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Hipácia: A filósofa negra de Alexandria

Hypatia: The black woman philosopher of Alexandria

Marga Janete Stroher*

2015 – 1600 anos da morte de Hipácia de Alexandria


Ano de Hipácia pela Superação da Violência contra as Mulheres

Resumo: O ano de 2015 marca os 1600 anos da morte da cientista e filósofa negra, Hipácia de
Alexandria. Hipácia cometeu um suposto erro no mundo patriarcal de seu contexto, tanto em nível
político como religioso: pensar por conta própria e ser formadora de pensamento. Ela tornou-se
alvo de cristãos fundamentalistas pelo fato de não aceitar converter-se ao cristianismo, sendo
morta sob a acusação de ser herege, de ir contra os costumes morais e desviar-se daquilo que
cabia a uma boa mulher temente a Deus. O texto busca, por um lado, denunciar o patriarcalismo
histórico-cultural e religioso que confisca os corpos e o conhecimento das mulheres com violência,
santificando os pais da igreja, como Cirilo de Alexandria, e por outro, apresenta Hipácia como
símbolo de liberdade de pensamento e de escolha, de resistência e luta pela superação da
violência contra as mulheres.

Palavras-chave: Hipácia. Mulheres e Filosofia. Liberdade Religiosa. História Antiga. Laicidade do


Estado.

Abstract: The year 2015 marks the 1600th anniversary of the death of scientist and black
philosopher, Hypatia of Alexandria. Hypatia made a supposed error in the patriarchal world of her
context, both at the political and religious level: to think on her own and to be a thought builder.
She became the target of fundamentalist Christians because she did not accept to convert to
Christianity, being killed on charges of being a heretic, to go against the morals and deviate from
what it was up to a good faithful woman. The text seeks on one hand, to report historical-cultural
and religious patriarchy that confiscates women’s bodies and knowledge with violence, sanctifying
the church fathers, as Cyril of Alexandria, and on the other hand, it presents Hypatia as a symbol
of freedom of thought and choice, of resistance and struggle to overcome violence against women.

Keywords: Hypatia. Women and Philosophy. Religious Freedom. Ancient History. Secular State.

*
Mestre e doutora em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST, onde atuou como docente no
período de 2002 a 2010. É especialista em Gestão de Políticas Públicas em Direitos Humanos, pela Escola Nacional
de Administração Pública/ENAP. Foi Assessora de Direitos Humanos e Diversidade Religiosa da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (2011-2014). É Analista do Seguro Social e atua no Centro de
Formação e Capacitação do INSS, em Brasília, na área de Educação a Distância. É integrante do Núcleo de Pesquisa
de Gênero e Religião da Faculdades EST, realizando pesquisa na área de filosofia intercultural e interculturalidade.
E-mail: marga_stroher@yahoo.com.br
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v.1 n. 1 | p. 21-29 | jul.-dez. 2015
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Hipácia: filosofia e liberdade de pensamento

Nas aulas de História Antiga e de Teologia, costumamos ouvir e ler relatos da


perseguição que os cristãos sofreram nos primeiros séculos de seu estabelecimento circunscrito
às fronteiras do Império Romano, seja por um ambiente supostamente hostil do contexto, seja
pelos próprios imperadores. Diversos “pais da igreja” são enaltecidos por sua resistência às
perseguições ou por terem sido mártires; e sua memória é lembrada até os tempos atuais, muitos
deles canonizados como santos. Na história linear e patriarcal, contudo, não é falado das
perseguições que mulheres sofreram. Assim, por descobertas da história que as mulheres
buscam desconstruir e reescrever sobre as “mães da igreja” encontramos diversos relatos sobre
as muitas mulheres que igualmente sofreram e foram vítimas de perseguições, torturas e mortes
cruéis. Tampouco são mencionadas as perseguições que os próprios pais da igreja impetraram no
contexto contra os não adeptos do cristianismo quando este se torna religião aceitável e,
posteriormente, oficial do Império Romano (390 EC). Um destes casos é o de Hipácia de
Alexandria.

Hipácia (ou Hipátia pela transliteração do grego ΙΥΠΑΤΙΑ) nasceu em torno de 355 EC,
em Alexandria, no norte do Egito, cidade fundada em 331 a.EC pelo monarca grego Alexandre, o
Grande. Não há registros sobre sua mãe, o que é quase uma normalidade no relato patriarcal,
mas sabe-se que era filha de Theon de Alexandria, um matemático famoso e autor de várias
obras. Theon, que era professor no Museu de Alexandria, foi tutor e professor de Hipácia. Hipácia
é uma mulher negra, não apenas pelo seu nascimento em território egípcio, mas por registros
iconográficos da época;1 contudo, a representação ocidentalizada da mesma a partir da Idade
Média é de uma mulher branca.2

Alexandria que se destacava pela infraestrutura administrativa, financeira e comercial, foi


uma das cidades mais importantes do mundo antigo. Localizada em local privilegiado entre o Mar
Mediterrâneo e o Vermelho, fazia a ligação entre a Europa, Ásia e África, o que promovia o
comércio e o intercâmbio cultural e a tornava no maior polo cultural da época, local de debates
filosóficos e de livre pensamento e expressão. A cidade mantinha a maior e mais importante
biblioteca da Antiguidade, fundada em 306 a.C. por Ptolomeu I, com cerca de 700 mil itens em
seu acervo, e que além de biblioteca era museu e ali funcionava a primeira universidade do
mundo onde estudaram também Euclides e Arquimedes.3

1
Era comum entre os gregos, como em alguns outros povos, retratar os mortos na tampa dos ataúdes e o de
Hipácia é indubitavelmente o retrato de uma mulher negra.
2
Exemplo do afresco A Escola de Atenas, de Rafael de Sânzio (Séc. XVI) e a pintura de Charles William Mitchell
(1885).
3
EUZÉBIO, Rodrigo. Hipácia de Alexandria e a história de uma tragédia. Causarum Cognitio – Ensaios sobre ciência,
filosofia e cultura. Disponível em: <http://causarum-cognitio.blogspot.com.br/2009/08/hipacia-de-alexandria-
historia-de-uma.html>. Acesso em: 20 de mar. 2010.
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Hipácia estava, portanto, em um local que poderia proporcionar todas as oportunidades


de estudo, mas isto apenas foi possível pelo estímulo e dedicação de seu pai, Theon, que
desejava que sua filha fosse um ser humano perfeito tanto em termos intelectuais como em
termos físico-corporais. Assim, teve uma educação ampla de várias formas que incluía arte,
ciência, literatura (inclusive linguística, gramática e poesia), medicina, física, música, filosofia (que
incluía matemática, geometria e astronomia), oratória e ainda treino físico diário. No campo
religioso, o pai de Hipácia repassou informações sobre todos os sistemas de religião conhecidos
em sua época, prevenindo-a, contudo, que nenhuma religião ou crença lhe limitasse a busca e a
construção do seu próprio conhecimento.4

Depois de finalizar seus estudos de geometria e astronomia em Alexandria, foi estudar na


Academia Neoplatônica, em Atenas, onde se destacou em seus estudos e suas pesquisas. Ao
regressar a Alexandria tornou-se professora, ao lado daqueles que tinham sido seus antigos
professores, ocupando a cadeira de Plotino. Hipácia é um dos nomes mais respeitados de
matemática, astronomia e filosofia em sua época e reconhecida como um dos gênios da
matemática na Antiguidade - a primeira grande matemática de que se tem conhecimento.
Conforme Sagan:

Em uma época em que as mulheres possuíam poucas opções e eram tratadas


como propriedade, Hipácia movia-se livre e desinteressadamente pelos domínios
masculinos tradicionais. Segundo a opinião corrente, ela era muito bela. Teve
5
vários pretendentes, mas rejeitou as ofertas de casamento.

Hipácia renunciou as propostas de casamento, pois entendia que o seu corpo deveria ser
da sua exclusiva propriedade e não queria comprometer sua atividade intelectual. Para um dos
pretendentes, teve uma atitude inesperada e com certeza causou espanto: “atirou-lhe um lenço
manchado com o sangue da sua menstruação e perguntou-lhe se era aquilo que ele queria
desposar”.6 A filósofa dizia estar casada com a verdade e dedicava sua vida à pesquisa e ao
ensino na escola do museu de Alexandria. E se destacava em diversas áreas do conhecimento,
tornando-se a primeira astrônoma e a primeira grande matemática. Carl Sagan destaca sua
extraordinária amplitude de conhecimentos: “A última cientista a trabalhar na Biblioteca foi uma
astrônoma, matemática, física e a líder da escola neoplatônica de filosofia - uma gama
extraordinária de instrução para um indivíduo em qualquer idade. Seu nome era Hipácia.”7

4
LIMA, Vânia. Hipatia de Alexandria. Disponível em: <http://www.vanialima.blog.br/2014/01/hipatia-de-
alexandria.html>. Acesso em: 28 fev. 2015.
5
SAGAN, Carl. Cosmos. Lisboa: Gradiva, 2009. p. 335. Disponível em: <http://podpensar.livrespensadores.net/wp-
content/downloads/cosmos_de_carl_sagan.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2014.
6
LOBATO, João Pedro. Hypatia. Uma cientista num mundo de homens. Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2011/05/hypatia_uma_cientista_num_mundo_de_homens.html>. Acesso em:
28 fev. 2015.
7
SAGAN, 2009, p. 335.
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A teoria geocêntrica defendida por Cláudio Ptolomeu (o grego) e aceita na época pela
ciência e pela igreja era questionada por Hipácia, cujos pensamentos e experimentos
estabeleceram as bases da teoria formulada por Nicolau Copérnico séculos depois, qual seja, a
teoria heliocêntrica.

Escreveu um conjunto de textos filosóficos, entre os quais, tratados sobre Euclides e


Ptolomeu, e alguns tratados sobre grandes personalidades que apenas conhecemos hoje devido
a ela, como Apolônio, conhecido como o "grande geômetra”. Reuniu toda a informação da época
para editar, em conjunto com o pai, o que daria origem ao segundo livro mais lido do mundo, e
que dá os alicerces da matemática atual: Os Elementos, de Euclides. Desenvolveu estudos sobre
a álgebra de Diofanto - "Sobre o Cânon astronômico de Diofanto" - um tratado "Sobre as Cônicas
de Apolonio" e alguns comentários sobre os matemáticos clássicos.

Sua atuação como cientista e filósofa era conhecida e reconhecida no mundo da ciência
da época. Sócrates, o Escolástico, em sua História Eclesiástica, assim se manifesta acerca de
Hipácia:

Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Theon, que
fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos de
seu tempo. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os
princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe para receber
8
seus ensinamentos.

Evidentemente, não temos acesso à grande parte de sua obra pela dificuldade das
fontes. Como aponta Kathleen Wider,9 há dificuldade de encontrar fontes adequadas, que não
sejam sexistas e nem distorçam a visão sobre as mulheres da história, até porque muito de seus
registros foram destruídos. Mas a vida de Hipácia se tornou conhecida por meio de cartas e
relatos de seus discípulos e admiradores, como é o caso de seu aluno e discípulo Hesiquio, o
hebreu:

Vestida com o manto dos filósofos, abrindo caminho no meio da cidade, explicava
publicamente os escritos de Platão e de Aristóteles, ou de qualquer outro filósofo a
todos os que quisessem ouvi-la. Os magistrados costumavam consultá-la em
10
primeiro lugar para administração dos assuntos da cidade.

Atualmente pesquisadoras, pesquisadores, escritoras e escritores como Kathleen Wider,


Edward Gibbon, Carl Sagan, Maria Dielska auscultam textos antigos que possam oferecer dados

8
SÓCRATES apud MOTA, Silvia. Hypatia de Alexandria: A mulher cientista do mundo antigo. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3543836>. Acesso em: 28 Jun. 2015.
9
WIDER, Kathleen. Women Philosophers in the Ancient Greek World: Donning the Mantle. In: Hypatia. A Journal of
Feminist Philosophy, v. 1, n. 1, março de 1986, p. 21-62. A parte sobre Hipácia encontra-se nas páginas 52-58.
Disponível em: http://www.readcube.com/articles/10.1111%2Fj.1527-
2001.1986.tb00521.x?r3_referer=wol&tracking_action=preview_click&show_checkout=1&purchase_referrer=onli
nelibrary.wiley.com&purchase_site_license=LICENSE_DENIED_NO_CUSTOMER. Acesso em: 27 fev. 2015.
10
FEITOSA, Elisa Geralda; MIRANDA, Francisco Alves de; NEVES, Wilson da Silva. Filosofia: alguns de seus caminhos
no Ocidente. São Paulo: Baraúna, 2014, p. 199.
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adicionais sobre a vida de Hipácia e seus feitos como cientista e professora. Assim, sabemos de
registros da época, a exemplo de Sinésio (de Cirene – 370-413 EC), um notável filósofo que
tornara-se bispo de Cirene, que foi seu aluno e mantinha correspondência com Hipácia pedindo-
lhe conselhos sobre o seu trabalho. Em um trecho de suas cartas ele se manifesta de uma
maneira afetuosa:

Meu coração deseja a presença de vosso divino espírito que mais do que tudo
poderia adoçar a minha amarga sorte. Oh minha mãe, irmã, mestre e benfeitora
minha! Minha alma está triste. Mata-me a lembrança de meus filhos perdidos...
Quando receber notícias vossas e souber, como espero, que estás mais feliz do
11
que eu, aliviar-me-ão pelo menos a metade de minhas dores.

Estas cartas acabaram se tornando o registro das atividades intelectuais de Hipácia e de


que ela manejava com exímio domínio ou inventava alguns instrumentos para a astronomia e
aparelhos usados na física, entre os quais um hidroscópio. Hipácia desenvolveu um mapa de
corpos celestes; inventou o densímetro, que mede a massa específica de um líquido, o planisfério,
e o hidrômetro e ainda novos modelos de astrolábio (permite a navegação por estrelas). Hipácia,
pelo seu conhecimento, é equiparada a Ptolomeu (85 - 165), Euclides (c. 330 a. C. - 260 a. C.),
Apolonio (262 a. C. - 190 a. C), Diofanto (século III a. C.) e Hiparco (190 a. C. - 125 a. C.). 12

Pensar livremente, um perigo para as mulheres

Hipácia cometeu um suposto erro no mundo patriarcal de seu contexto, tanto em nível
político como religioso: pensar por conta própria e ser formadora de pensamento. Se, por um lado,
Alexandria era um centro multicultural e de livre expressão, no tempo de Hipácia, a cidade
encontrava-se em meio a disputas entre a igreja cristã imperial, que tentava se apoderar de
centros importantes e ampliava seus domínios e seu poder sob os auspícios do Império Romano a
partir de Constantino (350 E.C.),13 e as diferentes correntes filosóficas que confrontavam as
doutrinas da nova religião. E ao lado, as diversas religiões não cristãs perdiam espaço frente à
hegemonia do cristianismo. Cirilo, homem ávido pelo poder, prepotente e intolerante, tornou-se o
novo Patriarca de Alexandria. Sob seu patriarcado aumentam as hostilidades e inicia a
perseguição a judeus e outros grupos não cristãos. E somado a isto, crescia a oposição entre o

11
SINÉSIO apud MOTA, Silvia.Hypatia de Alexandria: A mulher cientista do mundo antigo. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3543836>. Acesso em: 28 Jun. 2015.
12
SILVA, Clayton Garcia da, 2011. HIPÁCIA: a última grande cientista de Alexandria. Disponível em:
<http://stoa.usp.br/claytongds/forum/99149.html>. Acesso em: 05 de mar. 2015.
13
Com Constantino (Edito de Milão, de 313 E.C.) o cristianismo passa da condição de religião tolerada pelo Império
romano para o status de religião oficial do Império (com Teodósio - Edito de 380 E.C ) e isto reflete na mudança
radical das relações entre a Igreja e o poder político imperial. Em 392 E.C., todas as religiões não cristãs são
declaradas proscritas.
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poder civil do prefeito Orestes e o poder religioso de Cirilo, pois o bispo tentava submeter o
prefeito à sua autoridade eclesiástica.

A Alexandria da época de Hipácia, então sob o domínio romano, era uma cidade
sob grande tensão. A escravidão tinha minado a civilização clássica na sua
vitalidade. A Igreja Cristã em expansão consolidava seu poder e tentava erradicar
a influência e cultura pagãs. Hipácia permaneceu no epicentro destas poderosas
forças sociais. Cirilo, patriarca de Alexandria, desprezou-a pela sua amizade
íntima com o governador [prefeito] romano e por ser ela um símbolo do saber e da
14
ciência, que eram identificados no início da Igreja com o paganismo.

Hipácia decide, então, usar sua influência para combater o crescente poder dos cristãos
intolerantes junto a Orestes, o prefeito da cidade, que fora seu aluno e era um cristão convertido
moderado e a tinha como mentora, buscando conselhos sobre questões políticas e de ciência.
Houve tentativa de conversão de Hipácia através de cartas de cristãos, inclusive de Sinésio de
Cirene que buscava convencê-la a fazer um alinhamento de seu pensamento filosófico ao
pensamento cristão. Mas Hipácia não quis se converter ao cristianismo. E uma resposta quando
teria sido questionada sobre sua conversão mostraria a radicalidade de sua filosofia: "Você não
pode questionar sua fé; eu devo!"

Assim, ela foi acusada em praça pública de ir contra os costumes morais e desviar-se
daquilo que devia ser uma boa mulher temente a Deus e acusada de ser herege e bruxa. Assim,
facilmente tornou-se alvo dos cristãos fundamentalistas instigados por Cirilo. Mesmo assim ela
não desistiu, defendendo a liberdade de pensamento e de religião e de que o conhecimento
deveria ser acessível a todas as pessoas. Ela continuou seus ensinos e pesquisas no Museu.

Com grande perigo pessoal, ela continuou a ensinar e a publicar, até que no ano
de 415 foi atacada por uma turba fanática de paroquianos de Cirilo. Tiraram-na de
sua charrete, rasgaram suas roupas e, armados com conchas, esfoliaram-na até
os ossos. Seus pertences foram queimados, seus trabalhos obliterados, seu nome
15
esquecido. Cirilo foi canonizado.

A tragédia de Hipácia foi ter vivido numa época de crescente hostilidade dos cristãos
dogmáticos em relação aos não cristãos, quaisquer que fossem. E assim, em 415, a ira dos
cristãos fundamentalistas se voltou contra ela. Quando regressava do Museu, foi assaltada na rua
pelos seguidores de Cirilo e lapidada, teve as roupas e cabelos arrancados e arrastada nua até a
igreja onde seu corpo foi torturado até a morte, sendo dilacerado com conchas afiadas de
ostra e depois esquartejado. As partes de seu corpo foram expostas na cidade e depois
queimadas em uma fogueira. O relato do historiador Edward Gibbon nos traz uma dimensão do
que foi esta morte cruel aplicada a Hipácia:

14
SAGAN, 2009, p. 335.
15
SAGAN, 2009, p. 335-336.
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Num dia fatal na estação sagrada de Lent, Hiácia foi arrancada de sua carruagem,
teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi
desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor e sua horda de
fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus
16
membros ainda palpitantes, foram atirados às chamas.

E assim, em pouco tempo depois de sua morte a biblioteca é destruída e perde-se toda a
pesquisa de Hipácia, além das demais obras importantes do acervo da biblioteca. Como diz
Sagan:

A glória da Biblioteca de Alexandria é agora uma lembrança apagada. Seus


últimos remanescentes foram destruídos logo após a morte de Hipácia. Foi como
se uma civilização inteira tivesse sofrido uma cirurgia cerebral autoinfligida, e a
maioria dessas lembranças, descobertas, ideias e sentimentos fossem extintos
17
inexoravelmente. A perda foi incalculável.

A morte de Hipácia serviu de exemplo público para quem ousava desafiar a nova ordem
político-religiosa estabelecida do que viria a ser o Sacro Império Romano. Por outro lado, o Bispo
Cirilo de Alexandria foi considerado santo por ter perseguido judeus e não cristãos em Alexandria,
recebendo diversos títulos como “Santo”, “Doutor da Igreja”, “Pilar da Fé" e "Selo de todos os
Padres". E a intolerância religiosa se repete cotidianamente no contexto atual.

Hipácia, a memória instigadora

Uma questão relevante neste processo é o rompimento do Estado laico, ou seja, a


separação do Estado e da religião, e a aliança de Cirilo com o poder imperial, dominando seu
patriarcado com mão pesada e eliminando todas as pessoas que não seguissem as normas e
valores da igreja imperial, o que segue até os mais recentes tempos de cristandade. Quando
fanatismo, dogmatismo e intolerância se dão as mãos resulta em catástrofes e tragédias
humanas.

E a relativização da laicidade do Estado em tempos atuais é uma problemática séria, pois


o Estado laico é um dos princípios da democracia. A laicidade do Estado tem implicações para
toda a sociedade em sua diversidade de composição sociocultural, étnico e religioso, nas
identidades de gênero, na vivência da sexualidade, nos direitos sexuais e reprodutivos, e de suas
necessidades, demandas, opiniões, opções, escolhas e valores éticos. A relativização da laicidade
do Estado vai também relativizar ou negar estas dimensões.

Percebe-se que o poder colonialista e patriarcal vai se reavivando, se reinventando em


outros formatos e estratégias. Vivemos tempos de tendências teocráticas em nosso país,

16
SILVA, 2011, online.
17
SAGAN, 2009, p. 336. Do que restou, de algumas obras são conhecidas apenas alguns títulos; na maioria nem os
títulos e autoras/autores são conhecidos; das 123 peças de Sófocles que estavam na Biblioteca, apenas sete se
salvaram. Uma delas é Édipo Rei. E pouco restou dos trabalhos de Ésquilo e Eurípides.
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particularmente por meio de bancadas religiosas de linha fundamentalista que tentam


deslegitimizar a laicidade do Estado, colocando valores religiosos particulares como referência e
os direitos civis em disputa, provocando o crescimento de todas as formas de intolerância. E
quando fanatismo, dogmatismo e intolerância se dão as mãos resultam em catástrofes e tragédias
humanas. Neste cenário, a história de Hipácia continua desafiadora.

Hipácia foi acusada de não ser uma boa mulher temente a Deus, que atentava contra os
costumes morais e de ser herege e bruxa, isto porque ousava pensar por si mesma e ser
formadora de pensamento. Ou seja, todas as gerações de mulheres que se seguiram receberam
as mesmas acusações, foram condenadas pelos mesmos supostos delitos e proscritas da história
e das decisões mais importantes da vida civil e religiosa por séculos.

Passados 1600 anos de sua morte, pensamento semelhante ao de Cirilo de Alexandria


ainda se faz presente na contemporaneidade em vários âmbitos e espaços sociais, culturais,
políticos e religiosos. Exemplo deste pensamento foi expresso pelo bispo Juan Antonio Reig Pla,
de Alcalá de Henares (Espanha), em maio de 2015: “Há que se retirar o voto das mulheres,
porque ultimamente pensam por si mesmas.” 18

Hipácia é símbolo de liberdade de expressão e de escolha, de liberdade religiosa e de


pensamento, e sua morte remete ao confisco da autodeterminação das mulheres, de seus corpos,
de seu conhecimento e da violência sofrida ao longo da história.

Por isto que 2015 – quando se faz a memória dos 1600 anos de sua morte – é o Ano de
Hipácia pela Superação da Violência contra as Mulheres.

Referências

EUZÉBIO, Rodrigo. Hipácia de Alexandria e a história de uma tragédia. Causarum Cognitio –


Ensaios sobre ciência, filosofia e cultura. Disponível em: <http://causarum-
cognitio.blogspot.com.br/2009/08/hipacia-de-alexandria-historia-de-uma.html>. Acesso em: 20 de
mar. 2010.

FEITOSA, Elisa Geralda; MIRANDA, Francisco Alves de; NEVES, Wilson da Silva. Filosofia:
alguns de seus caminhos no Ocidente. São Paulo: Baraúna, 2014.

LIMA, Vânia. Hipatia de Alexandria. Disponível em: <http://www.vanialima.blog.br/2014/01/hipatia-


de-alexandria.html>. Acesso em: 28 fev. 2015.

LOBATO, João Pedro. Hypatia. Uma cientista num mundo de homens. Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2011/05/hypatia_uma_cientista_num_mundo_de_homens.html>.
Acesso em: 28 fev. 2015.

18
Notícia encontrada em: https://rsamadrid.wordpress.com/2014/09/18/obispo-de-alcala-hay-que-quitarle-el-voto-
a-las-mujeres-porque-ultimamente-piensan-por-su-cuenta/. Acesso em 20 de maio de 2015. E isto não é delírio de
um bispo, pois de alguma forma aconteceu no Congresso Nacional, quando a Câmara de Deputados decidiu – em
junho de 2015 – não aprovar a política de cotas para mulheres para aumentar a bancada feminina que
atualmente ocupa menos de 10% das vagas.
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Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/genero>
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SAGAN, Carl. Cosmos. Lisboa: Gradiva, 2009. p. 335. Disponível em:


<http://podpensar.livrespensadores.net/wp-content/downloads/cosmos_de_carl_sagan.pdf>.
Acesso em: 20 jan. 2014.

SILVA, Clayton Garcia da.HIPÁCIA: a última grande cientista de Alexandria. Post publicado em:
08 nov 2011. Disponível em: <http://stoa.usp.br/claytongds/forum/99149.html>. Acesso em: 05
mar. 2015.

SINÉSIO apud MOTA, Silvia. Hypatia de Alexandria: A mulher cientista do mundo antigo.
Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3543836>. Acesso em: 28 Jun.
2015.

SÓCRATES apud MOTA, Silvia. Hypatia de Alexandria: A mulher cientista do mundo antigo.
Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3543836>. Acesso em: 28 Jun.
2015.

WIDER, Kathleen. Women Philosophers in the Ancient Greek World: Donning the Mantle. In:
Hypatia. A Journal of Feminist Philosophy, v. 1, n. 1, março de 1986, p. 21-62. A parte sobre
Hipácia encontra-se nas páginas 52-58. Disponível em:
http://www.readcube.com/articles/10.1111%2Fj.1527-
2001.1986.tb00521.x?r3_referer=wol&tracking_action=preview_click&show_checkout=1&purchas
e_referrer=onlinelibrary.wiley.com&purchase_site_license=LICENSE_DENIED_NO_CUSTOMER.
Acesso em: 27 fev. 2015.

[Recebido em: junho de 2015 /


Aceito em: julho de 2015]

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