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FERREIRA, ELIANE APARECIDA GALVÃO RIBEIRO.

ILUSTRAÇÃO, HUMOR E ENIGMA EM

CHARADAS MACABRAS, DE ANGELA LAGO: REPRESENTAÇÕES DO LEITOR. IN: ROCHA FILHO,


ULYSSES; SILVA, ALEXANDRE MEIRELES DA (ORGS.). TRAVESSIAS LITERÁRIAS: OLHARES SOBRE
CULTURA E IDENTIDADE. GOIÂNIA: GRÁFICA E EDITORA AMÉRICA, 2013, P.181-202.

ILUSTRAÇÃO, HUMOR E ENIGMA EM CHARADAS MACABRAS, DE ANGELA


LAGO: REPRESENTAÇÕES DO LEITOR

Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira 1 (UNESP/IMESA – eagrf@femanet.com.br)

Introdução

Atualmente, a reflexão sobre o texto ilustrado apresenta-se como um desafio ao


mediador de leitura, sobretudo, em uma sociedade que valoriza a imagem em detrimento do
texto verbal escrito. A questão que se coloca é a da esteticidade dessas imagens e de sua
contribuição para a imaginação das crianças. Será que essas imagens podem compor sua
memória afetiva, arrebatando-as pelo surpreendente e encantador ou, apenas, automatizam seu
olhar, ofertando estereótipos?
Parte-se, neste texto, do pressuposto de que o livro ilustrado quando estético promove
o olhar crítico, pois, como é composto por mais de um discurso, mobiliza visões de mundo
diversas. Esse tipo de livro caracteriza-se, então, pela polifonia. A dificuldade para o
mediador desse tipo de obra reside justamente em analisar como se estabelece a relação entre
plano verbal e imagético. Além disso, será que a criança, já com capacidade de leitura,
consegue notar essa relação entre o que se lê e o que se vê?
Acredita-se, neste texto, que essa detecção pelas crianças pode produzir-lhes prazer,
pois se instaura sob a forma de um jogo reflexivo acerca de realidade e encenação, texto
verbal e ilustrado. A leitura do livro ilustrado, enquanto objeto de cultura, permite um
discernimento de mundo e um posicionamento perante a realidade. Esse livro, em especial,
desautomatiza o olhar infantil, facultando senso crítico à criança, pois ativa sua memória

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Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela UNESP, campus de Assis – SP. Ministra aulas de
Língua Portuguesa nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Direito do Instituto Municipal de
Ensino Superior de Assis – IMESA/FEMA.
transtextual ao permitir-lhes compreender o texto verbal e o não verbal em interação, além do
seu suporte. Diante desse pressuposto, objetiva-se, neste capítulo, analisar o livro Charadas
Macabras, de Angela Lago. Constrói-se, para tanto, a hipótese de que a relação entre imagem
e texto, nesta obra, é de interação, mais especificamente de colaboração. Neste tipo de
relação, o sentido não emerge só das imagens ou do texto, antes da relação entre os dois, pois
um preenche as lacunas do outro (LINDEN, 2011, p.120-1).
Antecede a análise da obra de Angela Lago um breve resgate histórico da ilustração
em livros infantis publicados a partir do século XIX. Buscou-se apontar aqueles em que a
dialogia entre texto e imagem favorece a ruptura com os conceitos prévios do leitor,
ampliando seus horizontes de expectativas. Vale destacar que não se visa, neste texto, ao
esgotamento das publicações existentes, antes, procura-se apontar as mais conhecidas pelos
mediadores de leitura, enaltecendo, para tanto suas qualidades, na esperança de que as vejam
com olhos críticos.

As origens da ilustração no livro infantil

Para Rui de Oliveira (2008, p.44), uma das funções da ilustração é a de criar a
memória afetiva do leitor. A partir deste pressuposto, para a apresentação de um breve
panorama da ilustração no Brasil, procurou-se destacar livros que revelam uma intenção de
leitura a partir da junção entre texto e imagem em um único objeto, ou seja, projetam um
leitor implícito. Justifica-se essa abordagem, uma vez que, periodicamente, novos títulos
adentram o mercado editorial problematizando a questão da história da literatura juvenil
brasileira. Pouco, porém, se publicou acerca da trajetória dos artistas gráficos que
conquistaram a aceitação de crianças e jovens em um século de intensa produção cultural.
Por meio dos estudos de Arroyo (1969) e Niskier (1989), constata-se que, no limiar do
século XX, enquanto a Europa gozava de um rol de títulos2 em larga escala, o Brasil ainda
ingressava no processo de formação de sua literatura voltada para crianças. Frente a isso, a
prosa para este público constituía-se, lentamente, como um gênero artístico que se
encaminhava rumo à própria consolidação e legitimação. Os ilustradores brasileiros, nesse
atordoado cenário de mudanças, construções e desconstruções, trabalhavam em diversos
meios de comunicação para divulgarem a arte nacional, e não apenas com o livro que
delineava seus primeiros passos. Em conciliação com tal meta, ressaltam-se os periódicos O

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Cumpre lembrar que, segundo Luiz (2003), a história da literatura infantil europeia é marcada pelo trabalho de
três emblemáticos ilustradores: Walter Crane, Gustave Doré, Arthur Rackhan, Edmund Dulac e Jonh Tenniel.
Tico-Tico, O Gafanhoto, O Malho e O Bisturi, veiculados no limiar do século XX. Destacam-
se os desenhos de Alfredo Storni, Angelo Agostini, Francisco Richter, José Carlos e Julião
Machado.
Atendo-se ao percurso editorial brasileiro, Romeu (2011) salienta que o primeiro livro
infantil com ilustrações coloridas consistia em uma renomada edição do Patinho Feio, de
Andersen, publicado em 1915. A obra foi organizada pela Weiszflog Irmãos, e apresentava o
trabalho do artista Franz Richter. “A novidade eram as ilustrações – bem diferentes daquelas
da cartilha escolar – já que as histórias de Andersen, Grimm e Perrault eram velhas
conhecidas das crianças” (ROMEU, 2010, p. 50).
A história da ilustração no livro infantil segue, como se pode notar, a trajetória da
consolidação de um mercado para este objeto cultural que tem início em meados de XIX
(BORELLI, 1996, p.89). Nesse período, inúmeras transformações formam a imagem de um
país em processo de modernização, passa-se de sociedade rural a urbana, e há a ascensão da
classe média que requer escolaridade para seus filhos (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988, p.21).
A escola começa a exercer um papel significativo na formação das crianças e, por isso,
surgem os primeiros livros destinados a elas. Configura-se, então, um novo mercado que
requer dos escritores uma prontidão para atendê-lo.
Na década de 1860, a livraria Quaresma destaca-se por perceber que os livros infantis
precisam adequar-se ao seu público (BORELLI, 1996, p.90-1). Assim, contrata o jornalista
Figueiredo Pimentel para escrever livros infantis brasileiros. Entre eles, obtém relevo
ilustrado Contos da carochinha, de 1894 (HALLEWELL, 1985, p.201), cujas ilustrações
seguem os modelos tradicionais, apresentando-se de forma discreta e em preto e branco.
Anteriormente a Pimentel, Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira publicam Contos
infantis, em 1886, entretanto o fazem em Lisboa, Portugal, e não no Brasil (BORELLI, 1996,
p.91). Esse livro, conforme Camargo (1998, p.23), foi o primeiro a reconhecer a ilustração
como capaz de conferir aprazimento ao leitor mirim. Somente, em 1897, fugindo à regra da
ilustração servir de apoio ao texto verbal, surge O livro das crianças, de Zalina Rolim, cujos
poemas foram criados a partir das ilustrações.
Com o uso dos livros no universo escolar, cria-se um novo segmento de mercado
destinado às crianças; o livro didático. Nesse tipo de livro, a ilustração ora assume função
descritiva de objetos, cenários, personagens e animais, restringindo seus papéis a uma
redundância em relação ao texto verbal, ora assume a função de ornamento da página
(CAMARGO, 1998, p.44). Em 1915, a Weizflog, atualmente Melhoramentos, lança a coleção
ilustrada Biblioteca infantil, com seu primeiro livro, O patinho feio, ilustrado por Richter.
Essa coleção permanece ativa até 1958 e edita 100 títulos, entre os mais significativos no
contexto da literatura infantil (BORELLI, 1996, p.91).
Nas décadas de 1920 e 1930, as obras infantis de Monteiro Lobato figuram
praticamente sozinhas no cenário nacional. Ele rompe o círculo de dependência aos padrões
literários provindos da Europa, principalmente quanto ao aproveitamento da tradição
folclórica e apresenta seus enredos em fascinantes livros ilustrados em cores (LAJOLO;
ZILBERMAN, 1988, p.46). Até 1939, surgem ilustradores que produzem em quantidade e
qualidade, um exemplo pode ser visto na criação de personagens da revista O Tico-Tico
(WERNECK, 2008, p.1838). Todavia, nas décadas seguintes, as ilustrações não merecem
revelo, sendo representadas, muitas vezes, em preto e branco.
Nos anos 1920, 1930 e 1940, com o boom das narrativas infantis de Lobato, verificou-
se que ilustrações dinâmicas foram associadas a textos criativos, capazes de fascinar o leitor
mirim. Nesse período, consagram-se os nomes de Voltolino, Belmonte, Wasth Rodrigues e
Jean Gabriel Villin, que trabalhavam com o criador do sítio de Dona Benta, além de Jayme
Cortez, Luis Sá, Max Yantok, Nelson Boeira, Oswaldo Storni, Joselito, Percy Lau e Paulo
Werneck (NISKIER, 1989).
Nas décadas posteriores, 1950 e 1960, quando se instaura um período não muito fértil
na literatura infantil, os editores optam por obras com poucas ilustrações, pois concebiam o
texto verbal como superior às formas gráficas. Desse modo, estas se tornam raras e
inconstantes nos livros para jovens. Os expoentes dessa época foram Henrique Cavalheiro,
André Le Blanc, Beatriz Tanaka e Mário Cafieiro. Por outro lado, é nesse cenário em que
Maurício de Souza abusa do traço para conquistar a criança e firma-se como um cartunista
brasileiro de sucesso (LUIZ, 2003).
No mercado de literatura infantil e juvenil, apesar da repressão, surgem obras
inovadoras, no final da década de 1970 e início da de 1980, que conferem ênfase aos aspectos
gráficos, enquanto elementos autônomos e não mais como subsidiários do texto. Os livros têm
o visual como centro e não mais como ilustração e/ou reforço de significados confiados à
linguagem verbal. A ilustração assume o papel de história paralela ao texto.
A indústria editorial se consolida, na década de 1980, com o advento de uma nova
tecnologia que barateia a produção. Há aumento nos números de lançamentos e na
concorrência com o surgimento de casas editoras cada vez mais especializadas. A produção
de livros infantis cresce rapidamente e firma-se em termos de quantidade e qualidade de
propostas. De acordo com Coelho (2000, p.127), ocorre a eclosão de uma nova qualidade
literária e estética que transforma o livro infantil em um “objeto novo”, constituído pela
convergência de multilinguagens, como narrativas em prosa ou poesia, que se desenvolvem
por meio da palavra, do desenho, da pintura, da moldagem, da fotografia, dos processos
digitais ou virtuais. Instaura-se, então, uma nova forma de ver, de construir o real, que
provoca no leitor o “olhar de descoberta”. Em 1980, o Instituto Nacional do Livro passa a
exigir a inclusão do nome do ilustrador na ficha catalográfica de cada livro. Em 1982, a
Fundação Nacional do Livro de Infantil e Juvenil (FNLIJ) inicia a premiação do livro sem
texto (WERNECK, 2008, 1838).
Da década de 1970 aos dias atuais, há uma legitimação pela crítica de inúmeros
escritores e as novas concepções artísticas e educacionais passam a enfatizar o valor do texto
visual. Desse modo, tem-se a retomada da proposta de Lobato, no sentido de reconhecer,
priorizar e investir nos ilustradores. Sobressaem, então, os desenhos de Apon, Tato, Eliardo
França, Adalberto Carnavaca, Laurent Cardon, Zeflávio Teixeira, Michele Iacocca, Gê
Orthof, Alcy Linares, Paula Saldanha, Regina Yolanda, Ana Raquel, Angela Lago, Avelino
Guedes, Carlos Brito, Claudia Martins, Gerson Conforto, Helena Alexandrino, Jô Oliveira,
Luis Camargo e Ricardo Azevedo. Em cada personalidade citada, detecta-se o uso de
diferentes linguagens artísticas para a composição de uma obra.
Vale destacar a produção do cartunista Ziraldo, com incidência de gravuras e de
circunstâncias jocosas, edificadas nos meandros do enredo. Trata-se de um dos escritores e
ilustradores mais talentosos e premiados que, como Lobato, atém-se à cultura popular
nacional. Exemplo disto são suas criaturas excêntricas que perambulam entre as páginas da
revista Turma do Pererê. Por se encontrar em um período que privilegiava o discurso eufórico
e contagiante de transformação do país – típico do início dos anos 1960 –, o artista, apoiado
na linguagem icônica das histórias em quadrinhos, divulga o acervo folclórico local e elege o
Saci como autêntico símbolo do Brasil. Paralela a essa Turma do Pererê, destaca-se a criação
da obra O Menino Maluquinho (1980), título agraciado com o Prêmio Jabuti de 1981 e que, a
posteriori, foi adaptado para uma revista e dois filmes homônimos.
Segundo Menin (2005), o autor constrói, por meio da articulação entre o verbal e o
iconográfico, a imagem de um garoto alegre, curioso, ativo e feliz – uma criança comum. O
personagem não apresenta nome, tornando-se alvo de identificação por parte de qualquer
menino, já que significativa porcentagem do público infantil demonstra compartilhar de suas
características e alguns deles, inclusive, passaram pelos mesmos reveses da vida que
Maluquinho passou. Nessa linha, o texto em questão evoca o cotidiano de uma criança que
integra uma típica família de classe média. Não obstante, a ação se desenvolve frente às
peripécias do infante, sua relação com os pais, o vínculo com os amigos, a atuação na escola e
os diversos momentos de alegria, ternura e solidão.
As ilustrações da obra de Ziraldo, imbuídas de artifícios, provocam de imediato o riso
no leitor. As expressões do menino Maluquinho, a técnica estilizada aplicada na composição
de suas namoradas, as onomatopeias e os movimentos concedidos ao protagonista, por meio
de um traço nitidamente caricato, distante do figurativismo “importado” dos aclamados super-
heróis norte-americanos, constituem claros exemplos de como a comicidade se formula no
desenho, no texto visual, na dimensão pictórica.
Na esteira de síntese entre o anedótico e o iconográfico, como atrativos para
destinatários de tenra idade, sobressaem produções de Angela Lago, Fernanda Lopes de
Almeida, com A Fada que tinha ideias (1971), e de Eva Furnari, com Truks (1991). Furnari
endereça seus livros, geralmente orientados pelo visual e protagonizados pela faceira
Bruxinha, ao jovem que está ingressando no universo das letras. A obra A Fada que tinha
ideias (1979), por sua vez, gira em torno da heroína Clara Luz, uma menina de dez anos que
vivia no céu com sua mãe e se diferenciava das demais fadas por contrariar as normas
estabelecidas em seu universo fantástico. A propósito dessa conduta, Zilberman assegura que
a rebeldia da pequena se manifesta de modo simpático, conquistando, de imediato, o leitor
que, como ela, “[...] é levado a contradizer a autoridade e a questionar a tradição” (2005,
p.57). Dando, assim, vazão à inventividade, a protagonista não omite sua aversão ao manual
de horizontologia3. Independente da mediação deste, Clara Luz se dedica integralmente às
experiências sobrenaturais com a própria varinha de condão.
O repúdio ao material escolar, que reporta aos livros didáticos e aos compêndios
escolares assentados nas concepções mecanicistas, deve-se ao fato de que ele, para a
protagonista, jamais propiciaria a emancipação. A proposta metodológica do manual de
horizontologia se encontrava defasada, desatualizada, distante das aspirações daquele meio,
pois se fixava em modelos obsoletos que não mais faziam sentido. Edificando, portanto, uma
contundente crítica ao sistema educacional vigente, a personagem de Fernanda Lopes de
Almeida prega a liberdade de criação e expressão. Justamente, essas reivindicações ganham
um significado mais amplo em seu metafórico projeto de “abertura de horizontes”, pois
enquanto o manual prevalecesse, os horizontes continuariam fechados. Nessa ótica, seria
necessário abandonar tal “cartilha” para a manifestação livre do pensamento.

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Principal material adotado no processo de formação das fadas.
Pode-se identificar, nessa obra, uma crítica às coordenadas políticas do período
histórico de lançamento do livro, década de 1970, marcado pelas intervenções da ditadura
militar e, por conseguinte, pela imposição de conceitos unilaterais que deveriam ser
assimilados e nunca debatidos. Frente a isso, Lajolo e Zilberman (1988) advogam que a
imagem exemplar da criança obediente, apática e passiva, outrora desestabilizada por Lobato,
mostra-se ainda mais desgastada em A Fada que tinha ideias. A protagonista, como se vê,
contesta os padrões aceitos pela coletividade e propõe uma revisão drástica na rotina escolar.
Nesse contexto, o humor é deflagrado tanto em situações inusitadas, demarcadas pelas
travessuras e façanhas de Clara Luz, quanto nas pinturas que acompanham os textos verbais,
expondo o lado clawnesco dos personagens adultos – como a professora de horizontologia, a
bruxa Feiosa, a rainha das fadas e as onze conselheiras. Paralelamente, a narrativa engloba
outros elementos que reportam à literatura infantojuvenil de Monteiro Lobato. Com efeito, é
apropriado realçar a postura revolucionária da astuciosa heroína – fator que a interligaria à
boneca Emília, personagem igualmente rebelde, independente, emancipada. Em ambas
vigoram a insubmissão às convenções, o tom de protesto e a capacidade de transformar a
realidade por meio do diálogo.
A valorização da figura feminina, despojando-a de qualquer fragilidade, compreende
outro item que contempla tanto os escritos de Lobato, quanto os de Almeida. Já no sítio das
aventuras de Lobato, identifica-se um trio de mulheres autônomas – D. Benta, Emília e
Narizinho –, destoando da produção de sua época, marcada pela presença de heróis
masculinos. A saga de Clara Luz, por sua vez, desenvolve-se quase que, exclusivamente, com
um grupo feminino, com o matriarcado.
Seguindo essa esteira, Eva Furnari cria, em 1982, uma heroína bruxinha que aparece
no livro A Bruxinha Atrapalhada, desencadeando uma série de ampla repercussão no mercado
editorial nacional. Entre os títulos exaltados pela crítica especializada, é pertinente citar A
Bruxinha Encantada e seu Secreto Admirador Gregório (1983), A Bruxinha e Frederico
(1984), A Bruxinha e o Godofredo (1988), Truks (1991) e A Bruxinha e as Maldades da
Sorumbática (1997). Em cada livro, ganha força a participação da mencionada feiticeira, cujas
características alternam entre as de uma aprendiz desorganizada e as de uma criança inquieta.
Em outro extremo, a personagem apresenta uma gama de “atributos” peculiares ao perfil de
Emília, como a propensão ao cômico, a espontaneidade, as traquinagens, o anseio de alterar o
ambiente – ignorando possíveis danos – e a curiosidade diante do desconhecido. Ela difere de
Emília, mas se aproxima ao esboçar certa ingenuidade.
O modelo de heroína empregado na série é igualmente transgressor, tendo em vista
que parte expressiva das narrativas tradicionais operava com um conjunto de donzelas que
clamavam pela intervenção masculina para que seus destinos fossem devidamente
modificados. Desse modo, as produções iconográficas em questão se centram na performance
de uma simpática bruxa. Em outras palavras, Furnari recupera a personagem de sua condição
marginal nos contos de fadas, despe-a de sua natureza excessivamente maléfica e a expõe, de
forma paródica, não mais como coadjuvante. Tal procedimento permite a construção de um
ser fictício bastante humanizado, justamente por isso, cativante.
Outro aspecto comum entre a autora de Truks e o criador de A Chave do Tamanho está
na atenção dispensada ao desenho. Enquanto Lobato, consciente da relevância desse recurso,
recruta um rol de reconhecidos ilustradores para compor a sua equipe, Furnari adere
totalmente à linha da narrativa de imagem: livros que, segundo Coelho (2000), tecem
histórias com o auxílio da linguagem visual, de figuras que dialogam com o leitor e que
dispensam sentenças verbais complementares. O enredo desenvolve-se mediante quadros que,
obedecendo à dinâmica dos cartuns e intercalando situações hilárias, exibem as proezas da
Bruxinha perante seus desastrosos feitiços.
Ao adentrar os anos 2000, o livro ilustrado, por se revelar como obra pós-moderna,
híbrida e intertextual, merece a atenção dos críticos literários. Esse tipo de livro ganha relevo,
tornando-se objeto de pesquisas, de estudos e de discussões em simpósios, como os da
Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC, e ser analisado pelo Programa
Nacional Biblioteca da Escola – PNBE, visando à composição de acervos.

Humor, ilustração e enigma: a representação do leitor

Angela Lago, como se pôde ver na retrospectiva histórica, inicia sua produção em
1970, já filiada ao espírito libertário e emancipatório, inaugurado por Lobato. A primeira
edição de Charadas Macabras (1994) advém da década de 1990. Período em que, justamente,
a literatura almeja sintonizar-se com o tempo a que pertence e com seu leitor. Seu processo de
construção lúdico e inteligente objetiva a conscientização desse leitor em relação às
descobertas que lhe cabe fazer no mundo. Assim, o imaginário é visto como instrumento de
conquista do verdadeiro conhecimento de si mesmo e do mundo em que se vive. Como
consequência, o livro ilustrado apresenta-se inovador e em constantes diálogos tanto com o
universo da cultura popular, quanto das artes plásticas e literárias canônicas.
A obra Charadas Macabras (1994), de Angela Lago, estabelece relação de colaboração
entre imagem e texto verbal. Além disso, considera seu leitor como capaz de interagir com o
relato. Para a análise desta obra, opta-se, então, por refletir acerca da dialogia que ela
estabelece entre texto verbal e não verbal, do leitor que projeta, e da composição de sua
linguagem híbrida, pois formada pela junção do discurso literário e da tradição popular. Para a
consecução deste objetivo, apresenta-se uma reflexão fundamentada pela estética da recepção
acerca do que propicia o prazer na leitura e quais elementos determinam o papel do leitor
implícito.
Em relação à linguagem, parte-se do pressuposto de que a literatura, na atualidade,
conforme Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer (2002, p.16), “[...] não preserva
a ilusão clássica da pureza dos gêneros, nem a romântica da autonomia criadora do espírito,
mas encontra-se sempre hidridamente articulada em contato com gêneros não-literários e com
meios de comunicação e expressão não-discursivos.” Assim, para os autores, o hibridismo é o
fundamento e a regra para o escritor contemporâneo, e não a exceção. O desafio para os
estudos da literatura consiste em sinalizar as confluências que a obra literária estabelece com
outras formas de manifestação cultural ou outros meios. Um exemplo dessas confluências
pode ser observado em Charadas Macabras, por se tratar de uma obra literária cujo texto se
constitui pelos discursos verbal e não-verbal, literário e oral.
Acredita-se, neste texto, que a estratégia da escritora em resgatar a cultura popular, pela
apresentação de enigmas, tanto permite ao leitor mirim contato com um texto atraente e lúdico,
quanto lhe faculta a ampliação de conhecimentos, por meio do resgate da memória cultural. Na
obra, a apropriação da cultura popular, proveniente da oralidade, no caso das “Charadas
Tiburcianas” ou “Charadas Novíssimas”, atua como fator de valoração da identidade desse
leitor, pois por meio dela, ele é capaz de elevar sua autoestima, pois se reconhece como
herdeiro de um patrimônio cultural tradicional. Este tipo de charada, conforme afirma a autora
no texto de apresentação da obra, “[...] foi inventada pelo oficial brasileiro Antônio Tibúrcio
de Souza, em Tuiuti, durante a Guerra do Paraguai” (1994, p.4). Como modelo, apresenta-se
um exemplo desse tipo de charada para o leitor familiarizar-se com a proposta de enigma que
permeará todo o enredo do livro: “Avistei uma rã de sentinela. Uma e duas. Os números
correspondem ao número de sílabas. Avistei, com uma sílaba: vi. Rã, com duas sílabas: jia. Jia
soa como gia. A resposta, portanto, é vigia, ou seja, sentinela” (1994, p.4). Nota-se, então, que
as palavras que fornecem as pistas para a resolução do enigma são destacadas graficamente das
demais.
Como se pode observar a obra Charadas Macabras configura-se sob a forma de uma
narrativa-adivinha, composta por charadas curtas e enigmáticas que oferecem, em sua própria
organização textual, pistas para a sua resolução. Apresentadas de forma ambígua, suas
charadas ora criam uma atmosfera de terror, ora de humor. Para André Jolles (1976, p.124), a
“[...] forma da Adivinha abre tudo ao fechar-se; é cifrada de tal modo que esconde o que
comporta, retém o que contém.” Justamente, é essa ambiguidade, essa tendência para a
incompreensibilidade que a define e diverte quem a ouve, e busca resolução.
As ilustrações, na obra, mantêm a duplicidade da adivinha. Assim, nota-se que o signo
do duplo aparece no livro desdobrado, tanto no plano verbal quanto no da manifestação
visual. Isto decorre do fato de as ilustrações remetem o leitor tanto para uma atmosfera
sinistra, pois compostas por um tridente, uma tesoura, uma adaga, caveiras, nuvens,
relâmpagos, um rosto que espia atrás de uma persiana o leitor, entre outras imagens; quanto
por elementos humorísticos, representados por outro rosto de perfil que ora olha sorrindo
através de uma fechadura, ora assombra-se, ora oferece uma colher de “canja” para o leitor.
Este rosto denota ajuda ao leitor para decifrar as charadas.
As ilustrações na obra revelam-se inovadoras, pois não estão presas às páginas em que
aparecem. Desse modo, pode-se observar uma tesoura, uma adaga e uma agulha que
transpassam para a outra página, rompendo os limites da página a que elas pertencem. As
ilustrações no corpo do texto reforçam a atmosfera de mistério, pois, dispostas na mesma
gama cromática em tons de azul, asseguram aspecto de frieza. Como também são traçadas de
forma intencionalmente indefinida, porque como marca d’ água, compostas por
transparências, conferem um caráter nebuloso à narrativa. Assim, essas ilustrações mantêm a
mesma ambiguidade da charada tiburciana, remetendo ao seu poder de, ao mesmo tempo,
ocultar a resolução e apresentá-la na própria formulação do enigma.
As imagens que compõem a capa e a quarta capa representam uma alegoria da obra.
Pode-se notar que ambas apresentam a representação de uma persiana entreaberta. Pela cor
preta de fundo, com a persiana em relevo em tons de cinza e chumbo, e o título em azul, essas
capas asseguram o tom de mistério e segredo, mantendo a sensação de frieza pelo jogo de
cores. Na capa, a persiana encobre parcialmente o título do livro e parte do nome da autora,
denotando que a história disposta no interior da obra, embora se apresente, mostre-se para o
leitor, omite suas reais intenções que são: as de cativá-lo para um jogo de inúmeros
desvendamentos, que ultrapassa o plano do enigma e adentra o da reflexão metaficcional, e
assim prendê-lo até o final da obra. Na quarta capa, não há nada atrás da persiana, insinuando
que o mistério já foi solucionado durante a leitura. Assim, o leitor ao olhar essa capa, já
fechou o livro.
A folha de abertura da obra, situada na página cinco, apresenta novamente a persiana
sob a qual se esconde um rosto que olha diretamente para o leitor por entre as lâminas que
afastou com os dedos. Desse modo, a escritora, logo no início da narrativa, provoca o leitor,
subvertendo suas concepções sobre leitura, pois a ilustração mostra-lhe que alguém se oculta
dentro do próprio relato e, parodicamente, espia o leitor, ao contrário de se apresentar para a
observação dele. Esse rosto na folha de abertura representa a maior charada da obra, pois, por
meio dele, sugere ao leitor uma reflexão sobre a criação ficcional narrativa e sobre a sua
leitura.
As charadas se iniciam, sendo apresentadas por uma narradora que dialoga com o
leitor e o convida à participação de uma performance que se desenrola dentro de um
necrotério: “No momento em que o vigia apaga a luz da sala principal do necrotério, ele e
você, caro leitor, escutam um sussurro: – Eu quero a metade do pé. Duas [meia]” (1994, p.7).
Esse convite desdobra-se também em provocações dialógicas, pois a enunciação se dirige ao
leitor, e o estimula a prosseguir no desvendar dos enigmas para que, assim, se aproprie das
palavras de passagem, ou seja, da resolução para a próxima cena.
A mesma voz que pede, por meio de um enigma, a meia do vigia, também, alerta o
leitor para o fato de que dentro do sapato dessa personagem há o demônio. O vigia foge e, de
repente, a narradora avisa que o leitor está sozinho – “[...] no enorme corredor da folha em
branco” (1994, p.11) – e segura nas mãos os sapatos e a meia do vigia. Segundo a narradora, o
demônio aponta outra porta para o leitor, “[...] ou melhor, página, e você sabe que tem que
entrar por ela” (1994, p.13). Assim, a narradora motiva o leitor a prosseguir, contudo, antes
lhe apresenta mais um enigma: “– Corta aquilo dele, passarinho. Duas e uma” [pica-pau]
(1994, p.13). Nota-se a reflexão metaficcional da narradora que conduz o leitor pelas páginas,
como se estas fossem portas de um intrincado labirinto, do qual ele somente pode sair se
encontrar as resoluções para as charadas.
A narradora busca não só antever as reações do leitor, como induzi-lo a certos
comportamentos: “Agora você hesita. Tenta compreender. Mas está com medo. Sim, medo!
Muito medo!” (1994, p.13). No ápice da tensão, ocorre o processo de contensão pela resposta
à charada: “pica-pau”, a qual remete, de forma humorística, àquilo que deve ser cortado.
Quando se imagina que a tensão foi eliminada, a narradora alerta o leitor para o fato de haver
barulhos de correntes e de uma voz horripilante na escuridão do corredor em que ele se
encontra. Novamente, motivado por ela a fugir desse espaço, o leitor se depara com charadas
que sinalizam para a presença de caveiras, almas penadas, assombrações e cadáveres em
putrefação. A exploração sinestésica, com a menção aos barulhos, é cômica e atraente, pois
aumenta a atmosfera de terror e tensão.
A intromissão da narradora manifesta-se por meio de um processo antitético. Neste
processo, nota-se a motivação ao leitor para as resoluções de enigmas e a simulação de uma
urgência em prosseguir adiante, pela presença do macabro, contudo, seguida pela contensão,
por meio do humor. Justamente, esta contenção ocorre quando a narradora, ridicularizando
nomes que, para ela, remetem à decomposição – como “Caio”, que conota “cair aos pedaços”;
e “Rui”, que “remete a ruir” –, alerta o leitor para o fato de que, nesse instante, ele está no
“[...] coração do cemitério” (1994, p.23). Mas há um esqueleto, de uma mulher cruel, que se
aproxima e o leitor precisa fugir: “– Ordinária e perversa. Sou mulher! Uma e uma” (1994,
p.24). Essa mulher, “Vilma”, foi assassinada cruelmente pelo marido. Novamente, há o alívio
da tensão pela descrição da narradora do comportamento ridículo desse marido que
enlouquecera depois do homicídio. Por esse motivo, ele imagina que a falecida esposa está
viva, então, dirige-se até a Câmara e grita: “– Entregue a prostituta por piedade, ó
parlamentar! Uma, duas e uma.” [deputado] (1994, p.29).
Nessa cena, a narradora indaga o leitor acerca do porquê de lhe contar tudo isso,
afirmando que é isso que um escritor faz. A essa reflexão metalinguística, alinha outro enigma
sobre o tecer de uma trama que, semelhante a um tecido cheio de furos (filó), requer um ato
solitário (só) de costura (fia), resultando no vocábulo “filosofia”. A narradora indica para o
leitor, então, um epitáfio disposto em um dos túmulos, apresentando-lhe o enigma que o
compõe: “Dorme eternamente o filho de Minas coberto de flores. Uma e três” (1994, p.31).
Ela afirma que a “[...] tumba está debaixo de um jaz-mineiro, um jasmineiro! Pura poesia”
(1994, p.31). Assim, por meio do humor e da poeticidade, Angela Lago projeta no discurso da
narradora sua apreciação pela terra natal: Minas Gerais. Isso não impede, entretanto, que o
leitor, mesmo desconhecendo as origens da escritora, aprecie o jogo das palavras.
O leitor é motivado pela narradora, ainda no cemitério, a desvendar outros enigmas
que conduzem para o campo do humor, chegando às últimas páginas do livro. Nesse
momento, a narradora dá-se conta de que a história está terminando e o leitor, com o qual ela
dialoga, pode até ter achado tudo muito tedioso, mas chegou ao final do relato que está no seu
sofá, no livro, no seu colo, na sua mão. Ocorre, então, a epifania para a narradora que supunha
no controle da situação, manipulando o que ela julgava ser o leitor, levando-o a correr e a
sentir medo: “Virgem! Que horror!! Estou nas suas mãos!!!! É mesmo o fim” (1994, p.35).
Indignada, ao constatar que é ela quem está sendo manipulada e observada pelo leitor,
anuncia-lhe de forma irreverente que termine sozinho o relato. Para tanto, apresenta-lhe o
último enigma, instaurando, assim, a indagação e o humor, pois este não vem, como os
outros, após algumas peripécias, seguido da resolução: “Enfim... acabe você este artigo com
as graças de Nosso Senhor. Até outra! Uma e uma.” [adeus] (1994, p.37). Desse modo, a obra
se firma sob a forma de um jogo aberto em que o leitor real pode, ainda, interagir, mesmo
após o término da leitura. Justifica-se, então, que as persianas estejam representadas
semiabertas na quarta capa, sem nada por trás, pois a história acabou e a narradora foi embora.
Ficou, apenas, o leitor com o enigma.
Pelo exposto, pode-se notar que a abordagem do tema é muito dinâmica, pois se
configura tanto no texto verbal, quanto no visual, como repleta de lacunas, provocadas pelos
enigmas, que solicitam a interação com o leitor e o prendem até o final da leitura. Essa
abordagem é, também, consistente, pois escapa de simplificações nas representações,
demonstrando, com humor, a capacidade de sedução da obra que pressupõe um leitor curioso
e, justamente por isso, motivado a desvendar todos os enigmas. A preocupação estética na
obra centra-se na manutenção da coerência entre linguagem verbal e oral, ainda, na dialogia
entre texto verbal e não-verbal. Dessa forma, o livro propicia uma experiência significativa
quanto aos usos literários da língua e da ilustração.
Charadas Macabras dialoga com contextos culturais do jovem leitor, pode-se notar
esse diálogo na afirmação da narradora de que o demônio escapa de dentro do sapato do vigia:
“[...] tal qual o gênio de Aladim [...]” (1994, p.11). Por meio de seu intertexto, a obra retoma
charadas populares, mobilizando e instigando o leitor a estabelecer relações com outros textos
na leitura. Pelo emprego da temática do mistério e pelo jogo imagético instaurado logo no
início da narrativa, no interior de um necrotério, a obra contribui para o desenvolvimento da
percepção de mundo do leitor e para a reflexão sobre narrativas tradicionais que apresentam
narradores, geralmente, como personagens masculinos, observadores que, de forma
distanciada, não interagem com o leitor. Assim, o livro favorece a ampliação das referências
estéticas e culturais do jovem leitor, permitindo-lhe uma revisão de valores e de conceitos
prévios acerca da narrativa ficcional.
A obra de Angela Lago faculta ao leitor o reconhecimento, pela leitura, de uma rede
dialógica que, por meio de sua memória, permite-lhe identificar um lastro de narrativas que
interagem entre si. Justamente por isso, são instauradoras de um tempo que, apesar de
dinâmico, pode ser retomado e recontextualizado tantas vezes quantas forem as leituras da
narrativa. Esse reconhecimento, por sua vez, confere prazer na leitura para o jovem leitor, pois
ele percebe que “[...] os livros se falam entre si” (ECO, 1985, p.66), estabelecendo um
dialogismo.
Entende-se por dialogismo, neste texto, conforme Diana Luz Pessoa de Barros (1999,
p.2), como a característica essencial da linguagem de dialogar mesmo como seu princípio
constitutivo, embora este, muitas vezes, apareça mascarado no discurso. Na obra de Angela
Lago é esse dialogismo que produz encantamento no leitor. O encantamento provém do
equilíbrio que a criança já leitora encontra na narrativa entre elementos conhecidos e
desconhecidos. Conduzido pelo narrador, esse leitor entra em contato com um universo
ficcional novo, mas nem tanto, porque moldado à luz dos contos folclóricos, das adivinhas, dos
romances de terror e detetivescos, por isso mesmo, seguro e acolhedor. Ao mesmo tempo,
depara-se com desafios propostos pelas indicações de leitura. Dessa forma, essa combinação
entre elementos conhecidos e desconhecidos assegura entre as crianças uma atitude leitora
dinâmica.
O equilíbrio, entre elementos conhecidos e desconhecidos, presente na obra deve-se à
harmonia do antigo com o atual. Pode-se observar, no texto, que a escritora resgata a cultura
popular de inspiração folclórica, mantendo suas raízes coletivas, contudo, também expressa
uma ideia moderna de folclore (SILVA, 2004, p.14). Na obra, o elemento antigo apresenta
uma releitura. Assim, a escritora subverte o emprego do lúdico. Para tanto, ela mantém um
imaginário popular nas representações verbais e imagéticas da narrativa, apresentando uma
narrativa sintética, próxima à forma primordial e oral da adivinha, mas também circular, pelos
enigmas que são retomados a cada resolução. A subversão provém, ainda, do fato de que ela
não apresenta o lúdico, como na tradição oral com finalidade moralizante, antes como fator de
contensão do drama e elemento que conduz ao riso, ao humor. Ao se apropriar das charadas
tiburcianas, Angela Lago, por meio do recurso dialógico da apropriação e da inovação, produz
um texto individual, rico e poético, mantendo no texto o perfil de criação autoral.
Para Silva, a charada, na obra da escritora, uma vez atualizada, multiplica-se, não no
que concerne ao molde, mas no que diz respeito à substância. Desse modo, na sua forma
simples transparece a forma artística. Na narrativa da autora, a linguagem fluída, aberta e
móvel, própria das charadas, permite uma renovação constante (2004, p.66). O prazer obtido
na leitura decorre também da estrutura do texto, da presença de lacunas que solicitam do leitor
um papel na composição literária: o de organizador e revitalizador da narrativa. Esse papel,
preenchido por meio da imaginação, implica em reapropriação de criações do passado,
segundo a perspectiva do presente.
A obra de Angela Lago propicia uma interação na qual o leitor “recebe” o sentido do
texto ao constituí-lo. Desse modo, a atualização da leitura se faz presente como um processo
comunicativo. Conforme Iser (1999, p.107), esse processo ocorre quando existem lacunas
presentes no texto que indicam os locais de entrada do leitor no universo ficcional. A obra de
Lago possui, então, uma estrutura de apelo que invoca a participação de um indivíduo na
feitura e acabamento: é seu leitor implícito. A comunicação ocorre quando esse leitor, na busca
do sentido, da concretude, procura resgatar a coerência do texto que os vazios interromperam.
Esse resgate realizado pelo leitor é decorrente da utilização de sua atividade
imaginativa. Para Regina Zilberman (1984, p.79), obras que consideram o leitor, concebem
que, somente por meio de sua atividade, a criação poética alcança seu fim: a transmissão de
um saber. No caso de Charadas Macabras, este saber é emancipatório, pois oferece novos
padrões ou possibilidades de suplantar a norma vigente. Pela leitura, o jovem revê seus
conceitos acerca do fazer ficcional, de finais fechados, de narradores observadores masculinos,
de personagens que existem para serem vistas e analisadas e não para espiarem o leitor e o
observarem, do emprego de charadas de forma poética que permitem a constituição de uma
narrativa atraente e inteligente.
A leitura da obra de Angela Lago concede ao processo de leitura uma legitimação de
ordem existencial, pois revela ao leitor sua capacidade intelectual, valoriza-o. Essa valorização
ocorre quando o texto o convoca ao desvendamento da charada, submetendo-o a um rito de
passagem, por meio do qual, outros heróis mitológicos já passaram diante de uma esfinge. O
sucesso no deciframento prova que aquele que é arguido tem a mesma competência de seu
arguidor, sendo aceito pelo grupo a que pertence (JOLLES, 1976, p.116). Como a charada é
composta pela linguagem popular, figurada e, às vezes, ritmada – “Até ovo podre, pra
cachorro que não ladra, é doce. Duas e duas.” [chocolate] (1994, p.31) –, conhecê-la é deter
um saber acerca de um discurso plurívoco que tanto desautomatiza o uso da linguagem, quanto
faculta a percepção de suas inúmeras realizações.
Em síntese, Charadas Macabras confere prazer ao leitor implícito porque solicita a sua
produtividade, ou seja, oferece-lhe a possibilidade de exercer a sua capacidade. Pelo exposto,
pode-se, então, perceber que é válida a hipótese de que, pela leitura da obra de Angela Lago, o
leitor entra contato com um texto atraente e lúdico que lhe faculta a ampliação de
conhecimentos diversos, sobretudo, por meio do resgate do seu patrimônio cultural. Além
disso, a dialogia que a obra apresenta entre texto verbal e imagético, suscita interação e
memória transtextual para a concretização do sentido do texto.
Considerações finais

Pelo exposto, podemos deduzir que a ilustração reflete as mudanças culturais e sociais
de cada época. Atualmente, o livro ilustrado não é apenas um objeto cujas mensagens
contribuem para a produção do sentido, mas um conjunto coerente de interações entre textos,
imagens e suportes. A dificuldade em analisá-lo advém da constatação de que esse tipo de
livro representa uma efervescência criativa, para ele não há limites em termos de tamanho,
estilo ou técnica, e toda sua dimensão visual, inclusive tipográfica, é elaborada. A sua leitura
justifica-se, pois amplia o repertório de conhecimentos do leitor, ativa sua memória afetiva e
transtextual, desenvolve sua capacidade interpretativa, desautomatiza seu olhar e o desperta
para a realidade circundante, para o reconhecimento de ambiguidades, ironias, entre outros
recursos estilísticos.
Embora, tenha-se analisado neste texto uma obra que supõe a criança já alfabetizada,
vale destacar que os livros ilustrados podem ser, também, grandes aliados do pequeno leitor
que ainda não decifra a escrita alfabética, porque eles cruzam o limite entre os mundos verbal
e pré-verbal (HUNT, 2010, p.234). Como possuem dupla audiência, oferecem ricas
oportunidades de mediação em que se podem explorar técnicas narrativas diversas; diferentes
tipos de interação entre imagem e texto verbal; empregos de perspectivas e de cores;
simbolismos; relações entre figura e fundo, entre moldura externa e interna, e entre molduras
contendo imagens, objetos cênicos e/ou vazios etc.; expressões de tempo e espaço, com ações
simultâneas ou sucessivas, e captura do instante qualquer ou mágico, ou de um continuum
temporal. Nessa dupla audiência, esses livros conferem poder de modo igualitário a crianças e
adultos, já que são projetados para serem lidos ao mesmo tempo, por meio de palavras,
imagens e pela combinação entre elas (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p.329).
Essa igualdade avulta no processo de leitura, pois enquanto o texto verbal se dirige ao
adulto e requer um olhar linear, a imagem se dirige à criança, solicitando um olhar holístico.
A recepção do livro ilustrado pela criança pode, graças à autenticidade de seus comentários e
percepção aguçada aos detalhes, superar as expectativas do adulto e surpreendê-lo. Essa
percepção da criança suplanta a do adulto, segundo Duvoisin (apud HUNT, 2010, p.241), pelo
fato de que ela vê o mundo de forma desinibida, diversa do adulto que só enxerga o que lhe
interessa. Nesse processo de leitura mediada do livro ilustrado, criança e adulto podem, então,
ampliar seus olhares.

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