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Antiprincesas e anti-heróis: a literatura


infantojuvenil e a desconstrução de
estereótipos de gênero.
RESUMO

Rosangela Fernandes Eleutério O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma nova coleção da literatura
rosangelaeleuterio@gmail.com infanto-juvenil intitulada “Coleção Antiprincesas e Anti-heróis”. Apresentando
Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis,, Brasil. personalidades históricas, exemplos de pessoas corajosas que foram além dos
estereótipos feminino/masculino e criaram sua arte. Os livros incentivam jovens leitores a
olhar o mundo sob novas perspectivas, saltar obstáculos e conhecer celebridades literárias
e da música que deixaram obras que estão além do nosso tempo. Descontrói a ideologia
de papéis de gênero, explicando para crianças que meninas não precisam ser frágeis e
delicadas, tampouco os meninos fortes e “durões”, reconhecendo que as culturas e
sociedades são dinâmicas e mudam. As obras foram lançadas pela editora argentina
Chirimbote em 2016. Inicialmente lançadas em espanhol, agora estão sendo traduzidas
para o português e lançadas no Brasil pela distribuidora Sur. Com essa nova possibilidade
de leitura entre crianças e jovens, pode-se fazer reflexões sobre gênero, cultura e
sociedade. Como exemplo, neste trabalho será refletido particularmente sobre a literatura
infantil de Clarice Lispector, que se tornou referência como uma das mais famosas
“antiprincesas” do Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura infantojuvenil. Desconstrução de gênero. Ideologias.
Estereótipos.

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R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 1-14, mar. 2017.


INTRODUÇÃO

A literatura infantil sempre foi julgada e avaliada com base no triângulo


criança – família – escola. Constantemente a tendência era usar os livros com
finalidade educacional. No entanto, o erro subjacente em literatura infanto-
juvenil é a concepção que ameaça relegá-la dentro dos limites da subliteratura e
não explorar devidamente os seus conteúdos. Outro fator que problematiza a
escrita feita para crianças, reside no fato de que o objeto da pesquisa, se torna
frequentemente as crianças lendo dentro das escolas, como apenas mais uma
obrigação escolar, sem relacionar literatura com a vida cotidiana
(MASTANTUONO, 2016).
Os livros escolhidos para leitura obrigatória, tanto no ensino fundamental
quanto no ensino médio, muitas vezes deixam a desejar quanto a discussão
reflexiva de seus temas. Em vez de histórias inspiradoras que estimulem a
criatividade e questionamentos do mundo, crianças e jovens estão lendo
adaptações e reescritas de obras clássicas, com finalidade de ensina-las uma
possível “lição de moral” ou noções de cultura geral. (MASTANTUONO, 2016),
sem um propósito que provoque uma relação entre literatura, reflexão, educação
e ética.
No Brasil, sob perspectiva histórica, as propostas metodológicas adotadas
eram dirigidas à obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato. “Contribuiu-se, nesse
sentido, com a formação de pedagogos e professores de língua e literatura,
oferecendo um panorama sobre a odisséia da produção lobatiana nas unidades
de ensino, entre as vertentes educacionais e textuais que vigoram no século XX”
(LUIZ, 2005, p. 22). As consagradas obras de Monteiro Lobato se tornaram
clássicos infantis e leitura obrigatória entre as crianças e jovens. Ganhou
adaptações para a tv e assim cada vez mais se popularizou e agradou ao público
que não tinha muitas opções de obras de referência nas escolas. Monteiro
Lobato como ícone literário infantil predomina até hoje, porém, atualmente,
novos estudos começam a questionar a pertinência de suas temáticas dentro das
histórias.
Entrar no mundo das histórias, diverte, ensina, estimula a linguagem, a
imaginação e oferece à criança a possibilidade de vivenciar experiências
prazerosas que as libertem da mediocridade cotidiana. É na relação lúdica com a
obra literária que temos a possibilidade de formar um leitor. Os livros também
podem ser um pretexto para ensinar a leitura, língua, a aquisição de novas
palavras, a análise de discurso, a identificação dos diferentes gêneros literários, a
vincular/diferenciar fantasia e realidade, entendimento do comportamento social
e oportunidade de incentivá-las a inventar suas próprias histórias. Enfim, a leitura
na infância oferece incontáveis benefícios que podem transformar a vida de uma
pessoa e defini-la como indivíduo.
Isso remete a imensa responsabilidade da escolha do que se ler para uma
criança. Tanto no âmbito escolar quanto no familiar, os livros devem conter
informações que moldarão de forma positiva e edificante as mentes jovens de
seus leitores. E nesse processo, a participação ativa do adulto é de extrema
importância. Os educadores devem ter em mente o tipo de olhares e
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interpretações que determinados livros oferecem e analisar sua coerência com a

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idade do leitor, com a perspectiva de mundo que a história contida no livro
apresenta e quais valores morais devem ser relevados.
Uma consideração importante feita pelo filósofo italiano Giorgio Agamben
provém da relação que as crianças têm com as histórias imaginativas. Segundo o
filósofo “é provável que a invencível tristeza que as vezes toma conta das
crianças nasça da consciência de não serem capazes de magia” (AGAMBEN, 2007,
p. 23). Com certo pessimismo, Agamben ainda sugere que aquilo que
conseguimos por mérito próprio não é capaz de proporcionar a felicidade, que
somente a magia é capaz de tal mérito (2007, p. 23). Será esse um dos motivos
que as histórias de contos de fadas, de heróis e princesas, fazem tanto sucesso
entre as crianças? Para um menino é muito importante ter força extraordinária,
superpoderes e inteligência aguçada. Para as meninas, beleza infinita, vestidos
lindos, um príncipe que as ame e lhes dê o valor de uma “joia rara”. Mas quem
estabeleceu a quem beleza e força devam ser relacionados? Não pode um
menino ter beleza infinita e uma menina superpoderes?
A literatura infanto-juvenil atualmente vem reforçando estereótipos que
devem ser vencidos, desconstruídos e assim libertando mentes de preconceitos
reforçados ao longo das décadas. Questionar o conteúdo das obras de Monteiro
Lobato é um importante passo para reflexão de uma nova era na educação, mas
a introdução de livros que auxiliam debates e pontos de vista a partir de novos
ângulos tem um papel cada vez mais inovador e necessário. Não que se deva
apagar a magia dos livros de histórias, mas sim acrescentar os méritos próprios
de seus personagens como um importante fator de possível felicidade. Por isso é
importante refletir e discutir sobre a nova coleção de livros infantis lançados pela
editora argentina Chirimbote, pois ela tem a ambição de ensinar às crianças a
encontrarem as forças que já existem dentro delas e transforma-las em uma
história de vida extraordinária e cheia de magia.

A DESCONSTRUÇÃO DE GÊNERO COMO PRÁTICA INEVITÁVEL NA


LITERATURA.

Uma das questões levantadas nas escolas que causam mais conflitos de
opiniões entre pais, professores, diretrizes escolares e até políticas é a pergunta:
É possível falar sobre diversidade de gênero e/ou representações de gêneros com
crianças pequenas? (PORTO, 2016, p. 01). Embora haja uma conduta do
politicamente correto e o pudor de algumas escolas em não tratar sobre
sexualidade, é importante ressaltar e não ficar indiferentes ao fato de que as
perguntas e respostas estão no nosso cotidiano (PORTO, 2016, p. 01). As crianças
possuem sensibilidade e inteligência para perceber que há uma diferença entre o
que lhes é dito e o que veem nos meios sociais nos quais circulam. É importante
que pais e professores estejam atentos a essa capacidade de compreensão e
crítica que as crianças desenvolvem naturalmente na inteiração com o outro.
Um dos exemplos é a atual configuração de família. Não há como crianças
criadas em famílias tradicionais ficarem indiferentes diante coleguinhas que tem
dois pais ou duas mães, ou que são filhos de pais ou mães solteiros. Há as que
são criadas pelos avós, as crianças que são adotadas e as de família inter-raciais,
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entre outra diversidade de configurações familiares. Enfim, isso precisa ser
discutido, mostrado e refletido para que desconstrua antigos preconceitos que

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interferem na formação intelectual dos alunos. As crianças são parte da história,
cultura, sociedade civil e política que não permitem exclui-las de discussões que
interferem em suas liberdades de escolha e expressão (PORTO, 2016, p. 02).
Precisam de um programa educacional que as possibilitem de formar opiniões
próprias e lutar por si mesmas, contra as repressões que podem estar sofrendo
por consequência de uma educação castradora e sufocante.
Não se deve negar a crianças e jovens o direito ao debate sobre as
ideologias contemporâneas. Os livros infantis que deveriam ser grandes aliados
na educação desses alunos estão separando o mundo entre princesas, príncipes e
monstros. Mas quem são esses monstros? Aqueles que pensam diferente da
maioria? A menina que gosta de jogar futebol ou o menino que prefere dançar
balé? Separar, rotular e classificar pessoas é um ato perigoso que pode ser um
dos piores males existentes na contemporaneidade e responsáveis por tantas
doenças psicológicas que vêm surgindo como se fossem produtos de massa.
Paralelamente a educação rígida, antiquada e tradicional, vem surgindo na
literatura brasileira livros que abordam temas até hoje tido como tabus. Por
exemplo, os livros da coleção sobre antiprincesas e anti-heróis que trazem em
cada um deles, temas relacionados às relações homo afetivas, como a
bissexualidade de Frida Kahlo. Questões feministas como a vida livre de amarras
das responsabilidades familiares de Violeta Parra. Questiona o que é crença e
religião ao tratar o atributo de santa que Gilda recebeu de seu povo por ser capaz
de realizar “milagres” e também o estrangeirismo de Clarice Lispector. Os
chamados anti-heróis descontroem o ideal do homem forte e sem emoções para
apresentar aos leitores a doçura e sensibilidade de escritores como Eduardo
Galeano e Júlio Cortázar, cujas vidas foram dedicadas à escrita, poesia e
contemplação dos mistérios do ser humano.
Tratar desses temas com crianças parece complicado, mas não por estar
associado a capacidade cognitiva desses indivíduos, mas sim por questões
relacionadas a linguagem. Tudo deve ser dito de maneira sutil, explicativa,
desmistificada, porém fazer omissões cautelosas é um dado muito relevante.
Afinal as personalidades reais escolhidas para compor a saga de celebridades a
serem reconhecidas como exemplos de vida para os alunos, contém em suas
biografias relatos de dor, traições, problemas éticos, saúde mental, entre outros
assuntos que não seriam apropriados dizer em um livro infantil, afim de não tirar
das crianças o encanto e a magia em que acreditam. A literatura infanto-juvenil
tem responsabilidade social e os não-dizeres devem estar nas entrelinhas, para
que, no momento oportuno das idades escolares, certas questões possam ser
retomadas. Como afirma Sartre sobre literatura: “Pode-se encontrar, sem dúvida,
na origem de toda vocação artística, uma certa escolha indiferenciada que as
circunstâncias, a educação e o contato com o mundo só mais tarde irão
particularizar” (2004, p. 09).
Isso na verdade não chega a ser um problema, pois a literatura existe
precisamente para isso, entre outras coisas. Para trazer uma linguagem repleta
de significados. Mas o que é linguagem falada ou escrita? Ezra Pound apresenta
várias possibilidades de definições como “um conjunto de signos representando
vários ruídos”, (2006, p. 32) E fala também da linguagem em outra espécie como
se fosse “um desenho do gato, ou de algo que se move ou existe, ou de um grupo
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de coisas que ocorre sob certas circunstâncias ou que participa de uma qualidade
entre todas elas” (POUND, 2006, p. 33). A linguagem é a vida se movendo entre
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os pensamentos, em mentes que devem ser constantemente alimentadas com
perguntas. Serpenteando uma infinidade de assuntos que buscará respostas que
coloquem os velhos ditados e normas sob uma perspectiva de luz e novos
entendimentos.
Uma das personalidades que compõe a coleção antiprincesas e que aqui
será abordada com maior particularidade é Clarice Lispector. Entre todas, ela foi
a “antiprincesa” que viveu a arte da escrita literária, escrevendo contos e
romances de caráter filosófico e psicológico, que a torna uma autora sempre
atual. Fez das palavras a sua arma de luta e resistência contra a sociedade, contra
o que não considerava justiça. Foi a escritora mais famosa da literatura brasileira
e ousou também, a pedido de seu filho Paulo, a escrever livros para crianças.
Suas obras são famosas por conter uma tensão psicológica que abala seus
leitores e promove, no limiar da linguagem, reflexões acerca da existência
humana, sobretudo da vida íntima do subconsciente feminino. Há em seus
contos e romances, questões arraigadas a filosofia e ao feminismo que não
passaram despercebidos em sua época e ainda são temas tão populares.
Mas o que uma escritora tão perturbadora tem a dizer em seus livros
infantis? Para crianças ela escreveu: O mistério do coelho pensante (1967), A vida
íntima de Laura (1968), A mulher que matou os peixes (1974) e Quase de verdade
(1978). Clarice Lispector não tinha a pretensão de publicar esses livros, porém os
escreveram para compartilhar com seus filhos sua visão de mundo numa
linguagem acessível, porém com toda arte e poética que lhe foram peculiares
quanto escritora. Também traduziu diversos livros do gênero aventura
imprimindo nessas traduções a sua marca.

A VOZ NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL QUE CONSAGROU CLARICE


LISPECTOR COMO UMA DAS “ANTIPRINCESAS” BRASILEIRAS MAIS
IMPORTANTES.

Um dos livros infantis mais cativantes, e o primeiro que Clarice Lispector


escreveu nesse gênero, é O mistério do coelho pensante. Uma narração em
primeira pessoa na qual a narradora se dirige a “Paulinho” (filho de Clarice) e fala
sobre um coelho comum, porém que tinha muitas ideias. Mas que diferente das
pessoas, esse coelho pensava com o nariz e quando o fazia, mexia e remexia
tantas vezes as narinas até ficarem vermelhas. (LISPECTOR, 1999, p. 04) O coelho
gostava de comer e fugir de sua gaiola. Fugia para ver a namorada, os filhinhos,
os amigos, mas sempre voltava e ficava sozinho com seus pensamentos. Esse
animalzinho era ousado, saía de sua intimidade e extrapolava os limites que
foram delimitados para ele.
A narrativa poética é construída com subjetividade abrindo as portas à
imaginação. “A narradora recorre a uma linguagem em que a prosa se alimenta
constantemente da poesia, para dar espaço ou particularizar a história. Com a
prosa, por outro lado, ela temporaliza a experiência, que se desdobra,
complexado pela concomitância do passado, presente e futuro dentro da mesma
história” (ALBERNAZ, 2010, p.03). O livro que foi escrito, ilustrado e publicado
para o público infantil, tem um forte apelo filosófico que desafia não só a criança,
Página | 5 mas também convida os leitores adultos a refletir sobre questões de liberdade e
espaço.

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O simbolismo da gaiola, por exemplo, para qual o coelho sempre volta,
pode representar a mente de um indivíduo. O coelho pensante precisa desse
espaço para inventar formas de fugir. Escapar da própria mente para viver e ver o
mundo ao seu redor é uma necessidade básica, mas sempre é necessário voltar
para dentro de si mesmo. O livro é uma expressão de significados metafóricos
que estimulam a imaginação e a linguagem. No final, ninguém consegue
descobrir como o coelho consegue fugir, esse é o grande mistério. Porém Clarice
Lispector não tenta resolve-lo. Deixa a mercê do leitor que busque alternativas
para solucionar esse enigma e se tratando de um conto infantil, as possibilidades
podem ser infinitas e surpreendentes.
Sob o olhar de Jean-paul Sartre sobre o que é literatura, O mistério do
Coelho pensante “se torna um objeto imaginário onde as coisas deixam de ser
coisas e se tornam linguagem” (2004, p. 15), ou seja, cada elemento descrito no
enredo tem um significado abstrato que pode mudar de formas. As escolhas de
palavras feitas pela autora remetem a tendências profundas da escrita literária:
“a escritora lida com significados” (SARTRE, 2004, p. 17) Esses significados são as
razões para se escrever, para exteriorizar um pensamento que só através da
literatura poderá ganhar uma performance itinerante e promover discussões. Ler
e refletir em sala de aula um livro como de Clarice, permite dar voz aos alunos e
estimula-los a expressarem ideias complexas e abstratas. Como o coelho sai da
gaiola, a criança pode sair do seu campo imaginativo e atuar na língua com seu
próprio objeto de construção, percepção e observação do texto.
Esse momento de exposição pode ser de extrema importância para que em
público (sala de aula), as crianças possam compartilhar suas percepções do
cotidiano e ajudar o educador em sua orientação sobre desconstruções de
estereótipos do qual este trabalho vem tratando. Expressar-se deve ser uma
escolha profunda, porém imediata que é comum a todos (SARTRE, 2004, p. 33).
Faz parte da natureza do indivíduo deixar sua marca, imprimir seus pensamentos
e contribuir com suas impressões de mundo. O problema é que nas escolas,
apagando a literatura do currículo ou apenas ter livros como leitura obrigatória
sem favorecer a discussão, faz com que todos os sentidos das obras sejam
perdidos.
Ainda segundo Sartre, o espaço para a criação artística é uma necessidade
para que seres humanos se sintam especiais num universo controverso e em
constante transformação (2004, p. 35). E o objeto literário só pode existir em
movimento, ou seja, o ato concreto da leitura (2004, p. 35). Os mesmos
movimentos de reflexões existencialistas aparecem nos outros títulos escritos por
Clarice Lispector para crianças. Cada um dos contos contém essa inclinação para
a pós-história, para a continuação e livre interpretação de seus leitores. Em cada
pensamento poético, Clarice Lispector imprimi uma sequência de suspense que
levará jovens leitores a contribuírem para um determinado final.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO CLARICE LISPECTOR PARA MENINAS E


MENINOS

O ano passado, a editora Chirimbote na Argentina, revolucionou a literatura


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infanto-juvenil com o lançamento de uma coleção que veio para derrubar
estereótipos de gênero tão presente no cotidiano infantil. A escritora Nadia Fink

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ganhou o público com textos leves, palavras poéticas, inspiradoras e uma
narrativa que encanta não somente as crianças, mas também adultos leitores.
Outra coisa que cativa nos livros da coleção são as ilustrações feitas por Pitu Saá.
Alternando entre fotos reais e desenhos divertidos, os livros são lúdicos, fáceis de
ler e no final propõe atividades e reflexões sobre o/a personagem que intitula o
livro.
Em Clarice Lispector, a sutileza da escritora Nadia Fink está em retratar não
só aspectos da obra clariceana, mas falar com ênfase da infância de Clarice, de
seu amor pelos animais, amor pelos filhos.... Mostra uma mulher tão humana e
sensível com a qual qualquer criança pode se identificar. Nas ilustrações, Pitu Saá
enfatiza uma das marcas físicas mais fortes e acentuadas da autora: Os olhos, as
sobrancelhas arqueadas e também o rosto sério e expressivo. Desenha Clarice
dessa forma até nas feições infantis e isso é uma característica que acrescenta
muito charme ao livro, pois ensina também sobre imperfeições e particularidades
físicas que nos tornam únicos. (FINK, 2016)
Para preparar os leitores, Nadia Fink prepara na página inicial uma
apresentação breve e delicada. Convida os leitores infantis a uma experiência
nova e interessante. Com as seguintes palavras, a escritora diz sobre Clarice
Lispector:

Aqui vem uma nova Antiprincesa para continuar colocando as coisas


de ponta cabeça como a gente tanto gosta. E quem melhor que
Clarice Lispector, que virou pelo avesso as frases, os gêneros
literários, retorceu as palavras e libertou os pensamentos. Esta
brasileira se considerava uma “antiescritora” porque não gostava
das estruturas, nem das coisas acadêmicas, nem das regras, porque
escrevia onde e como podia: em papeizinhos, guardanapos ou com a
máquina de escrever no colo, enquanto seus filhos corriam e ela
atendia o telefone e os ajudava nos deveres de casa. Uma mulher
trabalhadeira que teve vida de princesa na Europa e nos Estados
Unidos e não gostou (ficou com náusea, entediada, sentiu-se um
peixe fora d’água – ou uma peixinha), que voltou para sua terra
querida e continuou trabalhando, e até escreveu livros para meninas
e meninos como ela dizia, cujos protagonistas são uma galinha, um
coelho pensante, ou um cachorro maluquinho que mastiga
cigarros... A portinha do mundo de Lispector não é uma só, mas
muitas e desiguais, e também janelinhas com pontos e vírgulas
bagunçados para que nada esteja dito e tudo esteja por ser contado.
(FINK, 2016)

Como é possível observar, desde a apresentação da obra Nadia Fink reflete


sobre os lugares de cada coisa. “Clarice não gostava de estruturas, de regras”,
gostava de ser livre: “escrever em papeizinhos, guardanapos”. A grande palavra
implícita na apresentação é “Liberdade”. O que o livro ensina é que o sujeito
deve ser livre para ser quem é, sem medo das regras, ter ousadia para fazer
aquilo que acredita ser o melhor para si. O conceito também é adotado em todos
os livros da coleção e, nesse caso específico, desmistifica Clarice Lispector como
escritora difícil. A autora é para ser lida e amada por seus leitores desde a mais
tenra idade. Com essa apresentação pais e professores já tem material suficiente
para debater em sala de aula ou discutir com os filhos os temas sugeridos. O
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desafio para os educadores é ter coragem. Item necessário para desconstruir

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seus próprios preconceitos antes de oferecer como uma ideia renovadora às
crianças.
O conteúdo do livro traz além de frases famosas de Clarice Lispector, dados
biográficos, elementos relacionados à infância da autora, palavras chaves que
ajudarão as crianças leitoras em seu processo de desconstrução de estereótipos,
conhecimento de história, valores, religião e cultura. Como por exemplo
definições de: “Madame”, “judaísmo”, “Ucrânia”, “realismo”, “estranheza”,
“crônica”, “filósofos”, “realidade social”, “repressão”, “ditadura”. Todas palavras
que fogem do contexto infantil, mas que no livro são expostas e explicadas
ampliando assim a capacidade de entendimento linguísticos, culturais e históricos
das crianças.

A LITERATURA NA LUTA CONTRA O MACHISMO NA EDUCAÇÃO DE


MENINOS

A coleção não foca somente em mulheres. Os criadores das


Antiprincesas também lançaram a série Anti-heróis, que fala sobre homens
célebres. A ideia é contar a história de personagens importantes que fogem do
estereótipo “hipermasculinizado”, tão recorrente no imaginário das crianças.
Oferece um contraponto para ser discutido com os leitores sobre machismo e
feminismo, apontando exemplos reais da contemporaneidade literária. Essa
conduta é totalmente pertinente devido aos conceitos de masculinidade que
predomina nos valores culturais de nossa época. De acordo com Patrícia
Alexandra Machado Correia:

Desde jovens somos educados com ideias do que significa ser


homem e mulher, e a sexualidade e a orientação sexual têm um
grande peso sobre essas ideias. Isto acontece, porque apesar de
gênero e orientação sexual serem conceitos completamente
independentes, a expressão de gênero tem influência em como a
sociedade percebe ou assume as preferências de cada um. Também
no sexo como ato, há expectativas daquilo que cabe a cada gênero.
(CORREIA, 2015, p. 28)

A sexualidade dos meninos está sempre sendo a mais questionada e possui


as mais conturbadas noções devido à formação e à grande preocupação, por
parte dos pais, com a masculinidade de seus filhos (CORREIA, 2015, p. 28). Isso
acontece como necessidade que os pais têm em reforçar a própria masculinidade
nos seus filhos e porque as mães temem que suas crianças sejam ridicularizadas
em seu grupo (CORREIA, 2015, p. 28). Assim criam uma situação de sufocamento
emocional onde os indivíduos com suas mentes em formação se veem moldados
para representações que muitas vezes estão longe da verdade íntima de cada
pessoa. Reforçar a masculinidade dos meninos com livros de super-heróis, pode
reforçar a ideia de que para ser “homem”, não se deve dar espaço para evasões
sentimentais.
A feminilidade, quando relacionada aos meninos, remete ao conceito de
homossexualidade. Assim existe a crença, deturpada e estereotipada de que,
brincar de boneca ou usar roupas rosas na infância pode tornar o menino
Página | 8 necessariamente em um homossexual. Por isso a obsessão pelo ideal
hipermasculinizados dos personagens literários infantis são reforçados em todos

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os meios educacionais e midiáticos. A importância da coleção anti-heróis é
justamente romper com esse idealismo machista e mostrar que aos homens
também é dado a arte, a música, a literatura, a dança, entre todas outras
manifestações artísticas que requer sensibilidade e emoção para tornar real e
vivo.
Desconstrução de estereótipos de gênero é necessária não apenas para
libertar meninas da formação repressoras que as obriga a crescerem conscientes
de que devem se casar, ter filhos e assumir responsabilidades domésticas. Ela é
importante para libertar as meninas da ideia de que são seres frágeis e que
precisam de um homem que as protejam. Desconstruir o idealismo de que são
sexualmente vulneráveis, que devem ser bonitas e delicadas como bonecas, um
objeto para deleite masculino é um dever imprescindível nos veículos literários.
As antiprincesas são aquelas que ousam ser livres para desafiar essas
concepções opressoras, assim como os anti-heróis desafiam as concepções de
que virilidade masculina, significa força e opressão sobre as mulheres. Forçar
uma educação masculinizadora onde os meninos são ensinados que as mulheres
são menos inteligentes e dependem da aceitação deles para serem valorizadas,
envia a mensagem de que mulher é uma propriedade masculina. “E esta ligação
intrínseca entre sexo e poder pode privar homens da possibilidade de vir a ter
tipos diferentes de conexão íntima com outra pessoa” (CORREIA, 2015, p. 30).
Em relação ao termo machismo, se faz necessário explicar que a concepção
não está relacionada somente aos homens, mas também as mulheres. A coleção
antiprincesa sob o ponto de vista crítico da literatura infanto-juvenil é um grande
avanço na luta contra a desconstrução de representação de papéis de gênero,
mas também causou muita estranheza em pessoas, sobretudo mulheres, que
acreditam, querem e sonham em serem princesas. O idealismo é tão arraigado
que essa luta para desconstruir mentalidades ultrapassadas, ainda terá que
ultrapassar muitas barreiras que compõe o comportamento social.
O machismo faz vítimas que na maioria das vezes são mulheres, mas não
exclusivamente. A famosa e antiquada frase “menino não chora”, ainda é muito
popular e dita repetidamente aos meninos das diferentes classes sociais, em
diversos contextos. O machismo tenta sufocar as lágrimas e as emoções dos
meninos, que já crescem com duas ideias erradas: a de que eles não podem ter
fragilidades e a de que toda menina é frágil por natureza. Os meninos também
sofrem por serem privados de brinquedos e brincadeiras associadas às meninas.
É possível que uma menina brincando de carrinho não cause a estranheza que
um menino com uma boneca pode causar. O menino que ousar brincar de
casinha tende a sofrer fortes reprimendas por parte de seus pais e se tornar
motivo de riso entre seus pares.
Os anti-heróis não possuem as “virtudes” atribuídas aos heróis. Eles não
são musculosos, nem fortes, nem esportistas. Eles não precisam possuir uma
mulher como reforço de masculinidade. Não dependem das mulheres para lavar
suas roupas e cozinhar sua comida. Não se sentem obrigados a deixar uma prole
como sinal de sua potência sexual. Os anti-heróis são livres dessas amarras
sociais tanto quanto as antiprincesas. Os personagens masculinos da coleção são
homens distantes desses estereótipos citados acima. Ainda que questionados ou
Página | 9 reprimidos, não se acanharam e como as mulheres, deixaram uma obra literária
significativa e profunda que abre margem para o conhecimento de novos autores

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que também ultrapassaram as barreiras das concepções tradicionais do que é ser
homem e ser mulher.
Eduardo Galeano, um dos anti-heróis retratados nos livros da coleção de
Nadia Fink, foi um escritor uruguaio cujas obras se consagraram por denunciarem
o sofrimento e a luta do povo latino-americano. Sua escrita é impiedosa e visceral
em livros como As veias abertas da América Latina (1971) e a trilogia Memória do
fogo (1982-1986). Porém em livros como O livro dos abraços (1991), Palavras
andantes (1994) e Mulheres (1997), o autor usa uma linguagem profunda,
filosófica e poética para repensar seu povo e sua cultura. Oferece aos leitores a
oportunidade de entender os latino-americanos como um povo que deve muito a
si mesmo e que deve ter orgulho de sua história de luta e coragem.
Julio Cortazar, outro anti-herói cuja biografia é tema de outro dos livros de
Nadia Fink, foi um escritor argentino que optou pela nacionalidade francesa e sua
escrita foi uma luta contra a ditadura e o regime militar na argentina. Foi
considerado um dos autores mais originais e inovadores de seu tempo e escreveu
muitas novelas, entre as mais famosas foi Rayuela (1963) e também contos,
teatro e poesia. Foi um escritor com forte atividade política. Provocativo, causou
algumas antipatias entre os intelectuais do seu tempo, porém nunca se deixou
intimidar. Em comum, tanto Galeano quanto Cortázar não se limitaram as
condições impostas por seu gênero e meio social. Assim como as mulheres,
personalidades que compõe a coleção, utilizaram a força das palavras e
expressões artísticas como ato de revolta e fidelidade a suas próprias
identidades. Desafiadores e determinados não se limitaram a estereótipos e
ideias pré-moldadas por uma sociedade castradora e antiquada.

CONCLUSÃO

O campo literário sobre desconstrução de gênero, ainda está no início, mas


se torna cada dia mais promissor. O problema sobre o tema sexualidade e
gêneros atualmente

têm sido amplamente abordados pelos instrumentos midiáticos,


documentos oficiais, tanto para o âmbito escolar, quanto em
programas de formação docente, no entanto, apesar da aparente
abertura acerca da discussão da presente temática, muitos valores,
preconceitos e tabus ainda são fortemente envolvidos no debate
(DAROS, 2013, p. 174).

No processo do desenvolvimento sexual da criança, é perceptível que pais


e educadores assumam o papel de repressores e controladores de seus
comportamentos

dissimulando, escondendo, proibindo e omitindo as curiosidades


naturais. Essas manifestações acabam sendo explicadas para as
crianças de modo distorcido ou por meio de inverdades; e, mediante
a ausência de respostas, alguns mitos podem ir se transfigurando em
Página | 10 verdades (DAROS, 2013, p. 174).

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As famílias encontram muitos problemas em assumir a responsabilidade da
educação sexual das crianças e por esse motivo, delegam aos professores a difícil
tarefa. Por sua vez, de acordo com Daros, os professores muitas vezes também
não estão preparados para abordar o tema de forma “apropriada, saudável e
significativa” (2013, p. 174).
Frente a tanto desconforto gerado pelo tema, a sociedade se torna omissa.
Há questões políticas a serem discutidas em relação à educação que envolvem as
discussões sobre a abordagem de identidade de gênero nas escolas, porém ainda
sofre resistências e controvérsias por parte dos pais: Muitos temem uma
educação mais aberta, onde temas tabus podem ser discutidos abertamente. Por
esse motivo, “trabalhar com conceitos, noções, construções e desconstruções
que foram historicamente engendradas e legitimadas pela sociedade leva tempo,
demanda estratégias e conhecimento científico” (DAROS, 2013, p. 175). Isso gera
uma necessidade de trabalho em conjunto. Uma política onde pais e professores
trabalhem juntos com um propósito em comum: Cultivar de modo saudável o
pensamento crítico e a liberdade de expressão em nossas crianças.

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ANTIPRINCESSES AND ANTIHEROES: THE
YOUNG-ADULT LITERATURE AND THE
DECLINE OF GENDER STEREOTYPES
ABSTRACT

This paper aims to present a new collection of children's literature books entitled "Anti-
princesses and Antiheroes Collection" that features historical personalities, examples of
brave people who went beyond feminine/masculine stereotypes and created their own
art. The books encourage young readers to look at the world under new perspectives,
jump over obstacles and meet literary and musical celebrities whose artistic works are
beyond our time. These books disrupt the ideology of gender roles by explaining to
children that girls do not have to be fragile and delicate, and that boys don’t have to be
strong and "tough" all the time, recognizing that cultures and societies are dynamic and
change. The collection was launched by the Argentine publisher Chirimbote in 2016.
Initially, they released it in Spanish, and now it’s being translated into Portuguese and
launched in Brazil by Sur. With this new possibility of reading among children and young
people, they can make reflections regarding gender, culture and society. As an example,
this work will discuss particularly the children's literature texts written by Clarice Lispector,
who became a reference as one of the most famous anti-princesses of Brazil.

KEYWORDS: Young-adult literatura. Gender deconstruction. Ideology. Stereotipes.

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REFERÊNCIAS

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<https://www.academia.edu/6080322/Poesia_e_filosofia_em_O_mistério_do_c
oelho_pensante_de_Clarice_Lispector?auto=download>. Acesso em: 23 jan.
2017.

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3D: do binário ao fluído. 2015. Disponível em:
<http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/40794>. Acesso em: 24 jan.
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DAROS, Thuinie Medeiros Vilela. Problematizando os Gêneros e as Sexualidades


Através da Literatura Infantil. 2013. Disponível em:
<http://www.ufjf.br/praticasdelinguagem/files/2014/01/172-–-186-
Problematizando-os-gêneros-e-a-sexualidade-através-da-literatura-infantil.pdf>.
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Chirimbote, 2016. 24 p. (Coleção Antiprincesas)

LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro, 1999. 31 p.

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Estudo sobre a Trajetória da Obra de Monteiro Lobato na Escola. 2005.
Disponível em:
<http://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/1674/1591>.
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MASTANTUONO, Piera. La duplice identità della letteratura per l’infanzia.


Disponível em: <https://www.atopon.it/la-duplice-identita-della-letteratura-per-
linfanzia/>. Acesso em: 23 jan. 2017.

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Recebido: 24 jan. 2017
Aprovado: 13 mai. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5350
Como citar: ELEUTÉRIO, Rosangela Fernandes..Antiprincesas e anti-heróis: a literatura infanto-juvenil e
a desconstrução de estereótipos de gênero. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 1-14, marl. 2017. Disponível
em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

CINDERELA SURDA: O SURDO E O


SIMBÓLICO NO CONTO INFANTIL
RESUMO
Ione Barbosa de Oliveira Silva O presente trabalho propõe-se a analisar o conto Cinderela Surda, de Hessel, Rosa e
iboliveira@hotmail.com
Universidade Estadual do Sudoeste da Karnopp (2007), a partir de sua representação e significados simbólicos. O conto analisado
Bahia, Jequié, Brasil.
é uma releitura da tradicional Cinderela, de Perrault (1999) para a realidade dos surdos,
Francislene Cerqueira Alves ressaltando aspectos pertencentes à cultura e identidade surda. A partir deste conto,
francispib2008@hotmail.com interessa-nos compreender e trazer à tona possíveis conflitos e dificuldades enfrentadas
Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, Jequié, Brasil pela criança surda. Para isso, tivemos como suporte teórico Bettelheim (1980), Corso e
Corso (2006) e Abramovich (1997) na abordagem acerca dos contos infantis e seu material
Jorgina de Cássia Tannus Souza
jorgina_tannus@hotmail.com simbólico e Goldfeld (2002), Quadros (1997) e Skliar (1997) no que se refere à criança
Centro de Apoio Pedagógico de Ipiaú, surda. Compreendemos a partir da análise que a linguagem simbólica pode retratar
Ipiaú, Brasil
conflitos internos enfrentados por crianças surdas, permitindo-as entender sobre si
mesmas e encontrar significados para suas vidas. Além disso, percebemos a importância
de uma literatura surda visando recuperar as tradições culturais de suas comunidades.
PALAVRAS-CHAVE: Cinderela Surda. Contos infantis. Criança surda. Conflitos internos.

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INTRODUÇÃO

O ato de contar história é uma atividade muito antiga e comum em todas as


civilizações do mundo inteiro. Desde o início da humanidade temos relatos de
contadores de histórias, como lendas, mitos e contos, pois mesmo antes de
serem escritas essas histórias já existiam na forma oral e eram passadas de
geração em geração. A partir do século XVII, surgem os primeiros registros dos
contos de fada, que foram adaptados inicialmente por Charles Perrault e depois
por muitos outros escritores, que foram construindo uma literatura específica
para o público infantil.
Já a literatura para surdos, não temos notícias de quando surgiu, mas assim
como as narrativas orais, as histórias contadas por surdos também eram
passadas por gerações, em língua de sinais. Porém, como não tinha meios para
registrar essas histórias (vídeos, textos com imagens, escrita) muitas delas foram
esquecidas, porém algumas permanecem na memória de surdos.
Assim, quando falamos em literatura surda, estamos no referindo a algo mais
recente. Pois o registro dessas histórias só foi possível, especialmente, com o
reconhecimento da Libras como língua e do advento da tecnologia, e mais
recentemente com o uso de uma escrita para a língua de sinais1.
Porém, apesar de atualmente falar-se em uma Literatura Surda, esse campo
ainda é muito escasso de investigação, temos hoje histórias registradas em
vídeos, livros, pesquisadores têm buscado registrar e tornar pública as narrativas,
poemas, piadas contadas por surdos, mas as pesquisas ainda são ínfimas no trato
dessas narrativas com crianças surdas.
São muitas as discussões sobre a importância dos contos infantis e seu
benefício para a construção e formação da criança, porém percebemos neste
itinerário de pesquisas uma lacuna quanto ao trabalho com crianças surdas e
como estas crianças, que apreendem o mundo a partir de uma experiência visual,
enxergam o mundo simbólico dos contos de fada. Pois, a experiência com o
mundo fantástico e simbólico deve fazer parte do universo infantil, independente
do perfil da criança.
Sabendo do valor simbólico dos contos na vida da criança e de como estes
abordam seus dilemas mais interiores, encontramos em Cinderela Surda um rico
arsenal simbólico, por várias razões: por representar a realidade surda, por
retratar os problemas enfrentados pela criança surda e por refletir sobre a
história, a língua e a identidade surda.
Acreditamos que, a partir do material simbólico presente no conto, é
possível identificar nele algumas dificuldades e conflitos vividos pela criança
surda, pois mesmo tratando-se de um conto, que é uma história no plano do
maravilhoso, aborda aspectos reais da vida da criança.

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Algumas histórias podem ser encontradas em Signriting que um sistema de escrita para
as línguas de sinais.

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A CRIANÇA SURDA E OS CONTOS INFANTIS

Para Abramovich (1997), o primeiro contato que a criança tem com o texto é
oralmente, por meio da voz da mãe, do pai ou avós, contando contos de fada,
trechos da Bíblia, histórias inventadas e outras. Para a autora, as histórias são
importantes para a formação de qualquer criança e é ouvindo que ela aprende a
ter prazer pela leitura.
Nesse sentido, se considerarmos a realidade da criança surda, ela estará em
desvantagem, pois por ser surda não receberá esse estímulo oral dos pais ou
familiares, nem tão pouco sinalizado, já que, a maioria dos pais de surdos é
ouvinte e não conhece a língua de sinais, meio pelo qual a criança surda teria
contato com os contos infantis.
Por isso, a apreensão dos contos, geralmente, só acontecerá na escola com
pessoas que conheçam a língua de sinais. É na escola que estas crianças terão seu
primeiro contato com o mundo imaginário e a oportunidade de conhecer as
histórias em sua língua, conhecer personagens, identificar-se com eles, e assim
perceber o mundo mágico dos contos de fada. Para isso, a escola deve elaborar
meios para, por meio dos contos, suscitar o imaginário dessas crianças e permitir
o acesso à obra literária.
Porém, mesmo na escola regular os contos infantis são pouco explorados e
muitas das histórias não contemplam a identidade das crianças surdas. Os contos
apresentados nas escolas não tratam de pessoas surdas nem de sua identidade e
cultura. Não são apresentadas às crianças surdas personagens surdas. Assim, faz-
se necessário investir em uma literatura infantil para crianças com surdez e, em
especial, aos contos adaptados para língua de sinais e até mesmo as histórias
contadas pelos próprios surdos, pois sabemos da importância dos contos para o
desenvolvimento infantil e como estes são fundamentais no processo de
autoconhecimento da criança.
Segundo Quadros (1997), uma escola venezuelana apresentou algumas
metas para o desenvolvimento de crianças surdas filhas de pais ouvintes. Dentre
essas metas destacamos:

Garantir que a criança surda construa uma teoria de mundo, pois a


criança surda que convive com adultos ouvintes não tem chance de
questionar as coisas, porque não obtém respostas. Quanto mais
experiências de vida forem comentadas e elaboradas, amplia-se
mais a concepção de mundo. (QUADROS, 1997, p.37)

Conforme Abramovich (1997), as histórias infantis ajudam a criança a


encontrar respostas às suas perguntas e a esclarecer melhor as próprias
dificuldades. Entendemos com isso que a criança surda em contato com os
contos, pode obter essa construção de mundo e questionamentos de que fala
Quadros (1997). Para que isso aconteça, deve haver mais pesquisas neste campo,
tão escasso de investigação: criança surda e contos infantis.
Os contos têm um papel fundamental na construção do conhecimento de
qualquer criança seja ela surda ou ouvinte. Dessa forma, é necessária uma
aproximação entre os contos infantis e crianças surdas. Os contos infantis já
Página | 17 fazem parte da educação de crianças ouvintes, mas poucas são as crianças surdas
que têm a oportunidade de vivenciar o contato com o mundo da fantasia e dos

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seres encantados. É papel, especialmente, da escola proporcionar essa
aproximação.
Os elementos mágicos, os personagens, as batalhas enfrentadas pelo herói
são instrumentos importantes que podem servir de ferramentas metodológicas
que favorecem na educação da criança. Além de servir de estímulo para sua
imaginação, retrata simbolicamente os conflitos vivenciados por estas crianças
durante a infância.
De acordo com Quadros e Schmiedt (2006), o relato de histórias e a
produção de literatura infantil em sinais são recursos muito importantes na
alfabetização da criança surda, segundo as autoras ainda nas comunidades surdas
existem contadores de histórias espontâneas, que são passadas de geração em
geração, mas a produção artística dos surdos em língua de sinais não obteve a
merecida atenção nas salas de aula.

Os relatos de histórias e a produção literária, bem como a interação


espontânea da criança como outras crianças e adultos por meio da
língua de sinais devem incluir aspectos que fazem parte desse
sistema lingüístico. (QUADROS e SCHMIEDT, 2006, p.26).

O ato de contar histórias é muito comum em todas as culturas, inclusive na


cultura surda. Os surdos, assim como os ouvintes, têm o hábito de contar
histórias, mas infelizmente essas histórias não foram registradas e muitas delas
perderam-se.

A comunidade surda tem como característica a produção de


histórias espontâneas, bem como de contos e piadas que passam de
geração em geração relatadas por contadores de histórias em
encontros informais, normalmente, em associações de surdos.
Infelizmente nunca houve preocupação de registrar tais contos.
(QUADROS e SCHMIEDT, 2006, p.25).

Assim como os tradicionais contos infantis, os contos para surdos têm um


valor significativo no ensino da criança surda. Entendemos que além das histórias
infantis já conhecidas, também a literatura surda, apesar da ínfima quantidade,
precisa ser explorada por essas crianças. O uso dessas histórias em sala de aula
revela-se uma ferramenta importante no processo de alfabetização da criança
surda, além de ressaltar aspectos pertencentes a sua cultura e ampliar sua
concepção de mundo. Conforme Quadros e Schmiedt (2006, p.25):

A produção de contadores de histórias naturais, de histórias


espontâneas e de contos que passam de geração em geração são
exemplos de literatura em sinais que precisam fazer parte do
processo de alfabetização de crianças surdas.

Apesar de terem sido pesquisadas e registradas há pouco tempo, tanto as


histórias criadas por surdos quanto as adaptações se apresentam como um rico
material que podem contribuir com o desenvolvimento da criança surda.
Página | 18 Há algumas histórias criadas ou adaptadas por surdos e ouvintes, da
comunidade surda, que foram recontadas a partir da cultura surda e abordam a

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temática surdez e língua de sinais como: Cinderela Surda (HESSEL, ROSA,
KARNOPP, 2007) e Rapunzel Surda (SILVEIRA, ROSA, KARNOPP, 2005). O Som do
Silêncio (COTES, 2004), Adão e Eva (ROSA; KARNOPP, 2005), Patinho Surdo
(ROSA; KARNOPP, 2005), Tibi e Joca (BISOL, 2001) e A cigarra e as formigas
(OLIVEIRA; BOLDO, 2003), Feijãozinho Surdo, Mãos Tagarelas bocas sorridentes,
Um mistério a resolver: o mundo das bocas mexedeiras dentre outras.

O material, em geral, reconta a experiência das pessoas surdas, no


que diz respeito, direta ou indiretamente, à relação entre as pessoas
surdas e ouvintes, que são narradas como relações conflituosas,
benevolentes, de aceitação ou de opressão do surdo. (KARNOPP,
2008, p.15)

Compreendemos que os contos infantis para surdos podem possibilitar


a criança surda o conhecimento de si e de sua cultura, ajudando-a nas suas
relações com os outros e com seus familiares. De acordo com Bettelheim (1980),
os contos de fada orientam a criança para a descoberta da sua identidade e ainda
sugere à criança as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais
o seu caráter.
Por isso é tão importante que as crianças surdas leiam ou vejam histórias de
personagens com os quais elas possam se identificar, para que elas entendam
que não estão sozinhas, mas que existem pessoas com as mesmas
especificidades que as suas e assim ajudá-las a construir uma cultura e identidade
surda.

CINDERELA SURDA: CONHECENDO A HISTÓRIA

Cinderela ou Borralheira, como também é chamada, é um dos contos mais


populares de todos os tempos e também o que mais sofreu adaptações. Sua
versão mais antiga foi registrada na China no século IX, quando se tinha como
costume enfaixar os pés das mulheres, o que provavelmente explica o fato de em
Cinderela dar-se tanta ênfase ao pé e ao sapatinho, seja ele de ouro ou de cristal.
Segundo Bettelheim (1980), os antigos chineses associavam a beleza e a atração
sexual com um pezinho extremamente pequeno, que era sinal de virtude.
A história de Cinderela tem sido recontada por diversas culturas e
transmitida por gerações, mas a versão mais conhecida é a do francês Charles
Perrault (1999), que desde sua escrita no século XVII tem sido adaptada por
muitos autores, inclusive para os cinemas como no caso da Walt Disney que
difundiu ainda mais sua versão.
Com relação ao conto Cinderela Surda, é uma releitura da tão conhecida
história de Cinderela. Segundo os autores, não se sabe quem contou pela
primeira vez essa história, foi recontada pelos surdos: “Não sabemos quem
contou esta história pela primeira vez. Ela foi sendo recontada entre os surdos e
nós resolvemos registrar e divulgar este belo texto”. (HESSEL, ROSA, KARNOPP,
2007, p.5). Foi publicada em 2007 pelos autores: Carolina Hessel Silveira; Lodenir
Becker Karnopp e Fabiano Rosa. Cinderela Surda é recontada a partir da cultura
surda, com elementos da identidade da comunidade surda, tendo como
Página | 19 protagonista da história uma menina surda, por isso o nome Cinderela Surda.

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Nosso objetivo, nesse texto, é recontar essa história a partir de uma
outra cultura,uma cultura surda. Assim, este livro foi construído a
partir de uma experiência visual, com imagens, com o texto reescrito
dentro da cultura e identidade surda e da escrita de sinais,
conhecida também como singwriting. (HESSEL, ROSA, KARNOPP,
2007, p.3).

O conto está escrito em uma versão bilíngue, ou seja, em Língua Portuguesa


e na escrita da língua de sinais (SignWriting)2, há também a indicação de que as
palavras escritas em maiúsculo correspondem à língua de sinais, o que facilita aos
leitores entender quando uma conversa está sendo oralizada ou sinalizada
No corpus em análise, Cinderela é surda e aprendeu a língua de sinais
quando criança com a comunidade de surdos. Era filha de nobres franceses e
após a morte de sua mãe, ainda quando criança, seu pai casa-se novamente.
Assim como, em outras versões da história, o pai de Cinderela adoece e morre,
deixando a doce menina aos cuidados da malvada madrasta e suas filhas.
Mesmo não estando entre as cinzas, Cinderela trabalhava muito e apenas ela
limpava e cozinhava, porém sua madrasta e suas irmãs nunca estavam satisfeitas.
A comunicação entre elas quase nunca acontecia, pois estas pouco sabiam da
língua de sinais.
Chega à sua casa um convite do príncipe, convidando-as para o baile, ele
queria encontrar uma moça para casar-se. A madrasta fica muito feliz, pois deseja
que uma de suas filhas case-se com o príncipe.
No dia do baile, todas estão prontas e bem vestidas para irem à festa, com
exceção de Cinderela. Esta implora para ir também, mas seu pedido é negado
porque não possuía um belo vestido. Cinderela fica em casa triste e chorosa, mas
surge uma fada, que prontamente lhe veste com um lindo vestido e lhe dá um
belo par de luvas. Em sua linda carruagem Cinderela vai à festa, sendo orientada
pela fada a retornar antes da meia-noite.
No baile, Cinderela, pela sua beleza, chama a atenção de todos,
especialmente do príncipe, que logo a convida para dançar. A menina, com ar de
timidez, sinaliza que é surda e o príncipe surpreso responde que também é
surdo.
Após dançarem a noite inteira, Cinderela percebe que já era quase meia-
noite e ao sair correndo, deixa para trás uma de suas luvas. O príncipe tenta
avisá-la, mas ela estava tão assustada que não o viu.
No dia seguinte, os empregados do palácio recebem ordens de procurar a
dona da luva, uma jovem surda, com a qual o príncipe se casaria. Ao chegar à
casa de Cinderela, a madrasta mentiu dizendo que suas duas filhas eram surdas,

2
SignWriting ou escrita de sinais, utiliza-se de símbolos para escrever qualquer língua de
sinais no mundo inteiro. Foi criada em 1974, pela americana Valerie Sutton, mas começou
a ser pesquisada aqui no Brasil apenas em 1996. Acredita-se que esta escrita pode trazer
muitos benefícios ao surdo, pois com ela pode-se registrar a história da cultura surda,
assim como suas histórias espontâneas, suas piadas e poemas. Assim, o conto Cinderela
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Surda é um dos primeiros livros no Brasil a ser apresentado na forma bilíngue, ou seja,
em Língua Portuguesa e em SingWriting.

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mas ao provarem a luva, não serviu em nenhuma delas. Ao ver Cinderela na
cozinha, o empregado do reino pediu para que ela também experimentasse, e
quão surpresos ficaram quando viram que a luva serviu perfeitamente. Cinderela
foi levada à presença do príncipe e eles casaram-se e foram muito felizes.

CINDERELA SURDA E SEUS ELEMENTOS SIMBÓLICOS

No livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim (1980),


percebemos o quanto os elementos simbólicos presentes nos contos abordam
sobre os muitos conflitos que as crianças enfrentam durante as diferentes fases
de sua vida. Apesar da pouca idade, as crianças veem nesses contos personagens
e histórias que refletem sobre certos momentos que elas estão vivendo.
A forma simbólica de representar os dilemas da criança é fundamental para
que ela possa passar com segurança para as próximas fases da vida. Bettelheim
(1980, p.50), afirma que “o conto de fadas oferece materiais de fantasia que
sugerem à criança sob forma simbólica o significado de toda batalha para
conseguir uma auto-realização, e garante um final feliz”.
Com a criança surda não é diferente. A necessidade da mágica e da fantasia é
de todas as crianças, sejam surdas ou ouvintes. Suas angústias e conflitos
interiores sempre aparecerão, mesmo que de forma diferente, por isso,
percebemos em Cinderela Surda, um rico arsenal simbólico que representa
muitos dos conflitos internos enfrentadas pela criança surda.
O primeiro elemento a ser analisado é o fato de Cinderela ser surda.
Somente há pouco tempo, como já mencionamos, é que surgiram as primeiras
histórias cuja temática é sobre surdez e com a personagem principal surda. Assim
como, há algum tempo, não era comum, encontrarmos em livros de histórias
infantis uma protagonista negra, por exemplo.
Os surdos, como também negros e índios, fazem parte de grupos sociais
minoritários e apesar de se falar tanto em inclusão e igualdade social, estes
grupos ainda têm a necessidade de buscarem espaços na sociedade. No conto, o
fato de Cinderela ser surda significa, dentre outros motivos, uma forma dos
surdos garantirem sua participação na vida em sociedade.
O fato de Cinderela ser surda e conviver com pessoas ouvintes, que não
conhecem ou sabem pouco a língua de sinais, também faz referência ao que é
recorrente na vida de muitos surdos. Pois seus pais, em sua maioria, são ouvintes
e não conhecem sua língua, o que dificulta a comunicação entre eles.
A falta de comunicação é um dos problemas enfrentados pelos surdos, como
também a falta de aceitação dos próprios pais. No conto, a rejeição a Cinderela
por parte da família, não é necessariamente por conta da surdez, pois em
nenhum momento isso é demonstrado e também porque em todas as outras
versões, Cinderela é tratada da mesma forma. Porém, o fato da madrasta e suas
irmãs não usarem sinais com Cinderela, demonstra indiferença à sua surdez.
Os primeiros sentimentos dos pais e familiares, quando descobrem que têm
um filho surdo, são muitos: de decepção, de rejeição, de confusão, de medo e até
mesmo de culpa.
Página | 21

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Assim, às vezes, atitudes parentais que classificamos como falta de
participação ou de envolvimento com a criança podem, de fato,
significar a dificuldade que os pais estão sentindo naquele momento
em entender o que é a surdez. Muito freqüentemente, também,
consideramos a ‘falta de aceitação’ da surdez por parte dos pais e
dos membros da família, quando, de fato, há falta de tempo da
família para assimilar e se adaptar a uma nova situação, falta de
informações sobre uma situação que é desconhecida para eles.
(FRANÇOZO, 2003, p.87)

Os pais, por enfrentar uma experiência nova, sofrem, talvez por medo de
não saber como lidar com este novo membro, que é “tão diferente”. No entanto,
o filho surdo, pode sofrer ainda mais, pois sente toda a indiferença de seus pais
em relação a ele. Conforme Rossi (2003), enquanto bebê, antes do diagnóstico da
surdez, a relação entre pais ouvintes e filho surdo é de muita afetividade, mas
com a descoberta da surdez, essa relação muda quase radicalmente. A autora,
ainda comenta sobre o comprometimento dessa relação:

A nossa prática vem nos mostrando que os pais, ao terem certeza


da surdez de seu filho, passam a sentir ‘pena’ da criança olhando-a
com tristeza, tendendo a se culparem e passando a se sentir pouco a
vontade ao brincar com um filho que não escuta. Essa mudança de
comportamento altera significativamente a relação entre mãe e
filho, e compromete o vínculo com os pais. (ROSSI, 2003, p.101)

No caso de Cinderela, não foram os pais que mostraram indiferença ao


fato de ela ser surda, pois no conto não relata a convivência entre eles, mas sim a
madrasta e suas filhas. Cinderela sabia língua de sinais “aprendeu a Língua de
Sinais Francesa com a comunidade de surdos, nas ruas de Paris” 3 (p.8), porém as
pessoas que conviviam com ela sabiam pouco de sua língua, por isso “A
comunicação entre elas era difícil, pois a madrasta e as irmãs só faziam poucos
sinais” (p.12). Notamos porém que estas, mesmo sabendo um pouco de sinais,
em nenhum momento é relatada uma conversa em língua de sinais com
Cinderela. Ao contrário, no único momento em que falam com Cinderela é
oralmente, ignorando a sua língua: “- Não, você não pode ir conosco! Você não
tem roupa bonita!” (p.16). Referindo-se, assim, as difíceis lutas contra as
imposições do oralismo e a busca em legitimar os sinais, como uma língua.
Ainda hoje, os surdos sofrem por conta disso, visto que estão inseridos em
um ambiente de pessoas que falam o que eles não ouvem e a todo o momento as
pessoas direcionam-se a eles gritando, falando alto como se assim eles fossem
ouvir. Ou como se tivessem a obrigação de saber fazer leitura labial. Os surdos
têm uma língua, como já dissemos, e precisam ser respeitados mesmo sendo
uma minoria linguística.
Sabemos que as irmãs de Cinderela falaram oralmente com ela e não
sinalizaram, porque na apresentação do livro os autores indicam que “as palavras

3
Durante a análise do conto, todas as citações sem referências serão do livro Cinderela
Página | 22
Surda (Karnopp et al, 2007), para evitar repetições. Serão escritos apenas os números de
páginas.

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em letras maiúsculas representam os sinais” 4 (p.5). Como, quando Cinderela
implora para ir ao baile: “- POR FAVOR, DEIXE-ME IR COM VOCÊS!” (p.16).
Uma figura importante surge: a fada, que simboliza a figura da mãe que
morreu bondosa, angelical, que entende os problemas e tem uma solução para
eles. Como era de se esperar, a fada sabe sinais, pois seria difícil imaginar alguém
que compreendesse as dificuldades do surdo, entendesse seus dilemas e não
pudesse ajudá-lo por não poder se comunicar. A figura da fada nos leva a dois
questionamentos: A fada também é surda? Ou uma ouvinte que sabe sinais? De
uma forma ou de outra, a atitude dela, simboliza a importância de entender e ser
entendido, mostra-nos a importância de serem quebradas as barreiras da
comunicação entre ouvintes e surdos.
Entretanto, o conto nos deixa pistas que indicam a possibilidade da fada ser
ouvinte, isso porque nenhum personagem ouvinte foi denominado como tal,
porém os surdos sim, “Cinderela e o Príncipe eram surdos” (p.6). Se a fada assim
fosse, acreditamos que também os autores teriam explicitado o fato no texto.
Assim a fada sinalizou: “-NÃO CHORE, QUERIDA, SOU UMA FADA E QUERO
AJUDÁ-LA. VOCÊ VAI AO BAILE, COM ROUPA BONITA, COM LUVAS ROSA, EM
UMA LINDA CARRUAGEM COM CONDUTOR.” (p.18).
A fada por simbolizar a figura da mãe, porque é aquela que atende os
desejos e necessidades do filho, pode representar o desejo da criança surda em
ter suas vontades realizadas pela sua mãe, em poder comunicar-se melhor com
ela, entendê-la e ser entendida, poder perguntar e obter respostas sem barreiras
na comunicação. A ordem da fada também expressa dedicação, cuidado e a
preocupação dos pais com os filhos: “-À MEIA NOITE, VOCÊ DEVERÁ VOLTAR PRA
CASA” (p.20). É o que também nos diz Bettelheim:

A ordem da fada madrinha de que Borralheira esteja em casa a uma


certa hora, senão as coisas sairão erradas, no conto de Perrault, é
semelhante à solicitação dos pais à filha para que não fique fora até
tarde, devido ao medo do que possa suceder-lhe. (1980, p.305)

Quantas crianças surdas não desejariam receber orientações de seus


pais em sinais, para não precisar adivinhar, o que sua mãe ou pai tentam lhe dizer
por meio de gestos? A dificuldade de comunicação entre pais ouvintes e filhos
surdos é um problema enfrentado pelos surdos, muitos pais ouvintes não sabem
a língua de sinais, tornando a comunicação com seus filhos limitada.
O conto traz um fato importante na história dos surdos, que é demonstrado
na forma como o príncipe aprendeu a língua de sinais “O rei e a rainha
contrataram o mestre L’Epeé para ensinar a Língua de Sinais Francesa ao Príncipe
herdeiro do trono” (p.8). Essa descrição do conto faz referência a um dado
importante da história dos surdos. O Abade L’Epeé foi um dos primeiros
estudiosos da educação dos surdos e um defensor do uso da língua de sinais,
portanto um nome fundamental no cenário de transformações na educação dos
surdos e para a criação da primeira Escola Pública para Surdos em Paris, em 1760.

L’Epeé se aproximou dos surdos que perambulavam pela rua de


Paris, aprendeu com eles a língua de sinais e criou os ‘Sinais
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4
O que também será utilizado doravante neste texto.

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Metódicos’, uma combinação da língua de sinais com a gramática
sinalizada francesa. O Abade teve imenso sucesso na educação dos
surdos e transformou sua casa em escola pública. (GOLDFELD, 2002,
p.28-29)

Outro ponto que gostaríamos de destacar é a chegada de Cinderela à


festa. Quando ela chega, logo o príncipe a convida para dançar e faz isto por meio
de um gesto: “estendeu-lhe a mão, convidando-a para dançar” (p.22). Cinderela
imediatamente sinaliza que é surda, o que pode representar que antes de aceitar
o convite para dançar, ela avisa das suas “limitações”, nos remetendo a trajetória
de preconceito e discriminação vivenciados pelos surdos. Mostrando o que
muitos surdos vivenciam, a rejeição do outro.
Ao analisarmos a ilustração de Cinderela, perceberemos que no seu encontro
com o príncipe, ela está com o dedo na boca e com ar de timidez, o que pode
estar simbolizando a vergonha de falar que é surda. Muitos surdos por não
aceitarem sua surdez ou com medo de serem rejeitados tem vergonha de dizer
que são surdos especialmente aqueles que foram oralizados (estimulados para
falar) e não usam a língua de sinais. Outros ainda, porque já sofreram
preconceitos ou foram ridicularizados por usarem sinais, enfim, os motivos são
inúmeros.
Apesar das discussões sobre surdo e surdez, muitos surdos ainda sofrem
preconceitos, por aqueles que os tem como anormais. Muitas crianças ainda têm
dificuldades de se relacionar com os colegas ou os amigos da vizinhança.

Os meus colegas não me aceitavam porque tinham receio que a


surdez pegasse como uma doença contagiosa, eles tinham medo de
falar comigo, achando que eu não iria compreender, sempre que
estava na fila por ordem de chegada, às vezes a primeira, por morar
próximo à escola, eles me puxavam pelos meus longos cabelos
negros que estavam trançados como uma índia, me arrastavam e
colocavam como última da fila; sem entender muito bem, eu
aceitava as imposições. (VILHALVA, 2001, p.19 apud STRÖBEL, 2007,
p.22).

Outra leitura que podemos fazer quando Cinderela sinaliza quem ela é: “-
SOU SURDA!” (p.22), é que ela está assim, afirmando sua identidade. Afirmar a
identidade surda é aceitar ser surdo, que possui uma língua e costumes próprios.
Significa dizer, que não é um “coitadinho”, nem doente e nem deficiente, é
surdo, conforme depoimento de um jovem surdo: “A identidade surda é aceitar
ser surdo. Se a pessoa não aceita ser surda, só, não tem identidade própria. É...
ele fica revoltado. Não aceita. Ele tem vergonha de ser surdo. Eu não... Eu não
tenho vergonha de ser surdo”. (SANTANA e BERGAMO, 2005, p.570)
Por causa dos muitos preconceitos sociais em relação ao surdo, infelizmente,
ainda há a necessidade de reafirmarem sua identidade, de falar que não são
doentes, anormais, defeituosos e nem privados de uma língua. Conforme
depoimento de uma surda: “Para quem se habituou a virar a cabeça ao chamado
de seu próprio nome, é talvez difícil entender. Sua identidade está dada desde o
nascimento. Não têm necessidade de pensar nela, não se questionam sobre si
mesmos”. (LABOURIT, 1994, p.51 apud SANTANA e BERGAMO, 2005, p.569).
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Ainda na mesma cena, outro fato chama nossa atenção é o baile, quem
adaptou a história não retirou a dança, o que pode parecer inconsistente já que
surdo não dança. Surdo não dança? Há pensamentos de que por conta de não
ouvirem a música o surdo não dança, mas pesquisas têm demonstrado que
muitos surdos gostam de dançar. Além disso, muitas instituições de ensino têm
utilizado a dança como ferramenta de ensino-aprendizagem dos surdos. Então, a
dança não está tão distante do universo do surdo.

Nos bailes e festas promovidos pelas associações de surdos,


geralmente, no salão há poucos sujeitos surdos dançando... Aqueles
que dançam no salão... Dançam livres, a sua maneira, afinal, nesses
bailes e festas de cultura surda não haver regras de ritmo musical
correto e muitas vezes acontece que quando acaba a música, eles
continuam dançando (STROBEL, 2008 p. 78).

No conto, o príncipe também é surdo, o que pode simbolizar o encontro com


seus pares, a participação dos surdos em comunidade, o ato de compartilhar
experiências, costumes, ideias. Ou pode representar o fato de que no meio de
uma sociedade majoritária de ouvintes, também há espaço para as minorias.
O príncipe e Cinderela ficaram felizes em saber que o outro era surdo e
conversaram a noite inteira, o que pode significar a fuga do isolamento social,
que não foi uma escolha, pois Cinderela apesar de conviver com sua família não
tinha com quem se comunicar e naquele momento ela e o príncipe podiam ser
compreendidos. Não havia o impedimento da comunicação, já que os dois
falavam a mesma língua. “Felizes, o príncipe e a Cinderela dançaram e
conversaram a noite toda, sem perceber o tempo passar...” (p.22).
Outro episódio que também faz referência à vida em comunidade é quando
mostra como Cinderela aprendeu sinais: “Cinderela era filha de nobres franceses
e aprendeu a Língua de Sinais Francesa com a comunidade de surdos, nas ruas de
Paris” (p.8). O que mostra como a maioria dos surdos aprende a língua de sinais.
Os surdos necessitam viver em comunidade, associações, fazer parte de um
grupo surdo, pois a convivência entre eles gera conhecimento, discussões,
debates e lazer.

A comunidade surda tem como característica a produção de


histórias espontâneas, bem como de contos e piadas que passam de
geração em geração relatadas por contadores de histórias em
encontros informais, normalmente em associações de surdos.
(QUADROS e SCHIMIEDT, 2006, p.25).

Muitos surdos vivem em um isolamento social, pois mesmo dentro de sua


casa, por serem nada ou pouco compreendidos, sentem-se sozinhos, deslocados,
são tratados como estranhos, o que ocasiona para eles, uma experiência
perturbadora como no caso de Cinderela, que apesar de ter irmãs e madrasta
não tinha com quem conversar. A barreira que se instaurou entre surdos e
ouvintes é muito mais pelo preconceito do que pela diferença de linguagem.
Outro elemento simbólico muito importante na história de Cinderela Surda é
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apresentado no momento da história em que ela sai do baile apressada, pois o
que ela deixa para trás não é um sapatinho de cristal, como na versão de Perrault
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(1999), mas uma de suas luvas. Em Cinderela Surda a luva tem relação íntima
com a mão, o que com certeza exprime muito mais significados para o surdo do
que o pé. Já que a mão, para um surdo, significa mais do que um instrumento de
trabalho, significa a possibilidade de explorar sua língua, sua cultura, sua
identidade. A mão é o canal linguístico do surdo e é por meio dela que este
compreende e interage com o mundo.
Em Cinderela tradicional ou Borralheira, Bettelheim (1980) comenta que o
sapatinho de Cinderela é símbolo da vagina:

Um receptáculo pequenino dentro do qual se pode inserir uma parte


do corpo de modo justo pode ser visto como um símbolo da vagina.
Algo que é frágil e não deve se estivar porque romperia lembra-nos
o hímem. (p.304)

Em ‘Borralheira’ o pezinho bonito exerce uma atração sexual


inconsciente, mas em conjunto com um sapatinho belo e precioso
(por exemplo, dourado) no qual o pé cabe confortavelmente.
(p.308).

Ela o escolhe porque ele a aprecia nos aspectos sexuais ‘sujos’,


aceitando amorosamente sua vagina na forma de sapato, e aprova o
desejo dela por um pênis, simbolizado pelo pezinho que cabe no
sapato-vagina. Por esta razão, o príncipe traz o lindo sapato para
Borralheira e ela coloca seu pezinho dentro. (p.311)

Portanto, a relação em Cinderela tradicional pé-sapato simboliza não apenas


o casamento, mas o ato sexual. Em Cinderela Surda não há esta relação entre pé
e sapato, mas há luva e mão, que pode simbolizar o noivado, em que o noivo
coloca aliança no dedo de sua noiva. A luva simbolizaria o anel, que colocada na
mão de Cinderela significa a união entre eles. Ou até mesmo a própria relação
sexual, pois assim como o sapato simboliza a vagina na análise de Bettelheim
(1980), a luva também pode representá-la, já que a mão, que substitui o pé-
pênis, cabe confortavelmente na luva, que substitui o sapato-vagina.
O príncipe, assim como em outras versões, procura Cinderela pelo seu
fetiche sexual, isto porque ele não só procura uma moça surda, mas aquela cuja
luva coubesse. Mesmo porque quando ele a convidou para dançar, não sabia que
ela era surda, mas porque provavelmente ficou encantado com sua beleza.

No universo dos contos, há muitos desses príncipes, seduzidos por


um objeto cuja presença é imprescindível para que uma mulher seja
escolhida. Podem ser pés, que calcem determinado sapato: mãos, o
objeto que orienta a busca é um anel [ou uma luva]; ou ainda um
cabelo, geralmente dourado e trazido pelo vento que inspira a busca
por sua dona. (CORSO e CORSO, 2006, p.114. Interferência nossa)

O príncipe além de encontrar em Cinderela os atributos sexuais para ser sua


esposa, pôde ainda compartilhar com ela sua identidade, sua língua, pois se
reconhecem como surdos e comungam da mesma cultura.
Página | 26 Quando o encarregado do reino chega à casa de Cinderela procurando uma
moça surda, a madrasta mente dizendo-lhe que suas filhas são surdas. Isso nos

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faz refletir sobre status, conveniência. A madrasta nunca se importou com
Cinderela, mal se comunicava com ela, mostrava-lhe desprezo e rejeição a ela e a
sua língua, no entanto, quando percebe que ser surdo pode lhe trazer benefícios,
seus conceitos “mudam”.
Tal atitude pode simbolizar o percurso histórico do surdo. Foram muitos
preconceitos, discriminação e até mesmo a proibição de utilizar uma língua
espaço-visual que atendesse as suas especificidades linguísticas. A língua de
sinais foi por muito tempo estigmatizada, considerada inferior. Mas enfim, os
surdos garantiram o direito de falar em uma língua de sinais, direito garantido
aqui no Brasil pela Lei Federal nº 10.436, de 24 de abril de 2002, e continuam
lutando para conquistar cada vez mais seu espaço.

E ASSIM TERMINA NOSSA HISTÓRIA...

Apesar de tão antigos, os contos infantis não param de encantar gerações.


Com sua riqueza simbólica abordam temas que fazem parte dos conflitos
enfrentados por todas as crianças e para alguns autores essas narrativas
simbólicas têm o intuito de preparar a criança para as transformações da vida,
como a maturação sexual e o casamento.
O conto analisado é uma versão da tradicional Cinderela de Perrault (1999)
chamado Cinderela Surda e traz uma releitura caracterizando a cultura surda.
Elementos como a língua de sinais, a história da educação do surdo e sua
identidade são apontadas nessa história. Analisamos Cinderela Surda a partir de
sua linguagem simbólica, observando como este conto representa a realidade
dos surdos e algumas dos conflitos enfrentados por eles.
Compreendemos a partir da análise do conto, que seus elementos simbólicos
refletem sobre a realidade da criança surda, visto que os conflitos representados
em Cinderela Surda são comuns na vida das crianças com surdez como: a
dificuldade da comunicação com os ouvintes, até mesmo os membros de suas
famílias, a rejeição de seus parentes, o impedimento de falar em sua língua, o
preconceito da sociedade em relação a sua surdez e o isolamento social. Assim,
essa história pode ser explorada por pais, professores e educadores de surdos,
pois este conto além de abordar temas pertinentes à criança e jovens surdos,
evidencia a língua, a identidade e cultura surda.
Entendemos o quanto as sugestões simbólicas presentes em Cinderela
Surda, podem ajudar as crianças surdas, não apenas no seu processo de
alfabetização, mas na sua autoestima, aceitação, socialização, valorização de si e
dos outros surdos. Visto que no desenrolar da história, o leitor é convidado a
recorrer à história da sua cultura, ou até mesmo a sua própria história, assim é
inevitável a identificação da criança surda com esse conto.
Ao longo do nosso trabalho percebemos o quanto os contos infantis são
importantes para a formação e desenvolvimento da criança ouvinte ou surda.
Além da importância desses contos tradicionais, há uma necessidade de investir
mais em uma literatura surda, com o objetivo de alcançar de maneira mais
efetiva a realidade dessa comunidade.
Página | 27 Torna-se relevante e necessário proporcionar a criança surda, histórias que
façam referência a sua cultura. Pois sabemos que toda criança projeta-se, mesmo

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que inconscientemente, dentro dessas histórias. Para a criança surda é muito
importante que no meio desse acervo de contos, com histórias apenas de/para
ouvintes, ela veja histórias de/para crianças com especificidades como as suas.
A divulgação da literatura surda, representada em nosso trabalho por meio
do conto analisado, é uma forma de recuperar as tradições culturais do indivíduo
surdo, como também buscar afirmar sua identidade surda.
Não pretendemos parar por aqui, pois entendemos que este trabalho
constituiu-se apenas uma parcela daquilo que desejamos levar adiante. As
possibilidades de análises do conto não se findaram, visto que não dá para
esgotar todas possíveis interpretações. Pois a cada leitura um diferente olhar, a
cada leitor diferentes olhares e como diria Bettelheim (1980, p.28), “[...] só a
própria estória permite uma apreciação de suas qualidades poéticas, e com isto
uma compreensão de forma como enriquece uma mente suscetível”.

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DEAF CINDERELLA: THE DEAF AND THE
SYMBOLIC CHILDREN’S LITERATURE SHORT
STORY
ABSTRACT

This article aims to analyze “Deaf Cinderella” by Hessel, Rosa and Karnopp (2007) from its
representation and symbolic meanings. This short-story is considered a traditional
retelling of Cinderella by Perrault (1999) to the deaf reality, emphasizing issues pertaining
to deaf culture and identity. We are interested in understanding and bringing out possible
conflicts and difficulties faced by deaf children in this story. For that, we use as theoretical
support Bettelheim (1980), Corso and Corso (2006) and Abramovich (1997) in approaching
children's stories and the symbolic material present in these stories, and Goldfeld (2002),
Quadros (1997) and Skliar (1997) regarding deaf children. We understand from this
analysis that the symbolic language can describe internal conflicts faced by deaf children,
allowing them to understand themselves and find meaning for their lives. We also want to
reflect on the importance of children’s tales and the need to invest in a deaf literature that
aims to restore the cultural traditions of their communities.

KEYWORDS: Deaf Cinderella. Children’s Literature. Deaf children. Internal


conflicts.

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REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo:


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BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. 20.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CORSO, Diana Lichtenstein. CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálises nas


histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

FRANÇOZO, Maria de Fátima de Campos. Família surda: Algumas considerações


aos profissionais que trabalham com famílias In: SILVA, Ivani Rodrigues;
KAUCHAKJE, Samira; GESUELI, Zilda Maria. (Orgs.). Cidadania, Surdez e
Linguagem: Desafios e realidade. 2. ed. São Paulo: Plexus Editora, 2003, p.77-96.

GOLDFELD, Márcia. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva


sociointeracionista. 3 ed. São Paulo: Pleux, 2002.

HESSEL, Carolina, ROSA, Fabiano, KARNOPP, Lodenir. Cinderela Surda. 2. ed.


Canoas: Ulbra, 2007.

KARNOPP, Lodenir. Literatura Surda. Licenciatura em Letras-Libras. UFSC.


Florianópolis, 2008.

PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Trad. Regina Régis Junqueira. Belo


Horizonte: Vila Rica, 1999.

QUADROS Ronice Muller de. Educação de Surdos: a aquisição da linguagem.


Porto Alegre, 1997.

QUADROS, Ronice Muller de; SCHMIEDT, Magali L. P. Idéias para ensinar


português para aluno surdo. Brasília: MEC, SEEP, 2006.

ROSSI. Tereza Ribeiro de Freitas. Mãe ouvinte/Filho surdo: A importância do


papel materno no contexto do brincar. In: SILVA, Ivani Rodrigues; KAUCHAKJE,
Samira; GESUELI, Zilda Maria. (Orgs.). Cidadania, Surdez e Linguagem: Desafios e
realidade. 2. ed. São Paulo: Plexus Editora, 2003, p.99-112.
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SANTANA, Ana Paula; BERGAMO, Alexandre. Cultura e identidade surdas:
encruzilhada de lutas sociais e teóricas. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p.
565-582, Maio/Ago. 2005. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>.
Acesso em: 17 de julho de 2010.

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. Florianópolis:


UFSC, 2009.

Recebido: 07 abr. 2017


Aprovado: 13 mai. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5779
Como citar: SILVA, Ione Barbosa de Oliveira; ALVES, Francislene Cerqueira; SOUZA, Jorgina de Cássia
Tannus. Cinderela surda: o surdo e o simbólico no conto infantil. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 15-31,
mar. 2017. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

DIALOGISMO EM TEXTOS PARA CRIANÇAS:


NÍCOLAS E A ORQUESTRA DA LUA CHEIA
RESUMO
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Este artigo analisa as obras Nícolas, escrito por Agnès Laroche, ilustrado por Stéphanie
Ferreira
eliane@assis.unesp.br Augusseau, e traduzido por Isabelle Gamin e Rosana de Mont’Alverne Neto, e A orquestra
Universidade Estadual Paulista da lua cheia, escrita e ilustrada por Jens Rassmus, com tradução de Sofia Mariutti, a partir
“Júlio Mesquita Filho”, Assis,
Brasil. da ideia de dialogismo de Bakhtin (1995) e de leitor implícito de Wolfgang Iser (1996). As
Thiago Alves Valente
obras se destacam pela qualidade do texto verbal integrada aos textos imagéticos
kantav2005@gmail.com relevantes para o leitor infantil. A construção identitária e os conflitos familiares
Universidade Estadual do Norte do
Paraná, Cornélio Procópio, Brasil. apresentam-se nas obras que não se entregam a discursos maniqueístas e previsíveis,
antes convidam à imaginação e à superação dos problemas por meio do pensar e do agir
em um mundo, muitas vezes, pouco sensível às necessidades da criança. Embora os temas
sejam comuns em livros infantis, ambos os textos são marcados por uma escrita criativa e
interessante para as crianças leitoras.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Infantil. Leitura. Dialogismo.

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R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 32-42, mar. 2017.


INTRODUÇÃO

Nas décadas pós-1990, o mercado editorial brasileiro encontra-se entre o


excesso de literatura de entretenimento e o desejo de produzir obras de
“qualidade estética”, nota-se, porém, uma mudança de mentalidade quanto à
relação entre ensino e literatura. A produção literária infantil, por meio da
autocrítica, da manutenção da autenticidade, da conscientização, da
metalinguagem, da dialogia e da intertextualidade, busca adequar-se às
peculiaridades próprias do tipo de leitor a quem se destina, e conscientizá-lo em
relação às descobertas que lhe cabe fazer no mundo. O imaginário, então, é visto
como instrumento de conquista do conhecimento de si e do mundo em que se
vive.
Neste artigo, aborda-se a temática da infância pelo tema da individuação, o
qual será realizado com a análise dos protagonistas de duas obras literárias de
2013: Nícolas, escrito por Agnès Laroche, ilustrado por Stéphanie Augusseau,
originalmente publicado em francês e traduzido por Isabelle Gamin e Rosana de
Mont’Alverne Neto; e A orquestra da lua cheia, escrita e ilustrada por Jens
Rassmus, originalmente publicado em alemão, com tradução de Sofia Mariutti.
As obras de Laroche (2013) e de Rassmus (2013), embora publicadas em países
diversos – França e Alemanha –, pertencem, originalmente, a um mesmo campo
cultural: o da produção literária infantil. Dessa forma, as negociações e os
consensos que surgem representados nesses textos dialogam tanto com a
realidade circundante, quanto com a produção literária do seu tempo.
O conceito de dialogia é tomado dos estudos de Diana Barros (1999),
pautando-se em Bakhtin (1995). Seu desdobramento, para efeito desta análise,
pauta-se na ideia de leitor implícito conforme Wolfgang Iser (1996). Este leitor,
embora seja uma projeção da estrutura de apelo do texto que supõe um
receptor, representa um leitor empírico: a criança contemporânea. Quanto às
obras em análise, em ambos os textos literários, a representação da infância
efetiva-se pela relação estética de interação e colaboração que o texto verbal
estabelece com o imagético.

O SUJEITO DONO DE SEU DESTINO

A orquestra da lua cheia aborda, de forma crítica e cômica, a temática da


individuação. Para tanto, configura-se como uma história fantástica, com
ilustrações coloridas que capturam o olhar do pequeno leitor. Sua protagonista
mirim, criativa, divertida e crítica, Ana, demonstra alegria de viver e resiste à
ordem de sua irritadiça mãe para que vá dormir, gerando identificação com o
pequeno leitor. Nessa resistência, planta bananeira na sala e cai no teto. A partir
desse feito, sem que seus pais percebam, dirige-se para seu quarto e pela janela
é convidada a entrar em um barco, cujos exóticos integrantes – monstros
diversos de diferentes cores e tamanhos –, também, de ponta cabeça, são
músicos que partem para realizar um show na Lua. Durante esse espetáculo,
todos se assustam com a aproximação de um dragão mal-humorado que pede
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silêncio. A única que decide questioná-lo é Ana. Assim ela descobre que ele
aprecia música, contudo, vive solitário e triste porque se sente rejeitado. Com
R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 32-42, mar. 2017.
sua inclusão no grupo de músicos, o conflito é solucionado. Ana retorna para casa
satisfeita pela aventura e sucesso na inclusão de um novo amigo.
Nícolas, por sua vez, aborda de forma sensível a temática da individuação.
Para tanto, apresenta o pequeno protagonista Nícolas que, a princípio, lastima o
fato de não ser forte e grande, imaginando que tudo seria diferente, se ao menos
ele fosse um super-herói, no caso, o “Super Nico”. A frase representativa desse
desejo aparece após uma frustração, no discurso indireto livre, conotando que,
embora o narrador seja observador, seu discurso representa os pensamentos do
herói e a eles adere: “Ah! Se ao menos ele pudesse se transformar...” (Laroche,
2013, p. 5, destaque nosso). Após tantas situações, em que se vê subjugado pelos
mais fortes, por ser tímido, distraído e pequeno, decide parar de fantasiar e
assumir suas potencialidades de menino. Assim, Nícolas, pelo viés da
conscientização, muda suas atitudes, desenvolve estratégias e percebe que pode
conferir ajuda a si mesmo, bem como viver melhor e em sintonia com sua
infância. Como é o centro do relato, seu nome confere título ao livro.
Tanto a obra A orquestra da lua cheia (2013), pelas ilustrações coloridas,
caricaturais, dotadas de textura que lhes confere volume, projetando-as para os
olhos do leitor, quanto Nícolas (2013), pelas ilustrações sensíveis compostas por
traços arredondados, são atraentes para o leitor em formação. Além disso, a
temática da individuação em ambas, a brevidade e a representação dos
protagonistas como crianças inteligentes e criativas que conseguem superar suas
limitações e carências geram identificação com o leitor mirim.
Se uma das funções de uma ilustração é a de fundar uma memória afetiva na
criança, em Nícolas (2013) a imagem é predominante em relação ao texto verbal,
embora ambos se complementem. Pela representação de um herói que
revoluciona sua realidade, a partir de suas próprias forças, sua narrativa confere,
pelas performances do herói, coragem ao leitor mirim, e pelas representações
imagéticas, a constituição de memória e a desautomatização do olhar.
O projeto gráfico de um livro ilustrado, bem como as funções de suas
ilustrações, revela uma intenção de leitura a partir da junção entre texto e
imagem em um único objeto, ou seja, projetam um leitor implícito (ISER, 1996),
instaurando o modo de ler, a sequenciação de ações e a temporalidade – por
isso, revelam uma percepção de infância e de criança. Para Luís Camargo (1998),
a partir das proposições de Jakobson, a imagem pode apresentar as seguintes
funções: 1) narrativa, orientada para o referente com a intenção de situar o
representado e suas transformações ou ações; 2) expressiva, orientada para o
emissor da mensagem quando capaz de manifestar seus sentimentos e emoções;
3) estética, põe em relevo a forma ou configuração visual com o objetivo de
sensibilizar por meio das cores ou sobreposições delas em pinceladas com
textura, manchas, alternâncias, abstrações, linhas etc.; 4) lúdica, em que a
imagem apresenta-se sob a forma de um jogo, seja em relação ao emissor,
referente, à forma da mensagem visual, seja ao destinatário; 5) metalinguística,
orientada para o próprio código visual com remissão ao universo da arte.
N’A orquestra da lua cheia prepondera o fantástico. Seu espaço da aventura
é a Lua, cuja atmosfera noturna presentifica-se pelas cores intensas e ilustrações
carregadas de sombras. Seu dinamismo é assegurado pela representação das
Página | 34 personagens em movimento; pela disposição das cenas ilustradas ora em folha
dupla ora em simples na página da direita ou da esquerda; e também, pela sua

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posição, ora conforme o olhar do leitor, ora de ponta cabeça em relação a este,
obrigando-o a virar o livro para prosseguir com a leitura. Como objeto do
“brincar”, o livro é cativante e pode desautomatizar o olhar infantil acostumado a
ilustrações dispostas sempre na mesma página e direção. Sua profusão de cores,
ao compor os fundos das páginas, bem como personagens e cenários, atrai o
olhar da criança. O predomínio de tons mais escuros e de sombras, nos espaços
da aventura, confere atmosfera noturna adequada às peripécias da Orquestra da
Lua Cheia.
Como se pode notar, o par antitético que estrutura o enredo é o da ordem e
o da subversão, mesmo que esta se realize somente no plano do imaginário. Uma
vez no espaço aventuresco, Ana se descobre capaz de dialogar com um cômico e
caricatural dragão de bobes, que se tornara mal-humorado, pois precisou fugir
para a Lua ao sofrer rejeição na Terra. Justamente, a protagonista, que não
consegue conversar com os pais em casa, pois estes estão mais preocupados em
ver televisão, convence esse dragão a participar da orquestra e, assim, também,
se divertir. Pela leitura, a criança eleva sua autoestima, pois se reconhece
semelhante à heroína, dotada de competência para refletir, resolver problemas e
até fornecer ajuda. O senso crítico se estabelece na relação assimétrica dos
adultos com as crianças.
A capa, em tons de azul, preto e branco, confere cenário noturno para suas
ilustrações de ponta cabeça, em relação ao título. Nesse plano imagético, notam-
se uma imensa Lua e pequenos barcos com passageiros que a esse satélite se
dirigem. Essa capa intriga a criança e desperta sua curiosidade, reforçando o
título de que na lua cheia acontecerá algo. Como no primeiro barco, há também
uma menina, a criança se identifica com ela e sente-se motivada à leitura. Assim,
pela temática; pela cativante protagonista mirim; pelo viés crítico do enredo; pela
possibilidade de ampliar os horizontes de expectativas da criança e
desautomatizar seus conceitos prévios acerca de ilustração; o livro mostra-se
emancipatório.
Nícolas também apresenta um enredo divertido e envolvente. Seu cenário
de aventura é predominantemente o da escola. Seu enredo, pautado pelo
humor, cuja temática da individuação é cativante para o pequeno leitor também
em formação de sua identidade. Sua inovação recai no emprego do hibridismo de
gêneros textuais, no emprego de margens e/ou abandonos delas na ilustração, e
na materialidade do livro. A começar pelo formato do volume e pela textura do
papel, nota-se que foi planejado para promover a confluência das duas
linguagens: verbal e imagética.
A capa, com o pequeno Nícolas olhando para cima e saindo de sua cabeça
um balão que forma uma figura incompleta, gera identificação com a criança,
instaura uma lacuna e, por isto a instiga, pois de forma metonímica e catafórica,
apresenta a imagem de uma cena que só será entendida durante a leitura. No
transcorrer da narrativa, nota-se que toda vez em que Nícolas se sente frustrado
ou incapaz de realizar uma performance, ele projeta em sua imaginação um
super-herói, o “Super Nico”, seu alter ego, que satisfará suas angústias. O
reconhecimento dessa projeção em outras cenas confere ao pequeno leitor a
sensação de prazer, pois esta se apresenta como um payoff, uma recompensa,
por tê-la analisado na primeira leitura, e de poder, já que, pelo contexto, seu
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entendimento dessa imagem não só se completa, como surge ressignificado.

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Logo na cena de abertura, nota-se que, no plano verbal, o tratamento
literário e, no plano imagético, o estético, caminham juntos, pois aparece de
forma hiperbólica um pequenino e corado Nícolas, cuja altura chega aos joelhos
dos adultos, andando entre imensas pernas no caminho para a escola. Essa
dedução advém do fato de que o herói mirim carrega uma mochila escolar nas
costas (LAROCHE, 2013, p. 4). No plano verbal, nota-se o recurso à função poética
da linguagem, no emprego da metonímia e da antítese: “Nicolas mistura-se à
multidão que vai e vem. A todas essas pernas enormes que o empurram, a todas
essas sobrancelhas franzidas, ele gostaria de gritar: ‘Vocês não veem que estão
pisando nos meus pés?’” (LAROCHE, 2013, p. 5, destaque nosso). Percebe-se a
representação do adulto no meio urbano, como alienado, apressado, insensível à
presença da criança, ocupando espaço demasiado pela sua dimensão, e
estressado, convidando o narrador à adesão ao pequeno herói pelo viés da crítica
social. Esse adulto alheio ao incômodo da sua presença desastrada opõe-se ao
senso crítico do herói que se frustra pela impotência de não poder gritar aos que
pisam em seus pés. Sua vingança realiza-se na proporção de suas forças e
vivências, ele imagina um Super Nico que mostra uma língua enorme para todos
os transeuntes. Justamente, esse sentimento diverte o leitor mirim e permite-lhe
identificação, pois representa formas comportamentais típicas de uma criança
descontente.
Suas folhas de guarda são marcadas na folha dupla por folhas de árvores,
que voam livremente. Algumas são vermelhas, o que pode levar o leitor a
construir a hipótese de que há um clima de outono. Assim, atuam também como
catáfora e metonímia que instauram lacunas e pedem confirmação de hipótese.
Esta ocorre durante a leitura, ao se detectar que as personagens vestem roupas
de inverno e as árvores representadas em duas cenas possuem pouquíssimas
folhas (LAROCHE, 2013, p. 30-32).
A folha de rosto apresenta Nícolas muito vermelho e constrangido, sentado
em sua carteira. Essa cena tende a comover o leitor, pois nota-se como ele é
pequenino, uma vez que seus pezinhos não alcançam o chão, e também o instiga
a acompanhar o relato, a fim de descobrir a razão para a atitude do protagonista.
Ela será reconhecida durante a leitura, como a cena em que o professor o
constrange diante da turma, ao chamar sua atenção por ter esquecido
novamente o caderno (LAROCHE, 2013, p. 12-13). Essa folha de rosto também
atua como catáfora, projetando o olhar do leitor adiante em busca de
entendimento. Além disso, instaura lacunas, por isso convoca hipóteses que só
poderão ser testadas durante a leitura.
Em Nícolas a imagem é narrativa, pertence a um continuum que conduz o
olhar para baixo e para cima, para a esquerda e à direita. Os traços das
personagens em movimento conferem dinamismo ao relato. As ilustrações se
alteram quanto à disposição, aparecendo ora em folha dupla, ora em uma única
página, ora margeadas, ora sem margem alguma e ora em quadrinhos. Assim,
elas desautomatizam o olhar do leitor mirim a respeito de ilustrações sempre
dispostas na mesma localização da página e da mesma forma que, por se
surpreender com a sua disposição, ampliam seus horizontes de expectativas.
Como se pode notar, a comunicação em Nícolas ocorre por meio da presença
de vazios intencionais que geram expectativa e tensão. Para que o diálogo entre
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texto e leitor resulte em interpretação, faz-se necessário que este projete a
expectativa e a memória uma sobre a outra. Assim, durante a leitura, promovem-
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se sínteses que constituirão correlatos que, por sua vez, impulsionarão
expectativas (ISER, 1996). Por meio desse processo, o receptor atualiza e
modifica o objeto, desenvolvendo novas expectativas e perspectivas. O prazer da
leitura desse livro ilustrado advém justamente da possibilidade de revisão de
hipóteses e de vivência da fantasia e do ludismo, enfim da ampliação do
imaginário. A expectativa que se constrói é a confirmação das hipóteses
construídas durante a leitura e do desfecho com a superação pelo protagonista
Nícolas de suas carências e limitações.
Suas ilustrações caricaturais em branco e preto, pelos traços simples,
evocam os desenhos infantis em grafite, assim como alguns fundos esfumados,
gerando identificação com a criança. Essas ilustrações são marcadas pela
hipérbole, pelo exagero nos traços de determinadas características das
personagens, como a cabeça de Nícolas e de todas as personagens mirins, em
geral muito arredondadas que, por serem maiores que o corpo, evocam a ideia
de inocência e fragilidade. Em contraposição, a barriga e o nariz proeminentes do
professor, bem como suas sobrancelhas arqueadas em desaprovação e sua
postura – em pé, olhando para baixo ao se dirigir a Nícolas, com os braços
dobrados em ângulo agudo na cintura e com as mãos fechadas –, indicam o
adulto irritado. Por sua vez, a expressão facial contrariada do valentão da escola,
indica sua agressividade. As representações sociais dos personagens vão
revelando que adultos e crianças podem ser repressores.
Embora as ilustrações sejam em preto e branco, elas são atraentes pelo
humor que instauram. Elas individualizam o protagonista como dotado de
sentimentos e emoções, pois somente essa personagem e seu alter ego – Super
Nico – aparecem em algumas cenas com as bochechas, as orelhas, a língua, os
olhos ou a boca em vermelho. Vale destacar que a mesma cor marca cada letra
inicial dos parágrafos, despertando o olhar do leitor para a estruturação textual,
conotando que a história está marcada também no plano verbal pelas emoções.
Além disso, como a cor vermelha coloca em relevo as expressões do rosto do
protagonista, manifestando suas emoções e sentimentos, suas representações
revelam a função expressiva, direcionada ao emissor que se identifica com a
personagem e, justamente, por isto, pode sentir empatia.
A função estética avulta na folha dupla, pelo contraste entre páginas
sangradas, sem margem, e páginas margeadas, emolduradas por vazios e, na
parte de baixo, pelo texto verbal. Além disso, pelo esfumar de alguns fundos,
põe-se em relevo a configuração visual do cenário, das personagens, enfim da
atmosfera, sensibilizando o leitor por meio da cor vermelha, que confere
destaque às bochechas do protagonista, mostrando-o ora como um garotinho
saudável e corado; ora, pelo uso intensivo dessa cor que avança pelas orelhas,
como envergonhado em determinadas situações. As sobreposições de imagens
aparecem na projeção imaginária do herói de um Super Nícolas que, bem
ampliado, realiza performances, as quais visam cessar várias formas de opressão
ao protagonista e/ou satisfazer seus desejos reprimidos.
Assim, esse super-herói, marcado pela hipérbole, demonstra também o
emprego da função lúdica, pois sua imagem imensa apresenta-se sob a forma de
um jogo antitético em relação ao protagonista reprimido, aparentemente
impotente. Um exemplo do desdobramento no plano verbal desses recursos
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estilísticos pode ser notado na cena em que, para chegar à escola, andando entre
a multidão que o empurra e pisa em seus pés, Nicolas imagina que “se tornaria o
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Super Nico, ele seria supre grande, super forte, e ele mostraria uma língua
enorme para toda essa gente apressada!” (LAROCHE, 2013, p. 6-7, destaque
nosso). No plano imagético, aparece a representação imaginária de Nícolas
imenso e rindo, com a boca escancarada, mostrando uma imensa língua
vermelha para os transeuntes (LAROCHE, 2013, p. 6-7). Em outras cenas de
opressão, em que o valentão da escola o oprime, o protagonista imagina que o
Super Nico o derruba (LAROCHE, 2013, p. 10-11); o mesmo super-herói castiga o
professor que repreende Nícolas na frente de seus colegas (LAROCHE, 2013, p.
14-15); ou grita para liberar a frustração reprimida do protagonista de ter
perdido seu lanche em um encontrão com outro colega que vive correndo no
recreio (LAROCHE, 2013, p. 18-19); ou galanteia a pequena Violeta, cativando-a
com um buquê de flores (LAROCHE, 2013, p. 22-23). Vale destacar que os
castigos impostos pelo Super Nico são cativantes para o leitor mirim, pois
imaginados na medida de suas forças, assim, ao professor passa-se a tarefa de
copiar “sem levantar o nariz” (LAROCHE, 2013, p. 14) em cem linhas: “Eu nunca
mais vou aborrecer o Nícolas, prometo, eu juro!” (LAROCHE, 2013, p. 15, itálico da
autora). O destaque gráfico no plano verbal tem por objetivo assinalar que essa
frase jamais fora escrita, trata-se somente de uma projeção imaginária do
pequeno Nícolas.
As margens em folha dupla aparecem nas cenas em que o protagonista
imagina e projeta o Super Nico. Desse modo, como fecham toda cena, elas
conotam que pertencem a um cenário restrito; o que compõem o imaginário de
Nícolas. A moldura na folha dupla aparece em primeiro plano, evocando um
quadro e indicando que há limítrofes para o olhar. Ela polariza o espaço para
dentro, instaurando, a princípio, a força centrípeta. Mas como na margem de
baixo há texto verbal, a moldura faz com que a cena tenha dois momentos e
espaços cênicos para o olhar: do lado de fora – universo livresco de descanso
para o olhar e do plano verbal –, e do lado de dentro – universo imaginário de
Nícolas. A cena do plano conjunto assume, então, a perspectiva de um segundo
plano em relação à moldura. Assim, a folha dupla explora, na imagem, a função
metalinguística, pois a ilustradora solicita do leitor uma reflexão acerca da
representação do imaginário em um livro. Indica, também, que as cenas de
imaginação de Nícolas, embora integrem o plano conjunto, pertencem também a
outros espaços: o do livro, no caso, à capa, e o da realidade, em que também há
meninos imaginativos. As cenas cotidianas aparecem em imagens sangradas,
como que em continuação com o universo já conhecido pelo leitor. A ausência
nessas cenas de moldura convoca o olhar crítico da criança a se estender
indefinidamente no universo, de forma centrífuga, conotando que o
representado é a continuidade do mundo empírico.
Como a obra é marcada pelo hibridismo resultante da mescla de gêneros
textuais, ela dialoga com os quadrinhos: ao apresentar a noite mal dormida do
herói em posições diversas na cama, lutando contra a insônia e suas angústias.
Nota-se na folha dupla (LAROCHE, 2013, p. 24-25), a sequencialidade de ações
que remetem a um travelling, o qual pode ser acompanhado com prazer
gradativo pelo leitor, na mesma proporção do aumento da tensão do herói.
Na folha dupla seguinte (LAROCHE, 2013, p. 26-27), há duas cenas
emolduradas, indicando que a luta de Nícolas com seus desejos de ser um super-
Página | 38 herói se prolonga, mas, por determinação dele, ela finda. Esse findar está
representado na implosão do Super Nico imaginário (LAROCHE, 2013, p. 27). A

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seguir, em cena também na folha dupla, mas sangrada, vê-se o herói sorrindo
diante do espelho, pois descobre a si mesmo, assume sua identidade e sua
responsabilidade na condução de seus atos: “Eu me chamo Nícolas. Eu não sou
grande, eu não sou forte, e, amanhã, eu vou oferecer um buquê de margaridas
para Violeta!” (LAROCHE, 2013, p. 29). No plano verbal, nota-se pela primeira vez
a assunção da primeira pessoa do discurso: “eu”, mostrando que o herói deixa de
fantasiar, de omitir seus desejos e sonhos, e passa a dominar e expressar seu
próprio discurso. Essa folha dupla dialoga com o teatro, pois ao criar em seu
fundo um contorno esfumaçado – um semicírculo – ao redor de Nícolas diante do
espelho, evoca a ideia de holofote, de iluminação que se projeta sobre o herói.
Desse modo, o plano do significante e o do significado expressam a mesma
mensagem libertária: a do empoderamento do protagonista que assume o centro
e o rumo de sua existência.
As cenas seguintes, também, dialogam com os quadrinhos, pois mostram
Nícolas realizando ações pontuais como: organizar, antes de sair de casa, todo
seu material escolar na mochila; eleger outro caminho para a escola, o qual passa
por um bosque distante das pernas dos adultos; colher flores para Violeta
(LAROCHE, 2013, p. 30); comer seu lanche no banco com as pernas trançadas por
debaixo, para não cair com um esbarrão dos colegas (LAROCHE, 2013, p. 31);
enfrentar a tirania do fortão, afirmando que comunicará a opressão ao professor
e, talvez, até ao pai do menino (LAROCHE, 2013, p. 32); finalmente, entregar um
ramalhete de dentes de leão para Violeta (LAROCHE, 2013, p. 33).
A última cena, em folha dupla, mostra o congraçamento e, justamente por
isto, ela está manchada de vermelho. Esta cor emoldura predominantemente
Nícolas e um pouco Violeta. A predominância da cor põe em destaque as
emoções, no caso de Nícolas, a felicidade e a satisfação pelo beijo recebido de
Violeta (LAROCHE, 2013, p. 34-35). No caso da heroína, o agradecimento pelas
flores e a percepção de que é considerada por Nícolas.

CONCLUSÃO

Em síntese, as obras apresentam qualidade estética em seu tratamento do


tema da individuação e na relação de interação e colaboração entre plano verbal
e imagético. Sua abordagem da alienação dos adultos que, em meio urbano,
desrespeitam seus limites, ignorando a criança; da falta de adequação do herói
em seu ambiente escolar e/ou da reprovação de suas atitudes, diz respeito a um
contexto contemporâneo.
O tratamento da temática da individuação, pelo viés da valoração das
potencialidades da criança, apresentadas como autônomas e superiores aos
adultos que as cercam no convívio social, eleva a autoestima do leitor mirim e
confere-lhe coragem para as próprias lutas, em especial, as que exigem mudança
interna, emocional, individual, a fim de lidar com o contexto externo. Para Ana
Margarida Ramos (2015, p. 152), na literatura infantil contemporânea, “a
urbanidade e a agitação das sociedades contemporâneas, reguladas por ritmos
ferozes e avassaladores, podem implicar uma valorização alternativa de um certo
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intimismo e introspeção que perpassa muitas das edições atuais.”

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Justamente, esse intimismo, configurado em reavaliação de si mesmo com
planejamento de novas ações, leva ambos personagens à superação de suas
carências de ordem diversas. Por projeção neles, o leitor mirim empodera-se, por
sua vez, em um processo de superação pelo viés lúdico, contudo, existencial.

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DIALOGISM IN CHILDREN’S TEXTS: NÍCOLAS
AND A ORQUESTRA DA LUA CHEIA
ABSTRACT

This article analyzes the literary book Nícolas, written by Agnès Laroche, illustrated by
Stéphanie Augusseau, and translated by Isabelle Gamin and Rosana Mont'Alverne Neto,
and A orquestra da lua cheia, written and illustrated by Jens Rassmus, translated by Sofia
Mariutti. In order to do so, we use the idea of dialogism by Bakhtin (1995) and Wolfgang
Iser (1990)’s concept of the implied reader. The books are important because their quality
is composed of verbal texts integrated with relevant illustrations for the child reader. The
construction of the identity and family conflicts are presented in stories that don't bring
manichean and predictable speeches. Instead of that, they invite the reader to imagine
and to solve the problems through thinking and action in a world not often very sensitive
to the child's needs. Although the themes are common in children books, both texts are
marked by creative and interesting writing to the child reader.

KEYWORDS: Children’s Literature. Reading. Dialogism.

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REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais


do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud; Yara F.
Vieira. 7.ed. São Paulo: Hucitec, 1995.

BARROS, Diana P. de. “Dialogismo, polifonia e enunciação”. In: ______;


FIORIN,José L. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de
Bakthin. SãoPaulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 1-9.

CAMARGO, Luís H. de. Poesia infantil e ilustração: estudo sobre Ou isto ou


aquilo, de Cecília Meireles. 214 p. Dissertação de Mestrado pela Universidade
estadual de Campinas – UNICAMP, São Paulo, 1998.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes
Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996. vol. 1.

LAROCHE, Agnès. Nícolas. Ilustr. Stéphanie Augusseau. Trad. Isabelle Gamin e


Rosana de Mont’Alverne Neto. Belo Horizonte: Aletria, 2013.

RAMOS, Ana Margarida. Reescrever a morte na narrativa infantil portuguesa


contemporânea. Tropelías: Revista de Teoría de la Literatura y Literatura
Comparada, 23,p. 151-162, 2015.

RASSMUS, Jens. A orquestra da lua cheia. Trad. Sofia Mariutti. São Paulo:
Reviravolta, 2013.

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Recebido: 06 fev. 2017
Aprovado: 13 mai. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5410
Como citar: VALENTE, Thiago Alves; FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. Dialogismos em
textos para crianças: Nícolas e a orquestra da lua cheia. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 32-42, mar.
2017. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

Fala sério, Thalita: é a literatura de massa


uma estratégia eficiente para a formação do
leitor literário?
RESUMO
Jaime dos Reis Sant’Anna O objetivo desse trabalho é discutir se a literatura de massa (LM), em especial os best-
jsantann@hotmail.com
Universidade Estadual de Londrina, sellers seriados como os seis títulos de Fala sério!, de Thalita Rebouças, é uma estratégia
Londrina, Brasil.
eficiente para a formação de leitores literários no Ensino Básico. A preocupação se
justifica devido ao uso crescente da LM por professores de língua materna, sobretudo
quando apoiados por estudos acadêmicos com os quais buscam legitimar suas práticas
docentes. Depois de fundamentar a discussão acerca do conceito de literatura de massa
(Eco; Adorno; Benjamin) e sua relação com a formação de leitores literários (PCN; OCEM;
DCE-PR), a abordagem do tema é proponente: os professores de LP precisam conhecer a
LM, mas não devem tomá-la como ponte para formar leitores na sala de aula; os
professores devem pensar a LM como ponte para conhecer a mundividência de seus
alunos, a fim de estreitar o diálogo e estabelecer a mediação necessários à formação de
leitores literários críticos.
PALAVRAS-CHAVE: Formação de leitor. Literatura de massa. Thalita Rebouças.

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INTRODUÇÃO

A proposta inicial deste artigo é por demais ampla, confesso, para não ter
que reconhecer – e para que, antes de mim, não o façam outros – que é um tanto
pretensiosa. Discutir o ensino de literatura e a formação de leitores literários no
Ensino Básico; avaliar a utilização da chamada literatura trivial ou de massa,
como uma das ferramentas com que se tem trabalhado a formação de leitores,
na sala de aula; refletir acerca do papel mediador do professor de Língua
Portuguesa no processo de formação do leitor literário; criticar a atitude docente,
pretensamente democrática e libertária, quando da opção pela literatura de
massa, como forma de atender às supostas escolhas livres de estudantes
adolescentes; apontar os elementos ideológicos que agem na busca de
legitimação das práticas de leituras literárias contemporâneas; e, finalmente,
ajudar o professor de língua materna na construção de uma postura propositiva
perante o fenômeno. Tudo isso aplicado à realidade brasileira no que tange à
produção literária de massa, sobretudo ao representante nacional do fenômeno
da cultura de massa de best-sellers seriados, como é o caso dos seis títulos da
série Fala sério! de Thalita Rebouças, cuja expressiva vendagem configura amplo
sucesso para os padrões editoriais brasileiros.
Sei que os limites impostos pela natureza ensaística desse artigo não
permitirão que eu dê conta integralmente dos assuntos envolvidos. Por isso
mesmo, talvez fosse melhor ouvir a voz da razão, recuar na empreitada,
desmembrar o assunto em vários artigos, eliminando o risco de superficialidade
intelectual. Ou botar a “mão na massa” e correr os riscos.
Não que seja incompossível a abordagem de todos esses temas em um único
texto, pois ideologia, literatura juvenil de massas, mercado editorial, escolhas
anárquicas, práticas de leitura literária e ensino de Literatura dialogam entre si.
Esses são assuntos que ocupam as preocupações presentes nas propostas de
formação de leitores literários, notadamente representadas por documentos
oficiais norteadores do ensino de língua materna, tais como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), as Orientações Curriculares do Ensino Médio
(OCEM) e as diversas diretrizes curriculares estaduais para o ensino de Língua
Portuguesa. E eu – que venho lidando com essa gama de assuntos em minhas
pesquisas no âmbito da Universidade Estadual de Londrina-PR e em cursos de
formação continuada ministrados para os experientes professores de Língua
Portuguesa da rede estadual de ensino –, prefiro evocar tudo para uma boa prosa
acadêmica sobre formação de leitores literários.
Mas, fala sério, ninguém lê a “obra completa” de Thalita Rebouças
impunemente. E eu (de novo), tantas vezes sério na produção acadêmica, me
pego receoso do contágio dessa casta de literatura, e me pergunto, com medo de
minha própria introspecção, sobre a medida com que esse tipo de literatura
contamina seus leitores. Afinal, “um pouco de fermento leveda toda a massa”. E
me questiono, ainda, a respeito das razões que levam ao levedo uma massa nada
desprezível de pesquisadores, a ponto de defenderem, em congressos de leitura
e em revistas especializadas, a viabilidade de começar um trabalho eficiente de
formação de leitores nas escolas, a partir da adoção de leituras de best-sellers
Página | 45 seriados, como Harry Potter, de Johanne K. Rowling, Crepúsculo, de Stephenie

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Meyer, Percy Jackson, de Rick Riordan ou Diário de um banana, de Jeff Kinney,
dentre outros campeões de venda.
Em 2012, no 3º Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e
Juvenil, sediado na PUC/RS, me surpreendi com a ingenuidade com que um
neófito congressista expunha seu entusiasmo para com as vantagens da
utilização das obras de Johanne K. Rowling nas aulas regulares de Língua
Portuguesa e como tal experiência deveria servir como paradigma para a
formação de leitores literários nas escolas públicas de uma cidade do sertão
brasileiro; mas a estupefação foi irrelevante comparável ao desconforto perante
o silêncio acrítico dos subjugados ouvidos dos demais congressistas.
A questão que subjaz à discussão não é a inegável antipatia crassa nos meios
acadêmicos para com a literatura de massa; nem tão pouco o curto tempo entre
o sucesso editorial destas obras e o trabalho do crítico literário, notadamente
daqueles inseridos no âmbito das pesquisas universitárias, das práticas de ensino
de Língua Portuguesa, sobretudo no que diz respeito à formação de leitores
literários. Com efeito, o problema começa pelo desconhecimento dessa chamada
literatura trivial no meio acadêmico. Lembro-me, aliás, da perplexidade com que
li pela primeira vez a afirmação peremptória de um renomado crítico literário,
cujo nome prefiro não declinar – pois são tantos –, a respeito da obra de um
consagrado autor de literatura de massa: “Paulo Coelho? Nunca li e não gostei”.
Depois, quando percebi que tal atitude, comum no meio acadêmico, também era
contumaz nos cadernos dominicais de cultura dos grandes jornais, fui me
habituando a este tipo de manifestação.
É evidente, portanto, que existe um relativo despeito e defraudação em
relação à literatura que engorda os bolsos dos agentes envolvidos no processo
editorial e do qual a academia não participa; é provável, mesmo, que exista
algum receio intelectual e resistência à exposição em face à “novidade” – do
ponto de vista meramente cronológico, vale registrar – que tais obras
apresentam. Enquanto isso ocorre, os professores de língua materna no Ensino
Básico e demais agentes mediadores de leitura literária se perguntam a respeito
do papel das literaturas de massa, sobretudo os best-sellers seriados, e da sua
eficácia ou não no processo de formação de leitores – nos moldes do leitor
crítico, como preceituam os PCN, as OCEM.

ENTRE BEST-SELLERS E FOLHETINS, O COMPLAC(I)ENTE PROFESSOR E O


PA(Z)CIENTE LEITOR

No entanto, para além das posturas descomprometidas com o rigor


acadêmico, compreendo que o fenômeno contemporâneo da literatura de
massa, ou dos best-sellers seriados de grande sucesso, sobretudo daqueles
voltados para o público juvenil que compõe o corpo discente com o qual lidamos
nas escolas, não é um fenômeno restrito aos tempos atuais. Na verdade, elas
refletem a transferência do mecenato do artista sustentado pelos nobres, até o
fim do século XVIII, para uma nova realidade vivenciada pela sociedade durante a
Revolução Industrial, respaldada por critérios comerciais que atendam às
demandas do público consumidor.
Página | 46 Algo semelhante ocorreu no século XIX, por ocasião da literatura publicada
nos jornais, os chamados folhetins. Muito já se tem escrito sobre a relação entre

R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 43-58, mar. 2017.


o folhetim e a literatura de massa. Para os objetivos deste artigo, basta lembrar
que, popularizados na França, os folhetins receberam edição em livro de obras
originalmente publicadas em jornal, como é o caso de Captain Paul, de Alexandre
Dumas, de 1838. Segundo Moisés a partir daí, “proliferaram as infindáveis
novelas de folhetins, estampadas nos jornais e depois reunidas em volume” e
que o “acolhimento por parte do público fazia que os editores lançassem as
novelas em livro” (MOISÉS, 1997, p. 108).
No Brasil, são ilustrativos os casos de literatura publicada em folhetins –
como O guarani, de José de Alencar, e Memórias de um sargento de milícias, de
Manuel Antônio de Almeida, dentre tantos outros –, e que depois foi lançada em
livro. O texto de Almeida é, na verdade, paradigmático: publicado em folhetins
dominicais do Jornal do Comércio, entre junho de 1852 e julho de 1853, como
bem apontou Jarouche, a narrativa obedeceu à repercussão de cada capítulo
junto ao público, estruturando-se ao sabor da repercussão e interação com os
leitores e ampliando-se de acordo com os interesses dos donos do jornal, que
viam no folhetim um impulso para a subscrição de novas assinaturas (JAROUCHE,
2000, p. 39). Com o tempo, vieram a publicação das Memórias de um sargento de
milícias em livro impresso, a consolidação da fortuna crítica, o reconhecimento
de seu espaço no cânone literário brasileiro e, como consequência consensual,
sua utilização pelos professores de Língua Portuguesa no ensino de Literatura e
na formação de leitores literários.
Segundo apontou Bosi em artigo intitulado “Os estudos literários na Era dos
Extremos”, a literatura de massa do século XIX e a literatura de massa das últimas
décadas distinguem-se, sobretudo, pela tendência para o exagero que a
contemporaneidade demonstra em relação ao tratamento de duas marcas de sua
essencialidade. De um lado, a explosão de uma literatura de efeitos imediatos,
“especular e espetacular”, em que o leitor e o autor perseguem a representação
do show da vida, incrementado e amplificado; do outro lado, aquilo a que Bosi
designou como hiperintertextualidade calcada nas convenções de escrita e
conteúdo, uma hipermediação marcada pela profusão incontida de pastiches,
paródias e aglutinações de subdiscursos (BOSI, 2002, p. 248-256).
A questão que se coloca em relação à literatura de massa atual, assim como
aconteceu com aqueles folhetins que resistiram ao tempo, extrapola o matiz
estético, pois algumas características comuns à literatura de massa
contemporânea podem ser igualmente verificáveis na literatura de massa
representada pelos folhetins do século XIX. Em ambos os casos, demonstram a
capacidade de reprodução e distribuição de bens culturais, a que Walter
Benjamin chamou de “bens de consumo que a indústria cultural vê como
produtos que devem ser explorados segundo seus fins comerciais” (BENJAMIN,
1980, p.8).
A possibilidade cada vez maior de edições com tiragens elevadas,
proporcionadas pelo desenvolvimento da indústria gráfica e das publicações em
formato digital, tornou o livro, inclusive o de ficção, uma mercadoria acessível ao
grande público, consolidando a indústria cultural. Benjamin aponta que
“multiplicando as cópias, elas transformam o evento produzido apenas uma vez
num fenômeno de massas” (BENJAMIN, 1980, p. 8). O fenômeno é bom, pois
franqueia o acesso à cultura àqueles que até então não dispunham de condições
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para se aproximar de um livro, devido aos parcos recursos; no entanto,

R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 43-58, mar. 2017.


intensifica o controle das forças do capital sobre a produção artística e as ações
alienadoras da indústria cultural.
A facilitação do acesso aos “bens de consumo cultural” também não diz
respeito apenas ao aspecto financeiro, tornando o produto cultural uma
mercadoria finalmente alcançável pelo poder aquisitivo das massas. Para além
dos baixos custos possibilitados pela produção em série, a facilitação se dá no
campo da recepção das obras. Autores e editores esforçam-se para desobstruir
os elementos literários responsáveis por quaisquer dificuldades de assimilação do
público.
Nesse sentido, podemos entender que tanto os folhetins do século XIX
quanto a literatura de massa dos últimos 50 anos buscam o que, para Benjamin é
o principal papel desempenhado pelas massas para os interesses do mercado e a
dupla tendência que as caracterizam: “de um lado, que as coisas se lhe tornem,
tanto humana como espacialmente, mais próximas”; e de outro lado, e como
consequência da primeira, uma tendência quase que inevitável para que tais
procedimentos venham a “depreciar a qualidade artística da obra” (BENJAMIN,
1980, p. 9). Em outros termos, tais produções tendem a expor o leitor ao mínimo
de estranhamentos que lhe dificultem a leitura, fornecendo-lhe competência tão
somente para o ato de leitura desse tipo de literatura.
Um olhar atento que coteje obras representativas destes dois momentos – o
dos folhetins e o das literaturas de massa – revela características literárias que se
assemelham. O estudo de Flávio Kothe sobre a literatura trivial (1994), revela
que, em ambos os casos, encontramos determinadas recorrências: os capítulos
são curtos e∕ou pelo menos simétricos, produzidos para atender ao interesse
editorial, seja dos jornais, seja das editoras; as narrativas são lineares, para
facilitar a compreensão do leitor apoucado; os enredos episódicos são
valorizados, para garantir as expectativas dos leitores ávidos por entretenimento;
a linguagem é simplificada, para favorecer um contingente maior de leitores
habituados aos diálogos comezinhos; a construção do herói clássico é calcada no
modelo burguês, com o qual o grande público facilmente se identifica; os valores
éticos são maniqueístas, predominando a distinção clara entre o bem e o mal, o
certo e o errado, o justo e o desonesto, a fim de se tornarem facilmente
identificáveis; a superioridade da nobreza de caráter, nos termos dos moldes
burgueses de referência, é preferível em detrimento aos caracteres usuais; e, por
fim, o final feliz, responsável por dar sentido à vida por meio da obra literária
junto ao público médio.
Caso tomemos os best-sellers seriados contemporâneos, como os
mencionados Harry Potter, Crepúsculo e Percy Jackson, resguardadas algumas
situações peculiares, não precisaremos de muito esforço para observar nessas
obras as características acima apontadas.
No Brasil das duas últimas décadas, quando alguns milhões de brasileiros
foram inseridos no mercado consumidor, o livro tornou-se mais um dos produtos
a que se lhes permitiu o acesso, alavancando a produção. Para comprovar, evoco
dados extraídos de duas fontes distintas, de modo intencional, pois enquanto
uma reflete o fenômeno no âmbito escolar, a outra lida com a leitura literária
para além dos muros da escola. De um lado, as informações obtidas nas três
Página | 48 pesquisas dos “Retratos da Leitura no Brasil”, edições de 2000, 2007 e 2011,
realizadas e coordenadas pelo Instituto Pró Livro, permitem comparar o

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significativo crescimento do mercado editorial, e sobretudo, dos livros de ficção
voltados para o público juvenil. Do outro lado, as informações oficiais do
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) possibilitam verificar o avanço
alcançado nos últimos anos, quando as ações governamentais fizeram com que,
de 2003 a 2012, chegassem às 140 mil escolas cadastradas no Ministério da
Educação, algo em torno de 65 milhões de livros, notadamente de obras
literárias. Diante desse quadro de ampliação do acesso ao livro, não se deve
estranhar que a literatura de massa enquanto parcela substancial da lucrativa
indústria cultural queira estender sua participação na distribuição do produto
livro de literatura, quer no âmbito escolar por meio dos acervos do PNBE, quer no
mercado editorial fora do âmbito escolar.
Nesse contexto mercadológico do livro de literatura juvenil, é necessário
considerar que se nos depara um fenômeno capitalista, em que a literatura é um
produto vendável e o leitor é um consumidor a ser conquistado. De tal maneira,
que se evidencia neste quadro a figura do escritor de best-sellers – produto
literário de sucesso, pressuposto – como um trabalhador atrelado aos
mecanismos alienadores do capital, conforme bem acentuou Eagleton (s.d.), em
Marxismo e crítica literária, citando Karl Marx: “um escritor [...] é um trabalhador
não na medida em que produz ideias, mas na medida em que enriquece a
editora, que trabalha por um salário” (EAGLETON, s.d., p.108). Nessa obra, o
autor inglês discute a perspectiva do escritor que produz a obra de arte
(literatura) de acordo com os interesses de seu patrão (editora), em um cenário
em que o escritor/operário está inserido no contexto do mercado editorial, e cuja
produção visa primeiro e essencialmente ao ganho monetário: “os livros não são
apenas estruturas de significado – são também mercadorias produzidas pelas
editoras e vendidas no mercado com lucro” (EAGLETON, s.d., p.107).
Por isso, a preocupação do pesquisador que busca a construção de um
instrumental teórico para o aprimoramento do trabalho do professor de língua
materna redobra quando ele se depara com a maneira acrítica como a literatura
de massa tem sido apontada por outros tantos pesquisadores como ferramenta
para a formação de leitores literários no Ensino Básico. Cada vez mais, ouço as
vozes emanadas de congressos acadêmicos que discutem a formação do leitor
literário – engrossadas pelas comunicações veiculadas em seus anais e que
ganham a publicidade do ciberespaço –, olvidando-se da natureza mercadológica
que permeia esse tipo de literatura. Trata-se da perspectiva daqueles que têm se
posicionado a favor da opção pelas leituras de obras da literatura de massa como
ferramenta para a formação de leitores nos currículos do Ensino Básico. Alguns
argumentos para fundamentar essa atitude têm se repetido à exaustão, quase
todos mais ou menos marcados por um discurso que Antoine Compagnon (2001)
e Luiz Percival Leme Brito (2003), dentre outros, algures têm chamado de “mitos
da leitura”.
Um desses argumentos afirma tratar-se de uma estratégia (no sentido militar
que a palavra sugere) que considera sábio apropriar-se do gosto médio difundido
pelo mercado editorial entre os adolescentes para formar leitores literários:
tática mais ou menos parecida com o “se não pode com eles, junte-se a eles”.
Em um cenário de “guerra do livro”, esquecem-se os incautos que estamos
lidando com as forças ideológicas do poderoso mercado editorial, cujas armas se
Página | 49
alastram por meio das mais diversas plataformas midiáticas, e que a validação
acadêmica para este tipo de literatura configura-se em mais uma instância
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legitimadora do sistema. Enquadra-se, em termos da avaliação de Theodor
Adorno e Max Horkheimer nos moldes de uma “indústria cultural capaz de
adaptar seus produtos ao consumo das massas e, ao mesmo tempo, determinar a
necessidade do próprio consumo”, conferindo-lhe o recorrente “encanto da
novidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 2010 [1947], p. 19).
Outro argumento, comum aos defensores da adoção estratégica da literatura
de massa como ferramenta para a formação de leitores nos projetos escolares,
distorce a perspectiva de Roland Barthes acerca da “fruição”, tomando o conceito
como se fora tão somente a capacidade de um texto determinar no leitor o
supremo prazer de ler, uma espécie de leitura hedonista. Vale lembrar que, para
Barthes, enquanto o texto de prazer é aquele “que contenta, enche; que vem da
cultura, não rompe com ela e está ligado a uma prática confortável de leitura”, o
texto de fruição é aquele que coloca o leitor “em estado de perda, que
desconforta e faz entrar em crise sua relação com a linguagem” (BARTHES, 1987,
p. 20).
Não é o caso, aqui, de assumir a atitude descabida de desprezar o valor do
prazer da leitura no processo de formação de leitores na fase adolescente da
vida. Todavia, mais que o prazer, deve-se buscar compreender a teleologia
implícita na construção de leitores críticos, como tão bem Marisa Lajolo definiu
um leitor “para quem cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o
que ele já leu, tornando mais profunda sua compreensão dos livros, das gentes e
da vida” (LAJOLO, 2002, p. 52). O que se obsta, portanto, é a hipervalorização do
prazer per si em detrimento da expansão dos horizontes possibilitados pela
leitura, ainda que nascidos de algum desconforto.
No que tange à literatura trivial ou de massa, aplica-se a constatação
formulada por Osakabe & Frederico, e citada nas OCEM (2004, pp. 62-63), para
cujos autores, esse tipo de literatura reflete algumas tendências predominantes
na atualidade e que se confirmam nas práticas escolares de leitura da literatura.
Para eles, a “substituição da literatura difícil por uma literatura considerada mais
digerível” reduz o valor da literatura no processo formativo dos alunos,
produzindo como grave consequência os “deslocamentos ou fuga do contato
direto do leitor com o texto literário”.
Dessa forma, as críticas à literatura de massa e seus desdobramentos, quer
na constituição de um mercado consumidor que se expande junto à emergente
nova classe média brasileira, não se estabelecem como uma antipatia contumaz
da academia diante da literatura que alcança um grande público. Caso contrário,
estaríamos jogando junto com a “água suja da banheira” deste tipo de literatura,
títulos que no passado foram produzidos como literatura de massa e hoje são
tomados como textos canônicos, de “alta literatura”; estaríamos repetindo com a
abordagem da literatura de massa contemporânea, a mesma iconoclastia
reacionária exercida pelos educadores, até os anos 1970, contra os malefícios das
Histórias em Quadrinhos, deixando de compreender – como atualmente
compreendemos – seu papel na formação do público adolescente de nosso
tempo.

PAUSA PARA O ENTRETENIMENTO E TEMPO PARA A PROPOSTA


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Nesse momento das reflexões, penso ser necessário evocar uma pausa para
reafirmar que estamos lidando com uma indústria cultural que reduz literatura a
um produto de divertimento, entretenimento, consumo. E reafirmar que, longe
de tripudiar sobre toda a literatura de massa, pretendemos desafiar os
professores de Língua Portuguesa para que conheçam a literatura de massa a que
seus alunos estão submetidos fora dos muros escolares, a fim de construir pontes
que viabilizem uma docência proponente, rumo à execução do projeto de
formação de leitores que extrapole o puro ato de ler para alcançar a leitura
crítica, transformadora.
Umberto Eco refere-se à produção literária em geral, dividindo-a em dois
tipos peculiares: a “literatura de entretenimento” e a “literatura de proposta”.
Segundo ele – para quem as expressões “literatura de massa”, “baixa literatura”
e “paraliteratura” são inadequadas, tanto quanto as expressões “alta literatura”,
“literatura séria”, “boa literatura” e “literatura erudita” –, a literatura de
entretenimento e a literatura de proposta deveriam ser compreendidas a partir
de dois critérios que as distinguissem, a saber, a originalidade e o esforço.
Para Eco, os critérios originalidade e esforço balizam as Literaturas de
Entretenimento e as Literaturas de Proposta. Não precisamos de muito “esforço”
para depreender que aquela carece de originalidade, enquanto esta é plena de
originalidade; que a primeira busca se enquadrar no gosto médio, a fim de
alcançar um público mais amplo; enquanto a segunda, afastando-se do senso-
comum, visa à inovação, quer seja por meio dos elementos da narrativa
(personagens, enredo, cronotópos, temas), quer seja devido à linguagem mais
elaborada. Dessa forma, enquanto a Literatura de Entretenimento exige pouco
esforço do leitor, cuja experiência é largamente considerada para facilitar a
assimilação por meio da vinculação texto-leitor, a Literatura de Proposta aponta
para permanentes desafios de expressividade e de recursos linguísticos (ECO,
1989, p.104). Entendo, em face dessa distinção, que a formação do tipo de leitor
literário que pretendemos somente ocorrerá a partir da utilização da literatura
que o apresentar à originalidade, à inovação, à linguagem, etc., submetendo-o ao
desconforto do trabalho que isso, nos termos apontados por Eco, acarreta.
Em suma, a perspectiva de Eco vê na Literatura de Entretenimento a
aproximação dos modelos televisivos ou “neo-hollywooddianos” – como
demonstrarei ser o caso da série Fala sério!, de Thalita Rebouças –, produzindo
decalques extraídos destas plataformas; ao passo que a Literatura de Proposta,
como bem sugere sua designação, cria o desconforto no leitor, ao lhe propor o
contato com elementos narrativos inovadores, com aquilo que o desafia à
linguagem elaborada e com o alargamento da mundividência

FALA SÉRIO, VOCÊ ACHA MESMO UMA ESTRATÉGIA EXEQUÍVEL O SALTO


DA LITERATURA DE MASSA PARA A LITERATURA DE PROPOSTA?

Não raras vezes, encontro artigos acadêmicos que defendem a revisão da


postura da escola perante a literatura de entretenimento ou de massa,
argumentando que esse matiz literário poderia fomentar o gosto pela leitura
entre os brasileiros pouco habituados para, em seguida ou concomitantemente,
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tornar-se trampolim para a leitura das chamadas “altas literaturas” ou literatura
canônica.

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Para legitimar tal posicionamento, chega-se a invocar como suporte crítico, o
texto de José Paulo Paes (1987) – precocemente convertido em Teoria do Degrau
– intitulado “Faz falta uma literatura brasileira de massa”, no qual o poeta,
tradutor e ensaísta revela sua angústia quanto ao que chama de “falta de leitores
literários no Brasil”. Nele, Paes lamenta não existir uma literatura de massa
brasileira, “uma literatura média de entretenimento, estimuladora do gosto e do
hábito da leitura”, a partir da qual se alcançaria “o patamar mais alto” da
literatura de proposta, da literatura canônica.
Grosso modo, e levada a hipótese ao extremo, procurei um exemplo recente
de literatura de entretenimento produzida no Brasil e que poderia servir de
degrau para a literatura mais elaborada. Optei – sem pretensões de elaborar um
estudo de caso, claro está – por testar a hipótese aplicando-a a série Fala sério!,
de Thalita Rebouças., cujos seis títulos alcançaram a marca de mais de 1,2 milhão
de exemplares vendidos, multiplicando-se por outros tantos milhões de leitores e
com forte repercussão no ciberespaço. A bem-sucedida recepção dos livros de
Rebouças confirma a sugestão de Umberto Eco para explicar o alcance da
literatura trivial ou de massa: “um livro obtém sucesso somente em dois casos: se
dá ao público o que ele espera ou se cria um público que decide esperar o que o
livro lhe dá” (ECO, 1989, p. 104).
A série escrita por Rebouças – até o momento em que concluo este artigo – é
composta de seis títulos, a saber, Fala sério, mãe! (2004); Fala sério, professor!
(2006); Fala sério, amor! (2007); Fala sério, amiga! (2008); Fala sério, filha!
(2011); Fala sério, pai! (2013). E quando este artigo for publicado ou quando você
o estiver lendo, tanto pode ser que novos títulos da série tenham vindo a público,
quanto também pode ser que a fórmula editorial tenha se exaurido e quase
ninguém mais se lembre – fala sério! – quem foi Thalita Rebouças.
Linguagem simples, acessível; protagonista adolescente; temas pertinentes
no percurso formativo do indivíduo; projeto gráfico agradável: marcas da
literatura infantojuvenil contemporânea, apontadas por Colomer (2003, p. 50-
53), que em maior ou menor grau, estão presentes na coleção de Rebouças.
Some-se a esses ingredientes da literatura infantojuvenil o atrelamento a um
sistema multimidiático retroalimentador em torno da produção e da divulgação
dessas obras, tais como resenhas das obras em jornais de grande circulação e em
blogues formadores de opinião; presença ostensiva da autora em feiras e
mostras literárias; participação em quadros regulares de programas de televisão;
palestras em escolas e clubes de leitura; debates em livrarias especializadas;
entrevistas em talk shows; e, sobretudo, uma paraliteratura refletida em
adaptações para outras linguagens comunicacionais, como teatro e cinema,
tirinhas e histórias em quadrinhos: receita de sucesso de vendas de Fala sério! e
de obras similares.
A série produzida por Rebouças se encaixa no modelo de Literatura de
Entretenimento apontado por Eco, com destaque para algumas marcas
identitárias. Trata-se de literatura caracterizada pelo constante decalque de
modelos extraídos da zona de conforto de uma produção amplamente difundida
por matizes como a televisão ou o cinema. Aliás, a pergunta contumaz nas redes
sociais e artigos veiculados no ciberespaço – uma curiosidade que move fãs e
críticos da obra de Thalita Rebouças – diz respeito a se a protagonista Malu, da
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série Fala sério!, apresentada ao público pela escritora carioca a partir do
primeiro livro da coleção, intitulado Fala sério, mãe!, de 2004, é decalcada
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(alguns ousariam referir-se a plágio) da personagem televisiva Tati, criada pela
humorista Heloísa Perissé. De fato, a adolescente Tati, popularizada pelo bordão
“fala sério”, foi construída com os mesmos moldes caricaturais que também
estão presentes na personagem Malu. Todavia, a personagem Tati estreou três
anos desta, como uma das alunas do programa “Escolinha do Professor
Raimundo”, transmitido pela Rede Globo desde a temporada 2001, mesmo ano
em que ela foi inserida na comédia teatral “Cócegas”. Em 2003, a personagem de
Perissé aparece em livro intitulado O diário de Tati, posteriormente ampliada
para o cinema, em 2012, com filme de título homônimo.
A leitura dos cinco títulos que seguem a publicação de Fala sério, mãe! não
constitui nenhum desafio ou esforço para os leitores. A razão principal é a
escassez de recursos literários, restringindo-se às repetições das fórmulas
consagradas na narrativa do primeiro volume, sobretudo no que se refere à
estereotipização da protagonista, da linguagem coloquial da adolescente carioca
de classe média, em torno da variação dos mesmos temas, cuja manutenção nos
volumes seguintes é estratégica para a “fidelização” de leitores consumidores.
A linguagem dos seis volumes da série também prima pela recorrência de
anacronismos, os quais denotam certo desleixo para com a construção da
narrativa. Exemplo disso são as constantes referências às tecnologias
comunicacionais inexistentes ou de acesso restrito no tempo diegético da
narrativa, e que se reflete em perda de verossimilhança. Publicado em 2004, Fala
sério, mãe! registra, na primeira parte, as memórias da mãe e na segunda parte
as impressões da protagonista até ela completar 21 anos; abrange, portanto, o
período entre 1983 e 2004. Na obra, há uma profusão de referências à internete,
aos blogues juvenis e a aparelhos de CDs em carros populares, mencionados em
episódios que ocorreram há 15 ou 20 anos na vida da protagonista ou de sua
mãe, ou seja, em épocas bem distantes da popularização desta tecnologia. Ou
seja, o texto faz referência ao acesso rápido à internete, em episódios ocorridos
em 1994 (Rebouças, 2004, p. 66), ou 1996 (Rebouças, 2004, p. 78); faz referência
a blogues pessoais em episódio ocorrido em 1995 (Rebouças, 2004, p. 67); e faz
referência até mesmo ao uso de CD player no carro de modelo popular da mãe
da protagonista, em episódio que relata seu período de gestação, que se supõe
ter ocorrido em 1982 (REBOUÇAS, 2004, p. 25).
Para aquém de servir de trampolim ou de “degrau” na escalada rumo à
literatura canônica ou de proposta, o mais previsível é que a literatura de
entretenimento consagrada pelo senso comum forme um leitor hábil apenas na
leitura deste tipo de leitura, cuja falta de saciedade clama ao mercado editorial
mais do mesmo. Até aí, estamos apenas diante de uma Literatura de
Entretenimento que preenche um nicho mercadológico carente de publicações,
que é o do consumidor adolescente, natural e tradicionalmente atrelado às
propostas escolares.
Para os objetivos dessas reflexões, vale lembrar a avaliação de Adorno &
Horkheimer, para os quais o ideal de divertimento propalado pela indústria
cultural responsável por essa literatura de massa “transforma-se numa mentira
patente [que] produz uma lengalenga [...] que as pessoas toleram nos best-sellers
[...] como um ingrediente ao mesmo tempo penoso e agradável” e que tem como
objetivo, ainda segundo os pensadores alemães, “dominar com maior segurança
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na vida real seus próprios impulsos humanos” (ADORNO; HORKHEIMER, 2010
[1947], pp. 12-13).
R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 43-58, mar. 2017.
Em suma, nos seis títulos da série Fala sério!, Thalita Rebouças produz
literatura que atende aos conflitos oriundos do mundo adolescente, diverte com
suas obras destinadas a seu público consumidor, atentando tão somente para as
demandas da indústria cultural. Os mecanismos multimidiáticos retroalimentam
o desejo do leitor e Rebouças proporciona o que o público deseja, garantia de
sucesso.
No bojo de um sistema de coisas em que o mercado costuma ditar práticas e
gostos, gerando o consumo de produtos até então desnecessárias, a fim de
auferir lucros, nada de surpreendente constatar que a publicação de livros pelas
editoras esteja descomprometida com o propósito de formação de leitores
críticos. Como já afirmamos anteriormente, citando Eagleton (s.d.) – e que com
tal frequência é esquecida, que precisamos repetir –trata-se de uma relação
mercadológica em que a editora é o patrão, o escritor é o trabalhador e a
literatura é uma mercadoria.
O que causa estranhamento é a complacente ingenuidade de educadores
que veem neste tipo de produção cultural o aludido degrau para a formação de
leitores críticos, uma postura que vai de encontro às propostas dos principais
documentos oficiais norteadores do ensino de Língua Portuguesa no Ensino
Básico. Para os Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa (PCN), o
objetivo é “a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as
particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções
literárias” (1998, p. 27). Para as Diretrizes Curriculares da Educação Básica:
Língua Portuguesa (DCE), do Paraná, estado em que atuo na formação inicial e
continuada dos professores de Língua Portuguesa, a formação de leitores
literários críticos se concretiza quando o alunado se torna apto para o
“reconhecimento das vozes sociais e das ideologias presentes no discurso”,
quando tem autonomia intelectual para “a construção de sentido de um texto
literário e na compreensão das relações de poder a ele inerentes” (2008, p. 57).
A série Fala sério!, bem como a maioria dos títulos da literatura de massa ou
de entretenimento, produzida no Brasil ou fora dele, que ela representa, não
atende aos objetivos traçados pelos documentos oficiais no que diz respeito à
formação de leitores literários críticos. Os professores de Língua Portuguesa
devem saber de sua existência e conhecer seu conteúdo, a fim de estabelecer
pontes para estreitar o diálogo com nossos alunos adolescentes; mas não fazer
deles a ponte que aproxima o adolescente do professor envolvido na formação
de leitores literários.

CONCLUSÃO

Nesse contexto mercadológico do livro de literatura juvenil, é necessário


considerar que, por um lado, se nos depara um fenômeno capitalista, em que a
literatura foca na diversão para tornar-se um produto vendável e o leitor é visto
como um consumidor a ser conquistado e fidelizado.
Por outro lado, deve-se considerar que a expansão do número de livros de
Página | 54 literatura vendidos/comprados, como vimos, não se transfere automaticamente
para a conquista de leitores literários. Nem tão pouco se presta para a formação

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de leitores literários críticos, nem habilita para o exercício da percepção de vozes
ideológicas e das intencionalidades sub-reptícias que se escamoteiam nesse tipo
de discurso.
A literatura de massa – e seus maiores representantes contemporâneos, os
best-sellers seriados – não são os instrumentos adequados para alcançarmos
esses objetivos propostos pelos PCN, OCEM e DCE-PR. De tal maneira, que se
evidencia neste quadro a figura do escritor de best-sellers (produto de sucesso,
portanto) como um trabalhador atrelado aos mecanismos alienadores do capital.
Diante deste quadro, a primeira grande constatação é aquela que enxerga na
proposta de uso da literatura de massa para a formação do leitor crítico, como se
fora um degrau para se chegar às almejadas “altas literaturas”, uma estratégia
ineficiente e que reflete uma atitude de crassa ingenuidade intelectual;
complacente, mas não consciente.
Trata-se de postura que, sem garantir a eficácia metodológica para alcançar
o objetivo maior, que é construção do leitor maduro, os poucos resultados que
porventura venha obter se convertem em distorção da realidade, cujo maior risco
é servir de instrumento ideológico de legitimação tão desejado pelo mercado
editorial.
As propostas apontadas pelas OCEM e refletidas em DCE para o ensino de
Língua Portuguesa visam ao alargamento do horizonte de expectativas do
alunado, para o amadurecimento da visão de mundo, para a construção do
espírito crítico, formando um leitor que perceba as diversas vozes presentes em
um texto literário. O principal propósito deste artigo foi manter viva a discussão
sobre se a literatura de massa, sobretudo os chamados best-sellers seriados,
como Harry Potter (J. Rowling) ou Fala sério! (T. Rebouças), se configura como
estratégia metodológica capaz de formar leitores literários no Ensino Básico.
A preocupação que moveu a reflexão foi a percepção do crescente uso
dessas literaturas por professores de Língua Portuguesa, cada vez mais apoiados
por estudos acadêmicos que se disseminam no ciberespaço, e com os quais eles
legitimam suas complacentes práticas docentes. Por isso, busquei ajudá-los,
propondo a seguinte atitude: os professores de língua materna precisam
conhecer a literatura de massa – e, o quanto possível, os produtos da indústria
cultural que assediam os adolescentes –, mas não devem trabalhar com obras da
literatura de massa como leitura que objetive tornar-se ponte ou degrau para
formar leitores nas lides da sala de aula; os professores de língua materna devem
pensar a literatura de massa – e, o quanto possível, os produtos da indústria
cultural –, conhecendo os elementos constituintes de sua natureza, como uma
ponte que permita construir um diálogo estreito entre professores e seus alunos,
com vistas à formação de leitores literários críticos.

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Fala sério, Thalita: is the mass literature an
effective strategy to formation of literary
readers?
ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss if reading mass literature – as the Fala sério! series by
Thalita Rebouças – is a good strategy to form literary readers in Basic Education. The
preoccupation concerns the use of mass literature by Portuguese teachers, a practice that
is supported by some academic studies. So, after discussing the concepts of mass
literature (Eco; Benjamin; Adorno) and its relation to a formation of readers (as
recommended by official Brazilian documents, such as PCN, OCEM and DCE), I hope to
assist teachers with a proposal: they need to know about mass literature, but they mustn’t
accept it as a bridge to form readers. The teachers must think mass literature as a bridge
to build a dialogue between teachers and students.

KEYWORDS: Mass literature. Literary readers. Thalita Rebouças.

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Recebido: 22 fev. 2017


Aprovado: 02 mai. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5588
Como citar: SANT’ANNA, Jaime dos Reis. Fala sério, Thalita: é a literature de massa uma estratégia
eficiente para a formação do leitor literário?. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 43-58, mar. 2017. Disponível
em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

FAUSTINO E O CICLO DO DEMÔNIO


LOGRADO NA LITERATURA INFANTIL
RESUMO
Guilherme Magri da Rocha Ainda que um tempo considerável tenha se passado desde o início da produção dos
magri.guilherme@hotmail.com
Universidade Estadual Paulista “Júlio primeiros livros para crianças, no final do século XVII, não são poucas as obras de
Mesquita Filho”, Assis, Brasil.
literatura dita infantil que ainda carregam consigo a chave moralizante da tradição
Maria Angélica Pandolfi pedagógica, que marcou o começo do gênero. Felizmente, este não é o caso de Faustino,
mairapan@gmail.com um Fausto nordestino, texto de Eliane Ganem que recebeu os prêmios Prêmio INACEN de
Universidade Estadual Paulista “Júlio
Mesquita Filho”, Assis, Brasil. Dramaturgia e Patativa do Assaré do MinC, sobre a qual este artigo se propõe a
apresentar uma possibilidade de leitura. Trata-se de um texto polissêmico em que a
escritora constrói como protagonista aquele personagem cuja história é um dos mitos do
individualismo moderno: Fausto. Em nossa análise, discutiremos o personagem
protagonista tendo em vista a dialogia proposta por Ganem ao remitificar este que é um
dos grandes mitos ocidentais. Para isso, utilizaremos como elementos de discussão
estudos como os de Joseph Campbell, Jerusa Ferreira e Darío Henao Restrepo.
PALAVRAS-CHAVE: Fausto. Literatura Infantil. Mitos do Individualismo Moderno.

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INTRODUÇÃO

Não foram poucas as críticas à livraria Waterstones quando esta divulgou um


ranking com os cem melhores livros do século XX de acordo com seu público1.
Dessa pesquisa participaram mais de 25 mil pessoas em toda a Grã-Bretanha.
Pelo que podemos perceber das reações que sucederam a divulgação do
resultado, é impensável para alguns críticos e jornalistas que, numa lista que
inclui clássicos consagrados da literatura ocidental, assinados por nomes como
John Steinbeck, Virginia Woolf, James Joyce, George Orwell e muitos outros, o
primeiro lugar tenha ficado com a série O Senhor dos Anéis, publicada por J.R.R.
Tolkien (1892-1973) entre 1954 e 1955, que hoje contabiliza mais de 150 milhões
de livros vendidos.
“Tolkien... isso é para crianças, não é? Ou para os adultos de raciocínio lento”
(RAPOSEIRA, 2006, p. 15, apud Pearce, 2002, p. 15) exclamou o desconhecido
escritor Howard Jacobson, cuja voz ecoou em comentários como o da jornalista
Susan Jeffrey, do Sunday Times, que considera deprimente os votantes quererem
se refugiar num mundo que não existe (RAPOSEIRA, 2006, p. 15). Dessa forma,
podemos considerar que a legitimação de um gênero tão amorfo e tão extenso
ainda é questionada.
Não podemos nos esquecer de que Tolkien foi precedido por autores como
George MacDonald (1824-1905) e Lewis Carroll (1832-1898), sucedido por
Marion Bradley (1930-1999) e J.K. Rowling (1965-), e ainda publicou
contemporaneamente a C.S. Lewis (1898-1963).
Harold Bloom (2002) diz que o leitor estará mais apto a ler Chekhov, Henry
James e Shakespeare, se antes tiver passado por Edward Lear, Lewis Carroll e
Robert Louis Stevenson. Desse modo, Bloom reconhece que a formação do gosto
pela leitura inicia-se na produção infantil e juvenil. Além disso, conforme
Ceccantini (2004), nesta área há muito por ser feito, sobretudo, no que concerne
à produção infantil e juvenil. Tendo em vista essas questões, apresentaremos
uma possibilidade de leitura de Faustino, um Fausto nordestino de Eliane Ganem,
publicado em 1983.
Para a consecução de nosso objetivo, segmentamos o artigo em quatro
grandes tópicos, separados pela introdução e pela conclusão. Neles: discutiremos
sobre a figura de Jorge, o Fausto histórico; faremos um comentário breve sobre a
presença do mito fáustico no Brasil; apresentaremos a autora e a fábula da obra;
discutiremos uma possibilidade de leitura do texto a partir do “ciclo do diabo
logrado” conforme Jerusa Ferreira (1995).
Neste artigo, entendemos a literatura infantil em consonância com Regina
Zilberman (2003). Para a pesquisadora, o gênero surge em meio às mudanças na
estrutura da sociedade europeia no século XVIII e seus efeitos no meio artístico.
Esse surgimento “decorre da ascensão da família burguesa, do novo status
concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola” (p. 33).

1
A lista pode ser acessada aqui:
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https://www.librarything.com/bookaward/Waterstones+Books+of+the+Century

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O FAUSTO HISTÓRICO E O ESTABELECIMENTO DE UM MITO

Embora o personagem Fausto nos permita diversas remissões ao cânone


essencialmente monolítico ocidental, os hipertextos fáusticos não se restringem,
obviamente, ao cânone literário. Do mangá2 “Death note” ao surgimento do
super-herói Motoqueiro Fantasma, passando pelos mais diversos jogos de
videogame e filmes, como o clássico “O Iluminado” (1980), de Stanley Kubrick
(1928-1999), os arquétipos de Fausto contaminaram, transformaram as mais
diversas formas de arte em todo o globo.
Diferente de outros mitos literários, esse começa com uma figura real, da
qual temos pouca informação: o germano Jorge (1480?, Knittlingen - 1540?,
Staufen im Breisgau), cujo nome, aliás, nem sempre é registrado dessa forma.
Chamado por si mesmo de Magister Georgius Sabellius Faustus Junior, o Fausto
histórico foi contemporâneo de Lutero (1483-1546), Calvino (1509-2564) e
Henrique VIII (1491-1547). Ian Watt aponta treze referências ao Fausto histórico
em Mitos do Individualismo Moderno (1997).
A mais antiga referência que temos dele, conforme Joseph Campbell (2011) é
uma carta escrita pelo beneditino Johann Trithem, cuja reputação também era
associada à magia e ao diabo, ao matemático Johann Windung. Nela, Jorge é
adjetivado como um idiota, que fala diversas balelas, um charlatão que devia ser
chicoteado.
Ainda conforme Campbell, foi o pastor protestante Johann Gast o primeiro,
em seus “Sermones convivales”, a afirmar que os dons sobrenaturais do
personagem, tido como médico, nigromante, quiromante, entre outros, foram a
ele conferidos pelo diabo, que depois o estrangulara. A lenda contada por Gast
popularizou-se entre os protestantes, originando peças de teatro, performances
de fantoches e os Faustbuch (Faust books, livros fáusticos).
Conforme Mason (1989), foi a reação de Lutero, para quem a vida era um
embate infinito com o diabo, Melanchthon e seus seguidores que “acabou por
transformar o Jorge Fausto histórico em uma figura legendária, mitológica, ao
inventar seu pacto com o Demônio e seu terrível desenlace” (p. 31).
Sessenta e oito capítulos curtos inicialmente compuseram o primeiro desses
Faustbuch, de autoria anônima, possivelmente de Johann Spies, que assina a
apresentação do texto, editado em 1587. De variados assuntos, entre histórias de
Jorge Fausto e relatos de quem testemunhou sua magia, o título completo da
obra é também sua súmula: História do Doutor Johann Faust o célebre magro e
nigromante, como ele se vendeu ao Diabo por um período fixado, as estranhas
aventuras que viveu nesse entretempo, alguns atos de magia que praticou, até o
momento em que finalmente recebeu a merecida paga. Extraída na maior parte
dos seus escritos póstumos, recolhidos e impressos para servirem como horrível
precedente, abominável exemplo e sincera advertência a todas as pessoas
presunçosas, curiosas e ímpias. Epístola de Tiago, 4: Sujeitai-vos a Deus, resisti ao
Diabo, e ele fugirá de vós. Cum gratia et privilegio.
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2
Histórias em quadrinhos no estilo japonês.

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Segundo Campbell (1969), o texto esgotou-se rapidamente. No ano seguinte,
além da segunda edição de Spies, surgiram versões em versos e baixo-alemão.
Reimpressões e extensões foram publicadas até 1599, quando surgiu aquele que
o pesquisador chama de “Faustbuch culminante”, de Georg Rudolf Widmann. Diz
ele:

[t]he Faust books are marvelously Protestant. Mephistopheles,


Faust’s devil, appears in the costume of a monk and when Faust asks
for a wife declares that, since marriage is pleasing to God, it would
be a violation of their contact. The magician’s body servant, Wagner,
is the son of a Catholic priest. And when wines and rich meats are
desired, they are produced from the cellars and pantries of the
clergy. There is, furthermore, no sympathy at all for the tragedy of
the protagonist, torn between the wonders of this world and the
promise of eternity. He was wicked, he was damned, and let the
reader be warned by this fate (2011, p. 598).

Para Ian Watt (1997), foi Christopher Marlowe (1564-1593), um dos grandes
nomes do teatro elisabetano, quem estabeleceu o mito com The tragical history
of the life and death of Doctor Faustus, que estreou em 1592, inspirada na
tradução livre de P.F. Gent, apresentada naquele mesmo ano.
Em Marlowe, uma série de alterações é feita com relação àquilo que foi
publicado até então: há a redução dos poderes mágicos do protagonista; são
poucas as passagens moralizantes; são excluídas algumas de suas atividades,
como a previsão do tempo; não há covardia cômica; e ainda que apareça, Helena
é omitida (Watt, 1997, p. 42).
Ainda segundo Watt, são três os tópicos que resumem as contribuições de
Marlowe à substância do fáustico: a escolha da vocação individual, a alienação
acadêmica, e a danação eterna, sobre os quais falaremos noutro segmento.

FAUSTO & O BRASIL

Conforme estudo de Horst Nitschack (2010), as antinomias do sujeito


moderno representado pelo Fausto de Goethe não tiveram repercussão
significativa não só no Brasil, como em toda América Latina, pois o personagem
não tem representação expressiva nessa região. Para ele, o indivíduo
representativo da sociedade brasileira é aquele que Sérgio Buarque de Holanda
chama de “homem cordial”; então,

um tipo de indivíduo que reconhece a lei (exterior e interior) e, em


caso de dúvida, cobra de outros esse reconhecimento, mas não está
pronto para se submeter a ela. Trata-se de um indivíduo que ignora
os conflitos trágicos, os quis são sempre conflitos entre valores e leis
contraditórios, que, por sua vez, cobram um reconhecimento em sua
base (vejam-se os romances de Machado de Assis) (p. 506).

O homem dessa sociedade é, para Nitschack, apoiando-se nos estudos do


filósofo Robert Legros, um partikulares Individuum (indivíduo particular);
diferente, portanto, do protótipo do indivíduo moderno que Fausto costuma
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representar: o indivíduo singular.

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Apesar dos diversos avanços, a sociedade desse indivíduo particular é
caracterizada por

dependências pessoais, sociedade do favor, reconhecimento do


outro em sua posição social e em sua classe social, a distância da lei
de aplicação geral abstrata no cotidiano, o favorecimento dos
contatos e responsabilidades pessoas em contraposição aos
contatos sociais objetivos. (p. 504).

Dessa forma, para Nitschck, o Fausto trágico não tem razão de ser na cultura
latino-americana; seu papel, quando desempenhado, é cômico e popular, como é
o Fausto de Estanislao del Campo (1834-1880), editado em 1866.
Erwin Rosenthal (2010) supõe que Machado de Assis tenha sido o primeiro
escritor brasileiro de grande gabarito a tomar conhecimento do Fausto de
Goethe sem que traduções fossem necessárias, apesar de a temática fáustica ter
marcado presença em alguns poemas do romantismo brasileiro. Contudo, é o
poema dramático “Fausto e Margarida”, editado em 1878, de autoria de Múcio
Tixeira (1857-1926), o primeiro texto brasileiro a sofrer influência direta de
Goethe, recriando sua atmosfera.
Dentre os textos que Rosenthal cita em seu panorama sobre o Fausto no
Brasil, também estão Fausto – ensaio sobre o problema do ser, de Renato
Almeida (1922), o fragmento cômico-dramático de Vicente de Carvalho (1866-
1924), os diálogos com D. Juan de Francisco Pati e Menotti del Picchia, o estudo
Goethe e a Química, de Oswaldo Carvalho (1966) e O protagonismo do Fausto, de
Juarez G. Batista (1968), “transcriações” de Haroldo de Campos (1981) e o poema
de Carlos Nejar (1983), além do estudo mais recentes de Jerusa Ferreira (1995) e
da ficção de Judith Grossmann (1999).

APRESENTAÇÃO DO ENREDO DE FAUSTINO

Doutora em Comunicação Social, Eliane Ganem aposentou-se como


professora universitária. Autora de vinte e seis livros infantis, ela coleciona
diversos prêmios, incluindo o Prêmio Monteiro Lobato da Academia Brasileira de
Letras, que recebeu duas vezes, o Prêmio Bienal do Instituto Nacional do Livro, e
o Prêmio Alfredo Machado Quintella da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil. Em Faustino, um Fausto nordestino, Prêmio Inacen de Dramaturgia, e
Prêmio Patativa do Assaré do MinC, Altamente Recomendável da Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil, acompanhamos a vida do ferreiro Faustino,
que vive sob uma tenda com a mulher e suas filhas, a partir do momento que
recebe a visita de Jesus Cristo e São Pedro, até sua morte.
O drama tem cinco atos: no primeiro, “Na tenda do ferreiro Faustino”,
encontramos o personagem protagonista trabalhando; ele reclama da demora
que terá se realizar uma determinada tarefa, e do trabalho que uma nova cliente
lhe oferece. Depois de chamado de “ferreiro vagabundo” por essa cliente, o
personagem reclama da vida, desgraçada pela profissão, cujo trabalho não traz
lucro. A esposa, Bastiana, reclama da procrastinação do marido, adjetivando-o de
“molenga” e “preguiçoso”: os filhos chegam a passar fome. O personagem
Página | 64 exclama que só quer vida mansa e viver sem cansaço: mesmo não gostando de

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trabalhar, diz que ainda será rico. Dessa forma, ele se apresenta com a figura de
alguém acomodado, preguiçoso, mas que desgosta de sua situação.
A família é surpreendida com a chegada de São Pedro e de Jesus Cristo, que
precisava ferrar o burro com que cavalgava. Convidados a pernoitar na tenda do
ferreiro, eles são recebidos pela família com cachaça, pão, frutas e música.
Quando se junta às mulheres para dançar, Cristo se transforma em mulher,
criança e animal. Ele então agradece a hospitalidade e o serviço do anfitrião e lhe
oferece três desejos; só não tem dinheiro. O personagem então elabora o plano
que se desdobrará ao longo do texto dramático. Ainda que São Pedro alerte
Faustino, este diz ter pensado direito e realiza seus pedidos: que quem sente
num de seus banquinhos só se levante quando ele ordenar; que quem suba no
cajueiro perto da tenda só saia quando ele quiser, e que quem entrar em seu
saco de couro lá permaneça até que ele permita que o sujeito saia. Diz o
personagem: “O acordo de verdade / posso fazer com o diabo / pois o danado já
é rico / isso já está provado / Dinheiro é o que conta / de miséria tô cansado” (p.
38).
Faustino então evoca o diabo, que aparece em três formas ao mesmo tempo
e o perturba. Ele faz um pacto com o personagem, e troca sua alma por luxo e
conforto pelos próximos dez anos.
O segundo ato, “Procissão a Santa Teresa”, é brevíssimo: ao longo de uma
procissão que saúda com cantos Santa Teresa, dois populares repercutem
histórias sobre Faustino. Há tanto ouro no castelo do protagonista, que os olhos
de quem o observa por muito tempo chegam a doer. Eles destacam o luxo e o
conforto que o ferreiro e sua família agora usufruem. No dia seguinte, dez anos
se completarão desde que Faustino mandou construir o castelo.
No próximo ato, “No palácio de Faustino”, o demônio, em forma de mulher,
vai buscar a alma do ferreiro. Ele a convida para sentar no banco que fez parte de
um dos desejos que pediu a Cristo. Hipnotizada pela televisão, a personagem é
enganada duplamente – pelo atrativo do aparelho e por Faustino que, dizendo
que ia resolver sua herança, a prende por três dias – ; percebendo as intenções
do ferreiro ela tenta, em vão, se levantar. Faustino acaba conseguindo que ela
lhe conceda mais dez anos de luxo e conforto, e então a liberta do castigo.
Em clima de denúncia à sociedade das aparências e dos discursos com que os
patrões iludem seus empregados, ele casa uma das filhas com um noivo
disputadíssimo. Pouco depois, é abordado pelo demônio criança, para quem
alega que cumprirá o trato no próximo dia, pois naquele ele fazia aniversário.
Faustino pede para a criatura se esconder no topo do cajuzeiro. Enganado, o
diabo concede mais dez anos ao protagonista, assim sendo liberado de seu
castigo.
No quarto ato, “A praça na hora do comício”, a cena que encontramos é de
Faustino, adjetivado como velho e gordo, discursando a uma plateia. Agora
prefeito, reclama de ter que trabalhar, e se submete ao sistema: lança mão do
discurso que há dez anos questionava no padre que casou sua filha, enchendo os
ouvidos da população com promessas. Quem questiona agora é o diabo, que
assusta a multidão e acusa o prefeito de “palavrório”: quem se beneficia do bolso
do rico é o prefeito.
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Fausto se diz cansado das mentiras e promete ir com o diabo. Oferece-lhe
um banco para sentar-se, mas este recusa, dizendo que não cairá mais nas
armações do pactário. Fausto então diz que o demônio pode levar seu dinheiro,
que está dentro de um saco de couro. Ganancioso, o diabo entra no saco e lá fica
preso. Irritado, jura nunca mais ir atrás da alma do prefeito. “Dentro de você eu
vejo / o bem e o mal misturados / o bem sozinho não existe / o mal fica mutilado
/ mas também os dois ausentes / vejo em ti, seu condenado!” (p. 104).
O ato termina com dois cantadores sumarizando o restante da vida de
Faustino: os netos se formam, a mulher morre, ele se casa com outra, cinquenta
anos mais nova, com quem tem um filho.
O quinto e último ato, “À porta do céu e do inferno” funciona como um
prólogo. O douto leva flores para São Pedro e enxofre para o diabo, mas nenhum
deles o deixa entrar. Jurando construir um lugar em que ninguém manda em
ninguém, ele vaga sozinho, nem santo, nem diabo. “O bem e o mal só existem /
dentro do peito da gente / sozinho o bem não é nada / o mal não há quem
aguente / os dois juntos, misturados / é isso que faz a gente / só existe liberdade
/ se bem e mal se consente” (p. 116).

FAUSTINO, O PERSONAGEM

Diferente do Fausto da danação de Marlowe e do Fausto da salvação de


Goethe, o personagem que protagoniza o texto de Ganem adequa-se naquela
que, por Câmara Cascudo, convencionou chamar-se de “ciclo do demônio
logrado” do folclore brasileiro: ciclo de textos que sobrevivem principalmente no
nordeste do Brasil, são histórias “em que o pactário consegue, pela astúcia,
vencer o diabo com o qual havia pactuado ou em que este sai perdedor”
(FERREIRA, 2010, p. 313).
Jerusa Ferreira, no primeiro capítulo de seu Fausto no horizonte (1995),
aplica no folheto O ferreiro das três idades, de Natanael de Lima, os motivos
elencados por Aarne e Thompson (1955), para apresentar ao leitor as situações-
tipo desse texto, que se encaixa naquele conjunto de obras; são eles: 1. com o
intuito de tornar-se um mestre ferreiro, o protagonista faz um pacto com o
diabo; 2. O protagonista recebe visita de São Paulo, que a ele concede três
objetos mágicos (“a) uma árvore que faz com que as pessoas fiquem presas a ela;
b) um ramo, bastão ou vara com o mesmo poder; c) um saco (surrão), que força a
que se entre nele” (1995, p. 25); 3. o personagem utiliza o(s) objeto(s) para lograr
o diabo; 4. É expulso do céu e do inferno, sendo admitido ao segundo depois de
sua morte, quando perde sua ligação anterior com o demônio. São mudanças
encontradas no hipertexto de Ganem: 1. Jesus e São Pedro como visitantes; 2.
três pedidos são realizados.
A sequência do tipo “ferreiro logra diabo” apresentada por Ferreira é
praticamente a mesma de Faustino, um Fausto nordestino. A diferença está na
inversão da ordem dos dois primeiros segmentos. Primeiro a visita de São Pedro
e Jesus, então o pacto. E não havia, no ferreiro, o desejo de se tornar um mestre
de sua profissão. Na verdade, este detestava o trabalho, aproximando-se mais,
portanto, do folheto Jesus, São Pedro e o ferreiro da maldição, escrito por Sales
Página | 66 Arêda. Ademais, Faustino também não é nem condenado nem absolvido, mas
vaga buscando construir algo que será seu.

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Pelo que podemos depreender, não há nada em Faustino, um Fausto
nordestino que destoe a peça do ciclo “ferreiro logra diabo” seja nas
características dele ou na montagem do texto.
No folheto de Natanal de Lima, o ferreiro é conhecido como Pobreza.
Embora o Fausto de Ganem não seja conhecido desse modo, sabemos de sua
situação inclusive através das rubricas. Na rubrica referente à moradia do
personagem, por exemplo, descobrimos que o ferreiro tem uma tenda e, nela há
somente quatro bancos e uma pequena mesa. Sua esposa também denúncia sua
condição: “a gente é que tá morrendo / seus filho tudo fraquinho” (GANEM,
1998, p. 21).
Assim como em diversos folhetos, o protagonista prefere a riqueza, quando
instigado por São Pedro, e faz seus pedidos em ordem semelhante ao folheto
nordestino e ao relato gauchesco que Ferreira (1995) investiga; ao contrário do
folheto de Natanael de Lima, não há tom moralizante. O tempo é aqui enunciado
por personagens secundárias, como os cantadores no quarto ato, os
participantes da procissão no segundo, e pelo diabo, quando reclama a alma do
pactário. Do espaço sabemos pelas rubricas que iniciam os atos: são em sua
maioria fechados, expressam confinamento.
Dentre tantas características que Ferreira aponta, destacamos o tempo: “o
aprisionamento dos diabos no pilão mágico é de quarenta anos no tronco, e
setenta anos de espera. Cem anos era o tempo de aprisionamento no quarto, de
onde ninguém saia” (1995, p.38). A variante de Ganem para os objetos mágicos e
o tempo entre os encontros do protagonista com seu antagonista são
compatíveis com a vida real do homem, aproximando-se, portanto, do folheto de
Sales Arêda.
Ainda que o texto da autora não se aproxime do folheto “construído em
máximas” de Natanael de Lima, depois do pacto, em ambos, o ferreiro passa a
residir num palácio. O final é o mesmo: o personagem não é aceito no céu, nem
no inferno; o Fausto de Lima também é agente de seu destino, mas se suicida.
Se por um lado a peça de Ganem se aproxima a todo o momento dos
folhetos que integram o “ciclo do demônio enganado” nordestino, por outro,
distancia-se daqueles tópicos elencados por Ian Watt (1997) a partir de sua
leitura da obra de Marlowe: escola da vocação individual, alienação acadêmica e
danação eterna; símbolos que se tornam marginais no processo de remitificação
que culminam no ciclo em que o Fausto nordestino, transformado, se encontra.
Quanto à escolha da vocação individual, ainda que seja Marlowe o
responsável por fixar o pactário no ambiente acadêmico, o Faustbuch já
apresentava, segundo Watt, um personagem que desejava ultrapassar as
fronteiras do conhecimento então vigentes. Não há qualquer resquício dessa
conexão acadêmica – entre o saber intelectual e a magia – em Faustino. Longe de
buscar compreender qualquer tipo de saber, ainda que seja, em certos
momentos, questionador, o ferreiro só busca “vida mansa”, luxo e conforto.
Também é extinta a substância alienação acadêmica: conforme já foi dito, o
arquétipo fáustico dos males das profissões intelectuais não aparece.
Se em Marlowe,
Página | 67
o efeito dramático da peça depende largamente do modo como o
autor trata os itens então considerados fundamentais na guerra que
R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 59-71, mar. 2017.
a Contra-Reforma movia ao hedonismo secular e ao individualismo
antinomiano: a realidade dos horrores do inferno, a imortalidade da
alma e a possibilidade da danação eterna (WATT, 1997, p. 53);

no Fausto de Ganem tais itens nem são considerados pelo protagonista. Se,
como afirma Ferreira (1995), o Fausto de Marlowe é de danação e o de Goethe é
de salvação, o drama nordestino não é nem de um, nem de outro.
Conforme o ciclo em que se insere, Faustino não aceita a mediania, é expulso
por São Pedro do céu – “ Por essa porta num entra / nenhum ferreiro ingrato /
que enganou Jesus Cristo / pintou que nem o diabo / pois no fogo vai arder / vai
queimar deito um rato” (GANEM, 1998, p.112) e do inferno pelo diabo – “Eu não
estou esquecido / do seu banco, desgraçado / pé de caju e saco de couro / onde
sofri condenado / portanto suma de vista / cabra enrolão descarado” (p. 115).
Ainda que nossa intenção tenha sido apresentar ao leitor algumas das
remitificações do mito, é importante que se note que o mito de Fausto, não só no
Brasil, como em toda América Latina, não se restringe ao ciclo popular do
demônio enganado. São exemplos brasileiros de textos que fogem desse perfil
Fausto Mefisto, de Judith Grossman, cujo protagonista é chamado, por Ligia
Chiappini (2010), de “Prometeu ecológico”, figura que retoma para classificar
também o personagem de uma obra do professor Donaldo Schuller, cujo Fausto
não integra o conjunto de textos a que Ferreira (1995) se refere.
No contexto do ciclo americano do diabo logrado evidencia-se no Faustino,
de Eliane Ganem, toda a problemática do homem moderno latino-americano. Se
considerarmos o poder de representação do mito fáustico ao projetar um herói
que se converte em uma espécie de arquétipo do homem moderno, a obra de
Eliane Ganem nos permite mergulhar na velha angustiante impressão de
estarmos sempre em “desvantagem” em relação aos avanços da civilização
europeia e norte-americana. Diante disso, vivemos seguramente um drama
fáustico por excelência. Por meio da literatura fáustica e, sobretudo, da literatura
que forma o ciclo do diabo logrado, realiza-se ficcionalmente a utopia do homem
moderno latino-americano.
Na obra em questão, o protagonista parece promover uma “vingança”
ardilosamente arquitetada contra os obstáculos que nos foram impostos pelo
velho regime colonial ibérico, marcado pela igreja católica e os grandes
proprietários de terra, ambos controlando a massa trabalhadora, como pode ser
observado nas conclusões finais do herói, rejeitado por Deus e pelo Diabo: “Pois
se hoje eu sou sozinho / é que não há Deus nem diabo/ só existe gente
mandando/ e um punhado de escravo/ pois eu vou criar um reino/ sem ninguém
pra ser mandado” (p. 117). A propósito do ideário revolucionário manifestado
por Faustino ao final da narrativa, quando é obrigado a desfazer-se da ilusória
vestimenta dos prazeres capitalistas vivenciados durante o pacto e deparar-se
novamente com sua orfandade, Darío Henao Restrepo (1993) nos adverte, em
sua análise de Pedro Páramo, obra do mexicano Juan Rullfo, que não há “nada
mais fáustico que uma revolução, por suas utopias, seus ideais, e pelas
transformações que desencadeia” (p. 58).
A frustração de Faustino diante de sua nova realidade, pois nem após a
morte encontra morada, seja no céu seja no inferno, responde à dramática
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metáfora que o mito fáustico adquire na nova narrativa latino-americana. Para
Restrepo, retomando Antonio Candido, o escritor brasileiro Graciliano Ramos
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representou como nenhum outro em sua obra a “imensa preocupação com a
situação do homem no Brasil contemporâneo, com seus dilemas e contradições
provocados pelo descompasso de valores numa sociedade que se quer tornar
moderna com um pé no século XVII ou XIX” (p. 67). Seria Faustino, mais um
representante desse nordeste semifeudal que resiste ou está à margem da
modernidade, como tão bem pintou Graciliano Ramos em suas obras?
Obviamente que sim. Desse modo, sua forma de resistência ocorre não apenas
por meio da vivência ilusória do drama fáustico do progresso, mas também pela
via da dialética da malandragem, pois, em sua ânsia de viver a ilusão do
“progresso” o malando Faustino, à semelhança do pícaro espanhol, aprende que
“el mozo del ciego un punto ha de saber más que el diablo” (2005, p. 36).
De forma astuta, Faustino consegue enganar todas as diabólicas criaturas
que vem lhe cobrar a vida, seu bem mais precioso. Pagar com a própria vida o
prazer de gozar dos frutos da modernização, pela qual todos nós derramamos
nosso sangue, não lhe parece algo muito justo nesse contrato que Faustino,
malandramente, consegue desfazer: “No sertão num tem feitiço/ que engane o
tal Faustino/ Viveu até os noventa/ brincando que nem menino/ arrumou só
confusão/ devagar fez seu destino” (p. 105). No universo mítico do sertão
Faustino é quem reina e suas artimanhas comprovam as formas de
transcendência geradas pela dura realidade dessas terras inférteis, mas que
podem ser, ao mesmo tempo, uma fabulosa mina de ouro cultural.
Ao analisar o dramático dilema da modernização metaforizado pelo mito
fáustico na nova narrativa latino-americana, Dario Henao Restrepo exemplifica
por meio de obras como Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, São Bernardo,
do brasileiro Graciliano Ramos, El yo supremo, do paraguaio Roa Bastos, e Cien
años de soledad, do colombiano Gabriel García Márquez, a estreita vinculação
entre a trama fáustica e a problematização dessas realidades marginalizadas,
tanto no campo como na cidade, mostrando-nos como o mito fáustico no novo
mundo serve para retratar o descompasso entre a falsa máscara da modernidade
e as sombras ocultas do homem latino-americano.

CONCLUSÃO

Na possibilidade de leitura proposta por este artigo, configurou-se Faustino,


um Fausto nordestino, de Eliane Ganem, como uma obra pertencente ao ciclo do
demônio logrado do folclore brasileiro, objeto de pesquisa de Jerusa Ferreira
(1995), que caracterizou esse ciclo a partir de motivos recorrentes nos textos
analisados por ela. Assim, a obra de Ganem possui uma estrutura já conhecida,
mas adaptada por ela em sua remitificação; portanto, ora se aproxima ora se
distancia de intertextos fáusticos como o de Sales Arêda ou de Natanael de Lima.
Tal ciclo abrange uma gama de textos latino-americanos, mas o mito não é
representado somente dessa forma nessa região do continente, conforme nos
mostra Ligia Chiappini (2010); isto é, ele não é restrito ao ciclo popular do
demônio enganado. É interessante observar que o texto de Ganem, justamente
por fazer parte de tal grupo, distancia-se daqueles tópicos europeus canônicos
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elencados por Ian Watt (1997), onde Fausto busca clareza, sabedoria acadêmica.
Ao apontarmos para o fato de que o homem latino-americano vive um drama

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fáustico por excelência, observamos que o protagonista de Ganem vivencia o
referido drama do progresso ao arquitetar contra os empecilhos impostos pelo
regime colonial ibérico, estando à margem da modernidade num nordeste
semifeudal. Assim, em Faustino, um Fausto nordestino, vincula-se a trama
fáustica a problematizações de realidades marginalizadas.

FAUSTINO AND THE DELUDED-DEMON


CYCLE IN CHILDREN'S LITERATURE
ABSTRACT

Although a considerable time has passed since the beginning of the production of the first
children's books at the end of the seventeenth century, there are many works of children’s
literature that still carry the moralizing key of the pedagogical tradition that marked the
beginning of genre. Fortunately, this is not the case of Faustino, um Fausto nordestino ,
written by Eliane Ganem , who received the INACEN Prêmio de Dramaturgia and Patativa
do Assaré from the Brazilian Ministry of Culture for the book. This article presents a
reading possibility of Faustino, considering it a polysemic text in which the writer
constructs as protagonist a character whose story consists in one of the myths of the
modern individualism: Faust. This analysis discusses this protagonist in view of the
dialogue proposed by Ganem by referring back to one of the great Western myths. For
that, we will use as elements of discussion studies such as those of Joseph Campbell,
Jerusa Ferreira and Darío Henao Restrepo.
KEYWORDS: Children’s Literature. Faust. Myths of Modern Individualism.

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Recebido: 18 fev. 2017


Aprovado: 13 mai. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5570
Como citar: ROCHA, Guilherme Magri da; PANDOLFI, Maria Angélica.Faustino e o ciclo do demônio
logrado na literatura infantil. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 59-71, mar. 2017. Disponível em:
<https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

Identidade e Diferença em Menina bonita


do laço de fita
RESUMO
Fatima Sabrina Rosa O presente trabalho visa à análise do livro infantil Menina Bonita do Laço de Fita (2001),
sabrinna.rosa@hotmail.com
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, da escritora Ana Maria Machado, tendo como ponto de reflexão os estudos de Munanga,
São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.
Stuart Hall, Goffman e Bakhtin, entre outros. Recorre-se aos estudos sobre identidade e
Bárbara Jucele Rosa diferença a partir da análise das relações étnico-raciais, relações de gênero e classe dentro
barbarajucele@hotmail.com uma perspectiva histórico-social. Aponta para a desconstrução do mito da democracia
Secretaria de Estado do Rio Grande do
Sul, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, racial no Brasil como um dos principais caminhos para a construção de uma identidade
Brasil.
cultural calcada no respeito à diversidade étnica.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Diferença. Preconceito. Alteridade.

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INTRODUÇÃO

O livro Menina Bonita do Laço de Fita (2001), de Ana Maria Machado, conta
a história de uma menina negra e de um coelho branco que sonha em ter uma
filha bem pretinha tal qual a menina. No seu blog pessoal, Machado revela que o
livro não foi inspirado numa menina negra, mas na filha da escritora, que era
bem branquinha. Tampouco a autora tinha a pretensão de colocar em evidência
os problemas histórico-sociais do Brasil. Entretanto, na obra Literatura e
Sociedade, Candido (2000, p.20) revela que

A arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do


meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e
produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua
conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles sentimentos
dos valores sociais.

A literatura infantil contemporânea apresenta um texto aberto a múltiplas


leituras e é (provavelmente) por isso que a menina bonita do laço de fita gerou
discussões em que ora foi visto como aliado na construção de uma sociedade de
respeito à diferença, ora (visto) como aliado da parcela racista, acusado de
fomentar o mito da democracia racial através da positividade da mestiçagem.
Esse paradoxo ideológico, talvez, possa começar a ser entendido se levarmos em
conta o que Munanga (2004, p. 29) diz:

O racismo hoje praticado nas sociedades contemporâneas não


precisa mais do conceito de raça ou da variante biológica, ele se
reformula com base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou
identidade cultural , mas as vítimas de hoje são as mesmas de ontem
e as raças de ontem são as etnias de hoje. O que mudou na
realidade são os termos ou conceitos, mas o esquema ideológico
que subentende a dominação e a exclusão ficou intato . É por isso
que os conceitos de etnia, identidade étnica ou cultural são de uso
agradável para todos: racistas e ante-racistas.

A compreensão de como se dá a representação da diferença no texto de Ana


Maria Machado perpassa as abordagens, nos estudos atuais, sobre a identidade e
a identificação. Nesse sentido, a análise de uma individualidade ou de uma
coletividade pressupõe a noção de alteridade. É a partir do contato com o outro
que se constitui a identidade.
Para melhor entender como essas relações étnico-raciais, relações de gênero
e de classe, representadas pelos personagens (coelho – menina – mãe da
menina) se constituem elementos essenciais para se pensar na construção de
uma nova identidade étnico- cultural, este estudo divide-se em três temas:
Racismo e etnias, Gênero e miscigenação e O cômico em Menina bonita do laço
de fita.

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REFLEXÕES SOBRE RACISMO E ETNIA

Para iniciar a abordagem sobre as questões étnico- raciais em Menina bonita


do laço de Fita, é interessante partir do conceito de raça conforme a definição
extraída de Johnson (1997, p.188):

Raça tem sido frequentemente definida como um agrupamento, ou


classificação, baseado em variações genéticas na aparência física,
sobretudo na cor da pele. A maioria dos sociólogos (e biólogos)
contesta a ideia de que raça biológica seja um conceito que
signifique alguma coisa, em especial em virtude do imenso volume
de cruzamentos, que ao longo da história, caracterizou a população
humana

Dessa forma, o conceito de raça, do ponto de vista biológico, não existe. O


que existe é um conjunto de categorias que fundamentam as desigualdades
sociais.
O fato do racismo não precisar mais do conceito de raça biológica não apaga
de uma hora para outra o fantasma da supremacia racial, isto porque, no
imaginário popular da sociedade contemporânea, a classificação hierarquizante
de raça ainda sobrevive. Ao atrelarem características biológicas a uma escala de
valores morais, psicológicos, os naturalistas dos séculos XVII e XIX desembocaram
numa teoria pseudocientífica que serviu (e serve) para legitimar os sistemas de
dominação. Assim sendo, criou-se um regime de verdades que, apoiado ora por
repressões físicas (o tratamento a que os órgãos de controle social submetem os
indivíduos negros), ora por repressões simbólicas (a ausência de referenciais do
negro numa cultura), empurrou cada vez mais o negro para a base da pirâmide
social, enquanto o branco foi colocado no topo.

Assim os indivíduos de raça “branca”, foram decretados


coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em
função das suas características físicas e hereditárias, tais como a cor
clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios,
do nariz, do queixo, etc, que segundo pensavam, os tornam mais
bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc.
(MUNANGA, 2004, p.21)

Mas o nosso coelho branco nada entende dessas questões. Para ele a
menina era “a pessoa mais linda que ele já tinha visto em toda a vida”
(MACHADO, 2001, p.3). Nesse caso, pode-se pensar que a obra de Ana Maria
Machado inverte a pirâmide social, colocando no topo aqueles que estiveram (ou
estão) na base da pirâmide: as mulheres (negras e pardas) e seus filhos,
sobretudo suas filhas. O texto, então, trabalha na contracorrente, porque, na
posição de subalterno, relegada ao negro, está o coelho branco enquanto a
menina ocupa uma posição de destaque justamente pela cor e pelos traços de
origem negra:

Era uma vez uma menina linda, linda.


Os olhos dela pareciam duas azeitonas
pretas, daquelas bem brilhantes.
Página | 75 Os cabelos eram enroladinhos e bem
negros, feito fiapos da noite.

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A pele era escura e lustrosa, que nem
pelo da pantera-negra quando pula na chuva. (2001, p.3)

A descrição da menina vai contra tudo o que a sociedade define como belo e
bom, já que, no imaginário popular, está introjetada a imagem do negro como
símbolo de feiura e demonização. O texto permite que nos coloquemos no lugar
do outro. Podemos então refletir sobre a imagem inferiorizada, depreciativa que
a sociedade branca criou e que, ao longo dos séculos, se tornou mais um
mecanismo poderoso de opressão. Reconhecer esses mecanismos ideológicos
implica em perceber que os grupos dominantes costumam estabelecer sua
hegemonia inculcando uma imagem inferiorizada nos grupos dominados. O texto
da (Machado) autora reformula essa imagem ao torná-la positiva.
Se, na década de 1970, as teorias de hierarquia de raça foram perdendo o
fôlego, graças aos estudos da genética, da bioquímica e da biologia molecular, em
contrapartida, surge o racismo contra a mulher, contra o negro, contra os
homossexuais, contra tudo o que não se mostrar como normal. O racismo
apresenta, então, uma outra face: a do estigma.
Dos estudos de Goffman (2008), um dos mais importantes trata da noção
de estigma, fundamental como aporte para observações das interações. Segundo
o autor, a palavra estigma era utilizada pelos gregos como referência a alguma
marca corporal que indicasse inferioridade, mas atualmente o termo se refere a
algum “defeito” ou “marca” não relativa ao corpo, mas a algum signo que possa
ser visto como inferiorizante para o indivíduo, que faça com que ele seja avaliado
como menos capaz. Goffman afirma que as sociedades têm o poder de
estabelecer categorizações sobre o que é e o que não é normal. Dessa forma,
desqualifica alguns indivíduos que não estejam adequados ao padrão de
normalidade estabelecido. Esses indivíduos estigmatizados servem como medida
para confirmar a “normalidade“ dos outros. Quando pessoas com estigma se
encontram com pessoas normais, o contato imediato faz com que o estigma seja
percebido como um traço de identidade social, e cria-se, a partir dessa
percepção, uma “suposta normalidade”.
Nesse sentido, o estigma aparece como um defeito que coloca a pessoa em
descrédito. Então, é necessário um controle da tensão, certo manejo da situação
entre o desacreditado e o normal. É possível ocorrer um esforço para que o
estigma não apareça muito com o objetivo de reduzir a tensão provocada pelo
contato direto. É o que o autor chama de acobertamento. Trata-se do cuidado
em restringir a exibição de traços identificadores do seu estigma.

Esse tipo de acobertamento, deve-se acrescentar, é um aspecto


importante das técnicas assimilativas empregadas por membros de
grupos étnicos minoritários como a troca de nome e a operação
plástica do nariz não são só encobrimento, mas também a restrição
da forma pela qual um atributo se coloca no centro das atenções,
porque essa colocação aumenta as dificuldades de se desviar a
atenção do estigma (GOFFMAN, 2008, p. 114).

Página | 76
Goffman compreende o processo de estigmatização também como
dependente da alteridade. É na interação dos indivíduos que o estigma é

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concebido e é nela que estabelece seus efeitos revelando, portanto, seu caráter
estritamente interacional.
Levando em conta o desejo do coelho de ter uma filha pretinha e
observando a ilustração da capa, onde aparece o coelho cheio de corações em
volta, pode-se imaginar que este está apaixonado pela menina e, por isso, deseja
ser negro como ela para, assim, merecer a sua atenção. As estratégias sugeridas
pela menina e que o coelho segue à risca para conseguir ficar negro parecem
fazer analogia ao acobertamento, ao esforço dos grupos inferiorizados em
mascarar os traços que denunciam a sua suposta anormalidade para com isso
pertencerem a outros grupos sociais e obterem vantagens sociais. Um exemplo
disso é o que acontece com um indivíduo para quem, a fim de alcançar um
emprego melhor, com um bom salário, não basta que tenha um diploma, fale
inglês, seja honesto, responsável...; é necessário ter “boa aparência”. E ter “boa
aparência” subentende “ser” ou chegar o mais perto possível do estereótipo
europeu: magro, loiro, alto, de olhos claros e cabelo liso.
O acobertamento implica a amenização do preconceito e, por conseguinte, a
possibilidade de ascensão social. Para isso, os membros dos grupos minoritários
precisam renegar o seu passado, a sua ancestralidade.
Quando o narrador repete três vezes a frase “A menina não sabia, mas
inventou” (p.8, 10,11), este “não saber” pode decorrer não só do fato da menina
ser uma criança, mas também do reconhecimento de que os negros e
afrodescendentes não se apropriaram da sua história porque esta foi, durante
séculos, (e ainda continua sendo) silenciada. Daí o coelho branco insistir tanto
para descobrir qual era o “segredo”. Afinal ouvimos histórias de pessoas
orgulhosas da sua origem alemã, italiana, portuguesa, enquanto as histórias
negras parecem não existir. E quando estas histórias emergem, estão dentro de
um discurso que coloca falas e contribuições dos negros e indígenas atreladas ao
passado. “Assim, o negro fica restrito à cultura negra, entendida como folclórica,
passada, que tem que ser preservada, mas que não tem relação com a vida e as
lutas políticas atuais dos negros” (COSTA, 2009, p.101). O negro é sempre o
“outro”.

Gênero e mestiçagem

Um dos pontos polêmicos do texto de Ana Maria Machado é a questão da


miscigenação, representada pela mãe da menina, uma “mulata linda e risonha”,
(p.15) e pelos filhos do coelho branco e da coelha preta:

Tinha coelho pra todo gosto: branco


bem branco, branco meio cinza, branco
malhado de preto, preto malhado de
branco e até uma coelha bem pretinha. (2001, p.21)

Ao lermos estes dois trechos da história, pode parecer que a visão positiva
da mestiçagem esteja a favor da ideologia da identidade nacional, uma vez que
“a ideologia da identidade nacional brasileira é marcada pela ideia de mistura, de
miscigenação, representada como integradora e homogeneizadora da nação”
Página | 77 (COSTA, 2009, p.97). No entanto, acreditamos que ocorre o contrário: trazer
uma imagem positiva significa reconhecer que é preciso abrir espaços para o

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resgate e para a valorização das culturas minoritárias como parte na formação da
sociedade de ontem, de hoje e de amanhã.
Segundo Costa (2009, p.97), “a miscigenação racial no país é muitas vezes
citada como prova da democracia racial brasileira, ou como antídoto do racismo”.
O mito da democracia racial que se apoia na mistura de raças como base para
afirmar que no Brasil não há racismo, esconde que essa miscigenação se deu pela
exploração sexual das negras e índias pelos homens brancos. Esconde também
que essa positivação da miscigenação teve como objetivo o branqueamento da
sociedade. Conforme a autora, a ideia de miscigenação aparece vinculada de
forma ambígua à formação do Brasil. Por um lado, aparecem as teorias de
autores como Rodrigues (1938), que veem a mestiçagem como um híbrido
desordenado de raças, no qual as potencialidades intelectuais e evolutivas
(próprias dos brancos, segundo o autor) entrariam em choque com o nível
estável de involução em que índios e negros estariam. Assim, a miscigenação
aparece como a desgraça do país que estaria fadado ao subdesenvolvimento em
função da sua natureza mestiça. Por outro lado, a miscigenação aparece como
redentora de nosso país e como ícone da identidade nacional. Pela mistura das
três raças, o tipo brasileiro teria seu sangue progressivamente “purificado” ao
longo de gerações, isso porque os traços europeus tenderiam a sublimar os
traços indígenas e africanos considerados mais débeis.
Por esse último viés da fábula da miscigenação, a contribuição negra bem
como a indígena aparecem como importantes na formação do país, mas
desconsideráveis posteriormente. Além disso, a ideia de mestiçagem sempre
pressupunha que os filhos nasceriam de homens brancos, os quais seriam
responsáveis por sublimar o sangue dos considerados inferiores, com mulheres
negras e indígenas. A própria ideia de mestiçagem está associada à figura
feminina como receptáculo dos genes dominantes dos europeus e cuja
sensualidade possibilitaria a relação inter-racial. Assim, as raças não brancas
ficam vinculadas à ideia de fertilidade e promiscuidade, enquanto a raça branca
estaria vinculada à virilidade, à propensão intelectual e ao progresso
supostamente associado aos elementos masculinos ocidentais.
No texto de Machado, a contribuição racial parece parcialmente
desconstruída, uma vez que a fertilidade é associada ao elemento branco (o
coelho); a beleza e a alegria parecem associadas à mãe da menina, e a
inteligência e inventividade estão representadas na menina negra.

O CÔMICO NA MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA

Para tentar entender como o cômico está representado na obra, é preciso


levar em consideração as ilustrações de Claudius. A ilustração, “como linguagem
visual, dialoga com o texto escrito e acrescenta sentidos, contando também uma
história ou fazendo-se poema” (AGUIAR et al, 2001, p.64). Analisando texto e
imagem, podemos identificar um caráter carnavalesco. Segundo Discini (2006:
p.84), a carnavalização se apresenta como movimento de desestabilização,
subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, seja este pensado como
antagônico ao grotesco criado pela cultura popular da Idade Média e
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Renascimento, seja este pensado como modo de presença que aspira à
transparência e à representação da realidade como sentido acabado, uno e

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estável, o que é incompatível com a polifonia”. Para a autora, a carnavalização é
uma “categoria que pode ser depreendida e analisada nos textos de qualquer
época” (2006: p.90) Nesse sentido, podemos dizer que o mundo oficial seria a
hegemonia da cultura eurocêntrica e de todas as questões que imbricam a sua
manutenção dentro da sociedade, as quais vimos analisando ao longo do texto. A
desconstrução dessa hegemonia pode ser percebida se observarmos com
atenção o riso sério na obra. O riso sério vai aumentando devido às situações
ridículas às quais a menina expõe o coelho:

O coelho saiu dali, procurou uma


lata de tinta preta e tomou banho nela.
Ficou bem negro, todo contente.
Mas aí veio uma chuva e lavou
todo aquele pretume,
ele ficou branco
outra vez. (2001, p.9)

A ilustração mostra o coelho negro; depois, mostra-o novamente branco e


desesperado por causa da chuva:

O coelho saiu dali e tomou tanto


café que perdeu o sono e passou a noite
toda fazendo xixi.
Mas não ficou nada preto. (2001, p.11)

Novamente o uso de duas imagens: na primeira, o coelho tomando muitas


xícaras de café e, na segunda, o coelho sentado no vaso:

O coelho saiu dali e se


empanturrou de jabuticaba
até ficar pesadão, sem conseguir
sair do lugar. O máximo que
conseguiu foi fazer muito cocozinho
preto e redondo feito jabuticaba. (2001, p.13).

Nesse trecho o coelho aparece de barriga inchada e observando, no vaso, os


seus cocozinhos.
Como podemos perceber, a ilustração, em cada um desses trechos, cumpre
duas funções: a de narrar uma ação e a de expressar emoções, nesse caso, a
frustração do coelho pelas tentativas fracassadas.
O conjunto de texto e imagem rebaixa o corpo do coelho, que representa o
elemento branco, tornando-o grotesco. Essa imagem grotesca entra em
confronto porque desconstrói a representação do branco como ideal de
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perfeição, para a qual “se apagam protuberâncias, tapam-se orifícios, retiram-se
excrescências, abstraem-se imperfeições” (DISCINI, 2006, p. 63). Percebemos a

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inversão de papéis, a permuta, uma vez que a sujeira e a condição animalesca
atribuídas ao negro são transferidas para o branco. O acobertamento que os
descendentes das culturas minoritárias fazem para minimizar os traços que
denunciam o estigma é transferido para os brancos. A inteligência, a
inventividade, a beleza, que sempre estiveram em poder só da cultura
eurocêntrica, passam para as culturas minoritárias. Podemos dizer que o caráter
carnavalesco da obra reside aí nesse “desbranqueamento”. Os estereótipos
negativos estão para os brancos, enquanto os estereótipos positivos, para os
negros.
As ilustrações de Claudius reforçam essa inversão porque mostram uma
menina de olhar vivo que está sempre em movimento: dançando, lendo,
brincando, desenhando, enquanto o coelho aparece diante dela numa posição
contemplativa e servil. Além disso, na maioria das páginas, o coelho é
representado como sendo menor que a menina.
O caráter carnavalesco fica claro na obra porque segue a lógica da cultura
popular na qual “os grandes são destronados, os inferiores são coroados”
(DISCINI, 2006, p.55). O texto dialoga também com a cultura popular na medida
que evoca a parlenda “menina bonita com quem você deseja se casar loiro,
moreno, negro, sarará”. No entanto, há uma quebra no ritmo devido à ausência
da rima nas palavras fita/pretinha, proposto pelo quase refrão Menina bonita do
laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? E essa quebra de ritmo
também remete a uma quebra nas estruturas da sociedade, uma quebra,
parafraseando Hall (2011, p.108), de um eu coletivo que estabilizou, fixou e
garantiu uma “unidade” imutável que se sobrepôs “a todas as outras diferenças”
Em contrapartida, a musicalidade favorece a concepção de que as identidades
estão sempre em movimento, em processo de transformação, e a memorização
funciona como um mecanismo formador de uma nova ordem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme foi dito no início do presente artigo, o texto em estudo já foi


acusado de fomentar o mito da democracia racial por apresentar uma imagem
positiva da mestiçagem. Essa positividade não significa incitação ao
conformismo, nem tampouco revela uma visão reducionista do que representa a
miscigenação no país; pelo contrário, o que parece estar sendo proposto é um
reconhecimento de que é preciso problematizar na nossa história as imagens
depreciativas e abrir espaços para o resgate da cultura negra (e indígena) não
como algo exótico, mas como uma cultura que é partilhada e que anseia pelo
reconhecimento.
Através do diálogo entre o coelho e a sua amiguinha, não só se abre o espaço
para essas histórias silenciadas, como se mostra que as culturas, as identidades
não se constituem isoladas, elas são, antes de tudo, compartilhadas.
Além disso, o caráter carnavalesco reside no fato de que o texto de Ana
Maria Machado e as imagens criadas por Claudius apresentam uma
multiplicidade de vozes: vozes brancas resistentes à mudança; vozes negras
exigindo seus direitos; vozes brancas e negras (e de todas as minorias) que se
Página | 80 mostram solidárias na construção de uma democracia real calcada no diálogo e
no profundo respeito às diferenças.

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O coelho e a menina não moram um em frente ao outro, não moram um
acima do outro, eles moram ao lado. E isso parece simbolizar que identidade e
diferença caminham juntas reforçando a necessidade de horizontalização de
quaisquer relações sociais no contexto brasileiro.
Da Menina bonita do laço de fita até as princesas das “Terras da África”,
temos uma longa viagem de volta, na qual a cultura eurocêntrica tem muito para
aprender sobre os valores civilizatórios revelados nos mitos de fundação
africanos.

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Identity and Difference in Menina Bonita do
Laço de Fita
ABSTRACT

The current work aims on the analysis of the children’s book “Menina Bonita do Laço de
Fita”, written by Ana Maria Machado, based on the studies of Munanga, Stuart Hall,
Goffman and Bakhtin, among others. The studies about identity and diference are used
based on the analysis of ethnic and racial relations and on analysis of gender and class
inside a social-historical perspective. The research leads to a deconstruction of the racial
democracy myth in Brazil as one of the main paths to the construction of a cultural
identity built on the respect to ethnical diversity.
KEYWORDS: Identity. Difference. Prejudice. Otherness.

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REFERÊNCIAS

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leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001.

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária.


São Paulo: Queiroz, 2000.

COSTA, Rosely Gomes. Mestiçagem, racialização e gênero. In: Sociologias.


Janeiro/junho de 2009. Ano 11, n. 21.

DISCINI, Norma. Carnavalização. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-
-chave. São Paulo: Contexto, 2006.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade


deteriorada. Rio de Janeiro: TC, 2008.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2011.

JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático de linguagem


sociológica. Rio de Janeiro: Zahar,1997.

MACHADO, Ana Maria. Menina Bonita do Laço de Fita. Ilustração de Claudius,


São Paulo, Ática, 2001.

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo,


identidade e etnia. In: OLIVEIRA, Iolanda (Org.). Programa de Educação sobre o
Negro na Sociedade Brasileira. Cadernos PENESB. Niterói, EdUFF, n.5, p.15-34,
2004.

RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no


Brasil. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

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Recebido: 21 nov. 2016
Aprovado: 03 jun. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5056
Como citar: ROSA, Fátima Sabrina; ROSA, Bárbara Jucele. Identidadde e diferença em Menina bonita de
lalço de fita. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 72-83, mar. 2017. Disponível em:
<https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

MICKEY, ZÉ COLMEIA E CIA: VERTENTES DO


CINEMA DE ANIMAÇÃO (1920 – 2015)
RESUMO
Fernando Luiz Índices expressivos de bilheteria atestam que o gênero animação é aclamado por crianças
fer.luiggi@hotmail.com
Universidade do Oeste Paulista, e adolescentes, embora não integre, de maneira efetiva, o cotidiano escolar, que prioriza
Presidente Prudente, São Paulo, Brasil.
a leitura do cânone literário a partir de uma proposta metodológica ainda didatizadora,
monológica e estruturalista. Os desenhos animados, desse modo, penetrariam nas
unidades de ensino como gênero marginal, vivo e incisivo nas falas e comportamentos dos
alunos. Tendo em vista esse quadro, a presente pesquisa tem como principal objetivo
problematizar as propostas estéticas veiculadas em desenhos tradicionais e
contemporâneos, produzidos, divulgados e comercializados em diferentes países. Para
tanto, a investigação, fundamentada no dialogismo bakhtiniano, analisou duzentas e
quinze produções lançadas ao longo de quase cem anos, comercializadas em DVDs ou
disponibilizadas na internet, especificamente no You Tube. Almeja-se, desse modo, a
partir dos recursos empregados pelos estúdios na tecitura do texto visual e das múltiplas
vozes instauradas ao longo dos desenhos, identificar as propostas artísticas tanto em
narrativas mais “formais”, veiculadas entre os anos de 1960 e 1970, quanto nas produções
mais “arrojadas”, firmadas após a década de 1990, de natureza polissêmica e
emancipatória, marcadas pela metalinguagem, pela polifonia, pela incidência de heróis
excêntricos, por anacronismos, pelas inúmeras alusões à cultura pop e, em especial, pela
intertextualidade.
PALAVRAS-CHAVE: Desenho animado. Estética. Dialogismo. Infância. Ideologia.

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INTRODUÇÃO

A pesquisa Poéticas do Cinema de Animação tem como principal meta


identificar, mapear e problematizar as propostas estéticas que orientaram os
desenhos animados ao longo do século XX. Para tanto, foram abordadas duzentas
e quinze produções, divulgadas entre 1920 e 2015. A rigor, justifica-se em meio à
necessidade de uma reflexão um pouco mais aprofundada acerca dos desenhos
veiculados no cenário contemporâneo em DVDs, TV e internet. Nota-se que tal
gênero quase sempre é abordado como apêndice da história do cinema – o que
elucida a incipiente bibliografia endereçada a tal questão. Na verdade, as
animações destinadas ao público infanto-juvenil inscrevem-se como produtos de
inegável impacto no mercado cinematográfico. Seduzem, encantam e
emocionam mediante roteiros que, marcados pelo hibridismo, transitam da
comédia ao drama, do suspense à aventura, do romance ao musical. Tendo em
vista esse quadro, o estudo que envolve a mencionada temática ocupa-se em
discutir o caráter artístico e ideológico de um conjunto de animações que
circulam (e circularam) dentro e fora de unidades públicas e privadas de ensino,
abordando as propostas estéticas diluídas na composição de roteiros, cenários,
heróis e, sobretudo, personagens crianças.
A fim de melhor problematizar a singularidade do desenho animado como
produto plurissignificativo, altamente artístico, como também sua considerável
relevância para a criança, optou-se por estabelecer uma periodização acerca da
presente temática. Para tanto, dividiu-se as duzentas e quinze produções
consultadas em quatro momentos distintos identificados como: período de
formação, consolidação e legitimação do gênero (1920 – 1960), período de
desenvolvimento e expansão do mercado (1960 – 1980), período das narrativas
híbridas, de tom grandiloquente e épico (1980 – 2000) e, finalmente, o período
pós-moderno (2000 a 2015), marcado pela multiplicidade de vozes de grupos até
então marginais, secundários e excêntricos.

A ORGANIZAÇÃO DA PESQUISA

A presente investigação científica, de caráter documental, fundamenta-se


nas vertentes teóricas que abordam a escritura artística não apenas em sua
imanência, mas também em sua dimensão pragmática, examinando-a,
prioritariamente, em sua historicidade, em sua horizontalidade e em sua
verticalidade. Nessa linha, recorremos aos estudos de Stam (2003), Glaber
(2009), Fossatti (2009) e Denis (2010). Ademais, a pesquisa também se pautou
nas contribuições de Ariès (1978) no que diz respeito, especificamente, ao
conceito de infância aqui tratado, e às pesquisas de Aumont e Marie (2003) e
Xavier (2008), em torno da linguagem do cinema.
Paralelamente, estruturou-se mediante a leitura e compilação de duzentas e
quinze animações, divididas, com base na cronologia, em quatro grupos. A opção
por um quadro tão denso possibilitou mapear, de maneira efetiva, os modos de
representação de crianças, famílias e outros grupos sociais, bem como as
aspirações evidenciadas no mercado, a seleção de signos com base em
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determinado projeto ideológico e, sobretudo, a projeção de obras com propostas

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alternativas ao que era desenvolvido nos eixos Estados Unidos/ Canadá/
Inglaterra.
Ismail Xavier1 pontua que o cinema, embora tenha dado seus primeiros
passos no século XIX, consolidou-se, definitivamente, somente no século XX.
Promovendo o que o autor denomina como espetacularização da vida –
transformando o cotidiano em imagem – tornou-se, em pouco tempo, expressivo
veículo de comunicação de massa. Até a década de 1950, inclusive, caracterizava-
se como principal meio de entretenimento, dividindo tal posto com o posterior
advento da TV. Considerando as particularidades do cinema, a presente pesquisa
optou pela discussão de um ramo particular nesse complexo debate: o cinema de
animação. Os filmes inscritos em tal modalidade limitavam-se, em princípio, ao
público infantil, atendendo, apenas mais tarde, os nichos juvenis e adultos. De
acordo com Denis (2010), a animação constitui uma técnica empregada não
apenas em desenhos, mas também em filmes de ação, terror, comédia e ficção
científica. É o que se observa, por exemplo, em títulos revestidos de expressivos
efeitos especiais, como E.T. O Extraterrestre (1982), O Senhor dos Anéis (2001,
2002 e 2003) e Avatar (2009) – sucessos de bilheteria em que mutantes, duendes
e alienígenas eram criados em computador, animados por uma série de
profissionais e, mais tarde, acoplados às cenas.
Moreno (1978), por sua vez, define o cinema de animação como toda criação
cinematográfica realizada imagem por imagem. No cinema animado, “a
concepção de filme é criada numa dimensão de irrealidade e descontinuidade
não perceptível aos olhos antes de sua projeção em tela” (p.08). Dada a
impossibilidade de abordar o cinema de animação em sua amplitude – tendo em
vista a heterogeneidade de filmes que comportaria – fixar-nos-emos
exclusivamente em uma seção dentro desse sinuoso e envolvente território: o
desenho animado. Para Moreno, caracterizar-se-ia este pela construção de
bonecos ágeis e estudo sistemático de seus movimentos (caminhar, correr,
chorar, saltar, dançar etc).

RÉPLICA E INVENÇÃO: O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO DESENHO ANIMADO

Problematizar os aspectos estéticos de uma época exige do pesquisador


certo rigor metodológico. As orientações da crítica especializada – Zilberman
(1982), Stam (2003), Xavier (2008), Gabler (2009), Fossatti (2009) e Denis (2010),
entre outros – tornam-se imprescindíveis no que tange ao aparato teórico.
Contudo, o cuidado na forma de abordar as animações se faz fundamental, até
para não incorrermos em certos reducionismos. Não pretendemos, com este
artigo, esgotar as possibilidades de análise do cinema gráfico, mas apresentar
indicadores e tendências que possam auxiliar eventuais leituras. As narrativas
mencionadas nesse estudo, inscritas no período de formação, consolidação e
legitimação do gênero desenho animado (1920 – 1960), podem ser reunidas em
três grupos, filiando-se, assim, à fábula moderna, à literatura para crianças e à
comédia de costumes.

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http://tvfacopp.unoeste.br/tvfacopp/online/noticias.php?id=773&pg=52. Acesso em: 20
de janeiro de 2016.

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No primeiro grupo, importa examinar o metamorfismo universal (FOSSATTI,
2009) latente nos episódios. Tudo aqui pode ser criado, recriado e transformado,
independente das leis da física. A elasticidade das personagens possibilita com
que estiquem e encolham, imprimindo graça às histórias. Tanto o coelho Oswald
quanto o Gato Félix (e mais tarde Donald, Pluto, os esquilos Tico e Teco e o
implacável Pernalonga) envolviam-se em múltiplas peripécias e jamais se feriam.
É como se seus corpos fossem imunes a acidentes e invulneráveis à morte.
Atendo-se às narrativas desse período, Silva (2004) polemiza a problemática
da morte dentro das animações. As personagens aqui são agredidas, amassadas e
esmagadas e, na cena posterior, já estão de pé. É como se a morte tivesse sido
desintegrada e se encontrasse extinta do cotidiano das personagens. Para a
autora, muitas séries desse contexto trabalhavam com uma fórmula bem
previsível, não dispondo de nenhum elemento surpresa. Basta observar, como
acentua Silva, as histórias do Papa-léguas, marcada pelos constantes insucessos
do Coiote.
Atrelado a isso, com o advento do som, os episódios passaram a incluir
concertos, óperas e sinfonias, incorporando, muitas vezes, a estrutura de um
videoclipe. O desempenho das personagens era rigorosamente acompanhado
pelas notas das melodias, em suas diversas cadências, o que acabava
dinamizando a ação e estampando uma aura de espetáculo a cada sintagma. Os
conflitos aqui abordavam situações do cotidiano, ambientados em um universo
inocente e radiante. Ainda que os protagonistas não estivessem na condição de
crianças, eles explicitavam, com recorrência, um comportamento pueril, calcado
em uma visão de infância que se baseava na pureza e na ingenuidade.
A inserção de anti-heróis redimensiona a poética das animações, rompe com
a atmosfera festiva tão comum às narrativas conservadoras e introduz episódios
salpicados de violência. É o caso, por exemplo, do coelho Pernalonga e do
pássaro Pica-pau. A violência, porém, não é gratuita. Elucida-se como um
elemento pertinente à cena, aplicado ora para gerar humor, ora para denunciar e
satirizar aspectos da sociedade. Nessa última situação, convém ainda mencionar
o caso do inescrupuloso leitão de A Revolução dos Bichos. Revoltando-se contra
o antigo proprietário do rancho e instituindo-se como novo czar da população até
então oprimida, o porco se tornava um dos principais articulistas na reforma da
Granja Solar. A crueldade com que explorava os animais do rancho acabava
ganhando notoriedade e, como no romance original de Orwell, dava margem
para a reflexão crítica em torno do comunismo.
Dada a complexidade das narrativas desse porte, os fabulários não contavam
com rótulos maniqueístas, mesmo porque as definições de bem e mal pareciam
aqui não estar muito claras. Especialmente quando os protagonistas assumiam a
faceta de anti-heróis e não necessariamente gozavam de um desfecho
harmonioso. Isso não acontecia no processo de releitura dos contos de fadas,
prática iniciada pela Disney na terceira década do século XX. Heróis e heroínas,
em parte realçados por traços europeus, eram perseguidos por madrastas
invejosas, piratas rancorosos e feiticeiras ávidas por desforra. O triunfo das
personagens virtuosas e a ruína de seus antagonistas se acentuavam como uma
fórmula que se repetia a cada narrativa.
Página | 88 Nesse debate, é lícito afirmar que o humor sustentado pelo fabulário foi,
então, substituído por uma verve sentimental, sensível, nostálgica e, muitas

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vezes, ingênua. Fossatti (2009), diante de tal painel, acrescenta que a pureza
quase que virginal de Branca de Neve acabava se contrastando com os outros
ícones femininos da época, principalmente Betty Boop, definida por suas curvas
acentuadas, sexualidade aflorada e vestido curto.
Não obstante, os desenhos pertencentes à linhagem dos contos de fadas
também exploravam o melodrama, emplacando sequencias bastante extensas
em que as personagens se prestavam a números musicais. Possivelmente tal
aspecto se deva à influência do longa O Cantor de Jazz, lançado em 1927. Nader
(2007), inclusive, assegura que Walt Disney mostrou-se entusiasmado com a
obra, uma vez que se tratava do primeiro filme sonoro, cheio de passagens
ilustradas por melodias. Além disso, o gênero musical pouco a pouco caia no
gosto popular, implementando-se como uma tendência no cinema que pouco a
pouco se firmava após a segunda guerra mundial.
As adaptações em questão optavam ainda por atenuar a violência que
predominava na literatura infantil e juvenil tradicional, especialmente nas
escrituras ligadas a Giambatiste Basile e Charles Perrault. Por isso, voltavam-se
continuamente às versões dos irmãos Grimm, condensando as narrativas e
eliminando qualquer passagem sangrenta. Além disso, nota-se que as escolhas da
Disney eram sempre respaldadas no cânone ou nos romances de expressiva
popularidade da época. Os roteiristas desviaram de tal regra apenas com a
produção de Ferdinando, o Touro (1936), Dumbo (1941) e Bambi (1942), de
Munro Leaf, Helen Aberson e Félix Salten, abrindo espaço para uma literatura
não tão divulgada. No geral, os anseios da empresa eram de oferecer às crianças
títulos até então circunscritos às prateleiras das bibliotecas, mas que agora
poderiam ser contemplados nas salas de exibição.
A caricatura humana recebia tratamento especial com Mr.Magoo, Popeye,
Brutus e Olívia Palito. As formas gráficas não se subordinavam ao requinte dos
estúdios Disney, evidenciando uma predileção pelo traço estilizado e pela sátira
ao universo adulto. A rigor, tem-se aqui o que designamos como comédia de
costumes, gênero cuja célula mater se encontrava na dramaturgia e que se
conceituava pela composição de um olhar cínico e contestador em torno das
regras e condutas sociais. O Pateta, da Disney, malgrado se encontrasse na
condição de animal, protagonizava uma série de episódios em que atuava como
condutor de veículos, cidadão exemplar e pai de família. Especificamente nessa
série se entremostrava a projeção de algumas crônicas sobre o cotidiano do
homem estadunidense, interiorano e de classe média. O aspecto universal
contido nos episódios possibilitava com que um público diversificado,
heterogêneo, e não apenas norte-americano, se reconhecesse em cada situação.
O humor nessa tendência se configurava, então, não por intermédio das
estripulias das personagens, como no fabulário, mas a partir de quadros que
tematizavam o distinto cidadão dos anos de 1950, o vovô com problemas de
visão e o conturbado triângulo amoroso formado por um marinheiro, uma
donzela e um estereotipado vilão.
Em outro polo, Superman e sua réplica intertextual, o Super-Mouse,
iniciaram, nos anos de 1940, os primeiros desenhos centrados em heróis
modelares, representante de uma coletividade e tributários da mitologia greco-
romana e das novelas de cavalaria. Na verdade, constituíam animações que
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embarcavam no êxito dos protagonistas oriundos dos quadrinhos. Essa tendência

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ganhará adeptos a partir da década de 1960, em que muitas outras personagens
migrarão das revistas para as grandes telas.
No geral, o cinema gráfico desenvolvido no início do século XX teve como
referência o trabalho de Walt Disney e de sua equipe. Os desenhos que se
impuseram posteriormente, como Pernalonga e Pica-pau, redimensionaram as
propostas estéticas daquele contexto, intercalando personagens não
necessariamente resolutos e dotados de hábitos exemplares, mas como criações
complexas, dinâmicas, contraditórias e bem próximas do comportamento
humano. Nos três grupos (a fábula moderna, a literatura para crianças e a
comédia de costumes), igualmente presente se faz a intertextualidade, sobretudo
no que diz respeito à paródia. As narrativas dialogavam com títulos bastante
conhecidos do grande público, como o acervo lendário das Mil e Uma Noites2, a
saga de Robin Hood3 ou a ópera O Barbeiro de Sevilha4.
Em linhas gerais, bastante expressiva foi a produção cinematográfica, inscrita
no gênero animação, projetada nas salas de exibição entre 1920 e 1960. Nesse
circuito, desenvolveram-se os episódios pioneiros de Popeye, Betty Boop e Gato
Félix, seguidos pela revolução conceptual instaurada por Walt Disney. Revolução
essa impressa nas atuações de Mickey e na veiculação de uma série de desenhos
em torno de títulos consagrados pela crítica – o cânone – e textos praticamente
desconhecidos do grande público. Com o apogeu da Disney, outros estúdios,
ainda que em menor grau, passaram a divulgar narrativas em que a subversão do
anti-herói acabava se impondo na tecitura do discurso, como sugeriam os
desenhos rubricados por Walter Lantz (Pica-pau) e, mais tarde, pela Warner, com
a trupe de Pernalonga.
Ao todo, verificou-se que as trinta e três animações consultadas na presente
fase (1920 – 1960) englobavam núcleos não muito heterogêneos de personagens.
Compilando esse material, especialmente no que diz respeito aos protagonistas,
constatou-se que a maior parte era masculina. Ressaltavam-se, especificamente,
vinte e seis homens, contrastando-se com sete mulheres, identificadas como
Betty Boop, Alice, Luluzinha e as princesas Cinderela, Aurora e Branca de Neve.
Como se vê, a Disney sinalizava uma estética, ainda que requintada, bastante
tradicional, preconizando a fragilidade feminina e a força intempestiva do
homem branco, cristão e intrépido, latente nos arquétipos dos príncipes,
maridos, cavaleiros e pais.
A incidência de heróis modelares se fez igualmente expressiva. Ao todo,
eram vinte e nove protagonistas solidários a essa linhagem – a maior parte
divulgada pela Disney – perante apenas quatro anti-heróis, cuja aparição devia-se
possivelmente ao anseio de delinear propostas alternativas ao cinema de
animação, simultâneo ao império de Mickey Mouse. Em última análise, resta
atentar quanto à explícita presença de adultos ( vinte e cinco no total), revelando
um evidente descompasso face a oito crianças detectadas como protagonistas de

2
Popeye e Mr. Magoo exploravam tal universo, respectivamente, em O Marinheiro
Popeye encontra Ali Babá e os Quarenta Ladrões (1937) e Mr. Magoo e As Mil e Uma
Noites (1959).
3
Página | 90 Conferir Pernalonga Hood (1939).
4
Conferir o episódio homônimo da série Pica-Pau.

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animação. Dessas oito, apenas uma, Peter Pan5, integrava uma narrativa em que
as relações familiares se aproximavam do modelo libertário proposto por
Zilberman (1982), em que a ficção eleva os pequenos heróis a uma posição de
autonomia frente às instâncias superiores e dominadoras dos adultos. Já
Luluzinha, apesar de assimilar, na década de 1940, um modelo alinhado ao viés
eufórico6, constituía um caso à parte. A personagem citada, devido à insubmissão
e à acidez contestadora, parecia resistir à retórica moralizante que regia o curta-
metragem.
Com o tempo, estampou-se, entre 1960 e 1980, um novo quadro que, em
parte, destoaria do que se visualizou até então. A Walt Disney e a Warner
mantiveram a liderança, ao passo que a TV se firmava como principal meio de
entretenimento, e não mais as salas de cinema. Entretanto, não conseguiram
conter o boom de curtas atrelados aos nomes de Willian Hanna e Joseph Barbera,
conhecidos, até aquele contexto, pelas aventuras de Tom e Jerry (1940).

OS SUCESSORES

Configurou-se, de 1960 a 1980 (período de desenvolvimento e expansão do


mercado), um corpus bastante eclético para consulta e posterior
problematização. O corpus em questão abrangia um quadro de cinquenta e cinco
animações que giravam em torno do substrato fabular, dos núcleos familiares, da
ficção de suspense e da trajetória de heróis afinados aos arquétipos dos mitos
gregos. A expansão do mercado evidenciou nichos em outros polos fora do eixo
norte-americano, possibilitando a criação de estúdios em novas realidades, como
a Itália, a França, o Japão e o Brasil.
No geral, havia no exposto período um apego maior para com os heróis
tradicionais, avatares do mito do Superman. Tais heróis, em sua totalidade
homens, brancos e heterossexuais, firmavam-se partidários de valores como
justiça, honra e verdade. Como os heróis gregos, eram aclamados pela
coletividade e embrenhavam-se em missões redentoras. Em contrapartida,
enquanto o Super-Mouse, em 1940, parodiava a ascensão do homem de aço, os
heróis excêntricos e anti-heróis da ocasião surgiam na pele de Pepe legal, Manda-
Chuva, Capitão Caverna e, de modo ainda mais explícito, no Recruta Zero.
Nota-se, ainda, os modelos diferenciados de representação da criança,
caracterizando-a ora como agente irrelevante nas relações familiares (Pedrita e
Bambam), ora como adultos em escala reduzida (Astro Boy). Ainda que sem o
mesmo destaque, situava-se paralelamente o discurso de crianças capazes de se

5
Com o objetivo de discorrer sobre o perfil dos protagonistas, elegemos apenas um
representante emblemático de cada animação. Seria inviável, e praticamente inexequível,
se estivéssemos com um corpus maior. Por isso, vale salientar que, no longa-metragem
mencionado, revelavam-se outras crianças emancipadas, como Wendy, João e Miguel.
Contudo, estamos contabilizando apenas Peter Pan.
6
O modelo eufórico (ZILBERMAN (1982), p.88) privilegia os valores da existência
doméstica com base em uma visão adulta dos fatos. Visão essa em que a assimetria entre
a criança e seus progenitores ou responsáveis se torna bastante acentuada. O adulto, via
de regra, é representado como um sujeito exemplar e detentor do saber, diluindo, ao
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longo de toda a diegese, seus propósitos moralizantes.

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afirmar em meio aos próprios dramas. Aproximar-se-iam, assim, do modelo
emancipatório de infância em suas relações familiares, conforme as reflexões de
Zilberman (1982). Desfilavam, com irreverência, o menino Mogli, o cervo
Rodolfo, a pequena Dorothy e, em maior ou menor grau, o desolado Charlie
Brown e seus companheiros. Impõe-se, entre eles, a concepção de criança como
personagem cuja atuação envolvia uma força geradora que desencadeava toda a
ação, todo o enredo, toda a narrativa.
Ademais, o período de desenvolvimento e expansão do mercado foi
caracterizado pela presença exaustiva dos estúdios Hanna-Barbera. Das
cinquenta e duas animações consultadas, vinte e nove pertenciam a tal grupo,
que acabou se consolidando e ocupando um território até então dominado e
quase monopolizado pelo império Disney.
Ademais, o desenho animado, em sua historicidade, englobava tardiamente
um olhar libertador sobre mulheres, negros, homossexuais e, sobretudo,
crianças. A maior parte das produções, desenvolvidas entre 1930 e 1980,
preconizava uma relação assimétrica do adulto perante meninos, pré-
adolescente e adolescente, exaltando-lhes a suposta submissão. Entretanto,
sabe-se que, nas últimas décadas do século XX, ganhava força uma nova
tendência: a de representar heróis primordiais na condição de jovens altaneiros.
A mediação do adulto como indivíduo experiente e soberano – vale lembrar o
enigmático Mestre dos Magos, de Caverna do Dragão (1983), e o paternal Jagua,
de Thundercats (1985) – passou a ser esporádica. No geral, as personagens
deviam lidar com seus dilemas e superá-los sem a intervenção de anciões, os
quais, ainda que oniscientes, em nenhum momento demonstravam obsessão
superprotetora. É o início do que designamos como período das narrativas
híbridas, de tom grandiloquente e épico (1980 – 2000).
A década de 1980, dialogando com a proposta de revitalizar heróis do
universo da nona arte, caracterizar-se-ia por animações ainda mais realistas,
fixando-se em séries de curta duração, tom aventuresco e apropriação híbrida de
monstros do substrato medieval e alienígenas da ficção científica. Compreende o
período de advento de desenhos como Thundarr, o Barbado1 (1980), Caverna do
Dragão (1983), He-Man (1983), She-Ra (1985), Thudercats (1985), Galaxy
Rangers (1986) e Os Caça-fantasmas2 (1986). Tais desenhos recuperavam a
estrutura dos contos de fadas tradicionais, sublinhando a magia, o maniqueísmo,
os valores medievais e a constância de melhoramentos e degradações inscritas
no itinerário do herói primordial, nítido representante de uma coletividade.
Dos sessenta títulos compilados nessa nova fase (1980 – 2000), verifica-se
que as mulheres, ainda que não ocupassem o posto de protagonistas – exceto
She-ra, a princesa de Ethéria – desfilavam como amazonas, secretárias ou
feiticeiras. Diferenciavam-se das clássicas princesas da Disney, inspiradas na
literatura tradicional dos irmãos Grimm, que rogavam pela presença masculina
para reverenciá-las e livrá-las de determinada ameaça. As novas mulheres, desse
modo, não mais se sujeitavam à imposição do pai, do amante ou do amigo.
Porém, torna-se ainda difícil afirmar, de modo categórico, que aqui se configure
abertamente a emancipação feminina, mas talvez o primeiro passo para o
posterior surgimento de personagens na linha de Fiona (Shrek (2000)). As
próprias heroínas da Disney, a partir desse novo contexto, não serão mais
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representadas com base em valores como recato, pureza e subordinação.
Exemplo disso é Ariel, a protagonista de A pequena sereia (1989), capaz de
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desafiar a tradição imposta pelo próprio pai, o rei Tritão, e lutar contra as forças
do destino para se tornar humana e conquistar o enérgico Érik.
Se a participação feminina ganhava nítidos avanços, o espaço reservados aos
negros e gays entremostrava-se ainda bastante modesto. Panthro, de
Thundercats (1985), Doc, de Galaxy Rangers (1986) e Winston Zeddmore, de Os
Caça-fantasmas (1986), estavam entre as poucas e raras personagens de etnia
africana detectadas. Por outro lado, representações homossexuais ainda eram
tabus e alvos de estereótipos. Vaidoso, de Os Smurfs (1980), tinha
comportamento efeminado e desejos fúteis, ao passo que o antagonista Ele, de
As Meninas Superpoderosas (1998), exibia-se invejoso, hostil e também portador
de exagerados trejeitos afeminados. Sua própria imagem dialogava com as
figuras satânicas do universo bíblico.
No que tange à infância, é fora do contexto das narrativas híbridas que as
crianças recebiam tratamento especial. O jovem Fred Flintstone, o pequeno
Scooby Doo, o engenhoso Perninha, a intrépida Mônica, o criativo Bobby Generic
e o rol de filhotes de dinossauros de Em busca do vale encantado (1988)
deixavam transparecer o discurso de hipervalorização do mundo infantil,
concentrando o enredo em uma linha alternativa à tendência maniqueísta até
então em vigor. Não havia, aqui, o embate entre forças antagônicas – benignas e
malignas – mas o anseio em encontrar mecanismos para solucionar seus
impasses. Em um novo contexto – marcado pelas contribuições teóricas de Jean
Piaget, Sigmund Freud, Lev Vygotsky e Henri Wallon – pais e professores,
responsáveis pela educação e socialização do sujeito, não eram apresentados
como ícones coercitivos, exemplares e autoritários, mas como figuras que
poderiam oferecer liberdade para que filhos e alunos refletissem sobre as
próprias agruras.
No final da década de 1990, a tendência pós-moderna configurou-se
mediante traços bastante singulares, como a ênfase à metalinguagem, a
recorrência deliberada da intertextualidade, a mistura consciente de estilos e a
incidência da alegoria. Assinala-se, em meio à filmografia veiculada no novo
milênio, a presença exaustiva da categoria longa-metragem. Durante muito
tempo, apenas a Disney investia em narrativas mais extensas, liderando o
mercado cinematográfico com a releitura dos contos de fadas. Com o êxito de
Shrek (2000), parte expressiva dos estúdios norte-americanos percebeu a
possibilidade de se inserir no citado mercado, desafiando o império do
camundongo Mickey. O resultado (identificado entre 2000 – 2015) foi o novo
boom do cinema de animação, contabilizando elevadas cifras, roteiros
demorados e criações erigidas ante a técnica da computação gráfica. Desfilavam,
assim, figuras que, gradativamente, tornaram-se familiares aos pequenos
leitores, como o leão Alex, o camaleão Rango, o urso Pô, o tubarão (vegetariano)
Lenny e a hilário Megamente. Em maior ou menor grau, eram obras marcadas
por tópicos que os estudos bakhtinianos classificariam como polifonia,
carnavalização e dialogismo, abrangendo, também, múltiplas referências à
cultura pop e, simultaneamente, à arte erudita.
Desse modo, observou-se nas sessenta e seteo narrativas consultadas que as
verdades eurocêntricas e as certezas extremistas heterocêntricas acabavam
sendo questionadas, desestabilizadas e problematizadas, edificando um discurso
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de tolerância e inclusão sem aderir a nenhum ranço utilitarista ou pedagógico.
Firmando-se como uma expressão audiovisual, abusa de situações cômicas
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(gags), cria momentos em que contracenam atores e toons (cross over) e abre
margem para pequenos videoclipes, ressaltando, assim, momentos mágicos em
que partes do enredo são assinalados, tendo como fundo determinada melodia
de forte apelo popular e comercial. Vigora, paralelamente, um conjunto de vozes
variadas, oriundas das mais diversas camadas sociais, alinhadas ao
multiculturalismo e marcadas pelo uso diversificado da linguagem. Encontravam-
se tais vozes diluídas na participação de uma miríade de personagens (o plebeu
(A nova onda do imperador (2000)), os habitantes do submundo (Por água abaixo
(2006)), os peixes adeptos à cultura negra norte-americana (O Espanta-Tubarões
(2004)), o camaleão pícaro (Rango (2011)), os guetos cariocas (Rio (2011)) e o
universo do Brasil interiorano (O Sítio do Picapau Amarelo (2012)). Por outro
lado, merecem também destaque os modos como o passado histórico –
sobretudo a Idade Média e o Velho Oeste – são tratados face à ironia e ao humor
desregrado. Assim, a historiografia oficial acabava sendo revisitada com
sarcasmo, dessacralizando o mito do mártir emblemático, do herói clássico ou do
cavaleiro astucioso. Evoca-se também o hibridismo explícito na maior parte das
obras consultadas, que não se enquadravam em um único gênero, mas se abriam
para ecléticas classificações, abarcando, simultaneamente, a comédia, o drama, a
aventura e o suspense.

CONCLUSÃO

A trajetória da investigação científica permitiu a visualização de um


complexo labirinto discursivo em que ganhava força, a partir dos princípios da
dialogia, a interação entre o desenho animado e outros sistemas semióticos,
como a literatura, os quadrinhos, a música, o folclore, a mitologia e o cinema
“convencional”. Nesse profícuo lastro cultural, evidenciava-se uma infinidade de
propostas estéticas, transitando da geometrização das formas, com o astuto Gato
Félix, ao figurativismo suntuoso e imponente da Disney; das formas ágeis e
alongadas da Warner ao traço simples, limpo, intercalando poucos movimentos,
da dupla Hanna-Barbera; da pop art e do psicodelismo de O submarino amarelo
(1968) ao tom soturno de Tim Burton; da adaptação dos contos de fadas à
releitura livre e envolvente de O Pequeno Príncipe (2015); do patriotismo
exacerbado de Superman (1940) à contracultura de Asterix, o gaulês (1967) e
Kiriku (1998); da construção caricata e simetricamente majestosa da computação
gráfica ao delineamento de figuras com cores vivas e representação visual pouco
realista, como sugerem Os Simpsons (1990) e Bob Esponja (2000)
respectivamente. Constituíam um complexo corpus com mais de duzentas obras
que, valendo-se da intertextualidade, operavam com a paródia, a alusão, o
reboot e o crossover.

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MICKEY, ZÉ COLMEIA AND COMPANY:
STRANDS OF ANIMATED CINEMA (1920 -
2015)
ABSTRACT

Significant box offices show that the animation genre is acclaimed by children and
adolescents, although it does not make part of the school routine effectively, which
prioritizes reading the literary canon from a methodological proposal that is still
monological and structuralist. The cartoons, in this way, would penetrate the units of
education as a marginal, alive and incisive genre in the speeches and behaviors of the
students. Considering that, the main objective of this research is to problematize the
aesthetic proposals conveyed in traditional and contemporary designs, produced, divulged
and marketed in different countries. Therefore, the research, based on Bakhtin's
dialogism, analyzed two hundred fifteen productions launched during nearly a hundred
years, sold on DVDs or made available on the internet, especially on YouTube. From the
resources used by the studios in the construction of the visual text and the multiple voices
established throughout the drawings, it is hoped to identify the artistic proposals in both
more "formal" narratives, published between the years of 1960 and 1970, as well as in the
more "daring" productions, marked after the 1990s, of a polysemous and emancipatory
nature, marked by metalanguage, polyphony, the incidence of eccentric heroes,
anachronisms, innumerable allusions to pop culture, and especially intertextuality.

KEYWORDS: Cartoon. Aesthetics. Dialogism. Childhood. Ideology.

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REFERÊNCIAS

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DENIS, S. O Cinema de Animação. Lisboa: Edições Texto e Gráfica, 2010.

FOSSATTI, C. Cinema de Animação: uma trajetória marcada por inovações.


Encontro Nacional de História da Mídia: mídias alternativas e alternativas
midiáticas. Fortaleza, 2009.

GABLER, N. Walt Disney: o triunfo da imaginação americana. Osasco: Novo


Século, 2009.

MORENO, A. A Experiência Brasileira no Cinema de Animação. São Paulo: Arte


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NADER, G. A Magia do Império Disney. São Paulo: Editora Senac, 2007.

STAM, R. Introdução à Teoria do Cinema. Campinas: Papirus, 2003.

XAVIER, I. O Discurso cinematográfico: a transparência e a opacidade. São Paulo:


Paz e Terra, 2008.

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Recebido: 29 dez.. 2016
Aprovado: 02 jun. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5260
Como citar: LUIZ, Fernando. Mickey, Zé Colméia e Cia: vertentes do cinema de animação (1920 – 2015).
R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 84-96, mar. 2017. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>.
Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

MULTILETRAMENTOS E HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS: RELATO DE UMA PRÁTICA
RESUMO
Aline Rodrigues da Silva
rodrigues.letras@yahoo.com.br
Neste trabalho, objetiva-se descrever e discutir a respeito da prática de leitura e
Universidade Federal de Mato produção de histórias em quadrinhos (HQs) em uma turma de nono ano do
Grosso do Sul, Três Lagoas, Mato
Grosso do Sul, Brasil. ensino fundamental de uma escola pública em Três Lagoas (MS). Esta proposta foi
Gabriel Lúcius dos Santos
realizada por meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
glsketch@gmail.com (PIBID) e se situa no campo teórico e metodológico da Linguística Aplicada, mais
Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, Três Lagoas, Mato precisamente na visão dos multiletramentos com base em CARDOSO (2005), DOLZ
Grosso do Sul, Brasil.
et al. (2004), CORDEIRO (2004), FIELD (2001), GERALDI (2010), MENEZES DE
Claudete Cameschi de Souza SOUZA (2011), ROJO (2012) e SILVA (1987). Os procedimentos metodológicos
claudetecameschi@gmail.com
Universidade Federal de Mato centram-se na pesquisa-ação a fim de investigar sua própria prática de forma
Grosso do Sul, Três Lagoas, Mato
Grosso do Sul, Brasil.
reflexiva e cooperativa. O corpus consiste nas atividades realizadas em sala e em
dados das discussões que antecederam a utilização de textos. Como resultado,
foram produzidas pelos alunos HQs, as quais revelam as preocupações das suas
realidades locais, assim como a influência exercida pela realidade global. Dessa
forma, percebeu-se que a elaboração das HQs possibilitou momentos de
aprendizagem que foram explorados a partir da multimodalidade e da
multiculturalidade desse suporte textual.
PALAVRAS-CHAVE: Multiletramentos. Leitura. Histórias em quadrinhos.

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa foi fomentada durante discussões no Programa de bolsa de


Iniciação à Docência - PIBID/UFMS - no grupo de Letras / Português CPTL, a partir
da temática "Leitura, interpretação e produção de textos na educação básica",
com o objetivo de refletir sobre as concepções de texto e as formas de leituras
por ele provocadas e mediadas pelo professor. Após leituras e discussões, para
esse trabalho, é possível considerar que o texto como conteúdo de ensino é visto
de diferentes formas, como leitura pronta e única possível e/ ou com o sentido
sendo passível de ser atribuído somente pelo leitor (GERALDI, 2010). Assim, o
texto e o leitor são considerados como condições fundamentais para que o
sentido possa ser produzido, e o papel do professor é mediar o relacionamento
entre eles enquanto objeto de estudos e conhecimento para que a aprendizagem
se concretize nas atividades em sala de aula.
De acordo com Geraldi (2010) o uso do texto na sala de aula convive com a
instabilidade, com imprevistos, acontecimentos e acasos. A partir dessas
afirmações, as aulas descritas neste trabalho consideram as histórias em
quadrinhos (HQ) como um elemento da cultura pop que está presente no
cotidiano do aluno, assim como filmes de super-heróis. Ademais, visaram
explorar o gênero discursivo, a fim de tornar os alunos conscientes da mídia que
consomem; da sua linguagem específica, que, assim como o cinema e a música,
têm características únicas que só podem ser exploradas nesse meio; e
desenvolver condições para a motivação ao hábito da leitura a partir dos
quadrinhos.
Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo descrever e discutir a
prática de leitura e produção de histórias em quadrinhos (HQs), por meio da
teoria dos multiletramentos, em uma turma de nono ano do ensino fundamental
de uma escola estadual da rede pública de Três Lagoas (MS).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

É a partir do conhecimento da língua que se dá a leitura, presente em todos


os níveis educacionais das sociedades letradas. Essa presença começa na
alfabetização; após esta fase o aluno se encontra com livros-textos ao longo da
trajetória acadêmica. Pode-se compreender, assim, o ensino de língua
portuguesa por meio da teoria dos multiletramentos, que de acordo com Rojo
(2012) abrange as práticas de multiculturalidade e multimodalidade.
Ao comentar sobre as reflexões dos precursores da teoria dos
multiletramentos, Rojo (2012) define o duplo significado do prefixo multi- anexo
à palavra letramentos, são eles: primeiro, a pluralidade e diversidade cultural
que, em um mundo contemporâneo globalizado e na diversidade local, devem
conscientizar o aluno da condição de mundo no qual a verdade é relativa, pois
depende da posição que um sujeito ocupa na sociedade e de suas opiniões em
contraste com um mundo de outras opiniões que o cercam. Essa noção de
multiculturalidade precisa se agregar à coleção do aluno, a fim de promover nele
Página | 99 a civicidade, o respeito e a consciência de um mundo divergente e dialético;
segundo, a diversidade de forma, conexão e aplicação das novas mídias

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multimodais e hipermidiáticas em relação à linguagem, visto que essas novas
plataformas de criação de texto possibilitam também novas interpretações e
relações que são únicas desse meio e que promovem a transformação da
linguagem, e que, ao mesmo tempo, pertencem a uma realidade social imediata
a dos alunos, devido à influencia da multimodalidade em grande parte dos textos
de várias mídias, sejam elas a internet, televisão, jornais, revistas, anúncios, e
outros.
Observa-se, conforme a autora, uma carência no ensino tradicional no que
se refere ao não atendimento das necessidades dos multiletramentos, pois é
função da escola promover a ampliação do conhecimento, tornando os alunos
capazes de interpretar diferentes textos que circulam na sociedade, de assumir a
palavra e elaborar textos em diversas situações.
Faz-se necessário, então, promover um ensino de línguas que: ensine a
língua materna e/ou estrangeira para o aluno; ao passo que também o faça
entender que essa língua pertence a uma realidade global e que ele faz ou pode
fazer parte dela, assim como ele também faz parte de uma realidade local, e que
assim pode reconhecer e refletir sobre a sua posição social, com o proposito de
mantê-la ou promover mudanças; que essa língua pode ajudar a definir as
diferenças culturais entre dois povos e promover o debate sobre essas diferenças
e equivalências; e por fim, pode ajudar o indivíduo a se entender como ser social,
apresentando-lhe a linguagem e o texto como um produto de forças ideológicas e
sociopolíticas e orientando como usá-lo (MENEZES DE SOUZA, 2011).
Para tanto, é necessário pensar a leitura enquanto forma de participação
crítica e ativa na comunicação humana, uma participação que somente é possível
de ser realizada por homens, além de ser uma forma de encontro entre o homem
e a realidade sociocultural. Silva (1987) afirma que ao aprender a ler o sujeito
começa a conhecer e compreender as realizações humanas registradas pela
escrita. Declara, também, que ler é compreender, é uma forma de ser. Assim, não
é suficiente decodificar sinais e signos, o leitor comporta-se diante do texto
transformando-o e transformando-se.
Dessa forma, pode-se pensar em aulas de leitura e produção de HQs por
meio da perspectiva dos multiletramentos, a fim de discutir criticamente sobre
estar e agir no mundo. É importante ressaltar que as HQs extrapolam as barreiras
de gêneros textuais em que são usualmente colocadas e tomam uma dimensão
de maior abrangência. As HQs são mídias independentes (com relações e
mecanismos únicos) e, como afirma McCloud (1995), elas têm recebido pouca
atenção, ao contrário das outras grandes mídias.
Por conseguinte, a definição que o autor chega é que as HQs são: "imagens
pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinada a transmitir
informações e/ou a produzir uma resposta no espectador" (MCCLOUD, 1995, p.
9). Imagens pictóricas e outras, pois participam da composição tanto o discurso
verbal quanto o não verbal, intercalados e complementares; justapostas em
sequência deliberada, diferenciando-se da animação e do cinema, que são
sobrepostas em sequência deliberada. Os quadrinhos se organizam em uma
sequência proposital e adjacente (lado a lado), tendo como principal
característica o tempo enquanto espaço entre figuras; e por fim, destinada a
Página | 100 transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador, por que, se
não fosse assim, passariam a ser apenas imagens desconexas.

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A partir dessa definição, consideram-se as HQs como uma grande mídia de
muitas possibilidades visuais e narrativas, que possui estruturas únicas de
manifestação dessas possibilidades e que tem como objetivo mobilizar o leitor
em relação a uma mensagem. Os processos estruturais e visuais, tais como layout
de página, composição, sarjeta e ícones, serão mencionados mais adiante no
texto, visto que são eles os determinantes do final do processo. Por outro lado, as
estruturas narrativas e estratégias, de veiculação de ideias são relevantes nesse
primeiro momento, pois constituem a fase inicial do processo de composição do
cerne das HQs, ou seja, a sua história.
Assim, identificam-se alguns gêneros textuais (entre eles: a sinopse, o
argumento e o roteiro) que compõem o processo da criação da história de uma
HQ, muitos deles amplamente utilizados no ambiente profissional de produção.
Ao pensar que a história pode se desenvolver de várias maneiras, dependendo do
processo criativo do autor, para Field (2001) é inevitável a conclusão de que
qualquer parte do processo possa ser pulado ou acrescentado, a depender da
necessidade de quem o desenvolve, entretanto é possível generalizar a ideia de
planejamento e de crescimento gradual de complexidade da história.
O processo de criação de história se inicia na composição da ideia em uma
frase simples que contenha o personagem principal, seu objetivo e aquilo que o
impede de alcançá-lo. É utilizado o termo story-line para se referir a esse tipo de
texto. Em seguida, a sinopse entra como plataforma de expansão da story-line, na
qual será acrescentado um número maior de detalhes vitais à história, como a
ambientação, os personagens secundários, uma maior descrição dos objetivos e
obstáculos, assim como do percurso que a história irá percorrer, incluindo o seu
clímax e seu desfecho.
A partir da expansão da sinopse, desenvolve-se o argumento, fazendo uma
descrição ação por ação de todo o arco dramático da história, ainda sem
diálogos, entretanto já com descrição de cenário, ação e reação e detalhes
básicos.
Em seguida, há a transformação do argumento em roteiro, que acrescenta
uma perspectiva distinta: a organização visual começa a interferir na narrativa da
história, ou seja, o roteiro se caracteriza pela descrição, página por página,
quadro por quadro, de diálogos, cenário, ações e reações da história. O insumo
de gramática visual no processo de roteiro ainda é simples, porém, a partir desse
ponto, a narrativa cede boa parte do seu espaço para os aspectos visuais típicos
das HQs. Esse processo visual tem início de fato na elaboração do Story-board,
em que o roteiro serve de base para ser efetuado o planejamento visual das
páginas, a disposição e o tamanho dos quadros, bem como os elementos que os
compõe.

METODOLOGIA

Com base em experiências anteriores de criação e aplicação de Sequência


Didática (SD) de Dolz e Schneuwly (2004), constatou-se a não necessidade de
seguir este completamente, pois as salas são heterogêneas e apenas o
planejamento prévio e uma expectativa de produto não são suficientes. O
Página | 101 interessante para esse trabalho é o processo, que é constante e permite a
manipulação de alguns gêneros textuais e conteúdos diferentes, nesse momento

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que se dá o processo de aprendizagem, o produto é uma consequência. Também,
este artigo, resultado de uma prática, não se restringiu em trabalhar o mesmo
conteúdo na produção inicial e refiná-lo até a produção final, nem o mesmo
gênero textual dentro das suas especificidades, mas perpassou por alguns
gêneros e conteúdos que permeiam a produção de uma HQ: desde a concepção
da ideia e a elaboração de uma sinopse da história, junto ao estudo desse gênero
direcionado aos fins das HQs, até a produção artística, concomitante com os
conteúdos de gramática visual e textual que as regem.
Durante a regência das aulas, foram selecionados os seguintes gêneros
textuais para ilustrar o processo de criação de uma HQ: sinopse, argumento e
roteiro. Estes são justificados pelo caráter de planejamento e progressão, o que
não exclui a possibilidade de caminhos diferentes, mas que não foram tomados
nesse trabalho.
Esta proposta situa-se no campo teórico e metodológico da Linguística
Aplicada, mais precisamente na visão dos multiletramentos. Os procedimentos
metodológicos centram-se na pesquisa-ação, ao passo que é de caráter social e
educacional, a fim de investigar sua própria prática de forma reflexiva e
cooperativa. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, uma vez que
adotamos como procedimentos (1) pesquisa bibliográfica pertinente; (2) visita ao
estabelecimento escolar para contato e conhecimento da turma; (3) elaboração
de uma sequência de ensino; (4) regência de quatorze aulas em uma turma de
nono ano; (5) descrição das aulas aplicadas; e (6) interpretação e discussão dos
fatos/procedimentos das aulas, a partir da proposta teórica apresentada.
O corpus consiste nas atividades realizadas em sala e em dados das
discussões que antecederam a utilização de textos, em uma classe do 9º ano do
ensino fundamental da cidade de Três Lagoas (MS). O trabalho em campo dessa
pesquisa materializou-se por visitas à Unidade escolar para a aplicação de aulas,
que aconteceram por três semanas durante o primeiro semestre de 2016,
permitindo leitura, reflexão e discussões. Ademais, as produções foram feitas em
equipes, que são mencionadas durante as discussões como E (1), E (2), E (3), E (4)
e E (5).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A sequência de ensino foi planejada para doze aulas, o que na realidade se


mostrou insuficiente, estendendo-se para quatorze, devido à necessária
adaptação de cronograma baseada na realidade da turma. As aulas estão
descritas a seguir de forma a abordar o seu planejamento e como realmente foi a
sua aplicação na turma, a fim de demostrar a instabilidade das salas de aula, ao
passo que as turmas são heterogêneas, o que faz com que as aulas sejam
repensadas a cada novo acontecimento.

Histórias em Quadrinhos na Biblioteca Escolar

A primeira aula, intitulada "Leitura de HQ na Biblioteca", ocorreu como


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planejada, realizou-se a apresentação dos pibidianos e das aulas que se
seguiriam. Também, rapidamente, os alunos tentaram responder o que é uma
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história em quadrinhos com comentários como: "é uma história com desenhos" e
"é uma história com super-herói".
Em seguida, foram à biblioteca, onde se praticou a leitura de histórias em
quadrinhos, considerando esta como uma ponte para tomada de consciência e
um modo de existir no qual o indivíduo compreende e interpreta a expressão
registrada pela escrita e passa a compreender-se no mundo (SILVA, 1987). Após a
leitura, as respostas dadas pelos alunos sobre o que é essa mídia foram
retomadas e discutidas, a fim de (re)conceituar o que seria HQ, desta vez com a
experiência de leitura. Desde esta aula, os alunos foram instigados a pensar em
uma história em quadrinhos que gostariam de escrever.
Esta aula teve como objetivo mediar o contato do aluno com o acervo de
histórias em quadrinhos para aumentar o seu repertório de leitura e estabelecer
a familiaridade tanto com o gênero quanto com a proposta. Notou-se o interesse
dos alunos pela leitura de HQs, pois leram com atenção na biblioteca, quando
terminaram a leitura de um HQ iniciaram outro e ao final da aula reclamaram a
respeito da falta de tempo para lerem mais, pois foi apenas uma aula.

Ideias e Sinopses

Na segunda aula foi feita a recapitulação do objetivo das aulas, o de


produção de histórias em quadrinhos, apontando que para alcançar esse objetivo
seria necessário passar por um processo que consiste em: concepção da ideia,
elaboração da síntese/história e personagens, roteiro, storyboard, desenho/arte
final e cor, balões e letras e finalização.
Em seguida, iniciou-se a primeira parte do processo, a concepção da ideia e
da síntese. Para tanto, planejou-se separar a classe em duplas ou trios e oferecer
vinte minutos para a criação de possíveis histórias, escrevendo de três a cinco
linhas sobre elas. Porém, houve a necessidade de dividir a turma em grupos
maiores, com cinco pessoas, para que o trabalho fosse realizado de forma
colaborativa entre os alunos, além disso, o tempo previsto não foi o suficiente
para o término dessa atividade, que precisou ser terminada na aula posterior.
Esperava-se que os alunos contassem suas ideias para a sala toda e que,
democraticamente, as quatro melhores opções fossem selecionadas, após esse
momento os alunos escolheriam com qual das histórias iriam trabalhar.
Entretanto, apenas um grupo apresentou sua ideia, E (2), descrita a seguir, para
toda a turma:

Uma história de basquete, de como o esporte ajudou um menino


recém-matriculado a descobrir seu lugar na escola e superar as
situações de bullying das quais era submetido . (Produzido pela E
(2))

Após a apresentação da ideia, a dinâmica de trabalho se iniciou com a


explicação sobre o que é uma sinopse e com a sua exemplificação, como a seguir.

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Sinopse da HQ "Névoa Purpura": É a jornada de Jessica Jones, ex-
superheroina safira, e que hoje trabalha por conta como detetive
particular. Então novos clientes trazem casos para ela que possuem
muito em comum com os seus segredos do passado, pesadelos
propriamente ditos. Assim Jessica embarca no mistério que a coloca
em frente à um dos seus antigos vilões, o homem púrpura, de nome
Killgrave, que além do passado amoroso com Jessica, ele também
1
tem o poder de controlar as pessoas que estão perto dele.

Sinopse da HQ "Kick-Ass": Dave Lizeuwski é um estudante do ensino


médio, fã de quadrinhos, que odeia o fato de todo mundo querer ser
uma grande celebridade, mas ninguém querer ser o Homem Aranha.
Deste modo ele decide que vai as ruas para combater o crime como
os seus heróis. Logo Dave se descobre envolvido no submundo do
crime com mafiosos de verdade e heróis de verdade também, como
2
a Hit Girl e o Big Dad.

Nas aulas que se seguiram (3ª e 4ª), o planejado seria entregar as sinopses
produzidas na aula anterior e comentá-las, porém, como estas não estavam
finalizadas, utilizou-se o tempo para terminar nesta aula. Uma das sinopses que
resultou do trabalho da E (1) está descrita abaixo:

Sword art online

Em novembro de 2022 os jogadores que entram sword art online


descobre que não a como sair, o único jeito é terminar o jogo. Eles
são informados por Kyaba aKihiko o criador do jogo que se eles
desejam sair terão que terminar o jogo. (Escrito pela E (1))

É perceptível, nesta sinopse, a representação da realidade dos alunos, de


uma maneira indireta, contando a jornada de um garoto preso em uma realidade
virtual, na qual tem que ganhar um jogo para conquistar a liberdade. Essa
escolha, por mais clichê que pareça, mostra a influência da era digital sobre os
alunos, cujos celulares estão sempre presentes classe, nos intervalos e muitas
vezes durante as atividades em sala, utilizados para escutar músicas com o fone
de ouvido ou jogar os mobile games da moda. Essa história ficou incompleta, pois
o período de aplicação das aulas não foi suficiente para a finalização, devido à
complexidade que os alunos deram a história e devido à falta de foco desse
grupo.
O importante, nessa atividade, é aprender por meio da experiência com
práticas e produção de conhecimento e assumir-se no lugar de sujeito da
atividade objetivante, não seguir moldes de outros. "No ponto de vista da
produção textual, não se trata simplesmente de redigir um texto sobre
determinado tema, mas de dizer algo a alguém a propósito de um tema"
(GERALDI, 2010, p. 78).
Após essa produção, iniciaram a escrita do argumento enquanto narração
sequencial da história, que, de acordo com Field (2001), não é dividido por cenas
e diálogos, mas é descrito passo a passo a ação da história. Nesta aula, os quatro
grupos formados conseguiram iniciar o argumento, mas não o terminaram e não

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começaram o roteiro como esperado. Antes da elaboração do argumento, foi
descrito na lousa o seguinte quadro:

Figura 1 – Manual de roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico

Fonte: Field (2001, p. 13).

Essa imagem esclareceu as etapas básicas e essenciais das histórias, sejam


elas de cinema, HQ ou literatura. Não foram estipuladas as páginas necessárias
para cada etapa, como na figura, pois essas se referem ao roteiro
cinematográfico. Foi ressaltado que o importante não é, por exemplo, apresentar
os personagens e a premissa dramática no começo da história, ou acrescentar um
ponto de virada em determinado lugar só porque ali deveria ter um de acordo
com o esquema. Mas o que importa é ter a história clara e objetiva para que o
futuro leitor a entenda; não existe pré-disposição das partes de uma história se
ela faz sentido pelo jeito que está organizada. Desta maneira, foi introduzida a
noção de paradigma, de quebra de paradigma e de que para romper com uma
estrutura tradicional deve-se conhecê-la e saber qual parte dela quer mudar e
por que, assim como quais efeitos de sentidos novos essa subversão pode
despertar.
Após essas discussões os grupos iniciaram os seus próprios argumentos.
Durante a produção, constata-se que as E (1), E (2), E (3) e E (4) estavam
instigadas para a escrita, uma vez que discutiam entre si e expunham suas
dúvidas. Ao contrário dessas equipes, a E (5) não se mostrava interessada e
apenas conversava ora sobre o argumento ora a respeito de assuntos paralelos.
Transformando uma Ideia m Argumento
Na quinta aula, pretendia-se ir à sala de tecnologia para a realização de
leituras das HQs da Miss Marvel após comentários acerca de como contar uma
história utilizando detalhes como diálogo e ação e reação. Entretanto, houve a
necessidade de continuar a produção dos argumentos concomitantemente a
esses comentários. Dessa maneira não foi utilizado como exemplo a HQ digital da
Miss Marvel, mas distribuídas diversas HQs para que os grupos pesquisassem
nelas as influências e as formas que os detalhes de diálogos, ações e reações
exerciam sobre a história. Essa aula resultou em quatro argumentos, dos quais
segue um trecho da E (4):
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Há muito tempo atrás o gatinho Oliver abandonado pelos seus
donos passou a viver uma vida triste e miserável na rua.
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Em um certo dia Oliver em busca de alimento entra em um beco
atrás de um restaurante chinês para revirar as latas de lixo, quando
se depara com o dono do restaurante que não gosta nem um pouco
de gatos, quando o dono do restaurante se depara com o gato
rapidamente entra em sua cozinha e pega um sushi envenenado e
dá para Oliver, e Oliver sem saber que o sushi estava envenenado
come rapidamente, segundos depois de Oliver comer ele cai no chão
tremendo e espumando pela boca e assim foi-se uma de suas vidas.

Esse é o início de uma história intitulada 7 vidas, na qual é contada a odisseia


das sete mortes do protagonista Oliver e, no final, é revelado que o narrador da
história é a própria morte, que com dó do gatinho poupa-o antes de perder a
última vida e o adota como companheiro de suas visitas diárias.
Esse exemplo revela a disposição dos alunos em transcender a forma que
lhes foi apresentada, pois mesmo mantendo a estrutura de apresentação de
personagem, de clímax e de desfecho, o grupo optou por um desenvolvimento
alternativo: dividir a história em sete partes. Dessa forma, a história não fica com
o formato de um ou dois pontos de virada, mas de sete histórias, ou situações,
diferentes que são ligadas por um mesmo tema: a morte de Oliver. Nessa
história, de acordo com Menezes de Souza (2011) a normatividade universal foi
rejeitada a favor de fundamentos próprios, produto das comunidades às quais os
alunos pertencem.

Transformando o Argumento no Roteiro

Durante a sexta aula foi proposta uma investigação sobre as recorrências de


algumas estruturas visuais nas páginas de HQs, as principais características
observadas são em relação ao layout, ou seja, à disposição, à quantidade e ao
tamanho dos quadros na página e dos elementos da história dentro dos quadros,
tais como personagem, balão, cenário e ações. Foi possível também verificar a
frequência do tamanho dos quadros e o que, normalmente, cada tamanho
específico de quadro costuma mostrar, como quadros de apresentação de
cenário, de conversas entre personagens, de ações dos personagens movidas
contra o cenário, quadros de detalhes, e outros.
Além disso, iniciou-se a produção dos roteiros e, apesar de recheado de
exemplos imediatos e verificáveis, todo esse conteúdo estrutural das HQs foi
recepcionado com certo estranhamento e curiosidade pelos alunos, que
levantaram a questão de outras maneiras de estruturar uma página. Com novos
exemplos das HQs disponíveis para pesquisa, foram observadas outras formas de
trabalhar com a quantidade de quadros e elementos, como em relação ao
formato, que podia ser mais do que quadrados e retângulos. Essa reflexão foi
finalizada com a definição de paradigma e de quebra de paradigmas, discorrendo
sobre a importância de conhecer a frequência e a forma do produto que se
deseja criar, a fim de poder apontar uma característica ou escolha que para
determinada situação não mais funciona, ou que há outros meios, e, assim, poder
inovar, pois dessa maneira sabe-se o que de diferente está se propondo, se isso
já não foi posto antes e o que se deseja alcançar com esse tipo de representação.
Página | 106 Objetivava-se, nas aulas posteriores (7ª e 8ª), a leitura de quadrinhos na sala
de tecnologia (doravante ST), tanto do acervo digital quanto do da biblioteca.

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Entretanto, devido à indisponibilidade de horário na ST e a não finalização dos
roteiros, preferiu-se terminá-los. Foi orientado que os alunos utilizassem o
argumento já concluído como texto base para a produção do roteiro, e que
aplicassem as lógicas de quantidade de conteúdo da discussão anterior para
dividir a história em páginas e estas em quadros, como no roteiro elaborado pela
E (3):

Pag 3

1º Felipe mandou mensagem para Gabriel perguntando se ele


poderia sair de casa naquela noite.

2° Gabriel pegando celular e respondendo (vou ver com a coroa).

3º Gabriel vai ate sua mãe na cozinha e pergunta

- Mãe, posso sair com o Felipe hoje?

Sua mãe preocupada por que estava de noite

- o que você vai fazer no felipe essa hora?

- Vou fazer trabalho

4º Sua mãe deixou.

Nota-se o uso do celular para uma conversa informal entre dois adolescentes
(em outro momento da história descobre-se que um deles mentiu para mãe)
assim, concretiza-se novamente a presença do cotidiano (fator sócio histórico),
por meio do celular, na produção dos alunos.

Processo Criativo: do Roteiro às Histórias em Quadrinhos

No primeiro momento das aulas nove e dez, foram retomados os conteúdos


das aulas anteriores, então, esses conhecimentos foram aprofundados. Assim,
por meio de exemplos retirados do acervo disponível de HQs aos alunos, foi
discutido acerca da relação da sarjeta e do layout para com a representação do
tempo, que nas HQs é materializado visualmente pelo espaço e os elementos
distribuídos nele (MCCLOUD, 1995).
Após esse momento de discussões teóricas sobre a gramática visual das HQs,
foi proposta aos alunos a produção do storyboard, ou seja, a transformação do
roteiro, elemento textual, em uma página de HQ, elemento visual, exercendo a
multimodalidade (ROJO, 2012) que as HQs possuem. Nesse primeiro estágio, foi
realizado apenas o planejamento da disposição e dos tamanhos dos quadros nas
páginas e alguns rascunhos iniciais dos personagens, do ambiente, e das falas
dentro dos quadros, como no exemplo abaixo, elaborado pela E (3):

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Figura 2 – Elaborada pela E (3)

Posteriormente, as primeiras páginas das HQs começaram a ser produzidas,


com os layouts dos quadros já definidos e os desenhos sendo elaborados. Os
grupos começaram a construir as páginas, definir que imagem estaria em cada
quadro e compor cada imagem com ambiente, personagem e ação. Tal atividade
procedeu no modelo de estágios de produção, sendo um primeiro aluno do
grupo, com tal capacidade, atribuído à tarefa de desenhista, ao segundo de
letrista, ao próximo o de conferidor ou corretor (já que várias vezes o processo
necessita de ajustes) e, por fim, o de colorista e finalizador. Os alunos
permeavam entre a execução de suas funções e de intromissões nas funções de
seus colegas, participavam democraticamente do processo criativo e, dentro dos
cincos grupos, todos os alunos podiam direcionar e opinar na história e nos
desenhos livremente.
Nas 11ª e, posteriormente, na 12ª aulas, houve a continuação da produção
das HQs como nas aulas anteriores, que continham explicações procedimentais e
teóricas. Todavia, nessa aula a intuição foi a principal direcionadora dos alunos a
contar uma boa história, de acordo com o julgamento de belo, relevante e
verossímil que eles se pautavam.
Acrescentavam-se conversas paralelas durante a produção, entretanto não
bloqueavam a atividade, e sim concediam um tom de intimidade à cena,
deixando os alunos confortáveis e seguros o bastante para produzir um trabalho
artístico, pois, ao final das contas, estavam, nesse momento, dando forma a uma
história proveniente das suas imaginações e vivências.
Ao final dessa sequência de ensino (13ª e 14ª aula), os alunos finalizaram as
HQs de forma que perpassaram por todo o seu processo de produção, assim
como momentos de discussões acerca da história.
Na HQ intitulada Mundo das drogas, E (3) os discentes relatam a presença
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que a droga tem no dia a dia deles, a maneira que ela é comumente oferecida a

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potenciais usuários e quais as consequências na comunidade, como a chegada da
polícia no final da história, recortes dessa HQ estão disponíveis a seguir:

Produzido pela E (3)

Nota-se que "a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que
a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na
língua" (BAKHTIN, 1992 apud GERALDI, 2010, p. 141). Assim, compreendemos
que o melhor lugar de expressão da dialética entre estabilidade e instabilidade é
o texto. É por isso também que há, no texto (como nessa HQ), subjetividade,
posições ideológicas e vontades políticas em frequentes atritos.
Um grupo de duas alunas não elaborou argumento e roteiro, E (5), pois não
se sentia interessado. Entretanto, ao final das aulas conseguiu produzir uma HQ
baseada em uma história que realmente aconteceu em Três Lagoas (MS) e que
tem como consequência uma crítica ao sistema de segurança, uma vez que duas
pessoas inocentes são executadas após serem confundidas com ladrões.
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Elaborado pela E (5)

Essa HQ apresenta uma linguagem não padrão, cotidiana, propiciada por


condições de qualificação para o exercício de todo tipo de discurso, isso para não
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ser mais produtor das desigualdades sociais. Ademais, o sistema escolar é
importante para a apropriação social dos discursos, porém tem os controlado,
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impondo regras e não permitindo que todos tenham acesso a eles (FOUCAULT,
1996). Portanto, percebe-se a necessidade de ir além de oferecer condições de
aprendizagem da língua-padrão.
Assim, observa-se que, nos momentos de produção, os alunos encontraram
alguns obstáculos, como a dificuldade de sintetizar ideias, de ser objetivo e de
organizar os papéis que cada integrante do grupo deveria assumir. Dificuldades
que já eram esperadas, visto que são essas algumas das características que se
deseja desenvolver nos estudantes e que a liberdade criativa oferecida a eles não
deixava saída fácil, a não ser continuar desenvolvendo as HQs, em colaboração,
até superar este ou aquele obstáculo.

CONCLUSÃO

As histórias que os alunos criaram refletem a realidade local que se inserem,


ao contrário das HQs disponíveis que leram, em sua maioria americanas e de
super-heróis, por vezes heróis na escola, mas sempre uma realidade que não a
deles. Ou seja, as HQs originais dessa turma de 9º ano recontam as experiências
dos próprios alunos, diretamente ou não, e acabam por registrar a fatia da
sociedade que eles vivem.
A partir dessas discussões, nota-se que os alunos se interessam pela leitura
de HQs, uma vez que a elas se dedicaram. As primeiras aulas (de leitura) foram
importantes para que os alunos se identificassem com essa mídia enquanto
leitores para, em seguida, serem produtores e agirem no mundo por meio desta.
Durante a produção, foram elaboradas ideias, sínteses, argumentos, roteiros e,
finalmente, os quadrinhos, de forma colaborativa entre os alunos.
Algumas histórias foram elaboradas por meio desse processo de produção,
porém uma não foi transformada em quadrinhos, E (4), e duas se encontram
incompletas, E (1) e E (2). Além disso, a última HQ apresentada neste trabalho, E
(5), O assalto dos manos, foi produzida diretamente em quadrinhos, o que revela
que também se faz bons quadrinhos sem argumento e roteiro. Demonstrando,
assim, o quanto a sala de aula é heterogênea e que há processos de
aprendizagem diversos constituídos no e pelo meio sócio histórico de cada
sujeito.
Dessa forma, as HQs se revelaram uma fonte de motivação para os alunos,
cujo interesse em trabalhar com esse tipo de material possibilitou momentos de
aprendizagem. Ademais, é perceptível que a multimodalidade das HQs,
concomitante com a multiculturalidade (que pode ser inserida em seu conteúdo),
se revelou uma boa fonte de motivação para os alunos como, também, uma
eficaz forma de explorar a realidade deles dentro dessa mídia, além de
proporcionar o conhecimento e a reflexão acerca do uso da língua e da
linguagem.

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MULTILITERACIES AND COMICS: THE
REPORT OF A PRACTICE
ABSTRACT

This work aims to describe and discuss the practice of reading and producing comics in a
ninth grade High school class at a public school in Três Lagoas (MS). This proposal was
made possible by the Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) and
it is situated in the theoretical and methodological field of Applied Linguistics, more
precisely regarding multiliteracies as defined by CARDOSO (2005), DOLZ et al. (2004),
CORDEIRO (2004), FIELD (2001), GERALDI (2010), MENEZES DE SOUZA (2011), ROJO (2012)
and Silva (1987). The methodological procedures were focused on action research in order
to investigate the student’s own practice in a reflective and cooperative meaning. The
corpus consists of activities done in the classroom and on discussions that preceded the
use of texts. As a result, the students produced comics, which revealed the concerns of
their local realities, as well as the influence of the global reality on them. Therefore, the
elaboration of comics enables moments of learning that are exploits from the
multimodality and multiculturalism of the textual support.

KEYWORDS: Multiliteracies. Reading. Comics.

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Notas

1 É importante ressaltar que essa ideia não foi gravada, portanto, está descrito o
seu conceito geral.
2 Essa sinopse foi elaborada pelos autores desse trabalho.

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REFERÊNCIAS

CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. 2. ed. 1. reimp. Belo Horizonte:
Autêntica/Fale-UFMG, 2005.

DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Milèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas


para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: ROJO, Roxane;
CORDEIRO, Glaís Sales. (Org). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP
Mercado de Letras, 2004.

FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. 14. ed.


Rio de Janiro: Objetiva, 2001.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida


Sampaio. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996.

GERALDI, João Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João
Editores, 2010. 208p.

MCCLOUD, Scott. Desvendando quadrinhos. São Paulo: Markron Books, 1995.

MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1977.

MENEZES DE SOUZA, Lynn Mario Trindade. Para uma redefinição de letramento


crítico: conflito e produção de significação. In: Maciel, RE&Araújo, V. A. (Org.).
Formação de línguas: ampliando perspectivas. Jundai: Poço Editorial, 2011. V.1.

ROJO, Roxane. Pedagogia dos multiletramentos. In: ROJO, Roxane; MOURA,


Eduardo (Orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

SILVA, Ezequiel Teodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma
nova pedagogia da leitura. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1987.

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R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 97-114, mar. 2017.


Recebido: 30 ser. 2016
Aprovado: 18 mai. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.4693
Como citar: SILVA, Aline Rodrigues da; SANTOS, Gabriel Lúcius dos; SOUZA, Claudete Cameschi de.
Multiletramentos e histórias em quadrinhos: relato de uma prática. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p.
97-114, mar. 2017. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

O discurso narrativo em A Ilha Perdida, de


Maria José Dupré E A Casa da Madrinha, de
Lygia Bojunga1
RESUMO
Alice Atsuko Matsuda O presente artigo tem por objetivo analisar as disposições discursivas do narrador em
alicem@utfpr.edu.br
Universidade Tecnológica duas obras de autoras diversas, respectivamente: A ilha perdida, de Maria José Dupré, e A
Federal do Paraná, Curitiba,
Brasil.
casa da madrinha, de Lygia Bojunga Nunes. Para a consecução do objetivo, pretendemos
observar o porquê da obra de Dupré, marcada pelo discurso monológico e pela soberania
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro
Ferreira
do narrador, ser considerada atraente pelos jovens; e da obra de Bojunga, caracterizada
eliane@assis.unesp.br pelo discurso polifônico, ser apontada pelos jovens leitores como de difícil leitura. Por
Universidade Estadual Paulista,
Assis, Brasil.
meio do suporte teórico da estética da recepção, buscamos apresentar uma possibilidade
de leitura de ambas, refletindo acerca das disposições do narrador e de sua interferência
no papel do leitor implícito. Além disso, pretendemos refletir sobre o horizonte de
expectativa dos jovens leitores que aprovam a obra de Dupré e rejeitam a de Bojunga.
PALAVRAS-CHAVE: Narrador e Leitor. Estética da recepção. Horizonte de expectativa.
Maria José Dupré. Lygia Bojunga Nunes.

1
Artigo publicado em primeira versão nos Anais do 5º SLIJ - Seminário de Literatura
Página | 116
Infantil e Juvenil: Letramento literário e Diversidade, na UFSC, Florianópolis, de 11 a 13 de
abril de 2012.

R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 115-131, mar. 2017.


INTRODUÇÃO

Como professoras de literatura, desenvolvemos pesquisas de campo


direcionadas para a formação do leitor. Durante esse trabalho, pudemos
observar, por meio de um levantamento de obras lidas por alunos do Ensino
Fundamental, que, entre essas, A ilha perdida, de Maria José Dupré, era
considerada como atraente, já A casa da madrinha, de Lygia Bojunga Nunes, de
difícil leitura. A partir deste diagnóstico, objetiva-se neste texto, por meio do
suporte teórico da estética da recepção, apresentar uma possibilidade de leitura
dessas obras, na qual se considera o papel do narrador e sua interferência no
papel do leitor implícito. Pretende-se também compreender o que torna atraente
a obra de Dupré para os jovens e o que os leva a classificar, como difícil, a de
Bojunga.
Considera-se, neste artigo, a literatura como sendo condicionada, tanto em
seu caráter artístico, quanto em sua historicidade, pela relação dialógica entre
obra e leitor. Para Jauss (1994, p.23), o leitor tem um “papel genuíno,
imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para o histórico”, visto
que é para ele que a obra é direcionada. Essa relação decorre da presença de
vazios no texto que, ao solicitarem do leitor um preenchimento, indicam os locais
de sua entrada no universo ficcional (ISER, 1999, p. 107). Assim, um texto possui
uma estrutura de apelo que invoca a participação de um indivíduo na feitura e
acabamento: é seu leitor implícito. A comunicação ocorre quando esse leitor, na
busca do sentido, resgata a coerência do texto interrompida pelos vazios. Para
tanto, ele se utiliza de sua produtividade e, justamente por isso, obtém prazer na
leitura.
De acordo com Regina Zilberman (1984, p.132), a fantasia é o setor
privilegiado pela vivência do livro infantil e juvenil. De um lado, porque aciona o
imaginário do leitor e, de outro, porque é o cenário em que o herói resolve seus
dilemas pessoais ou sociais. Consequentemente, não é a saída que coloca o herói
perante o mundo, mas a sua volta. Sendo assim, buscaremos observar qual é o
estatuto que as personagens das duas obras adquirem no retorno do espaço da
aventura.

PERDIDOS NA ILHA

A ilha perdida trata das peripécias vividas pelos irmãos Henrique e Eduardo,
que saem escondidos da fazenda dos padrinhos, margeada pelo rio Paraíba, para
se aventurar em uma ilha situada no centro desse rio. O chamado da aventura
acontece por meio da sedução, pois os protagonistas sentem-se atraídos por
aquele misterioso espaço proibido pelos adultos. Na ânsia de atingirem-no,
encontram, por acaso, uma canoa velha, a qual os conduz ao lugar desejado. Esse
espaço apresenta-se como desconhecido e de difícil acesso, pois constituído por
matas fechadas e labirínticas. Nele, os protagonistas passam fome, sentem medo
e correm risco de vida. O mais novo, Henrique, é detido por um ermitão, Simão,
morador da ilha há muitos anos. Feito prisioneiro, o jovem adentra o centro da
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ilha, enquanto seu irmão permanece em suas margens. Henrique, uma vez

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liberto, reúne-se ao irmão e ambos retornam ao espaço domiciliar da fazenda, no
qual são bem acolhidos.
Na narrativa, a intenção pedagógica transforma a aventura em pretexto para
a transmissão de normas. Assim, seus heróis, no retorno da aventura, não obtêm
um poder ou saber capaz de propiciar a conscientização e o reconhecimento.
Como o ingresso na aventura é proveniente de uma transgressão à ordem, o
espaço que a representa se transforma em lição aos desobedientes. Desse modo,
a experiência propiciada pela aventura leva os protagonistas à aceitação das
regras referentes à obediência, com consequente reclusão no âmbito familiar.
Acompanhando a trajetória das personagens, os alunos reconhecem seu
pequeno mundo somente quando elas regressam ao lar. Dessa forma, fecha-se o
circuito doméstico e, dentro dele, está aprisionado o leitor implícito, cercado pela
proteção dos adultos, levado a prestigiar a sua circunstância e a aceitar os papéis
de dominadores exercidos por eles.
Em A ilha perdida, a aventura é marcada, também, por antíteses. Após o
retorno dos heróis, o padrinho decide levá-los, bem como seus primos mais
jovens, a uma expedição na ilha. Em todas as referências a esse passeio não há
menção ao sol, antes a chuvas e tempestades, as quais obrigam os protagonistas
a acatar a decisão do padrinho de retornarem para a fazenda. Esse regresso é
marcado pela frustração, pois eles não conseguem encontrar o solitário Simão e,
assim, provar a veracidade de seus relatos. Desse modo, o espaço externo, da
aventura, representante da liberdade, apresenta somente frio, escuridão e
desconforto. Somente o lar, espaço interno, atendendo ao modelo familista, é
representante da luz e do conforto proporcionado pela família.
A exploração dos espaços conota os anseios das décadas de 1940 e 1950. O
cenário primitivo, embora eldorado de riquezas, está superado, representa
apenas um local abandonado, repleto de perigos e mistérios favoráveis à ação.
Dupré, ao utilizar lugares exóticos e primitivos para compor a narrativa, segue a
tendência apresentada pela Coleção Terramarear. Ela explora dos quadrinhos e
das narrativas de aventura a sensação de produzir no leitor sonhos, estímulos e
ideais, como a liberdade, a natureza e a força, mas todos com caráter escapista,
por consequência, não emancipatório.
Dupré se utiliza do mundo natural em sua narrativa como locus e pretexto
para o rito de “conformação”. Embora a obra seja atraente por expressar os
desejos do jovem leitor que, assim como as personagens, entediado com a
clausura doméstica, anseia ingressar em uma aventura por lugares
desconhecidos; por possuir intenção pedagógica, ridiculariza esses anseios,
apresentando-os como infantis e infundados. Há, então, na obra, devido ao
caráter utilitário, desvalorização da emoção, por isso praticamente inexistem
conflitos entre as personagens. Os poucos existentes são fornecidos pelo espaço
da aventura ou por pessoas que o representam.
O modelo familista também determina o comportamento das personagens.
As jovens se conduzem como adultos em miniatura, compromissadas com a
família, amadas por todos que a compõem, representam o mito do “jovem feliz”.
As adultas são modelos de conduta e moralidade, fornecem conselhos aos jovens
e, por projeção neles, ao leitor empírico. Atuam como suporte para o
Página | 118 pedagogismo da autora. Atendendo ao modelo de literatura trivial, as
personagens adultas masculinas ingressam na aventura, pois são determinadas e

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competentes; as femininas permanecem em casa preocupadas e inconsoláveis,
pois são frágeis. Elas representam mulheres pacientes e amorosas, todavia, por
serem carentes de atenção, servem de justificativa para o bom caráter das
personagens masculinas.
Devido ao perfil moralizante da narrativa, os animais se dividem em “bons” e
“maus”. Os primeiros são companheiros determinados e inseparáveis, obedecem
aos seus donos, fornecem-lhes coragem e respeitam-nos; os últimos,
desobedientes. Contudo, os animais exemplares são frágeis e precisam de
cuidados constantes, servindo de motivo para justificar as “boas” ações dos
humanos para com eles. Pela personificação dos sentimentos e comportamentos
desses animais, eles conotam os jovens heróis que necessitam de amparo dos
“mais velhos”.
A obra, atrelada à “modernidade” da época em que foi escrita, explora a
produção em série, por meio do aproveitamento dos mesmos personagens
constantes em outras narrativas de Dupré. A sua temática filia-se à ideologia do
período, representada pelo teor educativo e moralizante. Esse teor aparece nas
caracterizações morais das personagens, tornando-as artificiais. Entretanto, é
válido destacar que não são as qualidades morais que prejudicam a narrativa,
mas a superficialidade e a falsidade do contexto em que as personagens estão
inseridas, pois seus discursos e atitudes não convencem, comprometendo a
verossimilhança. Há outros elementos que contribuem para esse
comprometimento, como a localização da residência dos padrinhos: ora descrita
como situada na fazenda ora em Taubaté, e o discurso paradoxal de Simão. A
princípio, essa personagem atua como um “conselheiro”, incentivando Henrique
a proteger os animais indefesos. Em seguida, afirma que, se os homens anseiam
medir “forças” com os animais, eles devem procurar, na África e na Índia, pelos
desafiadores. Essa concepção revela uma idealização de um determinado tipo
elitista de caça e tolerância com essa prática.
Pode-se observar, pela análise da narrativa, que a literatura não é concebida
como agente formador, mas como manifestação retórica capaz de doutrinar o
leitor. Desse modo, a obra expressa o que a camada dominante entende como
literatura infantil e juvenil: uma propaganda de seu estilo de vida. Da leitura
global, o leitor implícito pode concluir e, por projeção nele, o aluno leitor, que
deve: respeitar os animais e os “inferiores”, ser feliz e grato aos familiares e a
Deus, apreciar a natureza e prezar o amor da família. A obra revela, então, em
seu discurso uma poética preocupada com a transmissão de certezas, de
alinhamentos rígidos do mundo. As mensagens apresentadas ordenam ao leitor
implícito e, por projeção nele, ao empírico, como deve proceder. Esse
autoritarismo no discurso revela que a autora concebe o seu leitor como
inferiorizado, diante de um emissor adulto detentor de “verdades”.
Na narrativa, a fantasia aparece de forma escapista, como sucedâneo do
sonho, alienante. Ao término da aventura, os adultos não acreditam na
veracidade dos relatos dos jovens protagonistas, pensam que eles deliraram ou
imaginaram. A manifestação dessa desconfiança, associada à falta de provas no
retorno da ilha, faz com que esses jovens se conformem com as suspeitas. Assim,
a fantasia não ilumina a realidade, não emancipa o seu leitor, pois interessa à
autora menos a estética do que a inculcação de moralidades compatíveis com o
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grupo a que ela pertence.

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A obra copia processos da cultura de massa, porque correspondem ao
padrão de qualidade a ser atingido. Ela expressa a perda da conotação do espaço
primitivo como local de trabalho, por isso a estada das personagens em uma ilha
deserta é provisória, pois ela não possui apelos para retê-las. Esse cenário
representa um Brasil arcaico que desaparece por força das mudanças históricas e
deseja tornar-se urbano e progressista. Justifica-se, então, que as personagens
residam no espaço urbano e dirijam-se ao primitivo sempre a passeio ou nas
férias, sem comprometer o período de aula na escola. Somente residem no
espaço rural, na fazenda, as jovens personagens Quico e Oscar, e seus pais, os
padrinhos. Entretanto, esse espaço não é isolado, situa-se nas proximidades de
uma cidade: Taubaté.
Enquanto estão no espaço urbano, os heróis idealizam o natural, buscam-no
pela possibilidade de liberdade e de aventura que representa. Ao sobreviverem a
essas aventuras, eles retornam ao espaço de onde partiram, com a certeza de
que se aventurar foi um erro. Logo, os adultos têm razão em proibi-los de visitar
o espaço primitivo. As conclusões a que chegam os protagonistas atuam também
como suporte para o pedagogismo da autora, pois os seus sofrimentos servem de
“lição” exemplar e aviso a quem pretende ausentar-se do espaço domiciliar: o
leitor implícito. Desse modo, a autora utiliza-se, para transmitir suas
“mensagens”, de dois elos visíveis que o leitor empírico encontra com o texto: a
personagem e o leitor implícito.
O espaço da aventura conota, também, a oposição entre organização
civilizada e primitiva, pois, embora se valorize a natureza como necessária à
subsistência e à exploração, o local que a contém aparece como superado. Por
isso, a permanência das personagens na ilha representa um perigo latente: o de
romperem com as coordenadas do “sistema social” da classe dominante. Dentro
desse sistema, o local ideal para elas é o do lar, onde são protegidas e amadas.
Ao final da leitura, as próprias personagens percebem e, por projeção nelas,
também o leitor empírico, que a excursão aventuresca foi em vão. Mesmo o
desejo manifesto por Henrique de um dia voltar sozinho à ilha para não afugentar
a personagem Simão, só poderá ser concretizado quando ele for adulto. Como
não há provas de que Simão exista, esse desejo é infundado.
A obra elabora um modelo de vida familiar característico de boa parte da
narrativa infantil e juvenil de 1940 e 1950, pois privilegia o valor da existência
doméstica, encerrando nela as jovens personagens porque se trata de seu mundo
verdadeiro. Desse modo, transparece a euforia com a vida administrada pela
família que lega a seus rebentos os principais padrões da sociedade. Os espaços,
por sua vez, confirmam esse modelo.
A narrativa aparece marcada pela intenção básica do narrador tradicional de
contar uma história interessante sobre uma aventura no interior de uma ilha
misteriosa. Esse tema faz parte da linha heroico-aventuresca que, no transcorrer
dos tempos, tem encontrado a mais alta ressonância entre leitores diversos.
Contudo, o narrador apresenta um discurso judicativo, que interpreta e
decodifica, por meio de juízos e digressões, as emoções e os sentimentos dos
heróis. Assim, seu discurso estrangula a autonomia das personagens em
expressar seus próprios questionamentos e, por consequência, a liberdade do
leitor implícito em interpretá-los.
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O discurso do narrador, estruturado como um comentário didático
autorizado da ação, orienta-se para esse leitor com a intenção de agir sobre ele.
Afirma-se, então, a sua função ideológica: levar o jovem leitor à aceitação dos
valores impostos pelos adultos. O monopólio do narrador resulta em autoridade
soberba, sendo impossível aos heróis contestarem o privilégio de seu comentário
ideológico. Como se trata de um narrador que defende a ideologia dos adultos,
ele os conota e, na opressão às jovens personagens e ao leitor implícito,
mimetiza-os. O leitor implícito, assim como o empírico que nele se projeta, vê-se,
mesmo no universo ficcional, na fantasia, preso às normas adultocêntricas.
A soberania do narrador sobre o leitor implícito avulta quando se exclui a
decodificação do destinatário. Ao leitor é fornecido um mundo pronto,
previamente interpretado e facilmente consumível. Com isso, impõe-se um
processo de percepção textual no qual o recebedor é colocado perante um
produto acabado que, se é opressivo no âmbito ideológico, é digerível sob o
aspecto estético. Desse modo, caminham juntas na obra: facilidade de leitura e
transmissão de valores repressivos. É válido destacar que o prazer manifesto
pelos alunos, na leitura, advém, justamente, dessa facilidade. Como se pode
observar, o discurso do narrador, por atender a um projeto estético pedagógico
condutor de ideologias, não propicia uma comunicação interativa com o leitor.
A ilha perdida, por apresentar contenção comunicativa, assegura o mesmo
que os produtos da literatura trivial: a sedução do consumo fácil. Sua narrativa é
construída para favorecer ao entretenimento e incutir as ideologias dos adultos.
Justifica-se, então, a ausência de novidade formal e o questionamento
existencial; a mesmice nas ações das personagens no espaço da aventura; a
apresentação linear do tempo na diegese; e o final “fechado”. A opção de Dupré
por esse “fechamento”, que elucida o destino definitivo das personagens, tem
por objetivo produzir no leitor atordoado com o caos social à sua volta a
sensação de “consolo”. Pela leitura, ele se depara com uma narrativa organizada
que lhe transmite a impressão de que domina a sequência de eventos, podendo
inclusive antevê-los.

NA CASA DA MADRINHA

A obra A Casa da Madrinha, publicada no ano de 1978, narra as aventuras e


desventuras de Alexandre, morador de uma das favelas do Rio, que vende
amendoim e sorvete nas praias da sua cidade. Um dia, ele resolve procurar a
“casa da madrinha”, em que todas as suas carências seriam resolvidas.
Durante sua viagem, encontra-se com um pavão, o qual se torna seu
companheiro e ajudante nos shows que Alexandre improvisa para ganhar alguns
trocados e poder sobreviver. Nas suas andanças, acaba chegando a uma cidade
pequena do interior. Lá, conhece Vera com quem trava uma grande amizade.
Nesse espaço, ambos vivem aventuras que misturam o plano da realidade ao da
fantasia.
Segundo Nelly Novaes Coelho, Bojunga enfoca, nesse livro, os duros
problemas de sobrevivência na cidade grande ou no meio rural, e transmite a
ideia de que o sonho e a esperança devem acompanhar o ser humano para que a
Página | 121 jornada se torne mais fácil. Analisando a proposta ideológica da obra de Bojunga,
a estudiosa entende que a “casa da madrinha” revela-se como “[...] uma bela

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metáfora do grande Ideal que todo homem deve perseguir em sua luta pela vida”
(1984, p. 566).
Para tratar desse tema, o modo como Bojunga narra seu texto diferencia-o
de outros considerados utilitários. Na narrativa da escritora, há um trabalho
literário, artístico, com as palavras. O texto possibilita ao leitor vivenciar novas
experiências, ao socializar com as personagens, por meio de um discurso
inovador, ele se depara com o drama íntimo de Alexandre, Augusto e Vera. Por
identificação, ele se projeta nesses protagonistas e reflete sobre suas ações. A
narrativa solicita, assim, um leitor ativo, criativo e com empatia pela dor do
outro.
A trama da história inicia com Alexandre chamando o pessoal da cidade para
a apresentação de um show com o pavão. Após o show, ele se depara com Vera e
inicia um diálogo, no qual se descortina, gradativamente, fornecendo
informações sobre onde morava, o que fazia e como vivia. Da mesma forma, Vera
conta sobre sua família, seus pais, o que fazem, como é sua vida. Alexandre relata
as dificuldades que a família viveu e a necessidade dele em ajudar no sustento
familiar vendendo biscoito, amendoim, sorvete na praia. Conta como foi sua
viagem e de que modo conhecera o pavão.
De um ponto de vista histórico, ao narrar o encontro de Alexandre com o
pavão, a obra denuncia o contexto da ditadura, visto que ele passa por três
cursos – “Curso Papo”, “Curso Linha” e “Curso Filtro” –, com o intuito de ser
doutrinado. Esse episódio, além de revelar as transformações ocorridas no ensino
após o golpe de 1964, contrapondo dois tipos de ensino – um com visão negativa
e outro com visão positiva –, mostra a atitude autoritária e repressora desse
período.
A escola, onde o pavão fora obrigado a estudar, chamava-se OSARTA.
Curiosamente, essa palavra, ao contrário, forma outra: ATRASO. Percebe-se a
crítica da autora em relação ao ensino autoritário que tolhe a criatividade do
aluno. Os três cursos têm esse intuito. No “Curso Papo”, embora tenha esse
nome, o aluno não podia falar, apenas ouvir o que diziam. Era uma espécie de
aula com lavagem cerebral:

[...] ele [o pavão] não podia achar nada; tinha que ficar quieto
escutando o pessoal falar. Se abria o bico ia de castigo; se pedia pra
ir lá fora ia de castigo; se cochilava (o pessoal falava tanto que dava
sono), acordava ele correndo pra ele ir de castigo (BOJUNGA, 2002,
p. 24).

Além disso, tinha o objetivo desse curso era o de aterrorizar o aluno e fazer
com que ficasse com o pensamento atrasado, não pensasse, não refletisse e nem
questionasse sobre qualquer coisa:

O Curso Papo era pra isso mesmo: pro aluno ficar com medo de
tudo.O pessoal do Osarta sabia que quanto mais apavorado o aluno
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ia ficando, mais o pensamento dele ia atrasando. E então eles

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martelavam o dia inteiro no ouvido do Pavão (BOJUNGA, 2002,
p.24).

No “Curso Linha”, costuraram o pensamento do pavão. No entanto, a linha


não era de qualidade, dessa forma, o pavão, ao perceber isto, treina até
conseguir dar um puxão no pensamento e, assim, arrebentar a linha. De tanto
arrebentá-la, os donos do pavão desistiram desse método e colocaram-no no
“Curso Filtro”.
A intenção desse curso reside em seu próprio nome: filtrar o pensamento.
Puseram o tal filtro na cabeça do pavão e deixaram a “torneira de seus
pensamentos”, apenas, um pouco aberta. Entretanto, o filtro veio com defeito de
fábrica e não ficava regulado no mesmo lugar. Assim, às vezes, a torneira abria
por inteiro e o pensamento do pavão se normalizava. Embora, a maior parte,
ficasse na posição como deveria ficar, só um pouco aberta, para o “[...]
pensamento do Pavão pingar bem devagar e ir ficando cada vez mais atrasado”
(BOJUNGA, 2002, p. 29).
Em contrapartida, há a escola de Alexandre. Neste espaço, a autora nos
apresenta uma professora diferente, conhecida como sendo a da maleta. Ela
representa a profissional ideal, criativa, inovadora, compromissada com a
educação e o aprendizado dos alunos. Ela consegue cativá-los com várias
atividades diferentes, pois possui propostas inovadoras de ensino. Em suas aulas,
as crianças aprendem de forma prazerosa e lúdica, fugindo totalmente do ensino
tradicional. A Matemática é ensinada, por meio da receita de bolinho de trigo; o
Português, por viagens pelas histórias ficcionais; a Ciência, pelo dia da higiene
corporal; a Geografia e a História, por meio das brincadeiras do “dia de viajar”.
Na sua maleta, a professora tinha vários pacotes que continham os
conteúdos a serem ministrados, a cada aula havia uma surpresa. O pacote “cor-
de-burro-quando-foge” era posto pela professora em cima da mesa, mas ela
nunca o abria. Pode-se inferir que esse pacote representa a aula tradicional,
aborrecida, pois desvinculada dos interesses dos alunos. Ela ensinava os
conteúdos de forma inovadora, lúdica, explorando o psicológico e o contexto do
aluno, fugindo totalmente do ensino tradicional. No entanto, seu método não era
aceito pela direção, nem pelos pais, por isso a professora foi demitida. Esse dado
demonstra a percepção da autora de que as expectativas sociais, ainda, se
direcionam para o ensino tradicionalista.
A narrativa sobre a história do pavão é feita pelo recurso da analepse,
momento em que a história volta ao passado e Alexandre relata a Vera toda sua
vida. O garoto conta das dificuldades da família, da necessidade de ajudar no
sustento familiar e de ter que abandonar os estudos. Em meio a essa situação
difícil e com dificuldades para dormir, Alexandre descobre, pelo relato de seu
irmão Augusto, a história da casa da madrinha. Essa narração da casa da
madrinha é feita de forma edênica, paradisíaca, pois a apresenta como um lugar
em que todos os desejos são realizados. Verifica-se durante a narração que a
“casa da madrinha” é carregada de simbologia. Ela representa a utopia que todos
nós devemos ter, para conseguirmos superar os obstáculos com os quais nos
deparamos na vida. Desde a primeira vez em que essa casa é mencionada por
Página | 123 Augusto, ela assume essa conotação. Quando Augusto fala de sua madrinha,
Alexandre logo pensa em sua madrinha real, dona Zefa, que considera chata. No

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entanto, Augusto vai falando dessa outra madrinha que mora no interior, em
uma casa branca, pequena, de quatro janelas, que fica no alto de um morro
rodeado de flores. Neste espaço, pode-se ver de um lado o mar e de outro, o
mato. O local é idílico, bucólico, fazendo lembrar a música “Casa no campo”, de
Zé Rodrix e Tavito2 (Luís Otávio de Melo Carvalho).
Nessa descrição, há, ainda, a mistura de sonho e realidade, pois prevalece
nos elementos que compõem a casa a personificação e a sinestesia. Assim, sua
porta é azul, cor que ela mesma escolheu, e possui uma flor amarela bem no
peito, para se enfeitar. Percebe-se o animismo na constituição dessa porta, já
que possui o poder de escolher, tem peito e se enfeita. Vale destacar que as
cores azul e amarela são predominantes nas narrativas de Lygia Bojunga Nunes,
assumindo efeitos de sentido. O azul, segundo Chevalier e Gheerbrant:

É a mais profunda das cores: nele, o olhar mergulha sem encontrar


qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito, como diante de uma
perpétua fuga da cor. O azul é a mais imaterial das cores: a natureza
o apresenta geralmente feito apenas de transparência. ... Aplicada a
um objeto, a cor azul suaviza as formas, abrindo-as e desfazendo-as.
... Imaterial em si mesmo, o azul desmaterializa tudo aquilo que dele
se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se transforma em
imaginário. ... O azul é o caminho da divagação, e quando ele se
escurece, de acordo com sua tendência natural, torna-se o caminho
do sonho. O pensamento consciente, nesse momento, vai pouco a
pouco cedendo lugar ao inconsciente, do mesmo modo que a luz do
dia vai-se tornando insensivelmente a luz da noite, o azul da noite
(1988, p. 107).

Enquanto o amarelo, para os dois estudiosos representa algo:

Intenso, violento, agudo até a estridência, ou amplo e cegante como


um fluxo de metal em fusão, o amarelo é a mais quente, a mais
expansiva, a mais ardente das cores, difícil de atenuar e que
extravasa sempre dos limites em que o artista desejou encerá-la. Os
raios do Sol, atravessando o azul celeste, manifestam o poder das
divindades do Além. ... No par Amarelo-Azul, o amarelo, cor
masculina, de luz e de vida, não pode tender para o esmaecimento
(1988, p.107).

No romance, percebe-se bem a presença dessas simbologias das cores,


visto que o azul da porta é bem forte, através do qual o olhar ultrapassa qualquer
obstáculo. Além disso, a porta é fácil de abrir e possui duas chaves: uma que a
abre por dentro e outra, por fora. Entretanto, a chave está dentro da flor amarela
e é preciso que Alexandre consiga pegá-la. Para isso, ele precisa dominar o medo.
Justifica-se, então, a cor dessa flor, capaz de facultar, pela sua vibração intensa,

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Disponível em: <http://www.beakauffmann.com/mpb_c/casa-no-campo.html>. Acesso
em: 09 set. 2013.

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coragem para o protagonista não desistir de seu intento. Dominar o medo, assim
como ter a chave, significa amadurecer, superar os obstáculos, ser perseverante
nos seus sonhos, conseguir abrir a porta de seus desejos. E a casa da madrinha
possui a realização de todos os desejos: cadeira que estica, conforme o pedido;
armário, com roupas as quais se deseja; prateleira, com sapatos de que se gosta;
armário, com comidas à escolha. Além disso, possui mar com água morna e
quintal com árvores, cascatas, rios, gruta, caverna, enfim, mistérios para
desvendar. A casa representa, então, o espaço ideal, já a cidade, o espaço da
civilização que corrompe o homem.
Alexandre parte com o objetivo de encontrar a “casa da madrinha”, pois sua
família está passando por dificuldades. Ele mora na favela em Copacabana com
sua mãe, dois irmãos e duas irmãs. Sua mãe lava e passa para fora, as irmãs são
empregadas domésticas, o irmão mais velho e Augusto vendem sorvetes na
praia, o pai é alcoólatra e não trabalha, vive caído pelo chão. Com o tempo, as
dificuldades vão aumentando: uma das irmãs, que ajudava nas despesas, casa-se,
e o irmão mais velho é internado no hospital por causa de uma doença séria que
contraiu. Assim, Alexandre começa a ajudar, vendendo amendoim aos domingos
e depois, aos sábados. Nas férias, ele trabalha todos os dias, a não ser quando
chove.
As aulas recomeçam, mas Alexandre não volta à escola, pois Augusto resolve
se casar e deixa de ajudar nas despesas da casa. Alexandre, então, começa a
vender sorvete, mais rendoso, embora mais pesado de carregar. Até que, certo
dia, Augusto vai trabalhar em uma fábrica em São Paulo, deixando Alexandre
desconsolado. Para piorar a situação, começa o inverno no Rio e não há como
vender sorvete na praia. Resolve, então, ir ao centro pegar táxi para freguês. No
entanto, já havia crianças que faziam esse tipo de “trabalho”, o que exclui a
iniciativa de Alexandre. Essa situação é o reflexo dessa sociedade capitalista em
que o dinheiro passa a ter papel preponderante, gerando diferenças sociais e
miséria. Com a situação cada vez mais difícil e pelo fato de Augusto não retornar
mais para casa, Alexandre resolve ir à procura da “casa da madrinha”, no interior.
Desanimado com a situação, sai em busca de seu ideal. Explorando seu talento
individual, supera gradativamente obstáculos para poder sobreviver, durante a
longa viagem.
Por meio do relato de Alexandre, Vera fica sabendo o porquê deste menino
da cidade grande ter vindo para uma cidade do interior. Nota-se que, enquanto
Alexandre representa o menino da classe social pobre, Vera representa a classe
social melhor estruturada, oposta a de Alexandre. A menina mora com sua
família – mãe e pai –, que possui um sítio com plantação de flores, de onde tira o
sustento. Ela estuda, tem deveres e horários a cumprir, mas não passa por
necessidades como Alexandre. Além disso, ela tem uma visão mais realista da
vida, enquanto Alexandre é sonhador. Parece que, como forma de enfrentar a
triste realidade, ele precisa viver em uma dimensão onírica. Esse fato pode ser
exemplificado com a dúvida de Vera, se, realmente, Alexandre possuía uma
madrinha ou não.
Os pais de Vera não aceitam a amizade entre eles, pois têm preconceito
contra o menino – pobre, sem família, “[...] garoto que vive à toa na estrada”
(NUNES, 2002, p.73). Assim, pedem para Vera dizer a Alexandre que vá embora
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do sítio, pois “[...] já tinham dado comida pra eles, já tinham deixado eles ficarem
um dia e uma noite no sítio” (NUNES, 2002, p.71), além de dinheiro para comida
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de uns três dias. Isso deixa Alexandre muito zangado, pois não concorda com a
visão dos pais de Vera:

– Como é que eu tô à toa na estrada se eu tô indo pra casa da minha


madrinha?!

Vera não gostava quando gritavam com ela; zangou também:

– Mas tá na cara que você não tem madrinha nenhuma! Aquilo tudo
foi história que o Augusto inventou pra você dormir! (NUNES, 2002,
p. 74).

Entretanto, quando Vera argumenta que era a opinião de seus pais,


Alexandre compreende, pois, para ele, os adultos não possuem sensibilidade.
Segundo Alexandre, os adultos sentem inveja das madrinhas das crianças. Assim,
Alexandre, em vez de se despedir e enfrentar a dura realidade, resolve inventar
um cavalo, mergulhando novamente no mundo onírico. Ele se chama Ah, é
amarelo, de rabo cor de laranja, arrastando no chão. Pela cor, ele se configura
como um símbolo de renovação e, pela significação da interjeição que compõe o
seu nome, como uma descoberta. Alexandre e Vera pulam com ele a cerca que
limita o sítio, representação da fronteira da liberdade. Ao ultrapassarem o
proibido, só encontram a escuridão, o medo, o castigo pela desobediência. Assim,
para superarem o medo, desenham no escuro, “desconstruindo” este sentimento
negativo e construindo outro positivo: a esperança. Com esse ato, Alexandre e
Vera ultrapassam fronteiras geográficas e psíquicas, levando-os à realização do
sonho. Alexandre, ao desenhar uma porta com maçaneta, fechadura, chave e
tudo, faz com que a porta se abra, ao girar a chave. Assim, ele e Vera encontram
a casa da madrinha, onde todos os sonhos são realizados.
Verifica-se que, no texto de Lygia Bojunga, não é por meio da voz do adulto
que a sanção é imposta à criança, pelo contrário, a própria criança percebe que
cometeu uma transgressão e se sente amedrontada. Contudo, como é
competente, encontra meios de superar suas angústias. A desobediência é
tratada de maneira que leve a criança a refletir sobre o seu ato e não,
simplesmente, sentir-se culpada e ser castigada pelos adultos ou pelos elementos
presentes no espaço da aventura. Desse modo, o enredo eleva a autoestima da
criança, pois a representa como capaz de encontrar meios para superar situações
de conflito.
O pavão, símbolo do período de repressão, cura-se das torturas sofridas. A
Gata, namorada do pavão, aparece também na casa da madrinha. Ela tinha
desaparecido, pois não conseguira escapar da própria casa, quando a demoliram
para construir um edifício. A maleta da professora de Alexandre, que havia
sumido, reaparece também. Augusto retorna, enfim, cumprindo a promessa feita
ao irmão e surpreendendo a todos na casa da madrinha. Ele representa o grande
contador de histórias, que faz com que Alexandre viaje no mundo da imaginação.
Dessa forma, além desses desejos mais íntimos, os vitais, como habitação,
alimentação e vestimenta, também, são atendidos.
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Vera, entretanto, desperta do mundo da fantasia e lembra-se das horas. Essa
garota, por ter sido, pelos pais, sempre cobrada para cumprir seus deveres e
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nunca se esquecer das suas obrigações, não consegue se desligar totalmente do
mundo real. Assim, ela resolve ir embora sozinha, pois Alexandre ficaria muito
bem na casa da madrinha com seu irmão Augusto e todos os desejos realizados.
Não precisaria mais sentir “[...] um buraco danado na barriga” (NUNES, 2002, p.
46). Contudo, quando estava partindo, a janela que vivia empenada resolve abrir
só por desaforo, acordando todo mundo. Todos resolvem voltar com Vera, mas,
ao chegarem do outro lado, percebem que o Augusto e a Gata não tinham vindo,
embora também tivessem montado no cavalo. O Pavão também voltou a pensar
pingado como antes. O cavalo Ah foi desaparecendo, precisando ser inventado
novamente. Tudo retorna de acordo com a realidade. Portanto, era preciso sair
novamente à busca do mundo onírico, da “casa da madrinha”.
Percebe-se que Lygia Bojunga constrói sua narrativa, pelo viés literário,
misturando, para tanto, sonho e realidade, rompendo e fundindo os limites de
um e de outro. A imaginação no seu construto transcende e passa a ser parte
integrante da realidade. Não se sabe ao certo se a história narrada por Augusto
sobre a madrinha de Alexandre é verdadeira ou apenas uma história inventada
para ele dormir e enganar a fome. Isso é, inclusive, questionado por Vera e por
seus pais. Apesar de Vera ter a experiência utópica de conhecer a “casa da
madrinha” com Alexandre, ela não consegue se envolver totalmente nessa
utopia. No momento em que Alexandre vai se despedir dela, ele vê a flor amarela
em sua caixa e diz:

– Olha a flor amarela que enfeitava o peito da porta azul. Como é


que ela veio parar na minha mala? Foi você que botou ela aqui?

Vera olhou a flor; olhou Alexandre; “por que será que ele tá achando
que a flor que eu botei na mala é a flor que enfeitava a porta azul?
Essa alamanda é muito menor...”

Alexandre enfiou a mão na flor pra pegar a chave da casa.

Vera pensou: pronto, agora ele vai ver que é uma outra flor.

Alexandre pegou a chave e guardou no bolso.

– Que legal! Agora vou viajar com a chave da casa no bolso; não vou
ter mais problema nenhum. Lembra o que o Augusto falou?

Vera ficou olhando pra flor sem entender (NUNES, 2002, p. 93-94).

Assim, percebe-se que, em Alexandre, a inquietação, o estado de devir é


perpétuo, bem como a interrogação, a procura e a luta sempre o acompanham,
pois ele necessita disso para poder viver devido às suas carências. A
incompletude está presente nele, justamente por isso, ele se configura como
mais humano e atraente para o leitor. Este protagonista é um ser que está
sempre em transformação, metamorfoseando, alçando voos, saindo de seu
mundo interior para o exterior, interagindo, socializando com outros para
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crescer. Logo, tanto Alexandre, como Augusto falam que precisam seguir a vida

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toda até encontrar a “casa da madrinha”, é a busca utópica sem fim que os
define.
Para Vera, “[...] toda a vida é tão comprido” (NUNES, 2002, p.93). Assim, pelo
fato de não sentir essas carências, ela não se entrega totalmente à fantasia. Essa
personagem representa o ser preso ainda às convenções, às normas, às
obrigações, ao relógio, às horas.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Pode-se concluir que o consumo da obra A ilha perdida está assegurado,


mesmo no século XXI, por diversos fatores. Pelo seu caráter ideológico, ela
agrada aos adultos que a disponibilizam para leitura. Por apresentar processos
formais próprios da cultura de massa, atende aos jovens com pouco contato com
textos diversos e excessiva exposição a produtos da literatura trivial. A obra
conforta o jovem leitor, porque atende ao seu horizonte de expectativa. De
acordo com Jauss, obras como A ilha perdida, atendem o horizonte de
expectativa,

pelo fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de


simplesmente atender as expectativas que delineiam uma tendência
dominante do gosto, na medida em que satisfaz a demanda pela
reprodução do belo usual, confirma sentimentos familiares, sanciona
as fantasias do desejo, torna palatáveis [...] (1994, p.32).

Elegendo-a para leitura, ele evita realizar um complexo exercício de


raciocínio e interpretação, geralmente, exigido por obras críticas e provocadoras.
A editora, por sua vez, ciente de que a obra possui demanda, mantém-na em
circulação.
A ilha perdida aproxima-se dos textos da chamada literatura de tese, nos
quais um discurso domina univocamente, pois produzido por um emissor que
conhece e prevê com bastante exatidão a enciclopédia e volitivas do leitor ideal
(SILVA, 1993, p. 328). Esse leitor, projetado por Dupré, habituado ao mínimo
esforço, busca na leitura entretenimento e consumo fácil. Ao atender a seus
anseios, a autora limita o número de vazios em sua obra, impedindo que a
produtividade do leitor implícito entre em jogo na leitura. Por consequência, há
um estreitamento da atividade imaginativa do leitor que, ao receber a obra de tal
forma estruturada e fechada à sua interpretação, não tem condições de projetar
uma nova realidade àquela apresentada. Então, guiado pela ótica do narrador, só
pode manifestar atitudes de aceitação ou rejeição acerca das normas e valores
expressos na narrativa.
O texto de Bojunga, ao contrário, solicita a produtividade do leitor que, na
ânsia de compreender seus símbolos e sua linguagem metafórica, realiza a
projeção imagética e, por consequência, projeta-se nas personagens,
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são falhas, equivocam-se, por isso são atraentes para o leitor, permitindo-lhe

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identificação e projeção. Como nem todas conseguem, graças à vivência,
mergulhar sem reservas no universo onírico, elas, também, representam as
limitações de sujeitos presos ao pragmatismo e, por isso, incapazes de ampliar
seu imaginário.
Dupré, ao subordinar seu texto ao horizonte de expectativa de seus leitores,
que esperam ser guiados sem esforço por um narrador, mesmo precisando
suportar seus julgamentos e comentários didáticos, objetiva que eles, também,
se subordinem ao ponto de vista da obra. A escritora, ao eleger esse narrador
controlador, opta pela perda da qualidade da narrativa em favor da pedagogia.
Desse modo, resulta em sua obra uma assimetria que impossibilita amenizar o
contraste entre o poder do narrador e a dominação do leitor implícito,
condenando a obra, por não ter uma solução esteticamente convincente, a não
atingir o estatuto estético.
Já a obra de Bojunga, por relativizar o papel do narrador e apresentar tanto
os adultos, quanto os jovens como passíveis de erros, revela-se libertária, pois
não idealiza um e outro, justificando a validade do discurso de ambos, sem
sobrepô-los. Em A casa da madrinha, Bojunga atinge o estatuto estético, tanto
pela exploração da linguagem, quanto pela abertura do desenlace da narrativa
que obtém sua concretude na interpretação do leitor.
Pode-se notar, na comparação entre as obras, que Bojunga assume
perspectiva bem diversa da de Dupré. Na obra de Nunes, o campo é local ideal
para a realização dos sonhos e emancipação dos medos e a casa familiar não é
idealizada. Já em Dupré, o campo é apenas espaço de lazer, indicado para curtos
períodos de permanência, pois a cidade e a casa familiar são espaços ideais para
a permanência dos jovens.
No que diz respeito à fantasia, a obra de Bojunga configura-se como
simbólica e rica em imagens. Suas personagens, jovens ou animais possuem o
mesmo estatuto, não se classificam nem como boas ou más, pois não prevalece o
maniqueísmo. A obra de Dupré, por sua vez, prima pelo realismo, inclusive na
identificação dos espaços. Além disso, sua abordagem é maniqueísta, por isso
divide as personagens entre boas – obedientes e cordatas – e más –
desobedientes e rebeldes.
Pelo exposto, verifica-se que conhecer as obras eleitas como atraentes ou
classificadas como difíceis pelos alunos, permite detectar os seus horizontes de
expectativa. Justamente, esse tipo de diagnóstico faculta ao mediador propor
outras leituras que, situadas no eixo da ruptura, facultam a esses alunos a
ampliação de seus horizontes e de suas perspectivas estéticas.

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The narrative speech in The Lost Island, by
Maria José Dupré, And The Godmother’s
House, by Lygia Bojunga
ABSTRACT

This paper aims to examine the provisions of the narrator in two discursive books of two
different authors: Maria José Dupré’s The lost island and Lygia Bojunga Nunes’ The
godmother's house. To achieve this goal, we intend to observe why Dupré’s book, which
is marked by a monologic discourse and by the sovereignty of the narrator, is considered
attractive by young people, and the work of Bojunga, characterized by a polyphonic
discourse, is pointed out by young readers as a difficult reading. Through the theoretical
support of reception aesthetics, we present a possibility of reading both books reflecting
on the provisions of the narrator and his interference in the role of the implied reader.
Furthermore, we intend to reflect on the horizon of expectation of young readers who
approve Dupré and reject Bojunga.

KEYWORDS: Narrator. Reading. Reception aesthetics. Horizon of expectation.

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COELHO NETO, José Teixeira. O que é utopia. São Paulo: Abril cultural Brasiliense,
1985. p. 7-9. (Coleção Primeiros Passos).

DUPRÉ, Maria José. A ilha perdida. Ilustr. Edmundo Rodrigues. 11. ed. São Paulo:
Ática, 1978.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes
Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999, vol.2.

JAUSS, Hans Robert. A história da Literatura como provocação à Teoria Literária.


São Paulo: Ática, 1994.

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ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil e o leitor. In: ______; MAGALHÃES, Ligia


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Recebido: 17 abr. 2017
Aprovado: 19 jun. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.6029
Como citar: Matsuda, Alice Atsuko; FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. O discurso narrativo em
Ilha Perdida, de Maria José Dupré e A casa da madrinha, de Lygia Bojunga. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24,
p. 115-131, mar. 2017. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

Direito autoral: Este artigo está licenciado sob os termos da Licença Creative Commons-Atribuição 4.0
Internacional.

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https://periodicos.utfpr.edu.br/rl

O LEITOR ADOLESCENTE EM QUERIDA


RESUMO
Gisela Johann Há 42 anos a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ seleciona obras que são
johanngisela@gyahoo.com.br
Universidade Estadual do Oeste do merecedoras do Selo Altamente Recomendável. A escritora Lygia Bojunga, de forma
Paraná, Cascavel, Brasil.
recorrente, tem recebido a láurea. Sua mais recente obra premiada foi Querida, publicada
em 2009 e premiada em 2010. O presente trabalho busca identificar em que medida a
obra Querida (2009) dialoga com o leitor, considerando-o pertencente à faixa etária cuja
obra foi premiada, aos adolescentes. De fato, para identificar tais aspectos de diálogo
(leitor-livro), este trabalho considerará a literatura como uma representação simbólica e
imaginária das relações sociais, amparando-se nos conceitos e discussões da Sociologia da
Leitura, bem como, da estética da recepção, a partir daquilo que a obra Querida
pressupõe de seu leitor modelo, apontando o que este deve ser capaz de entender para
preencher os vazios do texto. Dessa forma, este estudo procura indicar, também, a
relevância dos aspectos socioculturais imbricados na construção deste leitor modelo.
PALAVRAS-CHAVE: Querida. Leitor. Lygia Bojunga.

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INTRODUÇÃO

Querida (BOJUNGA, 2009) foi uma das obras premiadas em 2010 pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) com o selo de Altamente
Recomendável. Este selo pode ampliar a visibilidade da obra, proporcionando-lhe
aumento nas vendas, a procura no mercado específico como livrarias e
bibliotecas, até a sua finalidade: a leitura feita e concretizada pelos adolescentes.
Desse modo, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) pode
ser considerada fomentadora de um grupo seleto de livros destinados aos
adolescentes e às crianças, de maneira geral. Mas, o que há em Querida (2009)
para que a FNLIJ considerasse esta obra de interesse aos adolescentes e porque
seria recomendável sua leitura?
É a particularidade na forma de narrar aliada ao que se espera do leitor
que permite a interação entre leitor e texto. Conforme Hunt (2010), a interação
entre texto e leitor exige deste toda a sua concentração e que ele acione todas as
suas experiências culturais, sociais e psicológicas.
Deste modo, para que haja diálogo entre um texto e seu leitor é necessário
que este se perceba dentro do contexto, ou ainda, entenda esse universo
ficcional de maneira a completar as lacunas textuais. As lacunas de um texto,
bem como a capacidade de compreendê-las são explicadas por Umberto Eco
(1994) através do conceito de leitor modelo. Para este autor, o leitor modelo não
é o empírico, pois os leitores empíricos podem ler de diversas formas, sem uma
lei que os possa regê-los, cada um irá ler a partir de suas próprias experiências. À
vista disto, leitor modelo é aquele pensado pelo autor, disposto a acompanhar o
texto tal qual um expectador de um filme, em que o diretor espera determinadas
reações do seu público: “Eu chamo de leitor modelo uma espécie de tipo ideal
que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (ECO, 1994,
p. 15).
(Isto posto, esperar que o leitor caracterize os personagens é uma das chaves
que movimentam a narrativa, pois, segundo Eco (1994) “O texto é uma máquina
preguiçosa que espera muita colaboração da parte do leitor” (p. 34).) Dessa
maneira, o leitor estaria entrando no jogo, no processo de aquisição daquilo que
está sendo lido.
Assim, esta análise busca apresentar os aspectos literários nas formas de
narrar em Querida (2009) que se engendram para construir uma narrativa que
associa temáticas comuns aos adolescentes aos questionamentos do processo de
transição entre o pensar adulto e o pensar criança.

O UNIVERSO DO ADOLESCENTE

O universo real do adolescente contemporâneo está inserido em uma


sociedade que outrora se pautava nas regras ditadas pela Igreja, Estado, Escola e
a Família tradicional. Não obstante, há mudança naquilo que ditaria as regras na
contemporaneidade, Bauman (2001) a nomeia como modernidade líquida. Para
esse autor, a sociedade, dentro desse modelo, estaria sendo motivada e
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impulsionada pelo consumo. Desta maneira, as instituições regulamentadoras
transitariam para a ciência e a moda. A ciência explicaria o mundo e as formas de
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bem viver, pautadas no corpo saudável, cientificamente comprovado com
exercícios físicos e alimentação rigorosamente espiada pela medicina. A moda,
por sua vez, seria a grande incentivadora da exibição desse corpo consumidor,
provendo mudanças rápidas de modelos de vestimenta e tecnologia,
impulsionando o consumo exacerbado.
Dentro desse contexto, a família tradicional (pai, mãe e filhos) não ocuparia
mais lugar de formadora de opinião, o que poderia ocasionar ao adolescente
contemporâneo uma crise sobre as funções da família e escola. Estas tinham a
incumbência de refrear e regulamentar os seus impulsos e desejos, em nome da
estabilidade e busca de um espaço fixo, assim que esse adolescente tornava-se
adulto. Contemporaneamente, o que se apresenta ao jovem é a efemeridade
como solução. O amor é líquido, pois se liquefaz no desejo, no impulso,
acelerando os relacionamentos a não terem continuidade e, tampouco,
estabilidade. Há uma busca constante pela satisfação dos desejos, que podem ser
materiais ou físicos.
Nesse viés, a Arte, por conseguinte a Literatura, se constrói e desconstrói,
buscando ressignificar o que já está produzido. Fredric Jameson (1985) explica
que a Arte apresenta uma emergência atrelada ao presente perpétuo que a
sociedade capitalista multinacional promove. Essa promoção tende a eliminar o
passado em uma perpétua mudança que apaga as tradições sociais anteriores.
Jameson ressalta, ainda, que a Arte estaria a serviço do consumo, ou seja, da
lógica capitalista, mas, o próprio autor questiona “se também não existe uma
forma de resistência a essa lógica”. (JAMESON, 1985, p.26).
A obra literária pode, então, subverter a sua lógica e o primeiro passo para
entender como esse processo se dá é entender quem é o leitor da obra.

O DESTINATÁRIO DA LITERATURA JUVENIL E QUERIDA

A narrativa começa com o personagem já adulto lendo a notícia de que a


artista Ella faleceu, ele então reconhece a mulher e começa recordar de um
episódio da infância que marcou profundamente sua vida e o fez conhecer uma
pessoa muito especial, seu tio.
Assim, o episódio inicia com o protagonista, um menino de dez anos cujo
nome é Pollux. Mas, há também um importante personagem que divide a cena
com o menino, o Pacífico, trata-se do tio do garoto, que há muito tempo não tem
contato com a família. A narrativa fala, então, da jornada do Pollux para
encontrar seu tio e conta como se deu esse encontro que aproximou as duas
gerações em torno de um sentimento em comum: o ciúme.
Este ciúme é quem impulsiona Pollux a fugir de casa e procurar o tio, pois,
após a morte do pai, a mãe casa-se novamente, o que faz o garoto imaginar que
estaria perdendo a sua mãe para outro homem, que não era seu pai. Ele tenta de
muitas maneiras fazer com que a mãe não goste do marido, mente e constrói
histórias que apresentam o padrasto como um vilão. Mas, todas as suas mentiras
não lhe dão triunfo de separar o padrasto Roberto da sua mãe, desta forma, o
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menino resolve fugir de casa como vingança, para fazer com que a mãe sofra a
ausência dele. Busca então encontrar o seu tio Pacífico e começa a conhecer um
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pouco mais sobre esse ente da família que se distanciara de todos em nome da
devoção por uma mulher, Ella. O tio mora em um retiro, afastado da cidade e
vive nesse lugar servindo a mulher que sempre amou. Nesse lugar, Pollux
compreende seus sentimentos com ajuda de Ella e Pacífico, resolve voltar pra
casa e encarar os desafios que a vida estava lhe proporcionando.
A partir do enredo de Querida, essa análise fixar-se-á nos aspectos da
narrativa que a tornam especialmente recomendada ao público jovem, e ainda,
enfatizar como o leitor pode perceber tais aspectos e o que estes podem
interferir na sua formação leitora.
O primeiro aspecto da obra que se pode destacar como elo entre o leitor e o
livro é a forma de narrar de Lygia Bojunga (2009), os diálogos e as formações
lexicais aproximadas da linguagem oral, tão comum entre os adolescentes,
permitem a aproximação desse leitor ao texto: “- Pollux? O Pollux fez que sim. –
que Pollux? – O Pollux, ué.” (BOJUNGA, 2009, p. 14).
Sobre a forma de narrar de Lygia Bojunga é importante destacar que ao
passo do diálogo a autora não descreve as características físicas dos personagens,
ficando a cargo do leitor essa função. Portanto, Querida se afina ao leitor
exatamente naquilo que lhe é mais volátil, a sua subjetividade. Assim, é
exatamente esta não demarcação de características físicas que concretizam as
inúmeras possibilidades de identificação com o leitor. O texto não fala a cor do
cabelo do Pollux, muito menos descreve o tom da sua pele. Bojunga (2009) não
reifica os estereótipos sociais, pelo contrário, deixa o leitor construir seu
personagem, direcionado apenas naquilo que lhe é fundamental, a personalidade
embutida no jeito de falar de cada personagem.
Cabe salientar que o leitor da literatura juvenil é típico da sociedade atual,
dentro da sua inconstância, buscando informações a passos acelerados. Colomer
(2003) explica que a literatura juvenil adéqua-se as características do seu público,
definindo o leitor implícito dentro de uma série de características as quais
convém apresentar. Primeiro mostra-se um leitor próprio da sociedade atual,
assim, os textos que lhe são dirigidos refletem as mudanças sociais e educativas
da sociedade pós-industrial e democrática. Isto proporciona aos textos
modificações significativas, revelando uma narrativa que se preocupa com os
temas que são relevantes atualmente, tanto na descrição do mundo como nos
valores por este proposto. Assim, a autora ainda enfatiza:

O destinatário da literatura infantil e juvenil de qualidade pode


definir-se como um leitor criança ou adolescente, que aprende
socialmente e a quem se dirige textos que pretendem favorecer sua
educação social através de uma proposta de valores, de modelos de
relação social e de interpretação ordenada do mundo. (COLOMER,
2003, p. 173).

Partindo destas considerações pode-se dizer que Querida mostra-se como


uma narrativa que se afina com os temas e as características explicadas por
Colomer (2003) sobre o leitor implícito da literatura juvenil. Assim, se este leitor
está ambientalizado na sociedade atual convém lembrar que os modelos e
estruturas familiares mudaram, e não há mais a regra absoluta da família nuclear,
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formada pela mãe, pai e os filhos. Desta maneira, no trecho a seguir, nota-se esta
evidência da formação familiar, que destoa da tradicional: “(...) Eu conheço meu

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filho mais do que a mim mesma. Foi só eu me casar com o Roberto que o Pollux
mergulhou de cabeça numa crise de ciúme...” (BOJUNGA, 2009, p. 98-99). Em
Querida, então, a família apresentada ao leitor definiu-se em mãe, filho e
padrasto. Deste modo, observa-se na narrativa de Lygia Bojunga (2009) como a
figura do padrasto pode manifestar-se dentro da família contemporânea:

(...) O Roberto já não sabe mais o que fazer para ganhar o amor de
Pollux (...) O Roberto é um vegetariano convicto porque não aguenta
pactuar com a morte de nenhum bicho, nem que seja uma miserável
galinha ou um infeliz caranguejo; é uma pessoa totalmente voltada
para a construção de um mundo de paz. (BOJUNGA, 2009, p. 99-100)

Assim, tal citação mostra um aspecto que pode aproximar o leitor daquilo
que ele vê e vive, pois, a literatura juvenil contemporânea de qualidade não
pretende se destacar pela reificação de estereótipos familiares e sim, apresentar
aquilo que a sociedade vive, sem julgamentos de superioridade ou inferioridade,
quebrando o paradigma conservador de que um padrasto é sempre uma figura
maligna aos enteados.
Outro traço do leitor implícito explicado por Colomer (2003) refere-se ao
leitor que vive na inconstância do crescimento físico e psicológico, ou seja, a
adolescência: “um leitor cuja idade aumenta que amplia progressivamente suas
possibilidades de compreensão do mundo. (...) a quem se dirige textos que
deveriam diferenciar segundo as características psicológicas da idade.”
(COLOMER, 2003, p.175).
Para Carrano (2005), a juventude atual não se prende mais aos conflitos a
respeito de ideologias sociais deslocadas da sua realidade, outras questões
parecem ser mais emergenciais à juventude:

A juventude é uma categoria sociológica inventada pelos adultos;


entretanto, torna-se cada vez mais difícil defini-la. Quando muito,
podemos elaborar provisórios mapas relacionais. Os conflitos que
envolvem a juventude não são marcados por adesões ou
contraposições a utopias e ideologias sociais distantes. As questões
emergentes dos jovens relacionam-se ao nascimento, à morte, à
saúde, à sobrevivência imediata, ao prazer e ao divertimento e
colocam em primeiro plano as relações com a natureza, a identidade
sexual, os recursos comunicativos e a estrutura do seu agir
individual. (CARRANO, 2005, p. 137).

À vista disso, para que o leitor adolescente possa construir identificação com
o texto, este deveria partir dos pontos de interesse desta categoria – a juvenil. De
acordo com Leahy-Dios (2005), de maneira generalizada, os principais interesses
dos adolescentes têm sido o conhecimento do próprio corpo, as dificuldades nas
relações familiares, sociais, afetivas, amorosas e sexuais.
Página | 137 Em Querida enfatizam-se as relações afetivas do protagonista Pollux com sua
mãe. Pollux exige a presença constate da mãe e quanto mais o padrasto tenta

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conquistá-lo mais o garoto exige da mãe provas de amor. As histórias que este
personagem inventa a cerca do padrasto o envolvem de tal maneira que até ele
mesmo acredita serem reais: “Ele tem uma imaginação tão poderosa que ele
mesmo acaba acreditando em tudo que inventa” (BOJUNGA, 2009, p. 99). Tanto
Pollux como seu tio Pacífico revelam o sentimento de ciúme, nota-se isto na
passagem a seguir em que a mãe do Pollux conversa ao telefone com Pacífico:
“(...) E se você já está gostando do meu filho, nem que seja só um pouquinho,
ajude ele a compreender que é o ciúme, e não o Roberto o inimigo que ele tem
que vencer (...)” (BOJUNGA, 2009, p. 100).
É em torno de tal sentimento que a narrativa se desenvolve, atrelando ao
texto as possibilidades da sociedade atual, e também, apresentando sentimentos
universais, que ultrapassam as fronteiras do tempo. Por conseguinte, para
comprovar a atemporalidade do assunto, destaca-se o trecho no qual a mãe de
Pollux revela o ciúme que o Pacífico sentia:

(...) Eu era bem pequena quando você saiu lá de casa, mas nossos
irmãos sempre me falam que você tinha um amor exagerado pela
nossa mãe e nunca me perdoou a fatalidade dela ter morrido
quando me deu a luz. Então, você deve saber, melhor que ninguém,
o que o ciúme faz com a gente (...) (BOJUNGA, 2009, p. 99).

Os dois personagens, o adulto e o menino conhecem todo o sofrimento do


ciúme, Bojunga (2009) apresenta através do diálogo entre ambos como esse
sentimento é arrebatador e doentio:

(...) Ela falou que você também tinha um amor doente pela tua mãe
(...) Eu nunca tinha pensado que o amor podia ficar doente (...) como
é que a gente sabe quando ele adoece? (...) vai perdendo a alegria,
vai deixando de se importar com os outros, fica só pensando na
doença, acaba até ficando meio cansado de viver, o que , em outras
palavras: significa: vontade de morrer.(BOJUNGA, 2009, p.155)

Nesse viés, Michèle Petit aponta para a importância da literatura no


desenvolvimento social e psicológico do leitor adolescente:

Em especial na adolescência, a leitura pode ocupar um papel


formador, capaz de mudar os rumos da vida e reorganizar os pontos
de vistas, ao nos mostrar que estamos experimentando afetos,
tensões e angústias universais. (PETIT, 2008, p. 50).

Querida de fato apresenta esta narrativa que possibilita que o leitor


experimente o ponto de vista de quem sofre o ciúme, como também, de quem é
objeto de tal sentimento. Para Petit (2008), a literatura permite, além da
apropriação da língua, um entendimento das experiências vividas, afinal, “(...)
quanto mais formos capazes de nomear o que vivemos, mais aptos estaremos
para vivê-lo e transformá-lo.” (PETIT, 2008, p. 71).
Relacionando esta última citação com Querida pode-se destacar que Pollux
Página | 138 reconheceu aquilo que sentia através do teatro que Ella encenou:

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(...) eu sempre achei que o nome que você escolheu pra mim não
combinava comigo, sabe, pai; então pra este Pollux aqui (...) eu
escolhi um nome que tem tudo a ver: CIÚME – gritou pra estrela. –
Ciúme – repetiu mais baixo, se virando pro Pollux. (...) (BOJUNGA,
2009, p. 125).

Conhecendo o que sentia, Pollux poderia admitir suas mentiras e aceitar o


amor do padrasto, porque ele não queria ser aquela imagem feia que o ciúme
revelou durante o teatro.

(...) Agora a cara dela era de uma velha-velhíssima, coberta de rugas


e deformada por cicatrizes, manchas e feridas que o capuz do
manto, puxado pra testa, não chegava a disfarçar. A figura entrou
em cena curvada sobre uma bengala, arrastando um andar
defeituoso para junto do Pollux. (...). (BOJUNGA, 2009, p. 123-124).

Considera-se assim que a encenação fora peça chave para que o


personagem entendesse o quão prejudicial o ciúme era para si mesmo.
Mostrando, desta forma, que a literatura ajuda o leitor a reconhecer-se construir
a sua própria imagem, a partir daquilo que vivencia na leitura escrita ou na leitura
de uma peça teatral.
Além disso, Bojunga (2009) constrói um protagonista leitor, que faz uso de
fragmentos do poema de Gonçalves Dias para reconhecer e enfrentar aquilo que
está sentindo no momento da fuga:

Não demorou nada pro medo chegar. E se ele fosse assaltado?


Quem é que iria socorrer?(...) De coração sacudindo o peito,
começou a recitar pensando os versos do Y~Juca~Pirama, que tinha
decorado tempos atrás para recitar pro pai. Tu choraste em
presença da morte?/Na presença de estranhos choraste?/Não
descende o covarde do forte;/Pois, choraste, meu filho não és!
(BOJUNGA, 2009, p. 32-33).

Sustentado pelo poder das palavras do Juca Pirama, Pollux é capaz de


estabelecer correlações entre seus sentimentos e aquilo que é vivenciado no
poema supracitado. É inegável que o leitor que se espera para esta obra consiga
perceber as dificuldades do protagonista e, por outro lado, compreenda a
participação da Arte na vida e nas resoluções dos problemas que tanto apavoram
tal personagem.
Se de um lado a sociedade contemporânea se mostra líquida e pauta suas
ações no consumo, no efêmero, por outro lado, os sentimentos universais ainda
perduram, existem e persistem na busca do sentir-se e entender-se. A literatura,
então se justifica para além do desespero:

Página | 139 Se hoje a literatura tem importância, isto se deve basicamente ao


fato de nela se ver, como ocorre a muitos críticos convencionais, um
dos poucos espaços remanescentes nos quais, em um mundo
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dividido e fragmentado, ainda é possível incorporar um senso de
valor universal; e nos quais, em um mundo sordidamente material,
ainda se pode vislumbrar um raro lampejo de transcendência.
(EAGLETON apud LOTTERMANN, 2010, p. 13).

CONCLUSÕES FINAIS

Uma literatura de qualidade é aquela que o leitor pode sentir-se participante


tal qual evidencia Eco (1994) , quando explica que o leitor vai preenchendo aquilo
que o texto não diz, mas espera do seu leitor a capacidade de apreender. Os
diálogos e as escolhas na forma de narrar deixam, desta maneira as pistas que
levariam o leitor em formação a construir sentido para o texto, despertando
neste a capacidade de reflexão do mundo que o cerca.
O que o leitor, então, pode encontrar em Querida que sustente o selo de
altamente recomendável? Querida apresenta, assim, uma narrativa em contato
com seu público, espera-se desse leitor implícito conseguir compreender-se
dentro do universo ficcional trazendo a narrativa para a sua vida, o seu meio
social contemporâneo. Bojunga (2009) considera o seu leitor implícito alguém
capaz de perceber que os seus personagens são subjetivos e que a essência deles
pode ser adaptada a qualquer imagem física, sem obstruir o fluxo da narrativa.
Portanto, Querida apresentou uma narrativa que fornece amplas
possibilidades de se ajustar aos aspectos do leitor juvenil atual e daquilo que se
espera dele. Além disso, considerando que o leitor implícito de tal obra é um
leitor em formação, Querida fornece subsídios para que este leitor consiga
perceber as diferentes leituras que um texto literário pode oferecer.

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THE TEENNAGE READER IN QUERIDA
ABSTRACT

Since 1974 the Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ choose the books
that are worthy of the Highly Recommended Seal. The writer Lygia Bojunga has received
the honor repeatedly. Her most recently awarded book was Querida, in 2010. This book
was published in 2009. This paper seeks to identify in what extent Querida (2009)
dialogues with the reader, considering it as directed to the age group of teenagers. In fact,
in order to identify these aspects of dialogue (reader-book), this paper will consider
literature as a symbolic and imaginative representation of social relations, using as
approach the concepts and discussions promoted by the Sociology of Reading, as well as
the reader-response criticism from what Querida assumes its model-reader, pointing out
what he/she must be able to understand in order to fill the gaps in the text. Thus, this
study also seeks to indicate the relevance of the sociocultural aspects imbricated in the
construction of this model reader.
KEYWORDS: Querida. Reader. Lygia Bojunga.

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REFERÊNCIAS

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atual. Tradução Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003.

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HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução: Cid Knipel. Ed. rev.
São Paulo: Cosac Naify, 2010.

JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de Consumo. Novos Estudos


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LEAHY-DIOS, Cyana. A educação literária de jovens leitores: motivos e


desmotivos. In: RETTENMAIER, MIGUEL; RÖSING, Tania M. K; (Orgs.). Questões
de literatura para jovens. Passo Fundo: Universitária, 2005. p.36-56.

LOTTERMANN, Clarice. Escrever para armazenar o tempo: morte e arte na obra


de Lygia Bojunga. Cascavel: Edunioeste, 2010.

PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução Celina


Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2008.

CARRANO, Paulo César Rodrigues. Identidades juvenis e escola In: Construção


coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos. — Brasília: UNESCO, MEC,
RAAAB, 2005.

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Recebido: 11 dez. 2016
Aprovado: 02 jun. 2017
DOI: 10.3895/rl.v19n24.5181
Como citar: JOHANN, Gisela. O leitor adolescente em Querida. R. Letras, Curitiba, v. 19, n. 24, p. 132-142,
mar. 2017. Disponível em: <https://periodicos.utfpr.edu.br/rl>. Acesso em: XXX.

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Internacional.

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