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TEXTUALIDADES INDÍGENAS NO BRASIL

Cláudia Neiva de Matos


Universidade Federal Fluminense/CNPq

Primeiras palavras
A primeira coisa que os portugueses recém-desembarcados em
seus veludos e armaduras escaldantes naquele outono tropical repa-
raram nos habitantes das praias e matas do Brasil foi a coisa mais
evidente: os índios estavam nus. Eram seres “nudi e formosi” (como
escreveu Americo Vespuccio); gente bonita, saudável, à vontade na
luxuriosa paisagem natural, topografias e vegetações que os cronistas
coloniais não se cansariam de descrever e louvar. E para os escritores
europeus, que então consideraram com simpatia o homem do Novo
Mundo subequatoriano, a virtude e o valor de ser “selvagem” residi-
am nesse laço íntimo e remoto do Humano com o Natural. Gente nua
de corpo e de espírito, tabula rasa e sem mácula oferecida à inscrição
da história do Ocidente.
Espetáculo prioritariamente visual, apreendido muito mais pelo
olhar que pelo ouvido, o índio do Brasil apresentou-se desde o início,
e durante muito tempo, como figura muda. Apesar do grande inte-
resse que lhes suscitava o chamado gentio e do empenho de pesquisa
e pedagogia de jesuítas e outros desbravadores das línguas autócto-
nes, não pareciam estes propriamente interessados no que o índio
pudesse ter a dizer.
A grande maioria da informação que temos sobre o índio dos
primeiros séculos da colonização está vazada pela escrita de cronistas,
viajantes, missionários. A barreira idiomática justifica a princípio, mas
não explica em todo o seu sentido, a espécie de afasia que ataca a
imagem do índio nessa história, nesse texto que registra costumes,
objetos, cultura material, atitudes, ornamentos e feições do rosto e do
corpo, e só deixa de registrar, justamente, o texto indígena: sua fala,
sua palavra autenticada, seu nome próprio.
Na verdade, o texto, o discurso verbal, não é o único elemento
expressivo, significativo, da voz humana. Os índios que nos mostram
os relatos coloniais não permanecem em inteiro silêncio e imobilida-
de. Eles dançam, fazem música e cantam. A maioria da informação
produzida no período fala dessas manifestações cantadas e dançadas,
descritas, às vezes, com minúcias que destacam em primeiro plano os
elementos materiais (roupas, ornatos, instrumentos); em segundo pla-
no a música; em terceiro a parte vocal (canto).
A recepção das vocalizações indígenas pelos cronistas coloniais
mostra-se hesitante e contraditória. Muitos ouvidos educados reagem
escandalizadamente ao que lhes parece um monte de “gritos” e “ur-
ros”; relatam a ausência de melodia, chegam a não reconhecer ali
qualquer tipo de canto, ou só percebem naquele vozerio um canto
sem palavras.
Mas há, também, quem veja no Novo Mundo um berço de “gran-
des cantores”. É o caso de Michel de Montaigne: desiludido com a
“civilização” de uma França dilacerada por guerras intestinas, o
ensaísta celebra, no famoso “Dos Canibais”, a poesia “bárbara” dos
índios americanos, dela apresentando dois exemplos: um canto guer-
reiro (o discurso de um prisioneiro destinado ao ritual antropofágico)
e uma canção de amor, sobre a qual comenta:

“tenho bastante conhecimento de poesia para julgar isto,


que não somente nada há de bárbaro nessa obra da ima-
ginação, mas também que ela é plenamente anacreôntica.
De resto, a língua deles é uma língua doce e de sonorida-
de agradável, aproximando-se das terminações gregas.” 1
(Montaigne, 1986: p. 101)

1 Esta e outras citações retiradas de publicações em língua original foram traduzidas por mim.

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Na verdade, os textos apresentados por Montaigne estão longe
de corresponder verossimilmente a um discurso indígena. O autor
não cita sua fonte, mas constatou-se que se trata de versões estilizadas
de dois textos que Jean de Léry, calvinista vindo ao Brasil no meio do
século XVI com a missão da França Antártica, publicara em sua Via-
gem à Terra do Brasil.
Várias crônicas de viajantes, nos séculos XVI e XVII, como o
Tratado descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa em 1587, refe-
rem-se à veia musical e poética dos índios, particularmente, os do grupo
tupi, habitantes dos primeiros territórios atingidos pelo homem bran-
co. Entretanto, nenhum documento das textualidades indígenas é
produzido por esses viajantes, salvo algumas raras exceções pouco
dignas de fé etnológica, como no caso mencionado de Jean de Léry.
Quanto aos missionários da Companhia de Jesus que se consagram
ao estudo das línguas autóctones, servem-se delas somente para abrir
caminho à evangelização do gentio. Gramáticas, vocabulários e des-
crições formuladas na época silenciam sobre as textualidades indíge-
nas.

Etnografia e Literatura
No século XVIII parece dar-se um declínio do interesse pelos
índios, fora do campo religioso. As informações escasseiam, e as refe-
rências aos cantos tornam-se mais negativas. A visada de antipatia crí-
tica prolonga-se no início do século XIX. Em 1803, Ribeiro de Sampaio
reporta uma oração fúnebre, em louvor a um defunto, feita num can-
to “muito desentoado”, ao qual “os assistentes correspondiam na mes-
ma desentoação” (Sampaio, apud Camêo, 1977: p. 34). A
ininteligibilidade continua marcando a recepção pelos ouvidos bran-
cos. Os cantos dos Botocudos soam com “pouca modulação” aos ou-
vidos do Príncipe Maximiliano de Wied Neuwied, que comenta: “Cons-
ta que figuram no canto palavras referentes à guerra ou à caça, o fato
é que tudo pareceu-me um simples vozear sem palavras”, (Neuwied
apud Camêo, 1977: p. 35). Spix & Martius escrevem sobre os Juri: “A
cantiga soava agora não mais no simples ronco dos homens, porquan-

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to os sopranos, guinchando a melodia, se juntavam ao abominável
berreiro.” (Spix & Martius, apud Camêo, 1977: p. 38)
Já por essa época, todavia, a Independência em andamento irá
buscar lastro estético e ideológico na literatura romântica nascente,
que atribui aos personagens selvagens, além de virtudes combativas,
morais e afetivas, o dom da palavra poética. Nosso primeiro poeta
romântico, Gonçalves de Magalhães, recupera sugestões das velhas
crônicas do século XVI para responder à questão colocada no cerne
da discussão sobre a identidade literária nacional: os índios brasilei-
ros eram mesmo poetas? Magalhães responde categoricamente: “Eles
o foram, e ainda o são.” Queixa-se pois de que os missionários não “se
dessem ao trabalho de recolher, ou de verter em língua portuguesa os
cânticos dos Índios.” (Magalhães, In: Coutinho, 1974: p. 24-25).
À idéia literariamente difundida de uma poeticidade profunda
da alma e da linguagem indígenas corresponde, portanto, à ausência
de documentos ilustrativos dessa poeticidade. O campo está livre para
os procedimentos de idealização, e, desde então, uma pretensa e su-
posta “poesia primitiva” não deixará de fascinar poetas e pensadores
brancos e civilizados.
No Indianismo romântico, a criação artística brasileira, e, prin-
cipalmente, a literatura, associa o elemento indígena a uma visão e
expressão do mundo poéticas, situando na ascendência autóctone um
lastro fundamental para a construção de uma auto-imagem sedutora
da nação e da alma nacional. Poetas, romancistas e críticos elaboram o
mitema da poeticidade indígena, projetado em heróis cantores, capa-
zes de perceber e expressar as harmonias profundas entre a alma
humana e a virgem e mãe Natureza. Mas a essa extrema literarização
do índio no Romantismo, com seus acentos nostálgicos, corresponde
o pressuposto de sua exclusão da história presente e futura. Com
exceções (como Ubirajara e “A Canção do Tamoio”), os romances e
poemas figuram ou prefiguram a extinção do povo indígena; assim se
dá em Iracema e n’O Guarani, de José de Alencar, no “Y-Juca-Pirama”
e em “Marabá”, de Gonçalves Dias. Histórias de exilados, párias,
despatriados, encorpando o que Alfredo Bosi chamou de “mito
sacrificial” do indígena na literatura romântica (Bosi, 1992: p. 176-193).

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Nas últimas décadas do século XIX, idealização e estetização ro-
mânticas deram lugar às primeiras tentativas mais ou menos sistemá-
ticas, e de pretensão mais ou menos científica, de investigar e docu-
mentar as culturas autóctones. Naquele mesmo período, tomava cor-
po a pesquisa folclórica no país. Desde então, etnógrafos, historiado-
res, sertanistas, folcloristas, antropólogos e outros aficionados das ci-
ências sociais registraram narrativas indígenas, analisadas com os ins-
trumentos das genealogias evolucionistas, da antropologia estrutural,
da lingüística, da história das religiões.
Entre os pesquisadores que iniciaram o processo de
encorpamento e sistematização desse repertório, algumas contribui-
ções merecem ser destacadas, como as de Couto de Magalhães (O Sel-
vagem, 1876), Carlos Frederico Hartt (Contribuições para a etnologia do
vale do Amazonas, 1885), Barbosa Rodrigues (Poranduba amazonense,
1890), Capistrano de Abreu (Rã-txa Hu-ni-ku-i: gramática, textos e voca-
bulário caxinauás, 1914).
A documentação é ampliada, compilada e analisada no século XX
por sertanistas como o Marechal Rondon e os irmãos Orlando e Cláu-
dio Villas-Boas, e um grande número de etnógrafos contemporâne-
os, como Claude Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro, Berta Ribeiro, Carmem
Junqueira, Lux Vidal e muitos outros. Os antropólogos interessam-
se, notadamente, pelo campo vasto da mitologia, utilizada como prin-
cipal referência para tentar compreender o pensamento e a lingua-
gem denominados “selvagens”. Disso resulta grande quantidade de
documentos relativos aos relatos, lendas e “histórias de antigamente”,
que vão geralmente informar uma perspectiva etnográfica, com a re-
flexão literária se mantendo mais ou menos ausente do processo.
Se o repertório de narrativas se encontra consideravelmente en-
riquecido, o silêncio permanece, todavia, sobre os cantos, os quais,
por seu caráter textualmente mais formalizado, poderiam prestar-se
melhor a uma abordagem francamente estética. De qualquer modo, a
informação mitológica, assim constituída e oferecida ao público, vai
alimentar operações de tematização estilizada por parte da literatura
branca, escrita e culta. Elementos das lendas indígenas, relatadas pe-

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los etnógrafos, povoarão numerosas obras do Modernismo brasileiro.
Reportando-se aos predecessores românticos, os modernistas proce-
dem a uma recriação crítica e parodística dos emblemas literários da
tradição nacional, mas isso não apaga de suas obras a imagem ideali-
zada de uma poeticidade indígena.
De todo modo, as lentes pelas quais nos foi dado a ler o índio
brasileiro operaram, via de regra, de modo desfocado e lacunar, pro-
movendo, quer pela estilização literária, quer pelo tratamento da do-
cumentação histórica, uma dupla exclusão. Os procedimentos de re-
gistro e as modalidades de leitura etnográfica a que foi submetida a
prosa narrativa indígena ignoraram ou empanaram, via de regra, seus
aspectos e potencialidades estéticas. A função literária ou poética dos
relatos de tradição oral, entre os quais os indígenas, não costuma ser
levada em grande conta pelos analistas, que tendem para as operações
estruturais “frias”, aplicadas, sobretudo, à morfologia dos elementos
da trama.
Quanto à poesia dos índios, permaneceu quase desconhecida para
nós; sobre ela formaram-se pouco mais que hipóteses, esboços hesi-
tantes que empobreceram e estereotiparam o objeto de sua conside-
ração, a ponto de proscrever-nos a possibilidade de qualquer estesia
mais aguda desse objeto. Investiu-se na unidade, na simplificação2, na
exterioridade superficial, em vez de pesquisar a rica diversidade des-
sas culturas com sua poesia, enfrentando-lhe a complexidade e os
matizes subjetivos e estéticos.

Outras textualidades ameríndias


Por diversos motivos históricos e culturais, aquilo que podemos
considerar como a literatura indígena brasileira, ou a parte dessa lite-
ratura a que temos acesso, constitui um repertório diverso dos seus
congêneres no resto das Américas. As populações indígenas tropicais,
os povos da floresta no Brasil, estiveram, e em parte ainda estão, entre

2 Antonio Risério denunciou muito bem essa visada simplificadora que às vezes se dissimula
sob processos de idealização: “insistir na existência de uma ‘poesia primitiva’ é cultivar uma
superstição etnocêntrica” (Risério, 1993: p. 33)

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os mais “primitivos” do continente americano, o que aliás certamente
estimulou que tenham sido os mais freqüentemente imaginados e re-
presentados pelo Ocidente na perspectiva das “visões do paraíso”.
Criou-se, assim, uma situação paradoxal: por um lado, o Brasil pos-
sui uma literatura culta, na qual o motivo indígena é o mais forte, o
mais insistentemente cultivado na intenção de fundar uma imagem
enobrecida ou diferencial da nacionalidade; por outro lado, esse cui-
dado de estetização não encontrou correspondência no domínio da
pesquisa, e as artes verbais dos índios brasileiros permaneceram bem
mais desconhecidas que as das outras etnias autóctones do Novo Mun-
do. Quanto à criação de literatura escrita diretamente por indivíduos
indígenas, é ainda muito incipiente entre nós, como veremos adiante.
Para melhor que melhor possamos situar o caso brasileiro no quadro
americano, aqui vão alguns dados, certamente muito esparsos e par-
ciais, porém, a nosso ver, significativos, sobre as textualidades indíge-
nas, provenientes de matriz oral ou de produção escrita, em outros
territórios do continente.
Quando os Espanhóis chegaram à América Central, Aztecas e
Maias já praticavam formas de escrita que tinham aperfeiçoado desde
séculos: sistemas pictográficos, alguns dos quais começavam a movi-
mentar-se no sentido da fonografia. Puderam, portanto, reter para a
posteridade os esquemas de numerosas textualidades de gêneros e
temas variados. Nos primeiros momentos da colonização, os conquis-
tadores espanhóis destruíram e queimaram grande parte desses do-
cumentos, mas muita coisa salvou-se, graças à intervenção de missio-
nários que recolheram a palavra indígena e lhe emprestaram sua pró-
pria língua, ou a registraram no idioma original com o sistema alfabé-
tico europeu. Boa parte dessa herança literária foi, assim, mais ou
menos cristianizada pela intervenção dos frades evangelizadores:

“[...] convertida em instrumento de conquista, a escrita


das línguas indígenas passou a ser patrimônio da Igreja.
É certo que com essas mesmas escritas se resgatou a his-
tória que conhecemos sobre o passado pré-hispânico, nar-
rada por seus falantes nas formas mais cultas de suas

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línguas nativas e transcrita com grande rigor quanto à
forma. Parte da essência simbólica que ligava cada lín-
gua com a memória cultural indígena permaneceu na
recompilação da literatura oral pré-hispânica levada a
cabo pelos religiosos, com ajuda dos índios nobres e
principais, regatando para a posteridade a poesia náhuatl,
os grandes textos maias e as formas do verso dramático
zapoteca. Entretanto, essa crônica literária foi fatalmen-
te permeada pela interpretação cristã-européia dos fra-
des, e é lícito imaginar que os próprios informantes na-
tivos nem sempre ofereceram o conteúdo de seu passado
real, mas sim o de um passado compatível com a outridade
ocidental à qual se confrontavam.” (Pellicer, Dora, in
Montemayor [org.], 1993: p. 26)

A escrita, embora precocemente atuante no quadro das línguas e


textualidades nativas mesoamericanas, viu-se, então, desvinculada da
função social, eminentemente religiosa e ritual, que possuía antes da
conquista, e foi posta a serviço da catequese. Correndo à parte, toda-
via, a persistência da tradição oral contribuiu para manter viva uma
cultura literária asteca e maia.
Quanto aos Incas da América do Sul, mesmo se não se pode afir-
mar que tenham conhecido alguma forma de escrita, edificaram uma
grande civilização, e as tradições orais de seus descendentes foram
registradas desde os tempos coloniais pelos europeus e pelos própri-
os nativos. Como aconteceu na América Central, aqui também certas
coletividades indígenas desde cedo descobriram a utilidade da escrita
para arquivar suas tradições orais. É verdade que, como aponta Martin
Lienhard (in Pizarro [org.], 1995: p.174), “na medida em que deixa-
ram de ocupar o circuito oral, muitos desses textos ‘morreram’ pou-
co a pouco do ponto de vista das respectivas coletividades, embora
com a possibilidade de uma reativação posterior”, mas, também, abri-
ram caminho às pesquisas modernas sobre a literatura autóctone nos
países andinos, amplamente intensificadas desde a época culminante
dos “indigenismos”, nas primeiras décadas do século XX. Evidente-
mente, nada disso impediu que os manuais de literatura

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latinoamericana tenham, sistematicamente, ignorado o repertório
ameríndio.
As artes verbais tradicionais dos índios norte-americanos vêm
sendo registradas desde o início do século XIX. Como outras litera-
turas autóctones do Novo Mundo, elas compreendem dramas rituais,
canções, narrativas, discursos, histórias de vida. A pesquisa se tornou
mais científica e eficaz, desde o final do século XIX, com a criação do
Bureau of American Ethnology, no quadro do Instituto Smithsonian,
em Washington. O esforço em demanda de informações e registros
era, então, em grande parte, motivado pelo mito do “vanishing Indian”
(Ruoff, 1991: p.9), que ajudava também a dar suporte à tomada das
terras indígenas. Pela primeira vez, reconhecia-se a atuação e signifi-
cado da cultura indígena no passado norte-americano, ao mesmo passo
que se reprimia a importância de sua presença efetiva na atualidade
histórica.
Mais recentemente, com a etnopoética norte-americana moder-
na tomando forma nos anos 70, graças ao trabalho de pesquisadores e
poetas como Jerome Rothenberg, destaca-se a coleta, tradução e estu-
do do cancioneiro. Muitas antologias foram produzidas; o trabalho
de tradução avança e sutiliza-se. Além disso, a presença de descen-
dentes de índios no jornalismo especializado e nos quadros universi-
tários torna os chamados Native Studies um domínio que a etnografia
“dura” deve partilhar com as considerações propriamente estéticas e
as implicações políticas.
Mas o que se considera como o acervo de literatura do índio nor-
te-americano extrapola, largamente, os repertórios tradicionais com-
pilados pelos estudiosos. À primeira vista, impressiona a quantidade
de nomes autorais habilitados a integrar esse acervo, ao contrário do
que acontece no Brasil, onde ainda são muito escassos os autores indí-
genas individualmente reconhecidos, que produzem e publicam lite-
ratura escrita. Em parte, isso poderia ser explicado pela atuação mais
eficaz dos sistemas educacionais, possibilitando a alguns grupos e in-
divíduos um acesso mais pleno e precoce ao mundo da escrita. Mas, o
que também motiva o desequilíbrio entre as produções brasileiras e a

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norte-americana é a diferença nos critérios para se considerar que
um indivíduo é indígena. Assim é que, num livro como Literatures of
the American Indian, de A. Lavonne Brown Ruoff, encontram-se
repertoriados até autores que têm, como no caso do mestiço Cherokee
J. M. Oskison, apenas 1/8 de sangue autóctone (cf. Ruoff, 1991: p.
80). Por esses critérios, naturalmente, também o elenco brasileiro de
autores indígenas poderia ser muito expandido, incluindo escritores
de primeiro plano como Gonçalves Dias.
Um dos marcos iniciais da documentação de literatura oral indí-
gena da América do Norte é a publicação das Algic Researches,
enfocando a cultura e literatura Ojibwa, em 1839, por H. R.
Schoolcraft. Mas a produção de literatura escrita por nativos norte-
americanos começa mais cedo ainda, no final do século XVIII. Os
primeiros escritos têm, freqüentemente, finalidade informativa sobre
a cultura e história dos autóctones, combinando formas e temas da
tradição com gêneros da literatura ocidental. Este procedimento será
uma constante nas obras dos muitos autores indígenas que se segui-
rão, inclusive, no campo da criação poética e ficcional.
Oratória e autobiografia são dois gêneros que historicamente ser-
viram de ponte entre as textualidades orais e escritas. O primeiro
autor indígena a publicar em inglês foi Samson Occom (Mohegan),
missionário metodista famoso pela sua oratória: Sermon preached at the
execution of Moses Paul, Indian, em 1772. A 1a autobiografia publicada
foi A son of the forest, em 1829, de William Apes Pequot. Criado entre
brancos, Apes converteu-se ao Metodismo e tornou-se ministro orde-
nado. Escreveu, também, obras em defesa dos povos nativos, como
Nullification of the unconstitutional laws of Massachusetts, relative to the
Marshpee tribe (1835). No elenco histórico de escritores indígenas nor-
te-americanos haverá muitos outros como ele, convertidos à civiliza-
ção e à religião dos brancos, mas críticos do tratamento reservado aos
índios pela sociedade dominante.
As autobiografias indígenas foram muito populares no século
XIX e na primeira metade do século XX. Além das produzidas dire-
tamente em inglês e por escrito, numerosas narrativas pessoais são

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colhidas por antropólogos (como o relato Sioux Black Elk speaks, 1932),
e outras são escritas pelos próprios índios na língua materna e, de-
pois, traduzidas e editadas por estudiosos (como The warrior who killed
Custer, originalmente escrita em língua Dakota pelo chefe White Bull).
O primeiro romance escrito por um índio foi Life and Adventures
of Joaquín Murieta (1854), do mestiço Cherokee John Rollin Ridge,
com um herói de ascendência hispânica e indígena. Ficção e poesia de
autores indígenas, bastante escassas no século XIX, tornam-se mais
comuns no XX, projetando nomes como os de Emily Pauline Johnson
(poeta e contista, Mohawk canadense, 1861-1913), Charles Eastman
(ficcionista, memorialista e ensaísta, Sioux, 1858-1939), Lynn Riggs
(poeta e dramaturgo, Cherokee, 1899-1954) etc.
Desde os anos 60, com a revitalização do orgulho índio (cf. Ruoff,
1991: p. 89), ficção e poesia aumentaram em quantidade e qualidade.
Entre os contemporâneos, podemos citar, a título de exemplo, o poe-
ta e ficcionista Leslie M. Silko (mestiço Laguna), os romancistas James
Welch (Blackfeet / Gros Ventre) e Louise Erdrich (Ojibwa), e, sobre-
tudo, Kiowa N. Scott Momaday, um dos primeiros índios americanos
a receber um PHD em Inglês, professor na Universidade do Arizona,
e, certamente, o mais importante escritor indígena da atualidade no
país. Entre seus muitos livros, estão: o romance House made of dawn
(1968), ganhador do prêmio Pulitzer, o relato autobiográfico e poéti-
co The way to rainy mountain (1969), os poemas de The gourd dancer
(1976).
De modo geral, a literatura ameríndia pode ser, e tem sido, vista
como uma literatura de resistência: “Heterogeneidade, gêneros ‘fra-
turados’, assuntos ‘polimorfos’, territórios de ‘fronteira’ – estas são as
marcas da ‘escrita de resistência’ especialmente praticada pelos Nati-
vos norte-americanos em processo de ‘mestiçagem’ nas suas relações
internas/externas com as formações sociais dominantes.” (Godard,
Barbara, apud Boudreau, 1993: p.178). Tais palavras também poderi-
am caracterizar a produção literária indígena na América do Norte
francófona, no Québec, embora ela tenha tomado vulto muito mais
tardiamente que na América anglófona.

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Um repertório de textualidades de autoria indígena veio sendo
constituído no Québec desde o século XVIII, o que se deve em boa
parte ao acesso precoce que os autóctones da região tiveram à palavra
escrita. Mas, nos primeiros tempos, esse repertório é constituído em
larga escala por petições, cartas mais ou menos oficiais, requisições
etc. Aí se pode perceber um grau considerável de participação autóc-
tone nas questões institucionais. Em contrapartida, os índios perma-
neceram quase ausentes da cena literária branca e das discussões e
elaborações concernentes a uma identidade nacional.
Diversamente do que se passou nos Estados Unidos, um corpus
propriamente literário de autoria indígena demorou a tomar forma
no Québec; várias de suas características, porém, são similares ao que
se encontra no resto da América do Norte:

“Os livros [que os autores ameríndios do Québec] escre-


vem possuem as mesmas características: as autobiografi-
as escritas por Ameríndios (An Antane Kapesh, Mathieu
André, etc.), os ensaios históricos e etnográficos (Daniel
Vachon, Marguerite Vincent, Pierre Gill, etc.), as narra-
tivas ou dramas-rituais (An Antane Kapesh, Yves Sioui
Durand), os poemas (Éléonore Sioui, grupo Kashtin) e a
prosa (Richard Kistabish) são o resultado de uma
‘mestiçagem’ entre as formas orais tradicionais e a escri-
ta. Efetivamente, eles contêm elementos da tradição e ten-
tam levar em conta imposições e regras da escrita, mas
sem corresponder aos gêneros reconhecidos pela tradi-
ção da história literária do Québec ou da França. Em
segundo lugar, a literatura escrita ameríndia constitui
um meio de dar a conhecer reivindicações, um inegável
veículo político.” (Boudreau, 1993: p.178-179)

A seqüência do desenvolvimento dessa literatura também é a mes-


ma, apesar da defasagem cronológica: dominam primeiro os ensaios
históricos e autobiográficos, depois vêm os poemas e romances. Assis-
te-se, agora, desde os anos 70, a um surto considerável de produção
escrita e impressa por parte de índios e de seus descendentes, sobre-

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tudo, nos domínios do romance e da poesia. O interesse pela pesquisa
e registro da cultura tradicional e da literatura oral também foi
reavivado neste período, que se seguiu à aparição do chamado “Livro
branco”, em 1969, em que o governo canadense propunha a assimila-
ção dos ameríndios, convertidos em cidadãos canadenses. Associações
indígenas voltaram-se contra o projeto, promovendo a valorização da
indianité, e ajudando a provocar um verdadeiro surto literário, no qual
se destacaram autores como An Antane Kapesh (Inuit), Bernard
Assiníwi (mestiço Cri), George E. Sioui (Huron).

Literaturas indígenas do Brasil


A grande extensão territorial brasileira acolhe uma multiplicidade
muito grande de grupos indígenas, alguns ainda sem nenhum ou quase
nenhum contato com o mundo “civilizado”. Embora grande parte
das populações autóctones tenha sido dizimada, como em outras re-
giões americanas, muitas delas permanecem como sujeitos de uma
cultura viva, e não como objetos de pesquisa arqueológica: das 1300
línguas que supostamente existiam no território no momento da che-
gada dos portugueses, em 1500, cerca de 170 ainda são faladas no
país, das quais apenas cerca da metade já foi basicamente investigada
e descrita por etnólogos e lingüistas (Ricardo apud Silva, Grupioni,
1995, p. 30). Há portanto um quadro urgente e amplo de registro e
pesquisa ainda por realizar, para que cheguemos a ter um conheci-
mento menos lacunar da literatura desses povos.
De modo geral, entretanto, podem-se considerar, no universo
da comunicação verbal indígena, duas grandes séries de práticas
discursivas que, manifestando e gerando sentidos e efeitos
conjugadamente sociais e estéticos, podem ser consideradas forma-
doras de um patrimônio literário: as narrativas e os cantos, recobrindo
o principal de sua arte verbal em prosa e verso. A quase totalidade
desse patrimônio foi constituída na tradição oral. A produção de lite-
ratura escrita, por autores individualizados, é caso ainda muito ex-
cepcional. Também não é grande o acervo de documentos publica-

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dos, mormente no caso do cancioneiro. Daremos adiante uma visão
sintética desse repertório.
Que textualidades deveriam integrar um corpus de literatura in-
dígena brasileira? Ao tentar circunscrevê-lo, devemos ter em mente
que se trata de configuração provisória e sujeita a reformulações, na
medida dos avanços de um conhecimento ainda incipiente. Os critéri-
os de identificação dos tipos de produção implicados são, necessaria-
mente, vacilantes e inseguros, porque, na verdade, não se tem ainda
um conceito firmado do que seja uma expressão poética indígena. E
tal conceito, se for possível construí-lo, não corresponderá imediata,
necessária e meramente a um corpus: será antes um amplo sistema
semântico e formal, relacionado a uma visão de mundo complexa e
diferente da nossa, e manifestado em modalidades textuais variadas e
de contornos freqüentemente imprecisos.
Há, portanto, a explorar um território textual e discursivo cons-
tituído por dois conjuntos de dimensões radicalmente desiguais,
construídos em circunstâncias e sob critérios diferentes: por um lado,
uma infinitude de textos produzidos por culturas iletradas, ágrafas,
gerados e consumidos por via áudio-oral, em forma de prosa narrati-
va ou em formato rítmico de versos, de que pequena parte já se en-
contra divulgada por escrito (note-se que parte considerável desse
acervo só se encontra traduzida para línguas estrangeiras, e publicada
fora do Brasil); por outro lado, textos autorizados por via da escrita
em primeira mão: prosa e verso produzidos por indivíduos indíge-
nas letrados. Já vimos que tal repertório encontra-se em vias incipientes
de constituição; e nele predominam textos produzidos em situações
especiais, combinando, por vezes, as circunstâncias novas de aquisi-
ção de uma segunda língua (o português) e aquisição da expressão
escrita. Esse conjunto tem como referência básica a produção realiza-
da no quadro de programas de educação indígena ligados a institui-
ções religiosas, ao Estado ou a Organizações Não Governamentais lei-
gas, as quais vêm ampliando, consideravelmente, o acesso dos índios
brasileiros à cultura escrita e aos meios técnicos de expressão.

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A narrativa
Em sua Literatura oral no Brasil, Câmara Cascudo abre o capítulo
dedicado à literatura indígena evocando uma cena referida pela mai-
oria dos “seringueiros e cortadores de caucho, viajantes e pequenos
mercadores” que visitaram aldeias indígenas no norte e centro-oeste
do Brasil:

“Depois do jantar, noite cerrada, no pátio que uma fo-


gueira ilumina e aquece, reúnem-se os velhos indígenas,
os estrangeiros, para fumar e conversar até que o sono
venha. Evocações de caçadas felizes, de pescarias abun-
dantes, aparelhos esquecidos para prender animais de
vulto, figuras de chefes mortos, lembrança de costumes
passados, casos que fazem rir, mistérios da mata, assom-
bros, explicações que ainda mais escurecem o sugestivo
apelo da imaginação, todos os assuntos vão passando,
examinados e lentos, no ambiente tranqüilo.” (Cascudo,
1984: p. 78).

Como outras culturas orais, as culturas indígenas do Brasil são,


espantosamente, extensas e se manifestam de forma ampla e minuci-
osa em repertórios narrativos armazenados na memória e transmiti-
dos de geração a geração.

“O indígena conta, horas e horas. Conta, dias e dias, ou


melhor, noites e noites, um milhar de estórias de guer-
ra, caça, pesca, origem de várias coisas, o amanhecer de
sua família no mundo. Todas as coisas [...] têm uma His-
tória religiosa, hierárquica, e uma literatura folclórica
adjacente.” (Cascudo, 1984: p. 87).

As narrativas servem à transmissão do saber comunitário, cons-


tituindo o repositório e o veículo dos conhecimentos e tradições cul-
turais. Os agentes e circunstâncias de transmissão desse saber não são
exatamente os mesmos em todas as culturas e registros, mas certos
quadros recorrentes se apresentam nos testemunhos e documentos

449
de pesquisa. Por exemplo, tarefa e prerrogativa de narrar cabem, antes
de qualquer coisa, aos velhos; mas, em diferentes domínios e condi-
ções, também as mães são importantes narradoras.
A distinção entre os quadros narrativos da tradição oral - mitos,
lendas e fábulas - é questão freqüentemente abordada pelo estudo desse
repertório, e ocupou, particularmente, os folcloristas da primeira
metade do século XX. A definição mais complexa é a do mito, que não
se esgota numa caracterização textual - espécie de “constante em
movimento” (Cascudo, 1984: p. 105), capaz de informar representa-
ções imaginárias e textualidades de vários formatos. As lendas são lon-
gas narrativas sérias, que tratam, freqüentemente, da origem e expli-
cação das coisas que povoam a terra, a água e o céu, das nações indíge-
nas e seus costumes, integrando elementos heróicos e traços religio-
sos numa atmosfera carregada de sentido e elementos sobrenaturais.
Conta-se, por exemplo, o aparecimento e/ou a criação da mandioca,
do milho, do guaraná, dos fenômenos e elementos cósmicos. Aí se
encena uma explicação animista do mundo, segundo a qual a maioria
das coisas e dos grupos humanos teve origem na ação de animais
semidivinos, em sua relação com os seres humanos. É o caso, por exem-
plo, da mitologia da Jibóia, eixo central da cultura, relatos, cantos e
artesanato dos Kaxinawá.
Já as fábulas ou contos têm formato mais curto e personagens
animais, tematizando aspectos práticos e morais da vida cotidiana.
Constituem, segundo Câmara Cascudo, uma “expressão popular e
democrática” (Cascudo, 1984: p. 88), de sentido freqüentemente crí-
tico e/ou pedagógico.

“Nas fábulas pode intervir o sobrenatural, mas esse não


é o elemento típico. Nas lendas é a própria atmosfera. E
é preciso crer porque elas se articulam com o patrimônio
da tribo que nos hospeda. Quando a fábula denuncia
sua versatilidade pela etimologia, lembrando a conversa,
a palavra, o entreter das horas, com humor ou tristeza
nos contos evocados, a lenda, legenda, traz a idéia da lei-
tura, do gráfico, a imobilidade que se reveste de um li-
geiro ritual, determinando a meia certeza da credulida-
de.” (Cascudo, 1984: p. 98-99)

450
Às vezes o esforço de classificação converge com a associação
costumeiramente promovida entre o sistema narrativo indígena e o
das culturas ocidentais arcaicas e, ao mesmo tempo, “clássicas”, parti-
cularmente, a grega. A epopéia de Homero e a fábula de Esopo são
constantemente aludidas nessa aproximação, e, aliás, certas semelhan-
ças são mesmo flagrantes.
A respeito da épica de formato longo, associada aos mitos da ori-
gem e à formação das estruturas sociais, menciona-se o lento desen-
rolar da narrativa, com espaço para todas as digressões e minúcias, o
tema da viagem, o maravilhoso. A narrativa pode alongar-se indefini-
damente, e, também, interromper-se abruptamente. Há várias seme-
lhanças imediatas com a epopéia antiga, mas não se costuma verificar
nas narrativas indígenas aquele tom de “louvor” guerreiro que resso-
ava nos cantos homéricos. Narram-se o fio do tempo, pequenos deta-
lhes e, às vezes, situações muito cruas.
No âmbito da fábula, a narrativa indígena e a antiga (Esopo em
particular) têm em comum a importância e significação humana dos
bichos personagens, bem como a função crítica, moral e pedagógica.
As figuras centrais dos repertórios míticos e narrativos variam
segundo a nação, mas algumas avultam, como o jabuti, protagonista
das fábulas da Amazônia tupi, que articula um grande ciclo de relatos,
tal como acontece com o macaco, a onça e alguns outros protagonis-
tas zoomórficos. Os animais também servem para estruturar e justifi-
car mitologicamente a divisão entre clãs.
Entre as entidades fantásticas, cujas variantes circulam na cultu-
ra de diferentes nações indígenas brasileiras, destaca-se, por exem-
plo, o Curupira, pequeno índio de pés voltados para trás, gênio tute-
lar das florestas, cuja benevolência se procura obter com presentes e
oferendas, capaz de fazer os caçadores perderem-se no mato, mas,
também, de vir em seu auxílio. Ele, em algumas regiões, confunde-se
com o Caapora, que veio a ser um duende muito popular nas narrati-
vas tradicionais do Nordeste; mas o Caapora também se apresenta
como um homenzarrão escuro e taciturno, de cara e corpo peludos,
montado num enorme porco-do-mato.

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Outra entidade de amplo espectro e domínio geográfico é o
Boitatá, serpente de fogo que vive à beira d’água, descrito por Anchieta,
em 1560, como “coisa de fogo, [...] o que é todo fogo, [...] um facho
cintilante correndo daqui para ali” (José de Anchieta, Cartas, informa-
ções, fragmentos históricos, apud Cascudo, 1972: p.153).
O Jurupari, que os missionários e cronistas coloniais apresenta-
ram como supremo espírito do mal, desempenhou o papel do demô-
nio no discurso catequizador. Porém tal interpretação, que denuncia
o viés maniqueísta cristão, seria corrigida mais tarde pelos etnólogos
do século XIX, como Stradelli, que o caracterizou como “legislador
divinizado, que se encontra como base em todas as religiões e mitos
primitivos” (Ermano Stradelli, “Leggenda dell’Jurupary”, apud
Cascudo, 1984: p.126). Enviado pelo sol para reformar os costumes
da terra, Jurupari subverteu o matriarcado primitivo, transferindo o
poder para os homens e ensinando-lhes segredos que seriam trans-
mitidos aos jovens machos por ocasião dos ritos iniciáticos da puber-
dade.
Em sua incorporação de motivos autóctones, a literatura
indianista romântica privilegiou, notadamente, os aspectos míticos e
heróicos das lendas de origem. O exemplo acabado é a Iracema, de
José de Alencar, subintitulada “lenda do Ceará”. Quanto à literatura
oral em português, foi ela mais informada pelos gêneros associados à
fábula, mitos e figuras da vida cotidiana e do presente. Essas modali-
dades influíram, consideravelmente, no folclore brasileiro, circulan-
do pelas vias do português ou, até o século XVIII, pela “língua geral”
tupi/nheengatu, e “mestiçando-se” com elementos da narrativa oral
de linhagem portuguesa e africana.
De toda maneira, tratando-se de mitos das origens (“histórias de
antigamente”, “histórias dos antepassados”, como as chamam os índi-
os em português) ou de passagens anedóticas sobre o cotidiano da
vida na floresta, a narrativa indígena apresenta-se como texto movente,
difícil de captar com instrumentos literários tradicionais. Normalmen-
te enunciada com o acompanhamento de ampla gesticulação e recur-

452
sos de dramatização, necessita, para ser analisada, de uma perspecti-
va poética centrada na transmissão oral e de corpo presente, vale di-
zer, na performance do narrador e na sua recepção pelos ouvintes.
A maior parte dos registros narrativos feitos por folcloristas e
etnógrafos é deficiente como informação literária, pois limita-se a cap-
tar os aspectos principais da trama ou a configuração dos mitos, esca-
moteando as peculiaridades do estilo narrativo indígena. Uma das
primeiras experiências mais completas de documentação do texto
narrativo foi empreendida, no início do século XX, pelo historiador
Capistrano de Abreu, que compôs o Rã-txa Hu-ni-ku-i com base em
longos depoimentos de dois jovens Kaxinawá.
Aos poucos, os modos de documentação dos relatos foram se
aperfeiçoando e tornando-se mais fiéis. Como para o conjunto das
manifestações literárias orais, um avanço enorme foi feito a partir da
invenção e difusão dos meios de registro e reprodução do som, e,
também, da imagem. Mais recentemente vêm-se realizando registros
nos quais são maiores a autonomia e a responsabilidade do informan-
te, que é convertido numa espécie de autor ou de auto-etnógrafo. Com
isso, alguns aspectos estéticos dos discursos narrativos indígenas co-
meçam a tornar-se mais sensíveis para nós, seus distantes leitores. Em
muitos registros atuais, atenua-se, embora não desapareça, a atuação
intermediária do homem branco: os gravados da boca dos narrado-
res tradicionais (geralmente os “velhos” da aldeia) e depois transcri-
tos para o papel, sempre em língua materna, geralmente por outros
índios; os feitos diretamente por escrito, em língua materna, por ín-
dios alfabetizados; traduções integrais, parciais ou sintetizadas dos
textos em língua original, realizadas por indígenas bilíngües; narrati-
vas escritas diretamente em português por índios bilíngües ou mes-
mo de nações que já perderam o uso do idioma ancestral, mas conser-
vam parte do acervo cultural da tradição. Exemplos desses repertóri-
os encontram-se em publicações como: Antes o mundo não existia: a
mitologia heróica dos índios Desaña, de autoria de Umúsin Panlõn Kumu

453
e Tolamãn Kenhíri, com introdução de Berta Ribeiro3 (1980); Torü
Duü’ügü, nosso povo, edição bilíngüe de relatos orais de dois Ticuna
(1985); Mantere Ma Kwé Tinhin: histórias de maloca antigamente, de
Pichuvy Cinta Larga (1988); a coletânea bilíngüe Shenipabu Miyui (His-
tória dos Antigos), obra de narradores, escritores e ilustradores
Kaxinawá (1995); Vozes da origem: estórias sem escrita, coletânea de nar-
rativas Suruí organizada por Betty Mindlin (1996); Moqueca de mari-
dos: mitos eróticos (1997) e Terra grávida (1999), coletâneas temáticas
reunindo vários grupos de Rondônia, com organização, também, de
Betty Mindlin.
Boa parte das publicações que abrem espaço para a “autoria”,
isto é, para a manifestação textual indígena produzida em primeira
mão, está associada aos programas de educação diferenciada desen-
volvidos no país por iniciativa do Estado, de instituições religiosas (como
o Conselho Indigenista Missionário), e, sobretudo, de ONGs (Orga-
nizações não governamentais) leigas. Shenipabu Miyui, por exemplo,
foi realizado por professores bilíngües Kaxinawá no quadro dos tra-
balhos da Comissão Pró-índio do Acre4; Vozes da origem está associado
ao projeto de pesquisa e educação do Instituto de Antropologia e Meio-
ambiente; o Conselho Indigenista Missionário editou Mantere Ma Kwé
Tinhin e Histórias de ontem e de hoje.
Nos casos acima, como em muitos outros, trata-se de narrativas
oriundas da tradição oral. Mas, em semelhantes circunstâncias edito-
riais, já se pode assinalar, também, a constituição incipiente de uma
literatura escrita em português (e, também, em certos casos, em lín-
gua materna) por indígenas, muitas vezes recém-letrados, exercendo
sua autoria individualmente ou em equipe, criando textualidades es-

3 Berta escreve na Introdução: “Na história da antropologia brasileira, esta é a primeira vez
que protagonistas indígenas escrevem e assinam sua mitologia. [...] Em primeiro lugar, isto
confere autenticidade incontestável ao conteúdo e forma narrativa, como expressão de fé e
construção literária. Em segundo lugar, documenta o resultado da simbiose entre o
conservantismo cultural e o uso de instrumento adquirido de nossa civilização para exprimi-
lo: a linguagem escrita.” (Kumu e Kenhíri, 1980: p.90).
4 O programa de formação docente da CP-I/Ac, responsável pela produção de grande
número de publicações didáticas elaboradas pelos próprios professores indígenas, intitula-se
justamente “Uma experiência de autoria”.

454
critas contemporâneas. Boa parte desse ainda pequeno acervo é cons-
tituída pela publicação, sob forma de materiais didáticos para os pro-
gramas especializados, de textos produzidos por índios sem objetivo
explicitamente “literário”, mas nos quais se manifestam uma visão de
mundo e um arranjo discursivo que impressionam por sua força po-
ética. Por exemplo, os textos do livro de leitura Estórias de hoje e de
antigamente dos índios do Acre, organizado por Nietta L. Monte (1984),
Geografia indígena, organizado por Marcia S. Rezende e Renato A.
Gavazzi (1992), e a primeira parte da Antologia da floresta; literatura
selecionada e ilustrada pelos professores indígenas do Acre, organizado por
Cláudia N. de Matos (1997) -, todos elaborados com a participação de
professores indígenas de diversas nações, e publicados sob a égide da
Comissão Pró-Índio do Acre; e os textos Ticuna d’O livro das árvores,
organizado por Jussara Gomes Grüber (1997), no quadro da Organi-
zação Geral dos Professores Ticunas Bilíngües.
Ainda são muito raros entre nós os autores indígenas de perfil
mais individualizado, mas já é possível apontar nomes como os de
Daniel Mundukuru (Histórias de índios, 1999; Coisas de índio, 2000) e
Kaka Werá Jecupé, Tapuia (Todas as vezes que dissemos adeus, 1994; A
terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio, 1998).

A poesia dos cantos


A feição multiexpressiva das manifestações poéticas das culturas
orais, em que as palavras se conjugam estreitamente à voz, ao gesto, à
encenação, ao corpo, enfim, tem sido sublinhada e discutida por mui-
tos especialistas, como Paul Zumthor. É lugar-comum os estudiosos
de literatura oral se queixarem e se desculparem por não serem capa-
zes de dar conta ao leitor - às vezes tampouco a si mesmos -, da pleni-
tude de um sentido cuja produção teria um de seus fatores essenciais
na performance. Na documentação por escrito, escamoteiam-se vários
aspectos do evento original, notadamente nos casos em que a expres-
são em linguagem verbal se conjuga indissoluvelmente ao canto e à
música, ao gesto e à dança.

455
Tal dificuldade viria somar-se ao postulado corrente de que seria
indispensável, para compreender e interpretar tais textos, pesquisar
e reconhecer previamente o contexto em que são produzidos. O pres-
suposto aí é que a expressão poética, via linguagem verbal, fosse nula
de autonomia numa cultura em que tudo estaria cerradamente apri-
sionado em rituais e tradições pré-determinados em seu exercício e
alcance de sentido.
Nessa área de questões, a etnomusicóloga Hélza Camêo faz uma
reflexão singela e muito interessante. Considerando a fórmula básica
palavra + música + movimento, que se influem mutuamente na ex-
pressão artística, supõe que deve haver, todavia, uma linha central,
derivando de um ponto de partida, um estímulo, impulso inicial; e,
para Hélza, essa fonte geradora de expressão estaria seguramente na
palavra: “considerando-se o canto como resultante da exacerbação
emocional da palavra, que, na intensidade da emissão, adquire con-
teúdo musical, tornando-se expressiva e altamente impressiva”
(Camêo, 1977: p.12).
Como captar essa impressão, como se abrir a ela? Como ouvir e
compreender a palavra poética do índio? É preciso reconhecer as di-
ficuldades e resignar-se a só dar do assunto uma visão lacunar e in-
completa. Muita coisa provém de observação ainda fragmentária, par-
cial, restrita, condicionada pela pouquíssima informação disponível
sobre o assunto.
De toda maneira, é aos cantos, principalmente, que se adequa o
conceito de uma “poesia” indígena. A noção de poesia, aqui, se con-
cretiza na articulação de duas categorias expressamente literárias: por
um lado, aponta para o domínio da Lírica, a demanda pelo lirismo,
pela intimidade cultivada da linguagem que faz comunicar subjetivi-
dades individuais e sociais; por outro lado, aponta para o texto em
versos, aquele discurso que, numa cultura oral, formalizando-se e fa-
vorecendo a fixação mnemônica, cristaliza-se, privilegiadamente, em
texto.
As textualidades em verso, que costumam constituir o conjunto
mais caracterizadamente lírico dos repertórios culturais, são, nas lite-

456
raturas orais, quase sempre manifestadas no canto, associando-se com
a música e com a dança. A pesquisa da expressão poética indígena, ou
o material de que para ela dispomos, construiu-se em associação es-
treita com a pesquisa da expressão musical. Ambas foram objetos de
um prolongado desconhecimento por parte do branco, certamente
relacionado com a pouca influência que exerceram na cultura nacio-
nal. É verdade que nas últimas décadas os esforços da etnomusicologia
moderna, somados ao de etnolingüistas, reduziram a nossa ignorân-
cia e insensibilidade na matéria, que, todavia, permanece enorme.
Câmara Cascudo comenta que “a poética indígena foi, intrinse-
camente, o elemento de menor influência na literatura oral do Brasil”
(Cascudo, 1984: p.137). A matéria narrativa de fábulas e lendas foi
exportada dos acervos literários orais indígenas para, respectivamen-
te, o folclore em língua portuguesa e a literatura escrita brasileira. Os
cantos, ao contrário, permaneceram restritos ao âmbito das línguas
autóctones maternas, legando somente ao folclore geral escassos ver-
sos e motivos musicais, no âmbito dos acalantos e canções de roda.
Apesar disso, a poesia indígena não é um fato arqueológico - sua
antiqüíssima estirpe continua viva na voz dos cantores indígenas, nas
numerosas línguas autóctones ainda faladas no Brasil, e, mais recen-
temente, começou a se tornar acessível para nós. Alguma coisa de sua
sonoridade já se encontra divulgada em vinil ou CD documental, por
exemplo: A Arte vocal dos Suyá, realizado por A. Seeger (Museu Naci-
onal/Tacape, 1982); Paiter Marewá: cantam os Suruís de Rondônia (Me-
mória Discos e Edições LTDA, 1984); cantos amazônicos em Música
popular do Norte, vol. IV (Marcus Pereira); Kaapor, cantos de pássaros
não morrem (Unicamp/Minc-SEAC, 1988); Bororo vive (Museu Rondon/
UFMT, 1989) Xingu: cantos e ritmos (Philips/Phonogram); Ñande Reko
Arandu: memória viva guarani (Comunidade Solidária); Etenhiritipá:
cantos de tradição xavante (Quilombo Música/Warner Music Brasil
LTDA, 1994) etc. Há também versões mais ou menos estilizadas, como
em Txai, de Milton Nascimento (CBS, 1990); e na coletânea, realiza-
da por Marlui Miranda, com cantos de diferentes nações, Ihu – Todos
os sons (Pau-Brasil, 1995), cujo material também foi divulgado em song-
book (1996).

457
Já o acesso aos textos é mais complicado, defrontando-se com
obstáculos que a tecnologia material não basta para superar. A letra
das canções parece ter resistido mais ainda que a expressão ritmo-
melódica (instrumental e vocal) ao conhecimento do homem branco.
Os estudiosos que trabalharam mais com o discurso verbal indígena
reservaram sua atenção ao código (lingüistas) e às estruturas narrati-
vas mitológicas (antropólogos -, que também costumaram tratar essas
narrativas como uma língua).
O pouco que se tem de traduções dos cantos foi empreendido de
maneira assistemática e visando a um conhecimento basicamente an-
tropológico e/ou complementando estudos etnomusicológicos. O re-
gistro inaugural é o de Jean de Léry, que em Viagem à Terra do Brasil
(1ª edição em 1578), anota letra e melodia de uns poucos fragmentos
de canções Tupinambá. Pouquíssima coisa será acrescentada antes do
século XX a esse acervo; por exemplo, algumas pequenas peças apre-
sentadas por Couto de Magalhães em O Selvagem (1ª edição em 1876),
e a série de canções recolhidas por Barbosa Rodrigues na Poranduba
amazonense (1890). Mais recentemente podem-se mencionar (no que
diz respeito aos textos) os cantos Ariti coletados e traduzidos por Cân-
dido Rondon e João Barbosa Faria em Esboço gramatical; vocabulário;
lendas e cânticos dos Índios Ariti (Pareci) (1948); alguns cantos cerimo-
niais Suyá em Os Índios e nós, do etnomusicólogo Anthony Seeger
(1980); cantos xamanísticos Kadiwéu apresentados por Darcy Ribei-
ro em Kadiwéu; ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza (1980);
um canto de pajé em Araweté; o povo do Ipixuna, de Eduardo Viveiros
de Castro (1992); algumas canções intercaladas nas narrativas Suruí,
publicadas por Betty Mindlin, em Vozes da origem (1996); cantos festi-
vos Kuikúro, analisados por Bruna Franchetto, no ensaio “Tolo
Kuikúro: ‘Diga cantando o que não pode ser dito falando’” (1997);
trechos de cantos de cipó5, analisados por Cláudia N. de Matos, em “A
Canção da Serpente: poesia dos índios Kaxinawá” (1999).

5 Cantos rituais que acompanham a viagem alucinógena provocada pela ingestão de uma
bebida preparada com alguns tipos de cipó e folhas da floresta amazônica.

458
Até o momento não se pode dizer que exista produção individu-
al de poesia escrita por parte de indígenas brasileiros. As raríssimas
exceções - que aliás incluem alguns textos de grande força poética -
situam-se, mais uma vez, no âmbito dos projetos de educação diferen-
ciada. Alguma coisa pode ser encontrada, por exemplo, na já mencio-
nada Antologia da floresta, da Comissão Pró-Índio do Acre, ou no Livro
de poesias do Instituto de Antropologia e Meio-ambiente.
A primeira e maior dificuldade para o estudo das letras dos can-
tos indígenas, que constituem boa parte da produção discursiva que
poderíamos chamar de lírica, é pois a escassez de documentação. O
fato de a tradução dos textos em versos apresentar maior dificuldade
que a dos textos narrativos em prosa terá, certamente, contribuído
para aumentar essa lacuna. Por outro lado, as poucas tentativas de
análise e interpretação deste material destacam, geralmente, as fun-
ções xamânicas e cultuais do cancioneiro, seguindo uma linha da An-
tropologia que remonta à “ciência das religiões” do século XIX.
Os cronistas coloniais referiam-se, freqüentemente, à
ininteligibilidade do que diziam os índios ao cantar. E, na verdade,
mesmo que não houvesse a barreira do idioma, talvez não fosse fácil
para ouvidos e cabeças de branco compreender essa linguagem forte-
mente estilizada e figurada, que opera com a elipse, a síntese e o su-
bentendido. Essa linguagem poética que, como toda linguagem poéti-
ca, aciona a materialidade do código, explora a estética metafórica, o
enigma, as zonas de intraduzibilidade. Mesmo atualmente, colocam-
se grandes dificuldades na transposição dos textos em versos para o
português. Quando se tenta encetar uma tradução ou quando se lêem
traduções alheias, tem-se, muitas vezes, à primeira vista, a impressão
de que falta nexo ao texto.
Aos poucos se estão constituindo amostragens mais consistentes.
Aí se destaca a grande contribuição potencial que podemos esperar
dos projetos educacionais indígenas desenvolvidos nas últimas déca-
das. Expandindo o acesso dos índios ao mundo da escrita, e, investin-
do freqüentemente no bilingüismo e na preservação da cultura
endógena viva, esses programas também cuidaram de desenvolver

459
convenções de grafia para as línguas maternas, e estimular o registro
de textualidades nessas línguas por parte dos próprios indígenas. Dou
como exemplo o livrinho Nuki Mimawa (Nossa Música), editado em
1995, pela Comissão Pró-índio do Acre. Trata-se de uma coletânea de
letras de cantos Kaxinawá na língua original, resultado de gravações e
transcrições realizadas por um grupo de professores indígenas bilín-
gües.
É interessante notar que a escrita, bem como o toca-fitas - ele-
mentos integrantes do aparato de dominação cultural -, tenham sido,
justamente, o meio disponível para resistir a essa dominação, desen-
volvendo um trabalho cujo sentido foi, assumidamente, o de revitalizar
a tradição cultural nativa, preservando, da degradação e do esqueci-
mento, um patrimônio cultural ameaçado pelas pressões culturais
heterógenas no contato com o mundo dos brancos. Joaquim Maná de
Paula, principal organizador do trabalho, escreve na Introdução:

“Este livro de música Kaxinawá foi um trabalho de al-


guns professores interessados em registrar sua cultura
no momento em que a língua Kaxinawá passou a ser
dominada pela escrita. [...] Nosso objetivo é que essas
músicas façam parte da disciplina de línguas das escolas
indígenas Kaxinawá, onde os professores possam apren-
der e ensinar aos seus alunos. Não só aos alunos, mas
todo o povo da comunidade envolvente. Para que eles
possam se expressar, aprender e fortalecer a nossa lín-
gua materna Hãtxa Kui [língua verdadeira].” (Joaquim
Maná, in Nuku Mimawa, 1995: s/pág.)

A língua das canções é ao mesmo tempo circunscrita e plena. As


narrativas podem, eventualmente, apresentar alguns termos ligados à
cultura ou ao idioma do branco. Não os cantos, que, conservados mais
rigorosamente em sua forma tradicional, constituem uma espécie de
viveiro e cartilha da língua materna em estado puro. A isso se refere
Joaquim Maná, quando diz: “Pra você saber que está falando bem sua
língua, você tem de aprender várias letras”. Essa mesma pureza lin-

460
güística seria correlata a certo grau de intraduzibilidade: “Quando
você canta, não entra uma palavra em português. Nas traduções a
gente vê que tem umas palavras que não dá pra traduzir.” 6
Para a tradução dos cantos deve-se contar com a colaboração
indispensável de indígenas bilíngües, proficientes em língua portu-
guesa, e, ao mesmo tempo, profundamente vinculados à sua cultura
original. Há muitas peculiaridades a considerar em sua significação e
função. Carregados freqüentemente de sentido ritual, podem jogar
com simbolismos complexos, exprimindo-se numa língua “antiga”,
elítica e estilizada, que aos próprios índios apresenta zonas de obscu-
ridade -, não só quanto à interpretação dos sentidos, mas até na com-
preensão de alguns termos desusados ou pertencentes a repertórios
especiais.
Quanto ao repertório de cantos nas línguas indígenas ainda fala-
das no Brasil, o necessário é portanto: 1) registrá-lo - tarefa urgente,
como sempre a viram e pintaram os aficionados dos muitos tipos de
folclore; 2) traduzi-lo - tarefa fascinante, complexa e árdua, na qual as
dificuldades habituais de qualquer tradução de versos poéticos se so-
mam às criadas pela extrema distância e diversidade cultural e lin-
güística; 3) lê-lo/interpretá-lo - tarefa multidisciplinar, mas à qual o
olho/ouvido literário não pode deixar de trazer sua essencial contri-
buição. A 1ª tarefa caberá, preferencialmente, a pesquisadores indí-
genas, bastando que lhes forneçamos os meios para fazê-lo; a 2ª, e,
certamente, também a 3ª, requerem a colaboração das duas partes
interessadas: especialistas brancos e índios.
Os gêneros são muitos, variando no formato discursivo: celebra-
ção, solilóquio lírico, exortação, invocação, magia, cura; cantos de le-
tra linear e cantos de refrão, baseados na repetição. A temática é mais
variada do que fizeram crer os primeiros informantes, incluindo a
vida cotidiana, o trabalho, as sensações, a sedução e o sentimento amo-

6 Estas afirmações foram feitas por Joaquim Maná Kaxinawá em conversas gravadas por
mim, ao longo do trabalho de tradução, que realizamos em conjunto, de alguns cantos do
Nuku Mimawa.

461
roso etc. Aliás, já em 1587, Gabriel Soares de Souza dava notícia da
diversificação temática e funcional dos cantos indígenas, apontando
entre esses “músicos de natureza” a ocorrência de cantos de “chaco-
ta”, cantos rituais de plantio, odes às coisas naturais etc.
A lírica indígena não trabalha muito com abstrações (o que não
quer dizer que não opere com metáforas). A linguagem se mostra
apegada ao mundo concreto, movendo-se sobre fortes referências
empíricas, e praticando toda forma de animização. Borrando os limi-
tes (pelo menos para nossa compreensão de “estrangeiros”) entre o
sentido próprio e figurado, essa linguagem projeta um mundo mar-
cado de plenitude anímica e poética.
As coisas da Natureza, bichos, árvores, céu, astros, águas e ven-
tos, são assunto de poesia, quer diretamente, quer indiretamente, for-
necendo o referencial metafórico para falar também das relações hu-
manas e culturais. A distinção conceitual e - digamos assim - existen-
cial entre Natureza e Cultura, que baliza o conhecimento ocidental do
mundo, é entre os índios mais tênue; talvez fosse melhor dizer que a
relação entre os dois termos é para eles mais cerrada e vital.
Se insistimos em perceber pontos de contato entre os cantos das
diversas culturas indígenas, tentando captar as estruturas fundamen-
tais de sua linguagem poética, o que apreendemos, à primeira vista,
não difere muito do que caracteriza a poesia em geral: ritmias, repeti-
ções, paralelismos, procedimentos metafóricos e alegóricos. Todavia,
vale sublinhar, mais uma vez, a multiplicidade de formas e motivos
desses cantos, facilmente constatável mediante uma breve considera-
ção do repertório disponível, e contraposta à perspectiva
homogeneizadora tradicional. A diversidade verifica-se no interior
dos grupos e entre eles, projetando enorme variedade de gêneros,
assuntos, procedimentos estilísticos de natureza sintática ou semânti-
ca, imagística, inserções sócio-culturais, modos de produção e recep-
ção. Não se pode mais imaginar a poesia indígena envolta num véu
unificador que secundarize as diferenças internas, diferenças que aju-
dam a criar e perceber sua complexidade e historicidade.

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