo de uma característica “da mulesta” ao
mesmo tempo a denigre e a eleva, ela não é apenas uma cachorra, mas uma cachorra da moléstia,
ou seja, ela é valente e disposta, um tipo de mulher que muitos sonham pra si, uma mulher de
qualidades tidas como admiráveis e elevadas.
Quem em situação convencional se atreveria a falar de uma mulher assim? Se isso ocorresse
não teria a mesma conotação, pelo contrário, seria tomado como uma ofensa e não como um elogio.
Fica clara a função da imagem grotesca carnavalizada, ela nos diverte, na medida que recria
determinada realidade do nosso cotidiano. No nosso caso, traz a tona um novo jeito de falar sobre a
mulher, um jeito livre e descomprometido com as formalidades sociais, mas que a descreve como
um ser forte e capaz dentro da perspectiva social, do meio em que a mesma se encontra inserida.
Ela é autora de sua própria história, não é mais aquela que baixava a cabeça para os anseios
masculinos, como ocorria nos séculos passados. Com jeito inovador de escrever, fazendo uso de
uma linguagem lírica amorosa, Zé da Luz carnavaliza o conceito feudal da mulher em tempos
passados e atualiza tal conceito, dando-lhe uma nova roupagem, com ênfase para as mudanças que
o perfil social da mulher sofreu ao longo dos anos. A evolução sistemática que permite ao sexo
feminino ter atualmente uma voz própria, dentro dos padrões oficiais que está inserida. A mulher
não é mais elemento figurativo, mas atuante, traduz o que diz o ditado popular: “Ao lado, ou à frente
de um grande homem, há sempre uma grande mulher”.
Ainda no poema anterior, a mulher é vista como uma tentação, elevando suas características
corporais, e ainda compara a uma “mimosa flôr dos sertão”. Imaginemos o que vem a ser uma flor
no sertão, espaço de solo seco, por essencial possui a aparência de improdutivo. No entanto, o poeta
além de enaltecer a beleza feminina de modo geral, não apenas a beleza física, a qual podemos ver
com esta comparação, revela a capacidade de adaptar-se às mais adversas situações que são próprio
das mulheres. Este aspecto também nos faz ver que a literatura cômica popular carnavalizada não é
banal, pois consegue fazer-se cômica sem perder sua beleza, o jogo que se faz com as palavras é
que vai, no entanto, desencadear tal magnitude.
Portanto, numa perspectiva geral do que vem a ser a carnavalização, Norma Discini (2006,
p. 84) faz a seguinte afirmação:

[...] Fica registrada a carnavalização como movimento de desestabilização,


subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, seja este pensado como
antagônico ao grotesco criado pela cultura popular da Idade Média e Renascimento,
seja este pensado como modo de presença que aspira a transparência e á

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32709
Brazilian Journal of Development
representação da realidade como sentido acabado, uno e estável o que é
incompatível com a polifonia.

A obra carnavalizada apresenta segundo os princípios da polifonia, uma multiplicidade de


vozes que se apresenta de diversas formas, dando vida ao texto, seguindo a intencionalidade do
autor frente ao que deseja despertar no leitor de modo geral. Observe como tais elementos são
contemplados na poesia A cacimba, de Zé da Luz:
[...]
Às água da cacimbinha
Tem um gôsto mais mió
Nem sargada, nem insôça...
Tem um gostinho do suó
Dos suváco déssas môça...

Quando eu vejo essa cacimba,


Qui ispio a minha cára
E a cára torno a ispiá,
Naquélas água quilára
Pégo logo a desejá...
[...]
(LUZ, 1999, p. 46-47, grifo nosso).

Geralmente, as águas das cacimbas são sempre límpidas e “gostosas”, “doces” por natureza,
por vir do subsolo, já chegam filtradas à nascente, tem um gosto puro e incompatível com as águas
“salgadas”. No entanto, a água da cacimba descrita no poema, onde as moças tomam banho, tem
um gosto ainda melhor. Aqui já começa nos causar uma espécie de curiosidade. O estranhamento
nos atinge quando se esclarece de onde vem o componente que torna a referida água melhor que as
outras, pois ela vem “dos suváco” das moças, do suor que ali despejam ao tomarem banho. É
inimaginável que alguém possa gostar de beber uma água anteriormente misturada com suor,
inclusive de uma parte comumente não muito cheirosa; uma água cheia de impurezas exaladas por
corpos sujos e/ou empoeirados.
Tomar água é uma necessidade intrínseca ao ser humano, ninguém consegue viver por muito
tempo sem tomar água doce e potável. A água salobra, mesmo sendo natural das fontes, não
consegue saciar a sede, pelo contrário, o uso contínuo pode causar danos à saúde, portanto, só
conseguimos saciar a sede tomando água doce. Sabendo disto, o poeta ao caracterizar o gosto da
água, a põe entre o salgado e o insosso, ou seja, dá-lhe um novo gosto uma forma particularizada de
água que a difere dos sabores das fontes convencionais. Notamos assim, a transposição do líquido
insípido, inodoro e incolor, sobre um novo líquido particularizado, criado para “saciar” a sede do eu
lírico.

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32710
Brazilian Journal of Development
A transformação mais carnavalizada está na transposição conceitual da sede que sente o eu
lírico, que não é de fato a necessidade da ingestão de água, mas o sacio do desejo que sente ao ver
as moças tomando banho. Aqui a fonte torna-se um lugar paradisíaco e único. O aspecto do grotesco
vem da mistura do suor, que na visão do eu lírico torna a água ainda mais límpida e gostosa. É a
regeneração na arte poética, o que para nós seria impensável, ao poeta torna-se belo, uma beleza
diferente da habitual. Contudo, compreensível a partir da exposição das palavras adequadas a
inserção do leitor no mundo do eu lírico, que se revela observador e atento às pequenas
peculiaridades que enriquecem o corpo do poema, na medida em que descreve uma situação
corriqueira das moças do sertão.
O banho nos é apresentado como elemento sensual, para realizarmos esta ação, comumente
precisamos estar sozinhos, é o momento mais oportuno para conhecermos o nosso corpo, é quando
nos tocamos e livremente, por estarmos a sós, podemos fazer descobertas relevantes à realização do
prazer. Está é uma ação tida como elevação da realização dos prazeres carnais, isto é feio aos nossos
olhos, mas na poética popular carnavalizada, Zé da Luz introduz quase que de maneira imperceptível
este aspecto natural pertencente à raça humana. O banho nos limpa das impurezas externas, mas não
nos limpa das impurezas internas, dos desejos carnais, este é mais um aspecto observável na
regeneração da poesia, enquanto nos expõe ao mundo não oficial intercalado ao mundo imaginado
e real. É uma forma que o poeta encontra de nos mostrar a realidade de modo conotativo e ao mesmo
tempo reconstrutor da realidade já existente, mesmo que proibida de ser descrita explicitamente,
seja de forma escrita ou oral.
Assim, quando transposta a cena para o cenário da poesia popular, tudo ganha um novo
sentido, ou seja, é a multiplicidade de vozes falando no poema sobre a intencionalidade do autor.
Este por sua vez, em uma leitura mais atenta nos faz ver toda a poeticidade existente naquela
situação de aparente repulsa. Pois o suor é sinal de vida e metaforicamente bebê-lo é sinal de trazer
para dentro de si o outro, ou pelo menos uma porção dele. O desejo, e porque não o amor, são
sentimentos nobres, superiores ao nojo e ao rejeitamento, quando se deseja se quer por completo, o
que é amargo se torna doce, enfim, o feio se torna belo. Sendo no enroscamento das sensações,
esquecido o malfeito e afloradas as características propícias a realização de um desejo
particularizado, sensualiza-se a imagem grotesca para se chegar a imagem mítica do belo intrínseco,
de uma realidade que é imperceptível à grande massa, justamente por seu caráter subjetivo.
Para muitos o carnaval pode apresentar um sentido único, o de festejos plenos desregrados,
mas de fato o carnaval é uma manifestação de múltiplos sentidos, apresenta desde sempre diversos
ritos populares, variando ainda de região para região. A origem do carnaval, entretanto, está ligada

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32711
Brazilian Journal of Development
segundo Burke (apud ARRUDA, 2009) a três elementos principais: comida, sexo e violência. A
comida é associada à carnalidade, termo que por associação ajudou a compor a palavra carnaval,
naquele tempo havia vasta exploração dos instintos primários e consumação da gula. A liberdade
aflorada nessas ocasiões oportunizava a ocorrência do sexo, a violência vinha juntamente com
expressões agressivas, palavras de baixo calão, que por vezes denunciavam as peripécias das
autoridades. Observemos o poema, agora completo, Ai! Se Sêsse!... e a maneira inovadora que nos
é apresentada a violência gerada pela força:

Se um dia nós se gostásse; A


Se um dia nós se querêsse; B
Se nós dois se impariásse; A
Se juntinho nós dois vivêsse! B
Se juntinho nós dois morásse; A
Se juntinho nós dois drumisse; C
Se juntinho nós dois morresse! B
Se pró céu nós assubisse!? C
Mas porém, se acontecêsse, B
Qui São Pêdo não abrisse C
As portas do Céu e fôsse, D
Te dizê quarquê toulíce? C
E se eu me arriminásse A
E tu cum eu insistisse, C
Prá qui eu me arrezorvêsse B
E a minha faca puchásse, A
E o buxo do céu furasse?... A
Tarvez qui nós dois ficásse A
Tarvez qui nós dois caísse, C
E o céu furado arriásse A
E as Virge tôdas fugisse!!! C
(LUZ, 1999, p. 167, grifo nosso).

Nesse poema monoestrófico, com rimas alternadas e emparelhadas, pobres e ricas, perfeitas,
soantes e graves, com versos heptassílabos e octossílabos, notemos o tom carnavalizado presente
no poema. Porque furar o bucho do céu é uma afronta à lei divina, principalmente no âmbito cristão.
Aqui, conotativamente, há uma dessacralização do espaço celestial porque além de furar o céu, as
virgens vão escapar como se aquele espaço não fosse o ideal e definitivo para elas. O eu lírico, no
entanto, além de imaginar furando o céu, fala da possibilidade de vê-lo arriado dando liberdade as
virgens que fugiriam, como se antes fossem aprisionadas. O discurso por si só já é violento, na
medida em que invade o conceito do céu como algo bom que todos querem alcançar e não dele
fugir. Tem ainda certo tom de ironia em relação à virgindade da mulher, como se por ser virgem se
sentisse aprisionada esperando a oportunidade mais oportuna para libertar-se. Vemos que o simples
fato de puxar a faca para o céu, desencadeia uma série de ações que colocaria a calma do céu ao
Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761
32712
Brazilian Journal of Development
avesso, ao contrário. A violência aqui não se mostra sanguinária, mas sutil e delicada, ganhando um
caráter renovado ao transgredir a imagem que temos do céu como lugar de paz e calmaria.
O poeta mais uma vez, inova na escolha da linguagem e nos envolve em temas sociais
corriqueiros, fazendo suposições do que poderia acontecer caso houvesse a permanência do casal
atrelado um ao outro, o estar junto aqui perpassa a união perfeita. Há a presença da vida, como ato
de felicidade, e da morte, que representa o ato final para todos e tudo. Percebemos aqui, a presença
da dualidade típica dos textos carnavalizados que costuma trabalhar com os contrários. Sabemos
que para o céu vão apenas os merecedores do perdão ou os que em vida realizaram atos benéficos.
A subida ao céu representa o arrependimento dos pecadores frente a situações de repulsa do pai, do
não cumprimento do que como cristãos acreditamos ser o certo.
Notemos que Deus deu as pessoas o direito do livre arbítrio, ou seja, ninguém tem o direito
de envolver-se na vida alheia, de querer dirigir a vida do outro, no entanto, é comum que as pessoas
por vezes se ocupem muito mais da vida dos outros que de suas próprias. Zé da Luz, então, nos
apresenta São Pedro, não como detentor das chaves do céu, mas como um homem semelhante aos
demais, que através do rebaixamento carnavalesco da nobre figura do santo, nos é dada a lição de
limite sobre a figura do outro. Somos levados a refletir sobre os papéis que cada qual exerce na
sociedade, e até que ponto podemos ir sem invadir o espaço do outro, se até São Pedro foi rebaixado,
o que não acontecerá conosco ao chegarmos no céu para prestarmos contas a Deus. Sem falar que a
invasão do espaço do outro também é uma forma de violência, agredimos o nosso semelhante de
maneira sutil, às vezes mesmo sem percebermos, tal reflexão nos torna atentos e diferenciados na
medida em que aprendemos e não permanecemos no erro, salientamos que permanecer ou não é
uma decisão nossa, fazendo valer o nosso direito de ir e vir que nos é dado desde nossa concepção.
A morte e a vida se interligam para nos mostrar que devemos pensar antes de agir, pois de
nada adiantará revoltar-se contra os céus, aqui representado por São Pedro, se somos nós os
responsáveis por nossos atos, que serão irremediavelmente, refletidos em nosso futuro. A virgindade
é reflexo da pureza não somente dos corpos que ainda não foram desgastados, mas da alma que é
essencialmente a vida, somos matéria para a terra, portanto, nossa aparência física não é essencial à
nossa salvação celestial.
E por não ser essencial, é constante a deformação física dos corpos na carnavalização no
universo da Literatura Cômica Popular, fato observável na poesia As Flô de Puxinanã. Sendo a
poesia por si só múltipla em sentidos, carnavalizá-la possibilita a inversão da lógica, nesta inversão
ocorre a reconstrução do novo, tudo sem perder seu encanto, beleza e criticidade. Nota-se em Zé da
Luz, uma efervescente competência no ato de recriar a realidade, este toma fatos corriqueiros como

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32713
Brazilian Journal of Development
ponto de partida para tal reconstrução do real, dando ênfase a linguagem mais simples, até mesmo
porque seu objeto reflete o povo nordestino, povo tido como simples, mas dono de uma cultura que
se destaca justamente por suas características inerentes a escrita e falares. Busca-se traduzir a
realidade deste povo sem a preocupação com as formalidades típicas de outras regiões do nosso
país, sem contar que a origem do poeta está atrelada a dita região a qual ele tanto defende e descreve
com sua poeticidade carnavalizada. A partir da poesia de Zé da Luz, é possível lançar um novo olhar
sobre o povo nordestino, um olhar livre de preconceitos e conceitos que naturalmente são passados
de geração a geração.
De modo geral, a poesia matuta com seus aspectos e seleção dos espaços mostrados remetem
ao povo nordestino com seus costumes, tradição, sua bravura e simplicidade de ser e de viver a vida,
livre de apegos estéticos convencionais, aqui considerados desnecessários ao desencadeamento dos
elementos que mobilizam a vida em seus aspectos gerais.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendemos, portanto, a relação entre carnavalização e a poesia popular em seus
aspectos gerais, frisando a liberdade de criação e a transformação da realidade por meio da
subversão das coisas. Recriar a realidade na poética popular é uma atitude original adotada por
poetas que tem um vasto domínio da percepção do mundo e sabem transpô-lo em seus textos através
de uma linguagem diferenciada, própria dos poetas. É o que observamos em Zé da Luz, ao lermos
suas poesias fica clara sua intenção de nos mostrar as particularidades do povo nordestino. É
justamente o que o poeta faz, no entanto, não o faz de qualquer jeito, evidencia em sua escrita
características pertencentes ao nordeste de modo geral, tomando como base alguma situação
comum. Tomemos como exemplo A cacimba, onde com habilidade o poeta nos descreve o ato de
tomar banho das moças e transforma o suor delas em água nova, água boa.
Salientamos a atitude de valentia, conhecida dos nordestinos, homens e mulheres, defendidas
de forma inovadora na poesia As Flô de Puxinanã. Falando dos seres humanos e sua crescente
ousadia, temos a poesia Ai! Se Sêsse!... que traduz inteligentemente a limitação das pessoas em
vivenciarem atitudes cristãs que elevem a alma ao plano da salvação. A leitura de Zé da Luz discorre
naturalmente na medida em que o eu lírico nos possibilita diversão e aquisição de novos
conhecimentos acerca da poética popular carnavalizada. Cada poesia possui um caráter próprio, por
isso, mesmo enfatizando as características de uma dada região – o Nordeste –, cada leitura se faz
nova e não repetitiva em seus conceitos fundamentais e universalizantes.

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761


32714
Brazilian Journal of Development
Este breve estudo, possibilitou a desmitificação e amplitude de alguns conceitos chaves em
relação á carnavalização, sua origem e aplicabilidade em textos poéticos enquanto os embeleza e os
recria, como é o caso da poesia popular de Zé da Luz, que com sua ambivalência mostra o lado
cômico da Literatura Popular. Notamos que para compreender a Literatura Popular carnavalizada é
preciso ser receptivo ao novo, ao diferente. E principalmente não levar a vida tão a sério, mas saber
interpretar o contexto da criação da obra literária carnavalizada.
Portanto, todo texto é rico em significado, cabendo ao leitor desvendar o que de fato ele nos
emite, como vimos com os poemas aqui explorados. Não escrevemos para nós mesmos, se assim o
fosse não existiria a necessidade do registro gráfico. A poesia popular carnavalizada de Zé da Luz
é uma reescrita diferenciada que não apenas inova, renova ou remonta a realidade, na verdade, ela
cria uma realidade diferenciada da que é exterior e facilmente observável.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Maria do Socorro Araújo de. O diabo entrou na igreja: carnavalização do sagrado em
“Charivari”, de Lourdes Ramalho. Dissertação de Mestrado em Literatura e Interculturalidade.
Campina Grande-PB: PPGLI/UEPB, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1995.
DISCINI, Norma. Carnavalização. In. BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São
Paulo: Contexto, 2006, p. 53-93.
FIORIN, José Luiz. A carnavalização. In. __________. Introdução ao pensamento de Bakhtin.
São Paulo: Ática, 2006, p. 89-114.
LUZ, Zé da. Brasi Cabôco e Sertão em Carne e Osso. Recife: Editora Litoral,1999.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
__________. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e
Maria Inês de Almeida. São Paulo: HUCITEC, 1997.

Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 5, p. 32698-32714 may. 2020. ISSN 2525-8761

Você também pode gostar