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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL REI

PPGFIL-Mestrado Acadêmico 2021/02


AS TEORIAS ÉTICAS NORMATIVAS E A OBJETIVIDADE NA MORAL

RESENHA DO FILME ALEXANDRIA (ÁGORA), DE ALEJANDRO


AMENÁBAR

Docentes: Rogério Antônio Picoli e Rodrigo Siqueira Batista


Aluno: Arlaton Luiz Soares de Oliveira

São João del Rei


2021
ALEXANDRIA (Título original: Ágora). Direção de Alejandro Amenábar. Produção:
Fernando Bovaira Álvaro Augustin. Espanha: Focus Features; Newmarket Films;
Telecinco Cinema; ZON Lusomundo Audiovisuais, 2009, 127 min.

A produção de Alejandro Amenábar oferece ao espectador ambientar-se na


cidade de Alexandria do Egito, no contexto conturbado do declínio do Império Romano
do Ocidente (séc IV e V a.C). Amenábar tece, em torno de Hipátia (Rachel Weisz), a
trama da ascensão do cristianismo como religião imperial, em conflito com as diferentes
expressões religiosas que coexistiam em Alexandria, culminando na trágica destruição
da biblioteca do Serapeu de Alexandria e no assassinato da filósofa.
O enredo do filme pode ser interpretado à luz da perspicácia de Hipátia em sua
dedicação exclusiva à filosofia, levando-a a um modo de vida “zetético” (investigativo).
Hipátia concilia a rotina de aulas no Serapeu com sua busca por encontrar explicações
para fenômenos físicos e astronômicos, levando-a a questionar postulados sedimentados
e tidos como axiomas, como a teoria platônica dos círculos perfeitos aplicados ao
movimento dos astros e com ele o modelo Ptolomaico, além de acenar para uma teoria
elíptica do movimento da Terra em relação ao Sol. Ademais, no filme, Hipátia tende a
ter intuições sobre a aquilo que será chamado pela física newtoniana de força
gravitacional.
O modo investigativo de Hipátia pode ser percebido em algumas sequências de
cena no filme, tais como o momento em que os alunos do Serapeu se encontram sitiados
por uma multidão de cristãos que desejam tomar o Templo de Serápis e sua biblioteca.
Enquanto o sítio ocorre, Hipátia ao contemplar o céu, retoma a questão levantada em
sala de aula sobre o movimento circular dos “errantes” em relação à Terra. Deveria,
segundo ela, haver uma explicação mais simples para o movimento dos astros. Nesse
momento, um dos anciãos do Templo menciona a tese heliocêntrica proposta por
Aristarco de Samos (310 a.C-230 a.C), de que a Terra giraria em torno do Sol e assim,
seria uma ilusão de ótica o movimento do sol.
No entanto, Davus contrapõe-se a essa explicação e argumenta que se a Terra se
movesse em torno do Sol, então deveria ser nítida a percepção do movimento de todos
os objetos internos a ela. Hipátia reage a hipótese de Davus submetendo-a à
experimentação. E isso é realizado por meio de uma experiência num barco em
movimento. Se o raciocínio de Davus fosse verdadeiro, ao lançar um saco de areia em
um barco em movimento, o saco deveria, em queda livre, não cair em linha reta vertical,
mas numa reta inclinada, num ponto que estivesse proporcionalmente ligado ao
movimento do próprio barco. Esta verificação de Hipátia é realizada semelhantemente à
um raciocínio por modus tollens, por negação do consequente. Por meio de uma
analogia, Hipátia, inferiu a inconsistência da proposição de que a Terra, ao girar em
torno do Sol, geraria um movimento perceptivo a olho nu das coisas internas a ela. E
assim, abre-se no raciocínio de Hipátia, o caminho para a hipótese heliocêntrica ser
verificada.
Um passo sem precedentes é dado por Hipátia no filme ao criar um experimento
com tochas, areia e uma corda, que pôde explicar, sob a perspectiva heliocêntrica, a
relação de “distanciamento e aproximação” da Terra para com o Sol, no inverno e no
verão. Hipátia aplica a noção matemática de dividir o centro do círculo em dois polos
(com tochas em cada polo), mantendo constante a soma dos diâmetros. Ao perpassar um
bastão (representando a terra) por uma corda ligada a uma tocha, num movimento
circular, percebeu surgir diante de seus olhos uma elipse. Assim, antecipando Kepler
(1571-1630), Hipatia intuiu a elipse como a figura geométrica que representasse o
movimento de translação da Terra.
Em contraste, uma conversa entre os parabolanos, após tomarem a biblioteca e
destruírem parte de seu acervo, traz como tema se a Terra é redonda ou plana. Um dos
parabolanos diz que a Terra é uma arca, sendo o céu uma espécie de tampa, na qual as
estrelas estão fixadas. O assunto é encerrado com o recurso à autoridade bíblica
associada à consideração de que se Terra fosse redonda, as pessoas que estivessem
embaixo dela ou em sua borda cairiam. O escravo Davus ao ser questionado sobre sua
opinião sobre o tema em debate, diz: “Só Deus sabe essas coisas”.
O filme de Amenábar é uma boa indicação para ilustrar o período de ocaso do
ceticismo na antiguidade tardia. Por mais que Hipátia seja representante do
Neoplatonismo, sua postura no filme evidencia o processo crítico de análise dos
fundamentos das crenças adotadas como verdades, possibilitando-nos contrapor ao
modo dogmático de assentimento de ideias. Os cristãos, apresentados no filme, ao
adotarem acriticamente a verdade revelada, tendem a abrir mão da possibilidade de
questionar os fundamentos de suas crenças. Se suas verdades são colocadas sob o crivo
da dúvida, optam pelo recurso à autoridade divina e, nos casos mostrados no filme, pela
imposição violenta de sua verdade. E quando assim procedem, contradizem, com suas
posturas, os próprios fundamentos religiosos professados, tais como a valorização da
vida, a benignidade, o perdão, a paz e a justiça. Com o assentimento a uma verdade que
impede de progredir na busca por conhecimento e de dialogar com posicionamentos
diferentes, tem-se o risco de ocorrer a legitimação da intolerância e da violência
religiosa.

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