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CURSO

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1 Literatura Cearense
Notas Introdutórias
Charles Ribeiro Pinheiro e Lílian Martins

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Realização
Copyright © 2020 Fundação Demócrito Rocha

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


João Dummar Neto
Presidente
André Avelino de Azevedo
Diretor Administrativo-Financeiro
Marcos Tardin
Gerente Geral
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Gerente Editorial e de Projetos
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis
Analistas de Projetos

UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)


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Gerente Pedagógica
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Coordenadora de Cursos
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Designer Educacional

CURSO LITERATURA CEARENSE


Raymundo Netto
Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto
Lílian Martins
Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes
Assistente Editorial
Amaurício Cortez
Editor de Design e Projeto Gráfico
Miqueias Mesquita
Diagramador
Carlus Campos
Ilustrador
Luísa Duavy
Produtora

Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019,


2019,
Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria
Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

C977
Curso Literatura Cearense / vários autores ; organizado por
Raymundo Netto; coordenação de Lílian Martins; ilustrado por Carlus
Campos - Fortaleza, CE : Fundação Demócrito Rocha, 2020.
192 p. ; 25cm x 29,5cm. - (Curso Literatura Cearense; 12v.).
ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
ISBN: 978-65-86094-23-7 (Fascículo 1)
1. Literatura brasileira. 2. Literatura cearense. I. Netto, Raymundo. II.
Martins, Lílian. III. Campos, Carlus. IV. Título. V. Série.
CDD869.31
2020-881 CDU821.134.3(813.1)

Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

Todos os direitos desta edição reservados à:

Fundação Demócrito Rocha


Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
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APROCHEGUE-SE!
Na minha terra, as estradas são tortuosas
e tristes como o destino de seu povo errante.
Jáder de Carvalho*

lá! Seja muito bem-vindo(a) desenvolver subsídios teóricos para a for-


ao curso Literatura Cearense mação de estudantes, professores, pes-
da Fundação Demócrito Ro- quisadores e demais interessados acerca
cha (FDR) em parceria com a da Literatura Cearense, sistematizando e
Universidade Federal do Ceará aprofundando esses conhecimentos em
(UFC). Este curso, com 140h, seu aspecto histórico-cultural.
que tem apoio da Lei Federal Parafraseando o pensamento do filó-
de Incentivo à Cultura, é ofer- sofo norte-americano Richard Rorty: “A
tado GRATUITAMENTE e com- literatura não faz progresso por tornar-se
pletamente na modalidade de mais rigorosa, porém, por tornar-se mais
Educação a Distância (EaD), para todos os criativa.” Neste sentido, este curso inova ao
estados do país, por meio de nosso Am- criar um novo compêndio de estudos para
biente Virtual de Aprendizagem (AVA). a nossa formação em Literatura Brasileira
* Trecho do poema Os fãs e estudiosos da nossa Literatura às cores de nossos “verdes mares bravios”.
“Terra Bárbara”, Brasileira terão, agora, a possibilidade de Nosso objetivo é ampliar, criar possibi-
publicado em livro ampliar seu repertório de saberes, conhe- lidades diferentes de análise para o campo
homônimo (1965). cendo um pouco mais sobre a literatura literário, propiciando instâncias significa-
produzida no estado cearense, seja por tivas de interação mediante o uso da Lite-
autores nascidos no Ceará ou que nele dei- ratura Cearense no panorama artístico na-
xaram seu maior legado literário. Além de cional, abrindo campo para a renovação
Aprochegar-se nomes como o de José de Alencar, figuram de estudos, temas, obras e autores, e pro-
Chegar bem perto; neste curso, outros pertencentes a escolas, movendo a integração e o conhecimento
aproximar-se, academias, movimentos e agremiações desta literatura entre as demais literaturas
achegar-se, abeirar-se. literárias que conhecemos e/ou estamos de estados brasileiros participantes.
familiarizados desde a escola. Porém, aqui, Vamos juntos aprender para transfor-
também evidenciamos a presença de auto- mar! Pois, como já nos ensinava Paulo
res e autoras que, por motivos outros, ain- Freire: “A alegria não chega apenas no
da são pouco conhecidos do grande públi- encontro do achado, mas faz parte do
Epistemologia co, a despeito de seu talento ou produção, processo da busca.” Busquemos, então,
Estudo dos postulados, proporcionando, assim, a alegria da desco- conhecer mais e aprender cada vez mais
conclusões e métodos berta, o fomento a novos estudos e pesqui- sobre este tesouro que é a literatura de um
dos diferentes ramos sas, a ampliação da crítica literária de alto país, o nosso país, e que nos sintamos fe-
do saber científico, ou
das teorias e práticas
teor epistemológico e, quem sabe, o seu lizes ao nos reconhecer parte dele através
em geral, avaliadas interesse leitor e/ou editorial. do contato com diferentes obras e autores.
em sua validade No curso, percorreremos 12 módulos Quem sabe assim, aprendamos a valorizar
cognitiva, ou descritas que vão desde o século XIX à Contempo- a diversidade cultural brasileira por meio
em suas trajetórias raneidade, abrangendo ainda escritores da contribuição artística e intelectual de
evolutivas, seus
independentes e agremiações de maior seus escritores de todas as suas regiões.
paradigmas estruturais
ou suas relações com a relevo em consonância com diferentes Acesse agora o nosso AVA, se inscreva e
sociedade e a história; estudos nas Artes e, sobretudo, em Litera- compartilhe o nosso curso. Bom aprendizado!
teoria da ciência. tura Brasileira. Dessa forma, pretendemos cursos.fdr.org.br

Lílian Martins
COORDENADORA DE CONTEÚDO
1.
O PIONEIRISMO ARTÍSTICO-
CULTURAL CEARENSE
Eu sou de uma terra que o povo padece /
Mas nunca esmorece, procura vencê,/
Da terra adorada, que a bela caboca/ De riso SABATINA
na boca zomba no sofrê./
Não nego meu sangue, não nego meu nome,/ Patativa do Assaré (1909-2002) foi
Olho para fome e pergunto: o que há?/ um poeta e repentista brasileiro,
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,/ Sou cabra considerado um dos principais
da peste, sou do Ceará. representantes da arte popular
[...] nordestina do século XX. O
Patativa do Assaré seu poema “Triste partida”,
em Cante lá que eu canto cá. em 1964, foi musicado e
gravado por Luiz Gonzaga
(1912-1989), o que lhe
poema “Sou cabra da pes- rendeu projeção nacional.
te”, do qual destacamos Seus versos, traduzidos em
um trecho acima, é um dos vários idiomas, são temas
mais conhecidos de auto- de estudos em diversas
ria de Patativa do Assaré. universidades pelo mundo, a
Publicado no livro Cante lá exemplo da Universidade de
que eu canto cá, o poema Sorbonne, na França, em sua
expressa a condição so- disciplina “Literatura popular
frida do homem cearense universal”. Estudaremos mais
que, apesar das dificul- sobre ele adiante. Por ora,
dades do meio em que vive, não esmorece aproveite para assistir o poeta
e tem resiliência para vencer. Ele é definido declamando “Sou cabra da
como “cabra da peste”, expressão nordesti- peste” no link a seguir, do
na que designa homem valente, corajoso e canal do Museu de Arte Kariri:
batalhador. Desta forma, o poeta situa sua https://www.youtube.com/
condição expressando-a de modo múltiplo. watch?v=FNZTn6w8cXQ
Ele se identifica como o sujeito do tipo cabra
da peste, o cearense, nordestino e brasileiro.

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Em outros trechos, Patativa descreve vá-
rias imagens do Ceará, considerando, desta CONFEITOS
vez, não apenas a sua condição de um se-
quioso topônimo, mas como terra fértil do Neste curso, pretendemos dar voz
vaqueiro e do jangadeiro, e, o mais interes- aos pesquisadores e críticos de
sante, uma terra de escritores, pois cita o literatura, lançando nesse espaço de
poeta Juvenal Galeno e o romancista José construção de conhecimento os seus Campo do Poder
de Alencar. Logo, percebemos que o poeta conflitos teóricos e/ou conceituais, Para o sociólogo
francês Pierre Bourdieu
tem consciência do lugar a que pertence e cabendo as cursistas pesquisá-los,
(1996), “o campo do
Tradição da tradição literária que veio antes dele. estudá-los, compará-los, ler a obra poder é o espaço das
É oriundo do Esse conhecimento literário, também o im- em questão, claro, e tirar as suas relações de força entre
termo latino traditio/ pulsiona na criação da sua própria poesia próprias conclusões. agentes ou instituições
onis, “ato de entregar”, que têm em comum
de expressão matuta, gênero da poesia po- Por exemplo, enquanto alguns
um derivado do verbo possuir o capital
tradere, “entregar, pular, cearense e brasileira. Mas, com isso, estudiosos como Constância Lima necessário para ocupar
passar adiante”. A você deve estar se perguntando: de onde Duarte e Otacílio Colares concordam posições dominantes
palavra significa vem essa tradição literária cearense? ser A rainha do ignoto – que em sua nos diferentes
“passar algo a alguém”, Desde o início do século XIX, o Ceará campos (econômico
primeira edição trazia o subtítulo
como costumes, tem-se mostrado pleno de atividades lite- ou cultural,
cerimônias, hábitos, “romance psicológico – o primeiro
rárias. Berço de José de Alencar (1829- especialmente)”.
características de um romance fantástico brasileiro, Portanto, no campo
grupo. No sentido 1877), romancista mais representativo do Sânzio de Azevedo e Almeida Fischer do poder existem
antropológico, é Romantismo brasileiro e o responsável defendem que o romance romântico sujeitos pertencentes
herança cultural, pelo projeto de identidade nacional da Li- é, à luz de Todorov, maravilhoso às classes dominantes,
mas também o teratura Brasileira. pessoas reais
e não fantástico.
reaprendizado das possuidoras de capital
No início da década de 1870, fomos um
relações de vivências econômico, detentoras
profundas entre os dos estados pioneiros na divulgação da filo-
de poder material,
homens e o seu meio, sofia positivista no Brasil, por meio da Acade- tural cearense, a literatura produzida nestas que interferem na
permitindo, portanto, mia Francesa (1873-1875). O primeiro estado plagas ainda margeia o espaço do campo sociedade em prol
a consciência do brasileiro a abolir a escravidão, em 1884. So- do poder destinado à Literatura Brasileira. de seus interesses.
pertencimento. mos também pioneiros na divulgação da es- Uma das respostas para se entender este fe-
tética simbolista por meio da irreverente Pa- nômeno pode estar na própria concepção e
daria Espiritual (1892-1898). Antecedemos, formação do Estado brasileiro, que, desde o
em dois anos, a criação de uma Academia início de seu Período Colonial, demonstrou
Brasil, com a Academia Cea-
de Letras no Brasil ser um país continental, com múltiplas cul-
rense, em 1894. Veio de uma cearense, Emília turas e expressões. A dificuldade de acesso
Freitas, em 1899, a primeira publicação de um dos grandes centros urbanos e políticos na-
romance de fantasia científica, ou, como pre- cionais, concentrados majoritariamente nas
ferem afirmar pesquisadores a exemplo de regiões sul e sudeste do país, a essas diferen-
Constância Lima Duarte, o primeiro roman- tes culturas e expressões oriundas de regiões
brasileiro, A rainha do ignoto.
ce fantástico brasileiro menos prestigiadas socioeconomicamente,
E foi também uma cearense, Rachel de Quei- e vice-versa, além de, mais tardiamente e
roz, em 1977, a primeira mulher a ingressar na especialmente no século XIX, a própria di-
Academia Brasileira de Letras e a primeira a nâmica editorial no Brasil, também em efer-
mulher a receber o Prêmio Camões, o maior vescência nesses eixos no referido período,
da Língua Portuguesa, em 1993. podem nos fornecer pistas que nos condu-
Embora esses diferentes marcos históri- zam a pontos de reflexão sobre o país e a sua
cos demonstrem o pioneirismo artístico-cul- histórica política cultural. Daí podemos nos

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questionar: culturalmente, é possível crer em
uma unidade nacional? Para uma maior re- PASSANDO
flexão, precisamos nos debruçar na História.
Em, 1926, Gilberto Freyre lançou o seu
A LIMPO
Manifesto Regionalista, em que desenvolve
O escritor Pedro Nava, no livro Baú
basicamente dois temas interligados: (1) a
de ossos (1972), ao falar do grêmio
defesa da região enquanto unidade de or-
Padaria Espiritual, do qual seu pai
ganização nacional e (2) a conservação dos
foi membro, o associou ao movimento
valores regionais e tradicionais do Brasil,
modernista de 1922, por conta de dois
em geral, e do Nordeste, em particular.
itens do Programa de Instalação –
O que Freyre afirma é que o único
uma espécie de estatuto – que enaltecia
modo de ser nacional no Brasil é ser
o emprego da flora, da fauna e da
primeiro regional. Qual seria, então, o
cultura brasileira em detrimento de
nosso propósito: procurar entender a di-
elementos estrangeiros que povoavam
versidade brasileira ou defender uma ho-
com frequência a literatura da época
mogeneidade talvez idealizada?
(1892). Por conta disso, até hoje, muita
E se levarmos essa questão para o cam-
gente erroneamente cita a Padaria
po dos estudos literários, será que estamos
Espiritual como precursora do
dispostos a trazer as “literaturas periféricas”
Modernismo brasileiro.
Cânone Literário para o centro do cânone literário nacional,
É um conjunto e ocupando, assim, o espaço invisibilizado Sânzio de Azevedo, no opúsculo
seleção de obras que a elas durante um século e meio em seus Padaria Espiritual, em 1970, ou seja, dois
permanecem com o anos antes de Pedro Nava, já indicava
tempo e se destinam
manuais didáticos e pela própria crítica tida
como especializada? Afinal, como diz Wilson essa característica no Programa de
ao estudo por sua
suposta qualidade Martins, a história literária “é feita de exclu- Instalação. Entretanto, afirmava que
estética superior. Essa sões e se define tanto pelo que recusa e igno- esses itens apenas antecedem ao
seleção, enquanto ra, quanto pelo que aceita e consagra.” Cla- Modernismo por remeter a ideais
favorece a algumas nacionalistas posteriormente
ro que estas perguntas e esse debate ainda
obras, invisibiliza defendidos por seus integrantes.
muitas outras, a estão longe de alcançar um consenso, mas
partir de critérios esperamos provocar em você, cursista, inte- Entretanto, os ditos “padeiros”, em suas
considerados por resse em repensar o lugar da literatura pro- produções literárias, em nada tinham
vezes controversos, duzida na cidade/estado em que mora, e o de modernistas. Eram essencialmente
questionados por sua espaço que dizem a ela pertencer ou não nos parnasianos, simbolistas, naturalistas e
ligação com o poder realistas. Inclusive, essa defesa bem-
representado por uma
estudos da denominada Literatura Brasileira.
Iremos refletir sobre esses questiona- humorada de elementos nacionais
classe dominante.
mentos ao longo deste módulo que obje- pela Padaria remete mais ao projeto
tiva servir também de introdução aos pro- romântico do que ao modernista. A
blemas relacionados ao estudo da própria Padaria tem o mérito de, por meio
produção literária no Ceará. de Phantos (1893), de Lopes Filho,
Trabalharemos com uma abordagem his- ser uma das precursoras da estética
toriográfica, discutindo a origem da Literatura simbolista no Brasil, publicado um mês
Cearense apontada por diferentes historiado- antes de Broquéis de Cruz e Souza.
res que tratam do tema e a sua contribuição Aprenderemos mais sobre
para a constituição da Literatura Brasileira, a Padaria Espiritual e o Simbolismo
além do debate das relações entre o Ceará e no módulo 6 deste curso, de autoria
os demais centros culturais do país, levando de Sânzio de Azevedo. Aguarde!
em conta as categorias regional e nacional.

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2.
REGISTROS
MALACA
CHETAS
DA PRODUÇÃO Quem primeiro escreveu sobre os
Oiteiros foi o pesquisador Dolor Barreira.
LITERÁRIA Toda a documentação que tinha
em mãos lhe chegou por meio do
NO CEARÁ historiador Raimundo Girão, que
esde os Oiteiros (1813) até salvou esses registros após a casa do
hoje, são diversas as gera- barão de Studart ter sido invadida
ções de escritores e intelec- pelas águas das chuvas que inundaram
tuais cearenses que se or- muitos de seus arquivos depois de
ganizaram em grupos, cujos sua morte. O barão colecionava esses
integrantes, na maioria, sen- originais recebidos do duque de
tiam-se incomodados com o Palmela, filho do governador Sampaio.
cenário que denominavam Muito se perdeu, escreveu Girão para a
de “marasmo cultural”. Daí o Revista do Instituto do Ceará.
desejo de inspirar o senso crí-
tico e estético entre a população por meio
de diversas ações e até a publicação de re- Membros dos Oiteiros eram José Pache-
vistas, jornais, antologias etc. co Espinosa (? -1814), Antônio de Castro e
Mozart Soriano Aderaldo nos diz que “a Silva (1787-1862), Pedro José da Costa Bar-
colonização de nossa capitania, depois pro- ros (1779-1839), padre Lino José Gonçalves
víncia e hoje estado, foi tardia e descontínua. A de Oliveira (?) e Manuel Correia Leal (?). A
tentativa de Pero Coelho de Sousa (1603-1606) poesia e odes produzidas por este grupo
fracassou ante o primeiro flagelo de natureza de feição neoclássica era povoada por elo-
climática que o homem branco europeu teve gios ao governador Sampaio e celebrava os
de enfrentar no Ceará” (apud MARTINS, 1984). feitos de sua administração pública. Pode-
Além da exploração portuguesa, em 1649, o ter- mos observar esse tom elogioso no soneto
ritório cearense foi ocupado pelos holandeses, abaixo, intitulado “Para o chafariz da vila da
tendo à frente Matias Beck. Essa ocupação du- Fortaleza”, de Pacheco Espinosa.
rou até 1654, quando os portugueses expulsa-
Tertúlia ram os holandeses. Durante o resto do período
A palavra vem do colonial, não houve acontecimentos culturais
castelhano “tertúlia” que transformassem o status quo da província.
e significa reunião Temos os primeiros registros literários es-
familiar ou entre critos quando o português Manuel Inácio de
amigos, que se reúnem
frequentemente
Sampaio (1778-1856) veio assumir o gover-
para discutir temas e no-geral da capitania do Ceará. Entusiasta
assuntos literários ou das letras, ele organizava, por volta de 1813,
musicais. algumas tertúlias no seu palácio. Nessas
reuniões, denominadas depois de Oiteiros,
participavam alguns homens letrados, da
época, que recitavam vários tipos de gêne-
ros poéticos, principalmente os sonetos.

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Esta que, vês, curioso passageiro
Límpida Fonte, clara, sussurrante,
Sânzio de Azevedo (1976) ainda com-
plementa: SABATINA
De cristalinas águas abundante, Sua poesia não se afastava dos louvores
Que o Sítio faz ameno, e lisonjeiro: aos heróis e aos governantes, com o que É do aracatiense Pedro José da
Este manancial de água, o primeiro, seguiam um dos postulados neoclássicos Costa Barros (1779-1839) a legenda
Que fez surgir na Vila arte prestante, de Luís Antônio Verney, teórico da corren- escrita em latim na placa de pedra
Para a sede saciar o caminhante, te em Portugal; mas, ainda impregnados
lioz portuguesa fixada na muralha do
O sábio, o nobre, o rico, o jornaleiro: de racionalismo barroco, os poetas dos
Oiteiros não se entregaram aos temas Forte Nossa Senhora da Assunção (de
Edificada foi incontinenti, frente para a av. Leste-Oeste) quando
pastoris, a fim de embelezar a realidade.
No memorável, ótimo Governo,
De Sampaio, Varão reto, ciente.
Daí, sua produção versificada, que não se de sua inauguração. Diz: “Ano de 1817.
eleva pela grandeza do estro, não poder As naus escarneciam de mim quando
Como ao Povo mostrou amor Paterno, ser considerada puramente arcádica ou
Para todo o seu bem foi diligente,
eu era um monte informe; agora que
neoclássica. (1976, p. 19).
Nesta Fonte deixou seu nome eterno. sou uma grande fortaleza, de longe
(apud Azevedo, 1976, p. 20-21).
Apesar de ser ainda os Oiteiros o registro tomam-se de respeito. Aqui, reinando
mais antigo de expressão literária no Ceará, D. João VI, Sampaio me fundou bela: o
Este soneto nos parece ser um tipo de ele não é uma unanimidade quando o as- engenho de [Silva] Paulet resplandece.
produção mais alinhada aos interesses po- sunto se trata do marco inicial da Literatura Os donativos dos cidadãos me
líticos de agradar o governador do que de Cearense. A partir do final do século XIX, há tornaram forte pelas muralhas, e dos
elaborar uma literatura ousada ou criativa, um esforço por parte de diferentes intelec- dispêndios reais me fazem forte pelas
com objetivos estéticos bem delineados. tuais em sistematizar um estudo acerca da armas. Costa Barros fez.”
O mérito dos Oiteiros é, contudo, históri- produção literária cearense.
co, pois essas reuniões palacianas, mesmo
com feição supostamente aristocrática, de-
senvolveram um tipo de sociabilidade lite-
rária, ensaiando os primeiros passos para
uma literatura no Ceará.
Para Artur Eduardo Benevides (1976),
os Oiteiros eram “uma espécie de justa ou
prélio intelectual, de origem portuguesa,
realizando-se nos fins das festas de cará-
ter religioso ou profano, após solenidades
maiores. Eles assinalam, no Ceará, a aber-
tura da vida intelectual e artística”.

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MALACA Contribuíram para essa construção his-
toriográfica e literária: Antônio Sales (1868-
rio Linhares, em História Literária do Ceará
(1948), concordam que o marco literário
CHETAS 1940), Dolor Barreira (1893-1967), Abelardo
F. Montenegro (1912-2010), Artur Eduardo
cearense foi a publicação de Prelúdios Poé-
ticos (1856), de Juvenal Galeno, do qual fala-
Você deve ter achado estranho os Benevides (1923-2014), Braga Montenegro remos no segundo módulo de nosso curso.
pontos de interrogação nas datas de (1907-1979), Otacílio Colares (1918-1988), Entretanto, para Tristão de Ataíde, o
nascimento de alguns dos nossos Sânzio de Azevedo (1938), Mário Linhares marco teria sido dois anos mais tarde, em
personagens, não? Mas, calma, antes (1889-1965), Edigar de Alencar (1901-1993), 1859, quando da chegada, no Ceará, da Co-
de pensar que isso foi um erro de José Ramos Tinhorão (1928), Nilto Maciel missão Científica Exploradora, da qual fazia
edição, saiba que na verdade esses (1945-2014), entre outros. parte o poeta Gonçalves Dias. Não obstan-
sinais representam a falta de registro Antônio Sales foi o primeiro autor a te, o poeta Cruz Filho, ao escrever a obra
biográfico mais completo de cada formalizar uma historiografia da Lite- História do Ceará (1931), fixa o ano de 1872,
um deles, a partir da investigação do ratura Cearense, publicando, em 1897, o data do início das atividades da Academia
pesquisador Dolor Barreira. O que nos artigo “Pelo Ceará intelectual”, na Revista Francesa do Ceará, agremiação que divul-
mostra que, mesmo sabendo tão pouco Brasileira, de José Veríssimo. Nela, associa gou e defendeu as ideias positivistas no es-
sobre cada um deles, ainda assim eles a literatura às atividades jornalísticas, si- tado, como marco do princípio de nossa li-
foram imortalizados na historiografia tuando o início da literatura no Ceará, em teratura – embora a agremiação fosse mais
literária, além de emprestarem seus 1824, coincidindo com o aparecimento do filosófica do que literária.
nomes a logradouros da cidade, como primeiro jornal cearense, O Diário do Gover- Se tomarmos por critério as evidências
as ruas Costa Barros e Castro e Silva. no do Ceará, tendo como principal redator materiais, de registros históricos, levando
o padre Mororó. Tanto Sales, quanto Má- em conta o critério da produção escrita,
concordamos com Dolor Barreira e Sânzio
de Azevedo, que defendem os Oiteiros como
sendo as primeiras manifestações da li-
Ceará, pois não há registros
teratura no Ceará
anteriores a elas. Em seu livro Literatura Cea-
rense (1976), Sânzio de Azevedo traz à tona,
além das discussões de Antônio Sales, Mário
Linhares e Dolor Barreira acerca das origens
da Literatura Cearense, também aquelas
sobre os critérios historiográficos que defini-
riam o autor cearense para além do requi-
sito “natalidade”. De acordo com Sânzio:

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discordamos do sistema adotado pelo emi-
nente historiador Guilherme Studart (barão
de Studart), em seu Dicionário Biobiblio- SABATINA
gráfico Cearense, em que só são incluídas
pessoas nascidas no Ceará, não obstante
algumas haverem deixado muito cedo a Para o filósofo Zygmunt Bauman
terra do berço. Assim, deixa de figurar um (2005), a ideia de pertencer a uma
Rodolfo Teófilo, por haver nascido aciden- nação ou comunidade apenas
talmente na Bahia, figurando, porém, um por nascimento é uma convenção
Oscar Lopes, do qual se pode dizer que so-
mente nasceu aqui...” (1976, p. 15).
intensamente construída pela
humanidade. O pertencimento ou
Como vimos, Sânzio de Azevedo defen- a identidade, na modernidade, não
de a inclusão, por exemplo, do nome de Ro- são definitivos nem tão sólidos assim,
dolfo Teófilo (1853-1932), entre os autores mas negociáveis e revogáveis; tudo
cearenses, cujo nome não foi citado no refe- depende das decisões que o indivíduo
rido Dicionário... do Barão de Studart, por- toma, do caminho que percorre e da
que apesar de ter nascido na Bahia, o au- maneira como age.
tor de A Fome fez categoricamente a maior
e melhor defesa de sua “cearensidade” ao
afirmar: “sou cearense porque quero!”, além obras cearenses, como Domingos Olímpio,
de ter construído toda a sua obra literária, Gustavo Barroso, e outros (1976, p. 15).
historiográfica e científica no Ceará, a partir Outro ponto interessante neste critério de
do homem e da paisagem cearense. Sânzio de Azevedo é a inclusão de José de
Como o livro de Sânzio pretendia ser Alencar (1829-1877) apenas com a obra Ira-
um manual didático-historiográfico para os cema e O sertanejo. O pesquisador considera
estudos de Literatura Cearense, posterior- Alencar um autor mais integrado ao cânone
mente adotado como obra de referência da Literatura Brasileira, visto que seu projeto
para a disciplina homônima no curso de de romance romântico previa abordar vários
Letras da Universidade Federal do Ceará, os personagens e paisagens da cultura brasilei-
critérios de inclusão de autores se deram no ra, não se detendo ao cenário cearense.
âmbito temático e regionalista. Há na obra também outro ponto de
Assim como Dolor Barreira, em Literatura discordância, desta vez, acerca do escritor
Cearense, Sânzio inclui: (1) autores nascidos Franklin Távora (1842-1888). Para Azevedo,
aqui e que aqui produziram literariamente, mesmo tendo o autor nascido em Baturi-
como Juvenal Galeno, Oliveira Paiva, Fil- té, interior cearense, Franklin Távora ainda
gueiras Lima e inúmeros outros; (2) auto- criança foi morar em Pernambuco, onde se
res nascidos em outros estados, mas que formou e produziu boa parte de sua obra li-
produziram literariamente entre nós, como terária. Seu projeto bibliográfico era construir
Rodolfo Teófilo [Bahia], Pápi Júnior [Rio de uma Literatura do Norte – como se intitulava
Janeiro], Alf. Castro [Pernambuco] ou De- o Nordeste à época –, e, assim, publicou O
mócrito Rocha [Bahia]; (3) autores que se Cabeleira (1876), O matuto (1878) e Lourenço
ausentaram, mas ainda assim escreveram (1878), narrativas que evidenciavam a história

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de Pernambuco como uma representa-
ção cultural dessa região e, portanto,
não deveria ser ele considerado um
escritor cearense.
Entretanto, Dolor Barreira e, pos-
teriormente, Artur Eduardo Benevi-
des, em Evolução da poesia e do roman-
ce cearense (1976), adotaram apenas o
critério de nascimento em suas pesquisas e,
dessa forma, situam o romance Os índios do
Jaguaribe (1862), de Franklin Távora, como
o primeiro romance cearense,, o que Sân-
zio de Azevedo (1976) discorda, ao afirmar
que mesmo sendo “uma glória para o Ceará
[...] o escritor nada produziu que se relacio-
ne ao menos com a terra natal” (idem,idem, p. 16).
Apesar das discordâncias históricas, há
um ponto em comum entre esses historia-
dores e pesquisadores ao tentar estabelecer
um início para a Literatura Cearense, que
são os critérios historiográficos aqui abor-
dados. Esses critérios repousam na ideia de
representatividade, identidade, regionali-
dade e, nos dias atuais, também o de per-
tencimento.. Ou seja, não se trata de aspec-
tos valorativos entre escritores e/ou obras,
tampouco, de regiões. Cada crítico e/ou
pesquisador literário, à sua maneira, faz sua
seleção e estabelece critérios para abordar
a literatura. Cabe a nós tentar ao máximo ler
e ter contato com o maior número diferente
de obras literárias, críticas e historiográficas,
observando suas divergências e confluên-
cias. Desse mosaico, construiremos nossas
próprias fundamentações teóricas, definin-
do as nossas escolhas sempre a partir de
pesquisa, estudo e reflexão crítica.
Afinal, a literatura, assim, como as demais
linguagens artísticas, é também balizada
pela pesquisa científica que nos exige dedi-
cação, comprometimento e muitas leituras.

CURSO literatura cearense 11


3.
INTERSEÇÕES
LITERÁRIAS:
CEARÁ E BRASIL
Amanhã se der o carneiro, o carneiro/
vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro/
As coisas vêm de lá,/ eu mesmo vou buscar/
e vou voltar em videotapes e revistas
supercoloridas/
pra menina meio distraída repetir a minha voz/
Que Deus salve todos nós/ e Deus guarde todos
nós...
Ednardo e Augusto Pontes

canção “Carneiro”, de Ed-


nardo e Augusto Pontes,
nos fala do tema da mi-
gração e do fascínio que a
metrópole urbana, o Rio de
Janeiro, exercia nos jovens
artistas cearenses na déca-
da de 1970. Estes artistas
mantinham o desejo de se
firmar no mercado fono-
gráfico que, invariavelmente, dependia do
acesso ao grande “centro” econômico e cul-
tural do país que estava não no Ceará, mas
na cidade carioca, ao menos naquela épo-
ca. Hoje, com o advento da globalização e
a democratização ao acesso pelas plata-
formas virtuais de streaming popularizadas
com a internet, as redes sociais e as novas
tecnologias de informação e comunicação,
algumas culturas estão mudando.

12 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Em outras palavras, viver da própria arte Por isso, entendemos a tradição literá-
era o grande sonho desses artistas, assim BOLACHINHAS ria de modo crítico e não enxergamos os
como fazer sucesso, alcançar o grande pú- escritores passivos diantes dos autores
blico, aparecer nas revistas e tocar nas gran- do passado. A tradição torna social a ex-
A canção “Carneiro” foi composta
des rádios. Em outras palavras, saltar do periência individual, tendo o poeta como
pelo músico Ednardo e o poeta
plano local/regional para o nacional. mediador, que interliga o passado e o pre-
Augusto Pontes no bar do Anísio,
Ao compararmos a situação do eu-lírico sente por meio da linguagem literária. Por-
famoso espaço da boêmia cearense
da letra da música com a situação do artis- tanto, ao se contemplar o estudo da Lite-
na avenida Beira-Mar, em Fortaleza,
ta local, percebemos que não existem dife- ratura Cearense, estamos empreendendo
na década de 1970. A música
renças entre as dificuldades na produção e um esforço para entendermos as heranças
figurou no LP O romance do pavão
na divulgação das realizações artísticas, no culturais transmitidas pelas distintas gera-
mysteriozo, lançado pela RCA Victor,
país, sejam elas musicais, literárias, teatrais ções de escritores, cuja produção constitui
em 1974. O sucesso do álbum
etc. Para essa discussão, uma contribuição um capital cultural da região.
projetou Ednardo nacionalmente,
importante é a de Antônio Candido em For- Nessa relação entre o regional e o nacio-
tendo suas canções veiculadas em
mação da Literatura Brasileira (1959), na qual nal, Alfredo Bosi nos alerta que o Brasil deve
novelas da Rede Globo de Televisão.
interpreta a literatura como um sistema lite- ser entendido como uma cultura plural:
Assista ao clipe da música “Carneiro”
rário, um fenômeno complexo e orgânico, or- Estamos acostumados a falar em cultu-
no link: https://www.youtube.com/
ganizado em torno do triângulo “autor-obra- ra brasileira, assim, no singular, como se
watch?v=-e58na36-ps
-público”. Essa interação dinâmica permite a existisse uma unidade prévia que agluti-
continuidade da tradição. Resumindo: para nasse todas as manifestações materiais e
espirituais do povo brasileiro. Mas é claro
que haja literatura, é preciso haver o conjun-
que uma tal unidade ou uniformidade
to integrado: escritores, obras e leitores.
A literatura é esse movimento: ocorre parece não existir em sociedade moder-
O conjunto desses três elementos dá na alguma e, menos ainda, em uma so-
quando há o ato da leitura. Por isso é tão
lugar a um tipo de comunicação em que a ciedade de classes (1992, p. 308).
importante ampliar os espaços de leitura,
literatura aparece como um sistema simbó- Existem variadas culturas brasileiras,
seja onde for, e democratizar o acesso às
lico, pelo qual os homens expressam e in- não apenas em relação a etnias, mas tam-
obras literárias. Não podemos nos restringir
terpretam diferentes esferas da realidade e bém nos níveis educacionais e sociais. E a
aos espaços das escolas, bibliotecas oficiais
profundos dramas da humanidade. ideia de cultura está intimamente ligada à
ou agremiações e academias. As bibliotecas
Quando um escritor toma consciência que colonização. Para Bosi, a categoria “coloni-
comunitárias e os clubes de leitura vêm nos
integra um sistema literário, ou seja, faz parte zação” não tem apenas uma natureza polí-
provando que é possível levar o livro, a leitu-
de uma complexa cadeia na qual há circula- tica, mas é um processo ao mesmo tempo
ra e a literatura a qualquer lugar.
ção de obras de escritores de tempos remo- material e simbólico: as práticas econômi-
É necessário refletir também que se eu
tos ou mais recentes, ocorre “a transmissão da
não conheço uma obra ou um acervo lite- cas dos seus agentes estão fortemente vin-
tocha” (1981, p. 24). Essa metáfora é utilizada
rário, eu não os valorizo. Da mesma forma, culadas aos seus modos de representação
por Cândido para indicar que a literatura, por de si e dos outros (1992, p. 15). Logo, inter-
se eu desconheço as obras de autores e au-
meio da leitura, ocasiona a existência de no- pretamos o Brasil como uma variedade de
toras de meu estado ou região, detendo-me
vos autores e constrói uma continuidade li- centros culturais regionais.
apenas ao que a mídia ou as grandes editoras
terária. Antônio Cândido nos explica que:
nos oferecem como best-sellers, perdemos a
É uma tradição [...] isto é, transmissão de oportunidade de conhecer esse legado lite-
algo entre os homens, e o conjunto de ele- rário, de nos reconhecer ou de compreender-
mentos transmitidos, formando padrões mos o sentido de identidade que povoa essas
que se impõem ao pensamento ou ao com-
obras que falam de nós. Da mesma forma,
portamento, e aos quais somos obrigados
a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem as universidades devem provocar e estimular
esta tradição não há literatura, como fenô- essa busca, promover esse encontro com a
meno de civilização (1981, p. 24). literatura produzida em seu estado.

CURSO literatura cearense 13


O pensamento de Bosi (1992) e Cândido
(1981) nos auxiliam a entender que o Brasil
não é nem pode ser um espaço cultural
homogêneo,, e essa discussão levamos à li-
teratura. Desde o século XIX, os artistas e es-
critores buscavam os centros econômicos e
culturais do país para publicar suas obras e se
tornar conhecidos perante uma elite cultural.
Para essa discussão, citamos Antônio
Sales que, em seu artigo sobre a literatura
do Ceará, ressalta seu engajamento:
Somos pela Pátria unida para que seja for-
te; mas, em troca de nossa lealdade, exigi-
mos que não nos tratem como um parente
pobre e rústico, de quem se pode caçoar ou
apenas merece um sorriso de benevolên-
cia protetora. O Ceará não é apenas uma
expressão geográfica no mapa do Brasil,
um joão-ninguém na comunidade nacio-
nal (apud GIRÃO, 1987).
No trecho, Sales se contrapõe a um dis-
curso de que há um centro hegemônico cul-
tural. Portanto, é preciso estabelecer um pro-
cesso dialético entre o “centro nacional” e os
centros regionais. Citamos “centro nacional”,
pois ainda há um discurso político e cultural
que tenta legitimar e homogeneizar a Litera-
tura Brasileira a partir de um cânone literário.
Alguns de nossos escritores, assim como Ed-
nardo e outros músicos, precisaram ir ao Su-
deste na tentativa de validar e legitimar sua
obra artística. Até quando essa migração
será imposta ou necessária?
Temos o intuito de construir uma
discussão acerca da formação da Lite-
ratura Brasileira, a princípio pelo estu-
do da Literatura Cearense, parte indis-
sociável dela, estimulando que outros
estados também procurem conhecer e
pesquisar a sua historiografia e bibliogra-
fia, considerando as diferenças e singula-
ridades regionais e problematizando as
desigualdades políticas e econômicas que
têm repercussão na divulgação e na circu-
lação de suas literaturas.

14 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


FAÇA
ACONTECER
REFERÊNCIAS
É provável que onde você mora – na BIBLIOGRÁFICAS
sua rua, bairro, cidade, estado –
exista um(a) escritor(a) interessante AZEVEDO, Sânzio de. Literatura

4.
e uma obra a ser descoberta com o Cearense. Fortaleza: Academia Cearense
ato mágico da sua leitura. Que tal de Letras, 1976.
fazermos dessa experiência de deleite, BARREIRA, Dolor. História da Literatura
um espaço de partilha? Crie um clube Cearense. Fortaleza: Ins�tuto do Ceará, 4.

CONCLUSÃO de leitura de autores da sua cidade,


região ou estado, e seja também
vol. 1948, 1951, 1954 e 1962.
BAUMAN, Z. Iden�dade: entrevista a
pós essa travessia inicial um(a) multiplicador(a) literário(a). Benede�o Vecchi. Tradução Carlos Alberto
pela Literatura Cearense, Já pensou como será rica esta Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
aprendemos que um escri- experiência? Não deixa de nos contar BENEVIDES, Artur Eduardo. Evolução da
tor local não fala somente depois o que achou dessa atividade poesia e do romance cearense. Fortaleza:
da sua terra natal, mas, ao Imprensa Universitária/UFC, 1976.
de imersão literária.
fazê-lo, parte de suas pró- BOSI, Alfredo. Dialé�ca da colonização.
prias experiências e vivên- São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
cias. Ao pisar em seu chão, BOURDIEU, Pierre. As regras da arte:
salta para infinitos territó- E não é Tzvetan Todorov que nos ensina gênese e estrutura do campo literário.
rios da linguagem, conse- que a literatura nos faz descobrir mundos que Tradução Maria Lúcia Machado. São
guindo acessar o código linguístico que tra- nos colocam em continuidade com as experi- Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ta da condição pertinente a toda e qualquer ências das outras pessoas e nos ajudam com- CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura
literatura: a condição humana. preender a nossa casa e a nós mesmos? Brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo
Horizonte, Ed. Ita�aia, 1981. v. I e II.
Fato: muitos estudiosos e leitores que Este curso pode ser um excelente cami-
transitam pela Literatura Brasileira, mesmo nho para entendermos nossas particula- GIRÃO, Raimundo; MARTINS FILHO,
Antônio. O Ceará. Ed. Fac-símile. Fortaleza:
residentes no estado cearense, desconhecem ridades culturais, e é essa diversidade que Fundação Waldemar Alcântara, 2011.
os autores e as obras publicadas no Ceará. nos enriquece culturalmente. Não nos es-
GIRÃO, Raimundo; Sousa Maria da
É por isso que é tão pertinente ampliar queçamos de Casimiro de Abreu, quando
Conceição. Dicionário da Literatura
esses pontos de acesso, evitando uma lite- afirma “todos cantam a sua terra, também Cearense. Fortaleza: Imprensa Oficial do
ratura exclusiva, restrita àqueles já reconhe- vou cantar a minha”. Ou mesmo Tólstoi: Ceará – IOCE, 1987.
cidos e consagrados. Nós, enquanto leitores “Fale de sua aldeia e estará falando do mun- MARTINS, Claudio (org.). A Quinzena:
críticos e reflexivos, temos o poder de eleger do”. Então, que possamos juntos aprender propriedade do Club literário. Fortaleza:
e consagrar obras esquecidas e obscurecidas a descobrir a beleza de nossos quintais. Academia Cearense de Letras, 1984.
pelo tempo ou pela história oficial, mas que E, no próximo módulo, estudaremos os MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. 2.
têm tanto apuro estético quanto aquelas. românticos. Prepare o coração. Ed. Fortaleza: UFC, 1994.

CURSO literatura cearense 15


AUTORES
Charles Ribeiro Pinheiro
Graduado em Letras pela Universidade Federal do
Ceará (2008), mestre em Literatura Comparada pela
UFC, e doutor em Literatura Comparada, também
pela UFC. Participante do grupo de pesquisa “Espaço
de Leituras: cânones e bibliotecas”, foi coordenador
do projeto de extensão e docência “O entre-lugar
na Literatura cearense”. Atua como revisor, redator,
roteirista e autor de livros didáticos de Literatura.

Lílian Martins
É jornalista, tradutora, professora, pesquisadora e
militante em Literatura Cearense. Mestre em Literatura
Comparada pela UFC, vencedora do Prêmio Bolsa de
Fomento à Literatura da Fundação Biblioteca Nacional
e Ministério da Cultura e do Edital de Incentivo às Artes
da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor).

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas
e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes
como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção
gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São
Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Apoio

Patrocínio

Realização
CURSO
l c
2 Sob as Asas
da Jandaia
Romantismo PARTE I
Paulo de Tarso Pardal

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Realização
1.
ALÇAR VOO:
APRESENTAÇÃO
Romantismo, um dos princi-
pais movimentos artísticos
do século XIX, teve como
marco inaugural no país a
publicação de Suspiros poé-
ticos e saudades, de um con-
troverso Gonçalves de Ma-
galhães (1811-1882).
Emoções à flor da pele,
coração saindo pela boca,
não podemos deixar de destacar o papel
essencial que os romances românticos ti-
veram na construção do público leitor bra-
sileiro. Ou seja, eu e você!
Nem de longe pretendemos abarcar
tudo ou a todos nesses módulos que vi-
rão, mas esperamos despertar em cada
um dos cursistas a curiosidade e o inte-
resse pelo estudo, pesquisa e leitura de
algumas das obras produzidas no estado
do Ceará e de seus autores que este breve
espaço ousa trazer à luz.
Neste módulo, em primeira parte, conver-
saremos sobre o Romantismo, em especial
de algumas de suas manifestações no Ceará.
Por ser um tema, além de saboroso, mui-
to complexo e diverso, optamos pelos seguin-
tes recortes temáticos: o indianismo e o re-
gionalismo de José de Alencar (1829-1877) e o
regionalismo de Juvenal Galeno (1836-1931).
Preparem os seus lenços e que as lágri-
mas adocicadas brotem de seu coração:
eles chegaram!

18 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


2.
AFINAL, O QUE É
Primeiramente, entenda que o escritor
romântico construía um mundo ideali-
zado e fazia do seu personagem um ser
fantasioso, heroico, embora o ambiente, o
espaço ficcional em que a trama aconte-
Trama/Enredo
Sucessão de
acontecimentos que
constituem a ação de
uma obra de ficção.

O ROMANTISMO? cia, muitas vezes, era descrito com muito


realismo. Contudo, assistir a um passeio
Talvez eu seja o último romântico de personagens como Peri ou Iracema, por Folhetim
Dos litorais desse Oceano Atlântico exemplo, pelas ruas do Rio de Janeiro ou Texto literário
Só falta reunir mesmo nas areias da beira-mar de Forta- (crônicas, fragmentos
A Zona Norte à Zona Sul leza era impossível. A fantasia entra neste de romances ou
Iluminar a vida ponto, já que, na composição do persona- novelas etc.) impresso
de forma seriada na
Já que a morte cai do azul. gem romântico, a beleza sem igual ou as parte inferior da página
raras virtudes humanas, somente eles, os de um jornal/periódico
Lulu Santos, Sérgio Cardoso
heróis clássicos, possuíam. (rodapé), com o
e Antônio Cicero, “Tudo Azul”
No momento de construção da nar- objetivo de vender
rativa de seus personagens – por en- mais exemplares.
Muitos deles se diziam
ocê já ouviu, muitas vezes, quanto, refiro-me apenas à ficção –, os
dirigir-se ao sexo
ao longo da sua vida, as autores queriam caracterizá-los com to- frágil, crendo que
palavras “romântico”, “ro- das as boas e sublimes qualidades do ser elas, as mulheres,
mance” e “romantismo”. E, humano, para mais impressionar os lei- seriam as maiores
com certeza, tais palavras tores, que sentiam-se representados nas leitoras da literatura
estavam associadas à pai- ações das personagens, identificavam-se ficcional – não à toa,
muitos autores se
xão, ao sofrimento, à fanta- com seus ideais, pois, afinal, muitos de dirigiam a elas em
sia, à irrealidade, às coisas nós, desde crianças, queremos ser ou suas interlocuções
que não existem no nosso nos vemos como heróis ou heroínas de –, assim como eram
mundo real, ou seja, coisas qualquer coisa. elas também as
idealizadas. Saiba, pois, que toda a base Naqueles tempos, a nova classe social protagonistas de
grandes clássicos da
da corrente estética, que denominamos fantasiava-se dentro de padrões criados
época, em especial, nos
Romantismo, predominante no Brasil por pelos seus autores preferidos, fosse nos romances urbanos. Os
mais de 40 anos, foi exatamente esse culto livros ou nos folhetins dos jornais. A vida folhetins, que tiveram
àquilo que não era real. como aventura e a morte como possibili- origem na França,
Você também deve estar se pergun- dade passou a fazer parte do imaginário fizeram um sucesso
tando a razão de tudo isso: por que “aqui- coletivo daquela época. absurdo no Brasil e
foram responsáveis
lo não real” era tão sedutor aos leitores e O romântico, dessa maneira, passou a pelo lançamento e
Narrativa leitoras? Imagine o porquê de escritores sentir-se um porta-voz dos ideais coletivos, êxito de muitos de
Exposição de um – e também escritoras –, convivendo em porque ele tinha consciência de que o Bra- nossos autores, como
acontecimento ou um período extremamente difícil, dada a sil, por exemplo, estava mudando, social e Joaquim Manuel de
de uma série de limitação das sociedades da época, esco- politicamente, e essa mudança deveria nos Macedo (1820-1882).
acontecimentos mais A moreninha foi um
lheram por escrever sobre aquilo que não distinguir dos demais países.
ou menos encadeados, dos folhetins mais
reais ou imaginários, fazia parte do cotidiano real delas. Espero É aqui que entra outro grande pilar do populares do país,
por meio de palavras que, ao longo da sua leitura, cursista, você Romantismo e uma das suas principais ca- antes mesmo de ser
ou de imagens. encontre essa resposta. racterísticas: o nacionalismo. publicado em livro.

CURSO literatura cearense 19


Alguns fatos históricos contribuíram para o
surgimento desse discurso de nacionalidade: MALACA co. Nesse ensaio, Magalhães afirma: “Cada
povo tem sua literatura, como cada ho-
a. A transferência da corte portu- CHETAS mem o seu caráter, cada árvore o seu fruto.”
No texto, lamenta a inexistência de estudos
guesa para o Brasil;
sobre a história da literatura brasileira no pró-
b. A chegada ao Brasil de algumas mis- Publicada em Paris (Dauvin et
prio Brasil e reclama que os estudos realiza-
sões estrangeiras compostas por Fontaine, Libraires) em 1836 e
dos em outros países nada ou pouco disses-
cientistas e artistas, entre elas as trazendo como lema “tudo pelo Brasil
sem sobre a nossa literatura, citando apenas
de 1816 (Auguste de Saint-Hilaire e e para o Brasil”, a revista Nitheroy é
– e com defasagem – o poeta árcade Cláudio
a Missão Artística Francesa) e 1817 apontada como um dos marcos da
Manuel da Costa (1729-1789), o inconfidente
(Friedrich von Martius e a Missão instauração do Romantismo no Brasil.
“Glauceste Satúrnio”. Também critica os poe-
Artística Austríaca), com o intuito Teve apenas 2 números e seus artigos
tas brasileiros que não aprenderam a olhar
de conhecer o recém-criado Reino não se restringiam à arte (o primeiro
para o seu povo nem para a “Natureza virgem
Unido de Portugal, Brasil e Algar- número traz um extenso artigo sobre
com tanta profusão”, limitando-se a importar
ve (1815), e que além de divulgar os cometas). Seus redatores eram:
temas, formas e valores portugueses.
ideais liberais e nacionalistas euro- Gonçalves de Magalhães, Francisco
Falando em olhar para o nosso povo, re-
peus, vislumbravam nas exuberantes de Sales Torres Homem, Manuel de
conhecer o nosso ambiente e suas peculia-
fauna e flora do Novo Mundo e na Araújo Porto Alegre.
ridades, adentraremos, agora, a geração in-
figura nativa do seu índio elementos Entre seus artigos, “Ensaio sobre a his- dianista do nosso Romantismo, lembrando,
fundantes da identidade brasileira; e tória da literatura no Brasil”, assinado como defende Luiz Roncari, em sua Literatu-
c. A Proclamação da Independên- por Gonçalves de Magalhães. Para ler a ra Brasileira: dos primeiros cronistas aos últi-
cia (1822), responsável, natural- revista Niterói na íntegra, acesse: mos românticos, que indianismo não signifi-
mente, entre outros, por um grande https://digital.bbm.usp.br/handle/ ca apenas tomar como tema e assunto da
impacto cultural. bbm/6859 literatura o indígena e seus costumes. Em
outras obras anteriores também os índios
Todas essas movimentações sociais,
apareciam, como em Caramuru, de Santa
econômicas e políticas, como é de se espe-
Rita Durão, e especialmente em Uraguai, de
rar e acontece no mundo inteiro, reverbe-
Basílio da Gama. “Tal realização implicava
raram no meio artístico. Na verdade, elas
também e principalmente a construção de
provocaram a criação de um imaginário
um novo ponto de vista e de uma nova visão
e ideal de brasilidade, que impregnou
do indígena, apreciado agora menos como
o pensamento daqueles que por aqui vi-
uma realidade racial que como outra reali-
viam... e também escreviam.
dade ética e cultural, distinta da europeia.”
Na literatura, que é o que nos cabe, te-
É evidente que a exaltação de um “índio
mos o ano de 1836 como marco do início
ideal” era uma maneira de exaltar a nossa
do Romantismo brasileiro, quando da pu-
terra e de valorizar um povo oprimido e em
blicação do livro Suspiros poéticos e sau-
extinção e de enfatizar nossa independên-
dades de Gonçalves de Magalhães no país
cia social e cultural de Portugal.
e, na França, da Nitheroy: revista brasilien-
Todo esse ideário – com generosa visão
se, que circulou por apenas dois números.
da pátria e do semelhante – fez com que os
Nela, Magalhães publica o “Ensaio sobre
leitores se sentissem parte dessa história
a história da literatura brasileira”, conside-
toda, daí aquela tal identificação com os
rado o nosso primeiro manifesto românti-
personagens que já conversamos aqui.

20 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


PASSANDO O índio na literatura do século XIX está ali-
cerçado na ideia de que, no Brasil, desde os SABATINA
A LIMPO primeiros momentos da colonização, sem-
pre teve um lugar especial: o índio é bom Como e porque sou romancista é uma
por natureza – a bondade natural de que autobiografia intelectual de Alencar. A
Embora Gonçalves de Magalhães, poeta
falaram os enciclopedistas. Evidentemente, obra representa importante testemunho
favorito e amigo de dom Pedro II, seja
o índio não era assim, “mas deveria ser”, este para a nossa compreensão não só da
figura imprescindível na história do
foi o enfoque, a fantasia da escola românti- personalidade do autor cearense, mas
Romantismo brasileiro, o seu poema
ca. Esta é a tese, por exemplo, de Agripino também dos alicerces de sua formação
épico Confederação dos tamoios (1856)
Grieco (1888-1973), que diz que o índio de literária. O texto sob a forma de carta,
foi redondamente desqualificado pelo
Alencar é uma “linda mentira”. Dessa forma, foi escrito em 1873 e publicado em
jovem José de Alencar, sob pseudônimo
confrontar o índio literário, esse homem li- 1893, pela Tipografia Leuzinger (RJ),
“Ig”, ainda redator do Diário do Rio de
vre e incorruptível, com o índio real – ainda 16 anos após a sua morte. Para lê-lo,
Janeiro, tanto por motivos formais
hoje muito desconhecido e pouco compre- basta acessar o material complementar
(gramática, estilo e metrificação), pela
endido – que vivia refugiado no interior do disponível na sua biblioteca virtual
ausência de unidade, quanto pela
país não tem sentido, pois o índio literário é do AVA. Lá, além desse título, existem
falta de imaginação na descrição dos
mais imaginação do que observação da rea- outras obras de apoio para os seus
costumes indígenas, assim como da
lidade. Assim, enquanto na Europa, os gran- estudos em Literatura. Aproveite! E caso
própria natureza. Também criticou
des valores eram personificados por cavalei- queira acessá-lo da Biblioteca da Unesp:
a escolha do modelo épico, no qual
ros medievais, no Brasil, eram nos indígenas https://bibdig.biblioteca.unesp.
dizia: “a forma com que Homero cantou
que encontravam corpo. br/bitstream/handle/10/6498/
os gregos não serve para cantar os
José de Alencar tinha plena consciên- como-e-porque-sou-romancista.
índios”. Seria incrível imaginar que o
cia disso. Em Como e porque sou romancista pdf?sequence=2&isAllowed=y
pensamento reformador tão propagado
(1893), Alencar conta um pouco de seu pro-
por Magalhães não atingisse a sua
jeto literário. Explica como escreveu e criou
própria obra. A polêmica obra Cartas
suas personagens e narra sobre o fazer literá- cavaleiro medieval, mas com a originalidade
sobre a Confederação dos Tamoios, de
rio do romance O Guarani, considerado pela da ligação com a terra selvagem brasileira.
Alencar, publicada ainda em 1856, pode
crítica literária a expressão do nacionalis- Para Lilia Schwarcz, em Um monar-
ser acessada, na íntegra, na Biblioteca
mo romântico e a consolidação da figura ca nos trópicos, o Romantismo brasileiro
Digital do Senado Federal:
do herói tipicamente brasileiro: “N’O Gua- inseriu-se em um plano político de cunho
https://www2.senado.leg.br/bdsf/ rani o selvagem é um ideal, que o escritor nacionalista, e não apenas em um movi-
handle/id/242822 intenta poetizar, despindo-o da crosta gros- mento estético. De perfil eminentemente
seira de que o envolveram os cronistas, e ar- estratégico, encarregou-se de fazer as pa-
rancando-o ao ridículo que sobre ele proje- zes com o indígena pelo passado de barbá-

BOLACHINHAS tam os restos embrutecidos da quase extinta


raça.”(ALENCAR, 1893, p. 47) Nas páginas
rie e intolerância, que ora comportava uma
leitura honrosa. É dessa leitura que nos fala
dessa obra, percebemos o quanto Alencar Schwarcz que iremos estudar a seguir.
Segundo José Alencar, em Como era consciente da corrente estética à qual se
e porque sou romancista, a sua filiou. Pretendia ser nacionalista a partir da
inspiração para O Guarani “caiu na exaltação da natureza, da volta ao passado
imaginação da criança de nove anos, histórico e da criação do herói nacional na
ao atravessar as matas e sertões no figura do índio. Em O Guarani a idealização
Norte, em jornada do Ceará à Bahia.” do indígena reunia todas as qualidades do

CURSO literatura cearense 21


3.
O GUARANI:
ROMANCE
DE FUNDAÇÃO
DO POVO
BRASILEIRO
Um índio descerá de uma
estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá
numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada
a última nação indígena
E o espírito dos pássaros
das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais
avançada das mais avançadas
das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi.
Caetano Veloso, em “Um índio”

osé de Alencar é considerado um


dos fundadores do romance bra-
sileiro. Entre outros objetivos, ele
queria representar, através da fic-
ção, toda a variedade do país, do
sertão à corte, e, de certa forma,
conseguiu, já que seus romances
perfazem todo o caminho da di-
versidade dos tipos brasileiros
desde “Arnaldo”, o vaqueiro cearense (de
Quixeramobim), um herói do sertão, no livro

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O sertanejo (1875), ao gaúcho, em O gaúcho
(1870), ambas obras regionalistas, como MALACA ele deveria ter já que vivia harmonicamen-
te com os seus e com a natureza.
passando pela corte de “Aurélia Camargo”, CHETAS A afinidade entre o público e o indianis-
no clássico Senhora (1875), romance urba- mo deve-se ao nativismo: a valorização do
no e de costumes. Como dissemos, o autor índio ia ao encontro dos desejos, dos sen-
O Guarani obteve muito sucesso do
exaltou em suas obras aquele que se tornou timentos e do conteúdo emocional dos lei-
público e da crítica quando lançado
o símbolo nacional do romantismo: o ín- tores que compunham majoritariamente a
em 1857. Porém os leitores da época
dio. São representantes da fase indianista classe burguesa. Logo após o processo de
acostumados com a leitura de
do Romantismo brasileiro – também de- Independência, desenvolveu-se entre nós
folhetins, surpreenderam-se com o
nominada nativista – as obras: O Guarani o sentimento de nacionalidade, e nada
formato livro (romance) ainda não
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). melhor do que um herói para representar
tão bem desenvolvido no Brasil. Com
Embora a primeira obra de literatura este anseio. Isto não quer dizer que o Brasil
esse lançamento, o novo gênero
cearense de Alencar seja Iracema (1865), pudesse viver, naquele período, sem o por-
literário ganhou força e passou a ser
discorreremos um pouco sobre O Guarani tuguês, pelo contrário, o Brasil era comple-
produzido com maior frequência
(1857), pois este romance inaugural da ficção tamente dependente da coroa portuguesa.
entre os escritores no país. Outra
indianista no Brasil traz muitos dos elemen- Não podendo valorizar o negro, o ficcionista
curiosidade dessa publicação, é que
tos que caracterizam a escola romântica. voltou-se para o índio, heroicizando-o.
José de Alencar deixou o seu enredo ao
Publicado originalmente como folhetim, a Antonio Candido afirma ser Alencar “o
gosto do público, alterando a história
obra narra, através da história de amor do ín- único escritor de nossa literatura a criar um
conforme a opinião que recebia
dio Peri e a jovem lusa Ceci, o tema da misci- mito heroico, o de Peri” e explica: “Assim
constantemente dos seus leitores das
genação entre o índio e o branco. Para Ângela como Walter Scott fascinou a imaginação
páginas do Diário do Rio de Janeiro.
Gutierrez, “a sugestão do conúbio entre dois da Europa com seus castelos e cavaleiros,
seres harmoniosos e superiores, símbolos Alencar fixou um dos mais caros modelos
das raças indígena e branca, ratifica a obser- Outra característica da escola é a com- da sensibilidade brasileira: o do índio ideal
vação de Doris Sommer (2004, p. 179) de que paração com a natureza, evocando o sím- [...]” (CANDIDO,1969, p. 223-4)
Alencar alinhava-se a von Martius, ‘um histo- bolo de perfeição. Vejamos na obra: “Peri,
riador que identificava a mestiçagem como primeiro de todos, tu és belo como o sol,
a matriz da brasilidade’”. O que fica implícito e flexível como a cana selvagem...”; Outro
em O Guarani será, oito anos depois, explicita- exemplo é o fragmento: “ A nação Goitacá
do com o nascimento de Moacir, filho da dor, tem cem guerreiros fortes como Peri; mil ar-
em Iracema”. (GUTIERREZ, 2009, p. 10) cos ligeiros como o voo do gavião.”
A descrição de Peri é clara: “Enquanto O autor romântico comparava as pro-
falava [Peri], um assomo de orgulho selva- tagonistas com a natureza para dizer da
gem da força e da coragem lhe brilhava nos perfeição e da beleza de ambos: perso-
olhos negros, e dava certa nobreza ao seu nagens e natureza. Por essa razão a natu-
gesto. Embora ignorante, filho das florestas, reza é sempre idealizada e sempre pre-
era um rei; tinha a realeza da força.” sente na ficção romântica.
Esse exagero está em todos os capí- O mito do “bom selvagem”, de Rosseau,
tulos do romance. Isto, porém, não é um que afirma ser o homem bom por nature-
defeito e, sim, uma característica da za, sendo o viver em sociedade a causa da
escola. Era assim que os personagens ro- sua degradação moral, muito contribuiu
mânticos se posicionavam diante do mun- para que o indianismo fosse uma tendên-
do, exagerando, sendo demasiadamente cia generalizada do Romantismo. Aqui,
apaixonados e, por isso, sofrendo muito. vestido com a cor local, o índio literário do
Essa era a postura romântica. romance encarna a bondade natural que

CURSO literatura cearense 23


4.
IRACEMA: LENDA
DO CEARÁ
Iracema hoje quer ser moderna
Loura a força, ela deseja ser
Mas a cor que lhe veste o corpo
é de cabocla que a faz sofrer
O estrangeiro foi para não voltar
Deixou o seu filho que não quer mais ver.
Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry,
em “Maracatu Fortaleza”

romance Iracema (1865)


é considerado, segundo
o pesquisador Sânzio de
Azevedo, a primeira obra
de literatura cearense de
José de Alencar. Acerca
de Iracema, nos explica o MALACA
pesquisador: “No Ceará, o
Indianismo é representado
CHETAS
precisamente por uma das
obras principais do movimento brasileiro, A canção “Maracatu Fortaleza”,
Iracema.” (AZEVEDO, 1976, p.51). de autoria de Pingo de
A paisagem e a cultura da sua terra foi o Fortaleza e Rosemberg Cariry,
que de mais especial José de Alencar nos foi tema oficial do Maracatu Az
deixou, mesmo dentro dos cânones da épo- de Ouro no início da década
ca. O nacionalismo, que toda a doutrina ro- dos anos 2000.
mântica possui, teve em Alencar um vigoro- A música ganhou videoclipe
so pintor. Essa ideia de terra nossa, de país com direção de Petrus Cariry e
nosso, de cultura nossa está em quase todos está disponível no canal Pingo
os seus livros. Em dois deles, toda a paisa- de Fortaleza Solar, do artista
gem exuberante do Ceará foi essencial, para cearense João Wanderley
firmar um imaginário regional: Iracema e O Roberto Militão, conhecido
sertanejo como veremos mais a seguir. simplesmente como Pingo
Observe o que Alencar diz, no prólogo de Fortaleza. Confira no link:
da primeira edição de Iracema oferecido https://www.youtube.com/
pelo “filho ausente” à terra natal: watch?v=nijgoEZrWyM

24 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Os meninos brincam na sombra do outão Verdes mares bravios de minha terra natal,
com pequenos ossos de reses, que figu- onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;
ram a boiada. Era assim que eu brincava, Verdes mares, que brilhais como líquida
há quantos anos, em outro sítio, não mui esmeralda aos raios do sol nascente, per-
distante do seu. A dona da casa, terna e longando as alvas praias ensombradas
incansável, manda abrir o coco verde, ou de coqueiros; […]
prepara o saboroso creme do buriti para
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápi-
refrigerar o esposo, que pouco há recolheu
da a costa cearense, aberta ao fresco terral
de sua excursão pelo sítio, e agora repousa
a grande vela? […]
embalando-se na macia e cômoda rede.
[…] Três entes respiram sobre o frágil lenho que
vai singrando veloce, mar em fora.
Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se
iludam as reminiscências da infância avi- Um jovem guerreiro cuja tez branca não
vadas recentemente. Se não, creio que, ao cora o sangue americano; uma criança e
abrir o pequeno volume, sentirá uma onda um rafeiro que viram a luz no berço das flo-
do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe restas, e brincam irmãos, filhos ambos da
vem da várzea. Derramao, a brisa que per- mesma terra selvagem (...) (ALENCAR, 2005)
passou os espatos da carnaúba e na rama- Perceba que, nesse trecho, encontra-
gem das aroeiras em flor.
mos, além da paisagem, o mito da origem.
O livro é cearense. Foi imaginado aí, na
O livro inicia trazendo o fim da história de
limpidez desse céu cristalino azul, e depois
vazado no coração cheio de recordações Iracema e de Martim, o “guerreiro branco”,
vivazes de uma imaginação virgem, Es- cujos descendentes comporão nosso povo:
crevio para ser lido lá, na varanda da casa este é o mito. A criança na jangada, o Moa-
rústica ou na fresca sombra do pomar, ao cir (“filho da dor”, “o que vem da dor”, em tu-
doce embalo da rede, entre os múrmuros pi-guarani) é símbolo da mistura das raças,
do vento que crepita na areia, ou farfalha
nas palmas dos coqueiros.[…]
é o branco e o índio compondo a diversida-
de cultural do povo brasileiro.
Se, porém, ao abordar às plagas do Mucuri-
pe, for acolhido pelo bom cearense, preza- Ao longo da narrativa, surge a nossa
do de seus irmãos ainda mais na adversi- paisagem geográfica: Ipu, chapada da Ibia-
dade do que nos tempos prósperos, estou paba, Meruoca, Uruburetama, Maranguape,
certo que o filho de minha alma achará na Parangaba, Sapiranga, Messejana etc.
terra de seu pai a intimidade e conchego da
família […] (ALENCAR, 2005)
Observe que, só nessas primeiras li-
nhas, a autor traz em suas memórias mui-
tos elementos indicadores dos costumes
e da paisagem cearenses. Sua maneira
de avivar as cores e os gestos só reforçam
sua identidade romântica. A seguir, temos
alguns trechos da obra, nos quais a terra
cearense, espaço geográfico, é ambienta-
da como o cenário de Iracema:

CURSO literatura cearense 25


5.
Em O sertanejo, umas das obras regio-
nalistas do autor, o personagem Arnaldo
é jovem, belo, livre, forte, apaixonado e
completamente integrado ao seu am-
A COR DA TERRA: biente, o seu lugar. E os lugares, a cultura
e os costumes do povo cearense ganham
O SERTANEJO outras cores. Aqui, o que é acentuado é o
imaginário do sertão, a organização das
frânio Coutinho, a respeito
famílias, com sua ética e seus códigos de
do regionalismo:
sobrevivência. A primeira parte do livro é
A procura do colorido local pe- quase uma identidade da terra natal:
culiar conduziu à compreensão
da cultura popular, onde, para Esta imensa campina, que se dilata por
os românticos, residiria o cará- horizontes infindos, é o sertão de minha
ter original da criatividade lite- terra natal.
rária, e de onde partiria o veio Aí campeia o destemido vaqueiro cearense,
formador da literatura. que à unha de cavalo acossa o touro indô-
mito no cerrado mais espesso, e o derriba
Assim, como endossa pela cauda com admirável destreza.
Sânzio: “Essa busca de cor local, porém,
Aí, ao morrer do dia, reboa entre os mugi-
não privilegiou apenas o aborígine, mas dos das reses, a voz saudosa e plangente
também o mestiço, igualmente brasileiro, e do rapaz que aboia o gado para o recolher
cuja cultura era própria, diferente, portanto, aos currais no tempo da ferra.
da cultura portuguesa.” Quando te tomarei a ver, sertão da minha
terra, que atravessei há muitos anos na au-
rora serena e feliz da minha infância?
Quando tornarei a respirar tuas auras
impregnadas de perfumes agrestes, nas
quais o homem comunga a seiva dessa
natureza possante?

26 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Porém, o espaço, a terra descrita não é fan- mais e os cativa. [...] O gado dos currais, que
BOLACHINHAS tasia: é realidade projetada do cotidiano.
Como consequência disso, emerge a sau-
já se tinha acomodado e ruminava deitado,
levantando-se para responder ao canto do
aboiador, mugia não ruidosamente. [...]
dade, sentimento impulsionador do orgu-
Ao contrário de boa parte de seus Como vemos, ser humano e animal co-
lho de pertencer a uma determinada terra.
romances urbanos, em que as mulheres municam-se como se o animal soubesse do
Isto é o que alavancou o nacionalismo ro-
eram as protagonistas, Alencar, em significado do aboio, pois responde ao apelo
mântico e fez dele um dos principais ele-
seus romances regionalistas, trazia do vaqueiro. Aqui, mais uma vez, a harmonia
mentos de aceitação do público. Outros
personagens masculinos. entre os seres que vivem num mesmo espa-
fatores de “cearensidade” vão aparecendo
durante a narrativa, principalmente do va- ço geográfico é fundamental. Esse elemento
queiro/sertanejo cearense, inclusive nela o de harmonia é uma tática, para o leitor sentir

CONFEITOS autor descreve muitas características que


ele diz ser do “cearense da gema”.
a necessidade de integração com a sua terra
e que dela tenha orgulho. Talvez este seja um
Nos últimos ramos, lá no tope do jacaran-
dos objetivos de Alencar.
O personagem Arnaldo, vez ou outra dá, havia o sertanejo armado a rede, em Com todos esses exemplos, tanto de Ira-
aparece acompanhado por um que se embalava. Devia de achar-se mais cema, como de O sertanejo, podemos deduzir
“tigre”. No passado, era possível ser de cem pés acima da terra; e nessa grande que José de Alencar queria muito mais do que
encontrada com mais facilidade no altura, suspenso por duas finas cordas de representar uma região, com seus costumes e
algodão trançado, estava mais tranquilo
interior cearense a onça suçuarana. suas crenças. Ele queria dizer que a região é
do que se pousasse no chão, [...]
Os antigos denominavam essa essencial, para uma ideia mais ampla e cons-
Cessaram os repiques do sino; o sertanejo
suçuarana de “tigre” (nunca ciente do Brasil: esse é o seu nacionalismo.
adivinhando que estavam na reza ajoelhou
haviam visto o asiático animal), também num ramo da árvore, e com sin-
diferenciando-a da onça pintada. cero fervor acompanhou de longe no seu
nicho agreste a oração que lá se estava
elevando ao Senhor pela boa volta e feliz
chegada dos donos da Oiticica. Começou a
A referência à imensa campina é como ladainha cantada. [...]
o autor intenciona impressionar o leitor Em que pese a fantasia, o uso da rede ca-
pela visão e pelas qualidades inerentes a racteriza nossa terra, ainda hoje. As orações ao
esse espaço. Apesar dos percalços, a terra final da tarde e um dos cantos de louvor bem
significa a origem e a construção da vida. E exemplificam o cotidiano do cearense, devoto
os elementos da região vão aparecendo: a que sempre foi dos santos e obediente aos ri-
derruba do gado pela cauda; a destreza do tuais da igreja. O herói é perfeitamente adap-
vaqueiro e o seu aboio típico, que tantos ar- tado à natureza, porque é fruto dela, e com
tistas exaltaram; a ferra do gado, que é mo- ela vive em harmonia. Essa é outra ideia que
mento de repartição e de propriedade das Alencar passa, em muitos de seus romances.
reses; os odores do sertão etc. Sobre o aboio, tão característico, ainda Aboio/Aboiado
Perceba, cursista, que o narrador fala hoje, nas brenhas do nosso sertão: Canto dolente
das coisas do sertão com muito orgulho e monótono,
Ainda retiniam as últimas badaladas das sem palavras,
– esta é a visão do romântico sobre a sua trindades, quando longe, pela várzea além,
terra, porque é a terra da sua identidade, com que os vaqueiros
começaram a ressoar as modulações afe- guiam as boiadas ou
das suas aventuras e da sua memória, tuosas e tocantes de uma voz que vinha chamam as reses.
mesmo que tal memória, em relação às pe- aboiando. [...] Não se distinguem palavras
ripécias das personagens, venha revestida na canção do boiadeiro; nem ele as articula,
pois fala ao seu gado, com essa outra lin-
de muita imaginação e irrealidade, para
guagem do coração, que enternece os ani-
atender os cânones do Romantismo.

CURSO literatura cearense 27


cava em jornais do Ceará, de Pernambuco e
na Revista popular, editada no Rio de Janeiro
por Louis Garnier, editor e livreiro, continuan-
do ainda no Jornal das famílias, desde 1863,
também de Garnier, impresso em Paris, jun-
tamente com Joaquim Manuel de Macedo,
Lúcio de Mendonça e Machado de Assis. Em
1860, quando preso por desacato ao coman-
dante Machado, da Guarda Nacional, escre-
veu A machadada: poema fantástico, primei-
ra obra literária impressa no Ceará. Em
1871, publicou Canções da escola, primeira
obra infantojuvenil cearense, e, no mesmo
ano, publica Cenas populares, primeiro livro
de contos do Ceará. É um dos fundadores do
Clube Literário (1886), do Instituto do Ceará
(1887) e do Centro Literário (1894). Foi padei-
ro-mor honorário da Padaria Espiritual (1895)

6.
e é considerado um dos primeiros poetas
abolicionistas e folcloristas do Brasil.
Como podemos constatar, não seria
possível nesse módulo dar conta de expor
O REGIONALISMO a vida e a obra desse autor que inaugura
quase tudo a que se refere à literatura pro-
DE JUVENAL duzida no estado.
“Era um romântico, mas com uma parti-
GALENO cularidade que faz dele figura ímpar nos qua-
Romantismo cearense tem dros da poesia cearense, ou mesmo brasilei-
como marco inaugural o ra: a inspiração genuinamente popular.”
lançamento de Prelúdios Dessa forma o pesquisador Sânzio de Azeve-
poéticos (1856), livro de do apresenta Juvenal Galeno. E diz mais:
estreia de Juvenal Galeno, O cantor das Lendas e canções populares re-
publicado no Rio de Janei- presenta, assim, melhor talvez do que qual-
ro (Iracema teria sua publi- quer outro poeta do Brasil, aquela vertente
do Romantismo que procurava identificar-
cação 9 anos depois). E se- -se profundamente com a alma popular,
ria apenas esse o destaque produzindo a arte anunciada por Herder,
de Galeno na Literatura Cearense? Decerto antes mesmo do advento da escola.
que não, vejamos: Por isso, falando da obra do poeta cearen-
Ainda aos 13 anos, ao lado de Gustavo se, disse João Clímaco Bezerra ser ela, “na
Gurgulino de Souza, foi fundador do primeiro literatura brasileira, a primeira tentativa de
jornalzinho puramente literário do Ceará:
Ceará uma poesia tipicamente regionalista”.
o Sempreviva. Aos 17, ao ingressar no Liceu, De fato, reconhecido poeta social, com
junto com colegas, criou o Mocidade cearen- o olhar voltado aos pobres, aos humildes –
se, pioneiro da imprensa estudantil no es- embora de origem socialmente privilegiada
tado. Em 1859, escreveu Quem com ferro fere –, Galeno dedica a eles a sua obra, ao afir-
com ferro será ferido, primeira peça escrita mar: “Sei que mal recebido serei nos salões
e encenada no Ceará (1861). Em 1859, publi- aristocratas e entre os críticos que, estudan-

28 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


do no livro do estrangeiro o nosso povo, des- blica, em 1865, ano em que é lançado Ira-
conhecem-no a tal ponto de escreverem que BOLACHINHAS cema, de Alencar, Lendas e canções popula-
o Brasil não tem poesia popular! [...] Despre- res. Assim como José de Alencar, escolheu
zado nos salões, encontrarei bom gasalha- Franklin Távora (1842-1888), alguns tipos para compor sua obra, Juve-
do na oficina, na choça, no seio do povo; o considerado o fundador do nal Galeno, como todos os regionalistas,
operário entoará no trabalho estas canções, regionalismo no Nordeste, era opositor tirou do seu espaço real os modelos para
as crianças repeti-las-ão no lar, e o veterano ferrenho da literatura dita nacional de a sua composição literária, desta feita, não
recrutado, o escravo, o oprimido... derrama- José de Alencar. Franklin nasceu no mais como romance, mas como poesia.
rão muitas lágrimas ao escutá-las. E, assim, Ceará. Aos 2 anos, com os pais, passou Dolor Barreira afirma: “No Quadro sintético
cumprirei a minha missão.” (GALENO, 2010). a residir em Pernambuco, estado que é da evolução dos gêneros na Literatura Brasilei-
Mesmo em Prelúdios poéticos, em meio cenário de sua obra O Cabeleira (1876). ra, da autoria de Sílvio Romero, Juvenal, aliás
a poemas tipicamente românticos, Azevedo o único cearense citado no quadro relativo à
observou que Galeno traz três peças poéticas poesia, figura como representante do período
que comprovam a sua tendência à poesia romântico (quarto momento) entre os serta-
popular. São elas: “A noite de S. João”, “Can- ção do autor dedicada não apenas à poesia nistas, tradicionalistas e campesinos [...]”
tiga do violeiro: poesia popular” e “A canção popular, mas ao povo em si, a quem dedica- O regionalismo na poesia está ligado às
do jangadeiro”. Até então, se dizia, equivoca- ria a maior parte de seus trabalhos, incluindo particularidades dos agrupamentos sociais
damente, que os poemas do livro de estreia Lendas e canções populares, que seria escrito de cada canto do país, apresentando clima,
de Galeno eram de característica neoclássi- no período de 1859 a 1865. Também Netto, costumes, fala, cultura, aspectos do cotidia-
ca e que nada tinham de popular, o que fez em sua Cronologia comentada, por intermé- no, o que dá uma enorme riqueza de detalhes
com que muitos acreditassem que Gonçalves dio de cartas encontradas de Gonçalves Dias a serem estudados sobre os tipos e o ambien-
Dias, o primeiro grande indianista do Roman- destinadas a Galeno, afirma ser Cantigas do te que os envolvia. Sobre isso, José Aurélio
tismo, quando de sua passagem no Ceará, 3 sertão, o primeiro título de Lendas e canções Saraiva Câmara afirma: “Sem as poesias de
anos depois da sua publicação, teria sido o populares e que Canções da escola seria a Juvenal Galeno e sem as crônicas históricas
responsável por dar ao poeta o conselho, do primeira obra da literatura infanto-juvenil cea- de João Brígido, será impossível recompor a
nada, de produzir e cultuar a poesia popular. rense, como dissemos anteriormente. verdadeira fisionomia do Ceará oitocentista.”
Em 2010, durante a organização e publi- Voltando ao tema e para irmos adiante,
cação da Coleção Juvenal Galeno: obra com- em primeiro lugar, é fundamental que o(a)
pleta, Raymundo Netto encontrou os manus- cursista compreenda que o denominado
critos da única peça escrita por Galeno, Quem regionalismo não se trata de uma escola
com ferro fere, com ferro será ferido – encenada literária, como o Romantismo ou o Realis-
posteriormente, em 1861 –, e neles constatou mo, por exemplo.
o ano de sua escrita: 1859. A descoberta gerou Nas obras românticas, depois do indíge-
duas constatações: seria essa a segunda obra na, a figura local, como o sertanejo, assumiu
produzida por ele, e não A machadada: poe- o papel de herói idealizado. Para tanto, esse
ma fantástico (1860), como até então se pen- regionalismo foi fundamental. Além disso,
sava. Segundo: “na peça, Juvenal denuncia e observamos ainda mais sua importância ao
critica o abuso da autoridade dos delegados trazer para o palco romântico – geralmente
nas pequenas cidades do interior, a utilização urbano e centrado na corte – os tipos, cos-
do recrutamento e da cadeia pública como tumes, valores e paisagens de um Brasil ain-
instrumentos de vingança, a omissão e a par- da desconhecidos por ela.
ceria dos latifundiários, dos ricos e dos padres Galeno, após sua estreia em Prelúdios...,
aos desmandos do poder, a hipocrisia e dis- da escrita de sua única peça, da publicação
criminação social, a deficiência e corrupção de A machadada: poema fantástico (1860)
da justiça, o estado de pobreza e penúria da e de A Porangaba: lenda americana (1861)
maior parte da população indefesa”. (NETTO, – um poema indianista que, este, sim, traz
2010), o que demonstra, novamente, a aten- a influência do amigo Gonçalves Dias –, pu-

CURSO literatura cearense 29


Assim, Juvenal Galeno nos apresenta Agora, vamos fazer uma leitura mais de- último verso, o narrador interpreta o senti-
muitos temas caros à região, como o janga- talhada do poema “Cajueiro pequenino”, mento do outro, como os outros dois).
deiro, o mar, o boiadeiro, o escravo, o lavra- uma das pérolas do nosso Romantismo O narrador entra no mundo inanima-
dor, a lavadeira, entre outros, e, sem perder o regional, e um dos mais festejados do au- do do cajueiro e conta a história dos dois:
tom romântico, característico da sua compo- tor, para identificarmos fatores essenciais, “Quando em casa me batiam,/ Contava-te
sição poética, vai além e revela as injustiças e por meio dos quais poderemos classificá-lo o meu penar;/ Tu calado me escutavas,/
a desigualdade sociais, a política, a explora- como romântico e como regionalista. “Ca- Pois não podias falar”. Perceba que o ca-
ção, o sofrimento, mas também as alegrias, o jueiro pequenino” fazia parte do folclore e jueiro é o irmão e o amigo: “Que de ti seria,
modo de viver e a beleza de seu povo. da tradição dos trovadores cearenses. irmão?” Isso também dá um tom de proxi-
Encontramos alguns desses elementos Cajueiro pequenino, midade, de confiança, de um tipo de acon-
nos fragmentos dos poemas abaixo: Carregadinho de flor, chego muito próprio da infância.
“Ai, vida qu´eu levo por montes e vales, À sombra das tuas folhas Se no Romantismo a construção do
Catingas e grotas se vou campear; Venho cantar meu amor, herói era uma de suas forças, aqui, os pri-
E após descansando, cercado dos filhos, Acompanhado somente meiros sinais românticos estão na lingua-
E junto à consorte nos gozos do lar! Da brisa pelo rumor,
Cajueiro pequenino,
gem, no discurso, na seleção do léxico:
A vida qu´eu levo, pequenino, carregadinho, sonho, querido,
Ouvi-me cantar. (...)” Carregadinho de flor.
vida infantil, verdes ervinhas, todo gentil,
“O vaqueiro”. Tu és um sonho querido
De minha vida infantil, sonho infantil. Esses termos no diminuti-
In: Lendas e canções populares, 2010.
Desde esse dia... me lembro... vo, algumas expressões gentis, delicadas,
“Minha jangada de vela Era uma aurora d´abril, tudo isso aproxima o discurso do poema
Que ventos queres levar? Por entre verdes ervinhas
Tu queres vento da terra
da linguagem da criança.
Nasceste todo gentil, Porém, a caracterização romântica está
Ou queres vento do mar? Cajueiro pequenino,
Minha jangada de vela mais presente na partida, na dor e na sauda-
Meu lindo sonho infantil.
Que vento queres levar? (...)” de. O narrador sofre pelo cajueiro, por ele ser
“Cajueiro pequenino”.
“A jangada”. In: Lendas e canções populares, 2010. frágil, doente: é a sua sina ter crescido no chão
In: Lendas e canções populares, 2010. agreste, sobre o qual adiante falaremos: (“Tu
O poema todo é uma declaração de que foste sempre enfermo). Há um sofrimen-
“Além dos males que padece o corpo,
Medonha fome, o desarrimo, as dores, amor. Há dois elementos marcantes: o tom to sem referencial explícito: é um sentimento
Mortais angústias que o cidadão deplora, de ingenuidade, de delicadeza, de fragili- tipicamente romântico (não há romantismo
Sem da justiça, sem da lei favores, dade, inclusive (“Tu que foste sempre en-
Do povo o espírito ignorante perde-se fermo”); e o elemento saudade, associada
Em noite umbrosa, oh, do poder senhores! a uma certa dor, à tristeza, à melancolia e
“A instrução”. à partida. Esses elementos, atuando con- Antropomorfizar
In: Lendas e canções populares, 2010.
juntamente, darão a tônica do poema: o é atribuir, adquirir
O último poema, “A Instrução”, tem início sentimentalismo e a dor, dois fatores nu- características
humanas.
com o alerta de que a Constituição garante a cleares do Romantismo.
instrução primária a todos os cidadãos. É o O tom de ingenuidade é dado por dois ele-
Galeno engajado contra o analfabetismo. mentos: o próprio motivo e a seleção lexical.
Mas, voltando ao regionalismo, vaquei- A lembrança da infância de um narrador
ros e jangadas bem ilustram o tom regio- já adulto (“Fui-me longe... muitos anos”),
nal. Se há temas que se repetem, aqui, no de sua amizade com um cajueiro (coisa de
Ceará, podemos dizer que esses dois estão menino), que ganha status de pessoa, se
em muitos momentos históricos da nossa antropomorfiza: embora não fale, sabe
terra, não só na literatura, mas na pintura, muito bem escutar: “Se tu sofrias... eu, tris-
no desenho, na escultura, no folclore, na te,/Chorava como... ninguém!/ Cajueiro pe-
literatura de cordel etc. quenino,/ Por mim sofrias também!” (nesse

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sem sofrimento): “Se tu sofrias... eu, triste,/ meio dela que os leitores se sensibilizam. REFERÊNCIAS
Chorava como... ninguém!/ Cajueiro pequeni- Importante atentar também que o próprio
BIBLIOGRÁFICAS
no,/ Por mim sofrias também!”. O sofrimento cajueiro – o caju e/ou a castanha – é um
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense.
é condicional, apenas uma possibilidade: se dos principais indicadores do regionalismo,
Fortaleza: Publicação da Academia Cearense
o narrador não indica a causa do sofrimento, uma imagem muito presente, mesmo por de Letras, 1976.
da tristeza, ele está dizendo para o leitor que aqueles que nunca provaram da fruta.
AZEVEDO, Sânzio. Juvenal Galeno e a poesia
isso não tem importância: o importante é Outro dado que remete para esse as- do povo. Palestra pronunciada em 10.3.81,
sofrer – esta é a causa romântica. pecto particularizado do Ceará é a terra, o em celebração ao 50º aniversário de falecimento
Um detalhe lexical importante, nes- chão agreste, seco, sem água. Isso é muito de Juvenal Galeno. In Revista da Academia
te momento da análise, é a dinâmica do característico de textos nordestinos. Ve- Cearense de Letras, 1981.
verbo ausentar: “Mas um dia... me au- mos nos versos: “Afogado nestes matos,/ BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
sentaram...” Tal verbo é essencialmente Morto à sede no verão.../ Tu que foste sem- brasileira. São Paulo : Cultrix, 1995.
pronominal, reflexivo e, normalmente, pre enfermo/ Aqui neste ingrato chão!” BECHARA, Evanildo. Moderna gramática
transitivo indireto: alguém se ausenta por O cajueiro, antromorfizado, foi enfermo, portuguesa. 37ª Ed. Rio de Janeiro : Lucerna, 2001.
causa de algo, ou se ausenta por algo; ou porque é fruto deste chão. Há, aqui, um COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no
se ausenta de algo: por exemplo, eu me julgamento da terra: ingrata. Como ro- Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro. São José, 1966, p.171.
ausentei da reunião. mântico, o narrador não poderia dar uma CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo:
Juvenal Galeno torna o verbo não-re- explicação naturalista, científica, ele pre- Editora Ática, 1986.
flexivo, embora permaneça transitivo indi- fere a explicação sentimental, que é o que COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil.
reto (“eles ausentaram a mim”). O impacto lhe interessa, a da terra não reconhecer os 17a.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
é muito maior, além de esteticamente ser benefícios do cajueiro, nem os cuidados de GUTIÉRREZ, Ângela. O Guarani e a Construção do Mito
muito mais rico, porque proporciona uma quem dele cuida, daí a ingratidão, muito do Herói. In: Rev. de letras, nº. 29. Vol. 1. jan./jul. 2009.
das mais belas imagens do poema. Usado própria nas narrativas românticas. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
em um sentido não comum (alguém fê-lo A voz do poema é a do próprio narrador: literários. São Paulo : Cultrix, 1995.
partir contra a vontade), ele não se ausen- um ser que canta sua vida de amizade e de _______. História da literatura brasileira, V. 2,
tou, mas alguém o ausentou. sofrimento. E um ser que trata o cajueiro Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1985.
Essa construção mostra o quanto os como se fosse uma pessoa, daí a afeição e SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura.
autores românticos também estavam aten- a identificação. No poema, há uma narra- 8.ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992.
tos à linguagem, porque sabiam que é por tiva, há uma história, há uma sequência de PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura
ações, que, no fundo, constrói a história e a brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
vida de um ser que muito sofreu. Ora, tudo PONTARA, Marcela; ABAURRE, M. Luiza. Literatura
do romântico é exagerado: no Romantismo, brasileira: tempos, leitores e leituras. São Paulo:
não há meio-termo: “Chorando beijei-te as Moderna, 2006.
folhas...”. Não precisamos comentar essa RAYMUNDO NETTO. Cronologia comentada de
passagem, pois está muito clara a intenção Juvenal Galeno. Fortaleza: Secult, 2010.
do autor em “humanizar” o cajueiro que, RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos
pagaria assim o alto preço de sofrer. primeiros cronistas aos últimos românticos.
Esses parágrafos mais técnicos e analí- São Paulo: Edusp, 1995, p. 365.
ticos foram aqui colocados para que você, SCHWARCZ, Lilia M. Um monarca nos trópicos:
cursista, sinta as inúmeras possibilidades de o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio
leituras, a enorme variedade de elementos
Pedro II. In: As barbas do Imperador: D. Pedro II,
e o vasto campo de pesquisa que pode ser um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
feita na análise de um texto, além, claro, de das Letras, 1998. p. 125-157.
compreender o jogo retórico e estilístico dos WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da
autores românticos, por esses dois grandes literatura. Tradução de José Palla e Carmo. Lisboa:
mestres do Romantismo brasileiro. Publicações Europa-América, 1971.

CURSO literatura cearense 31


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Paulo de Tarso Pardal Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

Atuou como entalhador, escultor, bancário e FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


economista. É compositor, luthier e instrumentista João Dummar Neto Presidente
(toca violão, cavaquinho e viola de 10 cordas). Ao André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
lado da música, construiu sua carreira acadêmica. Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Graduou-se e concluiu o mestrado em Letras pela
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi professor e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
da Universidade Vale do Acaraú (UVA), Universidade
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
Estadual do Ceará (Uece), Faculdade Farias Brito e da Viviane Pereira Gerente Pedagógica
Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem 11 livros Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
publicados, entre ensaios, contos, poemas e partituras Joel Bruno Designer Educacional
e 5 CDs gravados, entre canções e chorinhos. CURSO LITERATURA CEARENSE
Raymundo Netto Coordenador Geral,
Editorial e Estabelecimento de Texto
Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
ILUSTRADOR Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
Carlus Campos Miqueias Mesquita Diagramador
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira Carlus Campos Ilustrador
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na Luísa Duavy Produtora
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas ISBN: 978-65-86094-29-9 (Fascículo 2)

e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes


como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção
gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São
Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Todos os direitos desta edição reservados à:

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3 Poemas para
a Liberdade
Romantismo PARTE II
Carlos Vazconcelos

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Realização
1.
POESIAS EM
CLARO-ESCURO
rezado(a) estudante, é com
satisfação que convido você a
mergulhar nas páginas do nos-
so passado. Faremos juntos
uma viagem marcante e delicio-
sa pelos meandros da Literatura
Cearense: conhecer nosso pas-
sado, revisitar tempos poéticos
e revolucionários, dar a mão a
personalidades que cultivaram
o terreno árido da nossa cultura e escreve-
Indeléveis ram páginas indeléveis no solo literário so-
Que não se podem bre o qual pisamos. Grandes vultos, homens
apagar ou destruir. abnegados, agremiações e jornais pioneiros,
palavras gritadas, cantadas, silenciadas, re- Estamos na era da informação, mas pre-
verberadas. Quem são esses que ocupam cisamos aproveitar os meios para fazer dela
com seus nomes as placas das ruas do nosso conhecimento, do conhecimento sabedo-
presente itinerário de vida? O que fizeram? ria, da sabedoria o nosso deleite.
Como lutaram? O que legaram à posterida- Hoje temos acesso a tantas fontes: biblio-
de? Por que merecem ser lembrados? tecas, internet, conexão sem limites, texto,
Percorreremos as poesias do Romantismo paratexto, hipertexto, mas às vezes não sa-
cearense desde os sombrios poemas satâ- bemos o que fazer com tanta matéria-prima.
nicos e byronianos até o alumiar dos versos Só há um caminho: determinação! Portan-
abolicionistas de nossa geração condoreira. to, determinado(a) cursista, mãos à obra!
A pesquisa é sempre um manancial de Do conforto do seu lar, podemos juntos
encantamento. O conhecimento é uma fon- superar cada vez mais desafios através do en-
te inesgotável e é esse o grande achado: sino a distância. Que a leitura destas páginas
quanto mais aprendemos, mais seden- os envolvam como sendo o meu mais frater-
tos ficamos de aprender mais, porque o no abraço e os votos para que aproveitem ao
prazer da descoberta é fascinante... e vicia! máximo este curso de Literatura Cearense.

34 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


2.
O BYRON
SABATINA
Byron costumava misturar em seus
poemas motivos biográficos, o que
fascinava ainda mais os seus leitores.
DA CANALHA Tão importante quando o texto, a
Não foi meu coração que desvairou-se, imagem de Byron era reproduzida em
No deserto perdido peregrino. larga escala, o que tornou o escritor
Foi a sina fatal que consumou-se; muito conhecido. Fazia sucesso
Eu nasci já maldito do destino.
principalmente entre as mulheres,
que o viam como um herói romântico.
Joaquim de Sousa Byron é considerado um dos maiores
poetas britânicos, tendo merecido
eorge Gordon Byron, mais elogios de poetas como Goethe e
conhecido como lord Byron, Shelley. Teve vida movimentada.
foi um poeta britânico e uma Chegou a percorrer toda a Europa,
das figuras mais influentes especialmente a Itália, onde viveu
do Romantismo mundial. durante sete anos. No fim da vida,
Entre os seus trabalhos mais juntou-se à Guerra de Independência
conhecidos estão os exten- da Grécia contra o Império Otomano,
sos poemas narrativos “Don motivo pelo qual muitos gregos o
Juan” e “A peregrinação de reverenciam como um herói nacional.
Childe Harold”. A poesia de Morreu aos trinta e seis anos de
lord Byron repercutiu também no Brasil, e idade de uma febre contraída em
influenciou alguns dos nossos principais po- Missolonghi. Muitas vezes descrito
etas românticos, como Castro Alves, Álvares como o mais extravagante e notório
de Azevedo, Bernardo Guimarães, Sousân- dos maiores poetas românticos, Byron
drade, entre outros que escreviam versos foi tanto festejado quanto criticado em
marcados pelo pessimismo, pela melanco- sua vida pelos excessos aristocráticos,
lia e pela fuga da realidade. incluindo altas dívidas e numerosos
Os estudiosos e críticos da literatura ce- casos amorosos. (SAMPAIO, 2019).
arense nos dão notícia, cá pelos setentri-
ões cearenses, de poetas influenciados por Também Barreira comenta que pela dé-
Byron. O historiador barão de Studart (Gui- cada de 1870 “expandiu-se entre nós o estro
lherme Studart) registra que Joaquim de de um poeta de envergadura” e que “a sua
Sousa, o poeta pioneiro do Romantismo poesia ressentiu-se da influência da escola
no Ceará, entregou-se à vida de tipógrafo byroniana, cujo espírito envenenou a Álva-
nas tipografias O Cearense e Pedro II. Ali, res de Azevedo e a muitos dos outros talen-
como nos atesta o barão, “explodia, atrain- tos poéticos da chamada Terceira Fase do
Epíteto
Qualificação elogiosa do as gerais atenções, seu talento de poe- Romantismo no Brasil. ” (1986, p. 104). Es-
ou injuriosa dada a ta. Chamavam-no de o Byron da Canalha”. tava o crítico a comentar sobre o poeta Joa-
alguém. Alcunha. (STUDART, p. 20), epíteto, bem ao estilo quim Francisco de Sousa, que ficaria conhe-
do espírito moleque cearense, confirmado cido na eternidade das páginas literárias
posteriormente por Dolor Barreira. simplesmente como Joaquim de Sousa.

CURSO literatura cearense 35


PASSANDO Joaquim nasceu em Fortaleza, provavel-
mente no ano de 1855, e estudou no Colégio
A LIMPO Ateneu Cearense. Talento privilegiado, mas
lutando contra a adversidade, entregou-se
Embora o barão de Studart registre à vida de tipógrafo. Ali, começou a divulgar
a data 7 de setembro como o dia da seus primeiros versos e a revelar seu talento
morte de Joaquim de Sousa, Sânzio para a poesia. Mas foi nos jornais Zéfiro e A
de Azevedo, em Aspectos da literatura Revolução que atraiu abundante e brilhan-
cearense (1982), nos relata que o poeta temente a admiração pública com seus po-
“suicidou-se no Rio de Janeiro, em emas. Infelizmente, os escritos publicados
viagem para Niterói, atirando-se ao nos dois jornais estiveram colecionados em
mar, não no dia 7 (como geralmente mão de José Lino de Paula Barros, que lhes
se registra), mas no dia 6 de setembro deu destino ignorado. (STUDART, p. 20).
de 1876, sendo seu corpo encontrado De acordo com Sânzio de Azevedo, o po-
somente no dia 12, na praia de Boa eta faleceu no Rio de Janeiro, em 6 de se-
Viagem, segundo notícia estampada tembro de 1876, onde já vivia em estado de
em jornal da época [O Cearense, penúria. O barão de Studart informa que Jo-
Fortaleza, 4 out. 1876, p.2], onde se aquim, cansado da vida boêmia que levava
encontra ainda a informação de que em Fortaleza, e sedento de um meio mais
“a ideia sinistra do suicídio já ele movimentado, pensou um dia em ir à ca-
acalentava no espírito desde que partiu pital do Império. Era abril de 1876. Nas pa-
para a corte” (AZEVEDO, 1982, p.112). lavras do barão, “A fortuna ou o infortúnio
sob o véu de cinco contos, que lhe deixara
o pai, facilitou-lhe realizar os projetos que
Sânzio de Azevedo, no clássico Lite- acalentava e conduziu-o àquele grande pal-
ratura cearense (1976), reitera: “Joaquim co, que em sonhos de moço se lhe afigurava
de Sousa chegou a ser cognominado, por de seduções e glórias, mas aos poucos fo-
seus adversários, de ‘Byron da Canalha’, ram se exaurindo os recursos naquele viver
certamente pelo acento byroniano e satâ- de estroina descuidado e a realidade se lhe
nico de sua poesia. Com efeito, sugere algo antolhou tétrica e inclemente. [...]. Afinal,
de Álvares de Azevedo, menos o poeta do resolveu o grande problema, e no oceano
que o prosador da Noite na taverna, às ve- em calma, da baía do Guanabara, sepultou
zes com certos arroubos castro-alvescos.” para sempre as tempestades de sua alma
(AZEVEDO, 1976, p. 59). aflita e revoltada. ” (STUDART, p. 20).
É consenso entre os estudiosos a quali-
dade estética dos poemas de Joaquim de
Sousa, ainda que alguns aleguem certos de-
feitos de composição. Para Mário Linhares,
“precocemente o gênio poético lhe madru-
gou. Não seguia escolas; seus versos não
eram lapidados com arte; cantava espon-
taneamente.” Para o poeta Antônio Martins,

36 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


“não era um poeta vulgar, nem um mestre
da arte – era um cantor inspirado e terno, MALACA
melodioso e ardente, como as patativas
dos nossos bosques ou o sabiá das nossas
CHETAS
matas”. Já Rodrigues de Carvalho o consi- Com exceção de “À irmã”, toda a
derava “grande inteligência e reconhecida produção que conhecemos de
vocação para a poesia, dotado de todos os Joaquim de Sousa nos chegou pela
requisitos do verdadeiro poeta”. pesquisa de Sânzio de Azevedo, que
Barão de Studart conta que “encontrado nos conta ter a colhido do jornal A
o cadáver do poeta suicida, acharam-se-lhe Mocidade (1876), redigido por Antônio
no bolso uma moeda de vintém, um retrato Martins e Rodolpiano Padilha, sob o
e essa bela gema poética que se intitula ‘À pseudônimo, a maioria, de J. de S.
minha irmã’ e que foi seu canto de cisne.”
Entretanto, Azevedo nos revela que “em O
Baturité, do dia 12 de outubro de 1876, é
transcrita uma carta de Rodolpiano Padilha
a Henrique D’Ávila, na qual informa o jorna-
lista que se acharam no bolso de Joaquim
de Sousa ‘um relógio, um vintém, uma car-
teira de notas, diversos papéis e um retrato’.
Não há alusão explicita ao poema” (AZE-
VEDO, 1982, p.127-128). Mistérios à parte,
“À minha irmã”, a seguir, é considerado por
Azevedo um dos melhores poemas do au-
tor e de todo o Romantismo cearense e
ainda complementa: “é composto em ver-
sos brancos, como se o poeta, como Varela
ao escrever o ‘Cântico do Calvário’, houves-
se abandonado a rima para poder derramar
de um jato a tristeza toda que o atormenta-
va, e que constituiu a matéria-prima de toda
a sua poesia”. (AZEVEDO, 1982, p.128).

CURSO literatura cearense 37


De acordo ainda com o barão
de Studart, os trabalhos literários de
Joaquim de Sousa dariam um grosso
volume, mas tal tesouro ele próprio o
conduziu para o Rio de Janeiro. Porém, não
se soube o paradeiro das cobiçadas peças
poéticas. “Ouvi contar depois – diria o ba-
rão – que por iniciativa de Paula Lima, as
poesias de Joaquim de Sousa haviam sido
colecionadas e iam sair a lume, mas a notí-
cia nunca se realizou... ou nunca se realiza-
rá, por infelicidade das letras cearenses e do
Oh! mar! oh! solidão, eu te saúdo;
No deserto soberbo em que tu rolas
renome do autor. ” (STUDART, p. 20).
Passa a asa sutil da branca garça Que tal conhecermos mais alguns versos
Como tênue vapor que se esvaece; do poeta Joaquim de Sousa? Compartilho
Mas o verme brutal não vai rasteiro com você, cursista, um fragmento do poe-
Sobre o leito do azul dormir impuro! ma “À luz de uma estearina”, estes versos Estearina
Alta noite, na tolda do navio, Um tipo de vela.
de rara beleza e firme compleição, talhados
Com os olhos fitos nos celestes lumes,
Ora plenos de luz ou desmaiados, na fôrma da mente de quem vive esponta-
Luzes de festa ou círios de sepulcro, neamente a poesia e que vem reafirmar a
Eu lembrei-me de ti oh! minha terra, qualidade estética e a consciência artística
E foi teu meu suspiro amargurado! de um dos nossos pioneiros do romantismo:
Feliz quem sob o lar de sua infância
Dormiu sempre em risonha placidez. [...]
Quem nunca viu no céu estrelas negras, É tarde, Marion, p’ra os devaneios...
Os demônios da dor lançando crepe É hora de gozar, que foge à vida...
Sobre os santos recessos de sua alma! Deixa beber aromas nos teus seios,
E busquemos nos céus a luz perdida!
Feliz de quem dormiu sono tranquilo — Caminheiro sem fé, que vaga insano,
Junto à casta família, e o desvario Cavalgando o corcel do seu tormento,
Nunca arrojou ao pélago das sombras Eu fui o meu senhor e meu tirano,
Adeus, oh! Minha irmã. Oh! meus amores! Morri... e não vivi um só momento!...
Nunca mais unirei os teus cabelos
Ao meu seio febril e palpitante; Não me chores, mulher, se a morte acaso
Adeus, e nunca mais passe essa sombra Repousar-me no rosto o beijo amigo;
Que tanto te adorou, por seus sonhares! Na penumbra infeliz do meu ocaso,
Morra meu nome qual a espuma branca Ainda eu viverei talvez contigo!...
Que resvala sutil no mar em calma! [...]

38 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


3.
BARBOSA
BOLACHINHAS
Adolfo Caminha, na ficcional (ou
DE FREITAS: quase) A normalista (1893), usa o
personagem Perneta para dizer
ARTÉRIA que, além de não existir boa poesia
POÉTICA DE no Ceará – de fazer vergonha a
Alencar –, só existia um único poeta
FORTALEZA “verdadeiramente inspirado”:
Barbosa de Freitas. E que o conhecera
pessoalmente: “Um boêmio! Fazia
Sombras da noite eterna, horríveis sombras!
gosto ouvi-lo. Que eloquência, que
O que buscais em torno do meu leito?!
verve, que talento! Sabia de cor
Vireis trazer-me o bálsamo da vida,
muitas poesias dele, mas nenhuma se
Ou alentar a esperança no meu peito? comparava ao Êxtase, ‘esse poema de
Sombras da noite eterna, horríveis sombras! amor’ que valia por todas as poesias
Barbosa de Freitas de Juvenal Galeno.”
Para ler este curioso fragmento
de texto de A normalista, acesse a
abe-se que uma das glórias dos Biblioteca Virtual do AVA.
poetas e escritores é quando suas
palavras ecoam além do âmbito
dos livros, além da transitorieda- os prazeres!” Juarez relata ainda o evento jo-
de do tempo presente, e voam coso que se deu no sepultamento do senador
pela posteridade para se eternizar Paulo Sarasate (1968): já na altura da hora do
na boca do povo. Assim como em cansaço, um poeta inspirou-se e exclamou
Castro Alves, “Bendito aquele que com as forças do pulmão: “É cedo ainda, oh,
semeia livros e faz o povo pen- pálidos coveiros!”. Um dos coveiros, sem en-
sar”; Monteiro Lobato, “Um país se faz com tender o teor da elocução, respondeu exalta-
homens e livros”, Carlos Drummond de An- do: “Pálido é a mãe! Vocês ricos, além da ma-
drade, “E agora, José?”; Manuel Bandeira, çada que dão, ainda vêm insultar a gente?”
“Vou-me embora pra Pasárgada”. (LEITÃO, 2000, p. 64-65). Fato ou não, o certo
Juarez Leitão nos conta que, mesmo de- é que as palavras dos poetas, felizmente, têm
pois da morte de Barbosa de Freitas, alguns mesmo o dom de ganhar os céus.
dos seus versos ainda se faziam presentes na O poeta Antônio Barbosa de Freitas, ou
memória da cidade, na mente coletiva, e vi- simplesmente Barbosa de Freitas, morreu
nham ao socorro dos populares em ocasiões cedo, no auge de seus vinte e três anos. Tal-
as mais cotidianas. Se faltava luz de repen- vez não tenha tido tempo suficiente de de-
te, algum espírito mais gracioso exclamava: senvolver o seu estro, de aprimorar seus re- Estro
“Sombras da noite eterna, horríveis sombras”. cursos métricos, mas o legado que deixou foi Entusiasmo
artístico, riqueza
Quando a mãe ou a namorada flagravam o o suficiente para assegurar-lhe uma posição
de criação.
aventureiro a flertar com a porta da rua e lhe de destaque na galeria da literatura cearense
passavam o ralho indagando se ia sair, este e afixar seu nome numa das principais arté-
podia responder: “Sim, eu quero viver! Amo rias da cidade de Fortaleza.

CURSO literatura cearense 39


Boêmio incorrigível, andava pelas ruas, No entanto, mais comum nos versos
entrava nos bares, dizia versos, suspirava de desse poeta triste e amargurado, era a res-
amores. Como nos assegura Juarez Leitão, sonância do peso existencial, do amor im-
“seus poemas, condoreiros e arrebatados, possível, a sombra da morte sempre a ron-
eram musicados e logo caíam no gosto do dar, a atmosfera lúgubre do byronismo.
povo”. (LEITÃO, 2000, p. 64). Vejamos este, Azevedo diz que, “tendo-se perdido
que compartilho. É uma confissão de amor, numa boêmia que cedo o levou ao túmulo,
é a expressão do desejo de se alcançar, pe- não teve oportunidade de cultivar-se inte-
los versos, a amada idealizada, mas tão dis- lectualmente; entretanto seus versos nem
tante das mãos carentes. sempre corretos apresentam lampejos de
Borboleta que voejas um verdadeiro poeta”. (1976, p. 68). Alega
Entre as flores do jardim, o pouco preparo intelectual do jovem es-
Sacode as lúcidas asas criba, mas reafirma o que disse antes: tem
Vem voejar sobre mim. “vocação de verdadeiro poeta, dos maiores
Descuidosa, sei que vives de nosso romantismo”. (1976, p. 69).
Entre amor, entre perfumes, Barão de Studart lega à posteridade im-
E nem sabes que pereço portante testemunho sobre o poeta. Regis-
Entre as chamas dos ciúmes. tra que ele apareceu em público em 1879,
Vives de mel, mariposa, com a poesia “Hypochrates ou O médico”,
Teu ninho é feito de luz; “a que se seguiram muitas e muitas outras,
E nem sabes que carrego, algumas das quais verdadeiras joias literá-
Sem Cireneu, minha cruz. rias”. Comenta que D. Juan Cacique: poe-
Sê feliz! Vive contente! ma biográfico ou a epopeia do famoso João
Sê feliz, anjo d’amor! dos Santos saiu reeditado em 1902, em um
E nem sabes que cultivo folheto que enfeixava outras publicações,
No meu jardim tanta flor. e foi distribuído em Fortaleza sob o título
Barão das duas mortes: elementos para sua
biografia. Depois veio Helvecíadas, de 1881.
Para Studart, a maior parte das produções
poéticas de Barbosa de Freitas, inclusive a
belíssima “Lenda do sol”, foram coleciona-
das no ano de 1892, em um volume intitula-
do Poesias, de 191 páginas. Salienta ainda,
nosso historiador, que a impressão desse
volume foi feita com a finalidade de erigir-se
um pequeno mausoléu à memória do autor,
no cemitério São João Batista, onde jaz se-
pultado. Barão de Studart registra ainda que
o poeta também se revelou como dramatur-
go, pois deixou inédito o drama em três atos
intitulado Joaquim de Sousa, escrito em Ma-
ranguape e cujo manuscrito datava de 25 de
outubro de 1877. Tinha Barbosa de Freitas 17
anos quando o compôs. (STUDART, p. 62-63).

40 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Augusto de Araújo Lima, tutor e mestre-
-escola, que teria percebido a vocação
poética do jovem e o recomendou ao juiz
de direito de Jardim e Milagres, dr. Amé-
rico Militão de Freitas Guimarães. Este
praticamente o adotou e emprestou-lhe
o nome de sua família1. Posteriormente,
conduziu-o a Fortaleza, onde o poeta ex-
perimentou o prazer provisório da boêmia
e a glória efêmera das letras, pois morre-
ria muito jovem, de tuberculose, na Santa
Casa de Misericórdia de Fortaleza, no dia
24 de janeiro de 1883.
Há controvérsias entre os autores
Barbosa era um exímio improvisador.
quanto à naturalidade e data de nasci-
Muitos dos seus versos foram feitos em
mento de Barbosa de Freitas. É quase
bordeis ou mesas de bar, às vezes escritos
consenso que tenha nascido na cidade
em papel de embrulho, outras vezes regis-
de Jardim, Ceará. Alguns dizem ter sido
trados por colegas. Conforme nos revela o
no sítio Lameirão, mas também há quem
pesquisador e musicólogo Edigar de Alen-
aponte o sítio Cotovelo. Em algumas cita-
car, no seu livro A modinha cearense, “o Ba-
ções aparece a data 22 de janeiro de 1860,
rão de Studart informa ter certa vez presen-
mas a mais confiável, com base no livro
ciado o poeta escrever trechos do poema
de batismo, parece ser 21 de março desse
‘Dom Juan Cacique’, no armazém de João
mesmo. Era filho natural de Maria Barbosa
Cordeiro, que o apadrinhava, tendo como
com o rábula Antônio Nogueira de Carva-
mesa uma barrica de bacalhau.”
lho – que morreu apunhalado. Indesejado,
logo cedo foi rejeitado, sendo criado pelos 1 Disponível em: http://www.familiascearenses.
avós. Teve dois protetores: primeiramen- com.br/index.php/2-uncategorised/11-
te, o juiz municipal de Jardim, dr. Antônio antonio-barbosa-de-freitas

CURSO literatura cearense 41


Em 2004, o escritor Dimas Macedo en- Manda o destino que me aparte, e cedo.
campou a reedição do volume intitula- Destes primores que te dera Deus.
É tarde, é tarde! meus amigos, parto.
do Poesias, reunião de poemas do poeta,
Adeus, morenas, azulados céus!
com organização e introdução de Sânzio Adeus, ó fontes, meus floridos prados,
de Azevedo. Nas orelhas do livro, assim se Ai, borboletas do meu Cariri!
expressa: “Ignorante sublime (Fortaleza: Im- Ai, mãe querida, – Minha doce estrela!
prensa Oficial, 1994), de José Waldo Ribeiro Modesta tenda, berço onde eu nasci!...
Ramos, é o trabalho mais conhecido que se E, quando o barco se imergir, ligeiro,
escreveu no Ceará sobre o poeta. Mas a pos- Entre os abismos, entre o mar e o céu
teridade viu o nome de Barbosa de Freitas Se um canto triste vos ferir as ouças
desfilar, também, em livros como Lembra- Não o maldigam, – esse canto é meu!
dos e esquecidos (1976), de Otacílio Colares, É que talvez do viajor perdido.
A fronte ardente para o mar pendeu!
A normalista (1892), de Adolfo Caminha,
É que o proscrito no horizonte escuro
Fortaleza descalça (1980), de Otacílio de Sua sentença mortuária leu.
Azevedo, e A modinha cearense, de Edigar
de Alencar, o que já é uma consagração. As Oh! como brame este convulso oceano!
S’empina, freme n’um feroz rugir!
suas poesias, em sua primeira versão, foram
Recua, investe, cobre a praia a espuma,
publicadas após a morte do poeta, pela Ti- Respira e s’ergue p’ra outra vez cair!...
pografia Universal de Fortaleza, em 1892. ” É sobre o dorso deste mar bravio
A melhor maneira de conhecer um Que eu peregrino, sem futuro e norte,
poeta é saboreando seus versos, mergu- Talvez me abrace a esse anjo pálido,
lhando, num exercício de alteridade, nas Fantasma ou sonho, que se chama – morte.
sombras das ânsias que nos deixou em pa- Quando alta noite, sob um céu profundo,
lavras e imagens. Enfim, é lendo sua obra ou Sentar-se triste da luzerna à luz,
pelo menos um poema inteiro, como amos- Ao som da vaga bipartida ao meio,
tragem do seu infinito particular. Convido Sustendo ao ombro da saudade a cruz,
Eu jurarei perante os astros claros:
você, cursista, a ler comigo o poema “Adeus
– “Minha pátria, ó jardim onde eu nasci.
ao Ceará”, de Barbosa de Freitas. É um canto Em terra estranha, seja eu rico ou pobre,
dolente, de despedida, mas impregnado do Meu viver tão-somente é para ti.” –
sentimento de pertencimento e de saudade:
Adeus, ó serros gigantescos, onde
Adeus! Eu vou partir, amigos caros. Nas tardes rubras o condor respira!
Já do navio se resvala a proa Mangueira altiva onde no tronco anoso
O vento da bandeira açouta as fímbrias Lindas cantigas descantei na lira!
E a jangada atrevida às águas voa. Filhos do norte que a cerviz não curvam,
Lá do Oriente a majestosa estrela Que amais as glórias dos passados seus,
Banha de luzes do oceano as vagas. Nas asas brancas das cheirosas brisas
Será a estrela que guiava os magos Ouvi-me, ouvi-me o derradeiro – adeus!...
Pelo deserto às promissoras plagas? ...

Adeus, ó minha pátria, ó mãe de bravos


– Fortes na pugna e depois d’ela Heróis ­–
Adeus Atenas d’ esta Grécia nova,
Que tens na fronte por grinalda os sóis.
Adeus, ó brisas, que correis nas selvas:
Relvosas tendas da tapuia grei;
Matas sombrias, onde em tempos idos
Bramia em guerras esse povo rei.

42 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


4.
CONDOREIRISMO:
BOLACHINHAS
Dizemos o condor, mas além dele
OS POETAS outras aves, como o albatroz, a águia,
o falcão. “Albatroz! Albatroz! águia do
DA ABOLIÇÃO oceano,/Tu que dormes das nuvens
A praça! A praça é do povo/ entre as gazas,/Sacode as penas, Le-
Como o céu é do condor. viathan do espaço,/Albatroz! Albatroz!
dá-me estas asas.” (Castro Alves).
Castro Alves

nome da corrente, Con- As décadas de 1860 e 1870 representam


doreirismo ou Condo- para a poesia brasileira um período de tran-
rismo, expressão que sição. Ao mesmo tempo em que muitas das
se associa à imagem do características da primeira geração (na-
condor, tomada como cionalismo, indianismo e religiosidade) e da
símbolo da liberdade e da segunda geração (pessimismo, satanismo,
altivez da América, repre- atração pela morte) são mantidos, novidades
senta a poesia de poetas de forma e de conteúdo dão origem à tercei-
conscientes do contexto ra geração da poesia romântica, mais vol-
histórico que vivenciavam tada para os problemas sociais e com uma
e preocupados com a problemática social. nova forma de tratar o tema amoroso.
Identificando-se com o condor, ave de voo Fugindo um pouco do egocentrismo
alto e solitário, com capacidade de enxergar dos ultrarromânticos, os condoreiros de-
a grande distância, os poetas ditos “condo- senvolveram uma poesia social, compro-
reiros” sentiam-se também dotados metida com a campanha abolicionista e
dessa capacidade. Percebiam-se republicana. Em geral, são poemas de tom
vocacionados pelo poder supe- grandiloquente, próximos da oratória, cuja
rior, como poetas-gênios, para finalidade é convencer o leitor-ouvinte e
orientar os homens nas sendas conquistá-lo para a causa defendida.
da justiça e da liberdade. Chamado de “o poeta dos escravos”,
Castro Alves (1847-1871) é considerado a
principal expressão condoreira da poe-
sia brasileira. Além da poesia social, Castro
Alves cultivou ainda a poesia lírica (embora
o tom épico, por exemplo, em “Navio Negrei-
ro”) e o teatro. No Ceará, nós também tive-
mos poetas que se destacaram não só com
poemas representando essa geração român-
tica, como também atuando diretamente na
luta pelo movimento abolicionista. Impor-
tante destacar que a abolição da escravatura
do estado se deu em 25 de março de 1884, 4
anos antes da assinatura da Lei Áurea.

CURSO literatura cearense 43


MALACA CONFEITOS De acordo com Sânzio de Azevedo,
“tudo havia começado com a sociedade
CHETAS ‘Perseverança e Porvir’, fundada em 1879,
de onde nasceria, no ano seguinte, a ‘Socie-
Na evolução da poesia romântica
dade Cearense Libertadora’, cujo órgão na
Castro Alves foi a principal expressão brasileira, a obra poética de Castro
imprensa era o Libertador, que circulou de
do Condoreirismo no Brasil, mas o Alves representa um momento de
1881 a 1892, e foi um dos importantes jor-
fundador dessa vertente poética foi o maturidade, em relação a certos
nais que teve nossa terra.”
poeta Tobias Barreto, patrono da cadeira procedimentos ingênuos das gerações
O escritor Antônio Sales, no seu livro
38 da Academia Brasileira de Letras, e anteriores, como a idealização amorosa
Retratos e lembranças (1938), afirma que
grande influenciador de sua geração, e o nacionalismo ufanista, aos quais
Juvenal Galeno, além de poeta popular,
enquanto professor e intelectual. Castro Alves dará um tratamento mais
“foi também talvez o primeiro poeta abo-
crítico e realista. Inspirado em Victor
licionista do Brasil”. Como nos esclarece
Hugo, escreve sobre a escravidão,
Azevedo, o poeta das Espumas flutuantes
como o famoso poema “O navio
(1870) – primeiro livro publicado por Cas-
negreiro”. Por isso ficou conhecido
tro Alves – começou a escrever versos so-
como o “poeta dos escravos”.
bre os escravos em 1863, e é pouco prová-
O poeta baiano se preocupa em
vel que o Galeno conhecesse algum deles
denunciar o lado sombrio da história,
em 1864, quando, supostamente, escreveu
esquecido pelos primeiros românticos:
“A escrava”, que figura nas Lendas e can-
a escravidão dos negros, a opressão
ções populares, de 1865.
e a ignorância do povo brasileiro.
“No livro de Galeno – acrescenta Sânzio
de Azevedo – há outros textos condenando
a escravidão, como ‘O escravo’, ‘O escravo
suicida’ e ‘A noite na senzala’’. Na segunda
edição da obra, entre as Novas lendas e can-
ções populares figura ‘O abolicionista’, que
traz data de 1882, e que diz: ‘Sou com todo
o entusiasmo/Soldado abolicionista!’”
Outros poetas, posteriormente, tam-
bém se preocuparam com o tema em
voga, mesmo sendo eles pertencentes à
geração “mal do século”. O byroniano Bar-
bosa de Freitas escreveu, por exemplo,
em 1881, uma “Homenagem à Sociedade
Cearense Libertadora”:
Maldito o que sustenta e o que protege
A causa infame e vil dos tais senhores,
Que dardejam seu látego infamante
Fazendo ao pobre irmão sofrer mil dores!...

44 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


CONFEITOS Encontram-se também no volume Po-
esias (1892) outros poemas de Barbosa de SABATINA
Freitas com o mesmo propósito, entre eles o
O epíteto “Terra da Luz” é uma acróstico “Ave libertas”. Entretanto, nos afir- Quer saber mais sobre os poetas
homenagem do abolicionista José do ma Azevedo que foi por volta de 1883 que cearenses e a abolição? Leia o texto
Patrocínio ao estado do Ceará, por despontaram entre nós três poetas predomi- de Sânzio de Azevedo disponível na
ter sido o primeiro estado brasileiro nantemente abolicionistas: Antônio Bezer- Biblioteca Virtual do AVA
a libertar os seus escravos. Até hoje ra, Antônio Martins e Justiniano de Serpa.
tem forte conotação nos discursos Juntos, publicaram a coletânea de poemas
proferidos por autoridades estaduais intitulada Três liras, dividida em três partes, MALACA
e por intelectuais. Mas é importante
compreender também que o teor
respectivamente intituladas “Lampejos”,
“Harpejos” e “Cintilações”. Essa obra fincou
CHETAS
humanitário dessa ação visava o a presença do Condoreirismo na literatu-
desenvolvimento social, político e 1. As associações libertárias Perse-
ra feita no Ceará, e os três passaram a ser
econômico que o fim da abolição verança e Porvir e Sociedade
conhecidos como “poetas da abolição”.
prenunciava, de modo a igualar o Brasil Cearense Libertadora promo-
Dolor Barreira observa que “a década de
a países desenvolvidos. Os membros viam encontros, atuavam na
1880 foi, inquestionavelmente, fértil em pu-
das ações libertadoras pertenciam imprensa e buscavam influenciar
blicações literárias isoladas, sinal incontras-
ao meio urbano, faziam parte da elite a opinião pública para seus ideais.
tável do crescente interesse que as letras des-
letrada e orientavam-se por correntes Os encontros e reuniões eram rea-
pertavam, no Ceará” (1986, p. 1270). Ressalta,
filosóficas positivistas e evolucionistas lizados em teatros, salões, lugares
ainda, que foi no decorrer dessa década, “de
que foram introduzidas no cenário alegres e exuberantes, reunindo
1881 a 1884, que se processou, no estado, a
brasileiro a partir de 1870. grande número de pessoas.
empolgante campanha cívica e social da Aboli-
ção, que agitou vulcanicamente a nossa socie- 2. Alguns abolicionistas, entre eles,
dade, das suas mais baixas às suas mais altas Isaac do Amaral, Carlos Jataí,
camadas, e que teve, como não podia deixar Cândido Maia e Antônio Bezerra
Bardo de ter, os seus bardos e realmente ‘os teve em eram mestres em “roubar” escra-
Poeta, trovador, vate. quantidade infinita: toda gente fez versos na- vos e enviá-los a lugares seguros,
quele tempo’ – diz-nos Antônio Sales.” distantes de Fortaleza, tendo
Entretanto, é ele, Antônio Sales, o autor enfrentado inclusive processos
do romance Aves de arribação, quem pri- por tais atitudes.
meiro nos afiança, com autoridade, que “os 3. Maria Tomásia, nascida em
três poetas oficiais do glorioso movimento Sobral, foi importante presença
foram Antônio Bezerra, Justiniano de Serpa feminina na campanha pela
e Antônio Martins”, como já foi dito antes. abolição. Ocupou o cargo
de presidente da Cearense
Libertadora, sociedade organizada
MALACA em reunião numa chácara do
CHETAS Benfica, na qual esteve presente
José do Patrocínio, importante
figura do abolicionismo no Brasil.
A obra poética intitulada Três liras (1883) foi
publicada precisamente no ano em que
Acarape libertou seus escravos, um ano
antes da abolição em todo o Ceará e cinco
anos antes da promulgação da Lei Áurea.

CURSO literatura cearense 45


5.
REAÇÃO ANTIRROMÂNTICA:
A ACADEMIA FRANCESA
década de 1870, no Ceará, O ambiente cultural criado no período
foi impulsionada por um viu nascer uma associação literária e cientí-
movimento intelectual ex- fica que a tradição registra como a primeira
traordinariamente pulsan- agremiação literária do Ceará, e que ficou
te. Para alguns estudiosos, conhecida como Academia Francesa, fun-
esse movimento foi acima dada em 1873 e extinta em 1875. Seus cria-
de tudo filosófico, movi- dores eram homens que já se destacavam
do sobretudo pelo pensa- na cena intelectual: Tomás Pompeu, Rocha
mento e obra de Auguste Lima, Capistrano de Abreu, João Lopes, Xil-
Comte. Tristão de Ataíde, citado por Dolor derico de Faria (também poeta). Mais tarde
Barreira, afirma que o movimento intelec- se uniriam ao grupo Araripe Júnior (ficcio-
tual que agitou o Ceará nos primeiros anos nista), França Leite, Antônio José de Melo,
daquela década não foi apenas filosófico, Antônio Felino Barroso (pai de Gustavo Bar-
mas acentuadamente literário. roso) e Amaro Cavalcante.
Dolor Barreira nos informa que Tomás
Pompeu, em notas particulares, teria feito
a seguinte observação: “Rocha Lima, ao
falar, entre os seus consócios, em Acade-
mia Francesa, fazia-o por mero gracejo. O
certo, porém, é que, a força de repetida,
ficou a cognominação consagrada, e com
ela passou a sociedade ao conhecimen-
to dos contemporâneos e dos pósteros.”
(BARREIRA, 1986, p. 86).

BOLACHINHAS
Dolor Barreira conta que a primeira
associação literária propriamente
dita que o Ceará possuiu foi a Fênix
Estudantal, composta por Rocha
Lima (15), Castro e Silva, Fausto
Domingues da Silva (19 anos) e João
Lopes (16 anos). Fica aí a questão a ser
pesquisada e discutida.

46 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


REFERÊNCIAS
ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e estudos:
crítica e história. 1ª série. Sociedade Capistrano
de Abreu – Livraria Briguiet, 1931.
ALENCAR, Edigar de. A modinha cearense.
Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1967.
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense.
Sânzio de Azevedo assegura que a Aca- Comte, a Crítica de Taine, que apresentou a Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976.
demia Francesa representou a primeira famosa tríade “raça, meio, momento” como _________. Aspectos da Literatura
reação contrária ao Romantismo no condicionante do comportamento humano Cearense. Fortaleza: Edições UFC/Academia
Cearense de Letras, 1982.
Ceará, embora não tenha nem de leve e, por extensão, da composição artística da
modificado a poesia ou a prosa que se personagem de ficção. BARREIRA, Dolor. História da Literatura
Cearense. Monografia nº 18, 1º tomo.
produzia nestas plagas. No entanto, tem o De encontro ao pensamento mais
Fortaleza: Instituto do Ceará, 1986.
mérito de renovar e atualizar o campo do subjetivo e intuitivo do Romantismo, al-
BEZERRA, ANTÔNIO. “Lampejos”. ln: SERPA,
conhecimento, sendo a difusora das ideias guns jovens intelectuais se reúnem para
Justiniano; MARTINS, Antônio. Três liras.
filosóficas francesas pela primeira vez em discutir novas ideologias e novos modos Fortaleza: Tipografia Econômica, 1883.
nosso estado e uma das precursoras no de expressão. A questão da maçonaria
FREITAS, Barbosa de. Poesias. 2ª ed.
país. Por essa época, estavam em voga as versus o clero já abalava o país, em favor Fortaleza: Edições Poetaria, 2004.
doutrinas cientificistas, o evolucionismo de do livre pensamento. A Academia France-
LEITÃO, Juarez. Sábado, estação de viver:
Spencer e Darwin, o positivismo de Auguste sa estava ligada às ideias da maçonaria – histórias da boemia cearense. Fortaleza
assim como à Escola Popular, que minis- Editora Premius, 2000.
trava aulas gratuitas a operários –, tanto MARTINS, Antônio. Três liras.
é que Tomás Pompeu, Xilderico de Faria,
BOLACHINHAS João Câmara, que consideravam a maço-
Fortaleza: Tipografia Econômica, 1883.
PINTO, Pedro Augusto; SAMPAIO, Ivan Moreira
naria o “refúgio do espírito novo”, funda- de. “Byron e o byronismo no centro da epistémê
ram, ainda em 1873, o jornal Fraternidade moderna”. In Cadernos de Ética e Filosofia
A reação ao Romantismo pela – data que, para Azevedo, marca a funda- Política, nº 35, Dossiê especial.
Academia é compreensível, pois ela ção da Academia Francesa –, que não era SALES, Antônio. Retratos e lembranças.
difundia o cientificismo, característica um veículo próprio da agremiação, mas Fortaleza: Secult/CE, 2010.
que integraria a corrente realista e, que lhes servia como canal. Talvez por SERPA, Justiniano. Cintilações. ln: BEZERRA,
mais tarde, a naturalista. O certo isso, como nos conta Azevedo, a Acade- Antônio; SERPA, Justiniano; MARTINS, Antônio.
é que os poetas e poesias românticas mia Francesa manteve violenta polêmica Três liras. Fortaleza: Tipografia. Econômica, 1883.
no Ceará sobreviveriam mesmo com o jornal Tribuna Católica, através das STUDART, Guilherme. Dicionário biobibliográfico
após a extinção da Academia. páginas do Fraternidade. cearense. Fortaleza: 1910-1915. Disponível em:
Você, cursista, poderá conhecer um pou- https://pt.wikisource.org/wiki/Dicion%C3%A1rio_
biobibliogr%C3%A1fico_cearense
PASSANDO co sobre a biografia dos principais represen-
tantes da Academia Francesa, intelectuais de SAMPAIO, Pedro Ivan Moreira de. “Byron e o
A LIMPO envergadura que muito influenciaram nossa
byronismo no centro da epistémê moderna”. In
Cadernos de ética e filosofia política. Foucault,
história e a história de nossas letras, no ma- políticas da arqueologia. 50 anos da arqueologia
João Brígido também escrevia para terial complementar disponível na Biblioteca do saber (1969). Nº 35. Dossiê especial. São Paulo:
o Fraternidade, o que fez com que Virtual do seu AVA. Acesse e bons estudos! USP/FFLCH, 2019. Disponível em:
alguns pesquisadores defendessem Ah, e em nosso próximo módulo, vamos http://wº 35. Dossiê especial. ww.revistas.usp.br/
que ele integrava a Academia confirmar que “O lugar da mulher é onde cefp/issue/view/11355/1718. https://pt.wikipedia.
ela quiser... e na Literatura cearense!” org/wiki/Wikip%C3%A9dia:P%C3%A1gina_principal
Francesa, o que não é verdade.

CURSO literatura cearense 47


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Carlos Vazconcelos Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É escritor, professor e produtor cultural. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


Licenciado em Letras pela Universidade Estadual João Dummar Neto Presidente
do Ceará (Uece), é mestre e doutor em Literatura André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
Comparada pela Universidade Federal do Ceará Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
(UFC). Atuou como professor substituto do curso
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
de Letras na Uece, professor da especialização e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
em Escrita Literária, na FBUNI. Foi também
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
professor de Português/Redação/Literatura em Viviane Pereira Gerente Pedagógica
colégios das redes públicas e privadas de Fortaleza. Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
Publicou e foi premiado com diversas obras nas Joel Bruno Designer Educacional
áreas de ficção ou não. Trabalhou no Serviço Social CURSO LITERATURA CEARENSE
do Comércio (Sesc), tendo assumido os cargos de Raymundo Netto Coordenador Geral,
redator/revisor, supervisor de Literatura e gerente Editorial e Estabelecimento de Texto
de Cultura. Produziu e mediou vários projetos Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
literários, entre eles: Bazar das Letras; e Autores
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
em Contexto (entrevistas mensais com escritores), Miqueias Mesquita Diagramador
além dos seminários anuais Revelando a Literatura Carlus Campos Ilustrador
Cearense. Participou da produção da Mostra Luísa Duavy Produtora
Sesc Cariri de Culturas e foi curador da XIII Bienal ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
Internacional do Livro do Ceará. ISBN: 978-65-86094-27-5 (Fascículo 3)

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Todos os direitos desta edição reservados à:

Na construção do seu trabalho, aborda várias Fundação Demócrito Rocha


Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
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importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro fundacao@fdr.org.br
da produção gráfica ganhou prêmios em salões de
Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

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Realização
CURSO
l c
4 Mulheres Escritoras
as pioneiras do século XIX
Gildênia Moura e Carla Castro

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Realização
Bárbara de Alencar, Jovita Feitosa
e Maria Tomásia
são tipos que honram o nosso sexo
pela sinceridade do
sentimento que as impelem
a transpor o poético
domínio do lar”
Alba Valdez, em Dias de Luz:
recordações da adolescência (1907)

1.
NEM PERNAS,
NEM BRAÇOS
CRUZADOS
uando falamos em lite-
ratura de autoria femi-
nina cearense, logo nos
vem à mente o nome
de Rachel de Queiroz
(1910-2003). Nascida em
Fortaleza no dia 17 de
novembro de 1910 e fa-
lecida no Rio de Janeiro
em 4 de novembro de
2003, a autora foi tradu-
tora, romancista, poeti-
sa, jornalista e cronista. Eternizada pelo ro-
mance de estreia O quinze e pela vasta obra
produzida, foi ela a primeira mulher a ingres-
sar na Academia Brasileira de Letras, em 1977.

50 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Entretanto, Rachel pertence à literatura dos to da crítica literária nacional, procuramos
séculos XX e XXI. Você pode se perguntar: e fontes locais que pudessem preencher
nos séculos anteriores a mulher cearense essa lacuna, entre eles: Dolor Barreira, Má-
não participava do mundo das letras? Have- rio Linhares, barão de Studart e Sânzio de
ria, portanto, outras escritoras que lhe ante- Azevedo, mas ainda assim havia poucas
cederam? Teriam sido além de intelectuais, referências sobre as escritoras desse perí-
também atuantes nos movimentos sociais odo. Entre elas: Alba Valdez (1874-1962),
como, por exemplo, na causa abolicionista? a primeira mulher a ingressar na Academia
Quem teriam sido as pioneiras escritoras ce- Cearense de Letras, pioneira ao levantar a
arenses do século XIX ao início do século XX? bandeira do feminismo no estado ao ser
A nossa curiosidade é ainda maior se le- uma das fundadoras da Liga Feminista
varmos em consideração que “a Belle Épo- Cearense ainda em 1904; Francisca Clo-
que [no Ceará, de 1860 a 1930] foi sem dúvi- tilde (1862-1935), professora, poetisa, dra-
das a época de ouro da instituição literária, maturga, autora do romance A divorciada,
tanto no Brasil, como na Europa e em todo em 1904; as irmãs Henriqueta Galeno
o mundo, marcado pela influência cultural (1887-1964) e Júlia Galeno (1890-1978),
europeia”. (SEVCENKO, 1989, p.226) filhas do poeta Juvenal Galeno e Emília
Para responder a essas questões, bus- Freitas (1855- 1908), autora do romance A
camos em vão encontrar os seus nomes rainha do ignoto, em 1899.
nos compêndios Formação da Literatura Esses eram os nomes de escritoras ci-
Brasileira, de Antonio Candido, e História tados com maior recorrência nos estudos
Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo sobre a Literatura Cearense, mas não para-
Bosi. Diante dessa notória invisibilização mos neles, fomos mais além, descruzamos
histórica ou mesmo pelo desconhecimen- os braços da crítica e desbravamos arquivos
públicos, banco de dados de periódicos,
percorremos páginas e páginas das mais
CONFEITOS diferentes fontes bibliográficas para encon-
trar essas mulheres de mãos dadas com o
nosso passado literário.
Emília Freitas, nacionalmente Neste módulo, você irá conhecer um
projetada na contemporaneidade, pouco mais sobre essas escritoras que moti-
pela redescoberta do seu vam nossos estudos dentro e fora da acade-
romance A rainha do ignoto (1899), mia. Iremos discutir, na poesia e na prosa, o
produziu também poemas, alguns seu legado, além de refletir sobre a presença
publicados em jornais da época e a ausência de cada uma delas na literatura
e outros reunidos no livro e na historiografia cearense do século XIX e
Canções do lar (1891). início do século XX. Vem com a gente!

CURSO literatura cearense 51


2.
apagamento das produções artísticas
e científicas de autoria feminina com
o intuito de silenciá-las e invisibilizar suas
produções intelectuais. No Ceará, é possível
POETISAS verificarmos isso ao consultarmos os livros
de literatura e de história cearenses.
À MARGEM Para ilustrar essa discussão, citamos,
Fico feliz, as mulheres não estiveram assim por exemplo, os nomes das irmãs Amélia
tão ausentes do romance brasileiro, apenas de Alencar Mattos e Olga de Alencar Mat-
foram lançadas ao oblívio. Ainda surgirão tos que, ainda em 1902, editaram o jornal O
outras. No Ceará, terra de matriarcado, Astro, originário de Baturité e que anos de-
com heroínas, potentadas, guerreiras pois transferiu-se para Fortaleza. O periódi-
valentes, abolicionistas, haveria de haver co dirigido por mulheres foi editado durante
romancistas anteriores a Rachel de Queiroz. sete anos e ainda assim os nomes de suas
“Mas a rotina da educação provinciana, a dirigentes são completamente desconheci-
timidez, a resignação um tanto oriental do dos da história, da literatura e da imprensa
seu temperamento, tudo leva a negligenciar cearenses. O Astro é, em plena virada do sé-
o cultivo do espírito em proveito das culo, um valioso exemplo de afirmação
utilidades da feminilidade tradicional”, do poder de atuação das mulheres fora
como escreveu nosso poeta Antônio Sales, do ambiente doméstico e à frente de im-
citado no livro da professora Cecília Maria portantes estabelecimentos comerciais.
Cunha, Além do amor e das flores: primeiras Nesse sentido, foram os periódicos os
escritoras cearenses. principais meios de publicação para muitas
das escritoras brasileiras. O Ceará não foge
Ana Miranda, em “As nitio-abás a esta regra, sendo a poesia escolhida como
de antigamente” (O POVO) o gênero inicial da nossa formação literária
desde os Oiteiros, sendo naturalmente o
A literatura, e particularmente o jornalismo, pórtico também para o ingresso das primei-
foi o primeiro universo masculino a se ras mulheres na literatura cearense.
deixar invadir, estranhamente sem muitas Por exemplo, Úrsula Garcia (1864-
dificuldades, pelas mulheres. Certamente 1905), que além de poetisa, foi cronista,
as mulheres, sempre relegadas aos ofícios ensaísta e a primeira mulher nordestina
domésticos, eram consideradas inofensivas a fazer jornalismo político. Entre tantas
porque incapazes. Nesta perspectiva, a funções e cargos que ocupou, foi membro
linguagem “sutil e perfumada” seria o da Liga Feminina do Ceará, do Le Monde
melhor disfarce. Marche e da Oficina Literária Martins Júnior.
Anne Carrier Em 1902, fundou, juntamente com Amélia
Beviláqua – esposa do jurista Clóvis Bevi-
láqua –, a revista feminina O Lyrio. Sobre a
oje sabemos que não só no
autora, o escritor Dimas Macedo nos revela:
Ceará, mas em todo o mun-
Colaborou em jornais e revistas do Ceará e,
do, houve um apagamento
em Pernambuco, registrou assídua presen-
histórico do nome das es- ça nas páginas de O Lyrio, e ali publicou O
critoras. Para a pesquisado- livro de Bella, em 1901, segundo Raimun-
ra Constância Lima Duarte, do de Menezes, no seu Dicionário literário
este fenômeno se chama brasileiro (Rio, 2ª ed., 1978). Para Luís da
“memoricídio”. O termo é Câmara Cascudo, Úrsula Garcia foi “um es-
pírito tranquilo e doce, a exemplo das mo-
utilizado para se referir ao ças prendadas de outrora. Escreveu muito,

52 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


mas sua produção está esparsa e ignorada.
Diversos artigos de política regional, de sua BOLACHINHAS MALACA
CHETAS
autoria, divulgados sem assinatura, eram
dados como pertencendo aos jornalistas
do tempo, tal a graça do retoque, a delica- Com os jornais, revistas e livros vindos
deza do estilo, a finura dos reparos e a força do estrangeiro ou mesmo publicados
convincente da argumentação”. A palestra “Memoricídio” foi proferida
no Brasil, mas com influência europeia,
durante o XVIII Seminário Internacional
Na obra História literária do Ceará, Mário os papéis destinados às mulheres
Mulher & Literatura, no dia 14 de agosto
Linhares nos conta que Úrsula Garcia “deixou ficaram restritos às funções familiares
de 2019, na Universidade Federal de
vultoso número de poesias publicadas em e domésticas, com o enaltecimento
Sergipe (UFS), campus São Cristóvão,
revistas e jornais, nas quais ressalta um su- da figura da “mãe”. O Ceará também
no auditório da Reitoria, com o subtítulo
ave sentimento lírico, uma requintada deli- tentou incorporar a cultura europeia.
“o apagamento da história das mulheres
cadeza de coração”. (LINHARES, 1948, p.106). A Fortaleza de 1860 a 1930 recebeu
na literatura e na imprensa”.
Dessa primeira geração de mulheres reformas urbanas com características
de letras, destacamos ainda nomes pouco francesas, período denominado de
conhecidos como o da poeta Abigail Sam- Belle Époque. A influência europeia
paio (1897-1990). Nascida em Paracuru (CE) não ficava apenas nas construções e
em 9 de dezembro de 1897, filha de Josué reformas de prédios, mas também nos
Assis Sampaio e Luiza Vieira Sampaio. Pu- costumes, na moda, na literatura e na
blicou o livro Luar de prata, em 1923, e não educação da burguesia fortalezense.
Luar de pátria como descrevem erronea-
mente alguns livros, como Evolução da poe-
sia e do romance Cearenses, de Artur Eduar-
do Benevides, e inúmeros sites da internet.
Luar de Prata foi traduzido e publicado em
espanhol, em 1929, no Uruguai. Em colabo-
ração com sua irmã Maria Sampaio publi-
cou Átomos e scentelhas (1928), Corolas de
cristal (versos) e Manacá. A poetisa colabo-
rou em diversos jornais e revistas do Brasil,
do Uruguai e da Argentina, e faleceu em 29
de novembro de 1990.
Maria Sampaio de Andrade (1888-
1975), irmã de Abigail Sampaio, nasceu
também em Paracuru (CE), no dia 7 de
janeiro de 1888. Seus poemas foram pu-
blicados em diversas revistas e periódicos
nacionais e internacionais. Casada com o
jornalista Claro de Andrade Júnior, tiveram
cinco filhos. A poetisa, além de coautora
do livro Átomos e scentelhas, publicou po-
emas em O malho, bem como nas revis-
tas Fon-Fon e Vida doméstica, do Rio de Ja-
neiro. A autora faleceu no ano de 1975 e foi
sepultada no distrito de Guaribas, em São
Gonçalo do Amarante (CE). O poema “Pa-
racuru”, a seguir, de Átomos e scentelhas, é
uma homenagem a sua terra natal:

CURSO literatura cearense 53


Volto ao fim de algum tempo a essa terra onde tive
Meu berço, e que tristeza e que mudança agora!... MALACA
Álacre
No seu regaço amigo e doce já não vive
Aquela mesma gente álacre e sã de outr’ora. CHETAS
Alegre, animada
O mesmo glauco mar, o mesmo céu embora! Ana Facó assinava com o pseudônimo
– Invólucro vazio – arrasada Ninive –
E numa compunção em que a alma se estertora,
“Nítia-Abá” que, em tupi-guarani,
Genuflexa a rezar por longo tempo estive. significa “ninguém”.

Miserére da dor em requiem de agonia


Mandei ao céu de além na asa da ventania, Entretanto, só conseguiu publicar o seu
Que passava também cantando uma oração.... livro de contos e os dois romances em for-
Contraste do que foste, eu vejo, em triste assomo, mato seriado de folhetins em jornais: Jornal
Que tu, terra infeliz, porém bendita, és como do Ceará (1907), como confirma Abelardo F.
Uma esfera sem luz perdida na amplidão. Montenegro em O romance cearense (1953)
A revista Vida doméstica, do Rio de Ja- (AZEVEDO, 1976, p. 208), e Minha palmató-
neiro (abr/1930), em uma breve resenha de ria, em A República (1899). Este, destinado
Átomos e scentelhas as apresenta: à educação moral de seus alunos, traz, em
tom humorístico, característico da produção
Maria e Abigail Sampaio são duas irmãs.
Ambas poetisas e de inspirado estro,
ficcional da autora, os modismos e esnobis-
como se pode ver pelos sonetos que se- mos da época, como o “afrancesamento” da
guem. Maria [...] não oculta nos Átomos alta sociedade fortalezense na Belle Époque.
os seus pendores parnasianos. É uma O conjunto de sua obra só saiu impres-
poetisa de talento. O melhor trabalho da so em formato livro entre 1937 e 1938, após
parte que lhe coube é o soneto “Árvore”. A
sua morte, por iniciativa de sua família.
sra. Abigail produziu parte de Scentelhas,
que se distingue por um tom de ingenui- As narrativas dos romances de Ana ver-
dade: pequeninos episódios sentimen- sam sobre histórias de “amor contrariado”.
tais, emoções panteístas, tudo numa A primeira, Nuvens, acontece no seio da
autêntica estilização acentuadamente mocidade da capital cearense, em plena
jeune-fille. É dela o soneto “Velhice”. Belle Époque, enquanto que Rapto jocoso
A este grupo de mulheres pioneiras, de- traz como cenário uma aldeia no interior
vemos trazer o nome de Ana Facó (1855- cearense – Beberibe (CE). Mais uma vez há o
1922). Professora, por profissão – atuou predomínio do tom divertido e até irônico da
como diretora do primeiro Grupo Escolar narrativa, privilegiando os diálogos repletos
de Fortaleza, em 1907, lá atuando até apo- – com certo excesso de tratamento proposi-
sentar-se em 1913 –, a escritora, por sua tal de linguagem – de expressões e provér-
vez, colaborou bem menos nos periódicos, bios populares, uma marca das produções
mas em compensação, redigiu mais livros regionalistas. Os costumes da época, como
do que as demais escritoras de sua época. bailes, brincadeiras e casamentos matutos
São eles: Rapto jocoso: romance popular são cuidadosamente descritos, ao passo que
histórico (1937) e Nuvens, ambos roman- as personagens são construídas nitidamen-
ces, Minha palmatória (1906), contos edu- te enraizadas na realidade cearense com o
cativos, Comédias e cançonetas, inventário predomínio da análise psicológica de suas
de peça teatrais, Páginas íntimas (1938), protagonistas. A ação do romance é rápida,
memórias, e Poesias, entre outros – como, o que é uma novidade para a época, e pre-
No bonde, também de poesias, e textos dominam o humor e as cenas pitorescas que
dispersos em outros periódicos. tornam ainda mais leve e agradável a leitura.

54 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


BOLACHINHAS Emancipam-se os escravos
E a mulher escrava jaz, PASSANDO
Ângela Barros Leal atesta que o
Sem que seja discutida
Sua escravidão mantida A LIMPO
Por quem dela mui se apraz,
poema “Alnira”, da primeira parte Qual não crendo que haver possa
de Poesias, foi encenado em quase Em Dicionário de literatura cearense de
Mulher livre e doce paz.
todas as escolas cearenses, mesmo [...]
Raimundo Girão e Maria da Conceição
depois da morte da autora. Negar-lhe toda a ciência, Sousa, na Cronologia da cultura cearense
E até seu próprio dever de Silva Nobre e no importante Dicionário
Não lhe ensinas. Mas se um dia crítico de escritoras brasileiras de Nelly
Cede ingênua, sem porfia,
MALACA Às seduções do teu ser,
Novaes Coelho o nome da poetisa
cearense foi erroneamente grafado
CHETAS No lamaçal da miséria
Sacudida vai gemer. como Antonieta Sampaio e não como
Antônia. Somente ao encontrar o raro
Cecília Cunha conclui que “[...] Ana Facó exemplar de Relíquias do coração, na
O Romantismo aliado ao
pode ser considerada como a autora que biblioteca da Universidade de Fortaleza,
compromisso social de Victor
mais insiste em abordar aspectos da é que a pesquisadora Carla Castro
Hugo era o modelo literário
vida feminina em seus escritos.” descobriu a grafia correta de seu nome.
preferido por Ana Facó, que
Por último, gostaríamos ainda de incluir
mantinha em sua sala, em
no hall das escritoras cearenses pioneiras
destaque, um retrato do escritor.
Antônia Sampaio Fontes (1884-1963). Esperamos, ao apresentar essas escrito-
Nascida em Baturité, em 24 de fevereiro de ras ao público leitor, dar voz a elas, artistas
1884, filha de Antônio Jardim e Maria Sam- que tiveram significativa participação no
Geraldina Amaral, biógrafa e ex-aluna
paio Jardim. Casou-se com Israel Pinheiro enriquecimento cultural, educacional e in-
de Ana Facó, diz sobre seus romances (jor-
Fontes, fugindo da seca foi com o esposo telectual cearense e que não devem jamais
nal Âncora, em 1952): “[...] deu um aspecto
para o Acre, voltando para o Ceará anos de- ser silenciadas pelo esquecimento da crítica.
cuidadoso, principalmente no que se refe-
pois. O casal teve seis filhos. A poetisa fale- Conhecê-las é oportunizar também o en-
re à forma, à linguagem; e não se esqueceu
ceu no dia 2 de março de 1963. Seus poemas contro com novos mananciais, estabelecer
ela que a fabulação também deve preocu-
foram reunidos e publicados postumamen- diálogos com o cânone, criar bases para fu-
par a artista. Não se impressionou apenas
te por seu neto Eduardo Fontes, em dois li- turas pesquisas. Ansiamos também que você
com a plástica, burilando a palavra, mas
vros Relíquias do coração e Samambaia. tenha ainda mais curiosidade em conhecer
com a concepção, com o processo mental
A seguir, o poema “Rosas” de Antônia as mulheres que escreveram e escrevem em
que daria corpo e alma às personagens,
Sampaio Fonte, publicado em A Razão (1930): sua cidade, em seu estado, em seu país.
saliência e cor aos fatos e coisas.”
Mas se esta seção se dedica a falar das Já desfralda a flâmula da Aliança!
poetisas cearenses, não podemos dei- O céu se abre e mãos cadenciosas
Jogam do Além, em profusão mil rosas,
xar de incluir aqui a obra poética de Ana Por sobre vós, ó bravos da esperança!
Facó: Poesias (1937). A pesquisadora Cecí-
lia Cunha nos descreve que o livro é “com- Rosas de amor, de fé, perseverança,
Da cor do sangue, ó almas valorosas!
posto de três partes: o lar, o jardim, mãe e
Avante pois, que as lindas perfumosas,
a filha. O início é bastante descritivo do lar Sirvam de glória a paz que já se alcança.
onde moram mãe e filha, pois o pai está
Rosas no peito e rosas nas granadas,
morto. O ponto central [...] é a descoberta
Rosas no mar e ao longe das estradas,
do amor de Alnira: o sofrimento e depois a Rosas no altar da Pátria que estremece!
felicidade.” (CUNHA, 2008, p. 207). Rosas do Azul que vêm de João Pessoa,
Para aguçar ainda mais a sua curiosida- Que despertando, em rosas abençoa
de sobre a autora, o poema “A mulher”: Esse raiar de sol que resplandece!

CURSO literatura cearense 55


3.
ANNA NOGUEIRA BAPTISTA
E A PARTICIPAÇÃO FEMININA
NA PADARIA ESPIRITUAL
Eu não sei que tristeza indefinida
Traz-me um luar assim... Ave erradia,
em um misto de dor e de alegria,
voa minh’alma em busca d’outra vida.
Anna Nogueira Baptista, em “Ao luar”,
Almanach de Pernambuco (1930)

Padaria Espiritual foi uma


agremiação literária ideali-
zada pelo irrequieto escritor
Antônio Sales. Falaremos
mais sobre ela no próximo
módulo, mas, por ora, o
que importa é que em seu
“Programa de Instalação”,
uma espécie de Estatuto,
dizia que a Padaria era uma
“sociedade de rapazes de letras e artes”.
Entretanto, em seu periódico, intitulado O
Pão, encontramos dois poemas da escrito-
ra Anna Nogueira Baptista (1870-1967). O
primeiro deles, “No templo” (30 de setem-
bro de 1896, ed. 34, ano III, pg. 6), sugere
uma prece a Nossa Senhora, pedindo a aju-
da para as ternas mães e noivas amorosas.
Nesta suave hora de sol posto
Nossa Senhora, a boa Mãe Clemente,
Sorri p’ra nós do trono seu fulgente
Cheia de amor e de inefável gosto.

Ela, consolação, arrimo, encosto


Dos que na vida lutam tristemente,
Abre o seu coração bondosamente
E carinhosa inclina o meigo rosto.

Recebe as orações dos desgraçados,


As mansas preces dos afortunados,
De onde resumam doces contrições...

Ouve as sentidas queixas piedosas


Das tenras mães e noivas amorosas
Que põem nela os frágeis corações...

56 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


A autora parecia prenunciar o desas- (29 de setembro de 1897), quando da distri-
tre pessoal que haveria de acometê-la três buição de Dolentes, de Lívio Barreto, e em O
anos depois da publicação. Pois, casada Pará (4 de janeiro de 1899 – a sessão havia
com o poeta Manoel Sabino Baptista, a es- sido realizada em 20 de dezembro de 1898),
critora ficaria viúva três anos depois, após onde, ao lado de Rodolfo Teófilo, Walter Ca-
uma doença que duraria oito dias. Anna, valcanti, Arthur Teófilo e Antônio de Castro,
mãe de dois filhos e esperando um terceiro ela declama “Ele passou” (versos).
se viu de uma hora para outra precisando se E quem seria essa única mulher a per-
valer da sua própria fé e do trabalho como filar entre os padeiros da Padaria Espiritu-
professora para o sustento da família. al? Nascida em Icó em 22 de outubro de
O segundo poema publicado n’ O Pão 1870, a autora desde cedo dedicou-se aos
(31 de outubro de 1896, ed. 36, Ano III, pág. 8) estudos de francês e à produção poética.
se intitula Vita nuova (“A dor é como coruja/ O jornal Libertador (13.12.1886) estampou
Não gosta de claridade.”). Essa foi a última o seu poema “Não sei cantar” quando ela
edição do periódico. Em nossas pesquisas tinha apenas 16 anos.
evidenciamos que a colaboração de Anna Sua colaboração em periódicos foi
Nogueira Baptista vai além dessas publica- muito expressiva assinando sonetos, mas
ções, como podemos perceber nos jornais surpreendentemente também assinando
que descrevem as fornadas da Padaria em traduções de poetas franceses, como Paul
que a escritora também participava e é cita- Verlaine, François Coppée e Sully Prudhom-
da entre os presentes, como em A República me. Transferindo-se para Fortaleza, parti-
cipou de rodas literárias e colaborou com
periódicos locais, como Libertador, Consti-
tuição, A República, O Domingo, O Repórter, A
Evolução (jornais), A Quinzena e Almanaque
do Ceará (revistas). Encontramos registros
de publicações em outros estados, como
Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão.
Em 1896, Anna casou-se com Sabino Bap-
tista, o “Sátiro Alegrete” da Padaria Espiritu-
al. Em 1899, o casal decidiu viver em Belém
do Pará. Sabino, a fim de fazer os prepara-
tivos de chegada da família, parte sozinho
e quando retorna da sua viagem é acome-
tido pela varíola, vindo a falecer no dia 16
de agosto de 1899. No ano seguinte, Anna
passa a viver com a sua irmã em Recife, de
onde colabora com a revista O Lyrio. Apenas
aos 94 anos de idade, seus netos e bisnetos
se reuniram para publicar Versos, sua única
obra publicada em vida. Dois anos depois,
Anna Nogueira falece no Rio de Janeiro.

CURSO literatura cearense 57


4.
A INVISIBILIDADE
DA PROSA CEARENSE
DE AUTORIA FEMININA
os séculos XIX e início do intelectualidade feminina tomou um impul-
século XX, no Ceará, houve so maior no Brasil. Destacam-se na escola
vozes femininas que en- romântica cearense as seguintes escritoras:
frentaram a sociedade con- Serafina Pontes, Ana Facó, Emília Frei-
servadora, época em que tas e Francisca Clotilde. Observa-se que
somente os homens pode- a partir de 1870, com o fortalecimento da
riam se destacar tanto nas imprensa, as mulheres puderam participar
letras como na educação. desse universo literário. Entretanto, a par-
Algumas mulheres tiveram ticipação feminina ainda era tímida, com
coragem de participar des- receio de represálias da sociedade, na qual
te universo masculino, umas obtiveram dominava a opinião masculina.
apoio da família, outras, ao contrário, tive-
ram que romper com ela e com os valores
religiosos e sociais para buscarem seu so-
nho de liberdade. E muitas, naturalmente,
sofreram por causa destas rupturas.
É a partir dos meados do século XIX, no
movimento literário do Romantismo, que
passamos a ter a presença de mulheres
atuando nesse território masculino, mas
ainda timidamente. Contudo, com o ad-
vento do Realismo e do Naturalismo e do
espírito cientificista dessa escola literária, a

58 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Em 1887 é criado o Clube Literário. Dois
meses depois, surge a revista A Quinzena. A SABATINA Porém, é com a revista mensal A Estrela que
sua colaboração será mais profícua, atu-
participação feminina em A Quinzena veio ando durante os 15 anos de existência do
a partir do seu terceiro número, com Fran- Francisca Clotilde também escreveu periódico, conforme veremos mais a seguir.
cisca Clotilde, educadora da Escola Nor- um livro de contos, publicado em Em 30 maio de 1892 foi fundada, em
mal do Ceará, publica “A Educação moral 1897, sob o título Coleção de contos. Fortaleza, a agremiação literária Padaria
das crianças na escola”. Em julho do ano Nele permanece o predomínio dos Espiritual, que passou a ser conhecida na-
seguinte, Francisca Clotilde lançaria com o moldes românticos que percorreu toda cionalmente devido à original fanfarrice do
seu companheiro, o capitão Antônio Duar- a sua produção literária. Em sua obra seu “Programa de Instalação”. Contudo, sem
te Bezerra, e um outro colega, o semanário mais popular, o romance A divorciada participação feminina, era uma academia
científico, literário e noticioso A Evolução, (1902), apesar do título parecer uma voltada para os homens das letras, com ex-
que duraria até 1889. evocação à luta feminista, a obra em ceção da presença de dois poemas de Anna
Entretanto, apesar da autora assinar nada levanta bandeiras de ativismos Nogueira em seu periódico O Pão. Paralela-
grande parte dos textos, o seu nome não políticos, tampouco traz características mente à Padaria Espiritual, surge na capital
consta na primeira página do periódico. da escola literária realista. da província mais um grupo com manifesta-
Aliás, ela aparece, às vezes e mais discre- Aproveite e faça a sua leitura deste ções literárias, o Centro Literário, em 1894,
tamente, como “colega de redação”, como clássico. Comprove, reflita, discorde, que publicou a revista Iracema. O Centro
constatamos em A Evolução de 19.12.1888. critique. Ele está disponível na permaneceu por dez anos, vindo a desapa-
Ainda em 1888, o nome de F. Clotilde é Biblioteca Virtual do seu Ambiente recer em 1904. Apesar da grande atuação
incluído, com destaque desta vez, no grupo Virtual de Aprendizagem (AVA). literária, há apenas uma participação femi-
dos colaboradores da revista O Domingo. nina no Centro Literário, a de Alba Valdez.

CURSO literatura cearense 59


BOLACHINHAS fase, com a exclusão de Alba, não há partici-
pação de mulheres nem como sócias e nem MALACA
como patronas, o que só voltaria a aconte- CHETAS
Maria Rodrigues Peixe, a “Alba cer em 1937, com o seu retorno ao quadro.
Valdez”, ingressou a primeira vez na No ano de 1905 algumas agremiações
Heloísa Buarque de Holanda constata
Academia em 1922, na Cadeira nº ainda atuavam, apesar da pouca produ-
que “A primeira agremiação literária
8, foi retirada em 1930, em outra ção. Tem-se, no entanto, participação fe-
feminina de que se tem notícia foi a
reforma, e reingressou em 1937 minina no Almanach do Ceará com os so-
Liga Feminista Cearense, fundada
na cadeira nº 22. Antônio Sales netos “Manhã no campo” de Josefa Forte e
em 1904 por Alba Valdez, identificada
a apresenta como “a pena mais “Ninho desfeito” de Francisca Clotilde. Em
no meio literário como defensora do
aprimorada que tem produzido a relação à prosa, há “Fragmentos de meu
direito da ascensão cultural, econômica
mentalidade feminina.” livro de impressões”, de Adília de Luna
e política para mulheres.”
Freire, nome de matrimônio de Adília de
Albuquerque Moraes.
Ainda no ano de 1894, período de uma Naquele período, a revista A Estrela é
forte produção literária em Fortaleza, tem- considerada o meio impresso que mais
-se a implantação da Academia Cearense, permaneceu em circulação no Ceará, de
em 15 de agosto. Essa associação teve algu- 1906 a 1921, sendo organizada apenas por
mas fases. Na primeira, era constituída por mulheres. Inicialmente, por Antonieta Clotil-
trinta sócios e durou até 17 de julho de 1922. de, filha de Francisca Clotilde, e Carmen Tau-
Em sua primeira fase criou uma revista lite- maturgo, em Baturité (CE). Depois, com a mu-
rária, de 1896 a 1914, intitulada Revista da dança de Francisca Clotilde e a família para
Academia Cearense. A Academia teve sua Aracati, a revista ficou sob os cuidados de An-
segunda fase de 1922 até 1930. O número tonieta e Francisca Clotilde. Destacaram-se
de associados foi elevado para quarenta, nos meados do século XIX na escrita feminina
incluindo Alba Valdez, sendo ela a primeira na prosa: Alba Valdez, com o livro de crôni-
participação feminina da agremiação. A cas Em Sonho... (fantasias), Francisca Clotil-
terceira fase da Academia se inicia em 1930, de, com o romance A divorciada, Emília Frei-
também com quarenta membros. Nessa tas com A rainha do ignoto e Ana Facó, com
os romances Rapto jocoso e Nuvens.
Conheça mais sobre estas escritoras e
suas obras no material complementar deste
módulo, disponível na Biblioteca Virtual do
seu Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA).

60 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


5.
A VIDA SOCIAL, POLÍTICA
E LITERÁRIA DAS PIONEIRAS
obre a presença feminina na cena Em 1904, fundou a primeira “associação de
pública, somente algumas escri- letras”4 feminina: a Liga Feminista Cea-
toras tentaram ingressar nos no- rense com a ajuda, por exemplo, das irmãs
vos grêmios literários que se mul- Alencar e de Adília de Luna Freire. Como ve-
tiplicaram, a partir de 1875, em mos, o pioneirismo da escritora não foi so-
Fortaleza. No século XIX, somente mente na literatura, mas também nas áreas
Francisca Clotilde pertenceu ao da educação e do jornalismo onde colabo-
Clube Literário (1887-1888). No rou escrevendo para jornais e revistas, em
século XX, foi a vez de Alba Val- Fortaleza, e em outras cidades do Brasil.
dez firmar presença em diversas agremia- Há quem diga que ela serviu até de inspi-
ções, sendo em algumas delas pioneira: foi ração ao pintor Raimundo Cela (1890-1954)
sócia do Centro Literário a partir de 19001, para a imagem feminina da Liberdade no
da Sociedade de História e Geografia do célebre painel “Abolição dos Escravos” de
Ceará2, em 1911, e foi a primeira mulher a 1938, fato lembrado no discurso de posse
pertencer a Academia Cearense de Letras3. de Eduardo Campos (1923-2007), em 1963,
na cadeira de número 22 que havia perten-
1 Criado em 1894, o Centro sofreu nessa cido à Alba Valdez na Academia Cearense
data uma grande reorganização, ingressando
de Letras. Durante a primeira guerra mun-
37 novos membros.
2 Ela ingressará no Instituto do Ceará somente dial, Alba Valdez foi a primeira secretária da
em 1936, ocupando a cadeira antes pertencente Cruz Vermelha Cearense, em 1918, enquan-
à Júlia Leão de Vasconcelos to Henriqueta Galeno foi uma de suas nu-
3 Quando a Academia Cearense de Letras passou merosas diretoras.
por uma reorganização em 1930, a escritora foi
retirada por ser “considerada da velha guarda”, Fortaleza: ed. Henriqueta Galeno, 1971, p. 487.
segundo Olga Monte Barroso, em seu livro Somente em 1953, foi reintegrada na agremiação.
Mulheres do Brasil: pensamento e ação, vol.2, 4 A República, 24.06.1904, p.2.

CURSO literatura cearense 61


Por falar em Henriqueta Galeno, em Os abusos da oligarquia acciolina é um
1919 foi a vez da escritora protagonizar um caso à parte de repercussão nas letras cea-
círculo literário na sociedade cearense da renses. Coube à Francisca Clotilde a reação
época em que pudessem também partici- feminina contra os desmandos do governa-
par as mulheres escritoras. Assim, nascia dor Nogueira Acioli que, à imagem das For-
o Salão Juvenal Galeno, que tinha, entre talezenses reunidas em dezembro de 1911
seus objetivos, divulgar o trabalho artístico- numa Liga Feminina Pró-Ceará Livre, fez
-literário do seu pai, o poeta Juvenal Ga- campanha em Aracati para o candidato da
leno, e reunir a intelectualidade cearense. oposição, Franco Rabelo, escrevendo arti-
O Salão, hoje Casa de Juvenal Galeno, gos na Folha do Comércio (1912).
prossegue em atividades até os dias atuais, Sobre a causa feminista existem muitas
sendo o equipamento cultural mais antigo contradições das mulheres de letras, que
em exercício no estado. em geral não assumem uma posição clara,
Em 1902, as irmãs Alencar fundariam, seja no direito de trabalhar, de votar ou de
em Baturité, o periódico O Astro do qual fa-
lamos anteriormente.
Na causa abolicionista, os nomes das
escritoras Emília Freitas – reconhecida
como a “poetisa dos escravos” – e Fran-
cisca Clotilde são os que mais se desta-
cam. Em janeiro e março de 1883, Emília
Freitas pronunciou diversos discursos para
a recém-criada sociedade abolicionista
feminina Cearenses Libertadoras, sob o
comando de Mária Tomásia. Além disso em
seu romance A rainha do ignoto, a escrito-
ra também denunciava a escravidão, além
da causa republicana e do espiritismo. En-
quanto isso, Francisca Clotilde publicava
no principal órgão abolicionista, Liberta-
dor, diversos poemas saudando a abolição
dos escravizados no Ceará. Participaram
também dessa causa, escritoras como
Serafina Pontes e Ignácia de Mattos Dias.

62 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Gildênia Moura de Araújo.
se divorciar. A exceção é, sem dúvida, Ana
Facó que em Páginas íntimas, escrito an-
CONCLUSÃO Mulheres beletristas e educadoras:
Francisca Clotilde na sociedade cearense
tes de 1915, mas publicado apenas após a Cursista, lacunas devem ter ficado nesse
– de 1862 a 1935. Tese (Doutorado em
morte da autora, como já dissemos, recla- trabalho, contudo o lado positivo de uma Educação). Fortaleza: Universidade
ma da falta de oportunidades de trabalho pesquisa é isso: nunca tem fim, passando Federal do Ceará (UFC), 2012, 356f.
e de vida para a mulher, da desigualdade de uma mão para outra. Cada ponto que ___________. A Divorciada de Francisca
entre os sexos e do homem, que “fez da não pôde ser desvendado por completo, ou Clotilde. In: SILVA, Fernanda M. D.
mulher fonte sedutora de suas distrações algo que ficou nas entrelinhas, remete-nos a da e MENEZES, Jailene de A. (orgs.).
novos estudos. Assim, todo trabalho de um Escritores cearenses: múltiplos olhares.
e deu-lhe para campo de suas ações o Fortaleza: Premius, 2013. p.21-37. ISBN:
lar, somente o lar”. Ela termina saudando pesquisador está sujeito a outros estudos,
978-85-7924-283-0
a abertura do mercado do trabalho para pesquisas e descobertas. Claro, evitando-se
os “achismos” e “ouvi dizer”, embasados no ______________. A destemida Francisca
a mulher, que, neste início de século XX, Clotilde. In: ANDRADE, Francisco A. et al
“felizmente (...) já vai competindo com o cotejamento, análise e reflexão de boas fon-
(orgs.). Mulheres e histórias: sedução por
homem em grande número de empregos”. tes, mesmo que contraditórias. saberes e ações. Curitiba, PR: Editora CRV,
Contudo, podemos afirmar que essas 2016, p. 191-198. ISBN: 978-85-444-1179-7
mulheres ousaram e não se amedronta- AZEVEDO, Sânzio de. Literatura
ram em enfrentar uma sociedade conser- Cearense. Fortaleza: Academia Cearense
vadora, patriarcalista e patrimonialista. de Letras, 1976.
Elas contribuíram para uma nova realida- BARREIRA, Dolor. História da Literatura
de feminina no solo cearense, com direito Cearense. Fortaleza: Editora Instituto do
à participação e atuação em um universo Ceará, 1948 (1º e 2º Tomos).
tão considerado masculino: a intelectua- BITTENCOURT, Adalzira. Dicionário bio-
lidade. Esperamos que, com este módulo, bibliográfico de mulheres ilustres,
tenhamos despertado os leitores a futuras notáveis e intelectuais do Brasil
(ilustrado). Volume 1. Rio de Janeiro:
investigações, pois no universo do gêne- Editora Pongetti, 1969.
ro feminino, no meio da intelectualidade,
CASTRO, Carla. Resquícios de
tanto na literatura como nas demais artes,
memórias: dicionário biobibliográfico de
ainda há muito para ser estudado. escritoras e ilustres cearenses do século
XIX. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2019.
CUNHA, Cecília. Além do amor e das flores:
primeiras escritoras cearenses. Fortaleza:
Expressão Gráfica e Editora, 2008.
GIRÃO, Raimundo; SOUSA, Maria da
Conceição. Dicionário de Literatura
Cearense. Fortaleza: Imprensa Oficial do
Estado, 1987.
GIRÃO. Valdelice Carneiro. Bibliografia
Cearense séculos XIX e XX – 1º Volume
(1825-1930). Fortaleza: ABC Editora, 2001.
LINHARES, MÁRIO. História Literária
do Ceará. Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio/Rodrigues & Cia, 1948.
MACEDO, Dimas. Literatura Feminina
Cearense – Introdução. Disponível
em: http://dimasmacedo.blogspot.
com/2012/08/literatura-feminina-
cearense-introducao.html.

CURSO literatura cearense 63


AUTORAS
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Gildênia Moura Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

Graduada em Letras (UFC) e Pedagogia (Unip), FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


com especialização em Literatura (Uece), detém João Dummar Neto Presidente
mestrado em Letras (UFC), doutorado em Educação André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
(UFC) e pós-doc em História da Educação (UFPB). Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Professora (aposentada) da Rede Pública Municipal
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
de Maracanaú e da Rede Estadual do Ceará (Seduc- e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
Crede 1), atuando na célula de formação de
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
professores. Tutora da Universidade Aberta do Brasil Viviane Pereira Gerente Pedagógica
(UAB), UFC Virtual e Uece-EaD. Integra a Academia Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
Maracanauense de Letras (AML), cadeira nº 14, cuja Joel Bruno Designer Educacional
patrona é a escritora Francisca Clotilde. CURSO LITERATURA CEARENSE
Raymundo Netto Coordenador Geral,
Carla Castro Editorial e Estabelecimento de Texto
Graduada em Pedagogia, Letras/Português e Direito, Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
é especialista em Língua Portuguesa e Literatura
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
Brasileira. Cursa o mestrado em Literatura Comparada Miqueias Mesquita Diagramador
na UFC, onde investiga a Literatura de autoria feminina Carlus Campos Ilustrador
cearense do século XIX. É autora de A Vida em Versos e Luísa Duavy Produtora
Resquícios de Memórias: dicionário biobibliográfico de ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
escritoras e ilustres cearenses do século dezenove. ISBN: 978-65-86094-26-8 (Fascículo 4)

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na
Todos os direitos desta edição reservados à:
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas Fundação Demócrito Rocha
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção fdr.org.br
gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, fundacao@fdr.org.br

São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

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Realização
CURSO
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5 Juntou a Fome
com Vontade de Ler
o Realismo e o Naturalismo
José Leite Jr.

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Realização
1.
PEQUENAS
REVOLUÇÕES
s últimas décadas do sé-
culo dezenove foram defi-
nitivas para a instituciona-
lização cultural no Ceará. guras como Rodolfo Teófilo e de Guilher-
Comparado com a informa- me Studart, que participaram ativamente
lidade da Academia Fran- de algumas dessas agremiações oitocen-
cesa do Ceará, de 1873, o tistas. O estudante que hoje lê obras como
Clube Literário, de 1886, Dona Guidinha do Poço ou A normalista,
teve maior estabilidade para dar apenas dois exemplos, não pode
funcional, com reuniões esquecer que seus respectivos autores, Oli-
literárias regulares e periódico próprio, A veira Paiva e Adolfo Caminha, surgiram
Quinzena. Logo em seguida, em 1887, mas nesse decisivo contexto histórico.
com propósitos científicos, seria fundado o Num tempo de grandes transformações,
Instituto do Ceará. Na última década des- é importante que se diga, abriu-se espaço na
se século, surgiram a Padaria Espiritual, cena intelectual a setores socialmente des-
de 1892, o Centro Literário e a Academia prestigiados. As agremiações, coerentes com
Cearense (de Letras), ambos de 1894. Conti- ascendência abolicionista e índole republi-
nuam até os dias atuais tanto o Instituto do cana, acolhiam os filhos do povo, a exemplo
Ceará como a Academia Cearense de Letras. de comerciários e pequenos funcionários pú-
No contexto cearense, literatura e ciên- blicos, como foram Antônio Sales e Álvaro
cia são parceiras históricas, convocadas Martins (MARQUES, 2018). Quebrando todo
que são a decifrar a mesma sociedade desi- um paradigma histórico, também as mulhe-
gual, tendo prestado relevantes serviços na res começaram a ocupar espaços num am-
abolição da escravatura e na compreensão biente marcadamente masculino, a exemplo
dos efeitos sociais e endêmicos das secas. de Francisca Clotilde, pioneira num século
O universitário de hoje deve lembrar-se que de pioneirismo civilizatório.
recebeu toda uma herança científica de fi- Quer saber mais? Aprochegue-se!

66 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


2.
LITERATURA
MALACA
CHETAS
O poeta pernambucano Alf. Castro
EM DOSE TRIPLA: (1873-1926) é considerado por Sânzio
de Azevedo como “o representante
REALISMO, mais legítimo e ortodoxo da pura arte
parnasiana na literatura cearense”.
NATURALISMO E Em 1908, realizou a primeira sessão da
IMPRESSIONISMO agremiação literária Plêiade, de breve
existência. Nela, o presidente seria
conjunto das transforma- o dono da casa onde se realizaria a
ções sociais e econômicas referida sessão (revezavam).
do século dezenove teve
um impacto inegável na
produção artística e lite- dem páginas românticas. Não seria fora
rária do Ocidente. Mesmo de propósito a concepção de um grande
em uma condição perifé- Romantismo, que, diante do cientificismo,
rica, o Brasil sofreu essa experimentou uma transição de uma arte
influência, aclimatando-a idealista para a materialista.
ao nosso meio. Prova dis- A mesma prudência se impõe sobre a
so é a transição do Romantismo para o Re- diferença entre o Realismo e o Naturalis-
alismo, o Naturalismo e o Parnasianismo. mo, já que ambas as tendências represen-
No entanto, é importante destacar, essa tam uma inclinação ao materialismo po-
transição não se operou uniformemen- sitivista, sendo aquele mais introspectivo
te, não sendo razoável, feita uma simples e este mais social.
leitura da produção das três últimas déca- O Realismo é uma primeira reação
das do século dezenove e primeiras do sé- ao Romantismo, vindo o Naturalismo am-
culo vinte, compor um quadro esquemá- pliar esse afastamento, contrapondo-se às
tico, uma divisão rigorosa entre traços concepções materialistas e cientificistas
românticos e realistas, naturalistas ao idealismo romântico. Vale lembrar que
e parnasianos. Afinal, essas tendências a denominação de Naturalismo baseia-
têm uma origem comum: a revolução -se na ideia de que todos os elementos
burguesa, cujo paradigma histórico se da natureza estão sujeitos às mesmas
constituiu com a Revolução Francesa e a leis, portanto o ser humano – e as perso-
centralidade cultural exercida pela França. nagens literárias – sofreriam as mesmas
Em síntese, “O romantismo foi o meio de determinações impostas pelo meio e fato-
expressão próprio da ascensão burguesa; res hereditários, a depender da deflagração
o naturalismo seria o de sua decadência. ” de acontecimentos condicionantes. É bas-
(SODRÉ, 1965, p. 18). tante conhecida esta analogia que Émile
Assim, quando se fala numa periodiza- Zola (1840-1902) faz na segunda edição de
ção literária, o que importa são tendên- Thérèse Raquin, romance inaugural do Na-
cias, jamais consensos. Nesse sentido, turalismo no mundo: “Eu simplesmente fiz
há românticos que parecem antecipar o sobre dois corpos vivos o trabalho analítico
Realismo e há realistas que não escon- que os cirurgiões fazem sobre cadáveres. ”

CURSO literatura cearense 67


3.
Um dos mais importantes autores da se-
gunda metade do século dezenove, Eça de
Queirós (1929) afirmava que existia um mo-
vimento geral na arte que se opera, ao longo
da história, numa tensão entre a tendên-
cia idealista e a realista. O idealismo seria QUANDO
a arte baseada na imaginação, enquanto o
realismo se constituiria pela documentação.
A PRINCIPAL
Assim, no Ceará, o Romantismo teve sua
nota dominante idealista, com Lendas e can-
ARMA É O
ções populares, de Juvenal Galeno, ou com LIVRO: O CLUBE
Iracema, de José de Alencar, ambas publica-
das em 1865, mas abrangeu uma tendência LITERÁRIO
realista, a exemplo de O Cabeleira, de Franklin uma cidade servida por
Távora, publicado em 1876. Por seu turno, no apenas duas livrarias e uma
Realismo e Naturalismo houve trabalhos mais biblioteca pública, inau-
ortodoxos, como A normalista, de Adolfo Ca- gurada em 1867, o Clube
minha, romance de 1893, ao lado de outros, Literário representou um
um tanto sincréticos, como o Luzia-Homem, acontecimento naquela
de Domingos Olímpio, lançado em 1903. Fortaleza que não chega-
Pelo menos em sua proposta original ou va a vinte mil habitantes,
próximo disso, o Naturalismo no Brasil não ocupando a área entre as
conheceria o século vinte: “O lustro 1890-95 atuais avenidas Duque de
pode, assim, servir perfeitamente para fixar Caxias, Dom Manuel e Imperador. A novidade
a fase mais alta do naturalismo, entre nós. saiu na edição de 16 de novembro de 1886 do
Daí por diante começará a declinar: não Libertador, dando conta de que na véspera
apresentará mais nenhum livro de valor houvera sua sessão inaugural, presidida por
destacado ou mesmo de tipicidade. Com Antônio Bezerra. Conta a matéria que o grupo
O cortiço, O missionário e os dois romances preparava seus estatutos e teria seu periódi-
de Adolfo Caminha [A normalista e Bom- Vale ainda ressaltar, como ensina Arnold co, A Quinzena. São identificados os funda-
-crioulo], realmente, a nova escola oferecia Hauser (1972), que o Naturalismo transitou dores: “João Lopes, seu principal fundador e
o melhor de si.” (SODRÉ, 1965, p. 188). para o Impressionismo, que parece preferir animador, Antônio Bezerra, Antônio Martins,
Para Sânzio de Azevedo, o cientificismo, o flagrante ao documento e a impressão Oliveira Paiva, José Olímpio, Abel Garcia e
principal característica da escola Natura- à simples constatação da realidade, no José de Barcelos.” (BARREIRA, 1948, p.116).
lista, nas letras cearenses já era perceptível que resulta uma arte mais introspectiva e Em pouco tempo foram aderindo outros inte-
na Academia Francesa (AZEVEDO, 1982, p. rica em efeitos estilísticos e sugestões sen- ressados, entre os quais Juvenal Galeno, Jus-
150). Mas a onda positivista, evolucionista e soriais. Enfim, tais características avançam tiniano de Serpa, Farias Brito, Rodolfo Teófilo
determinista parece não ter afugentado o es- sobre o século vinte, tendo repercussões e, em contraponto a tantas figuras masculi-
pírito romântico, a julgar pela produção em no segundo momento do Modernismo, nas, a educadora Francisca Clotilde.
prosa e verso nas agremiações sucessivas, inclusive unindo propostas ideológicas O primeiro número de A Quinzena saiu no
como o Clube Literário e o Centro Literário, contrárias, como a produção de Rachel sábado, 15 de janeiro de 1887. As palavras de
e periódicos da época: “Folheie-se qualquer de Queiroz e a de Gustavo Barroso, che- João Lopes, no texto de abertura do periódi-
número do Libertador, desse tempo, e será gando a exemplos mais posteriores, como co, mostram a consciência do desafio cultu-
fácil ver-se a presença avassaladora do Herman Lima, Moreira Campos, Batista de ral: “Não faltará quem considere arriscado,
Romantismo [...].” (AZEVEDO, 1982, p. 151). Lima, entre outros expoentes literários. temerário mesmo, este empreendimento a

68 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


que nos abraçamos. ” Para ele, mesmo “na
capital do império […] o meio não é propí-
cio às letras e às publicações exclusivamente
literárias”. Oliveira Paiva, na edição de 31 de
julho de 1887 de A Quinzena, considera a di-
fusão cultural como uma questão de pa-
triotismo: “Nada é tão capaz de fomentar o
patriotismo e acender os brios de uma Nação
como a literatura. ” Nessa guerra patriótica, a
principal arma seria o livro: “O Livro acom-
panha o indivíduo onde quer que ele vá. Cus-
ta-lhe barato. Que mais? Deve ser uma arma
para o cearense.” Propondo a divisa “O livro
é a palavra em ação”, o futuro autor de Dona
Guidinha do Poço prometia derrotar, “de bas-
tilha em bastilha, a tirania da ignorância”.
A dinâmica de funcionamento do grupo,
com a leitura de novidades chegadas a Forta- MALACA
leza e a apresentação de temas eruditos, liga-
va as gerações entre si e conectava a provín- CHETAS
cia ao mundo literário brasileiro e europeu.
A experiência de estreia nesse ambiente é Oliveira Paiva, além de exímio
assim lembrada por Antônio Sales: “Um dia romancista, também foi autor
escrevi um soneto – que meti por baixo da de contos, sendo muitos deles
porta da redação, firmando com um pseudô- conhecidos primeiramente através
nimo. O soneto foi publicado, e então apre- d’A Quinzena. Sânzio de Azevedo, em
sentei-me e fui incorporado ao dito grupo...” Aspectos da Literatura Cearense, traz
Na avaliação de Dolor Barreira, “O Clube Lite- um estudo sobre essa verve pouco
rário […] foi, em todas as oportunidades, fiel estudada do autor, posteriormente
ao seu programa de incentivar, por todos os também perquirida por Nilto Maciel
modos, o levantamento do nível intelectual em Contistas do Ceará. Muitos
do Ceará” (BARREIRA, 1948, p.121-123). historiadores ainda desconhecem os
O Clube Literário, tão regular em suas ati- contos de Oliveira Paiva. Em História
vidades, não sustentou a A Quinzena além de Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo
junho de 1888. Uma das últimas notícias de Bosi, por exemplo, não se refere ao
atividade da agremiação ainda apareceria n’A contista Oliveira Paiva, embora o
República, em 4 de outubro de 1894, avisando considere “prosador terso, que sabia
que, à noite, haveria uma reunião do Clube descrever e narrar com mão certeira e
Literário na sede do Clube Cearense. “De uma intervir no momento azado com talhos
forma ou de outra, tenham durado mais ou te- irônicos de inteligência fina e crítica”.
nham durado menos, o certo é que foi marcan- O que nos demonstra que
te a influência que o Clube Literário e A Quinze- muitos caminhos ainda temos
na [...] exerceram na incrementação da nossa para conhecer e pesquisar sobre
riqueza literária. ” (BARREIRA, 1948, p.126). os escritores cearenses.

CURSO literatura cearense 69


4.
A QUINZENA
Quinzena circulou de 15 1887: “De proporções modestas, A Quinze-
de janeiro de 1887 a 10 na vai, contudo, rompendo galhardamente
de junho de 1888, sendo a espessa camada do indiferentismo públi-
impresso na mesma tipo- co por tudo quanto é exclusivamente lite-
grafia do Libertador. Man- ratura e cremos que conquistará em breve
tiveram-se suas oito pági- posição segura e estável entre as folhas li-
nas ao longo das trinta terárias do país. ” (BARREIRA, 1948, p.118).
edições. Para quem ima- Sobre a distribuição de assuntos, toma-
ginasse que um periódico -se aqui, a título de exemplo, o primeiro
com essas características número do periódico. Assumem a redação
tipográficas não valesse os seis mil-réis de João Lopes, Antônio Martins, Abel Garcia,
uma assinatura anual, assim alertou a nota J. de Barcelos e José Olímpio. É ainda João
publicada no Libertador de 19 de maio de Lopes quem assina o editorial – “Expedien-
te. Preliminares” –, com a proposta do jor-
nal no âmbito do Ceará e sua correlação
com a imprensa literária nacional.
Em seguida vem a primeira parte do
artigo “Origem da palavra Ceará”, assina-
do por Paulino Nogueira, que teria conti-
nuidade no número seguinte. Depois lê-
-se o soneto “Lumen-Numen”, de Virgílio
Brígido, texto de feição marcadamente
romântica, que termina com uma sines-
tesia: “Tudo penso escutar, quando em
teus olhos / Vejo esse raio límpido luzir
/ Iluminando a noite que me envolve.”
Contrastando com as imagens enamora-
das do soneto, aparece “Corda sensível”,
um pequeno conto de Oliveira Paiva, que,
sob pretexto de narrar a traquinagem de
crianças, serve de exercício naturalista,
como revela o desfecho, que flagra um
parto de ratinhos, inocentemente aco-
lhidos pela pequena filha de um coro-
nel, numa analogia entre a maternidade
humana e a animal. Da incipiente expe-
riência naturalista, a leitura volta ao Ro-
mantismo de Juvenal Galeno, com “O re-
gresso”, balada em décimas, cujo enredo
descreve uma cavalgada de retorno à casa
paterna em meio ao cenário sertanejo.

70 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA Passado o idílio romântico, vem a crônica
de “Os quinze dias”, neste número assina- MALACA
Entre 1898 a 1902, o poeta cearense
da por Antônio Martins (normalmente a
seção caberia a João Lopes), que recorda
CHETAS
José Albano (1882-1923) esteve em a exitosa campanha abolicionista cearen- Embora Francisca Clotilde tenha
Fortaleza, após longo período na se, reflete sobre o problema das endemias participado do Clube Literário
Europa. Frequentou o Centro Literário, e reprova certo pacto conciliatório na po- e tenha escrito n’A Quinzena,
publicando em 1901 n’A República. lítica local. Fechando a edição, vêm dois responsáveis por acolher autores
Tão “inclassificável” e diferente para sua poemas de Justiniano de Serpa: o primei- realistas como Oliveira Paiva, a
época ele parecia, que Manuel Bandeira, ro é “A escola”, com suas cinco quadrinhas autora, como vimos no módulo
em sua Apresentação da poesia brasileira, de sete sílabas, e o sonetilho “As crianças”, anterior, não é considerada uma
diria que “temos que dar atenção à peças que remontam ao moralismo algo escritora realista e sim romântica.
figura singular de José de Abreu Albano; piegas das velhas crestomatias. Mesmo seu mais famoso livro, A
singular porque inteiramente fora dos Como se vê, as oito páginas conciliam te- divorciada, de 1902, é também uma
quadros da poesia brasileira”. mas, gêneros e autorias díspares. Nos textos obra romântica e diferentemente
propriamente literários, nota-se claramente do que muitos proclamam por aí,
Sânzio de Azevedo, que nos
uma oscilação entre o que sobrou do Ro- o enredo não traz propriamente
conta essa história, traduz: “Figura
mantismo e o que ainda falta do Naturalis- bandeiras feministas para
naturalmente excêntrica, [...] é dotado
mo. No geral, a nota dominante é mesmo além do próprio mote da
de uma genialidade vizinha da loucura
o Ceará, considerado com ufanismo por obra: o divórcio. Aliás, o tema é
(que afinal iria nublar-lhe o fim da
João Lopes, examinado pela onomástica colocado para o(a) leitor(a) de uma
existência.” (AZEVEDO, 1982, p.59)
de Paulino Nogueira, cantado nos versos forma quase compulsória para a
Vale a pena conhecer e estudar
sertanejos de Juvenal Galeno e sancionado personagem principal que se vê
as suas Rimas.
pela crônica política de Antônio Martins. abandonada pelo marido alcoólatra,
Nesse primeiro número de A Quinzena mas que tenta de todas as maneiras
ainda não aparecia Francisca Clotilde. Seu reaver o seu matrimônio, conferindo
primeiro texto no periódico vem assinado à personagem características
com o pseudônimo “Jane Davy”, na edição das heroínas românticas que tudo
de 15 de abril de 1887. Trata-se do conto sofriam e suportavam em nome
“Mors Amor”, que parece homenagear o so- do amor. Você pode ler A divorciada
neto homônimo de Antero de Quental (um na sua Biblioteca Virtual do AVA.
dos mais lembrados de Sonetos, de 1861).
Mas a homenagem fica por aí, pois o conto
de Francisca Clotilde ainda tem uma escrita de um conto natalino de François Coppée.
iniciante, num enredo que reedita a tragé- Ainda não é a romancista de A divorciada,
dia do amor entre jovens de classes sociais claro, mas foi na tolerância dessas experi-
distintas: “Mas uma distância imensa os ências que se provou seu talento literário.
separava. Ela era rica e nobre, ele pobre e Não parece ser outra a avaliação de Sân-
Crestomatias obscuro.” Noutros números, assinando com zio de Azevedo, sobre o papel d’A Quinzena
Antologias, coletâneas o próprio nome, aparecem outros contos, na revelação de novos escritores: “Ao lado de
com textos em prova e/
como “Brincar com cinza” e “A enjeitada”, poemas românticos de Juvenal Galeno e das
ou versos, geralmente
com fins didáticos. a poesia, a exemplo dos sonetos “Deserto” narrativas, igualmente românticas, de José
e “Homenagem” (este dedicado à poetisa Carlos Júnior ou “Jane Davy” (Francisca Clo-
Ana Nogueira, também colaboradora de A tilde) surgiam os contos cientificistas de Ro-
Onomástica Quinzena), o ensaio, em que se encaixa “Vic- dolfo Teófilo; o Realismo despontava, porém,
Estudo linguístico tor Hugo”, e mesmo a tradução, que é o caso com mais força e arte através dos contos
dos nomes próprios. de “O Luís de ouro”, versão em português de Oliveira Paiva. ” (AZEVEDO, 1976, p. 91)

CURSO literatura cearense 71


5.
O CENTRO
BOLACHINHAS
Quintino Cunha, orador, poeta e
contista, figurava na lista de sócios-
Ao longo de seus dez anos de ativida-
des, muitas foram as adesões, tendo presi-
dido o Centro Literário os seguintes sócios:
Temístocles Machado, Guilherme Studart,
José Lino da Justa, Pápi Júnior e Rodrigues
fundadores do Centro Literário. Por
LITERÁRIO sua personalidade singular e tão
de Carvalho. (BARREIRA, 1948, p. 256). Os
relatos históricos apontam como origem
ano de 1894 foi duplamente anedoticamente divulgada, cremos do Centro Literário uma dissidência da
contemplado nas letras do não precisar nos deter aqui sobre ele. Padaria Espiritual. O próprio Antônio
Ceará. No dia 15 de agosto, Sales, fundador da Padaria, confirma essa
era fundada a Academia versão: “Uma cisão operada na Padaria
Cearense (de Letras) e, no MALACA com a retirada de Álvaro Martins e Temís-
dia 27 de setembro, surgia o
Centro Literário.
CHETAS tocles Machado determinou a criação de
uma outra associação que tomou o nome
Os cearenses ficaram sa- de Centro Literário. ” (BARREIRA, 1948,
bendo da existência de uma O Centro Literário teve o cuidado de
p.230). Um dia após a fundação do Centro
nova agremiação literária, em Fortaleza, pelo deixar uma mensagem para o futuro,
Literário, segundo Mário Linhares, “a Pada-
jornal A República: “Com a epígrafe acima (Cen- que só poderia ser aberta na passagem
ria aprovava as exclusões de Temístocles
tro Literário) foi instituída uma agremiação dos de 2000 para 2001, “para que as
Machado e Álvaro Martins”. (BARREIRA,
nossos rapazes de letras, cujo escopo é fomen- gerações vindouras possam avaliar
1948, p.230). Dolor Barreira faz uma ava-
tar o estímulo e o desenvolvimento literário, com que devotamento o Ceará cultiva
liação positiva da rivalidade dos centristas
atualmente tão descurado entre nós. ” (BAR- os cometimentos da inteligência”.
com os padeiros, pois quem acabou lu-
REIRA, 1948, p.226). Na mesma notícia vinha (BARREIRA, 1948, p. 241-242)
crando com a animosidade foi a cultura
a relação dos sócios fundadores, alguns dos cearense: “As duas sociedades literárias,
quais já conhecidos do Clube Literário, como muito louvavelmente, tudo fariam, sob o
Juvenal Galeno, Farias Brito, José Olímpio, Ál- ponto de vista intelectual, para suplantar e
varo Martins, Pápi Júnior e Rodolfo Teófilo. avantajar-se uma à outra...”

72 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


É notória a organização do Centro
Literário, a julgar pela elaboração de sua “Lei
Orgânica” e a constituição societária. Dentre
os sócios correspondentes, estavam nomes
consagrados da crítica literária, como Sílvio
6.
SÓ A ARTE
Romero e Araripe Júnior, o poeta parnasia-
no Alberto de Oliveira, o gramático João
IMORTALIZA: A
Ribeiro e o romancista Adolfo Caminha. A REVISTA IRACEMA
mesma lista inclui as irmãs Julieta de Melo revista Iracema “apareceu a 2 de
Monteiro e Revocata Heloísa de Melo, pio- abril de 1895, sob a redação de
neiras da imprensa feminina gaúcha. Pedro Muniz e Júlio Olímpio, en-
As finalidades da agremiação não dei- cimando-a esta divisa: ‘Só a Arte
xavam de ser pragmáticas, como a realiza- imortaliza’”. (BARREIRA, 1948, p.
ção de conferências abertas, finanças para 238). Os seis primeiros números
edição de obras dos associados, correspon- da Iracema foram quinzenais. A
dência com sociedades congêneres, dentre partir do sétimo, a periodicidade
outras. Houve preocupação com um espa- passou para ser trimestral, extin-
ço cultural aberto ao público, deixando-se guindo-se ao final do ano de 1896. Além do pe-
“o livro ao alcance de todos, no meio da riódico, foram publicados livros dos associados.
rua”. (BARREIRA, 1948, p.234). Não seria razoável concluir que uma asso-
Triolé (triolet) No entanto, havia seus excessos, como ciação tão diversificada tenha chegado a uma
Poema de forma fixa, o projeto de mudança do nome da capi- unidade programática, mas é possível inferir al-
com estrofe(s) de tal, que passaria de “Fortaleza” para “Ira-
oito versos em que gumas linhas gerais. Uma delas é o regionalis-
cema”. Os centristas veneravam Alencar. mo, conforme identificado por Artur Azevedo,
o primeiro verso se
repete como quarto e
As sessões começavam normalmente com quando liga o poemeto Pescadores da Taíba,
sétimo, e o segundo, assuntos relativos à organização, seguin- de Álvaro Martins, ao sertanismo poético de
como último. do-se de uma “parte literária”, com leitura Juvenal Galeno. Há também um ufanismo,
de textos dos mais diversos gêneros. Era com as variantes nacional e local, ao que tudo
comum a reunião terminar com certa ani- indica ideologicamente vinculado ao projeto
mação, quando Alvarins (Álvaro Martins) civilizatório republicano, que assim traduz Ro-
declamava trovas e triolés, para a diver- drigues de Carvalho: “Bem se vê que há um
são ou emoção dos presentes. plano para a uma literatura muito nossa, mol-
Importante mencionar a única presença dada sobre a etnografia, o meio ambiente, a
feminina no Centro Literário, a de Alba Val- civilização enfim.” (BARREIRA, 1948, p. 256).
dez, que posteriormente, em 1922, se tor- Em relação aos estilos de época, não faltaram
naria a primeira mulher a ingressar na Aca- propostas realistas e naturalistas, a exemplo
demia Cearense de Letras como estudamos dos conto “Romântica”, de Adolfo Caminha, e
no módulo anterior. Entre as sessões sole- “Estupro”, de Pedro Muniz, reunidos na Iracema
nes da agremiação, talvez a mais destacada n.º 7 (1896). No entanto, o espírito romântico
tenha sido a homenagem a José de Alencar reinventa-se, explícita ou implicitamente, mes-
nos dezoito anos de seu falecimento. Tam- mo nos últimos anos de um século em que vi-
bém havia sessões fúnebres, como aquela goraram, pelo menos nos meios intelectuais, as
em memória de Adolfo Caminha. Não faltou doutrinas materialistas. E não se pode esquecer
a sessão de passagem do século, aberta ao da presença feminina, pois, além de Francisca
público, com a banda da Escola de Aprendi- Clotilde, a gaúcha Julieta de Melo Monteiro
zes Marinheiros, queima de fogos e o discur- também colabora com o poema “Manhã de pri-
so filosófico de Farias Brito. mavera”, que está no n.º 6 da Iracema (1895).

CURSO literatura cearense 73


caderneta de esboços de um desenhista in-
teressado em revelar a riqueza de motivos
que muitos veriam como banalidade.
Vale lembrar que o título Cromos não
lhe é exclusivo. Na verdade, constitui uma

7.
configuração discursiva cultivada por mui-
tos poetas, que emprestam ao poema uma
feição pictórica, em geral sonetilhos que Sonetilhos
descrevem pequenas cenas. Sonetos feitos
com versos
Sânzio de Azevedo sugere a influência
O REALISMO NA de B. Lopes, autor de obra homônima.
mais curtos,
sobretudo os
POESIA CEARENSE X. de Castro ora flagra cenas domésticas,
captando pequenos diálogos e situações
heptassílabos.

emos em Augusto Xavier de Cas- entre familiares, ora se volta para um pla-
tro (1858 – 1895), o X. de Castro, no mais amplo, descrevendo situações do
nosso maior representante meio popular. Exemplo desta segunda ten-
do realismo na poesia cea- dência é o sonetilho “Em Porangaba”, que
rense. De passagem breve no flagra um pequeno drama do trabalho in-
panorama literário cearense, o fantil, que perde o propósito anedótico se
escritor foi a segunda baixa da passado pelo crivo da contemporaneidade:
Padaria Espiritual – a primeira
tinha sido Joaquim Vitoriano, Para o trem. Da vilazinha
Verde, risonha, engraçada,
em 1894 –, vindo a falecer três Vem para a beira da estrada
anos depois do início da agremiação. Nela, Toda a gente, ali vizinha.
adotou o nome de “Bento Pesqueiro”. Seu
único livro, intitulado Cromos, foi publicado Começa na férrea linha
Por gritar a meninada:
sob o selo da Padaria Espiritual, em 1895. – E olha a castanha assada
Sânzio de Azevedo considera-o romântico É nova, é boa, é fresquinha!
em seus poemas da década de 1870, tran-
sitando ao Realismo na década seguinte, – Dê cá, diz um passageiro
E enquanto puxa o dinheiro
“Sua feição definitiva e mais importante”
Parte o trem já da Estação…
(AZEVEDO, 1976, p. 93). Não se trata de
uma postura realista como a que assumiria Corre, e o menino aturdido
um Cesário Verde, por exemplo, mas não Grita e brada enraivecido:
– Paga as castanhas, ladrão!
deixa de propor versos que lembram uma

74 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


8.
Oliveira Paiva (1861-1892) por sua vez
SABATINA ensaiou contos de tendência naturalista n’A
Quinzena e publicou o romance A afilhada
Quer saber mais sobre Adolfo Caminha? em folhetins d’O libertador. Sua obra mais
O REALISMO NA Adolfo Caminha: vida e obra (Armazém aplaudida é Dona Guidinha do Poço, obra
póstuma, cuja primeira edição só sairia
PROSA CEARENSE da Cultura) é uma magistral e saborosa
biografia escrita por Sânzio de Azevedo em 1952, por intervenção de Antônio Sales,
em dúvida, temos como prin- sobre este polêmico escritor que Américo Facó e Lúcia Miguel Pereira. Dolor
cipais expoentes da prosa nos deixou obras valorosas, mesmo Barreira anotou este comentário de Tristão
realista cearense os autores: tendo vivido tão pouco. Disponível em de Ataíde, que reconheceu nesse romance
Adolfo Caminha, Antônio Sa- e-book, mas também em sebos virtuais “páginas de sertanismo inteiramente
les, Domingos Olímpio, Oli- em formato impresso. novas para a época: secas vivas, originais,
veira Paiva, Rodolfo Teófilo e sem se demorarem em longas descrições, e,
Pápi Júnior. Vamos saber um pelo contrário, sabendo evocar a paisagem
pouco mais sobre eles?
O aracatiense Adolfo Ca- BOLACHINHAS em duas palavras características, com rara
concisão de estilo e flagrância de transpo-
minha (1867 -1897) impressiona pela sição. Os tipos são verdadeiros e cheios de
impactante obra que deixou em seus cur- Oliveira Paiva antes de se dedicar à vida. Tudo revela um temperamento literá-
tos trinta anos de vida, colhido que foi literatura, foi seminarista no Crato, rio de excepcional acuidade de visão, liber-
pela tuberculose. É um dos três nomes tentou a carreira militar, no Rio tado de preconceitos e exprimindo-se por
destacados por Dolor Barreira, pela quali- de Janeiro, mas acabou voltando meio da maior sobriedade de traços, apenas
dade das obras lançadas na última década a Fortaleza e empenhou-se nas os essenciais”. (BARREIRA, 1948, p.298-299)
do século dezenove, ao lado de Oliveira campanhas abolicionista e republicana. Lúcia Miguel Pereira admirou-se de que
Paiva e Rodolfo Teófilo. É nessa década que uma obra de tal qualidade tivesse caído no
são publicados os títulos mais representa- esquecimento por mais de meio século: “Re-
tivos do Naturalismo cearense e brasileiro. Como a maior influência naturalista duzidos aos seus elementos dramáticos, D.
De Adolfo Caminha, foram publicados os em língua portuguesa era então Eça de Guidinha do Poço nada tem de original: amor,
romances A normalista (1893), Bom-crioulo Queirós, não faltou quem apontasse essa ciúme e vingança surgem em muitas histórias
(1895) e Tentação (1896). influência sobre Adolfo Caminha, como fez banais. Mas os temas simples são muitas
Concordando com Leonardo Mota, por Brito Broca: “A normalista transpira Eça de vezes aqueles em que melhor se paten-
ele citado, Barreira situa a obra de Adolfo Ca- Queirós por todos os poros. Quando o au- teia a superioridade do escritor, do cria-
minha ao lado de outras, identificadas como tor pintava a figura do estudante Zuza pen- dor. Escritor e criador foi sem dúvida alguma
naturalistas, de Júlio Ribeiro e de Aluísio sava no primo Basílio; Maria do Carmo foi Manuel de Oliveira Paiva. Creio que antes de
Azevedo. Como esses autores se propu- modelada por Luísa; o redator da Madras- qualquer outro, ousou escrever como se
nham abrir em suas páginas literárias o que ta é um avatar do Palma […].” (BARREIRA, fala, sem contudo ser incorreto, num estilo
a hipocrisia burguesa dissimulava, não era 1948, p. 295-296). saboroso e colorido, que é uma fusão admi-
raro suscitarem reações moralistas, como Outro título que despertou reações críti- rável da linguagem escrita e da oral”.
a que saiu na Gazeta de Notícias (Rio de Ja- cas foi Bom-crioulo, que, segundo Waldemar Interessante notar que a atenção des-
neiro), a propósito d’A normalista, romance Cavalcanti, “é a história cruel de uma paixão ses críticos incide sobre os traços pré-
ambientado em Fortaleza. Na réplica, Adolfo homossexual, poucas vezes a literatura brasi- -modernistas da escrita de Oliveira Paiva.
Caminha reiterou sua filiação ao romance leira atingiu tão alto nível de realismo” (BAR- Em meio ao beletrismo marcado pelo re-
documental: “Mas, vamos: é preciso não REIRA, 1948, p. 296). Reunindo esses dois buscamento da frase, ele soube ser mode-
confundir a verdade flagrante e necessária, títulos, assim se posiciona Agripino Grieco: rado nas palavras, econômico de traços,
reproduzida naturalmente, com a patifaria “Adolfo Caminha, que não sabia romancear fazendo transitar o Naturalismo para o
rasa, que dói nos ouvidos e faz saltar o san- romantizando, sarcástico até na sua meia Impressionismo literário.
gue à face da burguesia. / Zola, por maior que piedade, foi o pintor da áspera verdade, tra- Seus contos foram publicados em 1976
seja o número de seus inimigos, não é um ro- tando muito bem da vida provinciana e da pela Academia Cearense de Letras, numa
mancista imoral...” (BARREIRA, 1948, p. 293). vida de bordo […]. ” (BARREIRA, 1948, p. 296). edição prefaciada por Sânzio de Azevedo.

CURSO literatura cearense 75


Trata-se de textos retirados d’A Quinzena,
que só estariam ao alcance dos bibliófilos,
Por sua vez, Rodrigues de Carvalho,
ao fazer um balanço literário da produção PASSANDO
não fosse a iniciativa acadêmica. Vitimado
de tuberculose, Oliveira Paiva faleceu na
cearense da década de 1890, divide sua opi-
nião, entre reprovações e elogios, sobre a
A LIMPO
capital cearense, no dia 29 de setembro de produção literária de Rodolfo Teófilo, reco-
Aves de Arribação, conforme Sânzio
1892. A Academia Cearense de Letras lhe nhecendo que ele mantinha uma produção
de Azevedo, foi publicada no Correio
dedicou a cadeira 25. constante, que incluía “História da seca do
da Manhã (RJ) em 1903, retificando
Representante do Naturalismo cearen- Ceará; A fome (romance); Ciências naturais
Dolor Barreira, Pedro Nava, Wilson
se, Rodolfo Teófilo é sem dúvida o autor em contos; Botânica elementar: monografia
Martins e Otacílio Colares, que
de uma das obras mais impactantes da da mucunã; Os Brilhantes (romance); Viola-
apontavam o ano de 1902.
nossa literatura brasileira: A fome. Far- ção (novela/conto); Maria Rita (romance)”,
macêutico por formação, ao lado de sua acrescentando a próxima chegada do ro-
notável atuação como sanitarista, partici- mance O paroara. Carvalho reconhece nele Enfim, Sodré parece recuperar a crítica
pou ativamente no movimento literário ce- “um homem de ciência e um beletrista”, ad- de José Veríssimo, que não foi tolerante
arense. Foi o padeiro “Marcos Serrano” na mitindo que “os seus romances são cheios com o descompasso entre o homem de ci-
Padaria Espiritual e membro do Centro Lite- de vida pela imaginação, e estampam o ências e o literato: “Os processos descriti-
rário. Em 1922, Rodolfo Teófilo tomaria seu meio e a época em que se dá a ação”. No en- vos do autor, principalmente quando quer
assento na Academia Cearense de Letras. tanto, não deixa de advertir que o autor “é referir aos estados d’alma, têm a secura e
Numa leitura apressada, pode-se imagi- descuidado na forma”, mas acaba por con- o descolorido de um inventário ou de um
nar que Rodolfo Teófilo tenha sido um na- cluir que “a literatura do Ceará muito deve a corpo de delito. Cometendo um erro grave
turalista arraigado, mas não é o que conclui este escritor” (CARVALHO, 1899, p. 195-198). de ofício, o autor, como já notei, multiplica
sua fortuna crítica. Pedro de Queirós, em É curioso que, sendo homem das a terminologia da técnica médica e fisioló-
artigo sobre o conto Violação, de Rodolfo ciências num momento de grande pres- gica. Assim dirá: ‘Brilhante se estirou à von-
Teófilo, chega a atribuir à vivência traumá- -tígio cultural positivista, Rodolfo Teófilo tade e a onda de sangue embaraçada em
tica do autor – que, aos nove anos de ida- não chega a ser o mais autêntico dos diversos pontos seguiu seu caminho até
de, testemunhou uma epidemia de cólera naturalistas. Sânzio de Azevedo recorda os capilares das extremidades do corpo’
em Maranguape – traços físicos e compor- que ele havia debutado na literatura [...]. ” [José Veríssimo, Estudos de literatura]
tamentais que o marcariam para sempre: romântica: “Rodolfo Teófilo, que havia (BARREIRA, 1948, p. 308).
“Quem já viu um sorriso de Rodolfo? ” Tra- composto versos românticos na década Talvez a grandeza humana tenha pou-
ços que também feririam sua literatura, anterior [1870], mas haveria de firmar-se pado Rodolfo Teófilo do sepultamento
como observa o mesmo acadêmico: “As como romancista” (AZEVEDO, p. 91). Para previsto em tom de lamento por Sodré: “As
cenas cruas da natureza e do mundo social além dos versos juvenis, sua adesão ao obras de Rodolfo Teófilo, assim, ficaram li-
são o ambiente onde o autor de Violação Naturalismo “se exerceu mais pela apre- mitadas à província e o tempo as sepultou.
respira a longos haustos. Na sua paleta têm sentação eventual de cenas rebarbativas Poderiam ter chegado até nós, entretanto,
pouco relevo as cenas de inspiração suave, e pelo vocabulário científico, fruto de sua no conhecimento dos leitores, pela rique-
serena, risonha. Predominam as paisagens formação profissional (era botânico e far- za e pela variedade dos temas: o da seca,
carregadas, os quadros tristes. É ele o ma- macêutico) do que através dos enredos em A fome, de 1890, o da migração para
goado pintor dos painéis da seca. / O fero- que, na maioria dos casos, são francamen- a Amazônia, em O paroara, de 1889, o do
císsimo cataclismo de 62 projetou-lhe no te românticos”. (AZEVEDO, 1982, p. 151) cangaço, em Os Brilhantes, de 1895, os da
elevado espírito veladuras inapagáveis.” Também a Nélson Werneck Sodré não servidão feudal e dos conceitos de honra
(QUEIRÓS, 1898, p. 236-237). escapa o espírito romântico subjacente ao familiar, em Maria Rita, de 1897. ” (SODRÉ,
vocabulário de pretensões cientificistas e 1965, p. 196). Após uma vida de incansável
mesmo à crueza de certas passagens de tí- produção, Rodolfo Teófilo veio a falecer em
tulos como A fome, Violação e Os Brilhantes: Fortaleza, no dia 2 de julho de 1932. Em
“mas o hibridismo de seus livros, isto é, a reconhecimento, a Academia Cearense de
parcela da herança romântica que sobrevi- Letras lhe dedica a cadeira número 33.
via às tinturas formais de naturalismo, salta A experiência literária de Antônio Sales
à simples observação” (SODRÉ, 1965, p. 195). (1868- 1940) também foi muito vasta, distri-

76 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


buída entre a poesia, o ensaio, a crônica e
também o romance. No Ceará, estreou com
seus Versos diversos, de 1890, tendo previa-
BOLACHINHAS
mente contribuído n’A quinzena, do Clube
Literário. Notabilizou-se pela idealização Toda obra naturalista é realista, mas
e fundação da Padaria Espiritual (1892), nem toda obra realista é naturalista.
sendo o autor de seu famoso “Programa de
Instalação”, onde assumiu o nome de “Moa-
cir Jurema”: “Uma sociedade literária, como MALACA
já se haviam fundado tantas, com um cará-
ter formal de academia-mirim, burguesa,
CHETAS
retórica e quase burocrática, era cousa para
Cruz Filho revela que o poeta Matias
qual eu sentia uma negação absoluta. ” (SA-
de Araújo, personagem de Aves de
LES, 2010, p. 17). No Rio de Janeiro, partici-
arribação, seria o próprio Antônio
pou ativamente da imprensa literária e dos
Sales, e que a cidade-cenário Ipuçaba
eventos iniciais da Academia Brasileira de
seria o Soure, hoje denominada
Letras, embora não tenha assumido assen-
Caucaia, na Região Metropolitana de
to nessa agremiação. Assumiu a cadeira 20
Fortaleza. (AZEVEDO, 1982, p.34)
da Academia Cearense de Letras.
O romance é uma exceção no itinerário
literário de Antônio Sales. A maior aproxi- proposta por Abelardo Montenegro: “o con-
mação de Antônio Sales com o a experiên- traste entre os processos sociais sertanejos
cia realista e naturalista se manifesta em e os processos sociais citadinos, o antago-
Aves de arribação, já conhecido em folhe- nismo entre o matuto e o praciano, entre o
tins do Correio da Manhã, jornal carioca, em requinte da civilização e a rudeza do mato,
1903, e publicado em livro no ano de 1914. encarnando a antítese Florzinha – a donze-
Dolor Barreira diz que Tristão de Ataíde la sertaneja – e Bilinha, a demi-vierge lito- demi-vierge
identifica vínculos dessa obra com o Rea- rânea” (BARREIRA, 1948, p. 553). Meio virgem.
lismo, pelas “semelhanças com Madame Para Sodré, em Aves de arribação, “há Jovem bastante
liberal nos modos,
Bovary”, ao passo que Lúcia Miguel Pereira uma aguda observação e boa fixação dos porém sem
admite maior aproximação com o Natu- costumes, além do levantamento do qua- nunca ter tido
ralismo d’A normalista, certamente pelo dro social” (SODRÉ, 1965, p.197). Mas tudo relações sexuais”.
estudo psicossocial do provincianismo: isso é sugerido com certo comedimento, (LAROUSSE,
“Uma professora e um promotor represen- como observa Otacílio Colares, um dos pre- tradução livre).
tam os elementos estranhos, que não só faciadores da obra: “É uma estória sem tra-
contrariam os hábitos antigos, como pro- gédias flagrantes, de um sensualismo aqui
vocam agitação e inquietação na pacatez e ali repontante mas velado, longe dos mol-
provinciana. ” (BARREIRA, 1948, p. 551). A des violentos dos livros de Adolfo Caminha
professora é Bilinha, o promotor é Alípio, e da rudeza crua das cenas e ambientes dos
esboçando-se um triângulo amoroso, em de Teófilo. ” (COLARES, 1979, p.XVIII)
virtude da expectativa de casamento deste Após uma exaustiva revisão da crítica
com Florzinha, filha do coletor da pacata sobre essa obra, Sânzio de Azevedo consta-
Ipuçaba. O título pode induzir, pelo menos ta o sincretismo de sua elaboração: “A nos-
aos que não passam deste na leitura de so ver, o romance de Antônio Sales pode
uma obra, que se trata de mais um roman- ser classificado como uma obra realista,
ce da seca, mas, na verdade, simboliza a dentro da qual podemos encontrar [...] ca-
presença temporária de pessoas estranhas racterísticas regionalistas, naturalistas
ao ambiente social, numa oposição assim e psicológicas.” (AZEVEDO, 1982, p. 31).

CURSO literatura cearense 77


Em síntese, trata-se de um exemplar do
Impressionismo literário, já que a um na- PASSANDO central é um sedutor sem escrúpulos, um
aventureiro de simpática aparência, mas
turalista de raiz não escaparia o simbolismo,
em que o inverno cearense, consolidado em
A LIMPO de baixa extração moral, dificilmente dei-
xaria de sofrer a influência do mestre que
abril, é assim louvado: “O marulho surdo a todos empolgava na época: Eça de Quei-
Assim como a obra Simas, apontada
das águas, rolando sobre as lajes do leito, rós.” (AZEVEDO, 1982, p.152) Também re-
por Nestor Victor como um dos
acompanhava o grande coro das aves, cujas conhece como qualidade desse romance
“melhores romances que se tem
vozes, diferentes de som e de expressão, se o fato de não se exceder nos chavões na-
produzido no Brasil” (AZEVEDO, 1976,
harmonizavam no mesmo hosana em hon- turalistas: “Mas, apesar de seu intuito na-
126), muitas outras publicadas em
ra da estação bendita. ” (SALES, 1979, p. 72). turalista, Pápi Júnior soube fugir daquele
pequenas tiragens ou mesmo em única
Aves de arribação foi publicada em fo- radicalismo deformante que faz com que,
edição, ou publicadas por editoras
lhetim em 1903, embora tenha sido escrita nalgumas obras da corrente, todas as
locais, sem experiência de distribuição,
ainda em 1897 – afirmação de Azevedo, a personagens mergulhem, sem exceção, na
nascem e morrem no Ceará desde
partir da afirmação da viúva de Sales a Abe- mesma lama.” (AZEVEDO, 1982, p. 155).
sempre. Hoje, a insistente ausência
lardo Montenegro, em O romance cearense Azevedo lamenta que, provavelmente
de boas casas editoriais no estado,
– e publicada em livro em 1914. Ao final da por ser pouco conhecida, a obra quase nun-
além de poucas estratégias de
apresentação da primeira edição, escreve ca é citada quando se estuda o romance
incentivos de publicações dessas
o autor: “[...] A crítica encontrará, por certo, realista-naturalista brasileiro.
obras por órgãos da cultura ou
neste trabalho, muitas falhas e inexperiên- Octogenário, Pápi Júnior faleceu em
universitários, associados ao completo
cias que já são sensíveis para mim, agora; Fortaleza em 30 de novembro de 1934.
desconhecimento do patrimônio
mas encontrará também, espero, páginas Na Academia Cearense de Letras, ele é o
literário cearense, contribuem para
em que estão pintados fielmente alguns as- patrono da cadeira de número cinco.
manter a produção e a historiografia
pectos e alguns costumes desta minha ter- Domingos Olímpio (1851–1906), dife-
literária apartada dos estudos da
ra, tanto mais sofredora quanto mais queri- rentemente dos demais autores que estu-
Literatura Brasileira.
da”. (AZEVEDO, 1982, p.33) damos até aqui, não fez da capital cearense
De vida mais longeva temos Pápi Júnior palco para suas incursões literárias. Enquan-
(1854-1934). Nascido no Rio de Janeiro, o No entanto, Nélson Werneck Sodré não to esteve no Ceará, foi em Sobral que deixou
autor participou do Clube Literário e do Cen- vê prosseguimento na proposta naturalis- alguma contribuição. Foi em sua terra natal
tro Literário. Em 1897 organizou o Clube de ta do autor: “Pápi Júnior, que escreveu O que ele participou das rodas intelectuais e
Diversões Artísticas, com apresentações Simas, em 1898, à base da reconstituição, literárias, na União Sobralense. No lança-
no Teatro Iracema. É autor de peças de te- descambaria para o romantismo inequí- mento da pedra fundamental do Teatro São
atro e prosa de ficção (contos e romances). voco, adiante, de sorte que Os gêmeos, de João, foi Domingos Olímpio quem discursou.
Sua obra mais apreciada pela crítica é seu 1914, completamente fora de época, cons- Depois, se transferiu para a capital paraense,
romance inaugural, O Simas (1898). Pedro titui ostensivo desmentido aos que preten- daí transferindo-se definitivamente para o
Queirós identifica nessa obra traços do ro- dem incluí-lo entre os naturalistas”. (SODRÉ, Rio de Janeiro, tendo colaborado na im-
mance documental, pela verossimilhança: 1965, p. 196) Para Carlos d’Alge, é possível prensa local e mesmo fundado seu próprio
“tão aparentemente real que se presume fazer uma correlação entre os romances de semanário, Os Anais (1904-1906), logo depois
não passar as folhas de uma ficção, mas a Eça de Queirós e O Simas: “Assim como n’O de publicar Luzia-Homem (1903). No exílio
narrativa de um fato verdadeiro engenhosa- primo Basílio, a Juliana descobre as cartas carioca, foi esse livro que o reintegrou à terra
mente escrita.” (QUEIRÓS, 1898, p. 240). amorosas de Luísa; n’A relíquia, há a troca para onde ele jamais voltaria.
de embrulhos; e n’Os Maias, chega de Pa- Percebe-se, por seu exemplo, uma cen-
ris, um senhor que traz displicentemente tralidade das agremiações em Fortaleza,
uma caixa de charutos; n’O Simas, uma car- mas é importante lembrar que muitas ou-
ta ocasional feita sob emoção precipita os tras surgiram na segunda metade do sécu-
acontecimentos. ” (D’ALGE, 2001, p. 56). lo dezenove em outras cidades no Ceará.
Por sua vez, Sânzio de Azevedo não Tudo indica que não houve grande comu-
hesita no enquadramento naturalista d’O nicação entre as associações culturais in-
Simas: “Obra naturalista, cuja personagem terioranas e as da capital.

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REFERÊNCIAS
BOLACHINHAS BIBLIOGRÁFICAS
A QUINZENA. Fortaleza: Centro Literário, 1887-1888.
Herman Lima (1897-1981) escreveu
AZEVEDO, Sânzio de. Aspectos da Literatura
contos, romance, livros de viagem, Cearense. Fortaleza: Edições UFC/Proed e Academia
sobre caricaturas (uma paixão), ensaios/ descaídas de forma e mesmo de estrutura Cearense de Letras, 1982.
crítica literária, biografia e de memórias. não impedem Luzia-Homem de ser realmente
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense.
Entre as suas obras, Tigipió (1924) – que forte, denso e verdadeiro. Da obra de Domin- Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976.
teve adaptação do conto homônimo gos Olímpio, só ele permanece: mas basta
AZEVEDO, Sânzio de. Álvaro Martins. Revista da
para o cinema em 1986 –, realista com para assegurar ao autor um lugar destacado Academia Cearense de Letras, Fortaleza, v. 76, n.
características regionalistas, naturalistas na nossa literatura. ” (PEREIRA, 1988, p. 204) 36, p.207-209, 1975.
e psicológicas. Azevedo nos fala sobre a O romance tem do Naturalismo apenas BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense.
obra: “Publicado na Bahia, Tigipió, além o compromisso documental, com o regis- Fortaleza: Instituto do Ceará, 1987[1948]. 4.v.
de enfeixar contos onde está presente tro de cenas, como a da frente de serviço que CARVALHO, Rodrigues de. Ceará Literário: nestes
a terra cearense, foi todo escrito aqui, levantou o prédio da cadeia pública de So- últimos dez anos. Rodolfo Teófilo. Revista da
sob o influxo das leituras de Afonso bral, de crianças mortas de fome na cidade Academia Cearense de Letras, v. 4, p. 190-191,1899.
Arinos e Gustavo Barroso, sendo uma onde a família sertaneja veio buscar socorro CARVALHO, Rodrigues. Ceará Literário: nestes últimos
das mais representativas obras da do flagelo da seca, além da denúncia de cor- dez anos. Centro literário. Revista da Academia
ficção cearense, em todos os tempos”. rupção de quem deveria zelar pela segurança Cearense de Letras, v. 4, p. 195-198, 1899.
(AZEVEDO, 1976, p.150 pública, como é o caso do soldado Crapiúna. COLARES, Otacílio. Introdução crítica: Aves de
No entanto, a documentação não tem a frie- arribação, romance diferente. In: SALES, Antônio.
za pretensiosamente científica, como com- Aves de arribação. Rio de Janeiro: José Olympio;
Apesar de ter produzido peças de teatro, prova a exuberância discursiva, com descri- Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979.
contos e mesmo outros romances, deve-se ções ricas em sugestões sensoriais. No mais, D’ALGE, Carlos. O Simas de Pápi Júnior: um romance
à Luzia-Homem sua consagração literá- o idealismo romântico lhe serve de base, queirosiano. In: ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS. A
ria. Surgido num momento de redescoberta produção literária do Ceará: antologia. Fortaleza:
particularmente no trato do gênero feminino, Expressão Gráfica, 2001. p. 49-64.
do Brasil, nas primeiras décadas da Repúbli- cujo simbolismo trágico metaforiza a própria
ca, esse romance tem correlação com obras HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da
terra cearense, entre os extremos da seca e a Arte. 2.ed. São Paulo: Mestre Jou, 1972. v.2.
regionalistas, seja na ficção, como Canaã, de opulência das quadras chuvosas.
Graça Aranha, seja no jornalismo literário, IRACEMA. Fortaleza: Clube Literário, 1895-1897.
como Os sertões, de Euclides da Cunha, am- QUEIRÓS, Eça de. Idealismo e Realismo. In: ______.
bos os títulos publicados no ano anterior da CONSIDERAÇÕES Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais
páginas esquecidas. Porto: Lello & Irmão, 1929.
obra capital de Domingos Olímpio.
Ambientado em Sobral, o enredo traz um FINAIS QUEIRÓS, Pedro de. A Violação: conto de Rodolfo
flagrante do segundo ano da grande seca, Concluímos nosso módulo com a certeza de Teófilo. Revista da Academia Cearense de Letras,
Fortaleza, v.3, p.233-238, 1898.
iniciada em 1877. Típica do Impressionis- que teríamos outros nomes para discorrer,
mo literário, caracterizado pelo sincretismo e com mais análises, mas o espaço não nos QUEIRÓS, Pedro de. O Simas, de Pápi Júnior. Revista
da Academia Cearense de Letras, Fortaleza, v.3,
de tendências literárias do século anterior, o permite. Esperamos, todavia, que você faça p.238-243, 1898.
romance desafiou críticos da grandeza de uso de nossa Biblioteca Virtual, ampliando o
SODRÉ, Nélson Werneck. O Naturalismo no Brasil.
Lúcia Miguel Pereira, que hesitou entre a seu conhecimento sobre autor e obra. Procu-
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
admiração e a insatisfação com a obra, cuja re os títulos possíveis em bibliotecas, sebos
STUDART, Guilherme. Pequeno dicionário
heroína assim interpretou: “Essa heroína, virtuais, editoras, casas especializadas e pro-
biobibliográfico cearense. Revista da Academia
alma feminina prisioneira de um corpo más- cure lê-los. Não se contente com sinopses, Cearense de Letras, Fortaleza, v.4, p.25-72, 1899.
culo, viveu o drama de Hermafrodite.” resenhas e críticas. A SUA LEITURA e a sua
Mesmo insatisfeita com a construção da reflexão sobre ela é o mais importante. Apro-
obra, seja pelo rebuscamento da linguagem, prie-se e alimente-se. E por falar em alimen-
seja pela discordância com a metamorfose tar-se, quem quer pão? Você? Então espere o
da protagonista, ela acaba capitulando: “As próximo módulo, que vem quentinho!

CURSO literatura cearense 79


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
José Leite Jr. Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É licenciado em Letras pela Universidade Estadual FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


do Ceará (Uece), com mestrado pela Universidade João Dummar Neto Presidente
Federal do Ceará (UFC), doutorado pela Universidade André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
Federal da Paraíba (UFPB) e pós-doutorado pela Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Universidade de São Paulo (USP). Ensinou na Uece
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
e na Universidade de Fortaleza (Unifor). Desde 2006 e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
é docente do Departamento de Literatura da UFC,
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
participando do quadro efetivo do Programa de Pós- Viviane Pereira Gerente Pedagógica
Graduação em Letras. Coordena o Grupo de Estudos Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
de Semiótica Literária, ligado ao Grupo de Estudos Joel Bruno Designer Educacional
Semióticos da UFC (Semioce). É autor de obras entre CURSO LITERATURA CEARENSE
poesias e ensaios. É ilustrador e artista plástico, Raymundo Netto Coordenador Geral,
tendo realizado exposições individuais e coletivas, Editorial e Estabelecimento de Texto
participado de salões e de curadorias. Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico

ILUSTRADOR Miqueias Mesquita Diagramador


Carlus Campos Ilustrador
Carlus Campos Luísa Duavy Produtora
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. ISBN: 978-65-86094-28-2 (Fascículo 5)

Na construção do seu trabalho, aborda várias


técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura,
aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais
importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro
da produção gráfica ganhou prêmios em salões de
Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Todos os direitos desta edição reservados à:

Fundação Demócrito Rocha


Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
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Realização
CURSO
l c
6 À Espera
do Pão
a Padaria Espiritual
e o Simbolismo
i e Sânzio de Azevedo

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Realização
1.
SEGUINDO
AS MIGALHAS
D’O PÃO
Rua Formosa, moça bela a passear/
Palmeira verde e uma Lua a pratear/
Um olho vivo, vivo, vivo a procurar/
Mais uma ideia pro padeiro amassar/
Mais uma ideia pro padeiro amassar.
Ednardo, em “Artigo 26”.

o Ceará sempre houve grê-


mios, literários ou não. Para
não recuar até os Oiteiros
do tempo do governador
Sampaio (1813), basta lem-
brar, nos anos 70 do século
XIX, a Academia Francesa,
mais voltada para a filoso-
fia e a crítica e, nos anos 80,
o Clube Literário, onde se iniciou Antônio
Sales (1868-1940).

82 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


MALACA
CHETAS
“Artigo 26”, composição de Ednardo,
2.
O ORIGINAL
traz várias referências à Padaria
Espiritual. A “Rua Formosa”, endereço PROGRAMA
das sedes da Padaria, o “olho vivo”,
representando o “Olho da Providência”,
DE INSTALAÇÃO
a função de um padeiro que seria oi assim que, depois de pou-
a de “investigador das coisas e das cos dias, Sales voltou com um
gentes”. A “palmeira”, desde os tempos nome: Padaria Espiritual! O
de Gonçalves Dias, exemplo da flora título foi bem recebido, e An-
nativa brasileira. A “ideia para o padeiro tônio Sales encarregou-se de
amassar” e na fornada se transformar redigir não os estatutos, mas
n’O Pão, veículo da agremiação. Daí um Programa de Instalação
também “O padeiro entregando o que, depois de dizer que se
pão” e “O pão na boca é o que te cura” tratava de uma “sociedade de
(nesse caso, da ignorância “que é rapazes de Letras e Artes”, acrescentava,
indigesta para o freguês”). O “Sanhaçu”, no segundo item: “A Padaria Espiritual se
considerada uma ave (também) comporá de um padeiro-mor (presiden-
brasileira, ao mesmo tempo, nome te), de dois forneiros (secretários), de um
de guerra de Antônio de Castro gaveta (tesoureiro), de um guarda-livros,
(Aurélio Sanhaçu), entre outros. na acepção intrínseca da palavra (biblio-
Ouça a música na voz de seu autor. tecário), de um Investigador das Cousas
Acesse: https://www.youtube.com/ e das Gentes, que se chamará – Olho da
watch?v=fyhbVzqaNQY Providência, e demais amassadores (só-
cios). Todos os sócios terão a denomina-
ção geral de padeiros.”
Já em 1891, reuniam-se vários escritores Advirta-se que, na época, “guarda-livros”
no Café Java (um dos quatro quiosques da era o nome que se dava ao contador...
praça do Ferreira), no centro de Fortaleza. E por que “rapazes de Letras e Artes”?
Desse grupo o citado Antônio Sales, o único Porque, além de escritores, como Sales,
que tinha um livro, Versos diversos, publica- Álvaro Martins (1868-1906), Sabino Ba-
do no ano anterior. tista (1868-1899) e muitos outros, havia
Todos lamentavam o fato de a capital ce- um pintor, Luís Sá (1845-1898), e dois mú-
arense ter pequenos grupos, mas nunca mais sicos, os irmãos Henrique Jorge (1872-
surgira grêmio de peso, como os citados. Os 1928) e Carlos Vítor. Adiante anuncia-se
amigos queriam fundar um grêmio, mas Antô- um livro especial com todos os dados so-
nio Sales era contra: “Associações pequenas, bre os padeiros, o que infelizmente não
cheias de retórica, havia muitas.” E concluía: passou de projeto...
“Só se fosse uma coisa nova, original, e mes- Todos os sócios teriam “um nome de
mo um tanto escandalosa, que sacudisse o guerra único”. Assim é que Antônio Sales era
nosso meio e tivesse repercussão lá fora!” “Moacir Jurema”, nome bem cearense, já
Ele, então, que tivera a ideia, que lhe des- que Moacir era o filho de Iracema, a qual era
se o nome e as diretrizes, disseram os amigos. guardiã do segredo da Jurema.

CURSO literatura cearense 83


Voltando ao Programa de Instalação,
BOLACHINHAS anuncia ele dissertações biográficas sobre
“sábios, poetas, artistas e literatos”, sendo
“designados com a precisa antecedência o
Álvaro Martins era irmão de Antônio
dissertador e a vítima”...
Martins, um dos poetas da abolição,
Outro artigo reza: “Haverá um livro em
como vimos no módulo 3.
que se registrará o resultado das fornadas
O paraibano Sabino Batista era marido com o maior laconismo possível.” Esse re-
de Ana Nogueira Batista, poetisa que ferido livro de atas, o autor deste módulo
conhecemos no módulo anterior. considerou desaparecido. Chegou a es-
O desenhista e pintor Luís Sá, membro crever isso e a comentar em programa da
fundador da Padaria Espiritual, seria avô TV. Um dia, porém, José Augusto Bezerra,
do famoso caricaturista, desenhista e então presidente do Instituto do Ceará, re-
quadrinista Luiz Sá (1907-1979), criador cebeu de uma funcionária um livro manus-
dos personagens “Reco-Reco, Bolão e crito que, com sua experiência, concluiu
Azeitona”, estrelas da Tico-Tico, primeira tratar-se de uma raridade: era o livro de
revista dedicada ao público infantil e de atas da Padaria Espiritual, que terminou
quadrinhos do país. sendo publicado. Falemos sobre ele:
O maestro Henrique Jorge, A linguagem das atas é cheia de chistes.
“embaixador da música” na Padaria, Na primeira fornada, por exemplo, depois
seria pai do cronista João Jacques e de de informar que “todos saíram então à rua
Paulo Sarasate (1908-1968), advogado, acompanhados de violinos, flauta e violão”,
redator do jornal O POVO e um dos diz Ulisses Bezerra: “Eu, Frivolino Catavento,
fundadores da revista Maracajá, da qual 1º Forneiro interino, que o digo, é porque o vi.”
falaremos no módulo 7. Em outra ata, escrita por Antônio Sales,
está dito: “A falar francamente, não me lem-
bra do que se passou nesta fornada.”
Só da primeira fase (o grêmio teve duas fa- A ata em que se fala dos 24 anos de
ses), citam-se Ulisses Bezerra (Frivolino Ca- “Moacir Jurema” revela que “Lúcio Jaguar”
tavento), Álvaro Martins (Policarpo Estouro), (nome de guerra de Tibúrcio de Freitas) foi
Henrique Jorge (Sarasate Mirim), Carlos Ví- designado para falar sobre o aniversariante,
tor (Alcino Bandolim), Sabino Batista (Sáti- mas “sentindo alguma dificuldade de arti-
ro Alegrete), Luís Sá (Corrégio del Sarto), Lí- culação começou a molhar a palavra de vez
vio Barreto (Lucas Bizarro), entre outros. em quando, do que resultou ficar dentro em
Estranho é que Raimundo Teófilo de pouco fradescamente adormecido à borda
Moura é “José Marbri”, quando José Maria da mesa, deixando a biografia em meio”.
Brígido, cujo nome se aproxima desse, é Com base em Leonardo Mota, em sua
“Mogar Jandira”. A Padaria Espiritual (1938), o autor destas
Na segunda fase do grêmio, citem-se linhas afirmou várias vezes que Antônio
Antônio Bezerra (André Carnaúba), José Sales fora padeiro-mor interino apenas
Nava (Gil Navarra), Artur Teófilo (Lopo de na inauguração do grêmio e na sua or-
Mendoza) e, entre alguns mais, Cabral de ganização, em 28 de setembro de 1894. A
Alencar (Abdul Assur). leitura das atas, porém, demonstra o que
Fundada em 30 de maio de 1892, a Pada- ninguém havia dito, que “Moacir Jurema”
ria teve 3 sedes na rua Formosa (atual Barão exerceu as funções de padeiro-mor
do Rio Branco), nos números 105, 106 e 11. interino em várias fornadas durante o

84 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


mandato de Jovino Guedes (Venceslau
Tupiniquim) e até em algumas já do tem- BOLACHINHAS
po do segundo padeiro-mor, José Carlos
Júnior (Bruno Jaci).
Interessante é que em Leonardo Mota, no O artigo 7º do Programa de Instalação
citado livro, é transcrito um trecho em que se dizia que “O distintivo da ‘Padaria
diz: “A um gesto expressivo de Moacir Jurema, Espiritual’ será uma haste de trigo
cada qual foi inchando nas apragatas e lendo cruzada de uma pena, distintivo que
as produções seguintes.” Ao ler a ata de 23 de será gravado na respectiva bandeira,
novembro de 1894, porém, o que se vai encon- que terá as cores nacionais.”
trar é isto: “A um gesto expressivo de Moacir Talvez agora o cursista entenda o
cada qual foi inchando nas alpercatas e lendo porquê da inserção desse símbolo,
sucessivamente as produções seguintes.” não na bandeira da Padaria – que
Considerando que Mota jamais iria alterar inclusive nem usou as cores nacionais,
um texto de outrem, e sabendo-se que An- e sim o vermelho –, mas na bateria no
tônio Sales ainda era vivo quando o livro foi centro da ilustração da nossa capa
escrito, chega-se à conclusão de que o poeta colecionadora, envolta pela divisa da
dos Versos diversos fez as modificações... agremiação: “Amor e Trabalho”.
Voltando ao Programa de Instalação, há A inspiração é óbvia: a famosa capa dos
nele este item: “É proibido o uso de palavras Beatles. E o que os Beatles têm a ver
estranhas à língua vernácula, sendo porém com a Padaria? Absolutamente NADA!
permitido o emprego dos neologismos do
Dr. Castro Lopes.”
É que Antônio de Castro Lopes (1827-
1901), médico no Rio de Janeiro, versado em
grego e em latim, tinha horror a galicismos,
anglicismos e barbarismos. Por isso, no seu
livro Neologismos indispensáveis e barba-
rismos dispensáveis (1889), propôs várias
inovações, como nasóculos, em vez de pin-
ce-nez; concião no lugar de meeting; con-
vescote, no lugar de pic-nic etc. Parece que
de suas propostas a mais feliz foi cardápio,
para substituir menu.
Outra passagem do Programa diz: “Os
padeiros são obrigados a comparecer na
fornada – de flor na lapela, qualquer que
seja a flor, com exceção da de chichá.”
Nem todos sabem o que vem a ser a flor
de chichá. O autor deste comentário per-
guntou a sua mãe o que seria isso, e ela, nas-
cida em 1902, respondeu-lhe que se tratava
de uma flor de odor insuportável. A informa-
ção se completou com o nome científico da
planta onde nasce a flor: Sterculia chicha St.
Hil., o que lembra fatalmente esterco.

CURSO literatura cearense 85


Há itens encarecendo o uso do humo-
rismo e a pilhéria de espírito, bem como a
Moderna de São Paulo. Tanto bastou para
que mais de uma pessoa qualificasse de BOLACHINHAS
condenação do plágio. Mas é interessante “modernistas” os componentes da Padaria
este: “É proibido fazer qualquer referência à Espiritual. Na verdade, eles, com sua irreve- Sânzio nos conta que Joaquim
rosa de Malherbe e escrever nas folhas mais rência e seu espírito crítico, prenunciaram Vitoriano (Paulo Kandalaskaia)
ou menos perfumadas dos álbuns.” os novos tempos, mas o que o grêmio trou- “não sendo escritor, nem músico,
Fica claro que a Padaria Espiritual era xe de realmente novo foi o Simbolismo, nem pintor, entrou para o grêmio,
contra os lugares-comuns, os clichês ou como oportunamente veremos. segundo Leonardo Mota, ‘não
chapas, como se dizia. A alusão ao famoso Continuando com o Programa, há um em virtude do cérebro e, sim, do
poema de François Malherbe (1555-1628), já trecho que diz: “Será dada a alcunha – de braço e da coragem de que era
no tempo da fundação do grêmio cearense, medonho – a todo sujeito que atentar pu- dono’ Fazia, assim, o papel de
era recurso bastante surrado para se falar blicamente contra o bom senso e o bom guarda-costas dos ‘padeiros’. [...]
de coisas efêmeras... gosto artísticos.” Morreu assassinado em plena
Reforçando o aspecto bem-humorado e Ao chamar de “medonhos” os que aten- praça do Ferreira.”
irreverente de seu Programa, encontramos tassem contra “o bom senso e o bom gos-
“Aquele que durante uma semana não dis- to”, estavam os padeiros aludindo àqueles
ser uma pilhéria de espírito, pelo menos, pseudoescritores (numerosos ontem como
fica obrigado a pagar no sábado café para hoje), ou seja, aos não preparados ou não
todos os colegas. Quem disser uma pilhéria vocacionados para as letras, mas que
superiormente fina, pode ser dispensado assim mesmo se arvoravam em inte-
da multa da semana seguinte.” lectuais. Os que eles chamavam de
Outro item permitia conservar o cha- “ignaros”, pelo menos, não enten-
péu na cabeça durante as fornadas, “ex- diam de arte literária, mas não ti-
ceto quando se falar em Homero, Shakes- nham a pretensão de ser escritores.
peare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e
José de Alencar”, pois neste caso, todos
teriam que se descobrir.
Vemos que, apesar de inovadores, os
padeiros não faziam tábua rasa dos valores
consagrados, o que mostra seriedade ao
lado do espírito de pilhéria.
Vem agora um dos itens mais importan-
tes do Programa: “Será julgada indigna de
publicidade qualquer peça literária em que
se falar de animais ou plantas estranhas à
Fauna e à Flora Brasileira, como – cotovia.
olmeiro, rouxinol, carvalho etc.”
Em 1970, no opúsculo A Padaria Espi-
ritual, o autor deste módulo assinalou a
importância desse artigo do Programa de
Instalação do grêmio, lembrando que esse
espírito nacionalista seria uma das preo-
cupações de Monteiro Lobato e, trinta anos
depois da fundação da Padaria Espiritual,
uma das bandeiras da Semana de Arte

86 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Curiosa a maneira como pensavam em O certo é que os padeiros cultivavam a A nota humorística reaparece no item que
fazer uma biblioteca: “Trabalhar-se-á por boêmia de espírito, mas se vestiam apura- diz: “Encarregar-se-á um dos padeiros de es-
organizar uma biblioteca, empregando para damente, o que se comprova com os poucos crever uma monografia a respeito do incansá-
isso todos os meios lícitos e ilícitos.” retratos que ficaram do grupo. Sendo assim, vel educador professor Sobreira e suas obras.”
Um item que teve alguma repercussão conclui-se que eles gastavam muito com É que João Gonçalves Dias Sobreira,
foi este: “São considerados desde já inimi- os alfaiates. Polícia é que, segundo ainda nascido no Crato em 1847, publicou um Tra-
gos naturais dos padeiros – os padres, os Pedro Nava, “é polícia mesmo, símbolo odio- tado de pronúncia francesa (1873), uma Geo-
alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve so do poder”. Em Leonardo Mota – atenção, grafia especial do Ceará (1887), uma Sim-
perder ocasião de patentear o seu desagra- pesquisadores –, em vez de “os padres” está, plificação da gramática portuguesa, com
do a essa gente.” estranha e incorretamente, “o Clero”. várias edições, e ainda cultivou a música, a
A inimizade aos padres certamente se E, corroborando o cuidado com que os literatura e outros ramos do conhecimento,
originou no anticlericalismo que, com a escritores do grêmio se vestiam, o artigo se- sendo ainda autor, em 1892, de uns Apon-
onda cientificista da segunda metade do guinte diz: “Será registrado o fato de apare- tamentos para a carta topográfica do Cea-
século XIX, se refletia nas letras. Quanto aos cer algum padeiro com colarinho de nitidez rá. Claro que se trata de uma brincadeira,
alfaiates, disse Pedro Nava, em Baú de ossos e alvura contestáveis.” uma vez que os padeiros implicavam com
(1972): “É evidente que a palavra alfaiate aí Depois de um item em que se pune o enciclopedismo do educador. Em 1894,
está em sentido simbólico, como exemplo “com expulsão imediata e sem apelo o pa- no Retrospecto dos feitos do grêmio, “Moa-
de extorsão, que é preciso combater.” deiro que recitar ao piano”, costume que cir Jurema” irá revelar que esse artigo “não
vinha do Romantismo, senão do Arcadis- foi possível levar a cabo porque não houve
mo, fala-se de “um calendário com os meio de adquirir dados precisos sobre a ca-
nomes de todos os grandes homens maleônica pessoa do professor Sobreira”.
mortos”, e alude-se ao “nome do Há um artigo dizendo que a Padaria
santo do dia”. Isso acontecia somen- vai organizar brevemente “um Cancioneiro
te nos primeiros tempos. Houve os popular genuinamente cearense”. Não foi
dias de Camilo Castelo Branco, Émile organizado o cancioneiro, mas o jornal dos
Littré, Sócrates, Castro Alves, Joana padeiros (do qual tratamos a seguir) publi-
d’Arc (ainda não canonizada cou trinta e cinco trovas nos números 33, 34
pela Igreja), Canova, Weber, e 36, coletadas por um Padeiro da segunda
Fídias e Zêuxis. fase, José Carvalho (Cariri Braúna), sendo
“inédita a quase totalidade da contribuição
da Padaria Espiritual aos estudos folclóricos
do Brasil”, como afirmou Leonardo Mota,
com a autoridade de estudioso de nossos
versos populares, no seu citado livro.

CURSO literatura cearense 87


3.
À ESPERA
D’O PÃO...
QUE CHEGOU!
Entre um vendedor d’O Pão e um cego:
– Meu bem, me dê um pão, pelo amor de Deus.
– Qual, você não enxerga, e este
PÃO come-se é pelos olhos...
Moacir Jurema, em O Pão nº 2

nunciado em um dos ar-


tigos do Programa, O Pão
surgiu em 10 de julho de
1892. Sobre o jornal, disse
“Moacir Jurema” no men-
cionado Retrospecto: “De-
vemos confessar aqui: essa
folha era menos o veículo
literário da Padaria do que
uma válvula para a pilhéria
petulante que se fazia lá dentro.”
Saíram seis números em 1892, mas,
por engano, o nº 3 trazia a repetição do nº
2, o que acarretaria engano na numeração
até o número 6, que foi numerado como 5,
em 24 de dezembro.

88 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


MALACA em 3 de janeiro de 1803, e falecido em For-
taleza, no dia 17 de janeiro de 1872, Verdei-
CHETAS xa redigiu na capital da província os jornais
Juiz do Povo, Sete de Setembro, O Coelho e A
Adolfo Caminha (1867-1897), Liberdade, tendo sido deputado provincial,
o “Félix Guanabarino”, autor de sempre metido em lutas políticas.
romances célebres, embora tenha sido Outro item que não foi cumprido dizia:
membro da Padaria Espiritual, teve “Publicar-se-á no começo de cada ano um
pouquíssima participação nela. Chegou almanaque ilustrado do Ceará, contendo
a ser expulso em 1896 após críticas ao indicações úteis e inúteis, primores literá-
seu “oficialismo, sem os ideais de outros rios e anúncios de bacalhau.” O poeta Lívio
tempos”, entre outras, publicadas em Barreto chegou a falar, em carta a Antônio
suas Cartas literárias (1895). Sales, de um poema que desejava enviar
para esse almanaque.
É, no entanto, considerado um
Há o desejo de que o grêmio tenha “cor-
dos principais autores naturalistas
respondentes em todas as capitais dos pa-
da Literatura Cearense e, portanto,
íses civilizados”, mas pelo menos no Brasil
da Brasileira.
teve a Padaria correspondentes ilustres,
como Araripe Júnior, Olavo Bilac e Coelho
Suspensas as edições do seu jornal, Netto, no Rio de Janeiro; Garcia Redondo
passaram os padeiros a escrever n’A Repú- em São Paulo; Augusto de Lima e Raimun-
blica, periódico que nascera da fusão de do Correia em Minas Gerais, e ainda Clóvis
dois outros (Libertador e Estado do Ceará). Beviláqua em Pernambuco.
E O Pão reapareceria somente em 1º de ja- Curioso é este item: “As mulheres, como
neiro de 1895, com o nº 7, já na segunda entes frágeis que são, merecerão todo o
fase do grêmio, da qual ainda falaremos. nosso apoio, excetuadas: as fumistas, as
Com a publicação do nº 30, em 15 de de- freiras e as professoras ignorantes.”
zembro desse ano de 1895, faz-se um hia- Se até os anos vinte do século passado as
to de oito meses, e o nº 31 vai aparecer em mulheres que fumavam eram as femmes fa-
15 de agosto de 1896. Saem mais cinco tales do cinema, imagine-se o que seria isso
números, e o periódico encerra suas ativi- na Fortaleza do fim do século XIX. A alusão
dades com o nº 36, em 31 de outubro. às freiras segue a antipatia que os padeiros
Mas ainda não terminou nosso passeio tinham aos padres. Quanto às professoras ig-
pelo Programa de Instalação. Um item que norantes, nem é preciso comentário algum...
não foi cumprido dizia: “A Padaria trata-
rá de angariar documentos para um livro
contendo as aventuras do célebre e extra-
ordinário Padre Verdeixa.”
O Padre Verdeixa, o qual dizia chamar-
-se Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa,
deu desde muito jovem “provas de completo
desequilíbrio mental, que a idade não modi-
ficou para melhor”, segundo observação do
Barão de Studart, no seu Dicionário biobiblio-
gráfico cearense (1910). Nascido no Crato,

CURSO literatura cearense 89


“Ao cair-vos nas mãos o presente livro
de atas da Padaria Espiritual, afirmaríeis
sem pestanejar que esta benemérita e ori-
ginal associação de rapazes de letras havia
existido até o dia 5 de julho de 1892, data da
última ata inserida neste livro.
“Estais enganada, Posteridade amiga! A

4.
despeito da ausência de atas posteriores a
essa, a Padaria continuou a trabalhar, mui-
to embora não tivesse prédio próprio para
as suas reuniões e estas não assumissem
o caráter de fornadas propriamente ditas.
OS NEFELIBATAS Certo é, porém, que os padeiros conti-
nuaram ligados pelos laços de camarada-
CABEÇAS-CHATAS gem espiritual e – cada qual na sua casa
primeira fase do grêmio, – amassando com o suor do rosto como
que data de 1892, deu ori- do corpo inteiro o pão do espírito – comido
gem a apenas um livro, pelos olhos e digerido pelo cérebro.”
Phantos (1893), de Lopes Esse texto, datado de 27 de setembro
Filho. Houve quem estra- de 1894, fala dos Phantos e de livros que
nhasse esse título, mas tal- vieram depois.
vez haja algum parentesco No dia seguinte, 28 de setembro de 1894,
com “fantasia”... Os outros Antônio Sales reuniu os padeiros restantes
livros da entidade são da e com mais treze membros fez a reorganiza-
sua segunda fase. ção do grêmio. Entre outros, entraram José
O certo é que, não havendo uma só Carlos Júnior (Bruno Jaci), Rodolfo Teófi-
ata relativa ao ano de 1893, o que não é lo (Marcos Serrano), Valdemiro Cavalcanti
referido por Leonardo Mota, encontra-se (Ivan d’Azof), José Carvalho (Cariri Braú-
no livro de atas uma página assinada por na), X. de Castro (Bento Pesqueiro), José
“Moacir Jurema” e intitulada “À Posterida- Nava (Gil Navarra), Artur Teófilo (Lopo de
de”. Nela, entre outras coisas, diz o escritor: Mendoza) e Eduardo Saboia (Brás Tubiba).

90 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Houve quem achasse que o Centro Li-
terário (fundado com a ajuda dos ex-pa-
deiros Álvaro Martins e Temístocles Macha-
do) era inimigo da Padaria, mas entre seus
fundadores está Jovino Guedes, que fora
padeiro-mor. Também foram do Centro
Literário Rodolfo Teófilo, Almeida Braga,
Antônio Bezerra e até padeiros da primeira
fase, como Ulisses Bezerra e Lopes Filho.
Pelas atas do final de 1894, do ano de
1895 e parte de 1896, sabe-se que as for-
nadas passaram a ocorrer nas casas dos
padeiros, sendo que a última, de 20 de de-
zembro de 1898, ocorreu na casa de Ro-
dolfo Teófilo, estando Antônio Sales, há
muito, no Rio de Janeiro.
Exceto os Phantos (1893), de Lopes
Filho, da primeira fase, todas as demais
obras da Biblioteca da Padaria Espiri-
tual, selo da agremiação, são da segunda
fase: Versos (1894), de Antônio de Castro;
Flocos (1894), de Sabino Batista; Contos
do Ceará (1894), de Eduardo Saboia; Cro-
mos (1895), de X. de Castro; Trovas do Nor-
te (1895), de Antônio Sales; Os Brilhantes
(1895), de Rodolfo Teófilo; Vagas (1896),
de Sabino Batista; Dolentes (1897), de Lí-
vio Barreto; Marinhas (1897), de Antônio de
Castro; Maria Rita (1897), de Rodolfo Teófi-
lo; Perfis sertanejos (1897), de José Carva-
lho; e Violação (1898), de Rodolfo Teófilo.

CURSO literatura cearense 91


Acrescente-se que O Paroara, romance Quanto à importância histórica, aí, sim,
de Rodolfo Teófilo, editado em 1899, mes- o Simbolismo do Ceará, cujos modelos
mo quando já extinta a agremiação, traz a não estão no Paraná nem no Rio de Janei-
indicação “Biblioteca da Padaria Espiritual”. ro, foi influenciado pela escola de Por-
Quanto a estilos de época, ou escolas lite- tugal, não tendo nascido por geração es-
rárias, ao tempo da fundação da Padaria Espi- pontânea, mas sem dúvida não deve nada
ritual havia ainda no Ceará reminiscências do à escola que pontificava no Rio de Janeiro,
Romantismo, presença do Realismo, tanto com origem no Paraná.
na ficção quanto no verso, e anseios ainda Na “Carta-prefácio” dos Phantos, Antô-
vagos de um Parnasianismo que só viriam nio Sales afirma que os versos de Lopes
bem depois. Por fim, o Simbolismo, que é Filho são oriundos de uma psicologia
uma retomada do subjetivismo romântico, mórbida, e observa: “Bem se vê que leste
mas com características próprias, como a sin- Verlaine, Mallarmé, Moréas, Nobre e Eugê-
gular musicalidade, além de notas de misticis- nio de Castro, esses alucinados vates do
mo. É interessante assinalar no Simbolismo fim do século, apóstolos da escola estra-
a quebra deliberada do ritmo habitual, nha do Decadismo...”
principalmente no verso alexandrino (de 12 Decadismo, explique-se, foi a primeira
sílabas), assim como o uso das maiúsculas designação do Simbolismo, juntamente
alegorizadoras e a repetição constante de com Decadentismo e que, com o tempo,
alguns vocábulos ou grupos de palavras. ficaria circunscrita aos aspectos mais profa-
Antônio Sales se dizia parnasiano, mas nos do Simbolismo.
somente depois de sua longa estada no É sintomática, nessa “Carta-prefácio”, a
Rio de Janeiro, onde conviveu com poetas ausência de qualquer alusão a um nome
como Alberto de Oliveira (1857-1937), é sequer de poeta brasileiro, o que demonstra
que chegou a fazer versos dentro dos câno- que em 1893, no Ceará, não haviam reper-
nes da escola de Bilac. cutido ainda os ecos do movimento que
Lopes Filho publicou Phantos, um mês an- havia eclodido na então capital federal.
tes de Broquéis, de Cruz e Sousa (1861-1898), Os simbolistas, com seu tédio e sua apatia,
que juntamente com Missal é marco do Sim- sentiam-se deslocados no seu mundo, e mer-
bolismo no país. O que deve ser assinalado gulhavam dentro de si mesmos, numa atitu-
é o fato de o poeta cearense não se ter espe- de voluntária de insulamento. Em suma: Insulamento
lhado no livro do maior simbolista brasileiro. habitavam o que se convencionou chamar Ato ou efeito de insular
Quanto ao valor dos poetas, claro que não se de “torre de marfim”. No livro Decadentismo e (-se), isolar-se; solidão.
deve comparar, do ponto de vista literário, os Simbolismo na poesia portuguesa (1975), José
poemas de Lopes Filho aos de Cruz e Sousa, Carlos Seabra Pereira estudou bem essas ca-
um dos maiores da literatura brasileira. racterísticas em poetas de sua terra.

92 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Típico da corrente é, nos Phantos, o so-
neto intitulado “A Álvaro Martins”, em ale- BOLACHINHAS No poema de abertura do seu livro
Dolentes (1897), de publicação póstuma,
xandrinos (versos de doze sílabas): “Credencial” reflete o Simbolismo do po-
eta, não somente pela sua concepção de
Ó Nirvana! Repouso absoluto e completo! Antônio Nobre definia a sua obra
Sonha, Espírito meu, eleva-te às alturas,
arte, mas também por meio das maiúscu-
Só como “o livro mais triste que las alegorizadoras, dos vocábulos litúrgi-
Onde as águias do Céu, no seu mundo dileto,
há em Portugal”. cos (termos ligados à religião), e da repe-
Olham, cheias de horror, as pobres criaturas!
tição em cada estrofe do vocábulo “Arte”.
Ó Ideal do Amor imaterial e casto,
Harmonias dos Sons, combinação da Cor:
De nosso lábio triste e descorado Dirigindo-se à “Arte! suprema, incompará-
Murchou a flor vermelha da Alegria; vel Arte!”, que é “prenhe de luares”, diz o
Encantado País, Mundo mais que este vasto,
E o nosso rir é um rir contrariado, poeta na terceira estrofe:
Ó região que eu sonho! Ó região do Amor!
Sempre amarelo e cheio de Ironia...
Arte do Verso, Arte das harmonias
Poetas! Meus irmãos! Febris adoradores
Vinte anos! Já velhice! Quem diria Vibrantes, doudas, cálidas, inquietas,
Do Luar e do Sol que morre quando desce
Que chegasse (tão cedo) tal estado, Elétrica centelha dos Poetas,
A noite sob o pálio auricolor dos Astros!
Em que é o coração supliciado Que esfolhas rosas sobre as agonias.
De joelhos, irmãos! Rezemos nossa prece! Um claustro cheio de Melancolia!...
Essa Arte, que é “nevada de dolências
Amigos, a rezar! Nós que vamos de rastros
Schopenhauer! Lusbel, tu semeaste meigas”, e a que o poeta chama de “Pulcra
Por este mundo vil de mágoas e negrores...
A dúvida cruel em nossos peitos, santa de beijos dolorosos”, atinge o máximo
Datado de 1892, esse soneto é um aca- E a Fé e o Amor de nós arrebatastes! da sacralização nas estrofes finais:
bado exemplo de poesia decadentis- Vamos, pois, meus amigos, no abandono!
Resta-nos hoje o derradeiro Sono!... Arte, monja de idílica piedade,
ta ou simbolista, com seu sonho de um Que tens, eterna, angélica visão,
- Coveiros! Onde estão os nossos Leitos?
Nirvana, que tanto influiu no Simbolismo No olhar o Angelus nobre do perdão
através da filosofia de Schopenhauer: essa No soneto 13 do Só, única obra de Antô- E a paz augusta da maternidade;
busca de um paraíso, que seria o Nada, nio Nobre, há estes versos: “Ó meus amigos! Arte! Ideal, ó sacrossanto viático!
opõe-se à vida em um mundo que, para Todos nós falhamos... / Nada nos resta. So- Ó Arte! Mater de consolações!
o poeta, é cheio de mágoas e negrores. mos uns perdidos.” Para adiante, acrescen- Com os meus sonhos e amores e ilusões
Notem-se as maiúsculas alegorizado- ta: “Jesus! Jesus! Resignação... Formamos / Fiz-te um missal de Dor! – sou teu fanático!
ras dos substantivos: Espírito, Águias do No Mundo, o claustro-pleno dos Vencidos!”
Céu, Ideal do Amor, Sons, Cor, País, Mun- O final do soneto de Lopes Filho lembra
do, Luar, Sol e Astros, bem como a nota de ainda outro soneto de Nobre, o de nº 18, que
misticismo, na exortação às preces, não diz: “Ai quem me dera entrar nesse convento /
faltando a rima Astros/rastros, quase epi- Que há além da Morte e que se chama A Paz!”
dêmica na vigência do Simbolismo. Ao que se saiba, os poemas de Lopes Fi-
Exemplo da influência do poeta portu- lho figuram apenas em Literatura Cearense
guês Antônio Nobre (1867-1900) em Lopes (1976), do autor deste trabalho, além, natu-
Filho: “Os Vencidos da vida”, de 1893, em ralmente, no perfil biográfico do autor escrito
versos de dez sílabas (decassílabos): por Túlio Monteiro para as Edições Demócri-
to Rocha, em sua coleção Terra Bárbara.
Menos desconhecido, Lívio Barreto
(1870-1895) tem poemas em O Simbolismo
(1959), de Fernando Góes, e até no Pano-
rama do movimento simbolista brasileiro
(1952), de Andrade Muricy, sendo sua po-
esia superior à de Lopes Filho, cuja impor-
tância é mais histórica.

CURSO literatura cearense 93


SABATINA
As seções “Sabatina”, “Malacachetas”,
“Confeitos” e “Bolachinhas” são
homônimas daquelas que deliciavam
os leitores d’O Pão. Nossa homenagem
aos memoráveis padeiros e as suas
fornadas: Amor e Trabalho!

Houve em nossos dias quem pensas-


se que esse “missal de Dor” teria origem
no título de um dos livros de Cruz e Sousa
(Missal, de prosa poética). É bom lembrar,
porém, que Lívio Barreto não precisaria
ler o poeta brasileiro, já que o soneto 1 do
Só, de Antônio Nobre, diz, em seu segundo
quarteto: “E depois, com a mão firme e se-
rena, / Compus este Missal dum torturado.”
Um dos mais belos e originais poemas
dos Dolentes intitula-se “Os Cravos bran-
cos”, e figura no livro de Andrade Muricy.
Sua musicalidade é estranha e o poema
possui algumas irregularidades que não fo-
ram entendidas na época. Datado de março
de 1893, tem o poema sete estrofes, mas a
leitura das duas primeiras, da quinta e da
última dá uma ideia desses versos, um dos
pontos altos do Simbolismo cearense:
Cravos brancos, cravos brancos como o leite,
Que as noivas levam para a Igreja ao ir casar,
Cravos da cor das escumilhas do corpete,
Brancos de espumas atiradas pelo mar.

Cravos brancos invejados pelos goivos,


Cravos brancos que de brancos dão vertigens;
Cravos que são como hálitos de noivos,
Beijos de noivos embaciando mãos de virgens!
............................
Flores dormentes de volúpia e de desejos,
Sempre a sonhar presas aos seios das donzelas,
Amarrotadas pelo fogo de seus beijos
E sempre brancas, sempre puras, sempre belas!
............................
Cravos brancos como as mãos da minha amada,
Quando eu descer à terra fria, n’um caixão,
Desabrochai, brancos soluços d’alvorada,
Ó cravos brancos que plantei no coração.

94 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Não é possível deixar de ressaltar uma Vindes da noite, vindes da amargura,
afinidade entre Barreto e Nobre: “Ao Can- Desabrochastes sobre a dura frágoa
Do coração ao sol da desventura!
to do lume”, do Só, lembra, principalmen-
te pelo ritmo, a estrofe final de “Os Cravos Vindes de um seio, vindes de uma mágoa
brancos”. Nos versos do poeta português, E não achastes uma urna pura
lê-se: “Faz tanto frio. (Só de a ver, me gela, Para abrigar-vos, frias gotas d’água!
a cama...) / Que frio! Olá, Joseph! Deita Houve dois padeiros que praticaram
mais carvão! / E quando todo se extinguir Simbolismo em prosa: Tibúrcio de Freitas,
na áurea chama, / Eu deitarei (para que quando se transferiu para o Rio de Janeiro,
serve! Já não ama) / Às cinzas frias o meu e Cabral de Alencar, na segunda fase do
pobre coração!” grêmio. Ambos, portanto, já depois da esco-
O poeta chega a empregar mais irregu- la do Rio de Janeiro.
laridades do que o próprio Antônio Nobre, Penso que essa amostra da poesia de
havendo versos de 11 e até de 10 sílabas Lopes Filho e de Lívio Barreto já deu para REFERÊNCIAS
nesse poema, quando a maioria é compos- apresentar o que foi o Simbolismo na Pada-
ta de alexandrinos (12). Alguns não obede-
BIBLIOGRÁFICAS
ria Espiritual.
cem à cesura (ou corte) medial, como estes: AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual (1892-
“Cravos da cor das escumilhas do corpete / 1898). Fortaleza; UFC, Casa de José de Alencar, 1970.
Brancos de espumas atiradas pelo mar.” CONCLUSÃO ______ . Breve história da Padaria Espiritual.
Isso, sem falar nas rimas imperfeitas (leite/ A Padaria Espiritual foi a mais importante Fortaleza: Edições UFC, 2011.
corpete e vertigens/virgens), muito comuns e original agremiação do Ceará no sécu-
BARRETO, Lívio. Dolentes. 3.ed. Fortaleza:
nos poetas românticos brasileiros. lo XIX, e foi nela que surgiu o Simbolismo Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2010.
O poeta Liberato Nogueira, apesar de no nosso estado, não oriundo do grupo do
CAMINHA, Adolfo. Cartas literárias. 2. ed.
elogiar o poeta, afirmou na revista A Janga- Rio de Janeiro, mas bebido diretamente de Fortaleza: UFC Edições, 1999.
da, de novembro de 1909, que Lívio Barreto Portugal, principalmente por intermédio do
JUREMA. Moacir. Retrospecto dos feitos da Padaria
apresentava “alguns defeitos de metrifica- livro Só, de Antônio Nobre. Espiritual. In: AZEVEDO, Sânzio de. Breve história
ção, irregularidade da cesura e deslocação Esse Simbolismo cearense seria contem- da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011.
do hemistíquio”. Hemistíquio, lembre-se, é porâneo, mas não seguidor da escola do Rio LOPES FILHO. Phantos. Fortaleza: Tip. Moderna, 1893.
o corte medial do verso alexandrino. Isso de Janeiro. Interessante é que chegou a ser,
MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. 2. ed. UFC,
indica que o crítico, apegado aos tratados no Ceará, anterior ao Parnasianismo, ao Casa de José de Alencar, 1994.
de versificação, não compreendeu as li- contrário do que ocorreu em plano nacional.
MURICY, Andrade. Panorama do movimento
berdades do poeta. simbolista brasileiro. 2. ed. Brasília: INL, 1973.
Prova de que Lívio Barreto dominava
NAVA, Pedro. Baú de ossos. 2. ed. Rio de Janeiro:
totalmente os segredos da metrificação
é o belo soneto “Lágrimas”, talvez o mais FAÇA J. Olympio, 1972.
NOBRE, Antônio. Só. 12. ed. Porto: Tavares
conhecido de seus poemas. Note-se o re-
quinte formal de o poeta fazer repetições de
ACONTECER Martins, 1962.
PEREIRA, José Carlos Seabra. Decadentismo e
palavras no início de cada estrofe. Também Simbolismo na poesia portuguesa. Coimbra:
está no livro de Andrade Muricy: O Programa de Instalação Coimbra Editora, 1975.
Lágrimas tristes, lágrimas doridas, está disponível, na íntegra, entre
PROGRAMA de instalação da Padaria Espiritual.
Podeis rolar desconsoladamente! outras surpresas, na Biblioteca Fortaleza: Tip. D’O Operário, 1892.
Vindes da ruína dolorosa e ardente Virtual do AVA.
Das minhas torres de luar vestidas! SALES, Antônio. Versos diversos. Fortaleza:
Não deixe de, após a leitura do José Lino, 1890.
Órfãs trementes, órfãs desvalidas,
módulo, pegar o seu escafandro e
______ . Poesias. Rio de Janeiro: Garnier, 1902.
Não tenho um seio carinhoso e quente, mergulhar em águas passadas, estas
Frouxel de ninho, cálix rescendente que movem moinhos... de pãos. STUDART, Guilherme. Dicionário biobibliográfico
Onde abrigar-vos, pérolas sentidas. cearense. Fortaleza: Tipolitografia a Vapor, v. 1, 1910.

CURSO literatura cearense 95


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Sânzio de Azevedo Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É licenciado em Letras pela Faculdade de Filosofia FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


do Ceará e doutor em Letras pela Universidade João Dummar Neto Presidente
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a orientação André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
de Afrânio Coutinho. Atuou como revisor do Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
jornal Estado de S. Paulo, professor da Faculdade
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
de Filosofia e, por 30 anos, exerceu o magistério e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
como professor do Departamento de Literatura
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
da UFC, lecionando Literatura Cearense e Teoria Viviane Pereira Gerente Pedagógica
do Verso. É colaborador especial da Enciclopédia Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
de Literatura Brasileira (2001), dirigida por Afrânio Joel Bruno Designer Educacional
Coutinho e J. Galante de Sousa. É autor de mais de CURSO LITERATURA CEARENSE
vinte obras, sendo a maioria de ensaios, como o Raymundo Netto Coordenador Geral,
referencial Literatura Cearense, A Padaria Espiritual Editorial e Estabelecimento de Texto
e o Simbolismo, Aspectos da Literatura Cearense, Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Dez Ensaios da Literatura Cearense, Novos Ensaios
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
da Literatura Cearense e Breve História da Padaria Miqueias Mesquita Diagramador
Espiritual. É membro da Cadeira nº 1 da Academia Carlus Campos Ilustrador
Cearense de Letras, cujo patrono é Adolfo Luísa Duavy Produtora
Caminha, do qual é biógrafo. ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
ISBN: 978-65-86094-17-6 (Fascículo 6)

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO.
Na construção do seu trabalho, aborda várias
Todos os direitos desta edição reservados à:
técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, Fundação Demócrito Rocha
aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
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Realização
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CURSO
l c
7 O Canto Novo
de uma Raça
Pré-Modernismo e Modernismo
Raymundo Netto

i e
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u e
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a

Realização
Passando a régua no século XIX, no
Brasil, Canções românticas (1878), de Al-

1.
berto de Oliveira – apesar do título –,
marca o início do Parnasianismo, que
recebeu adesões, como Olavo Bilac, Rai-
mundo Correia, Alberto de Oliveira e Vi-
DO RIGOR cente de Carvalho, embora, numa atitude
irreverente, diz Bilac, que viria a ser o seu
DA DISCIPLINA expoente maior no país: “No Brasil nunca
houve Parnasianismo. O que há entre nós
ÀS VAIAS atualmente é a febre da Perfeição, a bata-
ualquer aluno do en- lha sagrada da Forma, em serviço da Ideia
sino médio em Litera- e da Concepção. [...] Nenhum dos poetas
tura já ouviu falar em da nova geração quer fazer do verso um
Parnasianismo. Possí- instrumento sem vida; nenhum deles quer
vel saber também que transformar a Musa num belo cadáver. O
dois autores franceses, que eles não querem é que a Vênus grega
Théophile Gautier e seja coxa e desajeitada e faça caretas em
Leconte de Lisle, lan- vez de sorrir” (CASTELLO, 1999, v.1, p. 299)
çaram O Parnaso con- O certo é que a estética parnasiana, mes-
temporâneo (1866), uma mo sem adotar a objetividade da escola fran-
antologia de poemas na cesa – o “amordaçamento das emoções”,
qual predominava uma como se refere Ivan Junqueira –, abraçou o
reação antirromântica, ou seja, que procura- cuidado com a criação dos versos perfeitos
va resgatar a visão de arte como sinônimo (gramática e métrica), a manutenção do rit-
de beleza formal alcançada por meio de mo, a escolha intransigente das rimas e o
trabalho cuidadoso e detalhista – comba- olhar voltado para a antiguidade clássica.
tiam o sentimentalismo excessivo dos poe- O Simbolismo, levando em considera-
tas românticos que, criam, haviam abando- ção as obras de Cruz e Sousa de 1893 como
nado os rigores formais na sua composição, marco da escola no país, chegaria apenas
comprometendo a sua qualidade artística. quinze anos depois, com fria recepção do
Alguns desses poetas do “Parnaso” europeu público, ao contrário de sua antecessora.
se destacariam, mais tarde, no Simbolismo. É nesse ponto que Sânzio de Azevedo
nos chama a atenção para uma singula-
Parnaso ridade na historiografia da Literatura Cea-
SABATINA
Montanha grega, rense. No Ceará, o Simbolismo nos chega
morada de Apolo
antes do Parnasianismo, pois como vi-
e das musas
inspiradoras mos no módulo anterior, ele viria no vapor,
dos artistas. Théophile Gautier, além de poeta diretamente de Portugal, com influência de
era um excelente contista, seguidor Antônio Nobre, e não de Cruz e Sousa ou de
de E.T.A Hoffmann. Sua profana “A outros anteriores a ele no Brasil.
morte amorosa” é um dos contos Aqui, ainda no século XIX, quando o
fantásticos mais encontrados em Simbolismo já figurava em, pelo menos, Lí-
antologias do gênero. Gautier vio Barreto (Dolentes) e Lopes Filho (Phan-
afirmava que “a arte não existe para tos), Álvaro Martins publica, em 1903, o
a humanidade, para a sociedade ou soneto “A aranha”, “manifestação verdadei-
para a moral, mas para si mesma”. ramente inaugural da arte marmórea entre

98 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA MALACA
Sugestões de leitura: Bilac vê estrelas
CHETAS
(Companha das Letras, 2000), romance
Emílio de Menezes fez publicar, na
de Ruy Castro, misto de ficção e
revista Fon-Fon (RJ), um soneto de
realidade; Roteiro da poesia brasileira:
Júlio Maciel (“Aeternum Vale”), que foi
parnasianismo (Global, 2006) e Alberto
estampado com destaque e em página
de Oliveira (série Essencial da ABL, 2011),
inteira, acompanhado de um bilhete
ambos de Sânzio de Azevedo.”
elogioso do consagrado parnasiano,
que afirmava, a respeito do jovem
poeta cearense: ‘Júlio Maciel, dos
CONFEITOS poetas novos, é, sem contestação,
um dos melhores pela emoção, pelo
contorno do verso e pela justa, sóbria e
Muitos autores apontam Fanfarras
precisa feição de sua vernaculidade.’”
(1882), de Teófilo Dias, como a estreia
(AZEVEDO, 1976, 316)
do Parnasianismo brasileiro. Contudo,
Péricles Eugênio da Silva Ramos,
em sua Poesia simbolista, caracteriza
a obra como precursora não do
Parnasianismo, mas do Simbolismo,
critério também aceito por Sânzio de
Azevedo em sua historiografia.

nós [cearenses]” (AZEVEDO, 1976, p.287).


Entretanto, mesmo com tal aracnídea poe-
sia, de “parnasiano puro” Martins nos deixa-
ria somente este soneto. Entre alguns nomes
do Parnasianismo cearense: Antônio Sales
(especialmente em Poesias e Minha terra),
o pernambucano Alf. Castro (considerado
por Azevedo o iniciador do Parnasianis-
mo no Ceará, principalmente no inédito
Ocaso em fogo), Júlio Maciel (que Azevedo
assim enquadra: “Sua feição definitiva é a de
poeta parnasiano, com notas simbolistas,
mas compôs versos à moda futurista, sob o
pseudônimo de ‘Lúcio Várzea’”), Cruz Filho
(parnasiano, mas com matizes românticos
e simbolistas), Carlos Gondim, Otacílio de
Azevedo (seu poema “Carro de bois” seria
premiado em concurso lançado pela revista
Ilustração Brasileira (RJ) e mereceu desta-
que na História da Literatura Cearense, de
Dolor Barreira) e Mário Linhares.

CURSO literatura cearense 99


A seguir, dois exemplos de sonetos
parnasianos:
Há uma ressurreição no Sertão rudo.
Uma ressurreição! – Verde e risonho MALACA
Aos pinchos, pela sombra, indolente e moroso,
É o vale, verde a serra, é verde tudo
Em que os meus olhos, deslumbrado, ponho. CHETAS
O batráquio estacou do fundo poço à borda,
Bruto alcantil de aspecto mau, desnudo
E um momento quedou, como quem se recorda, Álvaro Martins, o “Alvarins” do Liberta-
Surpreso ante a visão do poço silencioso... Esvão de terra, ríspido e tristonho,
– Agora têm branduras de veludo, dor, é um dos fundadores da Padaria Es-
Ao fundo, onde do céu, que de nuvens se borda, Verdes agora os vejo, como em sonho! piritual e, saindo da primeira, do Centro
Reflexa a imagem vê – pelo céu luminoso Literário. Chegou a publicar no Rio de
Vê da Lua pairar o áureo disco radioso: Em cisma, a sós, contemplo verde liana, janeiro, ao lado de José do Patrocínio.
E o disforme animal de júbilo transborda... Verde, tão verde, com carícia humana
As ruínas afagando a uma tapera.
Sua obra de estreia é Os pescadores da
Um momento quedou, mudo e perplexo. Ao centro Taíba (1895), já no Centro Literário.
A tentá-lo, a ilusão do astro de ouro flutua, E na contemplação que me não cansa,
E o monstro eis que se arroja, a súbitas, lá dentro... Sinto quão doce és tu, cor da Esperança,

E a água convulsionou-se, em círculos ondeantes,


– Até nos olhos de quem nada espera...
Júlio Maciel, “Verde”. BOLACHINHAS
Num naufrágio de luz, em que perece a Lua,
Dissolvida em rubis, topázios e diamantes.
A importância de Alf. Castro reside
Cruz Filho, “A ilusão do sapo”. não somente na qualidade de sua po-
esia, mas também e principalmente no
fato de situar-se no mais genuíno e
puro Parnasianismo, no sentido fran-
cês do termo, o que é raro na literatura
nacional. (AZEVEDO, 1976, 301)

100 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


2.
PRÉ-MODERNISMO
BOLACHINHAS
Leão de Vasconcelos, em 1933,
é apresentado em La Revista
Americana de Buenos Aires como
E A LINHA DO EQUADOR “o renovador do lirismo brasileiro”
e, em 1935, foi eleito, segundo a
Eu sei que tudo é como o fumo leve: Alfredo Bosi, a respeito da questão, em seu Revista Brasileira nº 8, “o maior poeta
Foge: mas, porque a vida seja breve, Pré-Modernismo, admite que o termo pode moço do Brasil”. Seus poemas são
Há sempre um dia mais para quem ama. ser entendido em 2 sentidos que nem sempre traduzidos em diversos países.
Mário da Silveira, em Coroa de rosas e de coincidem: (1) dando ao prefixo “pré” uma
espinhos (1921). conotação meramente temporal de ante-
rioridade; e (2) dando ao mesmo elemento
um sentido forte de precedência temática e
BOLACHINHAS
uita gente discute o que formal em relação à literatura modernista. O termo “Pré-Modernismo” foi criado
afinal é o Pré-Moder- Assim, no Brasil, Euclides da Cunha, pelo crítico Alceu Amoroso Lima
nismo. Eu mesmo sem- Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça (o Tristão de Ataíde), em Contribuição
pre tive a impressão de Aranha, o inclassificável e enigmático fe- à história do Modernismo (1939).
ser “pré” ou “pós”, assim nômeno Augusto dos Anjos, entre outros,
como “para”, algo indefi- foram devidamente enquadrados como
nível, indeterminado, ou “pré-modernistas”. Provavelmente entre 1920 e 1921, es-
mesmo de menor impor- Sânzio de Azevedo, ao referir-se a esta creveu o poema “Laus Purissimae”, “canto-
tância. Ou seja, o que vem “fase de transição” nos apresenta dois re- -novo dedicado ao Mediterrâneo, ‘o grande
“antes” (pré), depois (pós) presentantes: Mário da Silveira (1899- mar sempre novo’, produção que seria uma
ou “ao lado” (para) de. É como a linha imagi- 1921) e Leão de Vasconcelos (1898-1965). antecipação de Raul de Leoni” (ALENCAR,
nária do Equador: concretamente não exis- Deixemos o Leão sossegado e vamos 1984, p.30), composto não somente de ver-
te, mas todo mundo sabe onde fica. fazer um breve comentário sobre o “eter- sos polimétricos, mas de versos livres, ali-
Devido a grandes mudanças sociais da namente jovem” Mário. Pelo que se sabe, nhando-se aos pressupostos modernistas,
época, o foco e os interesses da produção Mário da Silveira, de origem humilde, tinha razão única pela qual figura neste espaço.
literária eram diversos e, por vezes, diver- um excelente cabedal cultural e erudito, Já em Fortaleza, em 1921, em praça públi-
gentes, o que é percebido nas característi- devido à leitura intensa dos clássicos. Pes- ca, é covardemente assassinado. O motivo:
cas estéticas das publicações no período. simista em sua condição de poeta e huma- passional! Amou além da cota. Nas vestes,
E justamente por não existir um critério no, em 1916, publicou No silêncio da noite “não havia única moeda, mas um soneto...”
estético que reúna e defina a produção (fragmentos), dedicado a Carlos Gondim história tantas vezes repetida. A obra Coroa
denominada pré-modernista, nem mes- e Luiz de Castro, que trazia a epígrafe de de rosas e de espinhos seria então publicada
mo que a classifique como escola literária Álvares de Azevedo: “O passado é um tú- por amigos, em tiragem de 500 exemplares,
(reunia realistas, parnasianos, simbolistas mulo”. Em 1919, realizou a conferência “A prefaciada por Antônio Sales.
e algumas antecipações modernistas), al- eterna emotividade helênica”, na Casa de Azevedo, em análise da produção de Sil-
guns autores definem esse “período de Juvenal Galeno – na época, ainda “Salão”. veira, afirma que “como a poesia de Raul de
transição” baseados em um princípio cro- Em breve passagem no Rio de Janeiro, atuou Leoni, a sua é ao mesmo tempo clássica e
nológico. Daí, são consideradas obras pré- como secretário de João do Rio n’A Pátria, renovadora” e “[...] o poeta já começava a li-
-modernistas, aquelas que nos chegaram cultivando amizade com Raul de Leoni (au- bertar-se não somente do metro regular, mas
depois de 1902, data de publicação de Os tor de Luz mediterrânea, de 1921, cuja anto- também do poema polimétrico, por muitos
sertões, de Euclides da Cunha, até 1922, logia de poemas – pela Global/2002 – é pre- erroneamente chamado de poema em verso
ano da Semana de Arte Moderna, marco faciada e organizada pelo cearense Pedro livre. ‘Laus Purissimae’ [...] em seu prenúncio
do Modernismo brasileiro. Lyra) e Ronald de Carvalho. de Modernismo, pende muito mais para

CURSO literatura cearense 101


Polimétricos

BOLACHINHAS Formado por


versos de
várias medidas:
heptassílabos,
Coroa de Rosas e de Espinhos só teria octossílabos,
uma segunda edição quase 90 anos alexandrinos etc.
depois, sob a coordenação do autor
deste fascículo, na época, na Secult/CE. Lastro
Base sólida
que legitima ou
Simbolismo do que para outra qualquer es- autoriza alguma
coisa; fundamento.
tética” (AZEVEDO, 1976, p.369-370).
Talvez a juventude eloquente – morreu
aos 21 anos –, o linguajar e o conhecimen-
to clássico dessem um charme especial
ao rapaz que, ao ser convidado para uma
palestra do Grêmio Literário Paula Ney,
recusou-se, justificando a nocividade
desses grêmios literários, pois que deles
surgiam poetas, comprovando o estado
de sua própria maldição.
Embora a estrutura (forma) do referido Física, a psicanálise, os conflitos entre paí-
poema tenda à renovadora, a temática e os ses, tudo isso e algo mais gerava um turbi-
motivos estão bem distantes do que viria a lhão de novas ideias e uma grande agitação,
ser o lastro dos modernistas puros, diga- especialmente dos grupos denominados
mos assim, nem daqueles do “Sul” nem do vanguardas que, de uma forma ou de ou-
“Norte”, como veremos a seguir. tra, criavam novas referências, renovando o
olhar sobre as linguagens artísticas, muitas
vezes de forma agressiva, desafiadora e/ou

3.
iconoclasta. Ser vanguarda seria antecipar
novos caminhos, prenunciar bases e crité-
rios estéticos para este mundo “em transfor-
mação”. Daí, é nesse contexto que surgiriam
os europeus Futurismo, Dadaísmo, Cubismo,
AVANT-GARDE Expressionismo, Surrealismo e seus respecti-
vos e chocantes manifestos.
MODERNISTA Para resumir o que nos interessa: “A prin-
assagem de séculos. Os no- cipal herança das vanguardas europeias
vos tempos assistiam ao sur- para a Literatura Brasileira [...] é o impulso
gimento de um cenário artísti- de (1) destruir os modelos arcaicos, (2)
co dinâmico, criativo e diverso desafiar o gosto estabelecido e (3) propor
– para alguns, assustador e de um olhar inovador ao mundo” (ABAURRE;
extremo mau-gosto. O avanço PONTARA, 2005, p.504), ou seja, ruptura e
tecnológico (a “Era da Eletrici- transformação seriam as palavras de or-
dade”, o cinema, o telefone, o dem para a fase heroica – como dizia Mário
telégrafo sem fio, o automó- de Andrade – da primeira geração moder-
vel, o avião...), a revolução na nista, que é o objeto deste módulo.

102 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


4.
MODERNISMO
MALACA
CHETAS
Edigar de Alencar (1901-1993), cultor
de vasta obra em diversos gêneros,
NA PENUMBRA desde adolescente frequentou grêmios
stávamos cansados dos parnasia- artísticos e literários e escrevia para
nos brilhantes e bem arrumados, periódicos como A Jandaia, Fênix e
dos versos esculturais e lantejou- Fortaleza. Em 1925, lançou a revista
lantes, de poesia eloquente, cheia literária Fanfarra (propriedade de
de estardalhaço, de cores e luzes. Jorge C. Garcia e Jeová Rosa), que teria
[...] O governo Serpa [Justinia- um projeto gráfico avançado para os
no de] estimulava as atividades poucos recursos que possuía. Em 1926,
mentais, inclusive fazendo reviver embarcou para o Rio de Janeiro, onde
a velha Academia Cearense, por residiria até o fim de sua vida.
tantos anos silente. A fundação de
grêmios literários; as rodinhas de livraria e
as reuniões vesperais no Café Riché (já nos Pregões de vendedores, crepúsculos enevo-
seus últimos meses); as tertúlias improvisa- ados pela neblina. Estaçõezinhas modestas
das do Art-Noveau fronteiro [ambos, frente a de subúrbios. Portões fechados a cadeado,
frente numa das esquinas da praça do Fer- parques desertos, arrabaldes ermos. Elegias
reira]; as perspectivas das festas e comemo- e baladas, mas tudo bem do terra a terra,
rações do Primeiro Centenário da Indepen- do cotidiano humilde de São Paulo, sem
dência, tudo isso contribuía para o clima de imagens atrevidas, sem rutilâncias e sem
efervescência mental, de agitação intelec- delírios. Tudo isso, pela força contrastan-
tual. Havia, na verdade, vibração e até mes- te, comovia a gente moça da Terra do Sol.”
mo alegria naquela quadra ridente e buli- (ALENCAR, 1984, p. 30-31)
çosa da capital cearense. Processava-se um A tela acima, pintada por Edigar de
surto de renovação na vida da cidade com Alencar, sobrinho do poeta, pintor e modi-
pouco mais de 70 mil habitantes. [...] Foi nheiro Raimundo Ramos Filho (1871-1916),
nesse ambiente de calor e exaltação que o o “Ramos Cotoco”, nos mostra uma Fortale-
livro delicado e delicioso de Ribeiro Couto za Belle Époque (1860-1930) – momento de
[refere-se a O jardim das confidências, sua aformoseamento da cidade, do deslumbre
obra de estreia, em 1921] aportou à capital com a sensação cinematográfica de pro-
cearense, acendendo entusiasmos na moci- gresso provinciano – que antecede à Sema-
dade. [...] A temática do poeta santista era na de Arte Moderna de 1922.
outra novidade. Não mais fidalgas e castelãs No mesmo texto em que Edigar expõe o
e sim raparigas doentes de bairros pobres fascínio da mocidade cearense pela poéti-
transformadas pelo poeta em princesinhas ca, denominada penumbrista, de Ribei-
sem coroa. Estudantes enfermos. Lâmpa- ro Couto – que para variar teria entre suas
das morrentes. Alcovas sombrias, quase obras mais conhecidas o romance Cabocla,
solitárias, tresandando a tristeza e remédio. após ser novela de TV –, diz que ela impac-

CURSO literatura cearense 103


SABATINA
A coletânea Os novos do Ceará no
Primeiro Centenário da Independência,
organizada pelo jornalista Aldo Prado,
é a tácita (ou não) manifestação
de protesto de uma nova geração
deixada de fora da coletânea A poesia
cearense no Centenário, organizada
por Sales Campos.

taria alguns jovens poetas e intelectuais dos


meios literários e jornalísticos, membros de
agremiações e comerciários. Entre os poe-
tas, Jáder de Carvalho, Leão de Vascon-
celos e o próprio Edigar de Alencar que,
em 1922, nas coletâneas A poesia cearense
no Centenário e em Os novos do Ceará no
Primeiro Centenário da Independência, pu-
blicariam “manifestações penumbristas”.
E o que seria esse tal penumbrismo,
que não era, sabemos, uma escola literária?
O próprio Couto, em 1957, em carta a Rodri-
go Octávio Filho, diria:
“um certo jeito, um tom, um clima de ex-
pressão poética [...] a incorporação da MALACA
vida vivida, a rua, os quintais, o quarto
do estudante Batista, as pombas voando
CHETAS
quando passa o trem do subúrbio, a mu-
lher do bar (Milonguita), o amigo que em No Ceará desse período, entre os
segredo ama a irmã do amigo e na cara do maiores opositores do penumbrismo
outro revê a amada, o pudor das aspira- e do futurismo, Antônio Sales, o
ções obscuras, a mãe fatigada que espera
o filho boêmio altas horas da noite, o ru-
mesmo da Padaria Espiritual, que
mor de passos na rua deserta, enfim a vida publicaria no Correio do Ceará uma
de toda gente, a dignidade do cotidiano série de poemetos irônicos e críticas
autêntico, natural, humano, sem nenhu- sob o pseudônimo “Artúnio Vales”,
ma ênfase e nenhuma oratória.” o poeta Cruz Filho, Sales Campos,
Referia-se, ao final, à sua oposição ao Leonardo Mota, Antônio Furtado e
Parnasianismo. Elias Malmann, entre outros. Edigar
Com a criação da revista Fanfarra, de For- de Alencar, que escrevia para A
taleza, em 1925, Edigar usaria o veículo para Jandaia, respondia as críticas dos
promover também os versos de influência ri- desafetos com outras, sob a máscara
beirocoutiana, assim como poesias “à feição dos pseudônimos “Zefo Turista” e
de Guilherme de Almeida”, referindo-se aqui “Melpiche da Noite”.
ao livro Raça, do poeta, publicado em 1925.

104 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Passada a fase de alvoroço, provocado pela
Semana de Arte Moderna, começou-se a
formar uma lenta consciência do Movi-
mento. O impacto de ideias de vanguarda
lançou os intelectuais em posições novas.
Consequentemente, verificou-se, em vá-
rios setores, um abandono gradativo dos
princípios, que sujeitavam letras e artes aos
moldes formais da época. Iniciou-se um ci-
clo diferente para a conquista da expressão
própria, em ruptura com o conformismo
acadêmico. A evolução era inevitável. Com
ela, desenvolveram-se formas embrionárias
de um Renascimento brasileiro. Um espíri-
to jovem alastrou-se, com entusiasmo, por
vários recantos do país, sob o impulso de
ritmos construtivos. Foi um ponto de partida

5.
para escritores e artistas irem se buscando,
aos poucos, com uma nova compreensão
do momento. Embora não tivesse exercido
uma influência imediata, o Movimento for-
mou, gradualmente, e com um alcance cole-
E O MODERNISMO tivo, um conjunto de ideias básicas, coeren-
tes com a realidade brasileira” (BOPP, 2012).
FOI? NÃO FOI? Observamos que esse movimento inspi-
ão nos deteremos no que rado pelas ideias europeias e que queria, 100
vastamente encontra- anos depois, proclamar a sua “independên-
mos nos compêndios de cia” dos valores estrangeiros – aparente con-
Literatura Brasileira, que tradição – faria uma forte campanha, espe-
afirmam ser esta primei- cialmente por meio de artigos em jornais
ra geração, a do “espírito (tinham bastante acesso a eles), lançamen-
destruidor” do Modernis- to de revistas e manifestos – entre eles,
mo, a eclodir nos salões em 1928, o “Manifesto da Antropofagia”, que
do Teatro Municipal de mais impactaria no Ceará –, além de excur-
São Paulo, apoiada con- sões de militantes, como Raul Bopp e Gui-
fortável, econômica e so- lherme de Almeida, aos demais estados.
cialmente pela elite paulista: a Semana de Guilherme de Almeida (1890-1969), um
Arte Moderna de 1922. dos “semanistas” e maiores divulgadores do
Mas, vá lá, onde é que nós entramos nis- Modernismo, e que viria a ser, anos depois, o
so? Pois bem, o escritor gaúcho Raul Bopp primeiro modernista a ingressar na Aca-
(1898-1984), que jovem já havia fundado demia Brasileira de letras, em 1925, percor-
periódicos no Rio Grande do Sul, não esta- reu algumas capitais brasileiras, como Porto
va em São Paulo durante a Semana – que Alegre, Recife e Fortaleza, em conferência,
ele denominava “reação modernista” ou a princípio, a convite do jornalista, escritor
“insurreição literária de 22” –, mas no Rio e advogado pernambucano Joaquim Ino-
de Janeiro, o que fez com que acompa- josa, principal divulgador do Modernismo
nhasse os seus acontecimentos a distância, – dizia-se “Futurismo” – nas terras nordes-
assim como também nos seus reflexos em tinas. Inojosa conta que após o seu primei-
outros estados brasileiros. Conta-nos: ro encontro com os “semanistas”, recebeu

CURSO literatura cearense 105


“luvas para desafio: livros e exemplares da registrou o poeta Filgueiras Lima), era edita-
Klaxon – a senha da renovação” (INOJOSA, BOLACHINHAS do, pela Tipografia Urânia, a mesma que iria
editar, em 1930, O quinze, de Rachel de Quei-
1969, P.44). Neroaldo Pontes de Azevedo diz
roz, O Canto novo da raça, um livrinho mais
que após esse encontro “seu comportamen- horizontal do que vertical, sem numeração
Mesmo sendo considerada marco do
to é o de um convertido, logo ungido após- nas suas 40 páginas. Tinha nada menos do
modernismo cearense, a segunda
tolo, predestinado a pregar entre os ‘gentios’ que quatro autores: Jáder de Carvalho,
edição de O canto novo da raça só seria Sidney Netto, Franklin Nascimento e Mo-
a mensagem do ‘credo novo’” (AZEVEDO,
lançada 83 anos depois, organizada zart Firmeza (Pereira Júnior). Na capa, a
1996, p.42). Havia publicado em outubro de
por Raymundo Netto e publicada pela dedicatória, não a Guilherme de Almeida, o
1922, em A Tarde, o artigo “Que é Futurismo”,
Secretaria da Cultura do Estado do arauto paulista da nova estética, mas a um
iniciando a grande peleja “passadistas versus poeta do Rio de Janeiro: ‘Homenagem a Ro-
Ceará, gestão do prof. Auto Filho, com
futuristas”, frequente até 1924. Como veículo nald de Carvalho’” (AZEVEDO, 2012).
apresentação de Sânzio de Azevedo,
de divulgação da nova corrente, utilizava a Baseado em outra afirmativa de Azevedo
ilustrações de Audifax Rios e acréscimo
revista Mauriceia, por ele dirigida, conflitando – “ o Modernismo na terra de Alencar, apesar
da “Biografia Perdida” de Franklin
com o Centro Regionalista do Nordeste e de precedido por notas de surdina penum-
Nascimento, por Raymundo Netto.
os seus defensores. Mais tarde, em 1924, pu- brista, vai explodir mesmo é em clangores de
blicaria também a plaquete A Arte Moderna, forte telurismo” – sendo Jáder de Carva-
que, acredita Neroaldo, seria a responsável restringir-se. Por esse modo o Nordeste
lho o mais telúrico dos autores da obra.
em divulgar o modernismo no Nordeste, absorvia o movimento moderno no que ele
Em “Modernismo”, um de seus poemas
além de propagar o que se passava no Norte- tinha de mais sério. Queríamos ser do Brasil
do livro, um exemplo de “poema-piada”:
-Nordeste para os demais estados brasileiros. sendo cada vez mais da Paraíba, do Reci-
Em Recife, em 1925, em sua conferência, fe, de Alagoas, do Ceará” (REGO, 1957, p.50). Teu cabelo à Rodolfo,
Almeida se contrapunha ao regionalismo, Percebemos que esses embates entre as tuas olheiras românticas,
realidades do Sul-Sudeste e do Norte-Nordes- teus quadris inquietos e atordoadores
provocando o seu maior defensor, o escri-
teus seios bico-de-pássaro
tor, jornalista, ensaísta e sociólogo Gilberto te, além da temática regionalista, não é de hoje. – dão-me a ideia cabal deste século ultra-
Freyre (1900-1987), que publicaria, em re- O fato é que Guilherme de Almeida veio -chique.
presália ao “Almeida crítico” – pois o “Almei- a Fortaleza e foi acolhido pelo jornalista Gil-
berto Câmara em sua casa, na rua da Escadi- Ontem, quando deixavas o cinema.
da poeta” tinha seu valor –, no Diário de Per-
– o colo nu,
nambuco, o artigo “A Propósito de Guilherme nha, hoje Travessa Baturité, sede da Casa de
os braços nus,
de Almeida”, no qual dizia que o conceito Cultura Christiano Câmara, a mesma que a perna escandalosamente nua,
de tradição do poeta era o de um “tristonho abrigaria mais tarde o escultor paulista Hum- eu tive a súbita impressão de que,
peso-morto”, e que ele não distinguia “o re- berto Cozzo, responsável pelo monumento na bolsa de ouro a te pender da mão,
gionalismo à Jeca Tatu, caricaturesco e arre- de Centenário de José de Alencar (1929), que vinha, (de precavida que és!)
– o teu vestido.
vesado, do regionalismo que é apenas uma é, de acordo com o artista plástico Roberto
forma mais direta, mais sincera, mais prática, Galvão, “marco simbólico embrionário das (Jáder de Carvalho, 1927)
mais viva de ser brasileiro.” novas manifestações plásticas em Fortaleza”.
Também o paraibano José Lins do Proferiu sua palestra “A revelação do
Rego (1901-1957), que acreditava que o Brasil pela poesia moderna” no Theatro
bom romancista é aquele que consegue José de Alencar, publicada na íntegra pela
conferir universalidade à sua terra, e Ceará Illustrado, revista criada em 1924, sob
que combatia o ideário da Semana da Arte a direção do jornalista e poeta baiano De- Poema-Piada
Moderna, negando-a enquanto “expres- mócrito Rocha (1888-1943). Textos curtos que
são centralizadora de um movimento Sobre a influência dessa visita, diz Sân- desencadeiam efeitos
de âmbito nacional” (CHAGURI, 2008), zio de Azevedo: humorísticos por meio
de trocadilhos ou jogos
comenta que o principal objetivo do regio- Tenha ou não a pregação de Guilherme de verbais. Muito utilizado
nalismo nordestino era “transformar o chão Almeida repercutido na intelectualidade entre modernistas,
do Nordeste: de Pernambuco, num pedaço cearense, o certo é que dois anos depois, em especialmente por
1927 (e não 1928, como equivocadamente
de mundo. Era expandir-se ao invés de Oswald de Andrade.

106 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA Sidney Netto, embora tenha um papel
destacado no Modernismo cearense, seus MALACA
Guilherme de Almeida é um dos
poemas guardavam mais “traços românti-
cos e simbolistas”.
CHETAS
fundadores da revista Klaxon (também Franklin Nascimento, em sua produ-
ção, se localiza bem em sua época, citando (1) Jáder de Carvalho é um dos
dos anúncios da “Lacta”), criador do
o maxixe e o charleston, lutas de classe – era maiores poetas de sua geração e um
projeto gráfico de sua capa e da capa
admirador ferrenho de Luís Carlos Prestes dos nomes mais lembrados e estudados
da primeira edição de Pauliceia des-
– (“à noveau-riche”, “cantarolava a Interna- atualmente. Fundou jornais, publicou
vairada, de Mário de Andrade.
cional!”), os avanços tecnológicos e a ins- poemas, ensaios e romances; (2)
piração de um Manifesto Futurista – na sua Sidney Netto publicou ainda muitos
ligação com a velocidade e automóveis (“mil livros, mesmo quando imerso em sua
fios elétricos”,“com teus autos chispantes, boemia; (3) Franklin Nascimento,
senhoris, de mistura/com fordzinhos pernal- apesar de ter poemas publicados
tas”, “bombas de gasolina”, “antenas de tua em vários periódicos locais e até em
primeira estação radiográfica”, “à luz dessas outros estados, como a Revista de
minúsculas lâmpadas ½ watt”, “moléculas Antropofagia, após o casamento, em
de aço da machino-factura”, entre outros. 1933, afastou-se do meio literário; (4)
Sem dúvida, “Em louvor da princesa do ver- Mozart Firmeza publicaria ainda livros
de mar...” é a sua melhor contribuição à obra. de crônicas e poesia. No Rio, cursou
Mozart Firmeza (Pereira Júnior), um Escola de Belas-Artes. Mais tarde,
dos autores, tem uma particularidade: além atuaria em jornais como crítico de arte.
de escritor, era pintor – e irmão de pintor,
no caso, de Nilo Firmeza, o “Estrigas”. Escre-
via “Mozart Firmeza”; pintava o seu pseudô- BOLACHINHAS
nimo “Pereira Júnior”.
Sânzio de Azevedo detecta nos poemas Em 26 de abril de 1928, o jornal O
de Firmeza, além da preocupação social, a POVO anunciava: “Na vitrine da Casa
dicção mais próxima do penumbrismo. Almeida, acha-se em exposição uma
Como todos os bons modernistas da- original tela a óleo de Pereira Júnior,
quele período, ou mesmo em um futuro, em que o apreciado artista retrata o
seja no Ceará ou em qualquer outra parte nosso colega de imprensa Mozart
do país, percebemos uma pluralidade de Firmeza – que não é outro senão
orientações e mesmo de contradições, o próprio Pereira Junior. O referido
alguns com maior “pureza modernista” ou trabalho prima pelo exotismo com que
que ainda trariam notas neoparnasianas, foram lançadas as tintas em chocante
pós-simbolistas, em resumo, “passadistas”. disposição futurista, pouco conheci-
Bom mesmo e necessário para um estudo da em nossa capital” (GALVÃO, 2008).
crítico e reflexivo em literatura é mergulhar
na obra, nadar na onda desses versos que
engatinhavam naquela que nos chegava em O
canto novo da raça, que, como aponta Azeve-
do, “é o legítimo iniciador do Modernismo
no Ceará” e, assim, tornando-se, como obser-
va Assis Brasil, “um dos primeiros estados a
tomar conhecimento da Semana de Arte Mo-
derna de 22, deflagrada em São Paulo”.

CURSO literatura cearense 107


6. BOLACHINHAS
de Queluz”, e a inseriu em seu jornal, assim
como fez com o jovem Paulo Sarasate,
que viria a ser seu braço direito para tudo –
e futuramente, seu genro. Conta Rachel de Queiroz de seu primeiro
MARACAJÁ NÃO Daí, Sânzio de Azevedo nos dizer que
“Percorrendo-se as páginas d’O POVO de
encontro com o diretor literário d’O
Ceará: “Demócrito, que já era a esse
É PARA TODO 1928 e 1929 [os dois primeiros anos do pe-
riódico], veem-se desfilar os nomes dos
tempo o padrinho, o irmão mais
velho, o companheiro diário e o crítico
MUNDO, NÃO! mais destacados poetas [cearenses] do mo- condescendente de quase todos os
O modernismo que eu entendo é esse vimento na época: Mário de Andrade (do aprendizes de literatura e de jornalismo,
que nós fazemos: modernismo nacional, Norte), Filgueiras Lima, Edigar de Alencar, em Fortaleza – também me agregou
saturado de tudo quanto é nosso, original,
Heitor Marçal, Sidney Netto, Rachel de Quei- à sua comunidade de discípulos,
roz, Mozart Firmeza (Pereira Júnior), Franklin imediatamente após essa apresentação”.
sugestivo, impressionante... Querem saber?
Nascimento, Jáder de Carvalho, Martins
Se eu continuasse a dizer o que penso do
d’Alvarez, Silveira Filho, Lúcio Várzea (pseu-
modernismo não acabaria mais...
dônimo de Júlio Maciel) e tantos outros servirem de meio de divulgação da pro-
Demócrito Rocha, O POVO vanguardistas de então.” Entre esses nomes, dução literária e artística de seus colabo-
(13 de junho de 1929). havia outro, o de “Antônio Garrido”, na ver- radores. Elas demarcavam um espaço
dade o pseudônimo de Demócrito, que não privilegiado de sociabilidade entre os
m 7 de janeiro de 1928, o baiano assinava poesia com seu nome oficial. jovens renovadores da arte, legitimando
Demócrito Rocha, ex-diretor li- Ainda em 1928, em O POVO, a estreia a coautoralidade, o coletivo, facilitando o
terário d’O Ceará, após uma surra da seção “Modernistas e Passadistas”, para livre trânsito de suas ideias.
de policiais no centro da cidade, a não sarapantar ninguém, provavelmente Não é de estranhar que diante da efer-
mando do govenador que estava a exemplo de Inojosa – “Passadistas versus vescência cultural (usando um termo bem
bastante impressionado com a sin- Futuristas” – que existiu de 1922 a 1924. Na passadista), do interesse de tantos e da
ceridade do jornalista, decidiu fun- coluna, também modernistas de outros cen- agitação da Antropofagia – que em maio
dar o seu próprio jornal: O POVO. tros, como Guilherme de Almeida, Ascenso de 1928 havia lançado a sua revista, em “1ª
O periódico é hoje o mais antigo Ferreira (muito festejado no Ceará), Ronald dentição” –, Demócrito não viesse com o
em exercício no Ceará, sendo nele de Carvalho, Pagu, Álvaro Moreyra, Jorge de empreendimento de sua própria revista
encartados os fascículos de nosso “curso- Lima, Cassiano Ricardo, Jacó Pim Pim (pseu- modernista. E assim sairia de um forno
-movimento” Literatura Cearense. dônimo de Raul Bopp), Abguar Bastos, Mário (não de Padaria), em 7 de abril de 1929, um
Vamos agora explicar o porquê de o poeta de Andrade, Ribeiro Couto, entre outros. domingo, o suplemento literário Maracajá:
Filgueiras Lima afirmar ser esse jornalista “a Na obra O Modernismo na poesia cearen- folha modernista do Ceará, em referência ao
coluna mestra do Modernismo no Ceará”. se: primeiros tempos, Azevedo traz conside- felídeo encontrado com mais frequência na
Demócrito, como falamos anteriormen- rações sobre alguns autores que figuravam região Amazônica e cujo nome é originário
te, havia criado a Revista Illustrada, a mes- na coluna e destacava Heitor Marçal como da língua tupi. Na primeira página, a mar-
ma que o próprio editor distribuía pessoal- o mais comprometido com o Modernismo, ca produzida a partir do clichê em madeira
mente nas praças e cafés e que divulgou e “notadamente a vertente regionalista”. de umburana de juazeiro feito pelo artista
contribuiu na promoção da excursão de Nasciam e morriam várias revistas que R. Moreira. A sua redação ficaria a cargo de
Guilherme de Almeida em Fortaleza. Como propagavam a bandeira modernista – mes- Antônio Garrido (Demócrito), Paulo Sara-
jornalista atento e telegrafista, acompa- mo quando ainda traziam contribuições sate e Mário de Andrade (do Norte).
nhava os movimentos que aconteciam não de “cunho tradicional” –, como a Klaxon E é Sarasate que nos revela a origem do
somente nos estados do “Sul” do país, mas (1922-1923), Belém Nova (1923-1929), Es- título da revista: “Maracajá, cujo nome de-
nos vizinhos do Siará Grande. Era também tética (1924-1925), Terra Roxa e Outras Ter- sentranhei das matas nordestinas, com ple-
poeta, amava a literatura, um ser gregário, ras (1926), Verde (1927-1928), Festa (1927- no assentimento de Demócrito Rocha, para
criador do banco da Opinião Pública. 1928 – 1ª fase), A Revista (1925-1926)... Elas com ele batizar a publicação modernista do
Havia descoberto o talento de Rachel de papocavam de todos os cantos do país e Ceará. [...] Com a minha cooperação, a de
Queiroz, quando ainda adolescente “Rita tinham objetivos maiores do que apenas Mário de Andrade (do Norte) – inteligência

108 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


vivíssima, capaz de largos voos e toda sorte
de aventuras nos horizontes do pensamen-
abrangendo sobremaneira as demais ar-
tes. Haveria então um segundo movimento, SABATINA
to – Demócrito Rocha, instituindo Maraca- também na década de 1940, que coincidiria
já, teve o mérito de sacudir, através do ‘gato e, em nosso caso, até se emparelharia como Em 1921, enquanto víamos
bravio’, o ambiente literário local, impulsio- um “despertar das artes”. Mas esta é uma modernistas que divulgavam o
nando com maiores energias o movimento história CLÃdestina, que fica para o próximo Futurismo, por outro lado, os
que, em 1928, atingira o seu clímax no Rio módulo. Continuemos! regionalistas defendiam uma nova
e em São Paulo e já se refletia no país. [...] Rachel de Queiroz, uma das colabora- escrita, uma nova sensibilidade
Foi um marco notável, que os intelectuais doras da revista – que se lançaria ao mundo, estética – que não desconsiderava a
do Sul saudaram com entusiasmo, mas não posteriormente, como uma de nossas maio- tradição – com o olhar voltado para o
passou disso” (SARASATE, 1968). res romancistas –, relatou: “Destinava-se o nacional, tanto quanto para o regional.
E haveria algum modelo em especial, al- Maracajá a pregar o modernismo pelas terras
guma outra revista além das citadas que os nordestinas, e nele todos nós desferimos
influenciasse nessa decisão? Sim, pelo que voo [...] Sei que tivemos a glória insigne de
vimos, não pensar em publicar uma é nos ver lidos e comentados por alguns dos
que seria difícil, mas para baldear o core- grandes do Rio e São Paulo, para nós, então,
to, trazemos essa informação do nosso Má- as duas metades inacessíveis do Paraíso.”
rio de Andrade, que, em Cipó de Fogo, em
1931, publicaria sua carta a Teodoro Cabral,
explicando: “O nosso primeiro movimento,
com Maracajá, foi um avanço para a derru-
bada. Nós vivíamos, da Bahia ao Amazonas,
sem um surto de progresso mental, no ter-
reno literário. Na poesia, de um modo par-
ticular, santo Deus! Ainda se perpetravam
sonetos! Arco & Flexa, em São Salvador, foi,
se não me engano, a nossa principal su-
gestão. Quando nos veio Arco & Flexa, Ma-
racajá se fez. Este, o primeiro movimento”.
E por falar em Salvador, adiantamos
que, da mesma forma que lá aconteceu,
no Ceará o primeiro movimento modernis-
ta surgiu em torno da literatura local, não

SABATINA
A revista baiana Arco & Flexa teve
rápida duração (1928-1929). Seu
diretor era Pinto de Aguiar e a
redação era na casa do diretor.
As edições variavam entre 66 a 77
páginas. A escolha do título, claro,
afirmava um caráter de nacionalismo
brasileiro: o índio, sempre ele. Um
de seus maiores e mais articulados
colaboradores foi Carlos Chiacchio.
Não temos dúvida de que o espírito da Um dos periódicos nos quais mais per-
BOLACHINHAS turma da Maracajá seria o mesmo prati- cebemos esse movimento é o A Manhã (RJ).
cado pela Padaria Espiritual e, mais tarde, Inclusive é nele que encontramos a carta que
Raul Bopp seria o responsável pela pelo grupo CLÃ: apresentar a produção li- Antônio Sales – reconhecido articulador e
sugestão do título “Abaporu” (antropó- terária do Ceará para todo o Brasil e até “mestre-sala” da literatura cearense – envia
fago) à obra de Tarsila do Amaral e pelo ao exterior. Por vezes, até com os mesmos a Raul Bopp, pedindo para não ser mais in-
apelido “Pagu”, pelo qual se tornaria exageros ou utilizando o tom gracejador termediador dos recados entre os “antropo-
conhecida a jornalista Patrícia Galvão, dos “tempos heroicos”, como esse texto de fagistas paulistas” e os “canibais cearenses”,
a “musa dos modernistas”. Carlos “Garrido” em Maracajá nº 2: e que se entendessem diretamente com eles,
Drummond de Andrade dizia ser Cobra “cuja fera simbólica, o Maracajá, tem sua
O primeiro número de Maracajá foi espalha-
Norato (1931) “possivelmente o mais do por todo o globo e até por fora do referi-
toca na redação d’O POVO, à rua Barão do
brasileiro de todos os poemas brasilei- do asteroide. A esta hora, qualquer habitan- Rio Branco, 239. E abro os braços com o de-
ros, escritos em qualquer tempo.” te de Marte já estará fazendo antropofagia. sejo de abraçá-los, mas realmente para não
Vocês lá do Sul que escreveram sobre o ser engolido”. Esse mesmo texto seria publi-
gato selvagem do Nordeste, toquem nos cado no Diário de S. Paulo, quando acolhia a
ossos. Isso!
2ª dentição da Revista da Antropofagia.
Nós estamos ligados por um sentimento
único – o da voracidade. Sim, Raul Bopp, autor de Cobra Norato,
Juntemo-nos para comer tudo o que deva seria uma espécie de “embaixador do Mo-
ser comido no Brasil. dernismo de lá” por aqui, assim como em
Demócrito Rocha (assinando “Antônio Gar- outros estados. Ele mesmo explica a sua
rido”) Maracajá nº 2, em 20 de maio de 1929. atuação na época:

De fato, em nossas pesquisas, encontra- A minha participação, foi mais no sentido de


mos várias citações, artigos, notas sobre o divulgação da revista [da Antropofagia],
de estabelecer contatos, solicitar matérias,
lançamento da Maracajá cearense: O Globo colaborações, realizar um trabalho editorial.
(RJ), Correio Paulistano (SP), Diário Carioca A revista era uma espécie de cartão de visita
(RJ), Diário de S. Paulo (SP), Diário da Tarde para todo o intelectual do Brasil. Era uma coi-
(PR), Diário de Notícias (RS), Movimento Bra- sa nova, moderna, radical, ousada, diferente
sileiro (RJ), O Jornal (RJ), Revista da Antropo- do que se publicava na época. Nosso público
era muito restrito e contávamos ainda com
fagia (SP), entre outros.
problemas de distribuição. (BOPP, 2012)

Bopp enviaria uma carta para Heitor


Marçal sobre o “movimento renovador”,
anunciando: “O Maracajá foi um dia de festa
por aqui [Rio de Janeiro e São Paulo]. Man-
da coisas do Garrido, do Mário de lá, para
correr uma carreira com o daqui. Turf. E o
Franklin Nascimento? Mande prosa. Prosa

110 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


BOLACHINHAS Acreditem: a Maracajá, mesmo com todo
esse alvoroço, em um ano que a Bolsa de Va-
BIBLIOGRAFIA
lores “crackou”, resultando na crise econômi- ABAURRE, M.L.M; PONTARA, M. Literatura
Brasileira: tempos, leitores e leituras.
Em 17 de agosto de 1929, O POVO ca mundial, e sendo o papel jornal calibrado São Paulo: Moderna, 2006.
anunciava uma edição especial de pelo dólar, “guardou as garras” ainda na se-
ALENCAR, Edigar de. Variações em tom
Maracajá. Nessa edição, os modernistas gunda edição, de 26 de maio de 1929. menor: letras cearenses. Fortaleza,
escreveriam poemas em homenagem às Provavelmente inconformados com esse Edições UFC-Proed, 1984.
misses eleitas no concurso do Gazeta de fim, alguns dos colaboradores da Maracajá AZEVEDO, Sânzio de. Aspectos da
Notícias. Além dos poemas, a edição se- decidiriam resistir criando um novo veículo: Literatura Cearense. Fortaleza: Edições
ria enriquecida por clichês com imagens O Cipó de Fogo, lançado independente- UFC-Proed, 1982.
das senhorinhas participantes do torneio mente de qualquer jornal, em 27 de setem- AZEVEDO, Sânzio de. Literatura
Cearense. Fortaleza: ACL, 1976.
de beleza. A 3ª edição da Maracajá não bro de 1931, com direção “por enquanto e
saiu, mas a ideia de Mário de Andrade se para efeitos gerais” de Mário de Andrade AZEVEDO, Sânzio de. O Modernismo na
Poesia Cearense: primeiros tempos. 2ª ed.
concretizou em outro veículo. – assinando sem o habitual (do Norte) – e Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2012.
anunciando: “Cipó de Fogo circula em todo
AZEVEDO, Sânzio de. Roteiro da poesia
mundo civilizado, consequentemente será brasileira: parnasianismo. São Paulo:
irreverente, Pau. Isso agora é uma espécie pouco lido no Ceará”. Global, 2006.
de termidor antropofágico. Pau em tudo, na O periódico, cuja linha de frente trazia, BOPP, Raul. Movimentos modernistas
alta burguesia das letras. [...] A gente aqui além de Mário, João Jacques e Heitor Mar- no Brasil (1922-1928). Rio de Janeiro:
não conhece nada do Norte.” (Maracajá nº 2) çal, e que garantia ter a colaboração de to- José Olympio, 2012.
E assim, Bopp, que assinaria em algu- dos os modernistas cearenses, sem exceção, BOPP, Raul. Vida e morte da
mas revistas sob pseudônimo “Jacó Pim só chegou a ter o primeiro número, pro- Antropofagia. 2ª ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2012.
Pim”, entre todos os modernistas, foi o que vavelmente por “caquexia pecuniária”, como
CARVALHO, J; SIDNEY NETTO; FIRMEZA,
mais teve relações com os modernis- tantos até hoje. Mário, em alguns anos, seria
M; NASCIMENTO, F. O canto novo da
tas de cá, publicando inclusive no jornal O um dos maiores incentivadores da criação raça. Fortaleza: Secult/CE, 2010.
POVO (não necessariamente literatura) e em do movimento que resultaria no CLÃ. CASTELLO, José A. A Literatura
Maracajá, correspondendo-se com a reda- Brasileira: origens e unidades. São
ção por anos, mesmo quando fora do país, Paulo: Edusp, 1999.
além de angariar contribuições cearenses
e publicá-las na Revista da Antropofagia, e,
CONCLUSÃO CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O Recife
dos Anos 20: regionalismo, modernismo
possivelmente, entre outros periódicos. Isso, Você, caro(a) cursista, deve estar sentindo a e José Lins do Rego. In: 32º Encontro
falta de comentários sobre o conteúdo des- Anual da Anpocs, Caxambu, Minas
a distância, pois só esteve no Ceará em 2 Gerais, 2008.
momentos. O primeiro em 1921, quando ses dois periódicos, Maracajá e Cipó de Fogo.
COLARES, O. Lembrados e esquecidos IV:
não tinha contato com nenhum deles, e, ra- Curioso(a), quer saber quem colaborou nes- ensaios sobre literatura cearense. Fortaleza:
pidamente, em 22 de junho de 1931, ou seja, sas raras edições e o que escreveu, como es- Imprensa Universitária do Ceará, 1979.
dois anos após o fim da revista cearense, creveu... Não é verdade? Isso nos deixa mui- GALVÃO, Roberto. A Escola Invisível:
em almoço no restaurante Beira-Mar, “cerca- to felizes, mas o espaço é curto e mais feliz artes plásticas em Fortaleza (1928-1958).
do de bons amigos da turma de Maracajá”. ainda você ficará ao saber que poderá matar a Fortaleza: Quadricolor Editora, 2008.
Irônico é que, enquanto a Agência de No- sua curiosidade diretamente na FONTE. Sim, INOJOSA, Joaquim. O movimento
na Biblioteca Virtual do AVA, você poderá modernista em Pernambuco. Vol. 1. Rio
tícias do poeta cearense Américo Facó, para
de Janeiro: Gráfica Guanabara, 1969.
quem Raul Bopp trabalhava, era uma espécie lê-los e relê-los, analisá-los, do jeitinho que sa-
íram e com o mesmo impacto dos leitores dos REGO, José Lins do. Presença do
de central que reunia os intelectuais antropó- Nordeste na Literatura Brasileira. Rio
fagos, como Oswald de Andrade a proclamar a anos 29 e 31. Já pensou? Fica com a gente! de Janeiro: MEC, 1957.
sua revolução caraíba – “Tupi or not tupi thats “Negrada do Maracajá, [...] Vocês são uns SARASATE, Paulo. O Rio Jaguaribe é
is the question” –, no Ceará, era na redação de bichos! Publicar uma folha modernista uma Artéria Aberta. Fortaleza: Livraria
O POVO que nossos modernistas se vestiam nesse Ceará mole e bambo é coragem Freitas Bastos, 1968.
em cocares, se armavam de maracás e plane- como todos os diachos”. Edigar de Alen- SILVEIRA, Mário da. Coroa de rosas e de
javam mudar o mundo. Em especial: Paulo car, O POVO (20.5.1929). espinhos. Fortaleza: Secult/CE, 2010.
Sarasate e Mário de Andrade (do Norte).

CURSO literatura cearense 111


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Raymundo Netto Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É jornalista, escritor, editor e produtor cultural. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


Autor de obras literárias premiadas em diversos João Dummar Neto Presidente
gêneros. É cronista convidado do caderno André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
“Vida & Arte” do jornal O POVO desde 2007. Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Foi coeditor das revistas CAOS Portátil, 
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
Para Mamíferos e curador da Maracajá (2019). e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
Atuou como coordenador de Políticas do Livro
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
e de Acervos da Secult/CE, responsável pela curadoria Viviane Pereira Gerente Pedagógica
e edição das suas coleções (2008-2011) – compostas, Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
especialmente, por obras esgotadas ou inéditas Joel Bruno Designer Educacional
da Literatura Cearense –, curador da IX Bienal CURSO LITERATURA CEARENSE
Internacional do Livro do Ceará, redator e elaborador Raymundo Netto Coordenador Geral,
do Prêmio Literário para Autor(a) Cearense Editorial e Estabelecimento de Texto
e um dos coordenadores da I Feira do Livro do Ceará Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
em Cabo Verde. Coordena e executa diversos projetos
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
na área da educação e cultura e é gerente editorial Miqueias Mesquita Diagramador
e de projetos da Fundação Demócrito Rocha. Carlus Campos Ilustrador
Mantém o blog AlmanaCULTURA desde 2009. Luísa Duavy Produtora

ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)

ILUSTRADOR
ISBN: 978-65-86094-18-3 (Fascículo 7)

Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas
Todos os direitos desta edição reservados à:
e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes Fundação Demócrito Rocha
como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. fdr.org.br
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Realização
CURSO
l c
8 Literatura
e Artes Plásticas
Grupos Clã e Scap
Vera Lúcia Albuquerque de Moraes

i e e Anderson Sousa

t a
e r
r e
a n
t s
u e
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a

Realização
1.
NO MESMO
CALDEIRÃO
studante de letras, ouvia profes-
sores falarem sobre o “grupo CLÔ
e pensava: “Mas isso não é um
pleonasmo?”
Nessa época, já existia uma
revista para as publicações desse
grupo eclético, múltiplo e bem re-
presentativo da intelectualidade
cearense: a Revista Clã.
Poucos, entretanto, a conhe-
ciam. Com números escassos na biblioteca,
os próprios professores/autores não levavam
os exemplares para as salas de aula, nem fa-
lavam de seu conteúdo para os alunos.
Então, anos mais tarde, ao cursar o mes-
trado em Teoria da Literatura na Universi-
dade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), meu
orientador, Mário Camarinha da Silva, fez
com que eu mudasse meu projeto origi-
nal para estudar uma revista do moder-
nismo cearense, convencendo-me de que
eu estaria prestando uma contribuição mui-
to maior ao meu campo de estudos e ao Ce-
ará, desvendando aos leitores essa revista
de grande qualidade estética que precisava para falar de seus projetos artísticos e de-
de uma chance para vir à tona e projetar-se. fender seus pontos de vista a respeito de
E o que havia de especial em seu conteúdo? qualquer coisa. Não se limitavam à políti-
Voltamos a 1942, em plena Segunda ca ou a ideologias, mas, principalmente,
Grande Guerra Mundial. Muitos eram contrá- voltavam-se às artes. Embora jovens, eram
rios a festividades e celebrações, como con- pessoas reconhecidas nos meios acadêmi-
gressos de escritores, congressos da poesia, cos, teatrais, informativos, sociais, existin-
entre outros, pela situação dramática que o do grande amizade entre eles.
mundo estava passando naquele momento. Dito isso, como estivéssemos também
Contudo, no Ceará havia um grupo de pegando um ventinho sentados em banco de
jovens intelectuais representantes de vá- praça, vamos conhecer um pouco do vasto
rias áreas – literatura, teatro, cinema, artes território e legado dessa geração, não apenas
plásticas – que se reunia, frequentemente, de escritores, mas de artistas plásticos – ou
nos cafés da cidade, nos bancos de praça, ambos – em um Ceará há mais de 70 anos.
Vera Lúcia de Moraes

114 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


2.
CLAM OU CLÃ?
MALACA
CHETAS
Azevedo diz que, embora aparente
“CLA”, como sairia na experimental e ser uma agremiação longeva,
primeira Revista CLÃ, a de número “0”, de considerando o período de publicação
dezembro de 1946, significava “Clube de de sua revista, não consta registros
Literatura e Arte”, como queria Antônio que o “grupo” se reunisse, pelo
Girão Barroso, daí “CLA”, sem o til. Otacílio menos não enquanto grupo CLÃ,
Colares explica que, sobre a ideia original “apenas cada um se dizia membro
de Barroso, pensou-se em “Clube de daquele grêmio, que nunca chegou
Literatura e Arte Moderna”, ou seja, “CLAM”, oficialmente a se dissolver”.
ficando então “CLÔ, fato confirmado por
Mozart Soriano Aderaldo.
Raymundo Netto, em Centro:
BOLACHINHAS
um coração malamado.
Quando do surgimento do CLÃ e
durante a publicação de sua revista,
formação do CLÃ, segun- além de uma visita pessoalmente de
do Sânzio de Azevedo, é Orígenes Lessa (durante o I Congresso
interessante: “O grupo CLÃ Cearense de Escritores, em 1947),
se foi formando tão es- diversas personalidades escreveram
pontaneamente que seus artigos elogiando a Clã. Entre elas:
componentes não tinham Guilherme Figueiredo, Sérgio Milliet,
claramente consciência José Lins do Rego, Otto Maria
do grupo. Isso me parece Carpeaux e R. Magalhães Jr.
claro se folhearmos o livro
de Abdias Lima Falam os
intelectuais do Ceará, publicado em 1946
com entrevistas feitas de julho de 1944 a fe-
vereiro de 1945, onde se encontram depoi-
mentos de quatro membros do CLÃ (Braga
Montenegro, Joaquim Alves, Artur Eduardo
Benevides e Eduardo Campos) e não há a
menor referência ao grupo CLÔ.
São, entretanto, considerados sócios-
-fundadores do CLÃ, de acordo com o ar-
tigo 9º de seu estatuto: Aluízio Medeiros, An-
tônio Girão Barroso, Antônio Martins Filho,
Artur Eduardo Benevides, Braga Montenegro,
Eduardo Campos, Fran Martins, João Clíma-
co Bezerra, José Stênio Lopes, Lúcia Fernan-
des Martins, Milton Dias, Moreira Campos,
Mozart Soriano Aderaldo e Otacílio Colares.

CURSO literatura cearense 115


3.
ABRINDO
BOLACHINHAS
Sem dúvida, um dos motivos da
razoável longevidade da Clã se
deu pelo apoio recebido de seus
A REVISTA “patrocinadores”, entre eles: o
Instituto do Ceará (1 ao 14 e 20 e 21), a
Revista CLÃ, periódico que
Universidade Federal do Ceará (do 15
divulgou, reuniu e movimen-
ao 29, com exceção do 20, 21 e 28) e
tou as ideias da época, teve o
da Secretaria da Cultura e do Desporto
seu número ZERO compos-
do Ceará (nº 28), além de diversos
to e impresso pela Coope-
anunciantes ao longo de sua trajetória.
rativa Edições CLÃ Ltda.,
em caráter experimental,
em 1946, tendo como dire- como literário, mas cultural, como defende
tores os poetas Antônio Mozart Soriano Aderaldo, também do CLÃ.
Girão Barroso, Aluízio Medeiros e o ro- Eram revistas volumosas – com exceção
mancista João Clímaco Bezerra, e, em da número zero –, beirando 120 páginas,
1948, lançou, oficialmente, o seu primeiro embora algumas chegassem a quase 250.
número, desta vez, sob a direção perpétua Sua periodicidade foi semestral, anual e bi-
de Fran Martins e, como secretário, Aluízio mestral, dependendo da ajuda dos colabo-
Medeiros. O objetivo era se manter aberta radores (entidades culturais, sociais, comer-
à colaboração de escritores de talento que ciais etc). Por diversas vezes, houve grandes
não encontravam um veículo de propa- hiatos nessa periodicidade.
gação de suas ideias, de sua arte. Além Na década de 1980, contudo, surgiram
de literatura, cinema, teatro, música, três novos números, sendo o último, o nº
política (e não “partidarismo”, como 29, em 1988. Este número homenageava
diziam), entre outros, destinava-se a o cronista Milton Dias, falecido em 1983.
apresentar os pintores cearenses, Chamaram essa revista de “Milton não mor-
como Aldemir Martins, Antônio Bandeira, reu”, profetizando que, em breve, sairia o
Barbosa Leite, Zenon Barreto, Barrica e o 30° número da Clã, o que de fato, não acon-
maranhense Floriano Teixeira, o que carac- teceu. Ou seja, ao todo, foram 30 edições,
terizaria o movimento não simplesmente considerando a de número zero.

116 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Chamou-nos a atenção a repetição do
slogan, em todos os números, que repro- BOLACHINHAS SABATINA
duzia o objetivo da revista e sintetizava a
proposta primordial do grupo: CLÃ: revista Entre a Clã nº 0 e a Clã nº 1 houve O I Congresso de Poesia do Ceará
de cultura – e, na quarta capa dos números um jornalzinho literário Clã, que teve início em 1º de agosto de 1942, no
11 ao 25, CLÃ: uma revista do Ceará para o “apareceu, perdoem-nos desta vez Theatro José de Alencar, com o discurso
Brasil. Como podemos ver, o slogan retrata- o trocadilho, de maneira quase de abertura do poeta Filgueiras Lima,
va, fielmente, o pensamento de seus reda- clandestina”. Ambos, revista e representando os “modernistas de 28”,
tores e organizadores: exportar a cultura jornal, tiveram alguma repercussão, a “geração Maracajá” (a revista publica-
cearense aos outros estados do Brasil e, mas que morreram, “como tudo da em 1929). O autor do “Manifesto do
até mesmo, ao exterior. o que é bom tem morrido aqui no Congresso”, a ser lido por Eduardo Cam-
Na Clã n° 1, Fran Martins (1913-1996) de- Ceará”. (seção “Vento Sul, Vento pos, seria o veterano Mário Sobreira
clara: “De uma coisa, estávamos certos: não Norte...”, Clã nº 1, 1948) de Andrade (o Mário de Andrade do
tínhamos intenção nenhuma de criar um gru- Norte). Entretanto, período de guerra, o
po, como a Padaria Espiritual ou a chamada Congresso não pôde ser finalizado, pois,
Academia Francesa ou o Centro Literário. Não A partir do seu 3º número, a Clã manteve em 18 de agosto se deu uma grande
éramos na verdade criadores de movimento, representantes de diversos estados brasi- passeata realizada por estudantes do
éramos movimento, isto é, agíamos espon- leiros, como Amazonas (Aldo Moraes e Se- curso de Direito contra os países aliados
taneamente, inconformados, com ou sem bastião Norões), Pará (Haroldo Maranhão), do Eixo: Itália, Alemanha e Japão. A ma-
razão, rebeldes, mesmo sem uma causa apa- Maranhão (Bandeira Tribuzi), Pernambuco nifestação, a princípio pacífica, resultou
rente para a rebeldia, sobretudo libertos de (Mauro Mota), Bahia (Wilson Rocha), São num selvagem “quebra-quebra”, na qual
preconceitos, ideológicos ou literários: cada Paulo (Domingos Carvalho da Silva), Minas manifestantes exaltados incendiaram,
um trabalhando em seu ofício”. Gerais (Bueno de Rivera), Paraná (Dalton depredaram e mesmo saquearam os
A organização da revista era muito elo- Trevisan), Rio Grande do Norte (Veríssimo estabelecimentos comerciais e residen-
giada pelos recortes, como eram desenvol- de Melo), Espírito Santo (F. Gomes da Silva). ciais pertencentes a pessoas originá-
vidas suas ideias. Também, porque a Clã foi, rias dos países envolvidos no conflito.
aos poucos, abrindo mão dos espaços sobre Todavia, como resultado do Congresso:
cinema, política, música e passando a ser a fundação da Cooperativa de Letras
uma revista essencialmente literária (a e Artes, a iniciativa de realização do I
partir da nº 10). A sua seção de abertura, “O li- Congresso Cearense de Escritores e a
vro de CLÔ, mostrava sempre um fragmento formação do CLÃ. Aliás, o CLà e a Scap
da literatura cearense: poemas, novelas, con- teriam uma parceria que seria definitiva
tos, ensaios etc. É a seção de maior espaço para o desenvolvimento de ambos.
da revista e sempre vem em primeiro lugar.
Há uma seção final, “Vento Sul, Vento
Norte...”, que tece comentários sobre os mo-
vimentos do complexo mundo dos livros –
eventos, lançamento, congressos, seminá-
rios –, principalmente se atentarmos que o
vento soprava do Sul para o Norte, trazendo
informações, apresentando novos escrito-
res e discutindo muitas novidades.

CURSO literatura cearense 117


4.
NASCE A CLÃ
MALACA
CHETAS
Sãnzio de Azevedo afirma, em
Literatura Cearense (1976, p.429), que
FILHA DO CLÃ “O Clube de Literatura e Arte [que no nº
Revista Clã foi uma conse- 0 da revista é mencionado não como
quência do I Congresso CLÃ, mas como C.L.A.], fundado por
Cearense de Escritores, Antônio Girão Barroso, não é porém,
cuja pretensão era lutar a rigor, o que viria ser conhecido
em favor da autonomia de como grupo CLÃ, embora seus
intelectuais e artistas lo- componentes dele fizessem parte”.
cais. Para tanto, tornava-se
necessário reunir esforços
no sentido de projetar a Ceará, na Casa de Juvenal Galeno, na Casa
cultura cearense no cenário nacional e, de José de Alencar, entre outras, constituin-
quem sabe, internacional. Inegavelmen- do um grupo de prestígio cultural e social.
te, tratava-se de uma aspiração arrojada O conselho de redatores foi composto,
e otimista. Os ânimos da época encontra- inicialmente, por Joaquim Alves, Stênio Lo-
vam-se bastante inflamados, especialmen- pes, Antônio Girão Barroso, Mozart Soriano
te depois da repercussão lograda com o Aderaldo e João Clímaco Bezerra. A partir do
mencionado congresso e com o I Congres- número 6, iniciaram sua colaboração na Clã
so de Poesia, também realizado, embora os seguintes escritores: Artur Eduardo Bene-
não encerrado, em Fortaleza. vides, Braga Montenegro, Eduardo Campos,
Todos esses movimentos e manifes- Moreira Campos e Otacílio Colares. Stênio Lo-
tações acirraram o empenho de um gru- pes esteve ausente a partir do quinto número,
po de intelectuais, cuja tendência natu- reaparecendo no número 11, quando Eduar-
ral sempre foi a de reunir-se em grupos, do Campos foi eleito diretor comercial da Clã.
culminando, assim, com a formação Estreou nas páginas de Clã uma nova
do grupo CLÃ. escritora de contos e novelas: Lúcia Fer-
Sem sede definida, os escritores reu- nandes Martins, a única voz feminina do
niam-se em cafés, em bancos de praças grupo – que também escreveu sob pseu-
ou no ateliê do pintor Mário Baratta, dônimo “Sandra Lacerda” – esposa de Fran
uma vez que existia grande afinidade Martins. No número 16, o cronista Milton
entre o CLÃ e os pintores da Sociedade Dias também passou a integrar o quadro
Cearense de Artes Plásticas, a Scap. de colaboradores, sendo considerado o úl-
Esse fato pode ser comprovado por timo dos “antigos” escritores do grupo – o
meio da leitura de atas que registraram mais velho seria Joaquim Alves, razão pelo
as sessões preparatórias do I Congresso qual era denominado, “guardadas as pro-
de Poesia, redigidas pelo poeta Aluízio porções”, por Sânzio de Azevedo de “o Gra-
Medeiros e publicadas, posteriormente, ça Aranha do CLÔ –, observando-se que, a
nas páginas da Revista Clã, em formato partir do número 23, a revista começou a
de deliciosas crônicas bem-humoradas. promover e divulgar a geração dos “novíssi-
O pessoal do CLÃ estava disseminado em mos” escritores do Ceará. Entre eles: Horá-
várias instituições, como na universidade, na cio Dídimo, Sânzio de Azevedo, Linhares Fi-
Academia Cearense de Letras, no Instituto do lho, Pedro Lyra, entre outros. Na década de

118 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA BOLACHINHAS
Um dos objetivos da rapaziada no Na revista Clã número zero,
I Congresso de Poesia do Ceará encontramos a informação de que no
seria criar, além de outras coisas, ano seguinte (1947) o CLÃ, juntamente
um ateliê. E por quê? Explica Fran com a Scap, realizaria o III Salão de
Martins: “o ateliê seria um lugar Abril em Fortaleza.
onde os artistas pudessem trabalhar
mais à vontade, pois no momento o
ponto de encontro maior de todos
era o acanhado ateliê do pintor
Mário Baratta, localizado nos altos
de um cinema, depois numa esquina
familiar, causando incômodos morais
às famílias da vizinhança, porque lá,
pela primeira vez nesta terra, [...] havia
modelos vivos que [...] posavam nuas
para os outros artistas – modelos que
eram, diziam-se, mulheres da vida”.

1980, depois da publicação dos primeiros


25 números da Clã, aderiram ao grupo os
escritores Pedro Paulo Montenegro, Cláudio
Martins e Durval Aires.
Durante sua formação, o grupo CLÃ
recebeu influência direta da geração de
1930, de certa forma antecipando-se à
produção literária de escritores que
apareceriam com a geração de 45.
Podemos observar que, na ficção, o
grupo se afinou mais com as carac-
terísticas temáticas e estilísticas de
30 e, na poesia, com a estética de 45.
A geração cearense reunida em torno
do grupo CLÃ surgiu quando o Moder-
nismo consolidava suas diretrizes, daí
porque sua função não foi tanto de re-
novação, mas de afirmação de valo-
res já vigentes em seu tempo.
Sem preocupação de renovação es-
tética ou manifestações de protesto à
geração anterior, o CLÃ procurou enfa-
tizar uma integração entre a arte e a vida,
consolidando de forma definitiva a
implantação do Modernismo no Ceará,
conforme nos afirma Sânzio de Azevedo.

CURSO literatura cearense 119


expressões formais, vigiando a emoção Antônio Girão Barroso destacou-se
por um esforço de objetivismo e inte- como autêntico líder dos empreendimen-
lectualismo. Essa característica não se tos levados a efeito no Ceará, em favor das
restringe aos elementos da geração de 45, letras e das artes. Sua participação ativa
mas se revela, também, entre os poetas no I Congresso Cearense de Escritores e na

5.
da geração anterior, a exemplo de Carlos publicação da Revista Clã evidencia o es-
Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo critor voltado para as renovações que se
e Jorge de Lima. Abrir caminho para o re- processavam no mundo artístico. É um dos
encontro com a essência, possibilitando a autores, de Os hóspedes, obra que reuniria
transmissão de uma mensagem de sólido Artur Eduardo Benevides, Aluízio Medeiros
O GRUPO CLÃ humanismo ao leitor, constitui o compro- e Otacílio Colares.
misso do escritor com seu espaço vital. Segundo Pedro Lyra, a escassa poe-
EM VERSOS Os poetas do CLÃ procuram fugir à ideia sia de Antônio Girão Barroso é o legado
Como as árvores, que já andam da desumanização, à ideia do homem exilado cearense mais identificado com o mo-
carregadas de frutos, os meus bolsos no interior de uma solidão coletiva, perdido vimento renovador de 22, apesar da de-
estão carregados de poemas. entre semelhantes, afastado pelo individualis- fasagem sofrida: seu livro de estreia é de
Antônio Girão Barroso, mo da concorrência pela vida, principalmente 1938, quando o Modernismo já superara a
em “O poeta” (1950) nas grandes cidades. Entre os poetas do gru- fase localista e consolidava a reconstrução
po, o único a cultivar o soneto, na linha apu- empreendida pela geração de 30. Sua lin-
rada dos neoclássicos, foi o escritor Otacílio guagem se apresenta como literatização
mesmo Sânzio, em sua Lite-
Colares. Por sua formação humanista, conti- da linguagem popular, de expressões
ratura Cearense, conta que
nuou a assumir as normas fixas do verso, com coloquiais, singularizando-se por constru-
“essa agremiação surgiu,
grande segurança, registrando, de modo sen- ções como as que transcrevemos de seu
portanto, quando já havia
sível, sua realidade interior, sem limitar as pos- livro Alguns poemas, publicado em 1938:
passado a fase primitivista
sibilidades expressivas do poema. Toda sua
do Modernismo e os poe- “O trem passa pinicando sordades”
produção poética é de um lirismo fortemente
tas entravam em outra fase “Vem danado pra chegá”
marcado pela confidência, pela plenitude dos “Um bando de colegiais tão fazendo
chamada por alguns de
sentidos, pela visão familiar do mundo. sururu na rua”
construtivista. Despontava,
De acordo com o livro Poesia cearense “Minha noiva foi simbora”
portanto, a geração de 45, quando o CLÃ, já
e realidade atual do escritor Pedro Lyra, a Em todos esses casos, observamos uma
com alguns livros publicados, começou a pro-
primeira fase de Otacílio Colares como po- fixação do autor à tradição oral do portu-
jetar-se”, o que é ratificado pelo depoimento
eta, contém vinte sonetos líricos, quase to- guês do Brasil, através da incorporação
do poeta Antônio Girão Barroso:
dos de amor, oscilando entre a serenidade dos vulgarismos mais usuais à lingua-
Depois, muito tempo depois, falou-se
do “Soneto em tons menores” e a exalta- gem literária, procurando sintonizar a
numa geração de 45. Se ela existiu, se-
gundo os justos desejos de um Lêdo Ivo ção do “Estudo em nu”, sintetizadas essas
e de Domingos Carvalho da Silva, não atitudes no ideal amoroso do belo “Soneto
soubemos na época, o que não deixa de de Nove de Outubro”:
ser lamentável. A verdade é que, pelo me-
nos alguns de nós – estreados em livro na Vai longe o tempo? Nem sei bem, só vejo
década de 30 ou um pouco depois de 40 que, quanto mais e mais se faz distante
– funcionamos aqui como uma espécie a hora do amor nascente, mais desejo
de ponte entre o modernismo e algo que estar junto de ti, amigo e amante.
talvez só esteja surgindo agora. Otacílio continuou a escrever seus belos
Essa geração representa uma volta da sonetos, compondo o que chamou de “Co-
poesia à sua depuração formal e à res- roa de Sonetos”. Isso aconteceu no número
tauração de certos gêneros fixos como o 26 da revista, sendo antecedido por uma
soneto e a ode. Existe uma certa preocu- análise crítica do professor, historiador e
pação no sentido de selecionar temas e crítico literário Sânzio de Azevedo.

120 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA prática poética com o gosto popular.
A sátira é um dos pontos fortes de sua po-
Poderia dizer que sou um Deus;
que as estrelas aureolam a minha
cabeça imaginativa;
ética: satiriza o versejar empolado e o tom
que a todo instante posso criar
Muitos são os poemas sobre Fortaleza, oratório de alguns poetas com suas frases tantos mundos ao sabor
exaltando as jangadas, a praia de de efeito e expressões bombásticas. Esse dos meus desejos.
Iracema, os bairros, as serestas, os tributo a 22 se manifesta claramente na afi- Mas sou, como os outros, telúrico
nidade de Antônio Girão Barroso com Ma- e humano,
mistérios da noite [...] Até mesmo uso o silêncio de galocha, grito,
artistas plásticos, como Antônio nuel Bandeira – o poema “Estação de ferro”
trabalho e sinto fome, oceânico e lúbrico,
Bandeira, escreveram seus poemas é uma paródia do famoso “Trem de ferro”. ando com a barba por fazer.
sobre Fortaleza na revista [Clã]. Sânzio de Azevedo afirma sobre Barroso:
“começou ainda influenciado pelo poema- Do grupo dos poetas do CLÃ, Aluízio foi
(Moraes, revista Clã., 2008)
-piada dos primeiros tempos do Modernis- o que chegou mais perto da estética mo-
mo; depois, evoluiu para os versos livres lon- derna, tanto no que se refere à conteudísti-
gos, novos, mas com uma cosmovisão mais ca, quanto à parte formal.
ou menos romântica”. (MORAES, 2008, p.30) Artur Eduardo Benevides tem vasta
Aluízio Medeiros, apesar de ter partici- obra publicada e premiada, quase toda no
pado de antologias do conto, não se destaca âmbito da poesia, embora tenha escrito en-
exatamente por sua condição de contista, saios. Benevides se classifica como um po-
mas de poeta. Trata-se de um escritor essen- eta “essencialista”, que percebe a poesia
cialmente lírico, de uma extraordinária fineza como “algo de substancial, universal, subjeti-
e de pura expressão artística. Seu lirismo está vo e intemporal, uma atitude de espírito, um
ligado à vida cotidiana e suas manifestações, valor supremo”. Seus poemas refletem acen-
daí o porquê da insistência da temática so- tuada influência do poeta Augusto Frederico
cial em seus versos. Não sucumbiu às ideias Schmidt e do simbolismo de Mallarmé.
de um lirismo decadente e sem perspecti- Por que não jazermos o que nos
va, antes fixou-se na realidade circundante torna plenos?
como motivação de sua criatividade literária. Por que não realizarmos o que
Seu livro de poemas Os objetos coloca o mais amamos?
Por que sermos indigentes de nós mesmos
autor em posição singular dentro do grupo.
e sentirmos a penúria da
Aprofunda-se em pesquisas de temática fe- alma despojada de seus próprios sonhos?
nomenológica, chegando, algumas vezes,
ao hermetismo profundo. Assume posi- Observamos que os poetas do CLÃ re-
ção de vanguarda na Literatura Cearense, velaram-se abertos a várias tendências po-
sem, contudo, desligar-se de suas contin- éticas: ora continuaram a apresentar um
gências culturais. No primeiro poema do re- lirismo clássico com características ne-
ferido livro, o autor procura tornar explícitos oparnasianas e simbolistas, através da
seus procedimentos poéticos, procurando versificação em forma de soneto – como é
efetuar uma decifragem do homem: o caso do escritor Otacílio Colares –, ora
viajaram em voos metafísicos e trans-
cendentes, como na poesia de Artur Edu-
ardo Benevides. Também expressaram-
Hermetismo -se de forma mais popular, próxima à
Saber oculto, oralidade, com Antônio Girão Barroso e,
esotérico, reservado a
poucos; aquilo que é
por vezes, ousaram romper com a tradição
difícil de compreender acadêmica, instaurando novos procedi-
e/ou interpretar. mentos temáticos e escriturais, como no
poema de Aluízio Medeiros.

CURSO literatura cearense 121


O mais representativo romancista do
SABATINA
6.
grupo CLÃ é, sem dúvida o escritor Fran Mar-
tins, o diretor perpétuo da revista Clã, pela
natural liderança que possuía nos meios inte- O autodidata Braga Montenegro, nascido
lectuais brasileiros. A sua importância para a em Maranguape, iniciou-se nas letras
longeva duração do movimento era tanta, que
O CLÃ TODO Artur Eduardo Benevides dizia “o Clã é Fran”.
no Amazonas, sob o pseudônimo “Léo
Silva”, como nos informa Sânzio de
PROSA No romance Dois de ouros (1966), que
versa sobre uma perseguição da polícia a
Azevedo, que também o considera um
dos expoentes da crítica literária
“Clã não é, apenas, uma revista de um cangaceiro, o autor desce às profunde- brasileira, tendo colaborado, entre
literatura. É, antes, uma revista de zas de uma consciência desesperada, ofe- outros, com o suplemento literário d’O
todo o Ceará mental. Aqui, na medida recendo-nos um dos mais autênticos tipos Estado de S. Paulo. Embora seja mais
do possível, recolheremos o trabalho da moderna ficção brasileira. Na opinião de citado como crítico, seu livro de estreia,
dos nossos homens de letras e de Moreira Campos, é a mais amadurecida e Uma chama ao vento, é de contos,
pensamento, pois a pretensão que equilibrada obra literária de Fran Martins. O ganhador do Prêmio Aequitas (1945)
nos anima é sermos porta de saída da repisar dos mesmos sentimentos, das mes- e Prêmio Afonso Arinos da Academia
melhor produção intelectual da gente mas memórias, formando uma “narrativa Brasileira de Letras (1947). Edigar de
cearense, de tal modo que ela possa circular”, constitui outro procedimento lite- Alencar o considera parte, juntamente
aparecer lá fora, nítida na sua pureza, rário a que o autor recorre continuamente. com Rocha Lima e Araripe Jr.,
numa demonstração convincente de que E por falar em Moreira Campos, é ele o da tríade maior da crítica.
a gloriosa província de Alencar continua mais notável contista do grupo.
a viver, a se agitar, na procura sempre Os críticos consideram que a prosa de fic-
insatisfeita de rumos novos para a cultura ção caracteriza mais a rigor a geração do gru-
po CLÃ do que a poesia, merecendo alguns
MALACA
brasileira”. (Revista Clã, nº Zero, 1946)
contistas citações em várias antologias de CHETAS
contos brasileiros. Moreira, em seu livro de
destaque dos romancistas estreia, Vidas marginais (1949), caracteriza-se Fran Martins assumiu a presidência
do CLÃ revelou-se, antes de por conter uma notável dose de sentimento da Associação Brasileira de Escritores
tudo, na tendência de fun- humano, sem fazer literatura engajada, preo- seção Ceará. Uma de suas primeiras
dir e conciliar o universa- cupa-se em criar um conto novo, que não se ações foi criar uma editora-distribuidora
lismo e o regionalismo: a resuma numa só leitura, mas que convoque denominada “edições CLÔ, cujo
valorização da cultura bra- o leitor para um processo de recriação da livro inaugural seria uma plaqueta
sileira – nossa terra, nossa obra. Em Puxador de terço (1969), a lingua- intitulada Três discursos, de autoria de
gente –, uma grande dose gem é, sem dúvida, o elemento de maior sig- Mário Sobreira de Andrade, Eduardo
de nativismo, a abordagem nificação da obra: límpida, correta, espontâ- Campos e Antônio Girão Barroso.
de temas folclóricos, o estudo da fala popular nea, em períodos curtos e incisivos.
etc. Importante destacar que os regionalis- Merecem destaque outros escritores:
tas nordestinos diferem bastante uns dos Milton Dias, por excelência, na crônica O teatro seria devidamente contem-
outros, quanto ao estilo e à multiplicidade de (Cunhãs e Ilha do homem só), Lúcia Mar- plado pelo teatrólogo, contista e folclo-
suas experiências e suas áreas de origem. tins (Nada de novo sob o sol), João Clí- rista Eduardo Campos (1923-2007), que
Iremos perceber que os escritores do maco Bezerra – no conto, no romance e escreveu e encenou o “Morro do Ouro”,
CLÃ ainda baseiam sua obra na estrutura- também na novela (Não há estrelas no céu, na qual retrata as dificuldades da vida
ção tradicional do romance e a sua lingua- Longa é a noite, A vinha dos esquecidos). dos habitantes de uma favela nordestina.
gem, também distinta, é pessoal, social, Na crítica literária, Braga Montenegro é a Obra premiada em Barcelona. “A rosa do
portadora da história da sociedade, suas maior referência, acompanhado de Mozart lagamar”, “O demônio e a rosa” e muitas
regras e suas crenças. Soriano Aderaldo e José Stênio Lopes. outras peças obtiveram sucesso.

122 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA BOLACHINHAS
Barbosa Leite (1920 – 1996) foi O autodidata pintor Otacílio de

7.
desenhista, pintor, escritor e um dos Azevedo era também poeta e foi
fundadores do Centro Cultural de Belas membro da Academia Cearense de
Artes (CCBA), em 1941, e da Sociedade Letras. Sua obra é composta de livros
Cearense de Artes Plásticas (Scap), de poesia e de um livro de crônicas,
em 1944. Escreveu o livro Esquema da Fortaleza Descalça, referência nos
DOS LIVROS pintura no Ceará em 1949. Participou estudos historiográficos no estado. É
PARA OS ATELIÊS e foi premiado em diversas edições
do Salão de Abril, em Fortaleza
pai do poeta, historiador e pesquisador
Sânzio de Azevedo, do astrônomo,
E ESTÚDIOS (MONTEZUMA, 2003, p.21). quadrinista, pintor e escritor Rubens
de Azevedo e do historiador,
Barrica (1908 – 1993) foi desenhista,
DE FOTOGRAFIA pintor e ceramista. Iniciou nas artes musicólogo e colecionista Miguel
Descobrimos todo um inquieto número plásticas nos anos de 1920, tendo Ângelo de Azevedo, o “Nirez”.
de pintores e desenhistas que se escondia aulas de pintura com Gérson Faria. Foi
numa suja e pequena sala do último andar também um dos fundadores do CCBA
de um velho prédio ali da Praça do Ferreira. e da SCAP. Em Fortaleza, participou CONFEITOS
Mas que embora escondido, trabalhava sem e foi premiado em diversas edições
interrupção. Aos pintores nos juntamos. Eles do Salão de Abril. Inaugurou, com
Para saber mais sobre a história do
vieram também para o Congresso [de Poesia]. uma mostra individual, o Centro de
Minimuseu Firmeza, legado do artistas
Artes Visuais Casa Raimundo Cela,
Aluízio Medeiros, em Crítica 2ª série (1946-1948). Estrigas e Nice Firmeza, conhecer o seu
em 1967. No cenário nacional, figurou
acervo e as suas salas de exposições,
em exposições de outras regiões do
té aqui abordamos sobre os confira: minimuseufirmeza.org
Brasil, especialmente em galerias
escritores do grupo CLÃ e da de São Paulo e do Rio de Janeiro
revista homônima. Como já (MONTEZUMA, 2003, p.21).
sabemos, os escritores do
CLÃ tinham uma relação
muito próxima com os artis-
tas plásticos da época, daí Os estúdios de fotografia surgidos na
nos preocuparmos em tra- segunda metade do século XIX, mas prolife-
tar um pouco das ações em rados nas primeiras décadas do século XX,
conjunto desenvolvidas por esses dois gru- foram espaços de aprendizagem e de atua-
pos: o CLÃ e a Scap. ção profissional dos pintores de Fortaleza,
O início das atividades da Sociedade em razão da crescente prática da técnica
Cearense de Artes Plásticas (Scap) data do retratismo (PONTE, 2014). Entre esses
do ano de 1944. No entanto, consideramos estúdios, mencionamos o Foto Walter e o
necessário discorrer sobre o movimento Photo Ribeiro, pertencentes, respectiva-
artístico que antecede à sua criação, pois a mente, a Walter Severiano e a J. Ribeiro,
sociabilidade entre os artistas plásticos e os onde predominavam a tradição dos retratos
intelectuais da literatura já era vivenciada a óleo ou a crayon (MARQUES, 2007, p.38-
nos anos e nas décadas anteriores. Nesse 39). Os artistas cearenses Barbosa Leite e
contexto, destacamos a importância dos Clidenor Capibaribe, o "Barrica", traba-
estúdios de fotografia e dos ateliês. lharam nesses estúdios de fotografia.

CURSO literatura cearense 123


MALACA Estrigas menciona, no fragmento ao
lado, o Salon Regional como a primeira
Acreditamos que esse movimento, em
torno dos estúdios de fotografia e dos ate-
CHETAS mostra de arte com maior expressão
em Fortaleza. Dos cinco artistas exposi-
liês, tenha contribuído para a estrutura-
ção do campo das artes plásticas no Cea-
Antes da criação de espaços mais específi- tores, a maioria frequentava o Ateliê de rá. Desse modo, no ano de 1941, foi criado
cos para exposições de artes, os artistas fa- Clóvis Costa. Este foi um espaço de apren- o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA).
ziam uso das vitrines das lojas para expor dizado, no qual os artistas produziam suas Vários nomes da história das artes plásticas
seus trabalhos (ESTRIGAS, 2009, p.23). obras e as submetiam à apreciação e co- estiveram envolvidos com a sua fundação,
mentários dos outros frequentadores. Em entre eles: Gérson Faria, Barrica, Barbosa Lei-
sua maioria, reuniam-se no mencionado te, Afonso Bruno, Raimundo Campos, Otacílio
Devido à atuação dos pintores nos estú- ateliê, os artistas e escritores: Rubens de de Azevedo, Rubens de Azevedo (LEITE, 1949,
dios, estes foram incentivados a organizar Azevedo, Otacílio de Azevedo, Gérson Fa- p.8). Contudo, Mário Baratta foi um dos
exposições com os seus trabalhos. ria, Pretextato Bezerra (o “TX”), Barrica e principais responsáveis pela iniciativa
Dessas mostras, ao que parece, a primeira a Milton Rodrigues. O grupo se reunia, geral- em se criar o CCBA (ESTRIGAS, 2004, p.21).
realizar-se com maior grau de interesse e ex- mente, aos domingos para praticar e deba-
pressão foi a que se denominou Salon Re- ter sobre arte. Recebiam visitas de outros
gional, de 1924, da qual participaram cinco
artistas: Otacílio de Azevedo, Clóvis Costa,
artistas já estabelecidos, entre eles, Rai-
mundo Cela (AZEVEDO, 1996, p.141-143).
SABATINA
Walter Severiano, J. Queiroz e Eme Guilher-
me. Teve como local a foto Walter, na rua Ba- Segundo Rubens de Azevedo, na obra
Estrigas (1919 – 2014) foi artista
rão do Rio Branco, de propriedade de Walter Memórias de um caçador de estrelas, outro
plástico e memorialista das artes
Severiano, e ali estiveram expostos mais de ateliê importante foi o de Delfino Silva,
cinquenta trabalhos. (ESTRIGAS, 2009, p. 23) plásticas no Ceará. Iniciou nas artes
que funcionou no decorrer dos anos de
plásticas como aluno do Curso livre
1930 ao início da década de 1940.
de Desenho da Scap, em 1950. Além
de ter participado em diversos salões
e mostras de arte, deu importante
contribuição ao publicar diversas
obras sobre a história e a memória
das artes cearenses. Juntamente com
sua esposa, a artista Nice Firmeza,
criaram o Minimuseu Firmeza, em 1969.
Deste então, o Minimuseu abriga um
importante acervo e documentação
sobre as artes plásticas no Ceará.
(MONTEZUMA, 2003, p.34).
O carioca Mário Baratta (1914 –
1983) mudou-se para Fortaleza em
1932 quando ainda era estudante de
Direito. Aproximou-se dos grupos de
artistas plásticos e intelectuais da
literatura, tendo exercido papel de
liderança na criação do CCBA e da
Scap. Como artista, figurou em diversas
mostras e salões de arte de Fortaleza,
especialmente o Salão de Abril
(MONTEZUMA, 2003, p.71)

124 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA BOLACHINHAS

8.
A SOCIEDADE
A primeira edição do Salão de Abril
foi realizada pela Secretaria de Arte da
União Estadual dos Estudantes (UEE),
em 1943. Em seguida, houve o primeiro
O Salão de Abril, em sua trajetória, passou
por algumas mudanças e permanece
vivo até os dias atuais. Configura-se como
uma das mais importantes mostras de
artes visuais do país, sendo que neste ano
CEARENSE intervalo na história do Salão. Entre 1946
e 1958, a Scap realizou o Salão. Após (2020) ocorrerá sua 71º edição. A Prefeitura
DE ARTES um segundo intervalo em sua história, o
Salão de Abril ressurge no cenário artístico
de Fortaleza alimenta um site, no qual
estão disponíveis a maioria dos catálogos
PLÁSTICAS (SCAP) de Fortaleza em 1964, passando a ser das edições do Salão de Abril, entre outras
de responsabilidade da Prefeitura de informações acerca da tradicional mostra
A 27 de agosto de 1944, funda-se a Scap,
Fortaleza a sua realização. Quem estiver de arte. Confira: salaodeabril.com.br.
que representou a mais forte contribuição
interessado em conhecer mais sobre a
ao nosso desenvolvimento artístico. A
história do Salão de Abril, confira: O Salão
Scap mantinha uma Escola de Arte da qual
de Abril em dois momentos: Sociedade A seguir, destacamos, a partir de matérias
fizemos parte, lecionando perspectiva de
Cearense de Artes Plásticas e Prefeitura de jornais, algumas iniciativas da Scap em
anatomia. Ensinara nela os escultores Honor
Municipal de Fortaleza (1944-1970), de relação à organização de escolas e cursos de
e Angélica Torres, formados pela Academia
SILVA, Anderson de Sousa, dissertação arte, especificamente em 1955 e 1956:
de Belas Artes do Rio de Janeiro, Chabloz,
(mestrado em História), pela Universidade O Correio do Ceará, em 29 de janeiro
Mário Baratta e outros. Os intelectuais da Federal do Ceará, Fortaleza, 2015, em de 1955, trata do Curso Livre de Desenho
terra aderiram e podiam lá ser vistos, como nossa Biblioteca Virtual do AVA. e Pintura da Scap, realizado no início da
os escritores Artur Eduardo Benevides, década de 1950. Esse curso revelou impor-
Otacílio Colares, Mozart Soriano Aderaldo, tantes nomes da história das artes plásticas
João Clímaco Bezerra, Eduardo Campos, composição hierárquica, as funções entre cearenses, como Estrigas, Heloísa Juaçaba
Aluízio Medeiros, Antônio Girão Barroso e os membros associados, sendo que “a co- e Nice Firmeza (SILVA, 2015, p. 67). A mesma
Fran Martins. (AZEVEDO, 1996, p. 148) missão elaboradora dos estatutos foi com- matéria destaca que este curso passou a ser
posta por: Raimundo Cela, Mário Baratta, chamado, anos depois, de Curso de Dese-
citação acima é bastante elu- Raimundo Vieira Cunha, Melo Machado e nho e Pintura Vicente Leite e, em seguida,
cidativa no que diz respeito Fran Martins” (SILVA, 2015, p.52). de Escola de Belas Artes do Ceará (Ebac).
ao estreitamento das re- Entre as principais atividades desenvol- O Gazeta de Notícias, de 6 de maio de
lações entre artistas plás- vidas pela Scap, mencionamos o tradicional 1956, divulgou que a Escola de Belas Artes
ticos e escritores, através Salão de Abril de Fortaleza. Entre os anos do Ceará (Ebac) ofertava um curso de arte
da formação da Scap. Os es- de 1946 e 1958 a entidade realizou, anual- com extensa grade curricular e nomeava
critores mencionados, como mente, o Salão. Por se tratar de uma mostra seus professores: Francisco Matos (Desenho
você já deve ter percebido, competitiva, em cada edição alguns artistas Artístico), Angélica Torres (Modelagem), Car-
faziam parte do CLÃ, cuja tra- eram premiados e recebiam menções hon- los Ribeiro Pamplona (Anatomia e Fisiologia
jetória já foi destacada neste rosas da comissão julgadora, formada, majo- Artística), José Eduardo Pamplona (Geome-
fascículo. De acordo com o Diário Oficial do ritariamente, por membros da própria Scap. tria Descritiva), Roberto Vilar (Arquitetura
Estado do Ceará, de 6 de dezembro de 1944, O artista visual e pesquisador Roberto Analítica), J. Leopoldino (Perspectiva), Mário
as principais finalidades da Scap, segundo Galvão em A escola invisível: artes plásticas Baratta (Pintura), Honor Torres (Escultura). A
os seus estatutos, foram: (1) Realização perió- em Fortaleza (1928 – 1958) analisa a Scap Ebac tencionava ainda acrescentar História
dica de Salões de artes plásticas; (2) Manter como uma escola (invisível) para os artistas, da Arte, que seria ministrada por Araken Car-
uma Galeria de arte; (3) Concursos de moti- pois não havia em Fortaleza nenhuma es- neiro; Estética, por Artur Eduardo Benevides;
vos e (4) Criação de uma Escola de arte. cola formal de arte no período. Nesse sen- Psicologia aplicada, por João Vasconcelos
Os estatutos da Scap também indica- tido, as atividades desenvolvidas pela Scap César; Filosofia da Arte, por Lauro Oliveira, e
vam como funcionaria a associação, a sua proporcionaram uma formação em arte. Didática, por Hipólito Oliveira.

CURSO literatura cearense 125


Nas suas primeiras edições, os textos
sobre artes plásticas encontravam-se na
seção denominada “Artes Plásticas”. Em ou-
tras edições, na seção denominada “Vento
Sul, Vento Norte...” e/ou no “Caderno de Ar-
tes Plásticas” (SILVA, 2015, p.68).
É tão estranha a força que caracteriza as
obras de BARRICA que, se não o tivésse-
mos acompanhado na evolução porque
acaba de passar, difícil nos seria acredi-

9.
tar que o autor de certo quadro de nossa
coleção, - de época mais remota, fosse o
mesmo que, hoje, assina “Vila suburbana”,
menção honrosa no Salão de Abril 1947,
“Casebres”, da Coleção do Dr. Aderbal
Freire e outros mais que se encontram na
A CRÍTICA posse de colecionadores como o Dr. Jonas
de Miranda e o Sr. Alcides Santos. Como
DE ARTE NA CLÃ pintor, consideramos Barrica o maior no
Ceará, dentro da escola para a qual se in-
Acho que o ponto alto da Clã, no tocante às clinou, a expressionista. (Barbosa Leite.
para eles foi fenômeno que se verificou de fora
artes plásticas, foi a possibilidade de registrar, Clidenor Capibaribe – Barrica. Revista
para dentro, se assim podemos dizer. (Otacílio
com muito zelo, eventos importantes das Clã, n. 4, agosto de 1948, p. 101 e 102).
Colares. Considerações em torno de Barrica.
nossas artes, principalmente o movimento O fragmento acima é um bom exemplo Revista Clã, n. 7, fevereiro de 1949, p. 143).
conhecido como escapiano de artistas do formato dos textos que eram escritos O nome de Barrica apareceu mais uma
integrantes da Scap. sobre os artistas plásticos. Nesse sentido, vez, agora num texto de autoria do escritor
Descartes Gadelha, para Clã: defendemos a ideia de que a revista Clã con- Otacílio Colares. Percebemos o formato
revista de cultura, 2008. tribuiu para a formação de um campo semelhante ao do texto de Barbosa Leite
para a crítica de arte no Ceará. A trajetória destacado anteriormente. A crítica de arte
os primeiros tópicos des- dos artistas era acompanhada por esses in- na Clã apontava elementos como o autodi-
te fascículo, o(a) cursista telectuais do CLÃ, que pontuavam a “evolu- datismo, a visibilidade a partir do Salão de
teve acesso a um pouco ção” do artista. Também era uma forma de Abril, além de atribuir certa aura de “heroís-
da história do grupo CLÃ divulgar as obras expostas no Salão de Abril, mo”, dando a entender que, de algum modo,
e da sua revista com ên- assim como a prática do colecionismo. os artistas estavam “predestinados” a per-
fase na produção de pro- “Barrica” não estudou pintura, não frequen- tencerem e se firmarem no campo da arte.
sa, poesia e teatro desses tou cursos de desenho. Nisto aliás não leva
escritores. Entretanto, a vantagem a qualquer outro dos nossos pinto-
res ora em evidência, esses jovens que come-
Clã era uma revista de
cultura, como anunciava, e seus redato-
çaram a aparecer nos Salões de Abril, desde
Antônio Bandeira a Aldemir Martins, desde
BOLACHINHAS
res tratavam de diversas linguagens. Aqui, Carmélio a Barbosa Leite. A atual geração de
nos deteremos a algumas contribuições pintores do Ceará, para honra sua e sua gló- O artista Barbosa Leite, além de cola-
para as artes plásticas cearenses, enten- ria maior no futuro, não fez pintura porque
borar na escrita da Revista Clã, também
o papai quis e a mamãe achou interessante.
dendo ser notória a parceria entre os publicou um livro pelo selo Edições Clã,
Foi para pintura por tendência e seu primeiro
escritores do CLÃ e os artistas da Scap contato com a arte caracterizou-se logo pelo Esquema da pintura no Ceará, lançado na
que, inclusive, ilustravam o periódico. manejo do pincel e o uso das tintas. A pintura quinta edição do Salão de Abril, em 1949.

126 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


REFERÊNCIAS
ALENCAR, Edigar de. Variações em tom
menor: letras cearenses. Fortaleza: edições
UFC/Proed, 1984.
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense.
Fortaleza: ACL, 1976.
AZEVEDO, Rubens de. Memórias de um
caçador de estrelas. Fortaleza: Editora
UFC, 1996.
ESTRIGAS. Nilo Firmeza. Arte Ceará: Mário
Baratta: o líder da renovação. Fortaleza:
Secult-CE (Museu do Ceará), 2004.
______________. O Salão de Abril: 1943
– 2009. 2° Edição. Fortaleza: La Barca
Editora, 2009.
LEITE, Barbosa. Esquema da pintura no
Ceará. Fortaleza: Edições CLÃ, 1949.
LIMA, Roberto Galvão. A Escola Invisível:
Artes Plásticas em Fortaleza 1928 – 1958.
Fortaleza: Quadricolor Editora, 2008.
MARQUES, Kadma. Autonomização do
campo artístico e singularização da
experiência estética: A instituição do lugar
social da arte e do artista em Fortaleza. In:

10.
Revista de Ciências Sociais (Universidade
Federal do Ceará), vol. 38, n. 1. Fortaleza, 2007.
MEDEIROS, Aluízio. Crítica 2ª série (1946-
O poeta Francisco Carvalho, na revista Clã 1948). Fortaleza: Edições Clã, 1956.
de nº 30 – na verdade, uma homenagem ao MONTEZUMA, Luciano. Dicionário de artes
FECHANDO grupo CLÃ realizada em 2008 –, nos diz: “Não plásticas do Ceará. Fortaleza: Centro
Cultural Oboé, 2003.
há exagero em afirmar que o grupo CLÃ revi-
A REVISTA talizou gradativamente o status da produção MORAES, Vera Lúcia A. de. Clã: trajetórias
alar da Scap como um dos capítu- intelectual no Ceará, ao longo das últimas do modernismo em revista. Fortaleza:
Edições Demócrito Rocha, 2004.
los que compõem a historiografia cinco décadas do século XX. [...] na esteira de
da Literatura Cearense é reconhe- suas realizações e iniciativas, foi abrindo ca- MORAES, V.L.A de; GUTIERREZ, A. e
REMÍGIO, A. (org) Clã: revista de cultura
cer que as linguagens artísticas minho para o acesso das novas gerações, se-
– homenagem aos 6º anos. Fortaleza:
trabalham mais próximas do que dentas de espaço e de liberdade para as suas Imprensa Universitária do Ceará – UFC.
distantes umas das outras e isso criações nos domínios das letras e das artes”.
PONTE. Sebastião Rogério. Fortaleza
vem a contribuir com o fortaleci- Assim, para encerrar o nosso módulo, Belle Époque: reforma urbana e controle
mento da arte, dos artistas e, no propomos as seguintes reflexões e questio- social 1860-1930. 5. ed. Fortaleza: Edições
âmbito geral, da cultura. namentos: quais são os intelectuais que es- Demócrito Rocha, 2014.
A Revista Clã é um bom exemplo, como vi- crevem sobre arte no Ceará, atualmente? Isso SILVA. Anderson de Sousa. O Salão de
mos. Os escritores tinham a oportunidade de vale também para você, em qualquer outro Abril em dois momentos: Sociedade
apresentar seus trabalhos no campo da lite- estado do país. E como se configura o diálogo Cearense de Artes Plásticas (SCAP) e
ratura e, em paralelo, também atuavam como e as fronteiras entre a literatura e as artes vi- Prefeitura Municipal de Fortaleza (1944-
1970). 2015. Dissertação (Mestrado em
críticos de arte através dos textos que divul- suais na produção artística contemporânea?
História). Universidade Federal do Ceará,
gavam, além de promover nossos artistas e No próximo módulo, fique de olhos bem Fortaleza, 2015.
refletir sobre a sua trajetória e renovação. abertos: literatura em encruzilhadas!

CURSO literatura cearense 127


AUTORES
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Vera Lúcia Albuquerque de Moraes Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É graduada em Letras pela Universidade Federal do FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


Ceará (UFC), com mestrado em Letras (Ciência da João Dummar Neto Presidente
Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
(UFRJ), doutorado em Sociologia pela Universidade Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Federal do Ceará (UFC) e pós-doutorado em Literatura
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
como professora da Universidade Federal do Ceará. É
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
autora de Clã: trajetórias do modernismo em revista (EDR), Viviane Pereira Gerente Pedagógica
além de outras obras de ensaios e de poemas. Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
Joel Bruno Designer Educacional
Anderson Sousa CURSO LITERATURA CEARENSE
É mestre em História Social pela Universidade Federal Raymundo Netto Coordenador Geral,
do Ceará (UFC), com a dissertação sobre o Salão de Editorial e Estabelecimento de Texto
Abril e a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap). Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Doutorando em História pela Universidade Federal
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
de Pernambuco (UPFE). Atualmente, atua como Miqueias Mesquita Diagramador
pesquisador em projeto, desenvolvido pela Galeria Carlus Campos Ilustrador
Multiarte, sobre a História das Exposições de Arte e dos Luísa Duavy Produtora
Espaços Expositivos de Fortaleza. É também professor ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
do curso de bacharelado em Direito da Faculdade ISBN: 978-65-86094-19-0 (Fascículo 8)

Princesa do Oeste (FPO), em Crateús-CE.

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a
Todos os direitos desta edição reservados à:
carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Fundação Demócrito Rocha
Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes fdr.org.br
como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção fundacao@fdr.org.br

gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo,


Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Apoio

Patrocínio

Realização
CURSO
l c
9 Da Vanguarda
à Ditadura
Literatura em Encruzilhadas
Fernanda Diniz e Kedma Damasceno

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a

Realização
1.
A PALO SECO
omo você já deve ter percebi-
do, nossos módulos têm atra-
vessado variados períodos da
história. Em cada um deles, a

2.
literatura e as artes em geral se
manifestam de forma distinta, a
partir de influências e de novas
contribuições. Neste módulo,
também situado em um deter-
minado recorte de tempo, trazemos a você VANGUARDA?
um estudo que impulsiona a reflexão acerca No sétimo módulo de nosso
dos conceitos de vanguarda e de geração, curso, soubemos um pouco
tanto no âmbito nacional, quanto no local. sobre as vanguardas euro-
Assim, você poderá acompanhar conosco peias e as suas influências no
como se deu a “encruzilhada” entre a literatu- surgimento do Modernismo
ra vanguardista e alguns dos principais fatos brasileiro. A palavra vanguar-
históricos e literários desse período, perpas- da, partindo do pressuposto
sando a ditadura civil-militar brasileira e se es- francês avant-garde – pois
tendendo até a década seguinte, ou seja, es- tem origem latina e alemã,
tamos entre as décadas de 1950, 1960 a 1970. ainda no século XII –, significa, literalmente,
Para você, que admira e busca cada vez a “guarda avançada ou parte frontal de um
mais aprofundar seus conhecimentos so- exército”. Sabendo disso, você consegue
bre a Literatura Cearense, é importante associar o termo ao surgimento dos diver-
saber que durante esse período nossos es- sos movimentos de ruptura artística do
critores, a exemplo de seus antecessores, início do século XX, que tinham por obje-
também se mantinham antenados com o tivo “tomar a dianteira” da esfera artística,
que acontecia no país e procuravam acom- rompendo esteticamente com tudo aquilo
panhar, renovando ou não, os demais mo- que para eles representava uma arte ultra-
vimentos e produções artístico-culturais. E, passada e que privilegiava e atendia princi-
motivados pelo que o professor e escritor palmente aos interesses da classe burguesa.
Batista de Lima denomina de “literatu- Para compreender melhor o contexto van-
ra de mutirão”, criariam por aqui, mesmo guardista da literatura no Brasil e no Ceará, é
quando meteoricamente, novos grupos li- preciso uma revisão no mínimo básica das
terários. Seguindo a rota destes escritores principais vanguardas históricas da Europa,
que buscavam romper padrões estéticos cientes que somos de suas significativas in-
e/ou político-sociais, esperamos contri- fluências. Mas, claro, devido ao curto espaço
buir para ampliar o debate sobre os estudos de que dispomos, não poderemos fazê-la
em Literatura Cearense. Sinta-se convidado aqui mais profundamente, contudo é vasta a
para entoar conosco este canto de ruptura. bibliografia que você poderá inclusive encon-
Está curioso(a)? Pois tomemos as ruas! trar na internet sobre tais estéticas. Pesquise!

130 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


3.
FUTURISMO, CUBISMO E DADAÍSMO
Futurismo, como o pró- O movimento foi liderado por F. T. Ma-
prio nome diz, caracteri- rinetti (1876-1944), que lançou em 1909 o
zou-se como um movimen- famoso Manifesto Futurista, publicado
to de ruptura estética que no jornal Le Figaro. Embora inovador, esse
enfatizava o “moderno” em “manifesto de violência agitada e incendi-
busca do futuro, exaltando ária”, fascinado pela guerra e com discurso
a velocidade dos automó- de excessivo patriotismo, como se apresen-
veis, os avanços industriais, tava o autor, em seu parágrafo 9, dizia: “Nós
a eletricidade, o desenvol- queremos glorificar a guerra – única higiene
vimento das metrópoles, das engrenagens do mundo –, o militarismo, o patriotismo,
dos maquinários. Almejava deixar para trás o gesto destrutor dos anarquistas, as belas
o passado e lançava o olhar sobre um novo ideias que matam e o menosprezo à mu-
mundo colocado sob o signo da técnica, lher.” (TELES, 2009, p.115). Assim, as suas
das multidões urbanas, da energia trepi- ideias acabaram por deitar um tapete para
dante das metrópoles modernas. o regime fascista de Mussolini em 1919.

CURSO literatura cearense 131


Segundo Gilberto Mendonça Teles, “No
Brasil, é a partir de 1920 que as ideias futu- BOLACHINHAS
ristas atingem, primeiro, os intelectuais de
São Paulo, alastrando-se depois de 1925 A palavra francesa dadá significa:
por todo o território brasileiro, numa trans- cavalinho de madeira. Entretanto,
formação em processo.” (2009, p.14) para o poeta Tristan Tzara, “dadá”
Como vimos no módulo 7, Edigar de significava absolutamente nada! Tzara
Alencar conta que o Modernismo não seria afirmava que encontrou essa palavra
bem recebido pelos nossos autores adep- por acaso ao abrir o dicionário.
tos de escolas literárias anteriores. Rodrigo
Marques também nos diz que Antônio Sales
“havia introduzido a oposição ao Movimen- O Dadaísmo ou movimento Dadá teve
to antes mesmo que o Movimento Moder- sua origem em Zurique, na Suíça, onde um
nista chegasse ao Ceará”. (MARQUES, 2018, grupo de rapazes, refugiados de guerra,
p.158) Um exemplo disso é que, sob pseu- costumava se encontrar, em 1916, no Caba-
dônimo, em 1923, Sales criou dezoito “Es- ret Voltaire, pequeno teatro de variedades
tâncias Futuristas”, que seriam “poemas de fundado por Hugo Ball, para ler poemas e
humor que desferiam golpes contra os ‘her- discutir sobre as incertezas da guerra e
deiros de Marinetti’ e que findaram por as ideias futuristas de Marinetti, sendo,
criar uma pequena polêmica na imprensa porém, contrários à guerra, mas revoltados
local sobre as tentativas de renovação esté- com a sociedade. Fundaram esse movi-
tica”. (MARQUES, 2018, p.158). mento que se lançava contra todos os va-
O Cubismo é considerado um dos lores culturais, utilizando-se, para isso, de
MALACA movimentos mais influentes do período certa irreverência. Assim, “a obra dadaísta
CHETAS vanguardista. O seu marco se deu em Paris
(1907), com a exposição da tela “As senho-
passa a caracterizar-se pela improvisação,
pela desordem, pela dúvida, pelo predo-
ritas d’Avignon”, do pintor espanhol Pablo mínio da percepção, pelo agnosticismo e
Marinetti comemorou a Primeira Picasso. O movimento passou a represen- pela oposição a qualquer tipo de equilí-
Guerra Mundial, dizendo ser ela o tar o Modernismo ou a avant-garde france-
mais belo poema futurista. Em sa, tendo a pintura como seu maior veículo.
1919, ingressou no Partido Nacional
Fascista, e defendia que a ideologia
O cubismo literário só surgiria anos depois,
em 1913, com o manifesto literário cubis-
BOLACHINHAS
do Partido era como uma extensão ta do polêmico poeta italiano Guillaume
do pensamento futurista, Apollinaire (1880-1918) que, ao lado de ou- Assista a esses vídeos e entenda um
chegando a publicar, em 1924, a obra tros poetas, como Max Jacob, Reverdy, Cen- pouco mais sobre:
Futurismo e Fascismo. Esteve em drars – este esteve no Brasil, às voltas com FUTURISMO
Recife, a convite de Joaquim Inojosa. os “semanistas” – e outros, “desenvolveu https://www.youtube.com/
um sistema poético de subjetivação e de- watch?v=B2yySLkCva8&
sintegração da realidade, criando por volta feature=emb_logo
BOLACHINHAS de 1917, paralelamente ao dadaísmo, uma
poesia cujas características são o ilogismo, o CUBISMO
humor, o anti-intelectualíssimo, o instanta- https://www.youtube.com/
Apollinaire seria também o criador neísmo, a simultaneidade e uma linguagem watch?v=kX5urWpYCwg
da palavra “Surrealismo” e a sua obra predominantemente nominal e mais ou me- DADAÍSMO
Calligrammes (1918) é considerada nos caótica” (TELES, 2009, p.149). No Brasil, https://www.youtube.com/watch?v=
uma das precursoras da nossa Oswald de Andrade seria um dos poetas que ZiESc3EiHwI&list=RDCMUCsgHWN8lY
poesia concreta. apresentariam influências cubistas. veMUEWTDheTjZA&start_radio=1&t=0

132 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


brio, tanto na forma quanto na homoge- Contudo, faz-se necessário reconhecer que de São Paulo, composto inicialmente por
neidade de ideias e sentimentos”. (TELES, há enormes diferenças: o projeto dos da- Augusto de Campos, Décio Pignatari e
2009, p.171). Daí a afirmação do romeno daístas tinha um propósito revolucionário Haroldo de Campos. A primeira mostra do
Tristan Tzara (1896-1963), líder do movi- de destruição da arte como instituição, en- movimento aconteceu no Brasil, em 1956, no
mento e responsável pelos principais ma- quanto Trívia, na década de 1990, asseme- MAM (Museu de Arte Moderna) de São Paulo.
nifestos do dadaísmo: “A obra de arte não lha-se muito mais a uma brincadeira sem a A poesia concreta surgia no Brasil com o
deve ser a beleza em si mesma, porque a mesma força revolucionária, mas com evi- intuito de combater o retrocesso formal que a
beleza está morta”. Na Biblioteca Virtual dente apuro estético que intenta jogar com chamada “Geração de 45” representava – na
do AVA, uma receita curiosa de Tzara para os padrões de poesia disponíveis. visão desses artistas – para a poesia da épo-
se escrever um poema dadaísta. Leia e des- Essas são poucas considerações sobre ca. Os concretistas se inspiraram bastante na
cubra-se também um poeta dadaísta! apenas algumas das vanguardas que des- poesia “Pau-Brasil” de Oswald de Andrade,
No Ceará, a obra Trívia: 1 livro fora do pertaram o mundo artístico e literário em seu com suas reduções linguísticas e técnicas
com/um (1996), do poeta Pedro Henrique tempo – até os dias de hoje. Mas o que dis- de montagem, assim como no rigor cons-
Saraiva Leão, em parceria com o produtor semos aqui é pouco mesmo, acredite. Vale a trutivo dos poemas de João Cabral de Melo
e artista gráfico Geraldo Jesuíno, apesar pena saber mais e refletir sobre essas ideias, Neto, para proporem suas inovações poéti-
da distância temporal e ideológica, apro- está bem? Agora, vamos sair de Montmartre cas. No âmbito internacional, Mallarmé, Ezra
xima-se bastante das experimentações diretamente à praça do Ferreira, onde estuda- Pound, e.e.cummings, Apollinaire e James
dadaístas, pois são inseridos na obra obje- remos um dos movimentos mais polêmicos Joyce foram as principais influências dos
tos como uma pequena cruz, um alfinete, da nossa literatura, visto, por alguns, como poetas concretistas brasileiros. A poesia
um grampo, alguns botões, um pente etc. um significativo movimento vanguardista concreta rompeu com o uso de formas fixas
e com a predominância do verso e passou a
valorizar a utilização do espaço gráfico-
-visual, o caráter sintético da construção e

4.
outros artifícios que possibilitassem a criação
de uma poesia dotada de objetividade.
O contexto social, político e econômi-
co da década de 50 no Brasil, o governo JK,
a construção de Brasília (1957-1960), entre
O CONCRETISMO outros, contribuiu bastante para a inserção
e fortalecimento das ideias de ruptura pos-
ARARAJUBA tuladas pelo movimento de poesia concreta
“É a poesia concreta quem inaugu- no país. Perceba que, no âmbito dos grandes
ra o segundo ciclo vanguardista centros São Paulo e Rio de Janeiro, a vanguar-
no contexto da modernidade lite- da concretista encontrou o espaço ideal para
rária brasileira. ” A professora de Te- o lançamento de suas ideias que claramente
oria Literária Iumna Maria Simon, dialogavam com o anseio pela moderniza-
em seu ensaio “Esteticismo e parti- ção tão em voga. A valorização dos meios de
cipação: as vanguardas poéticas no comunicação de massa também foi bastante
contexto brasileiro (1954-1969)”, faz significativa nesse momento, como mencio-
essa afirmação para ratificar que, na o crítico Antonio Candido em seu ensaio
depois do Modernismo de 22, nos “Literatura e Subdesenvolvimento” (1970).
anos de 1950, o Concretismo surge no Bra- E como aconteceu a chegada do Concre-
sil e assume o posto de segundo momento tismo ao Ceará, sabido que este era um es-
vanguardista de relevância no país. tado periférico e ainda predominantemente
O movimento nacional de Poesia Concreta agrário, ou seja, longe deste afã urbanístico
nasceu nos primeiros anos da década de 1950, que predominava o eixo sul e sudeste brasi-
pelo trabalho do grupo brasileiro Noigandres, leiro? É o que veremos a seguir.

CURSO literatura cearense 133


5.
O CONCRETISMO
BOLACHINHAS
A revista ad: Arquitetura & Decoração
não era um periódico do movimento
concreto brasileiro, embora
CABEÇA-CHATA durante 1956 e 1957 ela abrigasse
aroldo de Campos, em muitos artistas desse movimento,
“Contexto de uma van- principalmente os poetas de
guarda”, afirmou que For- Noigandres e Waldemar Cordeiro.
taleza “foi a primeira ca-
pital brasileira, depois
dos grandes centros São
Paulo e Rio de Janeiro, a
contribuir positivamente,
com ideias e criações, para
o movimento concreto”.
(CAMPOS, 1987, p. 155).
No Ceará, o poeta e ficcionista José
Alcides Pinto (1923-2008) foi, em 1957, o
principal responsável pela inserção do
movimento no estado. Alcides se corres-
pondia frequentemente com os irmãos Ha-
roldo e Augusto de Campos. Inúmeras des-
sas cartas foram perdidas, mas, das que
restaram, é interessante mostrar como os
paulistas apoiavam e elogiavam a atuação
dos cearenses:
A atividade de vocês aí em Fortaleza con-
tinua a nos surpreender. Com o material
enviado por você e pelo Girão [Antônio
Girão Barroso], preparamos uma reporta-
gem sobre o front concreto no Ceará, que
sairá num dos próximos números da revista
ad.[Arquitetura & Decoração] (29.10.1957)
Além dos elogios às atividades do gru-
po concretista cearense, todas as cartas
de Haroldo foram escritas no calor da
primeira hora concretista e tratavam
de contar detalhes das intermináveis de-
savenças dos irmãos Campos com a dissi-
dência liderada por Ferreira Gullar – fun-
dando o Neoconcretismo. É interessante
observar a expressão “o front concreto no
Ceará”, que, claramente demonstra que os
concretistas paulistas realmente conside-

134 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


ravam aquele movimento cearense repre-
sentante desta vanguarda. Porém, ao con- MALACA BOLACHINHAS
trário dos irmãos Campos, Alcides Pinto
continuaria suas boas relações com o au-
CHETAS
tor do “Poema sujo”, que, quando do fale- Eusélio Oliveira, em 1957,
cimento do primeiro, lamentaria a “perda A primeira exposição contou com juntamente com Eudes, o irmão,
pessoal” de um grande amigo: trabalhos de Antônio Girão Barroso lançaria o Manifesto Recentista,
(o poema “ó duquesa”, dito “quase da vanguarda. Foi, no Gazeta
A gente sempre tem a impressão que os
nossos amigos nunca vão morrer. A morte
concreto”), José Alcides Pinto (6 de Notícias, o responsável pelo
do Zé é uma perda para a literatura cea- poemas e 2 desenhos), Pedro Henrique suplemento literário “Literarte
rense, para a literatura brasileira e, para Saraiva Leão (2 poemas, sendo um GN”. Segundo, Azevedo, figura em
mim, uma perda pessoal. Ele foi meu com- deles “lucialindaluciabela”), Estrigas diversas antologias de vanguarda
panheiro de descobertas nos anos 1950. Te- (Nilo Firmeza: 2 guaches), Goebel nacionais e internacionais e seria
nho ainda hoje um exemplar do Rimbaud
Weyne (2 desenhos), J. Figueiredo (6 coautor das obras Três dedos de
autografado por ele. Aprendemos muito
juntos. (GULLAR, “Adeus ao Poeta Maldito”, desenhos), Zenon Barreto (1 desenho) Orfeu (1955) e Poegramas (1958).
em 3 de junho de 2008) e Liberal de Castro (3 desenhos).
Desses, somente o pintor J. Figueiredo
Antônio Girão Barroso, Horácio Dídimo,
não era cearense. Ele nasceu em São Vanguardista, insubmisso, desobediente
Eusélio Oliveira, Eudes Oliveira e Pedro
Luís do Maranhão e somente, em 1956, e inovador na criação de processos fic-
Henrique Saraiva Leão foram os poetas que,
transferiu-se para Fortaleza. cionais e na restauração da linguagem
juntamente com José Alcides Pinto, forma- poética, José Alcides Pinto é considerado
A segunda mostra reuniria alguns
vam esse grupo de poetas concretos do Ceará. o mentor do Movimento Concretista no
participantes da primeira (Antônio
José Alcides Pinto também foi um dos Ceará, e o seu representante mais des-
Girão Barroso, José Alcides Pinto, Pedro tacado, sendo por isto mesmo, luminosa
responsáveis pela realização das duas
Henrique Saraiva Leão, J. Figueiredo sua trajetória literária.
Mostras de Arte Concreta que ocorreram
e Goebel Weyne) e mais, do Ceará,
em Fortaleza. A primeira aconteceu, em Suas produções percorrem as veredas
Horácio Dídimo e os irmãos Eusélio e
julho de 1957, no “Clube do Advogado” do satanismo, através do erotismo e da lou-
Eudes Oliveira. Como contribuições de
(praça do Ferreira) e a segunda em feve- cura. Prefaciando Cantos de Lúcifer (1954),
fora a essa segunda mostra incluíam-
reiro de 1959, no Ibeu. É importante res- Cassiano Ricardo diz que a obra confirma,
se poemas de Haroldo de Campos,
saltar que a primeira exposição aconteceu a seu ver, “a inquietação do poeta múltiplo
Augusto de Campos, Décio Pignatari
menos de um ano depois do lançamen- e uno que é José Alcides Pinto, nos vários
e Ronaldo de Azeredo, de São Paulo,
to oficial do Movimento Concretista selves que polifacetam a sua personalida-
Alberto Amêndola Heinzl, de Campinas,
Brasileiro em São Paulo, e que as duas de”. Aparentemente simples, no entanto
José Chagas e Deo Silva, do Maranhão,
mostras contaram com a participação complexa, a sua vasta obra poética e fic-
e Ivo Barroso, do Rio de Janeiro.
não apenas de poetas, mas também de cional não segue nenhuma linha definida,
pintores, desenhistas e artistas plásti- pelo contrário, o autor mostra-se bastante
cos que se identificavam com as ideias e versátil em suas produções. Cada obra ad-
com a forma concretista. quire seu próprio estilo, organiza seu siste-
José Alcides, além de precursor do con- ma único, demonstrando a preocupação do
cretismo cearense, transitou por diversos escritor em renovar-se constantemente e
gêneros: foi poeta, ficcionista, teatrólogo, crí- fazer que seu universo seja o mais possível
tico literário, ensaísta, contista e memorialis- multiforme e atual. Cassiano Ricardo, ainda
ta. É conhecido por muitos como o poeta neste prefácio, cita a seguinte afirmação de
“maldito”, pois cultivava temas relacionados Gilberto Amado: “Concretismo, pós-surrea-
com a morte, o diabo e a miséria humana. lismo, qualquer que seja o rótulo, seus poe-
Assim o apresenta Dimas Macedo no prefá- mas rápidos, intensos, são poesia ressoan-
cio da obra Poemas Escolhidos (2003): te, reveladora do seu talento admirável”.

CURSO literatura cearense 135


Embora suas composições concretistas O poema “Fábrica”, a seguir, presente na Dídimo, embora tenha participado so-
não tenham sido muitas, pode-se dizer que obra Concretemas, também foi apresentado mente da II Mostra de Arte Concreta, seus
foram significativas. Entre suas obras con- na Exposição de Arte Concreta em Fortaleza. poemas são importantes para esse estu-
cretas estão: As águas novas (1975) e Con- do. Uma ironia: enquanto Horácio, poste-
creto: estrutura visual-gráfica (1956), da qual riormente, desenvolveria uma poesia mais
destacamos o poema “máquina”: voltada para o sagrado, Alcides Pinto
privilegiaria a outra face da moeda: o pro-
fano. Ressalte-se, entretanto, que as mar-
cas da religiosidade nas obras de Horácio
Dídimo foram se acentuando com o passar
dos anos, uma vez que, nos anos de 1950 e
1960, esse viés religioso ainda não era tão
forte em seus poemas.
Em 1959, os seus poemas apresentados
na II Mostra e, posteriormente publicados
no Jornal de Letras do Rio de Janeiro, fo-
ram, entre outros: “A fumaça”, “O empare-
dado” e “Necessidade”. Esses poemas se-
ria publicados anos depois em A palavra
e A PALAVRA (2002), mas com um impor-
tante diferencial que é o acréscimo das
passagens bíblicas, que complementam
Pedro Henrique Saraiva Leão era o ou mesmo modificam o sentido dos poe-
mais jovem componente do grupo de poetas Neste poema, a forma é predomi-
mas concretos. Além deste livro, completa
concretos do Ceará. Sua primeira publicação nante, pois o poema, gráfica e semanti-
sua obra concretista A nave de prata: livro
foi 12 poemas em inglês (1960). Apesar de camente, se “autofabrica”. O poeta, como
de sonetos & Quadro verde: poemas visuais
terem sido suas publicações mais tardias, a um operário da linguagem, vai construin-
(1991). Leiamos, agora, o seu poema “luz
sua participação foi importante para o mo- do a estética e a semântica do seu poema,
azul” de A palavra e a PALAVRA.
vimento, como afirma José Alcides Pinto no de forma que o resultado remeta a um ob-
prefácio de Concretemas (1983): jeto concreto da realidade. No caso deste
poema, o autor insere as letras de cima
O concretismo no Ceará foi por natureza
um movimento de equipe, sem chefes nem
para baixo sempre acrescentando uma le-
papismos. Mas teve seu consultor, como tra no final do sintagma, passando uma
acontece em todo grupo literário ou artís- ideia de construção. As duas últimas pa-
tico. E esse papel era desempenhado pelo lavras se diferenciam apenas pelo acento
mais jovem do grupo – Pedro Henrique agudo que está na última (“fabrica” – “fá-
Saraiva Leão. E foi na condição de acadê-
brica”) e que faz toda a diferença, pois é
mico de medicina e professor de Inglês do
Ibeu que cerrou fileiras ao nosso lado. na última palavra que está o núcleo do
poema: o advento da industrialização
e o aumento do número de fábricas em
diversas partes do país.
Outro importante nome para o movi-
mento de poesia concreta cearense é o de
Horácio Dídimo. A sua obra irá aos poucos
desenvolvendo também um viés místico EU VIM COMO LUZ AO MUNDO,
e religioso, aspecto que é tão importante ASSIM TODO AQUELE QUE CRER EM MIM
na obra de Alcides Pinto. NÃO FICARÁ NAS TREVAS. (Jó, 12,46)

136 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Utilizando-se apenas de dois vocábulos
(“luz” e “azul”), o poeta dispõe as palavras
no formato de uma cruz, colocando a letra
“a” no centro, de modo que estas palavras
formem o sintagma “luz azul” em qualquer
sentido que se leia. Este poema é um dos
mais famosos do autor e nele percebemos
já haver o viés religioso pelo seu formato de
cruz, sentido este reforçado, anos mais tarde,
com o acréscimo da citação bíblica de Jó.
Antônio Girão Barroso foi poeta, con-
tista e crítico. Era um dos nomes mais im-
portantes do grupo CLÃ, como vimos no
módulo anterior. A sua poesia caracteriza-se
principalmente pela adesão às ideias mo-
dernistas de abandono das formas poéticas Observando-se a estrutura formal do
tradicionais, empregando livremente versos poema, poucos são os traços que o carac-
longos ou curtos, rimas ocasionais, explora- Ó DUQUESA terizariam como um poema concreto. O
Ou
ção de recursos sonoros e, o que lhe é mais Poema Quase Concreto próprio poeta contesta o seu caráter intei-
interessante e peculiar, faz uso de uma lin- ramente concreto ao escrever nos primei-
guagem coloquial, privilegiando o português mansamente tua mão ros versos “ou poema quase concreto”. A
popular, pleno de brasileirismos, de neolo- é uma carícia cara esse “quase” poderia muito bem ter sido
ó duquesa! teu hálito
gismos, expressões populares e emprego acrescentada a palavra “nada”, que resul-
habita meu coração
irregular dos sinais de pontuação. Em rela- taria em “ou poema quase nada concreto”,
ção à sua vertente concretista, pode-se e dizem: engano ah! ratificando que o poema foge quase que
dizer que o autor aderiu sim ao movimento dá-me ganas de completamente às características formais
longitudinalmente oh!
de poesia concreta, inclusive participando desse tipo de poesia. Não se encontra nele
não fosses tu
das duas mostras ocorridas no Ceará, mas, um apelo visual, há a presença de versos, de
principalmente atuando como crítico, pois lipa e rosa enflorada rima (na primeira estrofe: mão - coração) e
quanto aos seus poemas, é notório que não que me gusta – e que me’ima a utilização de uma linguagem culta (dá-me
não há dúvida, duquesa
seguem à risca as ideias formais de com- ganas de...), que se afasta propositalmente
posição dos concretistas de São Paulo. O rosa ou simplesmente poema à tendência coloquial do autor. Somente no
seu poema “ó duquesa”, apresentado na pri- eomaples misuoasor último verso é perceptível a experimenta-
meira exposição de Arte Concreta do Ceará, p/ i e d o s a m e n t e ção concretista através da separação das
em 1957, é um ótimo exemplo disso: (BARROSO, 1994, p. 138). letras na palavra “p/ i e d o s a m e n t e”.

CURSO literatura cearense 137


Assim como algumas das vanguardas his- Porém, desde o início, tendeu a um menor
tóricas não alcançaram seu objetivo nem o compromisso com as formas do movimento,
público como desejavam, a poesia concreta pois enquanto os concretistas de São Paulo
brasileira também não conseguiu. Apesar de dedicavam-se prioritariamente à composi-
ter sido veiculada pelos meios de comunica- ção de poemas concretos, os do Ceará não
ção de massa, acabou ficando restrita aos assumiram tal obrigatoriedade e compu-
seus próprios teóricos e a alguns intelectuais nham seus poemas mais livremente. Con-

6.
que conseguiam acompanhar as técnicas tudo, apesar de não se dedicarem tanto ao
da nova poesia. Em linhas gerais, pode-se projeto da poesia concreta, percebe-se que
dizer que o movimento da poesia concre- a manifestação dessa vanguarda no estado,
ta no Ceará encontrou, aqui, solo fértil para além de legar aos poetas cearenses técni-
seus adeptos e suas atividades e produções. cas de composição e experimentação es-
tética, causou alguma estranheza no meio
A GERAÇÃO 60
Geração 60 do Modernis-
ainda fortemente tradicionalista, cumprin-
mo Brasileiro se caracteriza
do assim, ao menos em parte, o desígnio de
como um movimento que
todas as vanguardas.
apresenta aspectos artísti-
cos e literários provenien-
tes de diferentes tempos
e espaços. Nelly Novaes
Coelho é uma das primeiras
estudiosas a abordar, em
plano nacional, autores dessa faixa geracio-
nal, reunindo-os na Geração 60. Em Carlos
Nejar e a “Geração 60”, a autora escreve:
Chamamos de ‘Geração de 60’ aos poetas
das mais variadas tendências que se reve-
laram ou firmaram na década que acaba
de findar e que apresentam como denomi-
nador comum, a intensa pesquisa no sen-
tido do reajustamento da linguagem às
solicitações dos novos tempos, e o impulso
dinâmico da integração do homem e da
poesia no processo histórico em desen-
volvimento. (COELHO, 1971, p. 170).
Notamos que no discurso de Coelho
verifica-se na Geração 60 o surgimento de
novas preocupações, tanto no que se refere
à construção da linguagem quanto às te-
máticas a serem desenvolvidas.
Em 1995, o poeta, teórico, ensaísta e crí-
tico cearense Pedro Lyra organizou uma
antologia intitulada SINCRETISMO: a poesia
da Geração 60. Trata-se de uma coletânea
de 628 páginas, antecedida por um longo
estudo inicial sobre o conceito de “Geração”.
Nessa obra, o autor mapeia, classifica e ana-

138 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


lisa o perfil geracional de quarenta e cinco MALACA
escritores: Adélia Prado, Affonso Romano
de Sant’Anna, Carlos Lima, Carlos Nejar, Fer- CHETAS
nando Py, Ivan Junqueira, Marcus Accioly,
Reynaldo Valinho Alvarez e, entre outros, os Nelly Novaes Coelho incluía, no que
cearenses Linhares Filho, Roberto Pontes, denominou de “rótulo”, Geração
Horácio Dídimo, Adriano Espínola e Oswald de 60, o grupo paulista da Poesia
Barroso (filho de Antônio Girão Barroso). Concreta, o grupo mineiro de
É importante sabermos que em 1979 o Tendência e o movimento Práxis, além
poeta e crítico paraibano Sérgio de Castro de outras vozes significativas que se
Pinto, também incluído na antologia de firmaram independentemente de
Lyra, organizou a Antologia poética do grupo grupos em todo o país.
Sanhauá, focalizando as características lite-
rárias do grupo que representa a Geração
60 na Paraíba. O livro reúne trabalhos de
Marcos dos Anjos, Marcos Tavares, Marcus
SABATINA Compósito
Que é composto
Vinícius, Sérgio de Castro, entre outros. e caracterizado pela
De acordo com Pedro Lyra, uma gera- Para conhecer um pouco heterogeneidade
ção tem que superar a anterior. Superar mais sobre Pedro Lyra de elementos.
não no sentido de ser melhor, mas de im- http://blogs.opovo.com.br/
pulsionar para o novo. Nessa superação, o leiturasdabel/2017/11/10/coluna-
escritor conta com a vantagem de acumular ao-pe-ouvido-baladas-para-leitores-
a experiência de todas as gerações que o an- e-pedro-lyra/ apresenta múltiplas diretrizes, como
tecederam e desembocam na sua. Em SIN- o protesto de procedência regio-
CRETISMO, Lyra explica que a Geração de 60 nalista, voltado para o abandono
“é compósita, com vários segmentos e ver- do homem do interior. Um exemplo
como: um lirismo ostensivamente dessa diretriz é o livro Sumos do tem-
tentes, estilos e tendências fundindo-se num erotizado, do qual fazem parte, por
amplo sincretismo”. (LYRA, 1995, p. 159). po, de Linhares Filho. Ressalta ainda
exemplo, os poemas que compõem três aspectos importantes da segun-
Para melhor fixar os limites geracionais, Minha gravata colorida, de Adriano
com os quais trabalha, Pedro Lyra (1995) da vertente. São eles: (1) o protesto
Espínola; um lirismo universalista, direcionado para o cotidiano, como
apresenta alguns requisitos para a configu- de fundo cosmológico/metafísico
ração literária da Geração 60. Para conhe- exemplo, podemos citar Tempo de
e um lirismo de fundo místico. Tais chuva, de Horácio Dídimo; (2) o
cer essas faixas, consulte na sua Bibliote- aspectos reunidos formam o lirismo
ca Virtual do AVA. protesto de alcance cosmopolita,
crítico de uma geração que se recusa a exemplo da obra Antiuniverso, de
Pedro Lyra destaca também quatro ver- a apresentar um simples desabafo
tentes do discurso dos escritores da referi- Fernando Py; (3) o protesto de pro-
do eu, buscando uma maior liberta- cedência política, que pode ser visto
da Geração que surgiu “com um sonho de ção e expressão do ser em relação à
mudanças no coração e depois com a corda em Poemas do cárcere e da liberdade,
sociedade como um todo. de Oswald Barroso. Os poemas do
da ditadura no pescoço” (LYRA, 1995, p. 24).
Observe cada uma delas. b. Segunda vertente: denominada livro Verbo encarnado, de Roberto
Protesto Social, caracterizada por Pontes, também exemplificam essa
a. Primeira vertente: é a Herança Lí- uma poesia de participação, envolvi- vertente de poesia, levando em consi-
rica, que, de modo mais amplo, pode da com a realidade social, tendo em deração o seu caráter de insubmissão
ser considerada um traço marcante vista a situação histórica e política do e de resistência à ditadura, bem como
da poesia ocidental. Essa vertente se país e a iminente conquista do poder a presença da luta a favor da redemo-
subdivide em algumas diretrizes, tais pela esquerda. Tal vertente também cratização da sociedade brasileira.

CURSO literatura cearense 139


c. Terceira vertente: a chamada Explo-
são épica. É a diretriz mais importan-
Em conjunto: o ideal estético expresso
nesses metapoemas é o de uma poesia MALACA
te, não apenas deste segmento, mas
de toda a Geração. Um exemplo des-
concebida como expressão consciente do
eu mediada pela técnica, a partir de uma CHETAS
séria pesquisa de temas e modelos, formas
sa vertente é o livro Sísifo, de Marcus e atitudes, ensaiando uma reflexão sobre a Para conhecer a obra
Accioly, no qual apresenta uma reto- condição do poeta e a natureza da poesia,
indispensável de Juarez Barroso:
mada intertextual de toda a tradição num modo supremo de autoconhecimento
e autorrealização. (LYRA, 1995, p. 111). Juarez Barroso: obra completa (EDR)
do humanismo ocidental. Juarez Barroso: o poeta da crônica-
d. Quarta vertente: é a Convicção Como você observou, a Geração 60 canção, de Natercia Rocha
Metapoética, que pode ser exem- representa, portanto, um momento de (Substânsia, 2018).
plificada com O banquete, de Marly suma relevância para o contexto literário
de Oliveira. Essa vertente se carac- brasileiro, não só por ter lançado novos
teriza pela consciência da carpinta- nomes da Literatura, mas também por ter Eduardo Saboia – da Padaria Espiritual – e
ria poética. Sobre ela, Lyra ressalta impulsionado o processo de reafirma- esposa de Jáder de Carvalho), José Alcides
relativamente à Geração: ção da poesia ocidental. Pinto (certamente um dos mais ativos no pe-
Eram anos complicados, também na ríodo, sendo reconhecido e premiado nacio-
música a palavra de ordem era o sincre- nalmente, publicando poesia, romance, no-
tismo, e assim, pop, rock, samba, baião, vela e contos), Rachel de Queiroz (na década
bossa nova e folclore se amalgamavam de 60, com exceção de O menino mágico, só
em uma “geleia geral”. publicaria crônicas), Francisco Carvalho (um
dos maiores poetas que o Ceará nos trouxe),
Carlos d’Alge, Horácio Dídimo (aqui destaca-
do no movimento concretista, lançaria seus

7.
primeiros livros de poemas), Ciro Colares,
Caio Cid (pseudônimo de Carlos Cavalcan-
ti), Juarez Barroso (seu único livro publicado
em vida ganhou o Prêmio José Lins do Rêgo,
em 1968), Sânzio de Azevedo (publicaria seu
O GRUPO SIN livro de estreia como poeta, sendo, entretan-
s anos 60 no Ceará, cul- Ou seja, os anos de 1960, seriam de grande to, mais reconhecido futuramente pela ex-
turalmente, foram mar- produção literária no Ceará, do CLÃ e de in- tensa bibliografia sobre Literatura Cearense),
cados por diferentes dependentes, o que é facilmente constatado Caio Porfírio Carneiro, entre outros.
levantes de resistência em uma breve lista de publicações do perío- É no meio desse contexto que, em 1967,
artístico-social, no que do que você poderá encontrar na Biblioteca surge o grupo SIN, tendo como principal
se refere à literatura, ao Virtual do AVA. A seguir, alguns de nossos diretriz o sincretismo literário e artístico.
teatro e ao cinema. autores que publicaram na década de O movimento teve vida curta, porém
É importante nunca 1960: Fran Martins, Aluízio Medeiros, Eduar- produtiva. Iniciou-se com a articulação de
esquecermos que apesar do Campos (com grande profusão de gêne- estudantes, principalmente dos cursos de
de tratarmos aqui de ros: contos, romances e dramaturgia), Artur Direito e de Letras da Universidade Federal
outros movimentos que surgiriam nos anos Eduardo Benevides, Otacílio Colares, Morei- do Ceará (UFC), interessados por literatura e
50, 60 e 70, o CLÃ continuaria suas atividades, ra Campos, Milton Dias, Lúcia Martins (es- outras artes. Observe que o nome do grupo
entretanto, como afirma Sânzio de Azevedo, treando em livro), Durval Aires (publicando deriva de sincretismo, palavra oriunda do
“perdendo este sentido de movimento revo- suas “novelas-reportagens”), João Jacques étimo grego (synkretismos), que, conforme
lucionário (como aliás seria de se esperar), (irmão de Paulo Sarasate e redator-cronista o Dicionário online Caldas Aulete é um “sis-
até transformar-se numa agremiação aber- de O POVO, que surgia na cabeça do Cipó tema filosófico que consiste em combinar
ta, na qual vão ingressando outros nomes de Fogo, em 1931, publicaria crônicas e con- as opiniões e os princípios de diversas esco-
de nossa literatura”. (AZEVEDO, 1976, p.500). tos), Margarida Saboia de Carvalho (filha de las; mistura de opiniões combinadas para

140 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


tergilda e Roberto Pontes. O grupo também
formar um sistema misto, eclético”. A diver-
sidade temática e as diferentes formas criou um selo editorial, a SINedições, que BOLACHINHAS
de posturas artísticas são, pois, o cerne emprestou seu logotipo a seus integrantes.
do SIN, cuja poesia apresenta elementos do O contexto histórico no qual nasceu o
Pedro Lyra, em 1968, receberia o
sincretismo poético, uma vez que assimila SIN, no entanto, não era propício à articula-
Prêmio Esso: Jornal de Letras
processos, técnicas e modos praticados pe- ção de movimentos culturais, sociais e mui-
para Universitários Brasileiros
los poetas brasileiros precedentes. Destaca- to menos políticos. Assim, o grupo nasceu
com o ensaio “Quem tem medo
mos, contudo, que alguns demonstravam e dissolveu-se no mesmo ano. Naquele
de Augusto dos Anjos?”.
certa reação à poesia do grupo CLÃ, sobre- momento, o Brasil vivia o regime ditatorial
tudo no tocante aos seguidores do formalis- instaurado em 1964 e a censura era rígida. In-
mo Neoparnasiano da Geração de 45. telectuais como Alceu Amoroso Lima, Oscar A imprensa também registrou a impor-
Constitui-se inicialmente por Horácio Dídi- Niemayer, Antonio Candido e Antonio Hou- tante presença do SIN no panorama literá-
mo, Linhares Filho, Pedro Lyra, Roberto Pon- aiss posicionaram-se no sul do país contra a rio cearense. Caio Cid, prestigiado cronista
tes e Rogério Bessa. Aos fundadores uniram- ditadura, por ocasião do episódio da assina- de então, ressaltou a rápida, porém mar-
-se Barros Pinho, Yêda Estergilda, Leão Júnior, tura do histórico “Manifesto dos Intelectuais cante atuação do grupo. No artigo escrito
Rogério Franklin, Lêda Maria, Marly Vasconce- Contra a Censura”. O apoio a esse manifesto, no Correio do Ceará, em maio de 1968, sob
los e Inês Figueiredo. Os, então, estudantes se bem como as assinaturas de adesão dos in- o título “Recebo um livro esquisito”, a pro-
reuniam nas residências dos integrantes e na tegrantes do SIN foram solicitados por aque- pósito da publicação da primeira coletânea
antiga Livraria Universitária, à época, situada les intelectuais por meio do teatrólogo B. de do SIN, disse ele: “Trata-se como se vê, de
à praça do Ferreira. A primeira apresentação Paiva, servindo o poeta Roberto Pontes de gente nova e inovadora. Literatura moder-
pública dos jovens poetas do SIN ocorreu na porta-voz junto ao grupo. Contudo, os es- na. Turma de vanguarda, com minúsculas
aula de encerramento do curso de Letras, da critores cearenses se mostraram divididos nos nomes e ideias doidas nas cabeças in-
UFC, na disciplina de Literatura Brasileira, re- quanto à adesão que deveria ser prestada a cendiadas pelo sentido da poesia revolu-
gida pela professora Aglaeda Facó, em 1967. esta manifestação. Roberto Pontes se propôs cionária.” (CID, 1968, p. 34).
Na ocasião, foram distribuídos e declamados a assiná-lo, mas não havendo unanimidade O Gazeta de Notícias, de Fortaleza, publi-
poemas dos participantes que, posteriormen- nem consenso, o grupo se desfez em seu iní- cou em 19 de maio de 1968 o documento
te, foram reunidos em coletâneas: Minisinan- cio. Adriano Espínola examina esse contexto “Denúncia/Comunicado”, registrando o fim
tologia I e Minisinantologia II. na apresentação intitulada “Uma geração daquele grupo, que, mesmo breve, assim
Como as duas primeiras publicações ob- entre o SIN e o Não”, escrita para a Revista de como o Orpheu em Portugal, muito contri-
tiveram sucesso, os participantes decidiram Letras, nº 15, comemorativa dos 25 anos de buiu para a afirmação de seus integrantes
imprimir a SINantologia, que foi editada fundação do grupo SIN (1993): no cenário da literatura brasileira, conforme
pela Imprensa Universitária da UFC e lan- ressalta a matéria “SIN, um grupo que a cen-
É bom que se diga, entretanto, que o SIN logo
çada no Museu de Arte da Universidade Fe- sura dividiu”, publicada no jornal O POVO.
se dissolveu devido, por um lado, a discordân-
deral do Ceará, o Mauc, em 20 de março de cias ideológicas de seus membros e, por outro, É importante acrescentar que os autores
1968, com apresentação de Artur Eduardo à repressão e perseguições que se seguiram do grupo SIN se inserem na chamada Gera-
Benevides, poeta do CLÃ. após a ditadura militar editar o sinistro ção 60, tendo em vista a importância que
AI-5. A partir daí, como se sabe, todo e qual- têm no contexto nacional da arte e da cul-
O SIN não contemplou apenas a literatu-
quer agrupamento político, cultural ou literá- tura, conforme demonstrou Pedro Lyra no
ra, mas também a outras linguagens, como rio tornou-se suspeito em potencial. Perigoso.
o teatro, com as peças “Canga e crença, meu Alvo dos militares era acabar com a cultura do
livro SINCRETISMO: a poesia da Geração 60
Padim”, de José Leão Júnior, dirigida pelo país, silenciar os incômodos intelectuais, artis- (Introdução e Antologia) (1995).
autor, e “A prostituta respeitosa”, de Jean tas e críticos do regime. Amordaçar a palavra,
sufocar a criatividade, baixar o cacete na mo-
Paul Sartre, dirigida e levada à cena no palco
çada mais rebelde e “subversiva”. Com a barra
da Faculdade de Direito da UFC por Rogério assim pesando, o grupo SIN – como de resto
Franklin de Lima. Na música, o SIN mante- vários outros, se não totalidade das agremia-
ve contatos com o movimento “Pessoal do ções culturais que existiam no Brasil – se desa-
Ceará”, que se articulava na Faculdade de Ar- gregou. (ESPÍNOLA, 1993, p. 10).
quitetura da UFC, por intermédio de Yêda Es-

CURSO literatura cearense 141


8. BOLACHINHAS iniciaria roteiros que seriam futuramente exi-
bidos pela Globo) ou à morte (frei Tito). Eram
tempos inseguros, de medo e constante insa-
Mário Gomes, biografado por tisfação político-social, econômica e artísti-
O CLUBE Márcio Catunda em Poeta, santo e
bandido, tornou-se uma lenda urbana
co-cultural. Em 1971, foi criada a Associação
Profissional dos Escritores do Ceará por
DOS POETAS em Fortaleza, o “poeta da praça Jáder de Carvalho (seu primeiro presidente),
Artur Eduardo Benevides, Carlyle Martins,
do Ferreira”, o andarilho, o louco
CEARENSES briguento, mas sempre reconhecido Ciro Colares, Antônio Girão Barroso, Cândida
m 12 de abril de 1969, tem início como poeta, mesmo por aqueles que Galeno, Abdias Lima, entre outros.
o Clube dos Poetas Cearenses, nunca leram um verso sequer seu. Nesse contexto conturbado, em 1976, o
tendo com fundadores Carneiro poeta e livreiro Manoel Coelho Raposo, o
Portela, Pádua Lima e João Bosco poeta e ficcionista Jackson Sampaio, o fic-
Dantas. As reuniões aconteciam na cionista e ensaísta Nilto Maciel e o romancis-
Casa de Juvenal Galeno. A maioria ta e poeta Carlos Emílio Corrêa Lima cria-
de seus participantes eram jovens, riam O Saco, “revista mensal de cultura”, um
que iam e vinham, chegavam e se periódico que desde o primeiro número trazia
despediam. Entre alguns de seus colaborações de escritores de todo o Brasil e
participantes: Cândido B. C. Neto, até do exterior. Foram apenas sete edições
Dimas Macedo, Alex Studart, Edmilson Cami- bimestrais, mas a publicação ganhou gran-
des proporções no cenário nacional, circu-

9.
nha Jr, Juarez Leitão, Mário Nogueira, Vicente
Freitas, Márcio Catunda, Guaracy Rodrigues, lando por bancas de revistas em dezessete
Stênio Freitas, Costa Senna, Ricardo Guilher- estados do Brasil e contando com 12 cola-
me, Walden Luiz, Aluísio Gurgel do Amaral Jr. boradores internacionais, de países como
e Mário Gomes, entre muitos, muitos outros. Portugal, Espanha, Suécia, Estados Unidos e
Entre as atividades do Clube estava a or- LITERATURA Suíça. Alguns dos nossos escritores estreariam
n’O Saco, como o cronista Airton Monte, por
ganização e publicação de antologias – che-
gou a publicar quatro, sendo a última com N’O SACO exemplo, que apenas em 1979 lançaria seu pri-
organização de Carneiro Portela, capa de Nos dias primaveris, colherei flores / meiro livro de contos: O grande pânico.
Rosemberg Cariry sobre desenho de Luiz Ca- para meu jardim da saudade. Em 2006, em entrevista para um peri-
rimai –, bem como publicações em revistas e Assim, exterminarei a lembrança ódico local, Carlos Emílio argumentou:
jornais, além da realização de eventos como de um passado sombrio. “algumas pessoas achavam a literatura ‘um
a “Semana de Estudos de Literatura Cearen- saco’, então resolvemos colocá-la dentro de
Frei Tito de Alencar (12.10.72) um para divulgá-la”.
se” e o “Festival de Poesias”.
os anos de 1970, o cenário O objetivo do periódico era propor algo
artístico nacional estava novo para os padrões da época e, para tanto,
cada vez mais fragmentado. a publicação se valeu de um projeto experi-
Os “anos de chumbo”, espe- mental, considerado até os dias atuais ainda
cialmente com o advento arrojado. A revista não vinha encadernada,
do cruel e sangrento Ato colada ou grampeada. Pelo contrário, suas
Institucional nº 5 (AI-5), folhas eram arrumadas em quatro encartes:
ainda em 1968, perseguiram prosa, poesia, artes plásticas e um anexo com
e levaram muitos artistas ao entrevistas, críticas literárias, reflexões e ma-
exílio e à clandestinidade, térias jornalísticas. Esses encartes viam quase
ao cárcere (como o poeta soltos num envelope de papel que era pendu-
Gerardo Mello Mourão – na mesma cela de rado nas bancas de revista.
Zuenir Ventura, Ziraldo e Hélio Pellegrino – e Para Nilto Maciel, O Saco não se confi-
a jornalista Heloneida Studart – quando gurava como um movimento. Segundo

142 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


o escritor, “o objetivo era, antes de tudo,
editar uma revista sem bairrismo, regio- SABATINA REFERÊNCIAS
nalismo, nacionalismo ou qualquer outro BARBALHO, Alexandre. Cultura e Imprensa alternativa.
Tentamos compensar o pouco espaço Fortaleza: UECE, 2000.
‘ismo’. Queríamos publicar nossas obras e
encontrar espaço de destaque em resposta que tivemos nesse fascículo, inserindo BARROSO, Antônio Girão. Mini SINantologia 2. In: Correio do
ao ‘Sul-Maravilha’ e aos veículos que só se o máximo de material complementar Ceará. Fortaleza, 15 de junho de 1968.
interessavam pelos medalhões”. sobre os grupos e manifestos em nossa BESSA, Rogério. Contracanto. In: Gazeta de Notícias de
Alexandre Barbalho, no livro Cultura e Biblioteca Virtual do AVA, que está Letras. Fortaleza, 31/03 a 01/04 de 1968.
imprensa alternativa, destaca, inclusive, fantástico. E por falar em FANTÁSTICO, CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento in: A
que a revista conseguiu dar visibilidade não perca o módulo 10 de nosso curso. Educação pela Noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.
às diferentes ideias dos escritores da dé- COELHO, Novaes Nelly. Carlos Nejar e a Geração de 60. São
cada de 70, sem a preocupação de defi- Paulo: Saraiva, 1971.
nir uma corrente estética a ser seguida. Gilmar de Carvalho estava na mira da DAMASCENO, Kedma Janaina Freitas. A vanguarda concretista
Segundo o autor, eram publicadas tanto censura do regime que, para desautorizá-lo, no contexto da literatura cearense. 2012. 139f. – Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal do Ceará. Disponível em
poesias de denúncia quanto textos mais o acusaria de escrever “pornografia” no Ga- http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/8087.
experimentais. Dessa forma, caracteriza- zeta de Notícias, periódico no qual colabo-
DÍDIMO, Horácio. A NAVE DE PRATA: livro de sonetos &
va-se como uma revista democrática rava. O resultado foi a intimação para com- QUADRO VERDE: poemas visuais. Fortaleza: Imprensa
por reunir escritores de diversos gêneros, parecer no temido Departamento de Ordem Universitária, 1991.
além da colaboração de diversos artistas Política e Social (Dops).
________________. A palavra e a PALAVRA. 3 ed. Fortaleza:
plásticos que a ilustravam. Dois anos depois, em 14 de julho de Editora UFC, 2002.
A revista circulou até 1977, mesmo ano 1979, remanescentes do Clube dos Poetas
ESPÍNOLA, Adriano. Literatura no Ceará. In: Diário do
de publicação do livro Queda de braço: uma Cearenses e d’O SACO, ao lado de outros jo- Nordeste-DN Cultura. Fortaleza, 16 de janeiro de 1983.
antologia do conto marginal, publicado no vens escritores, lançariam o Manifesto Si-
_________________. Uma geração entre o SIN e o NÃO.
Rio de Janeiro. Organizada por Glauco riará, posicionando-se “contra a ritualística In: Revista de Letras da Universidade Federal do Ceará,
Mattoso e Nilto Maciel, a antologia reunia de um passado literário que formal e con- jan.1990/dez. 1993, p. 9-18.
os escritores d’ O Saco ao lado de outros au- teudisticamente não mais representa a rea- LEÃO, Pedro Henrique Saraiva. Concretemas. Fortaleza: Xisto
tores marginais do país em um panorama lidade nordestina do momento. [...] Somen- Colona Editor, 1983.
artístico literário de sua época. No mesmo te dentro dessa roupagem nos permitem LEÃO, P.H.S, COSTA, G.J. Trívia: 1 livro fora do com/um.
ano, no Ceará, era publicado o romance lançar nacionalmente nossa ‘mercadoria’”. Fortaleza: Edições UFC, 1996.
Parabélum, de Gilmar de Carvalho, obra Assinam o manifesto: Adriano Espínola, An- MACEDO, Dimas. A obra literária de José Alcides Pinto. In:
considerada pouco compreendida quando tônio Rodrigues de Sousa, Batista de Lima, PINTO, José Alcides. Poemas escolhidos. Rio de Janeiro:
de seu lançamento, fosse pelo estilo radical, Airton Monte, Carlos Emílio Corrêa Lima, Eu- Editora GRD, 2003. p. 17. 56
na experimentação da linguagem, ou pelo gênio Leandro, Fernanda Teixeira Gurgel do MARQUES, Rodrigo. A nação vai à província: do
próprio formato fragmentado do romance. Amaral, Floriano Martins, Geraldo Markan, romantismo ao modernismo no Ceará. Fortaleza: Imprensa
A obra é considerada por críticos e pesqui- Jackson Sampaio, Joyce Cavalcante, Lydia Universitária, 2018.
sadores relevante para se refletir acerca dos Teles, Paulo Barbosa, Paulo Veras, Rogacia- PINTO, José Alcides. As Águas Novas. Fortaleza: Editora
anos 70 no Ceará. O que nos diz o autor: no Leite Filho, Rosemberg Cariry, Sílvio Bar- Henriqueta Galeno, 1975.
Parecia que estávamos na direção da cons- reira, Márcio Catunda, Maryse Sales Silveira, SIMON, Iumna Maria. Esteticismo e participação: as vanguardas
trução de um país. Vivemos um momento Marly Vasconcelos, Natalício Barroso, Nilto poéticas no contexto brasileiro (1954-1969), in: PIZARRO, Ana (Org.)
de grande retrocesso. Esta onda moralizan- Maciel, Nirton Venâncio e Oswald Barroso. América Latina: Palavra, Literatura e Cultura. São Paulo:
te existia no tempo da ditadura militar com Memorial da América Latina; Campinas: Ed. UNICAMP, 1995. v.3.
Dimas Macedo, em seu ensaio “Literatura
a TFP e o Comando de Caça aos Comunis- SILVA, Fernanda Maria Diniz da. Tradição e modernidade
tas. Ainda hoje, na enunciação deste dis- e Escritores Cearenses”, assegura que o grupo
Siriará não deixou “uma contribuição signifi- na produção poética de Roberto Pontes. 2017. 281f. - Tese
curso retrógrado, temos palavras de ordem (Doutorado) - Universidade Federal do Ceará. Disponível em
contra o comunismo que não existe mais, cativa, enquanto movimento de renovação http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/28433
depois da queda do Muro de Berlim (1989) estética e literária. Foi uma atitude muito
e muitas falas a favor da intervenção mili- TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e
mais do que um grupo literário com dispo- Modernismo Brasileiro: apresentação dos principais
tar. Deus nos acuda! (CARVALHO, Gilmar,
sição de aglutinar uma proposta concreta de poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas,
em entrevista: 17.11.2017)
ação ou coisa que o valha” (MACEDO, 2011). de 1857 a 1972. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

CURSO literatura cearense 143


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Fernanda Diniz Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)
(UFC), com mestrado em Letras, MBA em Docência e João Dummar Neto Presidente
Metodologia do Ensino Superior, especialização em Gestão André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
e Coordenação Escolar, doutorado em Letras e pós- Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
doutorado em Educação, também pela UFC. Professora
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
efetiva da Secretaria da Educação do Estado do Ceará. e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
Tutora no curso de Letras da UFC Virtual. Coordenadora
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
Pedagógica da Escola de Gestão Pública do Ceará (EGPCE). Viviane Pereira Gerente Pedagógica
É membro da Academia Maracanauense de Letras (AML), Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
na cadeira 25, cujo patrono é Pedro Lyra. Integra o Grupo de Joel Bruno Designer Educacional
Pesquisa Estudos de Residualidade Literária e Cultural (UFC) CURSO LITERATURA CEARENSE
e o Grupo de Pesquisa em História da Educação do Ceará Raymundo Netto Coordenador Geral,
(UFC). É organizadora das publicações do grupo Ceará em Editorial e Estabelecimento de Texto
Letras e é acadêmica de Psicanálise (IAPB). Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Kedma Damasceno Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
É graduada em Letras, com mestrado em Literatura Miqueias Mesquita Diagramador
Carlus Campos Ilustrador
Comparada e Graduação em Letras (Português/Literaturas)
Luísa Duavy Produtora
e é doutoranda em Letras pela Universidade Federal do
ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
Ceará (UFC). Professora efetiva da Secretaria da Educação ISBN: 978-65-86094-21-3 (Fascículo 9)
do Estado do Ceará. Integrante do Grupo de Estudos de
Literatura, Tradução e suas Teorias (GELTTTE/UFC/CNPQ) e
do Grupo Antonio Candido/ História e Literatura, da UFC.

ILUSTRADOR
Carlus Campos Todos os direitos desta edição reservados à:
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira em Fundação Demócrito Rocha
1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas fdr.org.br
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nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo.
Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de
Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

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Realização
CURSO
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10 Escritos
do Ignoto
A Literatura Fantástica
Aíla Sampaio

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Realização
xarmos surpreender por aparições e fantas-
magorias, ou melhor, estamos prontos para
apreciá-las de outro modo, como elementos
da cor da época” (CALVINO, 2004, p. 9).

1.
Na obra, Calvino seleciona narrativas
de diversos autores, alguns reconhecida-
mente marcados pelo fantástico, como
Hoffman, Poe, Hawthorne, Stevenson, en-
VOCÊ! AINDA tre outros que apenas experimentaram o
fantástico, mas destacaram-se em outros
HÁ TEMPO gêneros, embora o organizador reconheça
o relevo das narrativas elencadas, que ser-
PARA VOLTAR... vem de base de sustentação ao fantástico
Antigas como o medo, as ficções mundial, como é o caso de Théophile Gau-
fantásticas são anteriores às letras. tier que, conforme Calvino, tem “A morte
As assombrações povoam todas amorosa” (1836) como “o mais famoso e o
as literaturas: estão no Avesta, na Bíblia, mais perfeito (talvez até perfeito demais,
em Homero, no Livro das mil e uma noites. como frequentemente ocorre em Gautier),
Talvez os primeiros especialistas executado e burilado de acordo com todas
no gênero tenham sido os chineses. as regras. O tema dos mortos-vivos e dos
vampiros (no caso em questão, uma vampi-
Adolfo Bioy Casares, em Antologia da
ra) apresenta-se aqui numa espécie de alta
Literatura Fantástica (2013).
qualidade, que mereceu os elogios de Bau-
as se eu fosse você, fica- delaire” (CALVINO, 2004, p. 213).
ria por aqui! Na sua seleção, Gogol, Mérimée, An-
Ítalo Calvino, na in- dersen, Dickens, Turguêniev, Balzac, Scott,
trodução de sua antolo- Maupassant, James, Kipling, Wells, Poto-
gia Contos fantásticos do cki, entre outros.
século XIX, afirma em seu É notável como as lendas, os causos e as
primeiro parágrafo: “O tradições locais, especialmente os interiora-
conto fantástico é uma das nos, se transfiguram em fantástico literário,
produções mais caracterís- seja no Ceará ou no Mundo. São histórias de
ticas da narrativa do sécu- vingança – pós-túmulo ou não –, a presença
lo XIX e também uma das mais significativas de entes supra-humanos, inclusive empres-
para nós, já que nos diz muitas coisas sobre tados do folclore, assombrações – mortos
a interioridade do indivíduo e sobre a simbo- em acidentes trágicos ou assassinados – e
logia coletiva. [...] Sentimos que o fantástico os castelos ou casarões amaldiçoados. Por
diz coisas que se referem diretamente a nós, outro lado, apenas estados psicológicos de
embora estejamos menos dispostos do que horror, medo ou mesmo um pesadelo po-
os leitores do século passado [XIX] a nos dei- dem configurar uma boa narrativa fantástica.

146 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


BOLACHINHAS Braulio Tavares, que é um dos maio-
res estudiosos da Literatura Fantástica no
Na obra Páginas de sombra: contos fan-
tásticos brasileiros (2003), podemos encon-
país, autor/organizador de, pelo menos 7 trar em sua apresentação um rico ensaio
livros em torno do tema, reconhece que as sobre o tema tão controverso do gênero fan-
O diabo apaixonado (1772), de
narrativas fantásticas, com o tempo, am- tástico, incluindo os elementos clássicos que
Jacques Cazotte, é considerado por
pliaram o seu campo além dos “veículos” povoam a sua seleção, além de outras ques-
muitos teóricos como a estreia da
clássicos, como a literatura propriamente tões do gênero como a sua fronteira com a
Literatura Fantástica mundial.
dita (incluindo o cordel), o teatro e a ópe- ficção científica, diferenciando a suposta lite-
ra, chegando aos dias atuais por meio do ratura fantástica praticada por H.G, Wells da
cinema, das graphic novels e do RPG. E diz: realista de Jules Verne, por exemplo.
“Assim como o inconsciente prospectado Adolfo Bioy Casares, coorganizador – ao
pelos psicanalistas, o fantástico é tudo que lado de Jorge Luís Borges e Silvina Ocampo
não é, tudo que não está onde estamos, – da Antologia da Literatura Fantástica (2013),
tudo que não existe assim, tudo que está em seu “Prólogo”, sugere a classificação dos
fora de nosso campo de visão, tudo que contos fantásticos pela sua explicação: “a) os
não pode acontecer (ou, mas ameaçado- que se explicam pela ação de um ser ou de
ramente, tudo que não poderia ter aconte- um fato sobrenatural; b) os que têm explicação
cido).” (TAVARES, 2003, p.7-8). fantástica, mas não sobrenatural (“científica”
não me parece o adjetivo conveniente para
essas invenções rigorosas, verossímeis, à força
de sintaxe); c) os que se explicam pela interven-
ção de um ser ou de um fato sobrenatural, mas
insinuam, também, a possibilidade de uma
explicação natural; os que admitem uma alu-
cinação explicativa”, depois, informando que
“Essa possibilidade de explicações naturais
pode ser um acerto, uma complexidade maior;
geralmente é uma fraqueza, um subterfúgio
do autor, que não soube propor o fantástico
com verossimilhança.” (BIOY, 2013, p.17).
Por ser tão atraente e polêmica, pela sua
controversa teorização, pelos textos e antolo-
gias diversas que pautam sobre essa exube-
rante produção, não poderíamos nós, neste
curso, deixar de fora o fantástico. Assim, nes-
te módulo trazemos um breve panorama do
texto fantástico escrito na Ceará, do século
XIX aos nossos dias, optando por citar inú-
meros autores que nos deixaram ao menos
um rastro no gênero, sendo eles incluídos na
antologia O cravo roxo do diabo, uma espécie
de guia possível para nossa exposição.
Seguindo os mesmos cânones da lite-
ratura nacional, a literatura cearense tem
representação expressiva nas narrativas do
gênero, que seduzem escritores e leitores,
por trazerem acontecimentos que desafiam
a razão e se mantêm inexplicáveis.

CURSO literatura cearense 147


No Brasil, as primeiras manifestações do
fantástico podem ser encontradas nos con-
tos de Álvares de Azevedo e, posteriormen-
te, de Machado de Assis, rearfirmando-se
depois em narrativas de outros escritores,
entre os quais J. J. Veiga, Moacir Sclyar,
Murilo Rubião e Lygia Fagundes Telles.
A sistematização dos cânones do fantás-
tico passou por muitas revisões. A mais tradi-
cional, de Tzvetan Todorov, no livro Introdu-
ção à Literatura Fantástica, assevera que ele
se dá por meio da hesitação do leitor em
“aceitar” ou não os fenômenos narrados,
desde que tais fenômenos não predispo-
nham uma leitura alegórica nem poética.
O crítico estruturalista opõe, ainda, o
que ele chama fantástico a outros dois
conceitos fronteiriços: o estranho e o ma-
ravilhoso. O fantástico ocupa o tempo da
incerteza, da vacilação entre aceitar ou
não o evento extranatural. Assim que se
escolhe uma resposta ou outra, o fantásti-
co é abandonado e entra-se no domínio de
um dos gêneros “vizinhos”, o estranho ou o
maravilhoso, dos quais falamos.
Erdal Jordan, em seu livro La narrativa
fantástica (1998), com uma visão mais atual

2.
do fenômeno, assegura que a hesitação é
característica do fantástico tradicional –
século XIX. O fantástico moderno não va-
cila entre aceitar ou não o fato sobrenatural,
O GÊNERO raízes nas histórias de deuses, fadas e feiticei- não provoca espanto diante dele, ou seja,
ras da Antiguidade Clássica. Como todo gê- o evento insólito é naturalizado (ERDAL
FANTÁSTICO E nero, o fantástico teve estabelecidos os seus JORDAN, 1998, p. 110), embora seja patente
cânones, continuamente fundamentados e uma inexplicável transgressão de ordem.
SEUS “VIZINHOS” revisados por teóricos como Roger Callois, Corroborando essa concepção atual, Ana
gênero fantástico se con- Tzvetan Todorov, Irene Bessière, Louis Vax, María Barrenechea afirma a configuração do
solidou como estética a Victor Bravo, Filipe Furtado, e, mais adiante, fenômeno “em forma de problemas feitos a-
partir do período do Ro- pelo crítico Erdal Jordan e pela filóloga ar- -normais, a-naturais ou irreales em contraste
mantismo – mais espe- gentina Ana María Barrenechea, entre outros. com factos reais, normais ou naturais”, con-
cialmente, do Romantis- Mestres do horror, como H.P. Love- siderando-se, assim, fantástico todo texto
mo alemão –, com suas craft, E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan cujo enredo encene acontecimentos que
narrativas góticas (essas, Poe e Téophile Gautier, deixaram um le- transponham as leis naturais, ou seja, que
desde o século XVIII, ori- gado para os amantes do sobrenatural e coloquem em conflito o mundo empírico e o
ginária da Inglaterra), exerceram influências na ficção fantástica mundo fantasioso, sem necessariamente
embora já tivesse suas produzida em todo o mundo. instalar o espanto ou o medo.

148 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


3.
das narrativas de Álvares de Azevedo em
Noite na taverna (1855): enquanto traba- BOLACHINHAS
lham com a mandioca, em um serão na fa-
rinhada, os sertanejos contam histórias de A dissertação de mestrado de
caiporas, aventuras de caçadas e encanta- Vicente Jr., Aspectos do Fantástico na
À RODA mentos. São histórias dentro de uma histó- Literatura Cearense (2003), disponível
na Biblioteca Virtual do AVA, traz
DE CAUSOS ria. Igual estrutura está no conto “Capitão
Maciel, 3.ª companhia”, de Tomás Lopes, uma ótima análise dos elementos
SOBRENATURAIS cujo enredo deixa claros seus desdobra-
mentos: “Depois do jantar, na salinha do
característicos do fantástico, além de
uma síntese teórica sobre o gênero
o Ceará, o primeiro con- fantástico e a sua “vizinhança”,
café, falava-se em casos estranhos, misté-
to fantástico de que se como o maravilhoso, o estranho, o
rios do além-túmulo. Cada um contava a
tem registro foi escrito absurdo, entre outras vertentes ainda
sua história, todos, porém, afetando des-
no século XIX, por Juve- mais complexas, como fantástico-
crença, ceticismo, explicando tudo pela
nal Galeno – mais um maravilhoso, o fantástico-estranho etc.
coincidência”, numa tentativa de racionali-
pioneirismo na sua lista
zação que não impede o espanto, quando Na dissertação, aponta: “Quando
–, com o título “O senhor
se constata a aparição de um morto, mo- assinalamos aqui que Oliveira Paiva
das caças” – integrante de
tivo também presente em “A basílica”, de conseguiu o efeito fantástico no conto
Cenas populares (1871) –,
Cruz Filho, cujo enredo comprova a pre- por nós estudado [“O ar do vento,
e tem a mesma estrutura
sença da ex-escrava nas ruínas da igreja Ave-Maria”], não foi simplesmente
onde morreu. Florival Seraine, igualmen- por ter fundamentado seu texto em
te, em seu “Guajara”, coloca o insólito em um elemento terrificante do folclore
contação de causos numa venda. brasileiro, a mula-sem-cabeça, mas
O Realismo cearense foi prodigioso no pela utilização também de outros
espírito inventivo das narrativas fantás- recursos (não teorizados à época)
ticas do século XIX. Duas representações como a construção de um espaço
significativas estão nas narrativas de Pápi adequado à narrativa fantástica
Jr. (“A Cruz-das-Malvas”) e de Oliveira (Furtado: 1980) o entrelaçamento
Paiva (“O ar do vento, Ave-Maria”). No en- de dois mundos (Bravo: 1985),
redo do primeiro, há uma atmosfera pro- um discurso fundamentado na
pícia para o sobrenatural, na descrição “alteridade” (Levi Strauss: 1967),
esmerada da escuridão da noite “impe- causador da “inquietante estranheza”
netrável e compacta, corria-nos pela fren- (Freud: 1933) e uma poética de
te como um largo pano sujo de fuligem”, “incertezas” (Bessière: 1974)”.
em que aparece, na estrada, em frente à
cruz-das-malvas, o fantasma da pessoa
que lá foi enterrada. Na do segundo, tem-
-se a aparição de um monstro, no meio
da noite, carregando a cabeça de uma
mulher (fazendo, ainda, “umas caretas
horrorosas”) para enterrar. Oliveira Paiva
ultrapassa o realismo-regionalista e, por
meio da temática do imaginário popular
da burra de padre (a amásia de vigário se
transforma em burra-de-padre), fixa a at-
mosfera sobrenatural na ficção.

CURSO literatura cearense 149


SABATINA
“Emília Freitas foi, sem dúvida, uma
das principais escritoras de seu tempo,
ao lado de Francisca Clotilde e Úrsula
Garcia. A partir de 1873, aos dezoito anos,
começou a participar ativamente da vida
cultural da cidade, através da publicação
de textos em prosa e de poemas, em
jornais como Libertador, O Cearense,
Lyrio e A Brisa. Anos mais tarde, ainda em
Fortaleza, participou com outras mulheres
da Sociedade das Cearenses Libertadoras,
de caráter abolicionista, destacando-se na
defesa dos escravos.” (DUARTE, 2003, P.5)

Existem, entretanto, aqueles que não

4.
veem na obra o componente fantástico,
mas, sim, de maravilhoso, um de seus “vi-
zinhos” fronteiriços aqui destacados.
O enredo desse romance cujo subtítulo
A POLÊMICA atribuído pela autora é “romance psicológi-
co”, além de trazer questões relativas à situ-
RAINHA DA ILHA ação da mulher da época, mostra o espírito
revolucionário da autora que cria, em sua
DO NEVOEIRO narrativa, uma sociedade secreta de mulhe-
romance A rainha do ig- res liderada por uma misteriosa rainha, por
noto, de Emília Freitas, meio da qual se resgatam, principalmente,
editado originariamente mulheres de diferentes partes do Brasil, li-
em 1899 e que teve uma bertando-as de suas vidas trágicas e dando-
segunda edição apenas -lhes oportunidade de independência.
em 1980, por iniciativa de A protagonista – conhecida com o epíte-
Otacílio Colares, é consi- to de “Rainha do Ignoto” ou ainda pelas al-
derado por alguns como cunhas de Funesta, Moça Encantada, Diana,
o primeiro romance fan- Zuleica Neves, Zélia, de acordo com o disfarce
tástico brasileiro. Há que usava em suas empreitadas – era repu-
também quem o apresente como primei- blicana, abolicionista e espírita. Percorria
ra obra de fantasia da literatura brasi- várias cidades no Brasil no intuito de encon-
leira, o que justifica o número de edições trar mulheres que sofriam algum tipo de vio-
por editoras distintas que encontramos lência física ou moral, ou que sofresse pela
hoje no mercado, com apresentações de sua condição de subjugada, ou em estado de
Constância Lima Duarte (2003) e de Ale- solidão, depressão ou situações afins, para
xander Meireles da Silva (2020). levá-las à sociedade secreta que liderava, na
qual poderiam desenvolver trabalhos de acor-
do com suas habilidades: engenheiras, médi-
cas, marinheiras, generais, cientistas.

150 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


O trecho a seguir nos revela a primeira
imagem que o personagem Edmundo tem
de Funesta, a rainha, ainda no início do livro:
A voz era de mulher e vinha se aproximan-
do [entoando uma canção francesa]. Já se
distinguia o som de uma harpa com que
ela se acompanhava. [...] O gênero fantástico se consolida na obra
Quando a pequena embarcação passou pelo poder que a Rainha tem de hipno-
por defronte da janela, Edmundo pôde con- tizar as pessoas e nunca deixar que
templar à vontade a formosa bateleira. Ela identifiquem seu rosto ou descubram
vestia de branco, tinha os cabelos soltos e a sua identidade. Também, por meio da
cabeça cingida por uma grinalda de rosas. hipnose, ela mantém invisível a Ilha do Ne- elementos do romance gótico (aventuras
De pé no meio do bote, encostava a harpa voeiro, o lugar fictício – um “outro mundo” sucessivas, mirabolantes, fantásticas ou
ao peito [que tinha cordas de ouro], e toca-
– fincado no litoral nordestino, que serve mergulhadas em mistérios); elementos do
va com maestria divina! O luar dava-lhe em romance naturalista (exigência de verdade
cheio nas faces esmaecidas pelo sereno da de espaço para a sede da sociedade, não
documental, objetividade no registro dos fe-
madrugada, e os olhos extremamente belos sendo, desse modo, jamais avistado pelos
nômenos observados, preocupação com os
estavam amortecidos por uma expressão navegantes que passam ao redor. pormenores e com a causalidade dos fenô-
magoada de tristeza indefinível. Algumas go- Paralelamente à história da Rainha e de menos); elementos do romance regionalista
tas de pranto umedeciam-lhe as pálpebras, e suas paladinas, descrevem-se personagens do entre-séculos (preocupação com as pecu-
tremulavam ainda nas negras pestanas. liaridades da região que serve de espaço aos
que habitam a cidade de Passagem das Pe-
Vinha, ali também assentado no banco da acontecimentos, contrapondo seu primitivis-
dras, antigo nome da cidade de Itaiçaba, no
proa, sustentando o remo e movendo-o mo ou rusticidade aos requintes de beleza,
com perícia, uma figura negra e peluda, feia Ceará, e onde se desenvolvem entrechos luxo e riqueza do mundo encantado que nele
de meter medo [era King, um orangotango, que fazem jus a folhetins românticos, com se ocultaria: o mundo da Rainha do Ignoto);
que vestia-se como marujo]. mulheres conservadoras e presas ao modelo valores da concepção de mundo cristã que
E, para mais confirmar a sua parecença com o patriarcal, o que serve de contraste para as consolidou a dualidade ou ambiguidade
rei das trevas, o tal moleque tinha uma cauda atitudes das mulheres que rompiam com o inerente à natureza feminina: anjo/demônio,
que, achando pouca acomodação no banco, pura/impura, etc. E, finalmente, elementos
papel a elas reservado no período histórico.
se tinha estendido pela borda do bote, e pa- do folclore nordestinos que, “filtrados” pela
Também Nelly Novaes Coelho reconhe- consciência da autora, revelam o grande
recia brincar na superfície das águas.
ce a transgressão da autora aos cânones potencial transfigurados da arte. (COELHO,
De espaço em espaço, a enorme cabeça
de um cão cor de azeviche [cujo nome da época, quando funde: 2002:100. In: DUARTE, C. (org.), 2002).
era Fiel] aparecia e tornava a ocultar-se
aos pés da cantora.

CURSO literatura cearense 151


5.
O FANTÁSTICO
NO CONTO MODERNO
E CONTEMPORÂNEO
ão várias as temáticas que ins- Algumas vezes, não se configura
piram o conto fantástico ce- nenhum fenômeno, tão somente a at-
arense. Selecionamos os ele- mosfera de mistério estabelece a pre-
mentos motivadores do evento sença do insólito ou seu prenúncio, como
insólito de algumas narrativas ocorre no conto “Casa mal-assombrada”,
da coletânea organizada por de Carlyle Martins: “Numa visão macabra
Pedro Salgueiro, O cravo roxo e sinistra, atestando a transitoriedade de
do diabo: o conto fantástico no uma vida de opulência e conforto, a velha
Ceará (2011) e, por meio delas, casa, como que indiferente ao perpassar
traçaremos um panorama da prodigiosa dos anos, ensombrada pelas mongubeiras
imersão dos nossos escritores no universo sempre monótonas e sussurrantes, tinha
extranatural. Encontramos, numa pers- as paredes carcomidas e cobertas de fen-
pectiva mais tradicional, desde as peripé- das. Por seu aspecto aterrador, atestava
cias do capeta (“O dia aziago”, de Lopes Fi- ela a glória do passado distante, obscure-
lho – da Padaria Espiritual), a aparição de cido pelas brumas dos tempos e demons-
almas penadas (“Alma penada”, de Améri- trando como a felicidade humana é incerta
co Facó), espectros (“Espectro”, de Gusta- e passageira...”; e em “A Oiticica”, de Otá-
vo Barroso) e visagens (“Julho é um mês vio Lobo: “Se alguém, rompendo o escu-
que não tem fim”, de Batista de Lima), até ro, passa debaixo de alguma oiticica, sen-
histórias de pescador com aparição de se- te arrepios de medo, pavor de visagens e
reias (“Sereias”, de Herman Lima) ou boti- assombrações de almas do outro mundo.”
jas (“Uma história fantástica”, de Martins São bastante engenhosas as façanhas
d’Alvarez; “A botija”, de Genuíno Sales e dos nossos contistas, seja a dar vida a uma
“A botija”, de Lustosa da Costa). bailarina de bronze, num delírio (“A baila-
rina”, de Pimentel Gomes); a configurar
um milagre de um padre que salva, com
sua atitude, um jovem médico da fúria de
fanáticos religiosos (“O milagre”, de Fran
Martins); seja a atribuir a concretização
de um fato extraordinário à fé em Nossa
Senhora, como o faz João Clímaco Be-
zerra (“História do mar”), ou, como Edi-
gar de Alencar, a fazer sorrir um macabro
boneco de Judas (“Judas”). 

152 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


almas do rio perdido”, de Lucineide Souto,
pode-se perfeitamente conviver, conversar e
dançar com pessoas mortas; em “Terror”, de
Glória Martins, bonecas adquirem vida, riem
pavorosamente e cometem crimes.
No conto “O Homem de Neandertal”, de
Entre muitos dos textos modernos, per- Rubens de Azevedo, não há fronteira en-
manecem os temas tradicionais, como a tre o presente e o passado. O narrador ten-
metamorfose e a morte. No conto “Pedra ta proteger um amigo arqueólogo de um
encantada”, de Rachel de Queiroz, “A his- atentado fatal, mas não consegue: “[...] não
tória é que toda véspera de Ano-Bom, ao sonho. Parece que penetro numa fenda do
bater da meia-noite, a pedra se desencanta. tempo e participo realmente daquela vida
[...] molda-se a mulher toda na pedra mole primitiva”. O arqueólogo, mesmo trancado
como o barro no torno do oleiro. E por fim, no quarto do amigo que o vigia pelo lado de
exausto, dorme, e quando o dia amanhece fora, é assassinado, durante a noite, por um
ele acorda à beira da água, junto às moitas homem das cavernas que já foi seu objeto
de muçambê, e vê a pedra escura ao seu de estudo e já vinha, há muito, ameaçando
lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças tirar-lhe a vida. Já R. Batista Aragão ins-
foram um sonho.” Já na narrativa “O 10 nos taura o sobrenatural na figura de uma alma
limites do Bené Gavião”, de Barros Pinho, penada que aparece na estrada para pedir
“O Bené pulou este batente e saiu daqui ajuda aos incautos. Diz o narrador de “O as-
com uma cabeça de onça, o corpo de ho- sobiador do Folha Larga”: “[...] sexta-feira,
mem e asas de gavião encantado.” 13 de agosto e noite de lua cheia. Como
A morte toma forma humana em “Dizem reforço às possibilidades de encontro com
que os cães veem coisas”, de Moreira Cam- os mistérios do além, havia e bastante co-
pos, que a personifica na figura de uma mu- mentado, o ‘Assobiador do Folha Larga’
lher, antiquíssima, atual e eterna, para levar a cuja figura era tida como infalível. /.../ Cor-
vida de uma criança que se afoga na piscina, cunda, rosto coberto, pernas alongadas
enquanto os pais se divertem numa festa. Do e a imitar com perfeição as pernas de um
SABATINA mesmo modo, no romance A casa, de Natér-
cia Campos, além da antropomorfização
alicate. Fez-me lembrar de relance a fealda-
de do Corcunda de Notre-Dame. Conduzia
da casa, que é a narradora-testemunha de no dorso certo fardo volumoso, talvez pe-
“O cravo roxo do diabo” é um conto de muitas histórias que se passaram sob o seu sado e sobretudo incômodo, uma vez que
Álvaro Martins, o “Alvarins”, cofundador teto, a morte também assume a forma de o soprar constante demonstrava cansaço.
da Padaria Espiritual e do Centro uma pessoa que surge inusitadamente quan- Aproximou-se ainda mais, do local onde eu
Literário. Também é de Álvaro Martins a do ocorre um suicídio por enforcamento em me encontrava e deu o ar da costumeira e
obra Casa mal-assombrada (1903), que um dos quartos. No conto “O encontro recidi- civilizada educação”. Tratava-se, na verda-
teve uma segunda edição quando o vo”, de Giselda Medeiros, os mortos dançam de, de um filho que há tempos assassinara
filho do poeta reuniu vários livros dele e pensam; nos enredos criados em “A capa o pai e ficara a vagar, carregando um peso
em Alma cearense (1928). de chuva”, de Sânzio de Azevedo e em “As nas costas, qual Sísifo castigado por Zeus.

CURSO literatura cearense 153


O conto “Quadros em movimento”, de A técnica da tentativa de racionalização não o perceba. Em “Folhas caídas”, de Nilze
Lourdinha Leite Barbosa, traz “os perso- do evento fantástico, de que falamos há pou- Costa e Silva, a vida da personagem depende
nagens” dos quadros afixados na parede co, própria do escritor consciente dos câ- da vida da planta; quando o vegetal murcha, a
do apartamento da narradora libertando-se nones do gênero, está também presente na moça sabe que é hora de partir. No conto de
e saindo, como em rebelião, cada um con- narrativa “Tugúrio”, de Carlos Vazconcelos. Silas Falcão, “O celular”, o protagonista, após
tando a sua história de aprisionamento nas Quando o(a) leitor pensa que tudo o que o retornar de um enterro, recebe a ligação da
telas. Quando o leitor tende a racionalizar o personagem viveu foi apenas um pesadelo, pessoa morta. Já em “O sobrevivente”, de Tér-
acontecimento, atribuindo-o a um delírio da o narrador o arrebata com a informação: “O cia Montenegro, são “as nuvens ruins do céu”
narradora que se confessa extremamente ambiente agora era úmido e fétido. Verificou o elemento desencadeador de uma maldição.
cansada, eis que ela desperta com a queda as palmas das mãos com olhos abismados. Acontecimentos inusitados se desdobram
de um quadro e percebe que a tela está com- Mal podia acreditar. Teve visões difusas do nos enredos, tornando possível o que parece
pletamente branca, sem vestígio de tinta. seu inferno. Mas ainda não era hora de pur- absurdo. Nilto Maciel, em “As contas de Seti-
Já no conto “O homenzinho que en- gar a alma. Só quando voltou a si definitiva- don”, metamorfoseia um rosário na figura de
trou numa tela”, de Rosemberg Cariry, mente é que foi recordando... aos poucos... um estranho homem: “[...] o rosário não para-
ocorre uma situação inversa: um homem E compreendeu, com assombro, que o pesa- va de se mover, arrastava-se pelo chão como
adentra uma tela e, logo que se integra à delo estava apenas começando.”  um réptil, dando voltas ao redor da mesa e
paisagem, numa sensação de bem-estar, No universo fantástico, tudo é perfeita- de nós. E só então compreendemos a verda-
descobre a presença de um leão feroz. No mente possível: unhas que surgem durante deira natureza das contas. Não, não se tratava
enredo de “Escadaria”, de Mônica Serra a noite (“Unhas”, de Ana Miranda); ondas que de um rosário de contas, de um objeto, mas
Silveira, a personagem entra no cenário aparecem repentinamente e invadem a cida- de um ser vivo”. Raymundo Netto, no conto
de um desenho, depois retorna à realida- de (“A onda”, de Adriano Espínola); a moça “Anúncio”, cria um personagem que, no de-
de, como se o insólito fosse natural. que tem gatos dentro de si (“A menina que correr dos fatos, inquieta-se com os olhares e
Aldir Brasil Jr., em “O leopardo da ga- tinha gatos dentro de si”, de Carmélia Ara- as atenções que atrai. Só ao final revela-se o
leria Pedro Jorge”, apresenta-nos um narra- gão); uma cidade estranha, dominada pelos mistério: “Foi ao banheiro, torceu para que a
dor que inicia o conto declarando “Escapou dragões, que remete a uma alegoria (que não cunhada ali não estivesse, e encostou-se à pia.
do Bom Jardim depois do sumiço da mãe se concretiza) da impossibilidade de se viver Então, ali teve a conclusiva revelação: ante o
e instalou-se para sempre nas paredes da nas metrópoles atualmente (“Os quatro dra- armário do banheiro, percebeu que, em vez de
cidade, feito colagem barata.” Após inusi- gões azuis”, de Dimas Carvalho); o jogo de sua costumeira face, havia um espelho!”.
tadas situações, o personagem desaparece dama ativo mesmo após anos da morte de Se os fantasmas “alvacentos e aterrori-
sem que saibamos se era realmente homem seu dono, que o movimenta durante a noite, zantes” eram os instauradores do insólito
ou bicho. Em “A última obra”, de Isa Maga- seguindo o ritual de quando estava vivo (“O nos primeiros contos fantásticos, fazendo
lhães, é a leitora que entra na obra que está jogo de damas”, de Pedro Salgueiro). No tex- jus a uma era de crendices em visagens e
lendo, fundindo realidade e ficção. to de Jorge Pieiro, “O bicado Oreblas”, o que espectros, no nosso tempo, o extranatural
ocorre no sonho do personagem se torna rea- pode ser apenas a desagregação do real,
lidade quando ele acorda, como se o mundo e os motivos se atualizam para traduzir o
onírico e o real tivessem feito um pacto. medo de um novo tempo: uma planta, os
O insondável mistério da morte permite pés inchados, um relógio, ou “humanóides
muitas experiências estéticas e inspira a cria- planando sobre discos metálicos”. São mui-
ção de universos que transcendem a razão. No tos os contistas cearenses que enveredam
irônico “Pequeno interlúdio para o desespero”, pelo insólito. Alguns de modo mais tradi-
de Airton Monte, a personagem parece ter cional, instaurando um clima desagregador
passado a vida a aprender a cozinhar para os e o medo; outros naturalizam o extrana-
seus familiares, pois, quando atinge o seu ob- tural, trazem-no para a rotina do persona-
jetivo e os procura para se sentarem à mesa, gem sem a instauração do pavor, embora
todos viraram peças de pedra ou de cera, mas colocando o(a) leitor(a) diante de fatos que
a descontinuidade do tempo permite que ela fogem da lógica referencial.

154 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Carlos Emílio Corrêa Lima é um dos
autores mais fiéis ao gênero, publicando
quase que exclusivamente o fantástico, sen-
do o único cearense a figurar na citada anto-
logia Páginas de sombra: contos fantásticos
brasileiros (2003), organizada por Bráulio
Tavares. Na obra, o conto “Luvibórix”.
Baseamo-nos, a princípio, na publicação
O cravo roxo do diabo, que selecionou tex-
tos com características do fantástico de um
grande número de ficcionistas. Muitos, como
podemos observar, passaram pelo fantásti-
co, mas não é com ele que se destacam em
sua obra. Outros autores contemporâneos
o experimentaram, com maior ou menor
frequência, como Ricardo Kelmer, Inez Fi-
gueredo, Maria Thereza Leite, Regine Li-
maverde, Valdemir Mourão, Jesus Irajacy
Costa, Túlio Monteiro, Robson Ramos,
Paula Izabela, Leo Mackellene, Natércia

6.
Pontes, Carlos Gildemar Pontes, Beatriz
Alcântara, Durval Aires Filho, Claudio
Portella, Vicente Jr. (também pesquisador
do gênero entre nós), Sérgio Telles, entre
tantos que utilizam ou utilizaram um dia o
insólito como fonte de inspiração. O FANTÁSTICO NO ROMANCE
MODERNO E CONTEMPORÂNEO
ambém orientando-me pe- a aparição de um terceiro, embuçado em
-la coletânea O cravo roxo um capote escocês, que se acocorou ao
do diabo: o conto fantástico pé de Manoel e pôs sobre as brasas a sua
no Ceará, apesar do título espetada. Esta, em vez de ser de carne, era
se referir ao gênero conto, um sapo enorme, cuja gordura derretia-
registram-se 17 romances -se e pingava nas brasas, que crepitavam
escritos por cearenses com, sinistramente. Os dois olharam-se como
pelo menos, alguma inter- quem dizia: temos obra. O intruso, mudo
venção de fantástico. e impassível, virava o sapo, ora de barriga
O primeiro, A casa as- para cima, ora de costas, e, por fazer ob-
sombrada, de Bezerra de Menezes. Como séquio a quem lhe fornecera as brasas,
o próprio título prenuncia, traz a inserção levava-o acima da espetada vizinha para
do sobrenatural, a presença de barulhos untá-la com a gordura que escorria do bi-
estranhos e mesmo uma assombração cho.” O fantástico se realiza de forma tra-
corporificada, capaz de interagir com os dicional, tanto pelo espaço, como pelo
vivos para horrorizá-los: “De repente, foi clima soturno que se estabelece, quanto
a atenção de um e de outro atraída para pelo motivo que conduz o enredo.

CURSO literatura cearense 155


Em O reino de Kiato (1922), de autoria de voar de morcegos presos em gaiolas, apari- O historiador Francijési Firmino, em Pa-
Rodolfo Teófilo e publicado pela editora de ção de serpentes ou abutres, transformando lavras da maldição (2008), nos descreve um
Monteiro Lobato, não há a presença de as- o clima de toda uma região, as narrativas pouco da ambientação fantástica do autor:
sombrações, mas de elementos que a carac- se constroem por meio de fenômenos Ceará, um vale místico, de lendas e as-
terizam como ficção científica e de elemen- inexplicáveis pelas leis da razão. sombrações, lugar do fantástico, dos seres
tos que subvertem a normalidade, como Em Os verdes abutres da colina, de José mitológicos, de dragões, duendes, abutres
Alcides Pinto, um de nossos maiores re- verdes, demônios; da natureza, o rincão
a flor esquisita e curiosa, que “Tinha corola
das histórias infantis, dos contos de fada,
de um sem-número de pétalas azul ferrete, presentantes do gênero fantástico, lou-
da imaginação que corria solta das amarras
quase negro, como que brunidas, com refle- cura e maldição se fundem, criando um uni- realistas, um universo de lógicas repartidas
xos metálicos, e no centro os órgãos de re- verso completamente surreal, absurdo. A do Ocidente, espaço fabuloso; um território
produção, alvos como arminho; engastava- lógica dos fatos é subvertida pela presença sertanejo, manicomial, extensão de Sodo-
-se num pedúnculo curto, envolvida num de uma maldição em todo o Alto dos Angi- ma, Gomorra, das terras diluvianas; pedaço
onde se vive entre promontórios, aluviões,
ambiente delicado e sutil perfume bem cos, região fundada pelo coronel Antônio
apocalipses, desertos, secas, cataclismos,
como a uma crisálida, uma joia que resplen- José Nunes, o garanhão luso que naufra- espaço de cegos, de homem bestializado
dia aos raios do sol”, vista pelo dr. John King gou naquelas terras e a povoou unindo-se pela preguiça e a inutilidade. Assim José
Paterson, ao chegar em Kiato, cidade que a uma índia. Ele multiplica a população ao Alcides Pinto imaginava a sua terra natal.
causava estranheza pela soberania “de sua relacionar-se com várias mulheres ao mes- Não era de se estranhar, entretanto, que
mo tempo, inclusive com suas filhas. Assim, sua leitura sobre a chegada da moderniza-
liberdade depois de mais de um século de
ção no Ceará, as mudanças do catolicismo
reação contra os usos e costumes resultan- seus netos são também seus filhos. Os ver-
sucedâneas ao Concílio do Vaticano II e a
tes da intoxicação alcoólica e sifilítica”. des abutres anunciam o fim de tudo, trans- sensação da crise das simbologias do ser-
A casa assombrada, ou o casarão, ou formam toda a atmosfera, mesmo com a tão atemorizavam José Alcides ante a pos-
simplesmente a casa, são espaços e mo- crença do povo no poder do demônio preso sibilidade de o lugar perder a sua tendência
numa garrafa. Não necessariamente o even- ao fantástico. (FIRMINO, 2008, p. 97)
tivos de várias narrativas presentes nesta
coletânea. Na obra de Natércia Campos, a to instaurador do insólito percorrerá toda
casa é a personagem protagonista e a narra- a obra romanesca, desde que encenado,
dora de fatos que atravessam gerações. Em em qualquer passagem, dará a ela a ca-
O mundo de Flora, de Angela Gutiérrez, há racterização do gênero de que ora tra-
um casarão onde se ouve a voz dos mortos. tamos, o que não negará, se existente,
Em Leão de Ouro, de Natalício Barroso, há a presença do estranho, do maravi-
até a observação: “não há casa antiga que lhoso, do macabro ou do surreal.
não tenha seu fantasma”, já que os mor-
tos arrastam chinelos, desarrumam coisas
e acendem velas. Em Coração de areia,
da excelente poetisa Marly Vasconcelos,
também são os mortos os autores dos fe-
nômenos, pois se manifestam e exercem in-
fluência na vida dos vivos através dos seus
retratos. No enredo de Busca, romance de
Teoberto Landim, igualmente há uma casa
mal-assombrada, onde, durante a noite,
estilhaçam-se garrafas no chão. Seja com
um leitmotiv futurista, como disco-voador;
inusitado, como cabeças de deuses que dão
orientações para a vida; ou tradicional como
a visão de almas, o ouvir de vozes, a petrifi-
cação de uma moça durante a missa ou o re-

156 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA
A Machadada (1860), de Juvenal
Galeno, a primeira obra literária
impressa no Ceará, conforme afirma
Raymundo Netto, traz o subtítulo
“poema fantástico”. A história se passa
na lua, durante uma marcha, uma
aposta entre os deuses do Olimpo e do
Parnaso, com direito à participação de
Marte, Júpiter, Apolo, Cupido, Plutão,
Vênus, Pégaso... e da Guarda Nacional.

A despeito dessa desconsideração pela


presença do gênero em versos, um dos pri-
meiros textos que incorporaram elementos
como gigantes, deuses e intervenções so-
brenaturais na literatura foi o “Poema de
Gilgamesh”, composição suméria de 2000
a. C, a que se seguiram as epopeias Ilíada e
Odisseia, de Homero, todos, como é natural
do épico, versos narrativos com forte inser-
ção no extranatural. Já na Idade Média, apa-
receu, na Índia, o Mahabharata, poema que
narra acontecimentos históricos que têm,
nitidamente, a intervenção do mitológico.
Especificamente no Ceará, tais manifes-

7.
tações se deram, inicialmente, na poesia do
patriarca Juvenal Galeno, do poeta Bar-
bosa de Freitas, dos romancistas Bezer-
ra de Menezes, Rodolfo Teófilo e Emília
Freitas, bem como em contos e poemas de
POEMAS Antônio Sales, percorrendo as correntes
estéticas que se seguiram e se sobressaindo
FANTÁSTICOS? em gêneros textuais variados.
s teóricos do gênero não Tomando o fantástico na acepção de
citaram, em nenhum de fantasia ou encenação de evento trans-
seus estudos, textos em gressor da normalidade, em O cravo roxo
versos para ilustrar carac- do diabo, o organizador decidiu incluir po-
terísticas do fantástico, tão emas em que transparecem imaginações
somente mostraram a sua delirantes ou evocam criaturas que subver-
configuração em compo- tem fatos naturais, como bruxas, duendes,
sições narrativas como o gnomos, feiticeiras, morcegos, sereias, sata-
conto e o romance. nás. Compreendendo-o, em sua concepção

CURSO literatura cearense 157


primeira, como instauradores do mal, os
MALACA versos são abundantes em palavras como:
CHETAS treva, morte fúnebre, lúgubre, sombrio,
tormento, fantasma, mistério, vulto, pânta-
no, assombração, medo, maldição, alma,
Aqui nós falamos em poemas fantásticos. soturno, visagem, espectro, pavor, horror,
Mas será que podemos mesmo dizer presságio, entre outras pertencentes a um
que um poema pode ser fantástico? campo semântico muito semelhante.
O pesquisador Vicente Jr nos alerta O ponto alto da compilação está nos po-
“[...] Para autores como Todorov e Vax, emas narrativos, dos quais se podem desta-
por exemplo, o fantástico não existe car “Excertos de Brosogó, Militão e o Diabo”,
na poesia, pois seria construído e, ao de Patativa do Assaré, em que Brosogó
mesmo tempo destruído, pelo poder acende vela para o diabo e o encontra, na
subjetivo das metáforas, postura bastante vida real, como seu defensor. Também em
coerente, pois quando um eu-lírico ( que “O vestido que verteu sangue”, de Oswald
é bem diferente de narrador) disser num Barroso, conta-se a história de Maria Sinhá,
poema ‘No dia em que te vi, meu coração cujo vestido verteu sangue, como anuncia
parou de bater e hoje tudo o que faço é o título, em “Saiona, a mulher dos olhos de
vagar ao teu encontro’, não podemos crer fogo”, de Rouxinol do Rinaré, cujo título já
que esteja morto e que esta seja uma anuncia a desordem do real. 
‘história de fantasmas’, mas, apenas uma

8.
expressão hiperbólica de sua paixão”.
Cabe a você, cursista, caso se interesse
pelo tema, pesquisar, estudar e
defender o seu argumento.

SOBRE
A COLETÂNEA
O CRAVO ROXO
DO DIABO
antologia O cravo roxo do
diabo: o conto fantástico
no Ceará é uma referência
para as narrativas do gê- A pesquisa e a organização, que durou
nero produzidas no estado quase cinco anos, reúne textos fantásticos
por cearenses e por outros – ou que margeiam as suas características
radicados no estado. Como – escritos no Ceará, catalogados pelo es-
vemos, nela não se levaram critor Pedro Salgueiro, e que contou com
em consideração os crité- alguns nomes da nossa literatura para a
rios de ser ou não escri- efetivação da pesquisa histórica e a execu-
tor cearense expostos em nosso primeiro ção do audacioso projeto: Sânzio de Aze-
módulo. Assim, por exemplo, Tomás Lopes, vedo, Alves de Aquino (“O Poeta de Meia-
que nasceu em Fortaleza, mas teve a sua -Tigela”), Carlos Vazconcelos e Raymundo
produção literária no Rio de Janeiro, teve Netto (também responsável pelo projeto
seu lugar nesta antologia. gráfico, ilustrações e capa).

158 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


BOLACHINHAS REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFICAS
Tomás Lopes é autor, ao lado de BARRENECHEA, Ana María. Ensayo de
una tipología de la Literatura Fantástica
Alberto Nepomuceno, do Hino do
(A propósito de la literatura hispano-
Estado do Ceará. americana). Revista Ibero americana,
Buenos Aires, v. 38, n. 80, p.391-403, jul.
1972. Trimestral.
O volume apresenta mais de 170 contos CAVALCANTE, Alcilene. A representação
selecionados, 17 capítulos de romances feminina em A rainha do ignoto, de
(fragmentos) e 60 poemas, compondo, as- Emília Freitas. UFMG, s/d.
sim, um panorama amplo do texto fantásti- CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do
co cearense produzido entre os séculos XIX século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
e XXI. Embora focalizem o extranatural
por procedimentos estéticos diferen- ERDAL JORDAN, Mery. La narrativa
tes, todos os textos se inserem no que se fantástica: evolución del género y
su relación com las concepciones del
denomina, hoje, literatura fantástica, numa lenguaje. Frankfurt am Main: Vervuert;
acepção ampla do gênero, tomando-o, Madrid: Iberoamericana, 1998
pois, como histórias de mistérios que con- FREITAS, Emilia. A rainha do ignoto. São
frontam o racional e o irracional.  Paulo: 106 Editora, 2019
FIRMINO, FF. Palavras da maldição:
José Alcides Pinto e a produção do Ceará
CONSIDERAÇÕES entre símbolos e alegorias. Dissertação
de Mestrado. Universidade Federal do Rio
FINAIS Grande do Norte, 2008.
Seja no conto, no romance ou na poesia, os PAULA JR. Francisco Vicente. Aspectos
fenômenos sobrenaturais e o insólito são do fantástico na literatura Cearense.
Dissertação de Mestrado. Universidade
fontes de inspiração perenes para os escri-
Federal do Ceará. 2003
tores cearenses.
SALGUEIRO, Pedro (Org.). O cravo roxo
A desagregação da lógica, a subversão
do diabo: o conto fantástico no Ceará.
do que chamamos de normalidade, se dá, Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.
sobretudo, pelo insondável mistério da
SAMPAIO, Aíla M. Leite. Prefácio. In:
morte, que predispõe a inquietação e a in- SALGUEIRO, Pedro et all. O cravo roxo
ventividade dos que sondam seu enigma. do diabo: o conto fantástico no Ceará.
A metamorfose, a aparição dos mortos, a Fortaleza: Expressão Gráfica Editora,
presença de seres sobrenaturais ou pro- 2011. p. 9-17
vidos de poderes inusitados colocam o(a) SAMPAIO, Aíla. Os fantásticos mistérios de
leitor(a) diante de um universo em que ab- Lygia. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009.
solutamente tudo é possível. TAVARES, Braulio. Páginas de sombra:
Na contemporaneidade, o gênero fantás- contos fantásticos brasileiros. Rio de
tico permanece, embora com seus cânones Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
revisados. Outro fato a se ressaltar é que a pro- TODOROV, Tzvetan. Introdução à
dução da nossa literatura está em constante Literatura Fantástica. São Paulo:
Perspectiva, 1980.
busca do universal. Ultrapassou, há muito, as
fronteiras do regional e pode se afirmar, quali-
tativamente, em qualquer contexto. 

CURSO literatura cearense 159


AUTORA
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Aíla Sampaio Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É graduada em Letras com especialização em Língua FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará João Dummar Neto Presidente
(Uece), com mestrado em Letras e doutorado em André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
Literatura Comparada (Literatura e Cinema) pela Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Universidade Federal do Ceará (UFC). É professora
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
da Universidade de Fortaleza (Unifor), onde também e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
atuou como coordenadora do curso de Letras. É
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
escritora, crítica literária e integra a Academia de Viviane Pereira Gerente Pedagógica
Letras e Artes do Nordeste (Alane). Entre suas obras, Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
os ensaios Os fantásticos mistérios de Lygia e Literatura Joel Bruno Designer Educacional
no Ceará. Publica ensaios e artigos em revistas CURSO LITERATURA CEARENSE
especializadas, blogs e jornais do país. Raymundo Netto Coordenador Geral,
Editorial e Estabelecimento de Texto
Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
ILUSTRADOR Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
Carlus Campos Miqueias Mesquita Diagramador
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira Carlus Campos Ilustrador
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na Luísa Duavy Produtora
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas ISBN: 978-65-86094-20-6 (Fascículo 10)

e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes


como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção
gráfica ganhou prêmios em salões de Recife,
São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Todos os direitos desta edição reservados à:

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CURSO
l c
11 Mala de
Romances
a Literatura de Cordel
Arievaldo Vianna

i e Stélio Torquato Lima

t a
e r
r e
a n
t s
u e
r
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Realização
1.
A PELEJA
DO CORDEL
Em memória de Arievaldo Vianna
Nordeste, por onde come- Como veremos neste módulo, o Ceará
çou o processo de coloni- também se configurou como um lugar im-
zação do Brasil, veio a ser portante na impressão e difusão da litera-
o principal berço da acli- tura de folhetos, tendo se tornado o berço
matação do cordel vindo acolhedor e exportador de vários cantado-
da Europa a uma nova re- res e poetas populares, muitos deles que
alidade social. mesmo não residindo mais neste mundo,
Comprovamos isso ainda continuam presentes nas praças e nas
com a presença de um calçadas, por meio de suas obras ou perma-
conjunto de elementos que ainda hoje são nentemente vivos no declamar fervoroso e
recorrentes nas narrativas populares em colorido de seus seguidores e leitores.
verso,, cujos enredos se destacam pelo uso
de expressões linguísticas da região, pela
presença de personagens do panteão local
(figuras do cangaço, profetas milagreiros,
sertanejos astutos etc.), pela constância
de elementos associados com o semiárido
(secas, coronelismo, religiosidade popular
etc.), entre outros.
Alguns estados nordestinos exerceram
um papel de destaque no processo de sis-
tematização da criação, publicação e
distribuição do cordel. A capital de Per-
nambuco, onde já havia uma tipografia
desde 1815, foi o principal polo de im-
pressão dos folhetos no século XIX. Da
Paraíba, saíram muitos poetas em direção
a Recife, incluindo Leandro Gomes de
Barros (1865-1918), poeta que, pela qua-
lidade e variedade de sua obra, veio a ser
merecidamente considerado o pai da lite-
ratura de cordel brasileira.

162 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


BOLACHINHAS
Em 7 de janeiro de 1928, logo na
edição nº 1 do jornal O POVO, do
poeta Demócrito Rocha, encontramos
a seção “Trovas e Cantigas do POVO”,
página semanal de folk-lore, que traz “O
casamento e o divórcio da lagartixa”, de

2.
Leandro Gomes de Barros, que chegou
ao editor por meio da obra Violeiros do
Norte, de Leonardo Mota.

NO FUNDO circulando obras populares em cópias ma-


DA MALA DO nuscritas pelo menos desde o século XVIII,
muito antes, portanto, da chegada do
FOLHETEIRO país. Importante isso, não?
prelo em nosso país
Como destaca João Brígido (2009), en-
omo ocorreu em outros esta-
tre esses autores que buscaram um meio
dos nordestinos, os primeiros
alternativo de difusão de suas criações po-
cordelistas cearenses deram
pulares incluía-se Manoel Felipe de Caste-
continuidade a uma tradição
Branco, filho de Baturité (CE), que logo
lo Branco
poética oral remotíssima,
após o fracasso da Confederação do Equa-
que se manifestava através
dor (1824) desenvolveu um poema em déci-
da criação de uma infinidade
mas, do qual são os trechos a seguir:
de quadrinhas populares,
Suçuarana se chama/ Quem vendeu o Ara-
cantigas de roda etc. Dessa
cati,/ E dizem que esse quati/ É filho de mu-
tradição também descende a cantoria de lher dama./ É notório e corre a fama/ Que o
viola, que igualmente se beneficiou com o vendeu por um cruzado,/ E para ser embol-
rico imaginário que a oralidade fomentou. sado/ Do Chaves este dinheiro,/ Jurou não
Vindo depois, porque dependia de um ser brasileiro!/ Todo corcunda é malvado!
maior aparato tecnológico (a imprensa), o (BRANCO, apud BRÍGIDO, 2009, p. 93 e 96)
cordel recebeu influência direta tanto da Como se observa, o poema se desenvol-
poesia oral quanto da cantoria, tendo her- ve a partir de um mote, “Todo corcunda é
dado desta, temas, elementos estruturais e malvado”, cabendo destacar que “Corcun-
gêneros. Mas uma pergunta continua: quan- da” era o apelido dado aos imperialistas
do teve início, ainda que de forma inci- que passaram a perseguir impiedosamente
piente, a produção cordelística no Ceará? os republicanos envolvidos nas revoluções
Antes de esboçar uma resposta à ques- de 1817 e 1824. Trata-se, assim, de uma re-
tão, que se manterá provisória até novas corrência à produção popular como meio
descobertas por parte dos nossos pesquisa- de espicaçar os adversários políticos, ou
dores – que inclusive pode ser você, cursista seja, uma forma de “revanche poética”, para
–, é importante destacar que a poesia popu- empregar a expressão cunhada por Marti-
lar floresceu muito cedo em nosso estado, já ne Kunz (2011, p. 60).

CURSO literatura cearense 163


É importante, no entanto, não esque-
cermos o papel que os jornais cearenses
tiveram como veículo de difusão de cria-
ções literárias populares, tendo em vista
que muitos dos periódicos que circularam
em nosso estado no século XIX e primeiras
décadas do século XX possuíam seções li-
terárias. Nessas seções, dividindo espaço
No que diz respeito a obras publicadas com sonetos e outras produções de feição
pela imprensa, o pesquisador Gilmar de erudita, eram frequentes os textos de cariz
Carvalho (2006) defende, apoiado na re- popular, ainda que muitos deles assinados
colha dos primeiros folhetos publicados por autores consagrados no meio erudito,
no Ceará, que o início da produção de como Rodolfo Teófilo e Juvenal Galeno.
cordéis no Ceará não se deu antes de Foi através dos periódicos que o padre e
1912, quando ocorreu a queda da oligar- político cearense Alexandre Francisco Cer-
quia Accioly. Foi em 1912, a propósito, que belon Verdeixa (1803-1872), mais conheci- Espicaçar
Marcos Franco Tranquilo publicou em do como “Canoa Doida”, valeu-se da poesia Bicar, furar,
Fortaleza Levanta-te, ó multidão!, folheto para espicaçar seus desafetos. O pai do ro- magoar, torturar.
constante do acervo da Universidade Es- mancista José de Alencar, o senador Alencar,
tadual da Paraíba. Aliás, a cordelteca da chamado por Verdeixa de “Padre Cobra”, tor- Vergastar
Golpear com
referida instituição também possui um nou-se um dos principais alvos da sátira im- vergasta, chicotear.
exemplar de Machadinha de Noé: aviso do piedosa do poeta, que veio a escrever diver-
padre Cícero Romão Batista, publicado em sos ABC vergastando seus inimigos, além Sextilha
Juazeiro do Norte em 1911. de também ter feito uso da sextilha. Estrofe de 6 versos.

164 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA A língua ferina do Canoa Doida se eviden-
cia com todo vigor no ABC que escreveu con- MALACA
Américo Facó (1885-1953), poeta e
tra João André Teixeira Mendes (1781-1874),
cognominado de “Canela Preta”, oficial da
CHETAS
jornalista, nasceu em Beberibe (CE). Guarda Nacional, julgado (mas não senten- O Rebate, com apenas quatro páginas,
Publicou poemas no Jornal do Ceará, ciado) pelas mortes do ten. Antônio Vieira pioneiro do jornalismo impresso de
entre 1907 e 1908 (que iniciavam um do Lago Cavalcante e do ten. cel. José Caval- juazeiro do Norte, foi fundado pelo
parnasianismo no Ceará, mas que cante de Luna Albuquerque. Do poema, lido padre Joaquim de Alencar Peixoto, em
seriam renegados, futuramente, pelo pelo próprio autor numa sessão do júri na 18 de julho de 1909, com o objetivo
autor). Em 1908, levou uma surra de cidade do Icó, na década de 30 do século XIX, de contribuir para a emancipação de
policiais, a mando do governador são os seguintes versos de abertura: Juazeiro do Norte, que até então era
do estado e, assim, em 1910, decidiu A [sic] muitos anos vivia/ João André uma vila pertencente ao Crato.
ir ao Rio de Janeiro, onde residiria fazendo morte,/ Deixando órfãos e viúvas/
até morrer. No Rio, logo enturmou- Lastimando a sua sorte.
se com muitos intelectuais. Fundou Basta ver, em vinte e quatro,/ O que ele
Como destaca Gilmar de Carvalho
praticou,/ Quatro livres brasileiros/ Que ele
algumas revistas – Pan e Ideia ilustrada (2006), o jornal, através da seção “Lyra Po-
aqui fuzilou.
(ambas em 1924) – e foi diretor da Carregado de tormentos/ É mui bom que pular”, trouxe aos poucos letrados de Jua-
revista Fon-Fon, entre outras, como pague agora,/ Entregando a sua vida/ zeiro poemas em cordel do paraibano Le-
O espelho e Estética. Publicou o Numa forca, sem demora. andro Gomes de Barros e do alagoano
primeiro conto de Clarice Lispector, (VERDEIXA, apud SOMBRA, 1996, p.30-31)
Pacífico Pacato Cordeiro Manso. Ao mes-
“Triunfo”, criou a Agência Brasileira de Outro episódio interessante que mostra mo tempo, serviu de espaço para a difusão
Notícias, empregou Sérgio Buarque como a poesia popular valia-se dos jornais da criação poética de autores cearenses,
de Holanda e Carlos Drummond de para o embate político é reportado pela pes- como Ana Almerinda Dias e José Augus-
Andrade. Drummond dedicou a ele quisadora Ruth Brito Lêmos Terra (1983). to Siebras, além de autores que preferiram
seu livro Claro enigma e, por conta da Trata-se de vários poemetos em formato de o anonimato ou se ocultar atrás de pseudô-
insistência e argumentos de Facó, ele cordel escritos por alguém que se identificava nimos, como “Jacy” e “Pajé”.
publicaria O observador no escritório. como Marcos Franco Tranquilo, sendo os
Após a morte de Facó, além de lhe mesmos direcionados contra o “babaquara”
ofertar um poema e escrever sobre Accioly, apelido pejorativo de Antônio Pinto
seus últimos dias, Drummond também Nogueira Accioly, governador do Ceará entre
iniciaria uma questão com a família 1896 e 1912. Mesmo havendo dúvidas sobre a
de Facó (ele era solteiro e não tinha verdadeira autoria dos poemas, suspeitando-
filhos) sobre o desmembramento e -se ora de Rodolfo Teófilo, ora de Américo
venda de sua biblioteca. As duas obras Facó, foi este que veio a ser castigado, levando
de Facó, Sinfonia negra (1946) e Poesia uma surra impiedosa por parte dos capangas
perdida (1951), foram enfeixadas do oligarca na praça Marquês do Herval (hoje,
por Raymundo Netto em publicação praça José de Alencar). O aparente motivo
denominada Obra perdida de Américo foi ele ter assinado antes um poema no jor-
Facó, na Coleção Nossa Cultura da nal A República em que concluía assim: “Hei
Secult, em 2010. de açoitar-te a cara branca/Como se açoita a
anca/ Dum mau cavalo, para pô-lo a trote.”
O jornal O Rebate, periódico de Juazeiro
do Norte – polo inaugural da produção
sistemática do cordel no Ceará –, desem-
penhou importante papel para a divulgação
da obra tanto de cordelistas consagrados em
outros estados quanto de autores locais.

CURSO literatura cearense 165


Nascido em 1827, na então Vila de Tou-
ros, que, à época, pertencia ao município de MALACA
Extremoz, no Rio Grande do Norte, Santani-
nha faleceu em data desconhecida, mas pro-
CHETAS
vavelmente em alguma data a partir de 1883,
Juvenal Galeno já não é um nome
quando seu nome não mais passa a figurar
desconhecido para os nossos cursistas.
na imprensa. Veio em data ignorada para o
Temos ciência de seu pioneirismo em
Ceará, tornando-se trabalhador de um sítio
quase tudo a que se refere a nossa
da família Sombra em Maranguape.
literatura, entretanto, há aqueles que
Sua habilidade de compor canções e
por excesso desse admirar tendem
recitar poemas ao som da rabeca, ins-
a outorgar a ele, ou a outros, títulos
trumento que dominava, logo o levaria a
equivocados, sem fundamento.
frequentar os salões da elite cearense. E,

3.
importante destacar, no jornal O Cearense, Por exemplo, o epíteto de “criador
de 1871, encontramos um poema seu sobre da poesia popular” Juvenal não o
a Guerra de Paraguai, o que faz com que merece, nem o queria.
Santaninha anteceda em pelo menos duas A poesia popular surgiu com o
desenvolvimento da humanidade,
UM POETA décadas o “pai do cordel”, Leandro Gomes
de Barros, que só começaria a publicar os sabe-se lá Deus exatamente quando,
POPULAR NA seus cordéis a partir de 1889.
Deslocando-se para o Rio de Janeiro, ca-
primeiramente transmitida por
gerações ancestrais pela
CAPITAL DO pital do Império, em 1877, Santaninha deu oralidade. E Juvenal, no
prosseguimento a uma atividade artística Prólogo de Lendas e
IMPÉRIO que conciliava música e poesia popular, canções populares, afirma:
omo já destacado, no Ceará apresentando-se em lugares públicos em “[...] ouvi e decorei seus
do século XIX não havia ain- troca de contribuições dos passantes. Tam- cantos, suas queixas, suas
da uma produção sistemática bém utilizou-se dos jornais para divulgar lendas e profecias [...] – com
de cordéis. Podemos verificar tanto os pontos de vendas de suas obras ele [o povo] sorri e chorei, – e
isso quando buscamos e não quanto os lugares e horários de suas apre- depois escrevi o que ele sentia, o
encontramos nos jornais cea- sentações públicas ou privadas. que cantava, o que me dizia,
renses daquele período qual- Além de Santaninha, outros poetas vin- o que me inspirava.”
quer anúncio de tipografias dos de fora do estado deram importante Juvenal não criou a poesia popular,
que vendessem folhetos. Nos contribuição para a floração da literatura mas se inspirava na musa popular, a
periódicos, era Juvenal Galeno pratica- de cordel no Ceará, contando-se entre eles partir da qual criava a sua poética.
mente um sinônimo de poesia popular. o também potiguar Luiz da Costa Pinhei-
Não obstante, como informam os pesqui- ro, o alagoano José Bernardo da Silva e o
sadores Arievaldo Vianna e Stélio Torqua- paraibano João de Cristo Rei. Juntam-se a
to Lima (2017), autores deste fascículo, eles os nomes dos cearenses João Mendes
pelo menos um poeta verdadeiramente de Oliveira e José Cordeiro da Silva. O úl-
popular ganharia alguma notoriedade na timo, a propósito, aproveitando a passagem
mídia impressa da capital cearense: João de Lampião pela “Meca do Cariri” (Juazeiro
Sant’Anna de Maria, o “Santaninha”, do Norte) em 1926, escreveu o folheto Visita
autor dos poemas em cordel Guerra do Pa- de Lampião a Juazeiro, no qual cita o nome
raguai; Imposto do vintém; O célebre chapéu de todos os cangaceiros do bando, nomes
de sol de Sua Majestade o Imperador; A seca ditados pelo próprio Virgulino. Além desse
do Ceará; O pai da criança; O russinho; As cordel, escreveu, entre outros, Perseguições
moças chorando pelo fim do carnaval, etc. de Lampião pelas forças legais.

166 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Um importante editor de cordel que atuou Em 1973, vendeu sua gráfica e sua pro- Por fim, importa mencionar os nomes de
em Fortaleza durante três décadas foi o parai- priedade literária para Manoel Caboclo outros dois editores pioneiros: Olegário Pe-
bano Joaquim Batista de Sena (1912 - 1993). e Silva e tentou estabelecer-se no Rio de reira e Moisés Matias de Moura. O primeiro,
No início da década de 40, vendeu um sítio de Janeiro, também no ramo da literatura de que atuou em Juazeiro do Norte nas décadas
sua propriedade e adquiriu sua primeira tipo- cordel, mas não foi bem-sucedido. De vol- de 1930 e 1940, adquiriu, como informa a edi-
grafia, que funcionou algum tempo na cidade ta ao Ceará, ainda editou alguns folhetos ção de 4 de julho de 1944 do jornal Gazeta de
de Guarabira-PB, transferindo-se depois para exitosos, como o que escreveu em parceria Notícias, de Fortaleza, vários folhetos do Luís
Fortaleza-CE, onde atuou durante muitos anos. com Vidal Santos, sobre o famoso desas- da Costa Pinheiro, alguns dos quais viriam
Na capital cearense, sua casa editorial tre aéreo da Serra da Aratanha (Pacatuba- depois a ser impressos na Tipografia São
chamou-se inicialmente Folhetaria São -CE), onde faleceu, entre outros, o indus- Francisco, de José Bernardo da Silva. Já em
Joaquim ou Editora O Crepúsculo e fun- trial Edson Queiroz. relação ao pernambucano Moisés Matias de
cionou inicialmente no bairro Floresta (rua Moura, cabe destacar que atuou como poeta,
Estrela do Norte, 26, hoje, Álvaro Wayne). editor e folheteiro em uma Fortaleza de 1929
Depois a tipografia adotou o nome de Fo- até o início da década de 1960, como destaca
lhetaria Graças Fátima e passou a funcio- a pesquisa de Gilmar de Carvalho (2011).
nar na rua Liberato Barroso, 725, no centro E para finalizar este tópico, importan-
de Fortaleza. O poeta explicava a razão des- te lembrarmos que há ainda autores que
se título: durante a passagem da imagem escreveram cordéis, mas dividiram sua
peregrina de Nossa Senhora de Fátima pelo atividade criativa com outros gêneros e/
Nordeste, na década de 50 do século XX, ele ou outras artes. É o caso de Patativa do
conseguiu ganhar muito dinheiro vendendo Assaré (1909-2002) que, embora tenha pu-
folhetos sobre a visita da santa, ampliando blicado cordéis, destacou-se principalmen-
consideravelmente seus negócios. te na poesia-matuta, gênero também de
caráter popular, mas que tem suas próprias
regras, incluindo-se aí a tentativa de repro-
duzir a fala muito própria do sertanejo, o
que não acontecia, por exemplo, na poe-
sia de Juvenal Galeno. Já Alberto Porfírio
(1926-2009), autor de dezenas de cordéis,
incluindo A estátua do Jorge, também se
destacou como cantador, além ter sido es-
cultor, xilogravurista e pesquisador.

CURSO literatura cearense 167


4.
O estabelecimento de Juazeiro como
epicentro desse movimento não se deu por
acaso: atraídos pela figura carismática do
padre Cícero Romão Batista, que passara
O CORDEL, a ser visto como milagreiro após o episódio
da hóstia transformada em sangue, ocorri-
O PADRE CÍCERO do em 1889, muitos poetas (ou futuros poe-
tas) viriam ao Juazeiro do Norte, juntamen-
E O HORÓSCOPO te com as intermináveis levas de romeiros,
omo já acentuado, é a partir em busca de uma bênção do sacerdote.
de 1912 que tem início, pelo Não à toa, com o passar dos anos, o padre
menos de forma mais siste- Cícero viria a se tornar uma das figuras mais
mática, a produção de cordel presentes nos cordéis, só ficando atrás do
no Ceará, tendo Juazeiro do cangaceiro Lampião. Nessa perspectiva, não
Norte como polo central. Nes- foram poucos os poetas que colocaram sua
se período, os poetas popu- produção poética a serviço da publicização
lares que desejavam publicar dos feitos e das profecias do “Padim”, contri-
seus escritos recorriam princi- buindo de forma decisiva para a construção
palmente à gráfica da Diocese do Crato. do mito em torno do “Patriarca do Juazeiro”.
Consciente da força da poesia popular e
da sua rápida capilaridade no processo de
divulgação das ideias que defendia, o padre
Cícero tornou-se um benfeitor dos poetas
do povo. Emblemática dessa relação entre o
sacerdote e os poetas devotos é a forma como
José Bernardo da Silva (1901-1972) veio a in-
gressar na poesia, posteriormente se tornan-
do o maior editor de folhetos populares de
todos os tempos e em todo o mundo.
Vindo pela primeira vez a Juazeiro do
Norte em 1926, numa romaria feita em com-
panhia da mulher e da filha mais velha, Zé
Bernardo pediu humildemente ao padre
Cícero, em uma segunda vinda à cidade, a
permissão para viver e trabalhar na cidade,
recebendo do sacerdote a promessa de que
ali seria muito feliz. Com a pouca oferta de
trabalho, tornou-se vendedor ambulante de
raízes e de outros produtos medicinais usa-
dos pelo povo, incorporando depois folhe-
tos de poesia popular. E vendo, com satisfa-
ção, que os livretos lhe rendiam bom lucro,
aproveitou suas constantes viagens ao Reci-
fe para adquirir folhetos editados por João
Martins de Athayde, de quem acabaria se
tornando o maior revendedor (ou agente),
como eram chamados os folheteiros.
Até 1936, ele, que começara a escrever
cordéis em 1930, editava seus folhetos na
gráfica do bispo do Crato, dom Francisco
de Assis Pires. Naquele ano, a conselho do Sabedor de suas limitações como poeta,
mesmo, adquiriu sua primeira máquina ou talvez por não se dedicar ao aprimora-
em Barbalha – uma rudimentar impressora mento do estro, José Bernardo da Silva de-
de pedal –, que foi paga parceladamente. cidiu se concentrar nas atividades de impres-
Assim veio a inaugurar a Folhetaria Silva, são e comercialização de folhetos. Mesmo
que, em 1939, seria renomeada como Ti- assim, constam entre seus títulos A prantea-
pografia São Francisco. da morte do reverendíssimo padre Cícero Ro- detalhes dos aspectos do cotidiano de
Inicialmente voltada à impressão dos mão Batista; Cinquentenário de Juazeiro e da- interesse do povo. Nessa perspectiva, é
folhetos do próprio José Bernardo e de dos históricos (Juazeiro em 1911); Combate ao interessante notar como boa parte de sua
outros poetas da região, a Tipografia São defensor da honra com Lampião, o terror do obra tem a figura do padre Cícero como
Francisco ganhou impulso extraordinário Norte; Conselhos paternais; Cruzeiro do horto; personagem central, comprovando a
em 1949, quando João Martins de Athay- História do príncipe que veio ao mundo sem importância que o sacerdote teve na vida
de encerrou as atividades de sua editora e ter nascido; Manifestação ao Padre Cícero Ro- e na obra do editor folheteiro.
vendeu todo o acervo da mesma a José mão Batista pelo povo de Juazeiro do Norte; O Não menos devoto ao padre Cícero foi
Bernardo, inclusive a obra do grande poe- defensor da honra ou Marilene e João Miguel; o poeta João de Cristo Rei. Em 1930, o
ta Leandro Gomes de Barros, cujos direitos O príncipe Oscar e a rainha das águas. poeta paraibano leu para o padre Cícero
autorais pertenciam a Athayde. Como podemos observar pelos títulos o primeiro folheto que escrevera, receben-
Nos anos 50, José Bernardo transforma- citados, além dos enredos de aventura, de do do sacerdote as seguintes palavras de
va Juazeiro do Norte no maior polo do cor- mistério ou de amor, tramas bem ao gos- aprovação: “Você de ora em diante vai ser
del, vindo a publicar os maiores clássicos do to do povo ávido por fantasia e romance, poeta. Vai ser poeta.” Com isso, já em 1931
gênero, como Pavão misterioso, Alonso e Ma- predominava a poesia-reportagem na mudou-se para Juazeiro do Norte, onde
rina, História de Juvenal e o dragão, A vida de produção de José Bernardo, com obras decidiu fazer da poesia sua profissão. As-
Cancão de Fogo e seu testamento, As proezas tendo como conteúdo acontecimentos sim, logo buscou manter a autonomia so-
de João Grilo, História da Donzela Teodora e de grande repercussão social, e atuando bre seus escritos, passando a imprimir em
outras tantas histórias que faziam parte do o autor como uma espécie de cronista tipografias do Crato e de Juazeiro os folhe-
acervo comprado legalmente por ele. preocupado em informar (e interpretar) tos que ele mesmo vendia nas feiras.

CURSO literatura cearense 169


Sua devoção a padre Cícero se compro- Em 1938, a convite de José Bernardo da Entre os vários cordéis que escreveu,
va pela grande quantidade de títulos que Silva, passou a trabalhar como aprendiz na incluem-se obras com enredos engraçados,
dedicou ao sacerdote, incluindo O que diz pequena Folhetaria Silva, a futura Tipogra- como A briga de um comerciante com a vende-
meu Padrinho Cícero sobre a santa romaria; fia São Francisco, onde, com o tempo, veio dora de tabaco; Namoro da velha debaixo da
Os milagres de Padrinho Cícero; Profecia: a assumir várias funções, incluindo a revi- cama; O casamento do negrão. Outras obras,
vida e morte de Padrinho Cícero Romão; Pro- são dos originais, a composição das matri- investem em tramas sensacionalistas ou gro-
fecia de Padrinho Cícero sobre os 3 estron- zes e a edição e impressão dos folhetos. tescas, como é o caso dos folhetos O homem
dos, o desencanto do Horto e do rio Jordão. Em 1949, devido ao desrespeito pelo pa- que deu à luz a um menino e O homem que deu
Ainda integrante do grupo de cordelistas trão aos seus direitos trabalhistas, Manoel à luz ao Diabo. Apesar destes, o tema da religio-
ligados ao padre Cícero foi Manoel João Caboclo deixou a São Francisco, indo traba- sidade foi frequentemente trabalhado pelo po-
da Silva,, cognominado de “Manoel Cabo- lhar com João Ferreira de Lima, astrólogo, eta, tendo como protagonistas principalmente
clo”, que, diferentemente dos dois poetas poeta e editor do Almanaque de Pernambu- o padre Cícero Romão ou o Frei Damião. São
anteriores, era filho de Juazeiro do Norte. co, que, não à toa, era impresso na Tipografia dessa temática os folhetos O homem que man-
Seus primeiros contatos com o universo de Zé Bernardo. A amizade com o poeta de dou comprar chuva ao Padre Cícero do Juazeiro;
da escrita e da leitura se deram através da Pernambuco, a propósito, deu-se pelo inte- O milagre do Padre Cícero em Roma; O sermão
poesia e de uma maneira particularmen- resse de ambos pelas chamadas ciências do meu Padrinho no ano de 32; A mulher que
te interessante: aos 13 anos, encantou-se ocultas, tendo Caboclo se especializado na virou bicho porque profanou o Frei Damião; A
com o poema Alonso e Marina, de Leandro arte das adivinhações e se transformado no queixa de Satanás a Frei Damião (ou O Satanás
Gomes de Barros, que enrolava uma bar- mais importante astrólogo de Juazeiro. resolveu falar com Frei Damião); Os milagres da
ra de sabão comprada pelo avô. Isso lhe Valendo-se de sua vasta experiência estátua do frade Frei Damião.
motivou a querer aprender a ler. como tipógrafo, Manoel Caboclo abriu, em Por fim, cabe dar destaque ainda ao
parceria com João Ferreira de Lima, uma nome de Expedito Sebastião da Silva,
gráfica localizada próximo ao Mercado Cen- poeta que, como Manoel Caboclo, também
tral de Juazeiro do Norte, onde passaram a nasceu em Juazeiro do Norte e trabalhou
imprimir o Almanaque de Pernambuco. na Tipografia São Francisco, onde ingres-
Em julho de 1957, a sociedade entre sou por recomendação do poeta Antônio
João Ferreira de Lima e Manoel Caboclo se Caetano de Palhares.
desfez, ocasião em que Caboclo comprou Expedito incorporou uma nova função a
as três máquinas de impressão e uma má- partir da amizade que estabeleceu com o po-
quina de cortar papel, tipos, além do direito eta e astrólogo pernambucano João Ferreira
de imprimir a obra do poeta pernambuca- de Lima, que conseguia conciliar habilmen-
no. Nascia assim a Folhetaria Casa dos te a produção poética com a elaboração de
Horóscopos. Ali publicou trabalhos de sua almanaques, consultas astrológicas e con-
autoria e de outros autores, como João fecção de talismãs. E quando este passou a
Cordeiro e João de Cristo Rei. publicar seus almanaques na Tipografia São
Francisco, Expedito, que fazia a revisão dos
originais, começou a estudar a astrologia.

170 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


A partir de então, o poeta Expedito Se- Apostolado do embuste, de 1956, no qual o au-
bastião da Silva passou a realizar consultas tor, o padre Antônio Gomes de Araújo, procura
e horóscopos por meio do envio pelo con- mostrar os milagres do padre Cícero como uma
sulente, através do reembolso postal, dos sequência de fraudes. Furioso, Expedito, que já
dados pessoais e da quantia em dinheiro o refutara no cordel Verdades incontestáveis ou
solicitada. Como resultado disso, viria a ga- voz dos romeiros, não hesita em desqualificar o
nhar o epíteto de poeta-astrólogo. autor, chamando-o de “infame cafajeste”, entre
Contudo, com a morte de José Bernardo outros impropérios. Além disso, Expedito traz
da Silva, em 23 de outubro de 1972, Expedito aspectos da vida e do sacerdócio do “Padim
determinou-se a manter viva a icônica Ti- Ciço” na tentativa de revelar a sua santidade.
pografia São Francisco.. Conhecendo como Expedito, bem como os demais poetas
ninguém os títulos do catálogo da editora, aqui citados, assistiram à incrível ascensão
sobretudo os clássicos que pertenceram ao do cordel em Juazeiro do Norte. Foi uma era
espólio de João Martins de Athayde, sabia em que, profundamente imersos no ambien-
exatamente o que devia ser reeditado e qual te místico das romarias e da devoção ao pa-
a tiragem mais apropriada para cada título. dre Cícero, contribuíram para fazer da Meca
Todas essas atividades não impediram cearense o maior polo da poesia popular
que se tornasse um autor prolífico, tendo impressa até praticamente o final dos
escrito mais de duzentas obras. Sobretu- anos 50 do século XX. No entanto, sendo
do, esmerou-se em manter a qualidade em mais novo que os demais, Expedito viveu o
toda sua produção, destacando-se como bastante para vivenciar uma outra fase, quase
poeta que dominava tanto a rima, como contrária, na qual o cordel viveria uma fase de Convém ressaltar alguns fatores que
a métrica e a oração. profundo declínio, quase chegando a experi- ajudam a explicar esse declínio ao longos
No tocante à religiosidade presente em mentar um processo de esgotamento e extin- dos anos 70 e 80 do século XX: (1) adoção
vários de seus cordéis, é importante acentu- ção que, felizmente, não duraria para sempre. do sistema de impressão através da fo-
ar que muitas vezes ela se traduziu em seus tografia (mais conhecido como off-set), que
versos através da crítica aos novos costu- permitindo tanto a redução do tempo quan-
mes, de que é exemplo o folheto A marcha to a melhoria da qualidade de impressão,

5.
dos cabeludos e os usos de hoje em dia. representou um golpe de morte nas tipo-
No que diz respeito em específico a sua grafias artesanais; (2) o crescente proces-
devoção ao padre Cícero, cabe citar os seguin- so de urbanização das cidades nordes-
tes títulos que evidenciam o protagonismo do tinas, levando a novos padrões e hábitos
sacerdote: A opinião dos romeiros sobre a cano-
nização do Padre Cicero pela Igreja Brasileira;
O MISTÉRIO de consumo e ao fortalecimento de novas
mentalidades; (3) a ampliação do acesso
O Padre Cícero, o sertanejo e os coronéis e Em
defesa da memória do Padre Cícero. O último
DO PAVÃO QUE dos nordestinos aos meios de comunica-
ção de massa, pincipalmente a TV, levando
se constitui uma reação à publicação da obra RECOLHEU o público a se dividir entre outras formas
de divertimento; (4) a popularização de
A CAUDA outros gêneros literários e o aumento do
m 1981, por ocasião do II Ciclo da preço do cordéis. Também, é claro, não se
Literatura de Cordel, encontro pode deixar de trazer novamente à lembran-
de poetas populares e pesquisa- ça a morte de José Bernardo da Silva, com
dores do cordel realizado na Uni- a (5) posterior diminuição das atividades
versidade Federal do Ceará, o pro- da Tipografia São Francisco. O somatório
fessor Átila de Almeida decretava de tudo isso e de outras coisas mais podem,
o “fim do cordel” (Cf. Literatura po- de alguma forma, tentar explicar o declínio
pular em questão, 1982, p. 17). do cordel nesse período.

CURSO literatura cearense 171


O certo é que, mesmo nos momentos mais nhecido como “Zé Melancia”, que apenas
difíceis, alguns poetas cearenses resistiram, em 1951, quando contava 42 anos de idade, SABATINA
não interrompendo sua produção poética em passou a produzir cordéis. Em textos como
cordel. Merecem destaque, nesse contexto, os Galope por dentro do mar nos peixes nos pás-
Ribamar Lopes (1932-2006) é poeta,
nomes dos poetas Abraão Batista (também saros do mar na jangada; Biografia de Canoa
contista e ensaísta. Autor da famosa
xilógrafo expressionista), Gonçalo Ferreira Quebrada; e Dragão do Mar, filho de Canoa
Antologia de Literatura de Cordel e
da Silva (cearense radicado há décadas no Quebrada; e Canção da vida do pescador, o
prefaciador do Acorda Cordel em
Rio de Janeiro, onde fundou a Academia Bra- autor escrevia sobre a realidade que o cir-
Sala de Aula, de Arievaldo Vianna,
sileira de Literatura de Cordel) e Lucas Evan- cundava, que incluía o ofício de pescador, a
era um guardião da arte, valorizando
gelista (que é também compositor e canta- história do lugar em que nasceu e os heróis
os mestres, influenciando e
dor). No período, merecem destaque ainda com os quais guardava laços, como os pes-
acompanhando, com respeitoso rigor,
os poetas Gonzaga Vieira (ou “Gonzaga de cadores Dragão do Mar e Jerônimo.
os jovens talentos e pesquisadores.
Canindé”), Natan Marreiro, Pedro Bandeira
Publicou também Quinze casos contados
e Severino do Horto.
(contos), Viola da saudade (poesia) e

6.
Um fato importante a se destacar nesse
Sete temas de cordel (ensaio) e Saudade
período foi o aparecimento inesperado de
enluarada (poesia - póstumo).
um poeta em um cenário em que a poesia
popular impressa não possuía ainda uma
tradição, comprovando que, mesmo na Uma das primeiras foi a Academia Brasi-
dificuldade, a poesia popular continuava ABRINDO leira de Cordel (ABC), cujo fundador e pre-
sidente era Vidal Santos. A instituição, cabe
resistindo. Trata-se do surgimento do poe-
ta-pescador José da Rocha Freire, mais co- A NOVA MALA informar, passou a administrar, a distância, a
DE ROMANCES Lira Nordestina (antiga Tipografia São Fran-
cisco), quando esta veio a ser adquirida pelo
pesar do discurso pessimista Governo do Estado do Ceará. Essa administra-
de alguns de seus pesquisa- ção, diga-se de passagem, recebeu várias críti-
dores (e até mesmo de poetas cas, como as que assinou o pesquisador ma-
populares), o cordel resistiu ranhense Ribamar Lopes (Cf. LOPES, 1987).
aos anos mais duros, chegan- Ainda nos anos 80, nascia o Centro Cul-
do aos dias atuais com o vigor tural dos Cordelistas do Nordeste, que
renovado, passando a ocupar surgiu da constatação dos poetas piauienses
espaços que antes lhe eram radicados no Ceará, Gerardo Carvalho Fro-
vedados. E, ao contrário do ta (o “Pardal”, atual presidente da instituição)
que se esperava, sendo privi- e Guaipuan Vieira, a partir de uma pesqui-
legiado em compras governamentais, in- sa realizada em 1985, de que eram poucos
gressando nas escolas, ganhando espaços à época os cordelistas em ação em nosso
em grandes eventos e sendo laureado em estado. A partir daí, procuraram espaços que
prêmios literários reconhecidos no país. permitissem a venda das obras que os dois
Para o revigoramento do cordel no Cea- produziam. Juntaram-se a eles, JotAmaro,
rá, porque não podemos falar de ressurei- José Caetano e Horácio Custódio. Funda-
ção de algo que nunca morreu, concorre- ram, então, em 1987, uma associação que ti-
ram vários acontecimentos. Um deles foi, nha inicialmente o nome de Centro Cultural
sem dúvida, o desenvolvimento de uma dos Cordelistas do Ceará, que logo depois
consciência coletiva que resultou no movi- passou a ostentar o nome atual: Cecordel.
mento de integração dos nossos poetas Seguindo a cronologia, cabe destacar
populares em agremiações, que passa- ainda outras duas importantes instituições
ram a concentrar esforços para conquistas de cordelistas que ajudaram a projetar o
comuns de seus associados. gênero poético em foco: A Academia dos

172 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Cordelistas do Crato e a Associação de
Escritores, Trovadores e Folheteiros do
Estado do Ceará (Aestrofe).
Fundada em 1991 por Elói Teles de Mo-
rais, a Academia dos Cordelistas do Crato,
atualmente presidida pela poeta Anilda
Figueiredo, é composta por vinte poetas
populares e tem realizado várias ações cul-
turais envolvendo seus associados, incluin-
do a apresentação de recitais em festas do
município em que se localiza.
A Aestrofe foi fundada em 2006 pelo poeta,
ilustrador e editor Klévisson Viana, atual
presidente da instituição. A instituição con-
grega, além de poetas populares, também
folheteiros, xilogravadores, capistas,
folcloristas, declamadores, cantadores
e todos os demais artistas e profissio-
nais que lidam com o universo da literatura
de cordel e da cultura popular. Uma das
principais ações da instituição é a organi-
CONFEITOS
zação da “Praça do Cordel”, espaço que as
últimas Bienais Internacionais do Livro do A Feira do Cordel Brasileiro foi
Ceará têm destinado aos poetas populares idealizada e é organizada por Klévisson
cearenses, sendo reconhecida pela sua di- Viana, vencedor do Prêmio Jabuti de
versidade e animação dos participantes. Outro fator que tem contribuído com Literatura (2015) com O Guarani em cordel,
Cabe ainda incluir nesse rol de instituições a efervescência e resistência da produção uma adaptação da obra de José de
congregadoras de poetas cearenses, a So- cordelística cearense, notadamente de For- Alencar. A ação, que acontece anualmente
ciedade dos Cordelistas Mauditos (sic),
taleza, é o surgimento de editoras especiali- em Fortaleza, é uma das manifestações
importante movimento de jovens poetas,
cantadores e performers, fundado no ano zadas na publicação de folhetos. Entre elas, e celebrações mais coloridas e plurais
de 2000 em Juazeiro do Norte. E, fazendo merece destaque a editora Tupynanquim, do cordel brasileiro, acolhendo diversas
jus ao nome da associação, seus mem- fundada em 1995 pelo já citado Klévisson gerações de mestres e artistas populares
bros têm produzido obras marcadamente Viana. Inicialmente criada para a publica- brasileiros, entre cordelistas, editores,
“engajadas” na luta dos direitos humanos, ção de obras em quadrinhos, passou em xilogravadores, cantadores, repentistas,
sendo comum as ideias que defendem en-
trarem em choque com o conservadorismo
1999 a ter como foco a publicação de cor- bonequeiros, rabequeiros e todo um
predominante na sociedade juazeirense. déis, vindo tanto a reeditar clássicos do gê- mundo de boa gente.
nero, como a lançar novos poetas.

CURSO literatura cearense 173


Outro acontecimento importante veio a
ser a inclusão, em 2006, de cordéis assinados
pelos poetas cearenses Arievaldo Vianna,
Klévisson Viana e Rouxinol do Rinaré no
projeto “Baião de Letras”, numa parceria da
Secretaria de Educação com a Secretaria de
Cultura do Estado do Ceará. A partir de então,
Merecem destaque outras duas editoras o cordel viria a ser cada vez mais frequente no
cearenses especializadas na publicação de âmbito do sistema de ensino de todo o estado.
cordéis: a Cordelaria Flor da Serra, fun- Além dos aqui já citados nesta seção, com
dada pelo poeta e pedagogo Paiva Neves toda a humildade de possíveis esquecimen-
em 2016, e a Rouxinol do Rinaré Edições tos ou desconhecimentos, incluem-se, entre
& Folheteria, fundada em 2019 pelo fecun- os cordelistas contemporâneos do Ceará:
do poeta Antônio Carlos da Silva, mais Anilda Figueiredo, Antônio Marcos Bandeira,
conhecido pelo pseudônimo de “Rouxinol Antônio Queiroz de França, Arlene Holanda,
do Rinaré”. Ainda que recentemente fun- Audifax Rios, Bastinha Job, Bia Lopes (filha
dadas, as duas editoras também investem do poeta, pesquisador e contista Ribamar
na estratégia já há tempos empregada pela Lopes), Costa Sena, Dalinha Catunda, Dideus
Tupynanquim, ora reeditando cordéis clás- Sales, Edésio Batista, Édson Neto, Eduar-
sicos, ora a lançar obras de poetas contem- do Macedo, Elmo Nunes, Evaristo Geraldo,
porâneos, incluindo os novos talentos que Fanka, Fernando Paixão, Francisco Melchí-
não param de surgir, inclusive autores de ades, Gadelha do Cordel, Godofrêdo Sólon,
outros gêneros que “experimentam” o cor- Guilherme Nobre, Ivonete Morais, Jarid Arraes
del ou migram definitivamente para ele. (neta de Abraão Batista e filha de Hamurabi

174 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Batista, ambos cordelistas e xilogravuristas), Destacamos aqui a atuação firme, talen- REFERÊNCIAS
Jesus Sindeaux, João Batista Vieira Fontene- tosa e cada vez mais crescente do cordel
BRÍGIDO, João. Miscelânea histórica. 2. ed.
le (Jotabê), José Mapurunga, Josenir Lacer- de autoria feminina, contribuindo para (fac-similar da edição pioneira de 1889). Fortaleza:
da, Josy Maria, Julie Oliveira (filha do poeta erradicar o preconceito contra elas e a sua Fundação Waldemar Alcântara, 2009.
Rouxinol do Rinaré), Lucarocas, Luís Távora, invisibilidade por muito tempo, comum no
CARVALHO, Gilmar de. Lyra Popular: o cordel do
Maria (a cangaceira), Maria Luciene, Mariana âmbito cordelístico, assim como no literário Juazeiro. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de
Lima (Jovelina do Ceará), Modesto, Moreira e intelectual de forma geral. Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Outras Histórias, 37).
de Acopiara, Paiva Neves, Paola Tôrres, Paulo Sob a batuta desses e de tantos outros __________. Moisés Matias de Moura: o cordel de
de Tarso Bezerra Gomes, Pedro Paulo Pauli- poetas da contemporaneidade, o cordel Fortaleza. Fortaleza: Expressão, 2011.
no, Rafael Brito, Raul Poeta, Romário Braga, do Ceará se mostra cada vez mais promis- CEARÁ/SECRETARIA DE CULTURA E DESPORTO/
Salete Maria, Serra Azul (Piúdo), Siqueira, Sté- sor, afastando de vez o receio das gerações CENTRO DE REFERÊNCIA CULTURAL (Org.).
lio Torquato, Tião Simpatia, Vânia Freitas, Zé anteriores de que nosso cordel caminhas- Literatura popular em questão. Fortaleza: IOCE,
do Jati e Zé Maria de Fortaleza, entre outros. se para a extinção. 1982. (Povo e Cultura, 3).
A eles se soma o nome de Geraldo Amâncio, Ajustado aos novos tempos, sendo ri- DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. Literatura de cordel. 2.
o qual, apesar de ser um celebrado veterano camente estudado pela academia e dia- ed. Rio de Janeiro: MEC, 1977.
na cantoria, só mais recentemente passou a logando com todas as artes (cinema, HQs, KUNZ, Martine. Cordel: a voz do verso. Fortaleza/
se dedicar à poesia de bancada. teatro etc.), o cordel invade as redes so- CE: Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
ciais e também ganha a tela da TV em rede (Outras Histórias, 6).
nacional pelos recitais de Bráulio Bessa. LOPES, José de Ribamar. A hora da verdade. In: D. O

CONFEITOS Ocupa lugar de destaque tanto nas Bienais


do Livro quanto em feiras e festas de livros
Letras, Ano II, n°.6, Fortaleza, 1987.
SOMBRA, Waldy. Padre Verdeixa: o Canoa Doida.
espalhadas pelo país. E, sobretudo, entra Fortaleza: Unifor, 1996.
Arievaldo Vianna, que não é
nas escolas, pela porta da frente, mostran- TERRA, Ruth. Memórias de lutas: a literatura de folhetos
apenas o idealizador do projeto no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983.
do-se como ferramenta interessantíssima
Acorda Cordel, mas também o
a serviço do processo de ensino-aprendi- VIANNA, Arievaldo. Acorda cordel na sala de aula:
executor, consultor e capacitador a literatura popular como ferramenta auxiliar na
zagem e de fomento à leitura, como já an-
de professores, acredita que educação. 2. ed. Fortaleza: Encaixe, 2010.
tecipava o Projeto Acorda Cordel, criado
o cordel facilita o processo ___________; LIMA, Stélio Torquato. Santaninha,
e desenvolvido há quase vinte anos por
de alfabetização por ser uma um poeta popular na capital do Império.
Arievaldo Vianna, e que, após ser testado
linguagem simples e de fácil Fortaleza: IMEPH, 2017.
com sucesso pela Secretaria de Educação
alcance. Ora, ele mesmo fora
do município de Canindé, foi apresentado
alfabetizado pelo cordel.
em Brasília, em dezembro de 2002, duran-
Após um encontro em Brasília, te a III Conferência Nacional de Educação
na presença de Ziraldo, Lucélia e Desporto, promovida pela Comissão de
Santos, Nelson Pereira dos Santos Educação da Câmara Federal.
e de uma plateia de mais de 3 Em 2006, finalmente saiu a primeira
mil pessoas, Arievaldo declamou edição desta obra (Cf. VIANA, 2010), com
“A gramática em cordel”, de José tiragem de dois mil exemplares, há muito
Maria de Fortaleza, e depois disso esgotada. A retomada do Projeto Acorda
aumentou em muito o número Cordel resgata um trabalho vitorioso que
de convites, viajando por diversos deu grande contribuição para difusão da
estados do país, não apenas Literatura de Cordel nas escolas de todo o
ele, mas os demais cordelistas Brasil, ao mesmo tempo que influenciou
envolvidos no projeto. às novas gerações, estas que, sabe-se lá
Para saber mais: um dia, trarão no coração o brado gosto-
acordacordel.blogspot.com so de um poema bem declamado.

CURSO literatura cearense 175


AUTORES
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Arievaldo Vianna Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É poeta, xilogravador, chargista e ilustrador. Nasceu no FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


sertão, criado à luz de lamparina, em contato com as João Dummar Neto Presidente
cacimbas dos saberes do povo Nordestino e alfabetizado André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
com auxílio do Cordel. Nos anos de 1990, lançou a caixinha Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
de folhetos da Coleção Cancão de Fogo, sucesso de vendas
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
e de crítica. Criador do Acorda Cordel na Sala de Aula, autor e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
de mais de 120 folhetos de cordel e de 30 livros publicados,
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
alguns adotados pelo PNBE. Falecido precocemente em 30 Viviane Pereira Gerente Pedagógica
de maio de 2020, a coautoria deste fascículo foi a sua última Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
contribuição registrada ao cordel. Joel Bruno Designer Educacional

CURSO LITERATURA CEARENSE


Stélio Torquato Lima Raymundo Netto Coordenador Geral,
É graduado em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Editorial e Estabelecimento de Texto
Rio Grande do Norte (UERN), com mestrado em Estudos da Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
(UFRN) e doutorado em Letras pela Universidade Federal da Miqueias Mesquita Diagramador
Paraíba (UFPB). É professor adjunto de Literaturas Africanas Carlus Campos Ilustrador
de Língua Portuguesa na UFC, onde também coordena o Luísa Duavy Produtora
Grupo de Estudos Literatura Popular (GELP). É escritor, com ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
mais de 150 títulos em cordel. Algumas de suas obras foram ISBN: 978-65-86094-24-4 (Fascículo 11)

premiadas e selecionadas pelo Programa Nacional do Livro e


do Material Didático (PNLD).

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Todos os direitos desta edição reservados à:
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira Fundação Demócrito Rocha
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas fdr.org.br
nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. fundacao@fdr.org.br

Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões


de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Apoio

Patrocínio

Realização
CURSO
l c
12 Itinerários
de Leitura:
Um Passeio pela
Literatura do Ceará
i e Vanessa Passos, Nina Rizzi e Raymundo Netto

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Realização
1.
nuais e/ou roteiros de estudo de Literatura vence na Terra?” (GALENO, 2010, p.70) Para
Cearense, entre os quais a literatura infanto- isso, criou alguns poemas para o começo e
juvenil, os movimentos que nos chegam das término das aulas, para quando um colega
periferias, em formatos nada acadêmicos ou maltratasse outro ou mentisse, para aulas
tradicionais, além de um panorama do mer- em campo, para datas célebres, em casos
ERA UMA VEZ... cado editorial e da sua produção, seja por de visitas de inspetores à sua escola, para
A vida do escritor da província é um drama editoras independentes ou pelas formais. os finais de semana etc. Acreditava ele que
pungente. Trancado no silêncio e na distância Para começar nosso trajeto, gostaría- “além de desenfadar o menino, alegrando-
sem estímulo, sem recompensa, com jornais mos de lembrar que já vimos aqui a afir- -lhe o espírito e de predispô-lo para con-
de circulação limitada, com edições precárias mação de que Canções da Escola (1871) de tinuar o trabalho, ensina-lhes úteis pre-
– os que se dão às letras têm o destino dos Juvenal Galeno é o primeiro registro no ceitos, e serve-lhes de estímulo, prêmio e
emparedados: vivem subterraneamente. O Ceará de uma obra destinada ao públi- castigo, acabando por uma vez com a
Brasil não é só o Rio de Janeiro. co infantojuvenil. Na época, Juvenal tra- palmatória, esse brutal recurso da inépcia
balhara como inspetor da Instrução Públi- do magistério”. (GALENO, 2010, p.69)
Mário Linhares, em História
ca e, contrário à palmatória, acreditava O certo é que a obra foi impressa na Ti-
literária do Ceará, 1948.
que para resolver todo tipo de mau com- pografia do Comércio, de propriedade do
sse prometido passeio pela Literatu- portamento ou mesmo para disciplinar as poeta, e foi “adotada pelo Conselho de Ins-
ra Cearense já vem acontecendo, de crianças, elas teriam apenas que cantar: trução Pública do Ceará para uso nas aulas
forma breve, desde o nosso primeiro “E qual meio mais eficaz do que a canção, primárias”, ou seja, uma prima-pioneira dos
módulo. Você, que se abancou nesse a harmonia, esse doce poder que a tudo nossos atuais paradidáticos.
curso, por sua “janela virtual” leu e
ouviu, certamente, muita coisa que
ainda não conhecia ou mesmo de
que já havia ouvido falar, mas... E é

2.
por isso que esse curso existe!
Porém, como não é possível sintetizar
toda a literatura produzida no Ceará em ape-
nas 12 módulos, neste derradeiro optamos
por elencar alguns recortes (“itinerários”) que
nunca antes foram sistematizados em ma- O BERÇO DAS NARRATIVAS
INFANTOJUVENIS
om a evolução, mesmo que enveredar pelo caminho dessa literatura
lenta e restrita, do mercado tão peculiar. Alguns, certamente, saíram
editorial cearense, uma certeza exitosos; outros se limitaram a emprestar
se confirmava: a necessidade seus pomposos (e comerciais) nomes às
de publicações destinadas capas de obras que nem de longe refletem
a esse público infantojuve- a sua competência em outros gêneros. Ao
nil, na tentativa de conquistar contrário, demonstram total inexperiência
a adoção em listas escolares e e inabilidade para com esse público.
para a venda em compras es- Em nosso estado, boa parte dos escrito-
peciais dos programas governamentais res e escritoras, iniciantes ou não, tiveram
supostamente de todas as esferas. Daí, esta travessia” (ou ousadia) pelas poucas
não acontece apenas no Ceará, muitos au- editoras do estado, inclusive pelas portas
tores foram convidados e se arriscaram a das Edições Demócrito Rocha (EDR), braço

178 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


SABATINA Da mesma forma, como a literatura
infantil não é feita apenas por quem
escreve seus textos, mas compartilha a
O que é uma editora? É um sistema sua leitura com quem as ilustra, desfilam
de relações, que se destina a pelos catálogos editoriais: Susana Paz, Gua-
produzir uma certa obra. Esta biras, Carlus Campos, Karlson Gracie, Raisa
obra, no plano editorial, não é só Christina, Sérgio Melo, Rafael Limaverde,
o texto do autor [...]. Um livro é Ramon Cavalcante, Hemetério, Klévisson
muito mais do que um autor, Viana, Glauco Sobreira, Luciene Lobo, Da-
porque incorpora um trabalho niel Dias, Mariza Viana, Ronaldo Almeida,
tremendo de uma equipe.” (Jacob Audifax Rios, Silas Rodrigues, Jabson Si-
Guinsburg, professor da Escola de mões, Ingra Rabelo, Arlene Holanda, Mário
Comunicação e Arte (ECA-USP) e Sanders, Descartes Gadelha e outros.
editor da Perspectiva) Muitos dos autores cearenses, não apenas
da literatura infantojuvenil, na ânsia de publi-
car sua obra, e pela restrita atenção e capaci-
editorial desta Fundação e uma das primei- dade de acolhimento pelas editoras formais,
ras editoras do estado – com 32 anos de contam apenas com dois recursos: a auto-
exercício –, levando em consideração o mo- publicação diretamente com uma gráfica-
delo de negócio como conhecemos (antes -editora ou a busca de algumas das editoras
tínhamos as tipografias e até então muitas denominadas independentes que surgem.
gráficas-editoras que não acolhem as práti- Estas, geralmente, apresentam soluções em Por outro lado, o Governo do Estado do
cas editoriais básicas). Entre eles: Arievaldo pequenas tiragens (100, 200, 300 exemplares). Ceará, por meio da Seduc, desenvolve com
Vianna, Kelson Oliveira, Almir Mota (que em- Entretanto, muitas delas não cumprem as os municípios o Programa Aprendizagem
bora tenha publicado pelas EDR, hoje tem funções editoriais ou as cumprem apenas na Idade Certa, que tem como objetivo a
selo próprio pela Casa da Prosa), Patativa parcialmente, funcionando um pouco mais “elevação da qualidade da leitura e escrita
do Assaré, Raymundo Netto, Sânzio de Aze- do que produtoras gráficas, podendo até dizer de todos os alunos da rede municipal”. As-
vedo (a sua única obra no gênero, O curu- tratar-se de autopublicação assistida. sim, há anos promove concursos públicos
mim pintor e outras histórias, foi uma das Com o consumo maior de plataformas e de seleção de obras da Coleção Paic Pro-
contempladas pelo Programa Nacional do livros digitais – mesmo que ainda menor do sa e Poesia, acumulando hoje 216 títulos,
Livro Didático - Literatura em 2019), Dimas que se professava –, alguns abrem mão da tendo cada um a fantástica tiragem de 14
Carvalho, Aline Bussons, Marcelino Câmara, impressão gráfica e afirmam ter bons resulta- mil exemplares – o livro já nasce best-seller
Audifax Rios, Kelsen Bravos, Mino (cartunis- dos ou visibilidade na circulação de obras em – distribuídos para toda a rede estadual de
ta e artista plástico, responsável pelo texto formato e-book, por exemplo, pela Amazon. ensino e alcançando os pequenos leitores
e ilustração de A luz de cada um), Arlene Ho- E como o governo estadual nem o municipal desde a Educação Infantil, passando pelo
landa, Demitri Túlio, Natalício Barroso, Fa- têm um plano definido de apoio e fomento 1º ao 5º ano, até alcançar do 6º ao 9º ano
biana Guimarães, Pedro Salgueiro, Fabiano às editoras, seja por meio de compras ou por nas escolas públicas cearenses. Na coleção,
dos Santos, Sáskia Brígido, Jean-Antoine, incentivo à produção, o mercado é instável, encontramos alguns nomes, entre escrito-
Guaraciara Barros Leal, Rouxinol do Rinaré, pouco sustentável, dependendo quase que res e ilustradores já da área, mas a grande
Ricardo Guilherme, Marcos Mairton, Tércia inteiramente das competitivas inserções maioria é composta por autores e auto-
Montenegro, Stélio Torquato, Jorge Pieiro, nas listas escolares, pareando-se contra os ras completamente desconhecidos, até
Evaristo Geraldo, Ângela Escudeiro, Efigênia gigantes editoriais nacionais que disputam então. Bom para esses autores, mas ruim
Alves, Simone Pessoa, Rosa Morena, Oswald na mesma mesa e com pesos distintos. Isso, para o mercado editorial que perde a opor-
Barroso, Flávio Paiva, Ana Márcia Diógenes, certamente, impacta na cadeia criativa, redu- tunidade de contar com esse investimento
Tamara Bezerra, entre outros. zindo os investimentos nessas publicações. e essa produção para seu catálogo.

CURSO literatura cearense 179


mos e isto muito antes da leitura e da es- Maria Luiza, irmã de Rachel, afirmou

3.
crita. Esta representação se estabelece seja em entrevista que o que tocava de forma
por meio das cantigas de ninar, das brinca- mais direta e mais funda o coração da au-
deiras de roda ou das contações de histórias tora era “o seu amor pelas crianças, pelos
realizadas pelos familiares. Contudo, quan- bichos e pelos passarinhos”.
do as crianças chegam à escola é que a lite- Horácio Dídimo (1935-2018) é também
LITERATURA ratura passa a ter o poder de construir uma um dos nomes mais importantes da litera-
PARA... ligação artística entre o mundo da imagi-
nação, dos símbolos subjetivos, e o mundo
tura infantil cearense, tanto que o Dia Esta-
dual da Literatura Infantil, no Ceará, desde
CRIANÇAS? real da escrita, dos signos convencionais, da
cultura sistematizada. É através da literatura
2019 é comemorado em 23 de março, data
de nascimento de Horácio.
Vanessa Passos infantil que praticamos o impossível e recon- Mas a sua contribuição literária foi
e alguma vez você já ouviu al- duzimos nossa própria história. além da produção de seus livros, pois
guém dizer que literatura infantil Escolhemos aqui, como mostra, alguns como professor do Departamento de Li-
não tem valor literário, porque é dos autores cearenses que têm mais obras teratura e da Pós-Graduação em Letras
algo feito para crianças e, portan- destinadas às crianças e/ou jovens: da UFC, foi o responsável pela criação da
to, tem uma linguagem fácil e sem Rachel de Queiroz (1910-2003), consi- disciplina de Literatura Infantil.
valor estético, ao acompanhar derada uma das maiores autoras da litera- Com quase vinte livros publicados no
a trajetória literária desses(as) tura cearense e brasileira, não se prendeu gênero, além dos seus livros de ensaios so-
autores(as), vai perceber o quan- a um único gênero, publicando contos, ro- bre literatura para crianças, Horácio exalta a
to essa afirmação é equivocada. mances, crônicas, dramaturgia, críticas lite- relevância da poesia para esse público lei-
Peter Hunt, escritor e professor emérito rárias e três livros infantis, todos publicados tor e afirma que “No labirinto da Literatura
em literatura infantil da Cardiff University, de- pela Editora José Olympio: O menino mági- Infantil, a poesia, ainda que esquecida, nun-
fende que escrever literatura infantil é ain- co, Cafute & Pena-de-Prata e Andira. ca estará perdida. Mesmo quando se cala –
da mais difícil, porque é preciso manter uma Sua estreia na literatura infantil foi em amarga – da boca pra fora, na canção, ai de
preocupação estética mesmo quando há a grande estilo, porque seu primeiro livro, O nós se não adoçar por dentro o coração”.
exigência de limitação em relação à extensão menino mágico, foi vencedor do Prêmio Assim que tiver a oportunidade de se
do texto e ao emprego de vocabulário para Jabuti de Literatura Infantil em 1969. O debruçar sobre a literatura de Horário Dídi-
que a obra seja acessível para as crianças. Dá livro conta a história de Daniel – nome de mo, o leitor descobrirá que ela é simples, e
muito trabalho fazer parecer ser simples. Isso, seu sobrinho-neto –, um menino diferen- nunca simplória. Ele diz muito com o pouco
sem falarmos da capacidade atrativa que o te que, com imaginação fértil, tinha pode- e não subestima os pequenos leitores. A es-
texto deve ter, pois a criança quando se depa- res mágicos e conseguia viajar durante o critora Marília Lovatel diz sobre o autor ce-
ra com um livro que não a atrai, simplesmen- sono para os mais incríveis lugares e fazer arense que “ele consegue construir os tex-
te, o abandona. Vale ressaltar que, se existem coisas que um menino normal nem so- tos com a profundidade necessária e com
restrições quando um autor escreve, ele preci- nharia. Em Cafute & Pena-de-Prata – “ca- uma linguagem que abraça as crianças”.
sará desenvolver muito mais sua criatividade. fute é o nome de uma pulga que se dá Entre as obras destinadas a esse públi-
Sobre o gênero literatura infantil, concorda- em galinhas” –, dois pintinhos, um pobre co, encontramos: O passarinho carrancudo,
mos com CAGNETI, para quem: “A literatura e nascido em granja (Cafute) e outro rico As historinhas do mestre Jabuti, As reina-
infantil é, antes de tudo, literatura, ou melhor, (Pena-de-Prata), nascido em chocadeira ções do Rei, Historinhas cascudas, A escola
é arte: fenômeno de criatividade que repre- elétrica, se conhecem, tornam-se amigos dos bichos, As flores e os passarinhos, Tem-
senta o Mundo, o Homem, a Vida, através da e partem em busca de aventuras. Em An- po de sol, Exercícios de admiração, O me-
palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o dira, a história de uma andorinha aban- nino impossível, O menino perguntador, Os
imaginário e o real; os ideais e sua possível/ donada cedo e criada por uma família de compadres bichos, entre outros.
impossível realização.” (CAGNETI, 1996, p.7) morcegos. Andira nasceu quando uma Após a sua morte, a família, represen-
Assim, entendemos que ela nos é um amiga de Rachel disse que ouviu, durante tada principalmente por um dos filhos, o
caminho lúdico presente em nossas vidas uma noite, o som de morcegos, mas que também poeta Luciano Dídimo, criou o
como representação do mundo em que vive- parecia canto de andorinhas. Instituto Horácio Dídimo, hoje, um fo-

180 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


mentador de publicações de autores cea- trando cursos, oficinas, especializações, se- em versos), O pequeno inventor de soluções
renses em gêneros distintos. minários e conferências. Seus livros infantis (repleto de saborosos neologismos, a obra
Ana Miranda nasceu em 1951, em For- são marcados pela intrínseca relação en- conta a história do menino Juliano e seus
taleza, Ceará. Saiu do estado ainda menina tre literatura e música. Assim, é autora de amigos em corações “espremoídos” de tan-
e seu primeiro romance, Boca do Inferno dezenas de livros destinados não apenas à ta tristeza...), Entre selos e sonhos (por meio
(1989), teve sucesso imediato, sendo depois literatura infantil, mas à musicalização, edu- de cartas, o garoto Ricardo descobre o uni-
traduzido para diversos países, merecendo cação musical e prática coral e instrumental. verso das palavras e dos selos, além de ines-
o Prêmio Jabuti de Revelação em 1990. As obras para crianças – muitas delas em quecíveis memórias), Menina dos sonhos
Ana, como Rachel de Queiroz, é mais re- forma de “narrativas cantadas”, como deno- de renda (narrativa em versos em torno da
conhecida por seus romances, embora tra- mina a autora, histórias em versos, poemas tradicional renda nordestina e dos valores,
ga uma vasta seleção de obras de literatura cantados, parlendas, canções e cantigas como a família, amizade, fé, perseverança
infantil: Flor do cerrado: Brasília, Lig e o gato tradicionais, adaptações do folclore, entre e coragem, finalista do Prêmio Jabuti em
de rabo complicado, Tomie: cerejeiras da noi- outros – associam a linguagem literária com 2017). Entre as suas obras destinadas ao
te, Mig: o descobridor, Carta do tesouro, Me- a musical e são também distribuídas por ela público juvenil: A memória das coisas (a his-
nina Japinim, Como nasceu o Ceará? e Carta em coleções, como: Contos encantados, Can- tória de objetos contada pelos próprios, em
da vovó e do vovô. É relevante percebemos tigas quase sem fim, Tradição & diversão, Pa- uma memória enredada) e Coração de mo-
como Flor do cerrado: Brasília, a primeira obra lavra também é brinquedo, Passinhos firmes, saico (uma novela infantojuvenil que conta
infantil de Ana, já traz o tema basilar de toda Histórias para contar e tocar, Cantos e contos uma história de amor permeada por refe-
sua produção ficcional: o exílio. Falando às pra Tom e Bia. Entre suas obras publicadas, rências ao arquiteto modernista catalão An-
crianças, a autora nos reconduz à sua me- destacam-se: A lenda da carimbamba (um toni Gaudi, e que, não por acaso, tem nela
ninice através de suas memórias, relatos de conto cantado, no qual uma voz insistente – uma pequena fábrica de azulejos).
seus familiares, descrições de fotos antigas de “amanhã eu vou...” –, que vem da lagoa em
sua família no Ceará, trechos de cantigas de noites de lua cheia, atrai as pessoas), Ciran-
rodas, entre outros elementos lúdicos utiliza- das entrameladas (cantigas de roda em con-
dos literariamente para recontar a história da texto de narrativa), De fio em fio a história se
construção da capital federal, desta vez, pelos desfia (história do encontro de duas famosas
olhos de uma criança. Essas lembranças de tecelãs – a aranha e a rendeira. Uma leitura
infância representam um dado inusitado em rica em efeitos sonoros) e O capim encantado.
nossa Literatura Brasileira, uma vez que mui- O capim encantado, por exemplo, é ba-
tos autores nacionais escreveram suas remi- seado em um conto europeu que Câmara
niscências infantis, ao contrário, voltadas para Cascudo classifica como conto denuncian-
leitores adultos, a exemplo de Manuel Ban- te, pois através da ação de cantar, a menina
deira, Graciliano Ramos, Carlos Drummond enterrada denuncia a crueldade da madras-
de Andrade, Rachel de Queiroz, entre outros. ta. Da mesma maneira, são muitos os seus li-
Destaco ainda aqui o livro Como nasceu vros baseados em contos folclóricos: A flauta
o Ceará?. Nele, poesia e teatro se unem para do jabuti, Bonequinho de mel, O macaco
propor uma brincadeira poética e lúdica para e a viola, A velha Maricota e o macaco
as crianças. Nele, a autora conta a história do Juvenal, O velho, o menino e o burro etc.
nascimento do Ceará com suas próprias ilus- Marília Lovatel, fortalezense, nas-
trações. Aliás, muitas das obras infantis de Ana cida em 1971, traz suas obras, na maio-
Miranda são totalmente ilustradas por ela. O ria, dedicadas ao público infantil, mas
livro é ótimo para propor brincadeiras em fa- também atua com o público juvenil.
mília ou atividades lúdicas escolares, como, Duas vezes integrou o Catálogo
saraus poéticos, jograis ou peças teatrais. Brasileiro da Feira de Bolonha, na
Elvira Drummond nasceu em Fortaleza, Itália. Entre suas obras: Fábulas
Ceará. Além de escritora é também musicis- e contos em versos (competente
ta. Atua em várias cidades brasileiras, minis- adaptação das fábulas de Esopo
Segundo Lovatel: “A escrita é o meu ele- Socorro Acioli nasceu em Fortaleza, em da literatura infantil discutidas em sua
mento. O ar que respiro, a terra que eu piso, 1975, escreveu seu primeiro livro O pipoquei- obra ensaística As funções da Literatura In-
o fogo que me acende, a água que me mata a ro João quando tinha oito anos de idade. A fantil. São elas: divertir, emocionar, educar,
sede de tudo. Cada pessoa precisa encontrar partir de 2004, começou a escrever e publicar conscientizar, instruir, integrar e libertar.
o seu elemento, para não vagar sem direção.” livros infantojuvenis, sendo muito bem-suce- Acreditamos que quando uma criança
Klévisson Viana cartunista, ilustra- dida e bem recebida pelo público, chegando ou qualquer pessoa lê um livro, é um mun-
dor, poeta cordelista, quadrinista, editor e a receber o selo “Altamente Recomendável” do que se abre, pois não há nada mais li-
membro da Academia Brasileira de Litera- pela Fundação Nacional do Livro Infantil e vre do que um livro.
tura de Cordel, nasceu em Quixeramobim- Juvenil (FNLIJ) e a ter obras compondo o Ca- De fato, a literatura infantil cearense é
-CE, em 1972. Importante destacar o reco- tálogo Brasileiro da Feira de Bolonha e con- muito vasta e rica, provando o que nos afir-
nhecimento de seu talento nas distintas templados em programas governamentais. ma Peter Hunt: “Não há bons livros que se-
facetas em que atua, seja pelos prêmios, Bia que tanto lia: uma história do livro jam apenas para crianças.”
como o Troféu Jabuti (literatura), HQMIX para crianças e É pra ler ou pra comer: a his- E quem quiser, que conte outra.
(quadrinhos) e Luiz Sá/Secult (quadri- tória da padaria espiritual para as crianças
nhos), pela adoção de suas obras pelas es- são obras que trazem um conteúdo espe-
colas e nas compras de programas gover- cífico e didático adaptado para as crianças
namentais, seja pela qualidade e renome numa linguagem literária e lúdica. Ela tem
de seus parceiros (como Júlio Shimamoto olhos de céu é um texto poético no qual te-
e Flávio Colin, mestres dos quadrinhos, mos um imaginário fantasioso de uma ga-
com ele e Wellington Srbek em Mirabi- rota que faz chover no sertão sempre que
lia), assim como pela adaptação de suas chora – a obra ganhou o Prêmio Jabuti de
obras, como para a série “Brava Gente” da Literatura Infantil em 2013. O mistério da
Rede Globo. Entre as suas obras infantis, professora Julieta conta a história de uma
aqui citamos: Dom Quixote: em versos de singular professora que chega para resol-
cordel (saborosa e fluente adaptação do ver um mistério em uma escola e fazer com
clássico, escrita e ilustrada pelo autor), O que seus alunos se apaixonem pela leitura.
tesouro da felicidade (o menino pobre que A quarta-feira de Jonas traz a tônica da pre-
sonha com um baú de tesouro e decide servação do meio-ambiente, por meio de
sair de casa em sua busca), ABC da Natu- histórias paralelas, no sentido do “e se...”,
reza (educação ambiental para as crianças na qual o fato de Jonas jogar ou não jogar
a partir das letras do alfabeto), Abecedário um saco plástico no meio da rua faz toda a
dos bichos (na mesma trilha do anterior, diferença. Em O peixinho de pedra, um velho
explora divertidamente o alfabeto por sertanejo que nunca viu o mar guarda com
meio dos versos em cordel para falar da ele um fóssil, o tal peixinho, que vai levá-lo a
fauna brasileira), João e o Pé de Feijão realizar desejos. Uma oportunidade de dis-
(adaptação em cordel do famoso conto cutir paleontologia com a criançada.
de fadas popularizado pelo inglês Joseph Socorro também atua na literatura
Jacobs) e A princesa encantada de Jerico- juvenil, com A bailarina fantasma, In-
acoara (como em um universo paralelo, o ventário de segredos, Vende-se uma
reino encantado surge em meio da idílica família e Diga Astragud (contos).
praia cearense), entre outros, a maioria Finalizo este tópico de nosso
em cordel e com muito humor, agradando módulo, com a reflexão de Horário
a crianças, jovens e adultos. Dídimo sobre as sete finalidades

182 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


4. BOLACHINHAS uma elite privilegiada e sedenta por fazer
do Brasil uma pequena Europa. Logo essas
reuniões elegantes se estenderam pelo país
O sarau é uma reunião com o objetivo afora, ganhando as graças de latifundiários,
PERIFERIA, de compartilhar experiências culturais
e o convívio social. É composto por
de prósperos comerciantes e pessoas in-
fluentes que começaram a organizar salões
PRESENTE! um grupo de pessoas que se reúnem
com o propósito de fazer atividades
e a bancar movimentos artísticos, como os
da Semana de Arte Moderna, patrocinada
(O SARAU É SAL) lúdicas e recreativas, como dançar, ouvir por cafeicultores, especialmente, paulistas.
Nina Rizzi músicas, recitar poesias, conversar, ler Sabemos que a história sempre nos foi
livros e demais atividades culturais. contada pela voz dos vencedores. Pouco
gora que cumprimos a A origem da palavra sarau deriva do se conta, por exemplo, que nesses saraus do
primeira parte desse iti- latim seranus / serum, termos que fazem início do século XIX, os músicos, em geral,
nerário, voltemo-nos às referência ao “entardecer” ou ao “pôr eram negros e indígenas escravizados.
vozes poéticas das ruas, do sol”. Justamente pela etimologia, A verdade é que tal como é intrínseco
recordando: a história convencionou-se realizar os saraus aos humanos fazer arte, nos é comum com-
nos conta que quan- durante o final da tarde ou à noite. partilhá-la, desde as pinturas rupestres da
do a corte de d. João Serra da Capivara, às danças circulares indí-
VI chegou ao Brasil em genas e as rodas em volta do fogo de contar
1808, entre as inúmeras histórias que faziam as pessoas escraviza-
mudanças culturais es- das em senzalas ou quilombos. Ninguém
tabelecidas pela família real, uma delas foi poderá dizer que isso não seja um sarau,
a instituição de saraus, com seus pianos ou seja, uma reunião para compartilhar
de cauda, violinos, poetas eruditos, trajes experiências e vivências culturais.
de gala, champanhes e vinhos caros para Contudo, os saraus contemporâneos
que acontecem nas periferias, tema deste
tópico, diferente dos saraus que aconteciam
no Império e dos que acontecem em áreas
nobres e/ou ambientes tradicionais, não
são apenas saraus de compartilhamen-
to. Mais do que apenas um amontoado de
gente divertindo-se e fruindo da arte, essas
pessoas pensam e revelam seus problemas,
confraternizando-se em suas conquistas. Es-
ses espaços são de arte, educação e cultura
e as palavras de ordem são luta e resistên-
cia, na tentativa de fazer do mundo um lugar
melhor, menos injusto e desigual.

CURSO literatura cearense 183


BOLACHINHAS fazendo, e que o local não deveria ser fecha-

5.
do como aqueles que os rechaçavam, mas
ali mesmo, na rua! E assim nasceu o Sarau
Também em 2007, surgiria no outro da B1, que desde então acontece a cada
extremo da cidade, no Conjunto primeiro sábado do mês na mesma praça
QUEM TÁ Palmeiras, a Cia Bate Palmas, formada dessa avenida, onde a cada edição uma
pessoa (viva) da quebrada é homenageada,
pelo cantor e compositor Parahyba de
NA RUA É PARA Medeiros, pela produtora Bete Augusta rompendo com a ideia de que para ser ho-
e banda formada por Amanda Fideles, menageado tem que ser rico ou prestigiado,
OCUPAR! Ana Kássia, Cícero Peixoto, Danilo Duarte, branco, heterocisnormativo ou estar morto.
ntão, embora os saraus já aconte- Diones Mendes, Elane Fideles, José Cada presença é importante ali. Com lança-
cessem no “Siará” entre os povos George e Rairton Lima. Embora a poesia mentos e sorteios de livros, apresentações
indígenas (Anacê, Gavião, Jenipa- esteja presente nos saraus da Cia Bate e performances diversas, de pessoas não só
po-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Palmas, a música tem protagonismo, do Jangurussu, o sarau agrega várias outras
Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tabaja- com letras que contam as histórias do periferias e centros (!) de Fortaleza, inspi-
ra, Tapeba, Tapuba Kariri, Tremem- bairro e da cultura popular brasileira. rando outros a fazerem saraus em suas pró-
bé e Tubiba Tapuia), é no fim dos prias quebradas. Entre outras realizações:
anos 2000 que surge em Fortaleza lançou um livro com poemas de 32 poetas
o movimento dos saraus, culmi- tística em Maranguape, cidade vizinha, onde que participam do sarau, feito e publicado
nando com a efervescência cultural que ve- vigoram os versos de Ítalo Rovere: “O amor totalmente de forma independente; produ-
mos hoje nas periferias. de todo mundo para mudar o mundo/ pra ziu as zines Jangu Livre – o título faz referên-
É difícil falar em uma origem para este mo- mudar o mundo o amor de todo mundo.” cia ao bairro Jangurussu e ao filme Django
vimento, já que os jovens sempre se reuniram O Sarau da B1 surgiu do desejo de qua- Livre; e o lançamento do documentário Sa-
para fazer e compartilhar arte. Naquele mo- tro amigos, Aglailson Di Almeida, Carllos rau da B1: a poesia em Transe!, contando
mento, eram várias as experiências isoladas Preto, Jair Xavier e Samuel Em Transe, de a história do sarau. A principal característica
em diversos pontos da cidade. No entanto, compartilhar poesia na sua própria que- desse Sarau, como de vários outros saraus
destaco algumas que tiveram maior solidez, brada (“território”), o bairro do Jangurussu, de periferias, é o microfone aberto, onde
por terem inspirado outros saraus, ou por já que o movimento de poesia de que eles quem quiser, chega e bota o teu!
continuarem e se mobilizarem ainda hoje. tinham conhecimento aconteciam no cen-
No ano de 2007, um grupo formado por tro da cidade e nem sempre podiam se des-
Ana Lourdes, Carlos Amaro, Carlos Arruda, locar, como no Centro Dragão do Mar de MALACA
Emiliana Paiva, Gervana Gurgel, Ítalo Rovere,
Luana Oliveira, Manoel César, Nilze Costa e
Arte e Cultura, de onde haviam sido recha-
çados por não estarem inscritos e insistirem
CHETAS
Silva, Reginaldo Figueiredo, Rita Carvalho e em dizer seus poemas, e, portanto, não
Talles Azigon se reuniram e fundaram o Tem- poderem se apresentar em determinado Audre Lorde (LORDE, 2019, p.51, 53), diz
plo da Poesia, que ficava em um galpão evento. Foi quando, em 2010, se juntaram à que “o que me é mais importante deve ser
no centro da cidade, e onde duas vezes por Associação de Moradores do Conjunto São dito, verbalizado e compartilhado, mesmo
mês acontecia o Palco Aberto, um formato Cristóvão e formaram Os Poetas de Lugar que eu corra o risco de ser magoada
similar aos dos saraus que acontecem hoje Nenhum, ironizando o fato de não partici- e incompreendida. [...] você jamais é
nas periferias da cidade: ninguém precisa ter parem das “panelinhas” literárias do centro realmente inteira se mantiver o silêncio,
posses nem prestígio, ser amigo de alguém cultural da cidade. O sarau teve um hiato porque sempre há aquele pedacinho
ou mesmo se inscrever para mostrar sua de cinco anos, quando em 2015, enquanto dentro de você que quer ser posto para
arte, seja ela poesia, dança, performance, te- bebiam, conversavam e diziam poemas em fora, e quanto mais você o ignora, mais
atro, bambulim, protesto ou o que quiser, é uma das praças da avenida Bulevar 1 (daí, ele se irrita e enlouquece, e se você não
só chegar! Por volta de 2015, o grupo deixou “B1”), no Conjunto São Cristóvão, onde eles desembuchar, um dia ele se revolta e dá
de acontecer no centro de Fortaleza e fundou moram, o desejo de fazer o sarau se reavi- um soco na sua cara, por dentro. [...] há
a Vila de Poetas, residência comunitária-ar- vou. Perceberam, então, que já o estavam muitos silêncios há serem quebrados”

184 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


6.
editora independente cearense que se em liberdade, conheceu o Sarau da B1, que
destaca, publica jovens autores, tradu- é na mermazária que ele mora. Paralela-
ções e uma revista, e iniciou a Livro Livre mente, fez amizade com Dali, poeta, rapper
Curió Biblioteca Comunitária, fazendo a e então estudante de Ciências Sociais. Ver
diferença na vida de centenas de crianças diversos colegas dizerem seus poemas no
FAZ TEU NOME! e jovens de sua quebrada – o bairro Curió. sarau e a amizade com Dali levaram Remido
lguns dos poetas, es- Além disso, foi indicado pelo atual secretá- a se expressar por seus próprios poemas,
critores, intelectuais e rio da Cultura do Ceará, em 2019, para ser performances e também no rap, primeira-
artistas visuais que co- um dos curadores da próxima Bienal Inter- mente no grupo DuFront Mc’s e, atualmente,
meçaram sua história nacional do Livro do Ceará. no grupo A Quebra, e depois também nas
artística nos saraus das cada orgasmo teu é menos uma bomba no artes visuais. É impossível não se impactar
periferias, hoje têm li- mundo/ tu corpo, tu carne/ anti-guerra// com as apresentações do artista. Cobrindo
menos uma bala de fuzil/quando suspiras o rosto com uma camisa, como diz Rômulo
vros publicados, fazem
fundo/ menos um insulto diplomático/ quan- Silva “performando a invisibilidade e o silen-
exposições em galerias, do tua boca está/ concentrada em outros
apresentam-se em even- ciamento histórico e social de suas próprias
assuntos// cada orgasmo teu/ menos um he-
tos importantes e des- licóptero/ um torpedo submarino a menos/ histórias de vida e as de seus semelhantes”
pontam como grandes nomes das artes toda vez que viaja por debaixo/ dos mares de (SILVA, 2019, p.125), como um zapatista ou
no Brasil. Talles Azigon, que começou no lençóis as tuas mãos (Talles Azigon) como as pessoas pensam ser um bandido,
Palco Aberto, hoje é um dos poetas mais Outro destaque dazárea é o multiartista olhos vidrados, pega uma refém portando
respeitados do país, tendo quatro livros Jardson Remido. Remido foi preso ainda um objeto na cintura, a respiração de todo
publicados. Participou de diversas anto- adolescente por tráfico de drogas. Ele conta mundo para... era só um livro! E então dis-
logias, é um dos editores da Substânsia, que no regime socioeducativo leu um livro para seus poemas cortantes que gritam a
de Malcolm X que mudou sua visão de mun- realidade das periferias.
do, levando-o a buscar outras leituras. Já Remido já se apresentou na abertura da
palestra de David Harvey no Cineteatro São
Luiz em Fortaleza em 2018, no palco princi-
pal da Bienal Internacional do Livro do Ce-
ará em 2019 e no 2º Seminário Arte, Palavra
e Leitura, em São Paulo, onde recebeu uma
proposta para publicação de um livro por
uma das maiores casas editoriais do país,
a Companhia das Letras, e já deu entrevis-
ta para o programa “Profissão Repórter” da
Rede Globo. E assim como outras e outros
poetas de periferia, se orgulha de fazer os
corre com a poesia de busão.
Avisa lá pro playboy que quem tomou a vaga
dele na faculdade federal fomos nós/ Aprovei-
ta também e avisa lá pro filhin de papai/Que se
ele não aproveitar a faculdade/ A favela toma
a vaga dele e valoriza bem mais. // Avisa lá pro
Águia Dourada que nós tamos na faculdade
federal e não no programa policial do Barra
Pesada/ Avisa lá pro PM que me chamou de
marginal, que qualquer dia eu esfrego na cara
dele meu diploma da faculdade federal,/ pra
ele aprender a respeitar as cara e saber que fa-
velado é intelectual [...] (Jardson Remido)

CURSO literatura cearense 185


Outro artista que começou a fazer versos Quando se fala de movimento de sa- A Papoco de Ideias é visitada fundamen-
em saraus foi Renato Pessoa, por volta de raus, um nome, em geral, vem à mente: talmente por crianças. Como suas famílias
2005, quando ainda cursava a faculdade de Baticum! Poeta, arte-educador, ator, batu- muitas vezes não podem estar presentes
Filosofia na Uece, ao lado dos amigos Die- queiro e ocupador, Baticum iniciou na rua porque trabalham, o espaço é um bálsamo
go Silvero e Jam’s Willame. Em 2015, com do Amor, no bairro Antônio Bezerra, o Sa- na vida da comunidade desassistida pelo
iniciativa dos mesmos amigos mais a poeta rau Okupação, que também compreende Estado. Além de ser uma biblioteca comuni-
Pamella Souto, surge no Conjunto Ceará o a Biblioteca Comunitária Okupação, a tária, a Papoco desenvolve inúmeros outros
Corpo Sem Órgãos: Sarau Rizoma, que doação de mudas de plantas e, a partir de projetos, como debates com escritores, exi-
acontecia na Casa Arcadiana, e mais tarde 2018, o Slam da Okupa. bições de filmes, leva as crianças para expo-
no Polo de Lazer daquele bairro. O Sarau Okupação tem um caráter ex- sições, cinema, festivais, as inscreve em for-
A palavra intelectual muitas vezes vem tremamente anárquico, seus participantes mações em equipamentos culturais, como
carregada de ranço, isso porque fomos le- não têm qualquer crença no poder público na dança da Vila das Artes, configurando-
vados a acreditar que só às elites é dado e encorajam a galera para autogestão, não -se assim em mais um espaço de educação.
pensar. Renato Pessoa é um intelectual, só com a poesia, mas com suas atitudes ao Argentina é cientista social, arte-colagista
além de ativista cultural. Participou e par- fazer oficinas de percussão, poesia e teatro e poeta. Como uma mulher do seu tempo e
ticipa de diversos eventos literários e aca- em escolas públicas, comunidades e biblio- da sua quebrada, seus poemas gritam liber-
dêmicos no Ceará e até em Portugal, onde tecas comunitárias. dade, empoderamento feminino, amor e luta.
palestrou e lançou livros ao lado de outros Atuante nas periferias da cidade e forta- Quem dera o sangue fosse só da menstrua-
poetas cearenses, como Dércio Braúna lecendo outros saraus, Baticum idealizou a ção e não da minha boca cortada/ e de mi-
(poeta e ensaísta de Limoeiro do Norte), Bienal Itinerante de Poesia (BIP), que cir- nh’alma partida/ quem dera não existisse
Bruno Paulino (poeta, cronista, contista e culou pela Barra do Ceará, Conjunto Ceará, noite e nem ruas vazias/ nem ônibus lota-
dos./ Quem dera entrar e sair de qualquer
ensaísta de Quixeramobim) e Mailson Fur- Conjunto São Cristóvão, Curió, Dragão do
lugar e não ser bulinada/ Coagida por olha-
tado (poeta de Varjota, ganhador do Prê- Mar, Granja Lisboa, José Walter, Paname- res e palavras cortantes./ Quem dera não
mio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do ricano, Praça do Ferreira e Serviluz em um temer que nossos corpos podem ser inva-
Ano, ambos em 2018, sendo o primeiro au- percurso com duração de dois meses. didos/ Por qualquer um, a qualquer hora e
tor independente, em 60 anos do Prêmio, em qualquer lugar./[...] Quantas vezes, de
Privilegiado no congresso discursa/lugar
quantas mulheres mais ainda vamos ouvir
a ganhar a categoria Livro do Ano) no de pobre e favelado é no tráfico/e ter a
que ser mulher é tão difícil?/ Somos as lou-
Encontro Interdisciplinar de Estudos sobre vida curta/mas nós somos resistentes/
cas quando deixamos de ser as gostosas/
Literatura: novos olhares entre o Ceará e o nosso close é de luta/então luta/luta luta
[...] Quem quer mesmo amar com tanta dor
luta/tá cheio de close errado/quer nos re-
Alentejo, na Universidade de Évora. O poeta no peito? (Argentina Castro)
presentar/não tem choro nem mimimi/se
publicou cinco livros de poemas e tem um não quer ajudar não atrapalha/[...] falar de Foi em 2017 que aconteceu o primeiro
livro de ensaios sobre filosofia no prelo. Os democracia é fácil/quero ver sem poder ir Sarau da Papoco de Ideias, com a colabo-
poemas de Renato unem cotidiano e filoso- com povo/burocratiza a participação/faz
ração de diversos poetas de outros saraus da
fia, materialismo e metafísica. E como todo promessa, rouba de novo/e quem tá na
rua é pra ocupar/quem tá na praça é pra cidade, como o Sarau da B1, o Corpo Sem
poeta vindo dos saraus, Renato tem olhar Órgãos: Sarau Rizoma e o Sarau Okupação.
ocupar [...] (Baticum)
crítico e voz poética afiada.
Escrevo teu nome como visto uma orla,/
Uma poeta fundamental para a cena
Em algum lugar uma estrela se apaga./ da sua quebrada é Argentina Castro que,
Moças carentes rezam simpatias./ Estou fa- desde 2016, junto com sua mãe e irmãs,
minto. Tenho os pulsos leves,/Abertos para toca a Biblioteca Comunitária Papoco de
o alimento impreciso./ As coisas sem nome Ideias lá no bairro Panamericano ao lado
persistem./Fui batizado, sem soleiras, no-
da favela do Papoco. Em entrevista para a
minal./Tenho mãe, pai, tenho raízes sono-
ras./ Me sinto órfão. (Renato Pessoa) Revista Berro (ERNESTO, 2019), Argentina
conta que a ideia da Biblioteca surge como
“uma história de amor à literatura e à comu-
nidade onde cresceu [...] e uma tentativa de
reparação perante a violência”.

186 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


7.
tal, o racismo, a homofobia, a misoginia,
os traumas coloniais, ou seja, a denúncia.
Em razão disso, uma pseudocrítica tende a
querer apagar o caráter literário-artístico do
MERMAZÁRIA movimento. Então, se no passado o apaga-
mento das vozes periféricas se dava através
articulação e a visitação Granja Portugal, com apoio do Espaço Gera- do silenciamento e da sua ocultação,
entre os saraus se torna ção Cidadã e do Grupo Nóis de Teatro, com hoje usa-se da negação, por meio do dis-
uma tônica no movimen- representantes de saraus de outras cidades curso de que esta é uma literatura menor
to: pessoas de todos os do estado, como Caucaia, Maracanaú, So- ou até mesmo de que não é literatura.
lugares e saraus passam bral e Taíba. O próximo Encontro de Saraus Em uma live em seu Instagram, no dia 14
a ocupar um a quebrada acontecerá no Jangurussu, e espera-se pelo de abril de 2020, a escritora Conceição Eva-
do outro, formando as- menos vinte saraus do estado. risto fez uma oposição entre o espelho de
sim uma grande teia de O movimento publicou Ruma: poemas Narciso e o espelho de Oxum, a partir da filo-
poetas, afetos e gente de saraus, em 2019, uma realização dos co- sofia Ubuntu, refletindo sobre a escrita de si e
disposta a transfor- letivos de saraus e da Biblioteca Livro Livre ao que chama de escrevivência. No espelho
mar a realidade. Curió, através de edital da Secult-CE. Com a de Narciso (uma escrita ególatra), a escrita se
É justamente no ano de 2017 que acon- organização de Talles Azigon, o livro conta esgota de si e em si mesma, já a escrevivên-
tece o I Encontro de Saraus do Ceará, no com poemas e colagens de artistas de di- cia se distancia do “eu” para traçar uma cami-
Centro Cultural Patativa do Assaré, Conjun- versos saraus do estado e foi publicado na nhada filosófica sobre o “nós”. Assim, segundo
to Ceará. Autogerido, contou com a partici- XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, Conceição, a escrevivência acaba por ser uma
pação de seis saraus de Fortaleza, mais o em tiragem de mil exemplares. escrita que representa o coletivo, e embo-
Slam da Quentura de Sobral. ra o eu lírico seja um eu, tem uma ressonância

8.
O movimento de saraus se fortaleceu e o em grupo, já que são vivências comuns dos
Encontro de Saraus continuou acontecendo corpos negros na sociedade, experiências co-
no mesmo modelo, com oficinas pela ma- muns à comunidade; um olhar-se no espelho
nhã, rodas de conversa e cortejos pelo bairro de Oxum, um encontro com a própria beleza,
à tarde e um grande sarau à noite. Teve ain-
da outras edições: a segunda, no bairro do VOCÊS dignidade e que acolhe o coletivo.
Repetimos: a história sempre foi con-
Curió, na Biblioteca Livro Livre Curió, Floresta
do Curió e na sede da Arte de Amar, com
QUERENDO OU tada pelos vencedores. Numa narrativa que
coloca os corpos periféricos como violentos
mais de dez saraus presentes e a terceira, na NÃO, ISTO É e que só são filmados para passar em no-
ticiários sensacionalistas, a contrarrevolta é
LITERATURA! ver esses corpos produzindo cultura: hortas,
s artistas que participam batuques, bibliotecas, filmes, dança, poesia
dos saraus e demais movi- e tudo o que quiserem. Dieguim, poeta da
mentos nas periferias es- Serrinha, diz bem: “Quero ver filmar um sa-
crevem e performam sobre rau e botar em rede nacional.”
tudo: amor, erotismo, me- Hoje, acreditamos não ser mais possí-
mórias de infância e tudo vel parar o movimento dos saraus, que tem
o que quiserem, porque ocupado cada vez mais espaços e trans-
são produtores culturais e, formado a vida de muita gente, desde os
como tais, as possibilida- moleques e as meninas que passam, vêm
des são infinitas. É inegável, aos saraus e começam a participar e a ter
contudo, que a grande tônica no palco e no um outro repertório em que se inspirar, aos
microfone seja a violência policial e esta- próprios participantes que passam a narrar

CURSO literatura cearense 187


e transformar sua própria história, até aque- des, artistas são convidados para falar em sileiras? E tudo isso representa um enorme
les que passam a enxergar e ouvir o que pa- aulas, centros culturais e eventos. Cresce o e precioso patrimônio perdido, sem em-
bargo de se tratar, muitas vezes, de uma lite-
recia ser invisível ou não ter voz. número de monografias, dissertações e te-
ratura genuinamente nacional, como reflexo
Como uma rede que se afeta com as ses sobre o tema. E vem uma ruma de gente de nossos mais puros sentimentos nativos.
experiências de resistência e re-existência, que nem é da periferia para curtir os saraus.
cada vez mais saraus têm surgido, como a Aliás, o que é periferia? SE INTERA! O sentimento do autor dessas “Notas”,
Pretarau: sarau das pretas, um coletivo para aqueles que acompanham atenta-
A nossa cultura é baseada na busca por
de artistas mulheres negras da cidade, espe- sobreviver. Com a nossa arte a gente
mente o curso, reforçam o que dissemos
cialmente as que vivem e resistem na perife- afirma, todos os dias, o nosso direito de desde o primeiro módulo: que tudo aqui-
ria, e a coletiva BaRRósas, surgida nos bair- existir, sendo não apenas “periferia”. Nós lo que por nós é esquecido, abandonado,
ros Barroso e Violeta, a partir de ações de
também somos o Centro. Cada periferia é tão importante quanto aquilo que é
é um centro. (Baticum) consagrado e reconhecido. A diferença é
pessoas que somam com a Biblioteca Viva
Barroso, onde perceberam que, apesar de que esse “todo esquecido” para nós é um
as mulheres serem a maioria entre os leito- desafio, algo a ser redescoberto, pesquisa-

9.
res, tinham pouca participação nos saraus e do, lido, estudado e publicado. Já pensou
slams do bairro. Em Sobral, uma outra ini- que grande serviço nós prestaríamos às
ciativa só de mulheres é o Slam das Cuma- letras de nosso estado e país? Não restrito
dis, batalha de rima que surgiu no bairro ao Ceará, mas àqueles estados distantes
Terrenos Novos. E o movimento de saraus
está cada vez mais firmão. Nas universida-
E PARA – não apenas geograficamente – de tais
centros, que por uma questão hegemônica
ONDE VAI A histórica detiveram o poder de consagrar,
mas também o de invisibilizar muitos de
LITERATURA nossos autores e obras.
Para nós cearenses, por exemplo, não
CEARENSE? é compreensível que alguns autores, pela
thon Costa, da Academia qualidade de suas obras, e até com certo
Carioca de Letras na Fe- reconhecimento em outros estados brasi-
deração das Academias leiros, não tenham sido alvos de publicação
de Letras do Brasil, nas no mercado editorial – nem cearense, nem
“Notas Preliminares” de nacional – mesmo após a sua morte, como
História literária do Ceará José Alcides Pinto, Moreira Campos, Francis-
(1948), de Mário Linha- co Carvalho, Audifax Rios, Nilto Maciel, Mário
res, já pontuava: Gomes, Airton Monte, Milton Dias, Gerardo
[...] somente se consagram Mello Mourão, Gustavo Barroso, Eduardo
[os escritores das províncias] Campos, Moacir C. Lopes, Jáder de Carvalho,
de todo quando emigram para o Rio de Barros Pinho, Juarez Barroso, Caio Porfírio
Janeiro. As exceções são poucas e quase Carneiro, para citar apenas alguns.
nulas, pela incontrastável influência que os Além disso, perguntamo-nos o porquê
grandes centros de cultura exercem [...] so-
bre quantos mantenham [...] o seu contato.
de a Padaria Espiritual, que em seu tem-
A literatura brasileira, de que geralmente se po teve algum destaque até nesses “gran-
cogita nos trabalhos dessa natureza, nada des centros”, mesmo pela sua originalida-
mais tem sido que o estudo crítico ou sim- de e atitude diante do cenário da época,
ples registro nominal desses escritores que não constar em nenhum desses compên-
os poucos centros de cultura do país con-
dios de Literatura Brasileira, mesmo sendo
sagram e põem em evidência. Mas quantos
grandes espíritos permanecem esquecidos ela, inclusive, bem próxima do espírito mo-
ou desconhecidos na costumeira estagna- tivador da badalada e polêmica Semana
ção social das mais longínquas regiões bra- da Arte Moderna de 22.

188 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


Da mesma forma, as universidades que, gógico (PPP) a disciplina Literatura Cearense Também as editoras universitárias não
a nosso ver, são as responsáveis pela produ- como obrigatória, um exemplo, cremos, a têm hoje mais fôlego financeiro nem equipe
ção desse saber, também negligenciam esse ser seguido, sobretudo, por aqueles que de- suficiente para publicar sistematicamente
conhecimento, com produções que não fendem o PPP como algo estático e cristaliza- obras de relevância histórica e/ou literária.
exploram a busca desses autores de outras do dentro das instituições de ensino. E, infelizmente, muitos editores também
épocas – uma tarefa que ainda tem muito Antes do Enem, a UFC, em seu Vestibular, atestam que essas obras não encontram
pano para mangas –, e muito menos desta. acolhia a literatura produzida no estado e, por público, por isso o desinteresse editorial.
Ora, se em nossos centros não há interesse meio de sua Imprensa Universitária, lançava A política de editais públicos estadual e
por esse estudo da literatura produzida em uma seleção de obras que era fartamente es- municipais para autores e publicações, des-
nosso estado, de onde virá essa iniciativa? tudada pelos candidatos. Ali, entre os jovens, de 2004, independentemente de qualquer
Felizmente, durante o curso e mesmo antes uma grande descoberta: era possível ler crítica, tem sido, se não uma porta, mais uma
dele, tomamos o conhecimento de paulis- autores cearenses e gostar! Na lista, Ange- janela que permite o lançamento de novos
tas, cariocas, mineiros, alagoanos, pernam- la Gutièrrez (O mundo de Flora), Antônio Gi- talentos que hoje permanecem no circuito
bucanos, entre outros, que se determinaram rão Barroso (Poesias incompletas), Pedro Sal- cultural. Da mesma forma, destacamos ou-
a estudar essa produção cearense. Agora, gueiro (Dos valores do inimigo), Airton Monte tros prêmios literários, como o tradicional
esses estados também se voltam para reco- (Moça com a flor na boca), Eduardo Campos Osmundo Pontes da Academia Cearense
nhecer as suas próprias produções. (Três peças escolhidas), Natércia Campos (A de Letras e do Ideal Clube, e o surgimento
O Exame Nacional do Ensino Médio casa), Patativa do Assaré (Cordéis e outros constante de novos grupos e instituições que
(Enem), nesse ponto, não nos foi favorável. poemas), Moreira Campos (Dizem que os cães abrigam e estimulam a troca de ideias e a
Se por um lado democratizamos o acesso às veem as coisas), José de Alencar (O Guarani), convivência entre esses autores, sejam as as-
universidades públicas, por outro, com seu Antônio Sales (Aves de arribação), Caio Porfí- sociações, como a Associação Cearense de
advento, os vestibulares regionais, com te- rio Carneiro (Trapiá), Milton Dias (Entre a boca Escritores (ACE), as Academias de Letras mu-
mas da região, como a história e a literatura, da noite e a madrugada), José Alcides Pinto nicipais, os coletivos e os diversos clubes de
foram abolidos, de maneira que caímos nas (Os verdes abutres da colina), João Clímaco leitura e projetos de bibliotecas comunitárias
mãos do cânone literário nacional. Pelo me- Bezerra (A vinha dos esquecidos) etc. que polvilham e encantam novos leitores.
nos no curso de História, a disciplina História
do Ceará é obrigatória, enquanto no curso
de Letras da Universidade criada pelo acadê-

10.
mico e membro do CLÃ Martins Filho, a dis-
ciplina Literatura Cearense é optativa e parte
dela não é ofertada há anos. Na Universidade
Estadual do Ceará, em Fortaleza, ela também
é optativa. Em Limoeiro do Norte, entretanto, A CENA LITERÁRIA
a Fafidam traz em seu Plano Político-Peda-
que chamamos de socie- Em todo mundo, encontramos um vigoro-
dade moderna ou socie- so processo de massificação, da propagação
dade da informação, há do consumo, que atinge a todas as popula-
décadas vem passando ções, incluindo, claro, os artistas e a sua pro-
por grandes e rotineiras dução. Em parte, enquanto alguns se rendem
transformações, inclusi- a ela, vestindo-se do mais absoluto individua-
ve de valores, exigindo lismo, outros se unem em sua contramão.
de todos, cada vez mais, As grandes editoras (falamos “editoras”,
a capacidade de estar mas há uma grande cadeia que compõe
atentos e informados, essa “indústria”) por todos os meios identi-
ser flexíveis e ter uma boa dose de criati- ficam e estudam esse público consumidor e
vidade e superação – às vezes, um pouco investem pesado na busca e na “construção”
também de sangue de barata. de novos autores e obras, no afã de lançar

CURSO literatura cearense 189


best-sellers, livros da moda, as “tendências”,
como chama o mercado. Aliadas a essas edi- SABATINA a uma boa peça literária, geralmente muito
afeita a tratar das violências, desigualdades
toras, de forma espontânea ou não, as revis- sociais, entre outros elementos cotidianos
tas, os jornais, a TV, ditam ao público os livros Em 2004, Túlio Monteiro organizaria urbanos, seja pela secura da escrita ou utili-
mais vendidos, a “isca perfeita” para aqueles Antologia de Contos Cearenses, na zando do erotismo, sarcasmo e humor. Sem
que buscam a inalcançável inclusão ou mes- Coleção Terra da Luz, das Edições nunca ter saído da raia, o fantástico e os
mo outros que, sem muita crítica pessoal, UFC, reunindo alguns contos de demais gêneros fronteiriços, com o advento
necessitam dessa tutela da curadoria anôni- origem realista até contemporâneos. comercial da fantasia, especialmente entre
ma – reforçando o apelo do consumo, inde- os jovens, voltaram a integrar a produção
pendentemente da qualidade literária. Isso, de contos e esparsos romances no Ceará.
claro, quando não são influenciadas pelas Para combater essa “marginalidade”, sur- Deixamos o registro aqui do surgimento,
séries de TV ou filmes de cinema que vêm gem as revistas literárias, que cientes dessa em 1997, do Almanaque de Contos Cearen-
junto ao “combo” promocional dos maiores oficial invisibilização tentam divulgar esses ses, organizado por Pedro Salgueiro, Tércia
investimentos, normalmente, externos ao autores e obras que não fazem parte do “câ- Montenegro e Elisângela Matos, que mar-
país, mas que “copulam” com ele. none comercial da indústria de arrastão”. cou, reuniu e lançou uma geração de contis-
Por outro lado, a democratização cada Naturalmente, como sempre aconteceu – e tas na referida década. Em 2005, seria cria-
vez mais crescente da internet e das re- vocês cursistas já sabem disso –, essas revis- da a revista CAOS Portátil: um almanaque
des sociais criou um novo paradigma que tas têm vida curta, como a das moscas. Entre de contos, idealizada por Pedro Salgueiro e
permite que autores completamente sem as revistas cearenses, a partir de 2000: CAOS Jorge Pieiro, com a colaboração de Geral-
acesso às editoras possam, por meio de Portátil: um almanaque de contos, Literatura: do Jesuíno e Raymundo Netto, que chegou
estratégias insistentes e criativas (leia-se revista do escritor brasileiro, Corsário, Gazua, a publicar 5 edições, e foi responsável por
“heroicas”), conseguir alcançar e formar um Mambembe, Literapia, V.o.l.a.n.t.e, Para Ma- lançar uma série de novos contistas.
público leitor. Isso nos faz lembrar uma con- míferos, Mutirão, Berro, Pindaíba e a caçuli- As crônicas, gênero que permite muita
versa entre dois editores, quando um deles nha, com 90 anos, a Maracajá. Hoje, existe liberdade, sempre foram muito populares e
afirmou: “Antes, para ser conhecido, você um mundo de revistas eletrônicas, muitas tiveram diversos adeptos no Ceará. Sua popu-
tinha que ser autor; hoje, para ser autor, an- delas também de curta duração, apesar de laridade se deve, cremos, principalmente pela
tes você tem que ser conhecido.” Razão esta não exigir maior investimento, como edito- sua extensão curta, sua linguagem simples e
pela qual muitas são a obras assinadas por ração gráfica e impressão. por tratar de assuntos corriqueiros do dia a
celebridades, youtubers, colecionadores de Deixando de lado os aspectos comerciais dia, muitas vezes de forma bem-humorada,
“likes”, porém, escritas por ghostwriters. mais agressivos desse mercado e a promo- memorialística, reflexiva e/ou lírica, além de ser
ção de ilusões que ele cria e envelopa para encontrada facilmente em páginas de jornais.
seus consumidores (às vezes leitores), falare- Mesmo com a redução desses periódicos e a
mos brevemente sobre os gêneros literários consequente redução da leitura de seus im-
que grassam pelo solo e imaginação cearen- pressos, com o advento dos portais de notícias
ses, compreendendo que entre todos os nos- virtuais, as crônicas continuam no gosto dos
sos autores contemporâneos, pouco mais atuais leitores, exigindo, contudo, uma diversi-
dos dedos de uma mão, talvez, possam se dade acrobática de temas pela pluralidade de
dedicar inteira e somente ao ato de escrever. motivos e de anseios das suas preferências.
Como você deve ter percebido, no de- Entre os gêneros ficcionais em atividade
correr do curso, o conto sempre foi um gê- no Ceará, os romances nos são os mais raros,
nero de preferência no Ceará. Especialmen- justamente por exigir um maior tempo de de-
te nos dias de hoje, nos quais o tempo exige dicação e de criação e, por vezes, investimen-
economia, as narrativas curtas caem bem, tos. Claro, referimo-nos aos bons romances.
garantindo breves leituras àqueles que não Com poucas exceções, apenas os autores pro-
querem se distanciar da literatura. Fator fissionais – refiro-me àqueles que não têm ou-
também favorável aos contistas, pois devi- tra ocupação que não seja a literária – é quem
do ao pouco espaço da agenda, podem bu- tem mais extensa bibliografia. Encontramos
rilar aquele conto com o apreço necessário outros autores cearenses de crônicas e ro-

190 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


mances que não mais publicam ou que não REFERÊNCIAS
residem no Ceará há muito tempo. Atualmen-
BIBLIOGRÁFICAS
te, a maioria dos romances que nos chegam
são escritos por mulheres. Aliás, no Ceará, não BESSA, Flávia; MELO, Igor de. Ao som das
apenas no romance, a literatura de autoria margens cearenses, o batuque provocativo
feminina é a mais celebrada, tendo represen- de Baticum. Revista Vós in: http://www.
tações, engajamentos e ampla participação somosvos.com.br/ao-som-das-margens-
cearenses-o-batuque-provocativo-de-
nos veículos e redes de comunicação.
baticum/ [acesso em 19/04/2020]
Na poesia, então, temos poetas para to-
ERNESTO, João. Toda periferia é um centro:
dos os gostos: dos mais clássicos aos experi-
uma história do movimento de saraus na
mentalistas; dos profusos aos minimalistas periferia de Fortaleza. Revista Berro, in:
etc. Como os demais, estão nas ruas (como https://revistaberro.com/reportagem/
vimos neste módulo), nos muros, nas redes toda-periferia-e-um-centro-uma-historia-
sociais, nos blogs, nas páginas impressas e/ do-movimento-de-saraus-nas-periferias-de-
ou digitais dos jornais e mesmo em publi- fortaleza/[acesso em 19/04/2020]
cações, geralmente independentes – as edi- EVARISTO, Conceição. Becos da Memória.
toras formais cada vez menos investem em Fica a dica: “Toda bibliografia deve re- 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
poesia. Reúnem-se em coletivos, em mesas fletir uma intenção fundamental de quem a FREIRE, Paulo. Ação cultural para
de bar ou em restaurantes de clubes (ou em elabora: a de atender ou a de despertar o de- liberdade. 5 ed. Vol. 10. Coleção O Mundo,
Hoje, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
ambos), e publicam em conjunto, fazem sejo de aprofundar conhecimentos naqueles
uma zoada danada e acabam chegando aos ou naquelas a quem é proposta. Se falta, LINHARES, Mário. História Literária do
Ceará, Jornal do Commercio, Rodrigues &
ouvidos e aos olhos de seus leitores. nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou
Cia, Rio de Janeiro, 1948.
se a bibliografia, em si mesma, não é capaz
LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução
de desafiá-los, se frustra, então, a intenção
de Stephanie Borges. 1. ed. Belo Horizonte:

11.
fundamental referida. A bibliografia se torna Autêntica Editora, 2019.
um papel inútil, entre outros, perdido nas ga-
SEVERO, Luana. A ocupação Gregório
vetas das escrivaninhas.” (FREIRE, 1981) Bezerra e as violações de direitos. Jornal
Aqui, a nossa gratidão a todos aqueles O POVO in: https://www.opovo.com.br/
que nos deixaram como legado a sua pes-
SAINDO DE CENA quisa, que resultou nesse curso. Não fos-
jornal/reportagem/2018/06/a-ocupacao-
gregorio-bezerra-e-as-violacoes-de-
oderíamos agora encerrar o sem eles, diríamos hoje que nunca existiu direitos.html [acesso em 19/04/2020]
nosso estudo sobre a Lite- produção literária no estado, assim como SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento.
ratura Cearense, mas seria dizem que por aqui não havia negros, Rede de Afetos: práticas de re-existências
poéticas na cidade de Fortaleza (CE).
um absurdo: pois agora é nem índios, nem chuvas...
Dissertação (Mestrado em Sociologia) -
que nós começaremos! O Sânzio de Azevedo, um desses mestres, Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
que vocês viram até aqui foi ao fechar das luzes de sua Literatura Cearense Universidade Estadual do Ceará. 2019.
só um arrazoado provoca- (1976), nos conta que o escritor Valentim Ma- 212 f. Disponível em: http://www.uece.br/
tivo do muito que temos a galhães, em 1895, no A Notícia (RJ), por tanto ppgsociologia/index.php/arquivos/doc_
aprofundar-nos, a conhecer que recebia livros originários do Ceará, escre- view/847-?tmpl=component&format=raw
[acesso em: 19/04/2020]
e a compartilhar. O curso básico, este sim, veu: “O Ceará não para, o Ceará não cansa.”
se encerra agora, com a esperança de ter Cremos que 125 anos depois, o Ceará ainda
contaminado (numa “pandemia do bem”) não parou e jamais cansará, contribuindo a
o gosto pelo ainda muito ignorado univer- seu modo, a seu jeito, na composição des-
so literário cearense, por suas obras e por se imenso mosaico polifônico denominado
seus autores. Entendendo por Literatura Literatura Brasileira. E nessa direção, luta
Cearense essa forma particular como e por aguerridamente, como dizia o jornalista e po-
meio de quem a Literatura Brasileira se ma- eta Demócrito Rocha: “resistindo e morren-
nifestou e se manifesta no Ceará. do... morrendo e [sempre] resistindo.”

CURSO literatura cearense 191


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Vanessa Passos Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

É escritora, professora de escrita criativa, consultora FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


literária, pesquisadora, produtora cultural e mediadora João Dummar Neto Presidente
de leitura. Doutoranda em Literatura Comparada pela André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
Universidade Federal do Ceará (UFC). Idealizadora do Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Clube de Leitura de Escrita Literária (Clel). Atualmente,
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
dedica-se ao Pintura das Palavras, projeto literário e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
on-line e presencial, no qual é fundadora e ministra
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
oficinas de Escrita Criativa. Viviane Pereira Gerente Pedagógica
Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
Nina Rizzi Joel Bruno Designer Educacional
É historiadora, pela Universidade Estadual de São Paulo
CURSO LITERATURA CEARENSE
(Unesp), mestre em Literatura comparada (UFC), poeta,
Raymundo Netto Coordenador Geral,
tradutora, pesquisadora, professora e editora. Promove Editorial e Estabelecimento de Texto
o “Escreva como uma mulher”: laboratório de escrita Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
criativa com mulheres. Integra a coletiva “Pretarau”: sarau Emanuela Fernandes Assistente Editorial
das pretas e é uma das articuladoras do Sarau da B1. Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
Miqueias Mesquita Diagramador
Raymundo Netto Carlus Campos Ilustrador
Jornalista, escritor, editor e produtor cultural. Luísa Duavy Produtora

Autor de obras literárias em diversos gêneros. ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)


ISBN: 978-65-86094-25-1 (Fascículo 12)
É militante da literatura cearense e desde 2009
mantém o blog AlmanaCULTURA.

ILUSTRADOR
Carlus Campos
Artista gráfico, pintor e gravador, começou Todos os direitos desta edição reservados à:
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Fundação Demócrito Rocha
Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148
desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como fdr.org.br
fundacao@fdr.org.br
a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica
ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sul.

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