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TEMAS FRATURANTES NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA:

ANÁLISE DA OBRA O COLAR DE PÉROLAS, DE GRAZIELA HETZEL

Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira


Maíra Isabel Zibordi

RESUMO: Este texto tem por objetivo, a partir do aporte teórico da Estética da
Recepção (JAUSS, 1994; ISER, 1996, 1999), refletir sobre as potencialidades da obra O
colar de Pérolas (2004), escrita por Graziela Bozano Hetzel e ilustrada por Andréia
Resende, na formação do leitor crítico (ECO, 2003). Justifica-se a eleição dessa obra
contemporânea, pelo seu valor estético, manifesto tanto na linguagem verbal quanto
imagética, no seu tratamento de temas psicológicos, na sua dialogia com o cânone
literário e em sua comunicabilidade com o leitor implícito. Constrói-se, neste artigo, a
hipótese de que a leitura desse livro, pelo seu viés crítico, pode exercer função social, na
acepção de Hans Robert Jauss (1994), pois permite ao jovem leitor rever e ampliar seus
horizontes de expectativa, por meio da reflexão.

PALAVRAS-CHAVE: Estética da Recepção e do Efeito; Temas Fraturantes; Leitor


Implícito.

Introdução

Se em nosso tempo a literatura para crianças


representa uma esperança é porque, como nenhuma
outra criação cultural, ela se presta a propiciar um
repensar da relação adulto-criança na qual possamos nos
inventar mutuamente.
Daniel Goldin (2012, p.86)

O livro O colar de Pérolas, escrito por Graziela Bozano Hetzel e ilustrado por
Andréia Resende, foi publicado pela primeira vez em 2002. Neste estudo, analisa-se a
edição publicada em 2004, visando a refletir, a partir do aporte teórico da Estética da
Recepção (JAUSS, 1994; ISER, 1996, 1999), sobre suas potencialidades na formação
do leitor crítico (ECO, 2003). Essa obra foi eleita, pelo seu valor estético, manifesto
tanto na linguagem verbal quanto imagética, no tratamento de seus temas psicológicos,
na sua dialogia com o cânone literário presente no jogo verbal e no visual, e em sua
comunicabilidade com o leitor implícito.
Essa relação dialógica entre texto e leitor, segundo Wolfgang Iser (1996),
decorre da presença de vazios que solicitam deste último um papel de organizador e
revitalizador da narrativa na composição literária. O leitor, ao preencher esses vazios
pela imaginação, estabelece uma interação com a obra. Nesse processo, ele “recebe” o
sentido do texto ao constituí-lo (ISER, 1996). Desse modo, a atualização da leitura se
faz presente como um jogo comunicativo, o qual requer a participação de um indivíduo
na feitura, no caso, seu leitor implícito (ISER, 1999). A comunicação ocorre quando
esse leitor, em busca de sentido, resgata a coerência do texto interrompida pelos vazios.
Esse resgate permite que sua produtividade seja ativada, pela utilização de sua atividade
imaginativa. Essa produtividade, conforme Iser (1999), torna a leitura prazerosa. Vale
destacar que, nesse leitor implícito, projeta-se o empírico, o jovem leitor.
O colar de pérolas (HETZEL, 2004) configura-se como uma obra de ficção
realista contemporânea, cuja gama cromática de suas páginas e de suas ilustrações, que
se alternam em tons de branco e azul escuro, é coerente com o cenário marítimo, repleto
de ondas encapeladas, próximo da casa onde reside uma família de classe prestigiada,
composta por pai, mãe e uma pequena menina, Alice. Pode-se notar, no nome dessa
protagonista, a dialogia com as obras de Lewis Carroll (1832-1898), Aventuras de Alice
no país das maravilhas (1865) e Através do espelho (1871), publicadas no final do
século XIX. No Brasil, o livro Alice: edição comentada (2002) congrega as duas obras
do escritor inglês. Essa apropriação do discurso do outro, segundo Mikhail Bakhtin
(1998), é própria da produção de natureza dialógica, a qual revela, por sua vez, o caráter
plural da cultura.
O título O colar de pérolas é coerente com o cenário marítimo da narrativa e
atua como alegoria das emoções da pequena Alice, pois evoca as festas sociais que seus
pais frequentam e das quais, a sua mãe retorna embriagada e irreconhecível. Justamente,
o comportamento ambíguo dessa mãe, amorosa e divertida quando sóbria, mas distante
e agressiva, quando embriagada, promove conflitos na pequena protagonista que se
depara com a ambivalência de sentimentos.
Na narrativa, essas ambivalências avultam no plano imagético nas emoções
expressas nas ilustrações, no jogo com as molduras e nos sombreamentos. Já no plano
verbal, nas descrições, nos silenciamentos e na presença de vazios. Esses recursos têm
por finalidade motivar o leitor a descobrir suas próprias projeções, pela concretude.
Assim, na análise da obra de Hetzel (2004), busca-se detectar como se efetiva sua
estrutura de comunicação e se sua narrativa desperta o senso crítico do leitor.
Como produção contemporânea, o discurso em O colar de pérolas (2004)
direciona-se para seu leitor implícito, relativizando certezas humanas e colocando no
centro do debate as relações familiares que se estabelecem entre a criança e o adulto, as
quais firmam suas identidades. Esse tema da individuação, aliado a descobertas
existenciais, representa outra característica inovadora da narrativa infantil, a qual
congrega a essa articulação temática uma estruturação estética favorável à formação do
leitor (COLOMER, 2003). Por esse tratamento temático complexo, constrói-se, neste
artigo, a hipótese de que a leitura desse livro, pelo seu viés crítico, pode exercer função
social, na acepção de Hans Robert Jauss (1994), pois permite ao jovem leitor rever e
ampliar seus horizontes de expectativa, por meio da reflexão.
O livro, embora tenha como protagonista uma criança e seu narrador observador
relate a história a partir das percepções dela, indicando potencial recepção infantil,
obteve a menção Altamente Recomendável, concedida pela Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ (2003), na categoria juvenil. Contudo, sua indicação
etária, conforme ficha catalográfica, classifica-o como infantojuvenil, sugerindo um
público leitor entre 10 e 12 anos de idade. A dificuldade de definição de um público
para a obra de Hetzel (2004) advém das temáticas densas tratadas em sua narrativa que
lhe conferem caráter fraturante, de seus recursos estéticos, sua dialogia com o cânone e
da estruturação da trama sob a forma de um jogo. Justamente, esses vetores por
despertarem o interesse pela leitura da obra em públicos diversos, como crianças, jovens
e adultos, classificam-na como crossover ou literatura de fronteira, conforme Sandra
Beckett (2009).
Na contemporaneidade, segundo Rachel Falconer (2009), as mudanças sociais e
econômicas mundiais favoreceram a uma revisão da literatura infantil e juvenil que,
apesar do rótulo necessário ao trabalho da editora, não tem mais um público definido no
momento de sua produção. Para Teresa Colomer (2003), a inovação nessa produção
literária provém, também, da abordagem das relações paterno-filiais, em que os pais,
paradoxalmente, configuram-se como irresponsáveis, promovendo o sofrimento em seus
filhos. O recurso aos temas fraturantes na literatura de potencial recepção infantil
permite tratar, pela perspectiva da criança, do difícil processo de crescimento e
convivência com sentimentos complexos. A mediação dessas obras, pela leitura atenta e
escuta sensível, pode promover discussões enriquecedoras e preparar o jovem leitor para
lidar com os diversos sentimentos que permeiam o processo de viver. Por sua vez, a
interação dos adultos com esses livros pode convidá-los a repensar a relação que
estabelecem com a criança e a se reinventarem. Em síntese, justifica-se nossa epígrafe.
Para a consecução do objetivo de se analisar a obra de Hetzel (2004), optou-se por
considerar o projeto gráfico-editorial do livro e as funções de suas ilustrações na
estrutura do texto. Além da função de colaboração, em que o sentido não emerge só das
imagens ou do texto, mas da relação entre os dois, pois um preenche as lacunas do outro
(LINDEN, 2011, p.120-1), buscou-se detectar as categorizadas por Luís Camargo
(1998), pautadas em Jakobson. Entre essas funções, almejou-se reconhecer a narrativa,
orientada para o referente, visando a situar o representado, suas transformações e/ou
ações que asseguram a progressão discursiva; a expressiva, orientada para o emissor da
mensagem na manifestação de seus sentimentos e emoções, ou para o ser representado
na manifestação interior; a estética que põe em relevo a forma ou configuração visual
com o objetivo de sensibilizar por meio das cores ou sobreposições delas em pinceladas
com textura, manchas, alternâncias, abstrações, linhas etc.; a lúdica, em que a imagem
apresenta-se sob a forma de um jogo, seja em relação ao emissor, referente, à forma da
mensagem visual ou ao destinatário; e a metalinguística, orientada para o próprio
código visual com remissão ao universo da arte.

Entre molduras

A obra O colar de Pérolas (2002), escrita por Graziela Hetzel e ilustrada por
Andréia Resende, possui trinta e três páginas, nas quais texto verbal e imagético
estabelecem uma relação de interação e colaboração na construção de significados.
Embora haja certa predominância do texto verbal em relação ao imagético, ambos se
distribuem pelas páginas e têm o mesmo estatuto. As ilustrações, ao dividirem espaço
com o texto verbal, alternam sua posição, assim, ora aparecem na página da direita, ora
na da esquerda, ora no alto, ora no baixo. Desse modo, evitam a previsibilidade na
disposição gráfica. O formato do livro é retangular, tendo como dimensões 26cm de
altura x 20cm de largura. Sua encadernação grampeada e resistente indica que foi
planejado para suportar o manuseio de jovens leitores.
Sua narrativa apresenta-se como um jogo com o leitor em que a ambiguidade de
sentimentos da protagonista, motivada pela duplicidade de comportamento de sua mãe,
é revelada gradualmente, por meio de cenas emolduradas em que cada quadro, pelo
recurso à função expressiva, expõe uma das emoções da pequena protagonista. Esses
quadros, por sua vez, evocam um jogo que se inicia, pela capa do livro, a qual traz ao
centro um rosto receoso de uma bela menina de olhos azuis e cabelos encaracolados,
margeado por uma moldura quadrada, sombreada nas cores preta e cinza, que
intensificam o efeito dramático. Pela manutenção de uma mesma gama cromática em
tons de azul e pelo recurso a texturas e sombreamentos que produzem efeitos de sentido,
nota-se a função estética nas ilustrações.
Na capa, pode-se observar o recurso ao paradoxo, pois embora a blusa da
menina seja coerente ao cenário e evoque leveza, pois estampada com conchas e estrelas
do mar, a projeção de seu corpo para a esquerda e a expressão de medo em seu rosto,
pelo recurso às funções expressiva e narrativa, convidam à dedução de que se esquiva
de algo ou de alguém que, talvez, a ameace.
Como plano de fundo dessa capa, há um mar em tons de azul que, na
configuração sangrada, cobre quase toda a extensão do olhar. Ao fundo, vê-se, apenas,
uma pequena porção de um horizonte em tons mais claros de azul que se funde com o
céu nebuloso. Essa paisagem prossegue pela quarta capa, desprovida de sinopse. Um
único cenário, aquebrantado por pequenas ondas espumaradas, pelo recurso à função
narrativa, compõe as capas, evocando águas frias e turbulentas. O efeito de sentido
dessa capa é a de que, na turbulência, insere-se uma menina a que se confere destaque,
pois ocupa o centro da moldura. A estampa de suas roupas, a paleta de cores escolhida
para sua feitura e seu olhar assustado, pelo recurso à função expressiva, suscita
preenchimento de um vazio, pela construção de hipóteses dos rumos narrativos, a
menina está imersa na turbulência, a mercê do movimento do mar.
O emprego da moldura que, em um espaço narrativo, atua como limite entre
ficção e realidade (LINDEN, 2011), na capa exerce função metalinguística, pois indica
ao leitor seu papel crítico, lembrando-lhe de que as representações, embora dependam
de uma construção imaginária, exigem também senso crítico no confronto com a
realidade. Justamente, essa cena só será compreendida durante a leitura, pelo contexto
da história. A abertura do livro mantém na contraguarda o tom azul escuro, como
manutenção do efeito dramático. Nas folhas de guarda, a mesma cena que compõe o
plano de fundo da capa e quarta capa aparece, remetendo a obra a um mar turbulento, a
uma história complexa a que o leitor adentra.
A história inicia-se, pelo plano imagético, com a ilustração de um colar de
pérolas com o fecho aberto, disposto ao centro de uma página em tons de azul escuro.
No plano verbal, por meio de descrições sinestésicas, o narrador informa que esse colar
se encontra em um estojo de veludo azul “[...] quase negro” (2004, p. 05), em torno do
qual uma menina se aproxima, mas permanece “Sem palavras, [...]” (p. 05). O
comportamento dessa menina opõe-se ao alegre de sua perfumada e elegante mãe que
“volteia pelo quarto, ruído macio de seda misturado ao tiquetaquear dos saltos altos
[...]” (p. 05 – grifo nosso)
Pelo emprego desse vocábulo de base onomatopaica, a descrição confere
dinamismo às performances da mãe que se arruma para uma festa e “cantarola
baixinho” (2004, p. 06), revelando felicidade. A informação de preparativos para uma
festa, em geral apreciada por crianças, acentua o estranhamento da cena, pois em Alice
desperta tristeza e preocupação, inclusive provocando lágrimas. Pode-se notar que, pelo
recurso à afluência de vazios, a narrativa não revela ao leitor elementos que justifiquem
os sentimentos da protagonista, produzindo questionamentos acerca dos rumos da
história.
Instauram-se, então, vazios suplementares, pois Alice “limpa com os dedos as
lágrimas e depois os lambe um a um, como na praia” (2004, p. 06). Somente no
transcorrer da leitura, pode-se perceber que a menina faz um contraponto entre a
situação vivida e as suas lembranças felizes resultantes de brincadeiras na praia com a
mãe, desvelando que a relação entre ambas é ambígua, pautada pelo amor, mas também
pelo medo. Pelo recurso ao paradoxo, nota-se a oposição entre as emoções de mãe e
filha, e de suas ações. O pai adentra esse quarto e, pela sua pergunta à filha sobre o que
ela está fazendo, percebe-se que ignora ou finge não perceber a introversão da menina.
Alice percebe o distanciamento do pai e, “sem responder” ao questionamento dele, deita
na cama do casal, abraçada a sua gata, como se fosse um “novelo em torno dela” (p. 06)
A escolha do termo “novelo”, muito apreciado pelos gatos para brincarem,
indica que Alice é uma peça no jogo familiar de acobertamento das atitudes da mãe. O
narrador indica que Alice não quer ver o que está por vir, descrevendo seus olhos
“semicerrados” quando a mãe se aproxima para se despedir. Nota-se o desconforto
causado pelo beijo dessa mãe, descrito como “um roçar áspero de lábios” (2004, p. 09).
Avulta o estranhamento na narrativa, pois o carinho de uma mãe, normalmente, é
apreciado por crianças. Todavia, para Alice não é agradável. Enfim, o casal se despede
da menina e aconchega uma coberta sobre seu corpo. Ela permanece dormindo,
abraçada ao seu animal de estimação. A ilustração que dialoga com essa cena avança
em significados em relação ao texto verbal, pelo recurso à função lúdica, pois a colcha
xadrez que cobre a cama, pela padronagem em preto e branco, remete a um tabuleiro (p.
07), no qual Alice se insere, como uma peça desprovida de vontade própria à mercê dos
jogadores; seus pais. A aparente falta de sentido dessa cena, o nome da protagonista, seu
animal de estimação e a configuração de sua colcha remetem o leitor às obras de Carroll
(2022).
Na ilustração de Resende (HETZEL, 2004), pelo recurso à função estética,
somente a gata e o rosto de Alice que dela se aproxima estão iluminados no ambiente,
remetendo à sensação de conforto que o animal confere à protagonista. Essa gata evoca
o Gato de Cheshire que a protagonista de Carroll (2002) procura nos momentos em que
busca um direcionamento. Contudo, na narrativa (HETZEL, 2004), embora Alice
busque pelo animal nos momentos em que está confusa, pelo viés verista, a gata revela-
se impotente e, como sente a atmosfera opressiva na casa, esquiva-se e esconde-se.
Como se pode notar, a dialogia tanto no plano verbal quanto imagético
(HETZEL, 2004) realiza-se, como afirma Silviano Santiago (1978), pela visada
antropofágica, pois determinada pelo lugar da escritora e da ilustradora, como
periféricas, latino-americana, com discurso inserido no subsistema infantil. Hetzel e
Rezende (2004), pelo caráter pós-moderno de sua produção, utilizam-se da referência
inscrita na cultura, mas a subvertem, deslocando a noção de infância feliz, por meio de
um questionamento sobre a angústia de crescer em uma família que sofre com os efeitos
do alcoolismo.
Os medos de Alice justificam-se na cena em que a mãe, ao retornar da festa com
um hálito acre e forte, pega ao colo a menina, ainda dormindo, para levá-la até seu
próprio quarto: “O rosto espremido contra o colar de pérolas, o frio das pérolas
alastrando-se, gelando seu corpo em ondas de medo.” (2004, p. 08). Como a mãe está
alcoolizada, possui andar vacilante, tropeça e quase derruba a criança que, assustada,
agarra-se ao colar, arrebentando-o: “A mãe grita e arranca os braços da menina do
pescoço, de repente tomada de fúria. Alice treme, encurralada contra a parede, à espera
do castigo. Mas a mãe já se esqueceu dela e agora resmunga frases sem sentido.” (p.
08). O pai se aproxima e vê “mãe e filha chorando, tentando juntar as pérolas.” (p. 08).
Essa cena revela a expectativa da menina de receber um castigo sempre que a mãe está
embriagada. Como esse castigo não vem, ambas tentam reunir as pérolas – símbolo de
raridade e pureza (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2019) –, evocando a tentativa de
resgate do precioso amor mútuo que possuem, mas que, pela ação do álcool, se perde
em um convívio turbulento.
A ilustração que dialoga com essa cena, sob a forma sangrada e desprovida de
moldura, revela o estilhaçar do cordão que prende as pérolas, evocando, pelo recurso à
função narrativa, assim, as pérolas espalhando-se pela página mostram o destroçar
gradual e contínuo da relação entre mãe e filha.
O narrador, pelo recurso à onisciência e ao discurso indireto livre, assume
posicionamento contrário ao da família de Alice que a silencia, pois cede-lhe espaço no
relato. Assim, informa que Alice odeia festas: “[...] colares de pérolas e aquele cheiro.
Não é à mãe que ela odeia. A mãe, não! Alice adora a mãe. [...] a mãe de Alice não
machuca ninguém. Aquela outra, a estranha, não é a mãe dela. Não é, não.” (p. 09). A
mãe de Alice quando está sóbria “gosta de brincar e dar beijos de borboleta” com os
cílios (p. 09), que se contrapõem ao “roçar áspero”, da cena dos preparativos para a
festa. Também possui mãos leves e macias, e costuma brincar na praia com a filha.
Nesses raros momentos, que representam os preferidos de Alice, ambas constroem
memórias preciosas. Todavia, o álcool acarreta perda de identidade da mãe e
incoerência em suas atitudes, transformando-a em uma “mãe estranha”. Pela potência de
negação, o narrador sutilmente indica as agressões de que a menina é vítima quando sua
mãe está embriagada.
Alice na obra de Hetzel (2004), embora busque entender, como a personagem de
Carrol (2002), o que acontece ao seu redor e descobrir sua própria identidade, não se
encontra em meio à aventura em um cenário fantástico, praticando um jogo do qual
possa sair. Ela se distancia da protagonista do escritor inglês, pois não possui amparo
familiar, nem é bem articulada. Como sente muito medo, também não posiciona sua voz
perante os adultos. Alice convive com o intolerável, com o temor em relação ao
comportamento da mãe, por isto esquiva-se pela casa, assim como a própria gata o faz,
como indicam as ilustrações das colchas da cama da menina (2004, p. 20) e da cama de
seus pais (p. 07), ainda, do ladrilho da cozinha (p. 15), como peças de um jogo
involuntário.
Conforme Teresa Colomer (2003), as alusões intertextuais projetam um leitor
implícito competente, cujo repertório cultural assegura a cumplicidade com o narrador,
pela partilha da mesma referência literária. Além disso, permitem notar que o nonsense
na trama de Hetzel (2004) advém, paradoxalmente, do verismo manifesto no medo
cotidiano e no ódio da menina a festas. Suas emoções são resultantes da violência de
que é vítima, a qual sequestra sua infância, pois imobiliza suas potencialidades criativas.
Justifica-se que Alice não queira festa no próprio aniversário, deixe de convidar outras
crianças para brincar em sua casa, mesmo nas férias e não tenha interesse por livros
coloridos com contos de fadas.
A temporalidade na obra configura-se pela presentificação, como se o leitor
tivesse acesso concomitante ao desenrolar dos eventos diante de seus olhos. Essa
estratégia narrativa confere prazer na leitura, pelo efeito de sentido de coparticipação.
Pela temática e pela dramaticidade no seu tratamento, o espaço configura-se como
fechado, na casa onde reside a família de Alice, em especial, no quarto da protagonista
quando ela se esconde do convívio com a mãe. O único espaço que conota liberdade é o
da praia, onde ambas se dirigem para momentos especiais durante as janelas de
sobriedade da mãe: “A praia é um lugar especial, só dela e da mãe. [...] Alice e a mãe
gostam de fazer castelos, de catar tatuís, ficar boiando e esguichando água, brincando de
baleia. Às vezes as duas ficam sentadas na areia, só olhando o mar” (p. 10).
Nesse contemplar do mar, Alice percebe como ele se altera. Assim, a menina
busca compreender a mãe e suas mudanças de humor e comportamento, pela
comparação com o mar: “Os olhos da mãe ficam da cor do mar. Vai ver é por isso que a
mãe também nunca é igual. O pai não vive dizendo que ela nada como sereia?” (2004,
p. 10). O mar como alegoria da mãe ressignifica a ilustração da capa, corroborando no
sentido de que as intempéries que enclausuram a menina – evocadas pela moldura –
advêm das ações dessa mulher.
Na ilustração que dialoga com essa cena, pelo recurso à função narrativa, pode-
se ver um instante dos momentos felizes de Alice entre moldura. Ela aparece de costas,
em trajes de banho, correndo em direção à praia com seu baldinho, para brincar com a
mãe que, sóbria, cheira à lavanda. Pela velocidade de suas ações, nota-se sua ansiedade
por vivenciar momentos felizes com a mãe que, apesar da ambiguidade de
comportamentos, Alice ainda ama.
Na sequência narrativa, a mãe ajuda a filha a trocar de roupa e se assusta ao
notar “[...] manchas arroxeadas em seu braço” (2004, p. 12), pergunta, então, à Alice o
que era aquilo. A menina, novamente, fica sem responder, olhando para o chão.
Instaura-se um vazio que será intensificado, pela verbalização dessa mãe que
compreende o que houve e, pela potência de negação (ISER, 1999): “– Nunca mais,
nunca mais. Está bem? Você acredita em mim? Nunca mais, eu prometo.” (p. 12). Pode-
se observar que não se verbaliza o que aconteceu, cabe ao leitor perspicaz deduzi-lo. Por
sua vez, Alice, diante da indagação da mãe, desvia os olhos, enquanto afirma que
acredita em sua promessa. Sua atitude revela ao leitor atento que já existiram outras
juras, mas não foram cumpridas, embora ambas quisessem muito:

[...] – A mãe levanta o rosto de Alice, alisa seus cabelos, beija os olhos que
fogem dos seus. – Diz que acredita!
Alice sacode a cabeça:
– Acredito – sussurra, enfiando de novo o rosto no pescoço da mãe.
(HETZEL, 2004, p.14)

A narrativa focaliza, então, o cotidiano solitário de Alice, na ilustração ela


aparece sentada no chão do seu quarto, brincando com sua boneca italiana e rodeada de
presentes. Trata-se do dia de seu aniversário. Pelo recurso à metalinguagem, Alice –
personagem de uma história com ilustrações –, também ganhou livros, cujas capas em
cores “[...] falam de meninas e lobos, princesas e sapos.” (2004, p. 13). Todavia, eles
não a interessam, pois diversos de sua história, exploram a fantasia, evocando um
contraponto ao tema fraturante e verista que permeia a obra. Percebe-se a solidão de
Alice, cuja única companhia é uma boneca que testemunha seus poucos sorrisos e suas
muitas lágrimas.
Embora seja seu aniversário, Alice recusa de forma veemente uma festa, aceita
apenas um bolo com seus pais, avós e padrinhos. Há um estranhamento na família e a
afirmação de que “[...] ninguém entendeu. [...]. Foi um espanto, [...], mas ela venceu.”
(2004, p. 14). Pelo efeito de nonsense, que instaura um ponto de indeterminação (ISER,
1996, 1999), o leitor deduz que a protagonista, sabendo dos riscos de um possível
encontro com a “mãe estranha”, cria estratégias para evitá-la, mesmo privando-se de
uma comemoração. A afirmação do narrador de que Alice vencera ao impor sua
vontade, põe em relevo o quanto ela já perdeu no processo de convívio social e familiar.
Reforça essa perda, a cena da menina, cantarolando: “– O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou o amor que tu me tinhas era pouco, se acabou...” (2004, p. 14),
enquanto penteia sua boneca em seu quarto. Pelo recurso à intertextualidade, o leitor
aciona seu repertório cultural no reconhecimento dessa cantiga popular, intitulada
“Ciranda cirandinha” (INFOESCOLA, 2017). Assim, por analogia com a canção que
trata do término de um relacionamento – cujo vínculo, representado por um anel feito de
vidro, era falso e por isso se quebrou –, pode-se deduzir que as promessas da mãe de
Alice também são frágeis e não se cumprem. Alice recorda-se, então, com alegria do
bolo de aniversário, interrompe a brincadeira e corre para a copa, a fim de verificar
como ficou sua decoração: “Ao chegar à porta, pára, seu corpo se encolhe. A mãe está
de costas, nas mãos um copo de bebida amarela onde boiam cubos de gelo. Alice se
esconde, o coração descompassado, para espionar a mãe.” (p. 14).
Na ilustração que interage com essa cena, pelo recurso à função expressiva,
pode-se ver Alice de costas que se ampara à parede e tem os pés cruzados,
demonstrando sua apreensão. No centro da ilustração, percebe-se o paradoxo sobre a
mesa, pois o copo de whisky destoa dos preparativos realizados para a decoração de um
bolo destinado à festa infantil. Notam-se sobre o glacê branco desse bolo cinco velas,
embora possam existir pelo menos mais duas, indicando a possível idade da menina:
sete anos (2004, p. 15). Desse modo, embora a narrativa não mencione o tipo de bebida,
nem a idade de Alice, a ilustração avança em seus significados, ampliando-os. A menina
vê a mãe salpicando os confeitos sobre a cobertura e, momentaneamente, tranquiliza-se
diante da beleza do bolo. Todavia, o relato ganha velocidade, por meio de frases curtas
que revelam a mãe bebendo cada vez mais e, por isto, arrastando as velas de lugar, “[...]
deixando marcas fundas no glacê.” (p. 17), também, atrapalhando-se com o papel de
seda, derrubando as balas de coco no chão, ao tentar embrulhá-las.
O encadeamento de ações dessa mãe confere ritmo ao seu ato de embriagar-se.
Assim, ao estragar o delicado glacê e esfarelar as balas de coco, ambos na cor branca
que evoca pureza, ela destrói emocionalmente a criança. O leitor acompanha o
desespero da menina que sente “[...] vontade de gritar” (2004, p. 17): “– Mãe, tá
estragando tudo!!” (p. 17). Todavia, por medo, ela opta pelo silenciamento e seu “[...]
grito morre no peito” (p.17). Na ilustração seguinte que, também, dialoga com essa
cena, vê-se o copo na quina da mesa, fazendo alusão a algo que está prestes a desabar e
o bolo, recortado pela moldura, pelo recurso à função lúdica, indica que pode esconder
mais velas, suscitando concretude do leitor.
Alice esconde-se embaixo da cama de seu quarto e se abraça a sua tartaruga de
plástico. Com medo, seu corpo é “[...] sacudido pelos soluços” (2004, p. 19) que “[...]
ninguém nunca escuta, ninguém nunca vê” (p. 19). Na ilustração sangrada dessa cena,
nota-se a escuridão do cenário e, pelo recurso à antítese, que sua porta entreaberta é
imensa e, diametralmente, oposta ao tamanho da criança. Essa cena conota a impotência
de Alice diante das ações dos adultos com que convive, alheios ao seu sofrimento. Os
olhos da menina permanecem atentos à porta, indicando medo.
O pai procura por Alice e a encontra debaixo da cama, convidando-a
delicadamente a sair, pois é “[...] quase hora do bolo.” (2004, p. 20). Ele brinca com a
criança, tenta distrai-la, mas a voz dele é “[...] sem alegria” (p. 20), conotando que já
sabe da embriaguez da esposa, embora tente ocultá-la. Justifica-se, então, a ilustração
que traz novamente a colcha que remete ao tabuleiro de xadrez sobre a cama de Alice,
que está novamente à mercê do jogo dos adultos, dessa vez ao jogo de encobrimentos.
Com a finalidade de ajudar Alice a se arrumar para a festa, o pai chama a tia
Leninha, irmã de sua esposa. Assim, denuncia-se que esse pai, embora, seja carinhoso e
se faça presente, não oferece amparo à filha, nem se envolve em seus cuidados. Tia
Leninha aproxima-se da menina com os olhos marejados e vermelhos, e a abraça muito
apertado, conotando que sabe do sofrimento da criança e também sofre com a situação
em que todos se encontram.
O narrador informa que depois desse acontecimento tudo ficou estranho: “[...] o
pai está triste, a gata vive se escondendo e a mãe passa dias inteiros dormindo” (2004, p.
22). Embora não se explicite a perda de controle da mãe, a descrição de seu cheiro “[...]
que está tão forte que Alice fica enjoada cada vez que entra no quarto” (p. 22), revela
sua constante embriaguez. A menina, por sua vez, mesmo de férias “[...] passa os dias
brincando sozinha” (p. 22), afasta-se dos amigos e fecha-se em concha, conotando que
precisa elaborar sua dor para convertê-la em pérolas. Alice envergonha-se da mãe, por
isto recusa a companhia de outras crianças na casa. Nota-se a denúncia do sequestro da
infância. Alice, mesmo muito jovem, elabora de forma bastante sofisticada para a sua
faixa etária que “[...] tristeza, quando muita, faz doer o coração”. (p. 22).
A presença da madrinha na história confere algum conforto à personagem
principal e, também, aos leitores que, a essa altura, já sofrem com as dores de Alice. A
madrinha é sinônimo de cuidado, conforto e segurança e, na ausência da mãe, tem a
responsabilidade de cuidar da criança. Além deste sentido, a madrinha remete aos
contos de fadas, como uma personagem capaz de realizar encantamentos e solucionar,
por meio deles, os problemas que afligem suas afilhadas. Na obra de Hetzel (2004),
contudo, avulta a subversão. Assim, a própria mãe, não a madrasta, produz sofrimento,
e a madrinha, desprovida da competência mágica, sente-se impotente e chora,
demonstrando sua humanidade em seus olhos vermelhos: “Tia Leninha abraça Alice
apertado, tão apertado que dói. Alice não reclama, os olhos de tia Leninha estão cheios
de lágrimas e aquelas cores misturadas doem mais que o abraço” (p.21).
Percebe-se, então, que a mãe, não exerce mais presença positiva na vida da
menina. A madrinha é a única que consegue fazer com que Alice se sinta bem, indo
visitá-la e oferecendo alguns presentes. Pode-se observar que, na dialogia com os contos
de fadas, essa madrinha sempre aparece em momentos difíceis para oferecer apoio a
Alice. Justifica-se que o primeiro presente dado por ela à menina tenha sido uma fada de
lã, que pode ser presa no teto. Esse detalhe simboliza que a fantasia na existência
complexa da menina não passa de um acessório decorativo. Alice recebe também dessa
madrinha: chinelos macios, um baralho e um copo azul com seu nome gravado. Esses
presentes revelam que a madrinha almeja ofertar conforto e diversão, além de recordar a
menina sua identidade, como membro que pertence à família.
Pelo recurso à função lúdica, na ilustração emoldurada que dialoga com essa
cena, pode-se visualizar Alice em seu quarto com esses objetos e na companhia de seu
gato, também responsável por transmitir algum conforto. Todavia, a fada de lã
distancia-se dela, pois está pendurada no teto que se situa fora da moldura, evocando
uma divisão entre realidade e fantasia. Assim, ela tanto decora o quarto da menina,
quanto lhe recorda do seu afastamento da magia, pela difícil realidade que vivencia.
Justifica-se, então, que Alice volte seu rosto para essa fada e, pelo recurso á função
expressiva, este seja triste, pois ela entende o distanciamento entre ambas.
A madrinha busca afastar a criança da tristeza, oferecendo uma válvula de
descompressão para a tensão em que Alice vive, mas como não tem vara de condão,
suas soluções são efêmeras. Desse modo, denuncia-se na trama que as soluções para
Alice e sua família precisam ser construídas gradativamente e por meio de esforços
coletivos. O clímax é atingido quando Alice retorna de um passeio com a madrinha e se
depara com uma briga entre os pais. Ela e a tia ouvem a mãe de Alice, com palavras
“[...] encharcadas de bebida” (2004, p. 24), questionando o marido sobre as ações da
madrinha, pois desconfia que ela queira roubar-lhe a filha. A mãe arremessa algum
objeto de vidro no pai que, mesmo com a “[...] voz cansada” (p. 24), confronta-a sobre a
realidade de seu vício: “– Para com isso, Leninha só levou Alice para passear. Você
passa os dias dormindo, metida no quarto, e a nossa filha... Um barulho terrível de vidro
se quebrando corta as palavras do pai.” (p. 24). Tia Leninha retira-se chorando da casa e
leva Alice consigo. No retorno de ambas, o pálido pai, com os olhos em brasa, explica
que a mãe fora internada para tratamento. Na ilustração que dialoga com essa cena,
pode-se ver na moldura, pelo recurso à função expressiva, a gata, com o corpo recuado e
os olhos atentos, esquivando-se da densa atmosfera, indicadora de perigo.
O pai abraça a criança e os dois choram, sem nenhuma palavra. Pelo recurso ao
discurso indireto livre, o pai afirma que a mãe estava doente e, quando ela retornasse,
“[...] eles seriam felizes de novo.” (2004, p. 25). Embora não se afirme no texto, pode-se
observar que, somente após a violência ter sido praticada contra um adulto, houve a
internação da mãe. Nota-se o silenciamento sobre qual é a doença da mãe e para qual
tratamento fora enviada. Além disso, o pai condiciona a felicidade familiar à presença
da mãe, indicando que ele e a filha sozinhos não se complementam. Cabe ao leitor
preencher esses vazios. Por meio da concretude, pode perceber que a mãe fora para uma
clínica de reabilitação. O tempo em que a mãe fica em tratamento não é manifesto, mas
sabe-se que Alice retornou às aulas e, aos poucos “[...] esquece a tristeza, a gata não se
esconde mais e o pai, às vezes, sorri.” (p. 25). Desse modo, nega-se no discurso a
hipótese do pai de que somente com a presença da mãe a família poderia ser feliz.
Finalmente, Alice é acordada pela mãe, mas diferente da primeira cena da
narrativa, nesse reencontro, ela recebe agradáveis beijos de borboleta. Dialoga com essa
cena ilustrações de borboletas azuis (2004, p. 26) que, pela função completiva,
acrescenta outros sentidos à narrativa (LINDEN, 2011), pois esse inseto simboliza o
processo de evolução (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2019) dessa mãe. A cor azul,
por sua vez, ressignifica-se na narrativa, remetendo ao equilíbrio e à harmonia, pela
conciliação entre mãe e filha. Nesse reencontro, quando a mãe se afasta de Alice, nota-
se que a menina busca “[...] o pai com o olhar. Ele está lá, ao lado cama. Sem dizer
nada, Alice joga-se em seus braços.” (p. 26). Pela afluência de vazios, sabe-se que Alice
não precisa verbalizar para o pai o que sente, basta o olhar, pois a relação entre ambos
se aprofundou e produziu cumplicidade no cuidado com a mãe.
O narrador, evitando um desfecho previsível, informa que, durante muito tempo,
a mãe lutou contra seu vício, tendo dias sombrios e cinzentos, mas contou com o
amparo da família e de um grupo de apoio, do qual Alice sentiu ciúmes a princípio, mas
aos poucos compreendeu que auxiliava sua mãe: “Tia Leninha explicou que agora é
diferente porque a mãe encontrou um grupo de amigos. Amigos que também tem
problemas com bebidas, por isso podem ajudar uns aos outros” (2004, p. 27). Pode-se
observar que, na narrativa, é a primeira vez que o problema “com bebidas” é enunciado,
indicando a tomada de consciência da família, o que colabora na transformação e
superação da dor.
Após um mês sem beber, a mãe convida Alice para um passeio e a menina
aceita, pois tia Leninha dissera que, agora, tudo seria diferente. O pai manifesta receio,
mas Alice prossegue. A mãe convida a filha para um sorvete na lanchonete. Nessa cena,
apesar da pouca idade, a menina percebe o risco, desconfia e indaga à mãe se tomará um
sorvete também. Quando a mãe afirma negativamente: “A cor foge do rosto de Alice,
seus lábios tremem, ela se levanta da cadeira.” (2004, p. 28). A mãe se assusta com a
reação da menina e a tranquiliza dizendo que só tomaria um suco, mas também pergunta
se ela quer ir embora. Alice afirma que deseja partir: “[...] as duas saem da lanchonete e
continuam o passeio, em silêncio. Alice aperta a mão da mãe, para espantar o medo. A
mãe aperta a mão de Alice, para não perder a coragem” (p. 28). A narrativa mostra a
passagem do tempo, indicando que “[...] cada dia é um dia e todos têm que aprender a
viver com isso” (p. 29). A ilustração de conchas que dialoga com essa cena, conota que
novas pérolas – momentos raros e preciosos – vêm sendo construídas.
Essas ilustrações, pelo recurso à função de amplificação, oferecem novas
possibilidades de interpretação para a narrativa (LINDEN, 2011, p. 40). O narrador
informa que Alice cresceu e frequenta festas, mas da última retornou “[...] alegre
demais” (2004, p. 30), passando mal a noite toda. Ao amanhecer, ela abre a janela e vê a
praia: “[...] o mar está lá, chamando por ela”. (p. 30). Pelo recurso aos vazios, cabe ao
leitor perceber que Alice se envolveu com bebida alcoólica e corre o risco de ter o
destino turbulento de sua mãe, não fosse a experiência que obteve ao ir à praia. Nesse
local, Alice avista de sua cadeira uma menina que constrói um castelo de areia. Alice
tem “[...] a impressão de que ela cantarola baixinho” (p. 32). Em seguida, a jovem se
acomoda na cadeira e puxa o chapéu sobre o rosto, indicando que tirará um cochilo.
Todavia, Alice ouve as indagações da menina sobre suas lembranças dos
brinquedos de infância, como a tartaruga, a boneca, o copo com seu nome gravado.
Alice responde afirmativamente. Por fim, a menina faz a pergunta central: “– E do colar
de pérolas, você se lembra?” (p. 33). Alice estremece e chora. A menina pergunta-lhe,
tocando seu rosto, o porquê de seu chora, se havia esquecido do colar. Alice responde:
“– Tinha quase esquecido. Tinha quase esquecido... – Alice sussurra, abrindo os olhos e
se descobrindo sozinha, na praia deserta.” (p. 33). Essa cena, em diálogo com as obras
de Carroll (2002), indica o espelhamento da jovem protagonista em sua porção criança;
a única capaz de levá-la, pelo recurso ao fantástico, à epifania. Desse modo,
ressignifica-se esse acessório que atua como símbolo do sofrimento, mas também como
sua superação. Também, denuncia-se que a reinvenção e reelaboração das emoções do
jovem efetiva-se pelo resgate de sua criança interior, de suas memórias de infância.
A menina na praia representa o subconsciente de Alice que a recorda dos efeitos
da bebida. Justifica-se que, na cena em que essa criança constrói seu castelo de areia
com a ajuda de água, utilize-se de gotas gordas e, também, miúdas. Cabe ao leitor notar
o recurso à metáfora para referenciar as lágrimas de Alice, citadas tantas vezes durante a
narrativa e que permearam sua história. Encerra a narrativa a ilustração do colar de
pérolas fechado, sem a ruptura inicial e sob superfície clara, indicando o final de um
ciclo, pautado pela luz, pela conscientização. Esse final aberto instaura pontos de
indeterminação que suscitam de o leitor inferir o destino das personagens e, também,
ampliar seus horizontes de expectativa (JAUSS, 1979), pela ruptura com a
previsibilidade.

Considerações finais

A personagem principal, Alice, é redonda, apresenta grande desenvolvimento


psicológico, visto que ainda durante a infância pode passar da posição da criança que é
refém do que lhe cerca, para a aquela que encontra, ainda que, na limitação de seu agir,
estratégias para diminuir o problema que enfrenta com a mãe. Já na idade adulta, ela é
capaz de tomar a posição de protagonista e agir sobre suas próprias ações, antes que
seguisse o mesmo caminho da mãe.
A mãe de Alice, enquanto personagem, apresenta grande evolução, demonstrada
na metáfora da borboleta, depois do tratamento e com ajuda do grupo de apoio e da
família, ela passa a ter dias bons e dar à Alice a sensação de ser sol, fazendo um
contraponto ao mar turbulento que ela representava antes, sendo assim, uma
personagem redonda. Já a madrinha não apresenta mudanças ou desenvolvimento
psicológico durante a obra, sendo assim, personagem plana que não se altera, nem
surpreende. O pai constitui uma personagem plana com tendência à redonda quando
enfrenta, finalmente, as atitudes da mãe. Ele se sente muito incomodado com o
comportamento da filha que se esconde em seu quarto e debaixo da própria cama, com
medo das atitudes da mãe alcoólatra. Todavia, incomoda-o mais o objeto cortante que a
esposa arremessa contra ele.
A obra por trabalhar um tema fraturante, contudo universal, revela sua vitalidade
e pode encontrar familiaridade com leitores de qualquer tempo e idade. Nota-se em seu
enredo a ausência de maniqueísmos e de moralidades. Sua narrativa atinge função social
(JAUSS, 1994), pois denuncia a criança em um ambiente desfavorável, inadequado,
mesmo que seja pertencente à camada social que lhe confere conforto, brinquedos,
enfim bens de consumo. Para Luft et al. (2010, p.19), um dos temas de maior incidência
na literatura infantil e juvenil depois dos anos 1970 e que se configuram como temas
fraturantes são as incoerências no comportamento dos pais.
O espaço macro da obra é a praia, onde ocorrem os eventos que criam pérolas e
onde a menina tem a tomada de consciência do risco que corre. No espaço micro, na
casa da família, ocorrem os eventos em que a mãe aparece embriagada e com atitudes
violentas.
A história é contada por um narrador onisciente neutro, em terceira pessoa, que
conhece as sensações e pensamentos das personagens, mas não tece julgamentos no
exercício da narrativa que relata. A narrativa é linear e percebe-se a presença de vazios
(ISER, 1999) instaurados no texto verbal e imagético. Ambos são capazes de levar o
leitor a poíesis, no momento em que este preenche seus vazios e ocupa o espaço de
coautoria permitido pelo texto, também à aisthesis, ao entender o contexto em que a
narrativa se situa, podendo expandir seu conhecimento de mundo; e à katharsis, pelo
acesso a suas emoções através da literatura. Desse modo, pode transpor a experiência
literária e estética para a vida prática (JAUSS, 1979).
Os vazios são constituídos no objetivo de manter seu leitor atento e
comunicando-se continuamente com o texto, na busca de construir significados. Pela
estrutura do texto e das imagens, percebe-se que a narrativa pressupõe um leitor
implícito perspicaz e inteligente, capaz de relacionar o que recebe no ato da leitura com
seus conhecimentos e leitura prévia, para completar-lhe o significado.
Pautando-se na análise da obra e em todas as lacunas que oportunizam as
inferências do leitor, confirma-se a hipótese de que a obra de Hetzel é emancipatória e
que o texto pode promover no leitor uma reflexão sobre seu contexto social a partir da
experiência estética à qual foi submetido durante a leitura, cumprindo também o seu
papel social enquanto ferramenta de empoderamento.

Referências

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F. Bernandini. São Paulo: Edunesp, 1998.
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Trad. Mª L. X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
CHEVALIER, Jean, 1906 – Dicionário de símbolos, costumes, gestos, formas, figuras,
cores, números) / Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, com a colaboração de: André
Barbault... [et al.]; coordenação Carlos Sussekind; tradução Vera da Costa e Silva... [et
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COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual.
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ECO, Umberto. Sobre literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003
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HETZEL, G. B. O colar de pérolas. 2. ed. Rio de Janeiro: Manati, 2002
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JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à Teoria Literária. São
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LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução Dorothée de Bruchard.
São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LUFT, Gabriela. Adriana Falcão, Flávio Carneiro, Rodrigo Lacerda e a literatura juvenil
brasileira no início do século XXI. 2010. 178 f. Dissertação (Mestrado em Literatura
Comparada) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

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