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Afinal, para que ‘serve’ a literatura

infantil?
A literatura destinada às crianças é um território de infinitas possibilidades e não deveria ser restringida a uma função utilitária, defende Cristiane Tavares
iStock/Arte Lunetas
 Publicado em: 09.05.2018
 
 Atualização: 25.07.2018
por  Camilla Hoshino
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FavoritarCadernoResumo
Literatura: lugar de prazer e de encantamento. São aquelas palavras que te permitem por um
momento ser livre, ser outros, cruzar mares, pegar o primeiro voo rumo ao destino sonhado e
naufragar. Quem já passou pela sensação de mergulhar fundo no universo dessa leitura sabe que
o caminho não tem mesmo volta, mas infinitas possibilidades de chegada.  Com a literatura
infantil, não seria diferente. O diálogo proporcionado pelos livros – para todas as idades -,
oferece múltiplos significados de mundo.
“É estranhamento, provocação para os sentidos, ampliação das percepções
condicionadas pela rotina, alargamento das margens que restringem o olhar,
encontro de vozes plurais”
É o que reflete a professora e crítica literária Cristiane Tavares, ao abordar o “papel” da literatura
destinada às crianças.  
Cristiane Tavares é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e, atualmente,
coordena o curso de Pós-Graduação “Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica”, no
Instituto Vera Cruz, em São Paulo. É professora no curso de Pedagogia da Fundação Mokiti
Okada e formadora na CE-CEDAC. Escreve sobre literatura destinada às crianças para diversos
meios, como o Blog da Letrinhas, da editora Companhia das Letras, a revista 451, além de atuar
como assessora pedagógica e jurada em diferentes prêmios literários.
Para Tavares, a leitura literária está inserida em sistemas educacionais, sociais e econômicos que
precisam ser revistos urgentemente. Muitos livros destinados ao público infantil “surgem de uma
demanda de mercado, com função prioritariamente comercial, o que lhes rouba qualquer
possibilidade de conversar com o pequeno leitor como objeto cultural e artístico, provocador e
crítico”, aponta.
“O que penso é que a sociedade precisa estar sempre organizada para
reivindicar educação e cultura inclusivas, e isso contempla o universo dos
livros para crianças”
iStock/Arte Lunetas
“Sendo arte, a literatura infantil não deveria se restringir a uma utilidade específica”, defende
Cristiane Tavares.
E se é verdade que a literatura é uma arte capaz de despertar diversos sentidos e provocar os mais
esperados e inesperados encontros, por que será que os livros destinados ao público infantil são
muitas vezes reduzidos a uma utilidade específica, objeto de consumo ou à exploração do
conteúdo escolar, despovoando o território da fantasia?   
“Os discursos genéricos em torno da infância acabam por apenas reforçar o
viés que reduz a criança a consumidor em potencial ou que desconsidera sua
realidade socioeconômica”
E para que a literatura assuma ela mesma o papel de aliada no desenvolvimento pleno da criança,
é preciso que a sociedade esteja preparada para reivindicar educação e cultura inclusivas,
reagindo às mais diversas formas de estereotipação e censura. Este último ponto, de acordo com
Tavares, tem sido um dos impasses gerados pelo atual momento político do país.
Leia nossa conversa na íntegra
 Lunetas: Muito se discute sobre o papel utilitário da literatura infantil, mas será que
está correto atribuir a ela uma função específica?
Cristiane Tavares: Se tratarmos a literatura destinada às crianças apenas como literatura, sem a
necessidade de adjetivá-la com o termo “infantil”, certamente ficará mais fácil lidar com ela sem
precisar atribuir-lhe uma função utilitária. Digo isso, porque entendo a literatura, seja ela
destinada a qualquer público, como uma expressão artística com marcas autorais. Sendo arte, não
se deveria restringi-la a uma utilidade específica.
No entanto, o que se vê é uma quantidade gigantesca de livros destinados ao público infantil sob
o rótulo de literatura, que na verdade não podem ser considerados uma criação artística literária e
autoral, quando surgem de uma demanda de mercado, com função prioritariamente comercial, o
que lhes rouba qualquer possibilidade de conversar ao pequeno leitor como objeto cultural e
artístico, provocador e crítico.

 Lunetas: Podemos trazer então alguma definição para o literatura destinada às


crianças?
Cristiane Tavares: O livro para crianças, a meu ver, pode ser entendido como objeto cultural de
expressão artística autoral, que ganha em qualidade quando se pensa editorialmente em sua
materialidade textual, visual e gráfica, capaz de dialogar com a sensibilidade e a inteligência das
crianças.
As infinitas possibilidades moram nas muitas camadas de leitura que um bom livro traz: abertura
para múltiplos significados, estranhamento, provocação para os sentidos, ampliação das
percepções condicionadas pela rotina, alargamento das margens que restringem o olhar, encontro
de vozes plurais.

 Lunetas: Sendo assim, como pensar a literatura destinada ao público infantil como
um aliado potente para o desenvolvimento pleno da criança, para além da perspectiva
”didatizante”?

Cristiane Tavares: A leitura literária (e não tudo o que se convencionou chamar de ‘literatura
infantil’) pode ser, sim, um potente aliado no desenvolvimento pleno da criança, mas é preciso
redimensionar esse “poder”.
Penso que o pleno desenvolvimento das crianças brasileiras virá, sobretudo, por meio da
diminuição das desigualdades sociais em nosso país. Desse ponto de vista, o poder da chamada
‘literatura infantil’ não é tão grande assim. É claro que a leitura literária  pode ter um papel
importante na formação de crianças e jovens mais críticos e isso depende de inúmeros fatores:
além de uma abordagem menos “didatizante”, ou seja, que não reduza a leitura literária à
exploração de conteúdos escolares sem sentido, é preciso que os professores apostem na
inteligência e na sensibilidade das crianças ao escolherem os livros que serão lidos e ao
mediarem situações de leitura.
“A experiência da alteridade é um dos aspectos mais potentes que a leitura
literária pode promover. Como diz   Teresa Colomer, ‘temos a possibilidade de
ser outro sem deixar de sermos nós mesmos'”
 Lunetas: Como pensar, como mencionou, em uma leitura com vozes mais plurais
para essa formação?
Cristiane Tavares: É preciso que a sociedade se organize para responder criticamente às
publicações estereotipadas, por exemplo, que ainda prevalecem quando pensamos nas
representatividades negra ou indígena nos livros destinados às crianças, ou mesmo no
predomínio de um discurso moralizante, quando pensamos na censura que tem sido praticada a
olhos vistos por determinados grupos sociais mais conservadores, que não convivem bem com a
liberdade de expressão.
Nesse contexto político em que vivemos desde o golpe, a alteridade se faz ainda mais necessária
e pode ser traduzida como respeito verdadeiro às diferenças de classe, raça, gênero, orientação
sexual. Do mesmo modo, se faz necessária a busca pela igualdade social, oferecendo a todas as
crianças as mesmas oportunidades dignas de educação e cultura. Isso é o que, afinal, deveria nos
distinguir civilizadamente de uma sociedade bárbara como a que vivemos, para aí, sim,
podermos falar em “desenvolvimento pleno da criança”.
iStock/Arte Lunetas
A literatura infantil é uma janela para o entendimento do mundo.
“O pleno desenvolvimento das crianças brasileiras virá, sobretudo, por meio da
diminuição das desigualdades sociais em nosso país”
O que vemos, no entanto, é o predomínio do desrespeito e do autoritarismo cerceando liberdades
de expressão em todos os campos, inclusive na produção literária voltada às crianças. O que
estou querendo dizer é que o livro destinado às crianças, assim como a leitura literária, estão
inseridos em sistemas educacionais, sociais e econômicos que precisam ser revistos
urgentemente, para que esse desenvolvimento pleno ao qual a pergunta se refere seja
minimamente possível de almejar.
 Lunetas: Do surgimento da literatura infantil até hoje, muita coisa mudou. Como
você acha que a sociedade tem enxergado o livro nas escolas, em casa e nos momentos
de lazer?
Cristiane Tavares: O acesso das crianças aos livros aumentou consideravelmente nas últimas
décadas, principalmente com a implantação de políticas públicas como o Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE) e o Plano Nacional do Livro e da Leitura. Mais uma vez, o
momento político em que vivemos me impede de responder a essa pergunta ingenuamente,
afinal, cortes absurdos tem sido feitos pelo atual governo: ministérios e secretarias importantes
foram extintos, comprometendo, por exemplo, o necessário cuidado com as representatividades
negra e indígena na literatura, assim como o tratamento da questão de gênero.
“Retrocessos imensos tem sido vistos por todos aqueles que trabalham com o
livro, a leitura e a infância”
 Lunetas: Você pode dar um exemplo de como o cenário político atinge a relação da
criança com a leitura?
Cristiane Tavares: Em São Paulo, por exemplo, o tratamento que o atual prefeito tem dado a
tudo o que envolve livro, leitura e educação: o Plano Municipal da Leitura, que estava a todo
vapor na gestão passada, foi interrompido. Um outro exemplo, em nível nacional, é o atual edital
do PNLL, que inclui a seleção de livros literários voltando a classificá-los por faixa etária e a
vinculá-los aos antigos manuais de leitura. O que penso é que a sociedade precisa estar sempre
organizada para reivindicar educação e cultura inclusivas, e isso contempla o universo dos livros
para crianças.
Reagir a toda forma de censura é fundamental nesse momento, em defesa de uma formação de
leitores críticos. Do mesmo modo, é fundamental manter e ampliar os espaços de interlocução
entre todos os profissionais envolvidos com as práticas sociais de leitura: professores, pais,
crianças e jovens, mediadores, editores, autores, ilustradores.

Temos feito, dentro do possível, esse movimento na Pós Graduação que coordeno no Instituto
Vera Cruz e isso tem proporcionado abertura de perspectiva crítica e ótimas reflexões.

https://lunetas.com.br/afinal-para-que-serve-a-literatura-infantil/

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