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RESUMO: Este texto tem por objetivo, a partir do aporte teórico da Estética da
Recepção (JAUSS, 1994; ISER, 1996, 1999), refletir sobre as potencialidades da obra O
colar de Pérolas (2004), escrita por Graziela Bozano Hetzel e ilustrada por Andréia
Resende, na formação do leitor crítico (ECO, 2003). Justifica-se a eleição dessa obra
contemporânea, pelo seu valor estético, manifesto tanto na linguagem verbal quanto
imagética, no seu tratamento de temas psicológicos, na sua dialogia com o cânone
literário e em sua comunicabilidade com o leitor implícito. Constrói-se, neste artigo, a
hipótese de que a leitura desse livro, pelo seu viés crítico, pode exercer função social, na
acepção de Hans Robert Jauss (1994), pois permite ao jovem leitor rever e ampliar seus
horizontes de expectativa, por meio da reflexão.
Introdução
O livro O colar de Pérolas, escrito por Graziela Bozano Hetzel e ilustrado por
Andréia Resende, foi publicado pela primeira vez em 2002. Neste estudo, analisa-se a
edição publicada em 2004, visando a refletir, a partir do aporte teórico da Estética da
Recepção (JAUSS, 1994; ISER, 1996, 1999), sobre suas potencialidades na formação
do leitor crítico (ECO, 2003). Essa obra foi eleita, pelo seu valor estético, manifesto
tanto na linguagem verbal quanto imagética, no tratamento de seus temas psicológicos,
na sua dialogia com o cânone literário presente no jogo verbal e no visual, e em sua
comunicabilidade com o leitor implícito.
Essa relação dialógica entre texto e leitor, segundo Wolfgang Iser (1996),
decorre da presença de vazios que solicitam deste último um papel de organizador e
revitalizador da narrativa na composição literária. O leitor, ao preencher esses vazios
pela imaginação, estabelece uma interação com a obra. Nesse processo, ele “recebe” o
sentido do texto ao constituí-lo (ISER, 1996). Desse modo, a atualização da leitura se
faz presente como um jogo comunicativo, o qual requer a participação de um indivíduo
na feitura, no caso, seu leitor implícito (ISER, 1999). A comunicação ocorre quando
esse leitor, em busca de sentido, resgata a coerência do texto interrompida pelos vazios.
Esse resgate permite que sua produtividade seja ativada, pela utilização de sua atividade
imaginativa. Essa produtividade, conforme Iser (1999), torna a leitura prazerosa. Vale
destacar que, nesse leitor implícito, projeta-se o empírico, o jovem leitor.
O colar de pérolas (HETZEL, 2004) configura-se como uma obra de ficção
realista contemporânea, cuja gama cromática de suas páginas e de suas ilustrações, que
se alternam em tons de branco e azul escuro, é coerente com o cenário marítimo, repleto
de ondas encapeladas, próximo da casa onde reside uma família de classe prestigiada,
composta por pai, mãe e uma pequena menina, Alice. Pode-se notar, no nome dessa
protagonista, a dialogia com as obras de Lewis Carroll (1832-1898), Aventuras de Alice
no país das maravilhas (1865) e Através do espelho (1871), publicadas no final do
século XIX. No Brasil, o livro Alice: edição comentada (2002) congrega as duas obras
do escritor inglês. Essa apropriação do discurso do outro, segundo Mikhail Bakhtin
(1998), é própria da produção de natureza dialógica, a qual revela, por sua vez, o caráter
plural da cultura.
O título O colar de pérolas é coerente com o cenário marítimo da narrativa e
atua como alegoria das emoções da pequena Alice, pois evoca as festas sociais que seus
pais frequentam e das quais, a sua mãe retorna embriagada e irreconhecível. Justamente,
o comportamento ambíguo dessa mãe, amorosa e divertida quando sóbria, mas distante
e agressiva, quando embriagada, promove conflitos na pequena protagonista que se
depara com a ambivalência de sentimentos.
Na narrativa, essas ambivalências avultam no plano imagético nas emoções
expressas nas ilustrações, no jogo com as molduras e nos sombreamentos. Já no plano
verbal, nas descrições, nos silenciamentos e na presença de vazios. Esses recursos têm
por finalidade motivar o leitor a descobrir suas próprias projeções, pela concretude.
Assim, na análise da obra de Hetzel (2004), busca-se detectar como se efetiva sua
estrutura de comunicação e se sua narrativa desperta o senso crítico do leitor.
Como produção contemporânea, o discurso em O colar de pérolas (2004)
direciona-se para seu leitor implícito, relativizando certezas humanas e colocando no
centro do debate as relações familiares que se estabelecem entre a criança e o adulto, as
quais firmam suas identidades. Esse tema da individuação, aliado a descobertas
existenciais, representa outra característica inovadora da narrativa infantil, a qual
congrega a essa articulação temática uma estruturação estética favorável à formação do
leitor (COLOMER, 2003). Por esse tratamento temático complexo, constrói-se, neste
artigo, a hipótese de que a leitura desse livro, pelo seu viés crítico, pode exercer função
social, na acepção de Hans Robert Jauss (1994), pois permite ao jovem leitor rever e
ampliar seus horizontes de expectativa, por meio da reflexão.
O livro, embora tenha como protagonista uma criança e seu narrador observador
relate a história a partir das percepções dela, indicando potencial recepção infantil,
obteve a menção Altamente Recomendável, concedida pela Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ (2003), na categoria juvenil. Contudo, sua indicação
etária, conforme ficha catalográfica, classifica-o como infantojuvenil, sugerindo um
público leitor entre 10 e 12 anos de idade. A dificuldade de definição de um público
para a obra de Hetzel (2004) advém das temáticas densas tratadas em sua narrativa que
lhe conferem caráter fraturante, de seus recursos estéticos, sua dialogia com o cânone e
da estruturação da trama sob a forma de um jogo. Justamente, esses vetores por
despertarem o interesse pela leitura da obra em públicos diversos, como crianças, jovens
e adultos, classificam-na como crossover ou literatura de fronteira, conforme Sandra
Beckett (2009).
Na contemporaneidade, segundo Rachel Falconer (2009), as mudanças sociais e
econômicas mundiais favoreceram a uma revisão da literatura infantil e juvenil que,
apesar do rótulo necessário ao trabalho da editora, não tem mais um público definido no
momento de sua produção. Para Teresa Colomer (2003), a inovação nessa produção
literária provém, também, da abordagem das relações paterno-filiais, em que os pais,
paradoxalmente, configuram-se como irresponsáveis, promovendo o sofrimento em seus
filhos. O recurso aos temas fraturantes na literatura de potencial recepção infantil
permite tratar, pela perspectiva da criança, do difícil processo de crescimento e
convivência com sentimentos complexos. A mediação dessas obras, pela leitura atenta e
escuta sensível, pode promover discussões enriquecedoras e preparar o jovem leitor para
lidar com os diversos sentimentos que permeiam o processo de viver. Por sua vez, a
interação dos adultos com esses livros pode convidá-los a repensar a relação que
estabelecem com a criança e a se reinventarem. Em síntese, justifica-se nossa epígrafe.
Para a consecução do objetivo de se analisar a obra de Hetzel (2004), optou-se por
considerar o projeto gráfico-editorial do livro e as funções de suas ilustrações na
estrutura do texto. Além da função de colaboração, em que o sentido não emerge só das
imagens ou do texto, mas da relação entre os dois, pois um preenche as lacunas do outro
(LINDEN, 2011, p.120-1), buscou-se detectar as categorizadas por Luís Camargo
(1998), pautadas em Jakobson. Entre essas funções, almejou-se reconhecer a narrativa,
orientada para o referente, visando a situar o representado, suas transformações e/ou
ações que asseguram a progressão discursiva; a expressiva, orientada para o emissor da
mensagem na manifestação de seus sentimentos e emoções, ou para o ser representado
na manifestação interior; a estética que põe em relevo a forma ou configuração visual
com o objetivo de sensibilizar por meio das cores ou sobreposições delas em pinceladas
com textura, manchas, alternâncias, abstrações, linhas etc.; a lúdica, em que a imagem
apresenta-se sob a forma de um jogo, seja em relação ao emissor, referente, à forma da
mensagem visual ou ao destinatário; e a metalinguística, orientada para o próprio
código visual com remissão ao universo da arte.
Entre molduras
A obra O colar de Pérolas (2002), escrita por Graziela Hetzel e ilustrada por
Andréia Resende, possui trinta e três páginas, nas quais texto verbal e imagético
estabelecem uma relação de interação e colaboração na construção de significados.
Embora haja certa predominância do texto verbal em relação ao imagético, ambos se
distribuem pelas páginas e têm o mesmo estatuto. As ilustrações, ao dividirem espaço
com o texto verbal, alternam sua posição, assim, ora aparecem na página da direita, ora
na da esquerda, ora no alto, ora no baixo. Desse modo, evitam a previsibilidade na
disposição gráfica. O formato do livro é retangular, tendo como dimensões 26cm de
altura x 20cm de largura. Sua encadernação grampeada e resistente indica que foi
planejado para suportar o manuseio de jovens leitores.
Sua narrativa apresenta-se como um jogo com o leitor em que a ambiguidade de
sentimentos da protagonista, motivada pela duplicidade de comportamento de sua mãe,
é revelada gradualmente, por meio de cenas emolduradas em que cada quadro, pelo
recurso à função expressiva, expõe uma das emoções da pequena protagonista. Esses
quadros, por sua vez, evocam um jogo que se inicia, pela capa do livro, a qual traz ao
centro um rosto receoso de uma bela menina de olhos azuis e cabelos encaracolados,
margeado por uma moldura quadrada, sombreada nas cores preta e cinza, que
intensificam o efeito dramático. Pela manutenção de uma mesma gama cromática em
tons de azul e pelo recurso a texturas e sombreamentos que produzem efeitos de sentido,
nota-se a função estética nas ilustrações.
Na capa, pode-se observar o recurso ao paradoxo, pois embora a blusa da
menina seja coerente ao cenário e evoque leveza, pois estampada com conchas e estrelas
do mar, a projeção de seu corpo para a esquerda e a expressão de medo em seu rosto,
pelo recurso às funções expressiva e narrativa, convidam à dedução de que se esquiva
de algo ou de alguém que, talvez, a ameace.
Como plano de fundo dessa capa, há um mar em tons de azul que, na
configuração sangrada, cobre quase toda a extensão do olhar. Ao fundo, vê-se, apenas,
uma pequena porção de um horizonte em tons mais claros de azul que se funde com o
céu nebuloso. Essa paisagem prossegue pela quarta capa, desprovida de sinopse. Um
único cenário, aquebrantado por pequenas ondas espumaradas, pelo recurso à função
narrativa, compõe as capas, evocando águas frias e turbulentas. O efeito de sentido
dessa capa é a de que, na turbulência, insere-se uma menina a que se confere destaque,
pois ocupa o centro da moldura. A estampa de suas roupas, a paleta de cores escolhida
para sua feitura e seu olhar assustado, pelo recurso à função expressiva, suscita
preenchimento de um vazio, pela construção de hipóteses dos rumos narrativos, a
menina está imersa na turbulência, a mercê do movimento do mar.
O emprego da moldura que, em um espaço narrativo, atua como limite entre
ficção e realidade (LINDEN, 2011), na capa exerce função metalinguística, pois indica
ao leitor seu papel crítico, lembrando-lhe de que as representações, embora dependam
de uma construção imaginária, exigem também senso crítico no confronto com a
realidade. Justamente, essa cena só será compreendida durante a leitura, pelo contexto
da história. A abertura do livro mantém na contraguarda o tom azul escuro, como
manutenção do efeito dramático. Nas folhas de guarda, a mesma cena que compõe o
plano de fundo da capa e quarta capa aparece, remetendo a obra a um mar turbulento, a
uma história complexa a que o leitor adentra.
A história inicia-se, pelo plano imagético, com a ilustração de um colar de
pérolas com o fecho aberto, disposto ao centro de uma página em tons de azul escuro.
No plano verbal, por meio de descrições sinestésicas, o narrador informa que esse colar
se encontra em um estojo de veludo azul “[...] quase negro” (2004, p. 05), em torno do
qual uma menina se aproxima, mas permanece “Sem palavras, [...]” (p. 05). O
comportamento dessa menina opõe-se ao alegre de sua perfumada e elegante mãe que
“volteia pelo quarto, ruído macio de seda misturado ao tiquetaquear dos saltos altos
[...]” (p. 05 – grifo nosso)
Pelo emprego desse vocábulo de base onomatopaica, a descrição confere
dinamismo às performances da mãe que se arruma para uma festa e “cantarola
baixinho” (2004, p. 06), revelando felicidade. A informação de preparativos para uma
festa, em geral apreciada por crianças, acentua o estranhamento da cena, pois em Alice
desperta tristeza e preocupação, inclusive provocando lágrimas. Pode-se notar que, pelo
recurso à afluência de vazios, a narrativa não revela ao leitor elementos que justifiquem
os sentimentos da protagonista, produzindo questionamentos acerca dos rumos da
história.
Instauram-se, então, vazios suplementares, pois Alice “limpa com os dedos as
lágrimas e depois os lambe um a um, como na praia” (2004, p. 06). Somente no
transcorrer da leitura, pode-se perceber que a menina faz um contraponto entre a
situação vivida e as suas lembranças felizes resultantes de brincadeiras na praia com a
mãe, desvelando que a relação entre ambas é ambígua, pautada pelo amor, mas também
pelo medo. Pelo recurso ao paradoxo, nota-se a oposição entre as emoções de mãe e
filha, e de suas ações. O pai adentra esse quarto e, pela sua pergunta à filha sobre o que
ela está fazendo, percebe-se que ignora ou finge não perceber a introversão da menina.
Alice percebe o distanciamento do pai e, “sem responder” ao questionamento dele, deita
na cama do casal, abraçada a sua gata, como se fosse um “novelo em torno dela” (p. 06)
A escolha do termo “novelo”, muito apreciado pelos gatos para brincarem,
indica que Alice é uma peça no jogo familiar de acobertamento das atitudes da mãe. O
narrador indica que Alice não quer ver o que está por vir, descrevendo seus olhos
“semicerrados” quando a mãe se aproxima para se despedir. Nota-se o desconforto
causado pelo beijo dessa mãe, descrito como “um roçar áspero de lábios” (2004, p. 09).
Avulta o estranhamento na narrativa, pois o carinho de uma mãe, normalmente, é
apreciado por crianças. Todavia, para Alice não é agradável. Enfim, o casal se despede
da menina e aconchega uma coberta sobre seu corpo. Ela permanece dormindo,
abraçada ao seu animal de estimação. A ilustração que dialoga com essa cena avança
em significados em relação ao texto verbal, pelo recurso à função lúdica, pois a colcha
xadrez que cobre a cama, pela padronagem em preto e branco, remete a um tabuleiro (p.
07), no qual Alice se insere, como uma peça desprovida de vontade própria à mercê dos
jogadores; seus pais. A aparente falta de sentido dessa cena, o nome da protagonista, seu
animal de estimação e a configuração de sua colcha remetem o leitor às obras de Carroll
(2022).
Na ilustração de Resende (HETZEL, 2004), pelo recurso à função estética,
somente a gata e o rosto de Alice que dela se aproxima estão iluminados no ambiente,
remetendo à sensação de conforto que o animal confere à protagonista. Essa gata evoca
o Gato de Cheshire que a protagonista de Carroll (2002) procura nos momentos em que
busca um direcionamento. Contudo, na narrativa (HETZEL, 2004), embora Alice
busque pelo animal nos momentos em que está confusa, pelo viés verista, a gata revela-
se impotente e, como sente a atmosfera opressiva na casa, esquiva-se e esconde-se.
Como se pode notar, a dialogia tanto no plano verbal quanto imagético
(HETZEL, 2004) realiza-se, como afirma Silviano Santiago (1978), pela visada
antropofágica, pois determinada pelo lugar da escritora e da ilustradora, como
periféricas, latino-americana, com discurso inserido no subsistema infantil. Hetzel e
Rezende (2004), pelo caráter pós-moderno de sua produção, utilizam-se da referência
inscrita na cultura, mas a subvertem, deslocando a noção de infância feliz, por meio de
um questionamento sobre a angústia de crescer em uma família que sofre com os efeitos
do alcoolismo.
Os medos de Alice justificam-se na cena em que a mãe, ao retornar da festa com
um hálito acre e forte, pega ao colo a menina, ainda dormindo, para levá-la até seu
próprio quarto: “O rosto espremido contra o colar de pérolas, o frio das pérolas
alastrando-se, gelando seu corpo em ondas de medo.” (2004, p. 08). Como a mãe está
alcoolizada, possui andar vacilante, tropeça e quase derruba a criança que, assustada,
agarra-se ao colar, arrebentando-o: “A mãe grita e arranca os braços da menina do
pescoço, de repente tomada de fúria. Alice treme, encurralada contra a parede, à espera
do castigo. Mas a mãe já se esqueceu dela e agora resmunga frases sem sentido.” (p.
08). O pai se aproxima e vê “mãe e filha chorando, tentando juntar as pérolas.” (p. 08).
Essa cena revela a expectativa da menina de receber um castigo sempre que a mãe está
embriagada. Como esse castigo não vem, ambas tentam reunir as pérolas – símbolo de
raridade e pureza (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2019) –, evocando a tentativa de
resgate do precioso amor mútuo que possuem, mas que, pela ação do álcool, se perde
em um convívio turbulento.
A ilustração que dialoga com essa cena, sob a forma sangrada e desprovida de
moldura, revela o estilhaçar do cordão que prende as pérolas, evocando, pelo recurso à
função narrativa, assim, as pérolas espalhando-se pela página mostram o destroçar
gradual e contínuo da relação entre mãe e filha.
O narrador, pelo recurso à onisciência e ao discurso indireto livre, assume
posicionamento contrário ao da família de Alice que a silencia, pois cede-lhe espaço no
relato. Assim, informa que Alice odeia festas: “[...] colares de pérolas e aquele cheiro.
Não é à mãe que ela odeia. A mãe, não! Alice adora a mãe. [...] a mãe de Alice não
machuca ninguém. Aquela outra, a estranha, não é a mãe dela. Não é, não.” (p. 09). A
mãe de Alice quando está sóbria “gosta de brincar e dar beijos de borboleta” com os
cílios (p. 09), que se contrapõem ao “roçar áspero”, da cena dos preparativos para a
festa. Também possui mãos leves e macias, e costuma brincar na praia com a filha.
Nesses raros momentos, que representam os preferidos de Alice, ambas constroem
memórias preciosas. Todavia, o álcool acarreta perda de identidade da mãe e
incoerência em suas atitudes, transformando-a em uma “mãe estranha”. Pela potência de
negação, o narrador sutilmente indica as agressões de que a menina é vítima quando sua
mãe está embriagada.
Alice na obra de Hetzel (2004), embora busque entender, como a personagem de
Carrol (2002), o que acontece ao seu redor e descobrir sua própria identidade, não se
encontra em meio à aventura em um cenário fantástico, praticando um jogo do qual
possa sair. Ela se distancia da protagonista do escritor inglês, pois não possui amparo
familiar, nem é bem articulada. Como sente muito medo, também não posiciona sua voz
perante os adultos. Alice convive com o intolerável, com o temor em relação ao
comportamento da mãe, por isto esquiva-se pela casa, assim como a própria gata o faz,
como indicam as ilustrações das colchas da cama da menina (2004, p. 20) e da cama de
seus pais (p. 07), ainda, do ladrilho da cozinha (p. 15), como peças de um jogo
involuntário.
Conforme Teresa Colomer (2003), as alusões intertextuais projetam um leitor
implícito competente, cujo repertório cultural assegura a cumplicidade com o narrador,
pela partilha da mesma referência literária. Além disso, permitem notar que o nonsense
na trama de Hetzel (2004) advém, paradoxalmente, do verismo manifesto no medo
cotidiano e no ódio da menina a festas. Suas emoções são resultantes da violência de
que é vítima, a qual sequestra sua infância, pois imobiliza suas potencialidades criativas.
Justifica-se que Alice não queira festa no próprio aniversário, deixe de convidar outras
crianças para brincar em sua casa, mesmo nas férias e não tenha interesse por livros
coloridos com contos de fadas.
A temporalidade na obra configura-se pela presentificação, como se o leitor
tivesse acesso concomitante ao desenrolar dos eventos diante de seus olhos. Essa
estratégia narrativa confere prazer na leitura, pelo efeito de sentido de coparticipação.
Pela temática e pela dramaticidade no seu tratamento, o espaço configura-se como
fechado, na casa onde reside a família de Alice, em especial, no quarto da protagonista
quando ela se esconde do convívio com a mãe. O único espaço que conota liberdade é o
da praia, onde ambas se dirigem para momentos especiais durante as janelas de
sobriedade da mãe: “A praia é um lugar especial, só dela e da mãe. [...] Alice e a mãe
gostam de fazer castelos, de catar tatuís, ficar boiando e esguichando água, brincando de
baleia. Às vezes as duas ficam sentadas na areia, só olhando o mar” (p. 10).
Nesse contemplar do mar, Alice percebe como ele se altera. Assim, a menina
busca compreender a mãe e suas mudanças de humor e comportamento, pela
comparação com o mar: “Os olhos da mãe ficam da cor do mar. Vai ver é por isso que a
mãe também nunca é igual. O pai não vive dizendo que ela nada como sereia?” (2004,
p. 10). O mar como alegoria da mãe ressignifica a ilustração da capa, corroborando no
sentido de que as intempéries que enclausuram a menina – evocadas pela moldura –
advêm das ações dessa mulher.
Na ilustração que dialoga com essa cena, pelo recurso à função narrativa, pode-
se ver um instante dos momentos felizes de Alice entre moldura. Ela aparece de costas,
em trajes de banho, correndo em direção à praia com seu baldinho, para brincar com a
mãe que, sóbria, cheira à lavanda. Pela velocidade de suas ações, nota-se sua ansiedade
por vivenciar momentos felizes com a mãe que, apesar da ambiguidade de
comportamentos, Alice ainda ama.
Na sequência narrativa, a mãe ajuda a filha a trocar de roupa e se assusta ao
notar “[...] manchas arroxeadas em seu braço” (2004, p. 12), pergunta, então, à Alice o
que era aquilo. A menina, novamente, fica sem responder, olhando para o chão.
Instaura-se um vazio que será intensificado, pela verbalização dessa mãe que
compreende o que houve e, pela potência de negação (ISER, 1999): “– Nunca mais,
nunca mais. Está bem? Você acredita em mim? Nunca mais, eu prometo.” (p. 12). Pode-
se observar que não se verbaliza o que aconteceu, cabe ao leitor perspicaz deduzi-lo. Por
sua vez, Alice, diante da indagação da mãe, desvia os olhos, enquanto afirma que
acredita em sua promessa. Sua atitude revela ao leitor atento que já existiram outras
juras, mas não foram cumpridas, embora ambas quisessem muito:
[...] – A mãe levanta o rosto de Alice, alisa seus cabelos, beija os olhos que
fogem dos seus. – Diz que acredita!
Alice sacode a cabeça:
– Acredito – sussurra, enfiando de novo o rosto no pescoço da mãe.
(HETZEL, 2004, p.14)
Considerações finais
Referências