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O PLANO IMAGÉTICO EM “UM DIA, UM RIO”: UMA BREVE

ANÁLISE

THE PICTURE PLAN IN “ONE DAY, A RIVER”: A BRIEF ANALYSIS

Davi Ferreira Brito de Oliveira


Universidade Federal de Campina Grande

Resumo:
A literatura constitui-se como caminho relevante à formação humana, uma vez que, pela via
do prazer, favorece a ampliação dos conceitos já formulados pelo leitor, possibilitando-lhe
melhor compreensão da própria existência (VASCONCELOS, 2018). Diante disso, a
literatura infantil passa a ser cada vez mais valorizada em seus aspectos poéticos, lúdicos e
educativos, tanto no ambiente escolar como nos espaços de convivência social, cultural e
familiar (FLECK et al, 2016). Desse modo, os livros-ilustrados como um dos variados
suportes em que a literatura infantil circula, reinauguram, segundo Andrade (2013) uma
nova relação da palavra com a imagem, garantindo a independência da segunda e
ampliando as experiências de leitura. Em "Um dia, um rio", os autores Léo Cunha e André
Neves apresentam de modo poético uma visão sobre o desastre ambiental ocorrido em
Mariana-MG decorrente do rompimento de uma barragem de rejeitos de minério. Trata-se
de uma obra em que as ilustrações não desempenham um papel meramente
complementar, mas possuem sentidos próprios que transcendem a decodificação do plano
textual da obra. O artigo objetiva refletir especificamente sobre o livro em seu plano
imagético e as relações de sentido que ele estabelece, a fim de sinalizar seu importante
papel na formação do leitor mirim.

Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil; Livro ilustrado; Plano imagético.

Abstract:

Literature constitutes a relevant path to human formation, since, through pleasure, it favors
the expansion of concepts already formulated by the reader, allowing them to better
understand their own existence (VASCONCELOS, 2018). In view of this, children's literature
is increasingly valued in its poetic, playful and educational aspects, both in the school
environment and in spaces of social, cultural and family coexistence (FLECK et al, 2016).
Thus, picturebooks as one of the various supports in which children's literature circulates,
reinaugurate, according to Andrade (2013) a new relationship between the word and the
image, guaranteeing the independence of the latter and expanding reading experiences. In
"Um dia, um rio", authors Léo Cunha and André Neves poetically present a vision of the
environmental disaster that occurred in Mariana-MG due to the rupture of an ore tailings
dam. It is a work in which the illustrations do not play a merely complementary role, but have
their own meanings that transcend the decoding of the work's textual plan. The article aims
to reflect specifically on the book in its imagery plane and the relationships of meaning it
establishes, in order to signal its important role in the formation of the young reader.

Key Words: Children’s literature; illustrated book; Image plane.


1. Introdução

“Um dia, um rio” é uma obra infantil, cujo texto é de autoria de Léo Cunha e as
ilustrações de André Neves. Léo Cunha nasceu em 1966, em Bocaiúva (MG), e mora em
Belo Horizonte. Escreveu mais de 60 livros, entre literatura infantil e juvenil, crônicas e
poesia, sendo reconhecido nacional e internacionalmente. Durante sua vida teve uma
vivência muito próxima com rios, tendo em vista sua família ser do sul de Minas, o que lhe
causou grande impacto quando ocorreu a tragédia de Mariana. Curiosamente, na época a
editora Pulo do Gato resolveu convidá-lo para publicar um livro motivado por esse
acontecimento, convite que foi aceito de modo que resultou na obra estudada no presente
trabalho. André Neves, por sua vez, é escritor e ilustrador de livros para infância e formação
de leitores. Durante sua carreira ganhou diversos prêmios importantes como Prêmio Jabuti
(CBL), Prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e XV Prêmio
Internacional de Livro Ilustrado Infantil e Juvenil pela Conacultura (México). Recifense,
também teve relação direta com rios de modo que suas ilustrações deram voz ao rio doce,
outrora silenciado e coberto pela enxurrada de lama que dizimou a vida gerada e mantida
pelas suas águas.
Léo Cunha preza em suas produções por poemas que encantam, divertem,
emocionam, assustam e que até perturbam, tocando as pessoas mais pelas sensações e
emoções do que por alguma lição ou "mensagem", o que é observável em “Um dia, um rio”.
Há grande preocupação na escolha e no uso do léxico, de campos semânticos e das
imagens criadas e associadas através destes, preocupação que se dissemina de forma
lúdica ao longo da obra (LUIZ, 2015). André Neves, por sua vez, propõe no livro ilustrações
dotadas de significado próprio, não se limitando a uma função de complementaridade
semântica, mas transcendendo a decodificação do código escrito, possibilitando uma
envolvente experiência de leitura, o que é o foco da atenção deste trabalho, a saber, os
aspectos imagéticos da obra.

1.1 A Literatura Infantil

Como forma de arte, a literatura, por intermédio da poesia e do recurso ao ficcional,


representa uma forma de pensamento que possibilita interpretar e significar a vida e o
mundo, por isso cumprindo uma função essencial no processo de humanização dos sujeitos
(VASCONCELOS, 2018). Tal asseveração nos habilita a enxergar a literatura não apenas
como uma manifestação artística dentre as várias existentes, mas a considerá-la a partir de
um horizonte muito mais amplo que, ao passo que concebe o ser humano como um ser
social por natureza dotado de uma necessidade majoritariamente uniforme de estabelecer
relações interpessoais, considera a importância da literatura no processo de formação do
sujeito e sua extensão do patamar de indivíduo ao coletivo, o que incide diretamente na
maneira de se enxergar a realidade ao seu entorno.
Nesse sentido, Martins (2018) postula que as práticas de leitura, além de
estimularem o imaginário do leitor, têm grande importância para sua formação enquanto
participante das iniciativas de seu meio social, quando afirma que a leitura dá ferramentas
fundamentais ao indivíduo para interpretar os fatos presentes na sociedade e,
consequentemente, ter uma visão ampla do mundo, descobrindo o sentido da vida. Tal
pensamento ratifica ainda mais o que é dito anteriormente a respeito da relação entre
literatura, indivíduo e sociedade, considerando que estes estabelecem uma inter-relação na
formação do sujeito leitor.
É evidente que nesse objetivo de formar leitores não apenas de textos, mas de
mundo, a escola desempenha importante papel como mediadora, o que é enfatizado pelo
autor ao dizer que ela tem o compromisso de oferecer o conhecimento necessário para o
indivíduo buscar, ao término do ensino básico, de forma independente, informações em
qualquer área do conhecimento. Ainda acresce que a instituição escolar tem também a
responsabilidade de formar cidadãos conscientes de suas obrigações e de seus direitos,
bem como direcionar atenção para desenvolver o espírito de solidariedade e cooperação
nos discentes.
Partindo dessas considerações, ficam patentes as múltiplas tarefas que a literatura
desempenha no reiterado processo de humanização dos sujeitos, de modo que se torna
difícil conceber o estabelecimento das bases culturais, cognitivas e históricas dos indivíduos
e da sociedade sem que a literatura seja tomada como objeto de estudo, resguardadas
suas abordagens tanto sincrônicas como diacrônicas. Em linhas gerais, segundo Martins
(2018), a leitura contribui significativamente para a formação cultural do indivíduo, a
instituição escolar leva o aluno a conhecer as interessantes páginas da literatura,
contribuindo para o enriquecimento de seu repertório enciclopédico e o sentimento de
respeito às diferentes manifestações artísticas, bem como despertando o prazer estético no
indivíduo, dando-lhe condições de selecionar obras literárias que o levem à fruição do
trabalho com a palavra.
Em relação à literatura infantil especificamente, Fleck et al (2016) destaca que, como
um termo de complexa definição, é, antes de mais nada, literatura, o que a torna expressão
artística por excelência e, como tal, pode ser instrumento de sensibilização da consciência e
expansão da capacidade do sujeito de conhecer a si mesmo e o mundo que o cerca,
elencando alguns motivos pelos quais se deve estudar literatura infantil, dentre eles: Porque
é importante e divertido; os livros para crianças têm grande influência social e educacional;
são importantes tanto em termos políticos quanto comerciais; são uma contribuição valiosa
à história social, literária e bibliográfica; são vitais para a alfabetização e a cultura.
É importante destacar que os autores consideram o potencial da literatura infantil à
formação de conhecimento conciliada com a função lúdica dos textos literários infantis,
reconhecendo que tal função admite, além de uma narrativa envolvente, a presença de
ilustrações que materializam o imaginário e comungam com o texto, o que abre caminho
para falarmos sobre o livro ilustrado.

1.2 Livro ilustrado

A publicação de livros ilustrados direcionados ao público infantil é algo que tem


crescido de forma exponencial nas últimas décadas. Que a imagem, juntamente com o
texto, desempenha importante papel na construção de sentidos do livro, isso é notório e até
lugar comum na mentalidade coletiva dos teóricos literários. Mas antes de tecer
considerações mais específicas sobre a temática, faz-se necessário estabelecer uma
diferenciação entre o que se conhece por livro ilustrado e livro com ilustração.

Livros com ilustração: obras que apresentam um texto acompanhado de


ilustrações. O texto é espacialmente predominante e autônomo do ponto de
vista do sentido. O leitor penetra na história por meio do texto, o qual
sustenta a narrativa.
Livros ilustrados: obras em que a imagem é espacialmente preponderante
em relação ao texto, que, aliás, pode estar ausente (é então chamado no
Brasil, de livro-imagem). A narrativa se faz de maneira articulada entre textos
e imagens. (ANDRADE, 2013).

Com base nas definições acima, é possível perceber que no livro com ilustração as
imagens desempenham papel de complementar os sentidos já presentes no texto escrito,
aparecendo de modo pontual em proporção inferior ao código escrito. Já no livro ilustrado,
as imagens recebem ênfase igual ou até superior ao texto escrito, de modo que não apenas
servem de complemento, mas possuem significação própria, possibilitando amplas
interpretações que variam de acordo com a recepção do leitor.
Pensando a respeito dessa questão, Fleck et al (2016) afirma que ler o livro
ilustrado, mais do que ler texto e imagem separadamente, é aguçar o olhar para perceber
as sutilezas artísticas que se compõem na integração entre as duas linguagens. Ainda
destaca que, além de texto e imagem, o projeto gráfico é fundamental na concepção do livro
ilustrado, chamando atenção para o formato, material, relação entre capa e as guardas, tipo
e tamanho da letra, enquadramento e encadeamento do texto e das imagens, disposição e
localização das mensagens no suporte, esclarecendo que todas essas características
fazem diferença significativa no resultado final.
Um importante aspecto a ser considerado é que as publicações mais recentes da
literatura infantil juvenil têm se detido a possibilitar uma experiência leitora que preza muito
mais pela fruição ao invés de propor um fim pedagógico ou moralizante, o que é
corroborado por Andrade (2013) ao afirmar que os livros-ilustrados possuem papel
fundamental para a renovação e consolidação da literatura destinada a jovens e crianças
como experiência estética e não como instrumento pragmático de aprendizagem, sendo a
ilustração um elemento primordial para essa mudança, o que nos possibilita pensar de
modo mais detido sobre a imagem e seu papel fulcral exercido na experiência leitora.

1.3 Plano Imagético

A respeito da imagem, Sampaio (2012) afirma que historicamente ela ocupou um


lugar importante na comunicação e na transmissão de conhecimentos, pois desde as
gravuras pré-históricas e iluminuras dos livros medievais aos livros ilustrados de hoje, a
imagem tem sido utilizada para um propósito educativo sempre próximo da linguagem
verbal e da escrita. Não é de se estranhar que em grande parte de nossas práticas
comunicativas recorramos ao uso de recursos imagéticos para veicular informação, seja em
redes sociais, outdoors, noticiários, placas, anúncios, etc. Infelizmente, apesar da
importância da imagem em nossa comunicação, ainda há uma evidente valorização do
código escrito em detrimento do imagético, o que promove reiteradamente um desinteresse
pelo seu estudo, mostrando-se ainda uma situação contraditória, tendo em vista que o
surgimento da imagem é muito anterior ao da escrita.
Andrade (2013) apoia esse raciocínio ao dizer que num mundo grafocêntrico em que
a escrita ocupa lugar de destaque, a leitura de imagens não é tão estimulada, pois
normalmente a importância de um livro é medida pelas palavras, fato que compromete a
autonomia das imagens enquanto campo simbólico e semântico. Além do mais, a ênfase
dada à escrita em prejuízo da imagem é motivada não só por motivações literárias e
culturais, mas, sobretudo, por questões de ordem política. Nesse viés, o autor segue
afirmando que a alfabetização escolar é muitas vezes voltada para palavras e que deveria
contemplar também a leitura imagética. Destaca-se que cada uma das duas imagens possui
suas especificidades, mas a comunicação visual ainda não foi utilizada em sua plenitude,
precisando ser refinada. Ainda expõe que os livros compostos somente por imagens são
normalmente classificados para indivíduos ainda não alfabetizados, sobretudo crianças,
concluindo que a paratextualidade das ilustrações de grande parte dos livros não é
investigada de forma proveitosa como poderia ser.
Apesar de todos os agravantes que histórica, social e politicamente contribuem para
a desvalorização da imagem em relação à escrita, vemos um constante movimento que
tende a primar cada vez mais pelo uso de aspectos imagéticos na comunicação e
veiculação de informações, o que desperta o interesse dos estudiosos na área da semiótica.
Diante disso, o que se constata é que, nas práticas comunicativas, texto e imagem não
precisam exercer papéis excludentes, mas inter-relacionáveis, pois seja na seara da
literatura, publicidade, ou nas mais diversas existentes, ambos desempenham papéis
fundamentais na construção de sentidos. Assim, é pertinente falarmos sobre os aspectos
imagéticos do livro tomado por objeto de estudo neste artigo.

2. “Um dia, um rio”

Segundo Vasconcelos (2018), recentemente vêm sendo publicadas obras que, de


maneira sensível e artística, tratam de temas próprios do momento atual, como questões
referentes à destruição ambiental, à supremacia do poder e do lucro desenfreado sobre o
respeito às pessoas e ao lugar que habitam, fazendo com que a criança vislumbre um
universo estético que, ao mesmo tempo em que a diverte e encanta também a desperta e
instiga a compreender seu contexto social e histórico, refletindo e tomando posições
enquanto sujeito ativo. “Um dia, um rio” é, sem dúvidas, um ótimo exemplo dessas obras
em que há a abordagem de temáticas atuais direcionada ao público infantil, de modo que há
a conciliação entre texto e imagem, possibilitando uma experiência lúdica ao leitor mirim.
Como apontado na introdução, a obra é de autoria de Léo Cunha e André Neves.
Possui 32 páginas, corpo com dimensões: 27 x 21 x 0.4 e foi publicada pela editora Pulo do
Gato em 10 de outubro de 2016. A idade de leitura recomendada é de 6 anos acima, o que
não impede que seja lida por leitores mais novos. O livro retrata poeticamente o desastre de
Mariana ocorrido em 2015 no estado de Minas Gerais, decorrente do rompimento de uma
barragem de rejeitos de minério, o qual praticamente ocasionou a morte do Rio Doce.
É abordada a problemática das empresas mineradoras e as consequências que
suas atividades promovem às cidades, à população e aos rios, sendo que os autores
inserem-se como sujeitos responsáveis, conscientes dos papéis exercidos no mundo e,
diante do ocorrido, produzem uma resposta estética, denunciando a ganância humana pelo
lucro, evidenciando que os efeitos atingem o meio ambiente e o ser humano (OLIVEIRA et
al, 2021). Narrada pelo personagem que personifica o próprio rio, a história é dotada de
uma estética sem fins informativos ou moralizantes, mas que busca proporcionar ao leitor
uma experiência de fruição.

2.1 Análise

Em “Um dia, um rio” se percebe ao longo da narrativa alguns aspectos que,


somados, criam toda a poeticidade da obra como a linguagem utilizada, o tempo verbal das
ações indicando acontecimentos passados, presentes e futuros, paralelismo de ideias,
rimas, metáforas, a própria personificação do rio no menino, antíteses, enfim. Todavia,
direcionando atenção especial às ilustrações, podemos perceber que elas desempenham
papel importantíssimo na leitura, interpretação e recepção da obra de modo geral. Ainda
antes de iniciar a leitura propriamente dita, a capa do livro já apresenta ao leitor uma
imagem que cria certa expectativa no leitor não só do que é retratado ao longo do livro, mas
de como isso é abordado, de modo que a história já começa a ser contada desde a capa.

1ª e 4ª capas da obra

Salta aos olhos a figura de um menino imerso num grande volume de um líquido de
cor marrom que preenche toda a capa com apenas o título grafado na cor azul.
Estabelecendo um comparativo com a ilustração da 4ª capa, se percebe que ela
complementa a informação imagética presente na 1ª. Nela, aparece parte da cabeça e dos
braços do menino que não aparecem na ilustração da 1ª capa. Além disso, há um grande
diferencial, pois as cores mudam totalmente, de modo que a 1ª capa representa a parte
submersa por aquilo que o leitor pode inferir ser lama envolvendo a quase totalidade do
corpo do menino, enquanto a ilustração da 4ª capa traz a perspectiva do que ainda não foi
submerso, contrastando com as cores azul, branco e amarelo.
Tais aspectos observados nas duas capas propiciam ao leitor uma série de
inferências lhe direcionando para possíveis antecipações a respeito da narrativa antes
mesmo que abra o livro e inicie a leitura. As guardas do livro também trazem alguns
aspectos interessantes, pois seguem a mesma ideia da 1ª e 4ª capas, de modo que
apresentam, respectivamente, um cenário tomado pela cor marrom que ilustra a lama e
outro cenário tomado pela cor azul. No 1º cenário há uma torneira que despeja água límpida
na lama e no 2º cenário permanece a torneira, só que fechada. É possível inferir o estado
inicial de calamidade onde a torneira despeja sua água limpa de forma contínua a despeito
da catástrofe e, ao final, o resultado do derramar contínuo que resulta no ambiente tomado
novamente pelo azul, o qual, além de representar o estado inicial do rio, traz a ideia de
renovação.
Ao se iniciar a leitura propriamente dita, vê-se a representação do menino rio. O
infante é caracterizado pelo ilustrador numa página que mescla tons claros, amarelos,
verdes e azuis, onde ele aparece brincando ao puxar uma corda em meio à vegetação
olhando à sua frente num estado de devaneio sugerido pela sua expressão de ingenuidade.
As cores desempenham papel de destaque na recepção do leitor, pois são utilizadas de
modo intencional. Neste caso, as cores utilizadas trazem a impressão de vida, suavidade,
alegria, o que está conciliado de modo direto com o estágio inicial do rio, em que é dotado
de vida própria, a qual é estendida aos seres que nele vivem e dele subsistem. Na página
seguinte, há uma predominante cor branca onde apenas o texto inicial está presente no
canto inferior direito, trazendo uma caracterização poética do rio.

A narrativa prossegue para as seguintes páginas, onde aparecem algumas crianças


seguindo na direção que o menino rio lhes direciona. Elas portam objetos como vara de
pesca, rede, boia barco, enquanto o guia da trajetória puxa um carrinho com um balde de
água. É perceptível que o menino rio sempre vai à frente das crianças enquanto elas o
seguem como se estivessem indo ao encontro de alguma coisa, e durante a caminhada a
fisionomia do menino que antes era de suspensão da realidade pelo envolvimento em
brincadeiras, muda. Pelo fato de estar indo à frente das outras crianças, ele parece ver
alguma coisa de forma antecipada que lhe causa certa apreensão, o que é sugerido pela
sua expressão cabisbaixa.

Percebe-se que o grupo de crianças aparece novamente, ainda atrás do menino rio,
dessa vez param aparentemente assustados, diante do que parece ser uma sinalização do
seu guia para que esperem. Considerando que provavelmente ele havia visto alguma coisa
de forma antecipada, é um aviso para que o grupo aguarde até que ele veja do que se trata.
A hipótese é confirmada nas páginas seguintes, pois o menino rio se depara com um
monstro em forma de máquina à sua frente que o encara com um olhar frio num cenário
cinza que já ilustra uma possível transição da paz sugerida pelo branco das páginas
anteriores. As proporções ilustram a superioridade da máquina em relação ao menino, no
segmento diagonal onde ele está no canto inferior esquerdo e a máquina olhando do topo
do canto direito, de modo que sendo uma simples criança não tem a menor chance contra a
imponência do grande monstro.

A representação das engrenagens da máquina remonta à ideia de trabalho, fábrica,


produção, maquinário e lucro, em oposição à representação da criança com seu brinquedo
e suas cores vivas, trazendo a ideia do lúdico, da brincadeira e suspensão da realidade.
Num cenário onde as demais crianças não aparecem, a disparidade de proporção entre o
menino rio e a máquina é ainda mais acentuada, momento em que o monstro começa a
despejar pelas suas tubulações uma enxurrada de lama.
Destaca-se aqui a questão da omissão de detalhes na ilustração da máquina, pois
comparando os dois momentos em que ela aparece, o ilustrador omite um detalhe de sua
representação, o que seria uma espécie de válvula na estrutura do monstro. Tal detalhe não
pode ser visto como apenas um esquecimento, mas como algo importante a ser
considerado, pois num livro ilustrado dessa natureza, nada é feito sem intencionalidade. Tal
questão pode apontar para uma possível denúncia de falha humana na estrutura da
máquina, pois conforme Oliveira (2020), a maior parte dos acidentes com barragens como
ocorrido em Mariana, se dão por falhas na estrutura dos barramentos, na maioria das vezes
de conhecimento dos setores encarregados pela segurança dessas obras, mas
negligenciados para evitar gastos com vistorias. Apesar disso, o gasto para manter uma
barragem é muito menor se comparado ao gasto para reparar os danos decorrentes de um
rompimento como o caso que vitimou o rio Doce, tendo em vista que além dos danos
ambientais e lucrativos, há o pior que é a perda de vidas.
O clímax da história é retratado logo em seguida, onde duas páginas aparecem
completamente tomadas pela lama, representada pelo marrom, com o personagem principal
numa delas todo coberto pela enxurrada. Além do caos representado pelas tonalidades, há
alguns detalhes na parte inferior das páginas que ilustram o rastro de destruição deixado
para trás após a tragédia, com o rosto de uma pessoa em estado de agonia, destroços, o
próprio semblante de angústia do menino rio, de modo que é exatamente o contrário da
representação da primeira página, ou seja, há uma contraposição de ideias, sensações e
impressões em ambas as ilustrações, o que se percebe através das cores utilizadas,
expressão do personagem, traços dos desenhos, dentre outros aspectos.

É válido destacar que, em meio a todo o cenário de destruição, apenas o balde que
o menino rio possui como brinquedo aparece com cores vivas, permitindo confirmar a
interpretação de que, a despeito de toda a situação desastrosa retratada ao longo do livro,
sempre há algum detalhe que aponta para uma possível restauração, apresentando certo ar
de esperança futura. A cena seguinte, muito tocante, mostra o menino rio, ao que parece,
vomitando no balde que, outrora com água limpa, despeja agora pela sua torneira um
líquido vermelho similar a sangue, o que é sugerido pelo texto escrito. Toda a água do rio,
antes límpida e cheia de vida, agora é ilustrada na cor vermelha, simbolizando as vidas que
se foram juntamente na tragédia ocorrida, tanto de animais como de pessoas.
Alguns peixes aparecem carregando casas sobre si, o que remete às construções
que também foram afetadas, além da representação de lavadeiras, crianças, animais e
pescadores que, particularmente, possuíam relação de proximidade com o rio em seu
estado inicial. Fato interessante é que as pessoas são ilustradas com corpo de gente e
rosto de peixe, o que reforça ainda mais a relação de dependência que tinham com o rio, ou
seja, assim como o rio era vital para os peixes, era vital para os seres humanos que viviam
ao seu redor. Além disso, destaca-se na página que se segue uma ilustração do que parece
ser restos mortais de crianças e um corpo de boneco. A imagem de um peixe ainda vivo em
meio à destruição e outro só com o esqueleto saindo de um crânio é algo que possibilita
ampla interpretação, mas que parece indicar um estado de caos maior dentro dos que
morreram do que no próprio ambiente externo.
Já próximo do fim da narrativa há uma mudança de cenário em que duas páginas
são tomadas pela cor cinza e reaparece o balde, dessa vez, com a cabeça do menino rio
saindo de dentro dele. As cores que caracterizam o menino no início do livro são
retomadas, mas destaca-se agora, em contrapartida ao início, uma expressão que sugere
imobilidade, inércia, perplexidade e até morte. O olho do menino é trocado por um olho de
peixe que lacrimeja, o que reforça sua tristeza.
Por fim, o livro se encerra com um cenário todo em branco, em que reaparecem as
crianças que inicialmente seguiam o menino rio. Elas brincam e parecem boiar no que se
assemelha à superfície da água. O branco traz o tom de paz e serenidade que se perde ao
longo da narrativa, direcionando a uma interpretação de que ainda há a esperança de que o
menino rio, dantes feliz, radiante, torne ao seu estado inicial, de modo que toda a alegria,
paz e vida que se tinha outrora, encontre o seu caminho de volta. Assim, a obra chega ao
fim de sua narrativa deixando marcas permanentes de uma leitura que concilia emoção e
poesia de modo único.

3. Considerações Finais

Este trabalho buscou refletir sobre o livro estudado em seu plano imagético e as
relações de sentido que ele estabelece e apontar seu importante papel na formação do
leitor infantil. Em relação à literatura infanto juvenil, se enfatizou sua importância em relação
ao processo de formação humana considerando suas implicações na constituição do
indivíduo e em sua forma de encarar a realidade que o cerca, isto é, a sociedade. No
quesito da importância da imagem, se pôde perceber que cada vez mais ela tem ganhado
espaço nas práticas comunicativas e, por sua vez, na literatura infantil e juvenil, lançando
luz sobre a importância de se haver não apenas o contato da criança com o código escrito
mas possibilitando-lhe uma alfabetização imagética para aprender a melhor interpretar o
mundo. Por fim, e não menos importante, este artigo refletiu um pouco sobre a obra “Um
dia, um rio” em si, atentando de modo específico para suas ilustrações bem como sua
contribuição na recepção do leitor. Algo que foi bem enfatizado é que a obra em si não
possui caráter pedagógico nem moralizante pois não busca passar uma mensagem
específica. De fato é dessa forma, mas convém destacar que, apesar disso, o livro não é
uma mera produção sem intenções, muito pelo contrário, permite sim algumas reflexões
que partem de uma temática específica com um fim específico, a saber, aguçar o senso
crítico de seus leitores ao passo que oferta uma experiência fantástica de leitura. Em linhas
gerais, a literatura tem o poder de mudar a forma como enxergamos a realidade, todavia
cabe a nós a escolha de fechar os olhos ou renovar constantemente as lentes pelas quais
interpretamos o mundo.

4. Referências Bibliográficas
ANDRADE, Júlia Parreira Zuza. O Papel da Ilustração no Livro Ilustrado: Uma
Discussão Sobre Autonomia da Imagem. Anais do SILEL. Volume 3, Número 1.
Uberlândia: EDUFU, 2013.

FLECK, Felícia de Oliveira; CUNHA, Miriam Figueiredo Vieira da; CALDIN, Clarice
Fortkamp. Livro Ilustrado: Texto, Imagem e Mediação. Perspectivas em Ciência da
Informação, v.21, n.1, p.194-206, jan/mar, 2016.

LUIZ, Ana Carolina Castanon. Léo Ludens - O Lúdico na Poesia Infantil de Léo Cunha.
São Paulo, 2015.

MARTINS, Aira Suzana Ribeiro. Um dia, um rio: Uma Leitura Interdisciplinar. Linha
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OLIVEIRA, Andreia dos Santos; GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões; RUSSO,
Daniele Aparecida. A Arquitetônica em “Um dia, um rio”. São Paulo, 2021.

OLIVEIRA, Davi Ferreira Brito de. Importância das Inspeções de Barragens no Contexto
do Semiárido Nordestino: Uma Breve Revisão. Monografia - Curso Técnico em
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SAMPAIO, Mariana; TAVARES, Paula; SILVA, Catarina. A Experiência do Livro Ilustrado


Interativo Para a Infância. Confia, p.555-565, 2012.

VASCONCELOS, Fabíola Cordeiro de. "Um dia, um rio": O Texto Literário Infantil, A
Abordagem de Temáticas Hodiernas e a Formação do Leitor do Leitor Consciente e
Crítico. In: ENLIJE, nº 7, Campina Grande.

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