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CURSO

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2 Sob as Asas
da Jandaia
Romantismo PARTE I
Paulo de Tarso Pardal

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Realização
1.
ALÇAR VOO:
APRESENTAÇÃO
Romantismo, um dos princi-
pais movimentos artísticos
do século XIX, teve como
marco inaugural no país a
publicação de Suspiros poé-
ticos e saudades, de um con-
troverso Gonçalves de Ma-
galhães (1811-1882).
Emoções à flor da pele,
coração saindo pela boca,
não podemos deixar de destacar o papel
essencial que os romances românticos ti-
veram na construção do público leitor bra-
sileiro. Ou seja, eu e você!
Nem de longe pretendemos abarcar
tudo ou a todos nesses módulos que vi-
rão, mas esperamos despertar em cada
um dos cursistas a curiosidade e o inte-
resse pelo estudo, pesquisa e leitura de
algumas das obras produzidas no estado
do Ceará e de seus autores que este breve
espaço ousa trazer à luz.
Neste módulo, em primeira parte, conver-
saremos sobre o Romantismo, em especial
de algumas de suas manifestações no Ceará.
Por ser um tema, além de saboroso, mui-
to complexo e diverso, optamos pelos seguin-
tes recortes temáticos: o indianismo e o re-
gionalismo de José de Alencar (1829-1877) e o
regionalismo de Juvenal Galeno (1836-1931).
Preparem os seus lenços e que as lágri-
mas adocicadas brotem de seu coração:
eles chegaram!

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2.
AFINAL, O QUE É
Primeiramente, entenda que o escritor
romântico construía um mundo ideali-
zado e fazia do seu personagem um ser
fantasioso, heroico, embora o ambiente, o
espaço ficcional em que a trama aconte-
Trama/Enredo
Sucessão de
acontecimentos que
constituem a ação de
uma obra de ficção.

O ROMANTISMO? cia, muitas vezes, era descrito com muito


realismo. Contudo, assistir a um passeio
Talvez eu seja o último romântico de personagens como Peri ou Iracema, por Folhetim
Dos litorais desse Oceano Atlântico exemplo, pelas ruas do Rio de Janeiro ou Texto literário
Só falta reunir mesmo nas areias da beira-mar de Forta- (crônicas, fragmentos
A Zona Norte à Zona Sul leza era impossível. A fantasia entra neste de romances ou
Iluminar a vida ponto, já que, na composição do persona- novelas etc.) impresso
de forma seriada na
Já que a morte cai do azul. gem romântico, a beleza sem igual ou as parte inferior da página
raras virtudes humanas, somente eles, os de um jornal/periódico
Lulu Santos, Sérgio Cardoso
heróis clássicos, possuíam. (rodapé), com o
e Antônio Cicero, “Tudo Azul”
No momento de construção da nar- objetivo de vender
rativa de seus personagens – por en- mais exemplares.
Muitos deles se diziam
ocê já ouviu, muitas vezes, quanto, refiro-me apenas à ficção –, os
dirigir-se ao sexo
ao longo da sua vida, as autores queriam caracterizá-los com to- frágil, crendo que
palavras “romântico”, “ro- das as boas e sublimes qualidades do ser elas, as mulheres,
mance” e “romantismo”. E, humano, para mais impressionar os lei- seriam as maiores
com certeza, tais palavras tores, que sentiam-se representados nas leitoras da literatura
estavam associadas à pai- ações das personagens, identificavam-se ficcional – não à toa,
muitos autores se
xão, ao sofrimento, à fanta- com seus ideais, pois, afinal, muitos de dirigiam a elas em
sia, à irrealidade, às coisas nós, desde crianças, queremos ser ou suas interlocuções
que não existem no nosso nos vemos como heróis ou heroínas de –, assim como eram
mundo real, ou seja, coisas qualquer coisa. elas também as
idealizadas. Saiba, pois, que toda a base Naqueles tempos, a nova classe social protagonistas de
grandes clássicos da
da corrente estética, que denominamos fantasiava-se dentro de padrões criados
época, em especial, nos
Romantismo, predominante no Brasil por pelos seus autores preferidos, fosse nos romances urbanos. Os
mais de 40 anos, foi exatamente esse culto livros ou nos folhetins dos jornais. A vida folhetins, que tiveram
àquilo que não era real. como aventura e a morte como possibili- origem na França,
Você também deve estar se pergun- dade passou a fazer parte do imaginário fizeram um sucesso
tando a razão de tudo isso: por que “aqui- coletivo daquela época. absurdo no Brasil e
foram responsáveis
lo não real” era tão sedutor aos leitores e O romântico, dessa maneira, passou a pelo lançamento e
Narrativa leitoras? Imagine o porquê de escritores sentir-se um porta-voz dos ideais coletivos, êxito de muitos de
Exposição de um – e também escritoras –, convivendo em porque ele tinha consciência de que o Bra- nossos autores, como
acontecimento ou um período extremamente difícil, dada a sil, por exemplo, estava mudando, social e Joaquim Manuel de
de uma série de limitação das sociedades da época, esco- politicamente, e essa mudança deveria nos Macedo (1820-1882).
acontecimentos mais A moreninha foi um
lheram por escrever sobre aquilo que não distinguir dos demais países.
ou menos encadeados, dos folhetins mais
reais ou imaginários, fazia parte do cotidiano real delas. Espero É aqui que entra outro grande pilar do populares do país,
por meio de palavras que, ao longo da sua leitura, cursista, você Romantismo e uma das suas principais ca- antes mesmo de ser
ou de imagens. encontre essa resposta. racterísticas: o nacionalismo. publicado em livro.

CURSO literatura cearense 19


Alguns fatos históricos contribuíram para o
surgimento desse discurso de nacionalidade: MALACA co. Nesse ensaio, Magalhães afirma: “Cada
povo tem sua literatura, como cada ho-
a. A transferência da corte portu- CHETAS mem o seu caráter, cada árvore o seu fruto.”
No texto, lamenta a inexistência de estudos
guesa para o Brasil;
sobre a história da literatura brasileira no pró-
b. A chegada ao Brasil de algumas mis- Publicada em Paris (Dauvin et
prio Brasil e reclama que os estudos realiza-
sões estrangeiras compostas por Fontaine, Libraires) em 1836 e
dos em outros países nada ou pouco disses-
cientistas e artistas, entre elas as trazendo como lema “tudo pelo Brasil
sem sobre a nossa literatura, citando apenas
de 1816 (Auguste de Saint-Hilaire e e para o Brasil”, a revista Nitheroy é
– e com defasagem – o poeta árcade Cláudio
a Missão Artística Francesa) e 1817 apontada como um dos marcos da
Manuel da Costa (1729-1789), o inconfidente
(Friedrich von Martius e a Missão instauração do Romantismo no Brasil.
“Glauceste Satúrnio”. Também critica os poe-
Artística Austríaca), com o intuito Teve apenas 2 números e seus artigos
tas brasileiros que não aprenderam a olhar
de conhecer o recém-criado Reino não se restringiam à arte (o primeiro
para o seu povo nem para a “Natureza virgem
Unido de Portugal, Brasil e Algar- número traz um extenso artigo sobre
com tanta profusão”, limitando-se a importar
ve (1815), e que além de divulgar os cometas). Seus redatores eram:
temas, formas e valores portugueses.
ideais liberais e nacionalistas euro- Gonçalves de Magalhães, Francisco
Falando em olhar para o nosso povo, re-
peus, vislumbravam nas exuberantes de Sales Torres Homem, Manuel de
conhecer o nosso ambiente e suas peculia-
fauna e flora do Novo Mundo e na Araújo Porto Alegre.
ridades, adentraremos, agora, a geração in-
figura nativa do seu índio elementos Entre seus artigos, “Ensaio sobre a his- dianista do nosso Romantismo, lembrando,
fundantes da identidade brasileira; e tória da literatura no Brasil”, assinado como defende Luiz Roncari, em sua Literatu-
c. A Proclamação da Independên- por Gonçalves de Magalhães. Para ler a ra Brasileira: dos primeiros cronistas aos últi-
cia (1822), responsável, natural- revista Niterói na íntegra, acesse: mos românticos, que indianismo não signifi-
mente, entre outros, por um grande https://digital.bbm.usp.br/handle/ ca apenas tomar como tema e assunto da
impacto cultural. bbm/6859 literatura o indígena e seus costumes. Em
outras obras anteriores também os índios
Todas essas movimentações sociais,
apareciam, como em Caramuru, de Santa
econômicas e políticas, como é de se espe-
Rita Durão, e especialmente em Uraguai, de
rar e acontece no mundo inteiro, reverbe-
Basílio da Gama. “Tal realização implicava
raram no meio artístico. Na verdade, elas
também e principalmente a construção de
provocaram a criação de um imaginário
um novo ponto de vista e de uma nova visão
e ideal de brasilidade, que impregnou
do indígena, apreciado agora menos como
o pensamento daqueles que por aqui vi-
uma realidade racial que como outra reali-
viam... e também escreviam.
dade ética e cultural, distinta da europeia.”
Na literatura, que é o que nos cabe, te-
É evidente que a exaltação de um “índio
mos o ano de 1836 como marco do início
ideal” era uma maneira de exaltar a nossa
do Romantismo brasileiro, quando da pu-
terra e de valorizar um povo oprimido e em
blicação do livro Suspiros poéticos e sau-
extinção e de enfatizar nossa independên-
dades de Gonçalves de Magalhães no país
cia social e cultural de Portugal.
e, na França, da Nitheroy: revista brasilien-
Todo esse ideário – com generosa visão
se, que circulou por apenas dois números.
da pátria e do semelhante – fez com que os
Nela, Magalhães publica o “Ensaio sobre
leitores se sentissem parte dessa história
a história da literatura brasileira”, conside-
toda, daí aquela tal identificação com os
rado o nosso primeiro manifesto românti-
personagens que já conversamos aqui.

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PASSANDO O índio na literatura do século XIX está ali-
cerçado na ideia de que, no Brasil, desde os SABATINA
A LIMPO primeiros momentos da colonização, sem-
pre teve um lugar especial: o índio é bom Como e porque sou romancista é uma
por natureza – a bondade natural de que autobiografia intelectual de Alencar. A
Embora Gonçalves de Magalhães, poeta
falaram os enciclopedistas. Evidentemente, obra representa importante testemunho
favorito e amigo de dom Pedro II, seja
o índio não era assim, “mas deveria ser”, este para a nossa compreensão não só da
figura imprescindível na história do
foi o enfoque, a fantasia da escola românti- personalidade do autor cearense, mas
Romantismo brasileiro, o seu poema
ca. Esta é a tese, por exemplo, de Agripino também dos alicerces de sua formação
épico Confederação dos tamoios (1856)
Grieco (1888-1973), que diz que o índio de literária. O texto sob a forma de carta,
foi redondamente desqualificado pelo
Alencar é uma “linda mentira”. Dessa forma, foi escrito em 1873 e publicado em
jovem José de Alencar, sob pseudônimo
confrontar o índio literário, esse homem li- 1893, pela Tipografia Leuzinger (RJ),
“Ig”, ainda redator do Diário do Rio de
vre e incorruptível, com o índio real – ainda 16 anos após a sua morte. Para lê-lo,
Janeiro, tanto por motivos formais
hoje muito desconhecido e pouco compre- basta acessar o material complementar
(gramática, estilo e metrificação), pela
endido – que vivia refugiado no interior do disponível na sua biblioteca virtual
ausência de unidade, quanto pela
país não tem sentido, pois o índio literário é do AVA. Lá, além desse título, existem
falta de imaginação na descrição dos
mais imaginação do que observação da rea- outras obras de apoio para os seus
costumes indígenas, assim como da
lidade. Assim, enquanto na Europa, os gran- estudos em Literatura. Aproveite! E caso
própria natureza. Também criticou
des valores eram personificados por cavalei- queira acessá-lo da Biblioteca da Unesp:
a escolha do modelo épico, no qual
ros medievais, no Brasil, eram nos indígenas https://bibdig.biblioteca.unesp.
dizia: “a forma com que Homero cantou
que encontravam corpo. br/bitstream/handle/10/6498/
os gregos não serve para cantar os
José de Alencar tinha plena consciên- como-e-porque-sou-romancista.
índios”. Seria incrível imaginar que o
cia disso. Em Como e porque sou romancista pdf?sequence=2&isAllowed=y
pensamento reformador tão propagado
(1893), Alencar conta um pouco de seu pro-
por Magalhães não atingisse a sua
jeto literário. Explica como escreveu e criou
própria obra. A polêmica obra Cartas
suas personagens e narra sobre o fazer literá- cavaleiro medieval, mas com a originalidade
sobre a Confederação dos Tamoios, de
rio do romance O Guarani, considerado pela da ligação com a terra selvagem brasileira.
Alencar, publicada ainda em 1856, pode
crítica literária a expressão do nacionalis- Para Lilia Schwarcz, em Um monar-
ser acessada, na íntegra, na Biblioteca
mo romântico e a consolidação da figura ca nos trópicos, o Romantismo brasileiro
Digital do Senado Federal:
do herói tipicamente brasileiro: “N’O Gua- inseriu-se em um plano político de cunho
https://www2.senado.leg.br/bdsf/ rani o selvagem é um ideal, que o escritor nacionalista, e não apenas em um movi-
handle/id/242822 intenta poetizar, despindo-o da crosta gros- mento estético. De perfil eminentemente
seira de que o envolveram os cronistas, e ar- estratégico, encarregou-se de fazer as pa-
rancando-o ao ridículo que sobre ele proje- zes com o indígena pelo passado de barbá-

BOLACHINHAS tam os restos embrutecidos da quase extinta


raça.”(ALENCAR, 1893, p. 47) Nas páginas
rie e intolerância, que ora comportava uma
leitura honrosa. É dessa leitura que nos fala
dessa obra, percebemos o quanto Alencar Schwarcz que iremos estudar a seguir.
Segundo José Alencar, em Como era consciente da corrente estética à qual se
e porque sou romancista, a sua filiou. Pretendia ser nacionalista a partir da
inspiração para O Guarani “caiu na exaltação da natureza, da volta ao passado
imaginação da criança de nove anos, histórico e da criação do herói nacional na
ao atravessar as matas e sertões no figura do índio. Em O Guarani a idealização
Norte, em jornada do Ceará à Bahia.” do indígena reunia todas as qualidades do

CURSO literatura cearense 21


3.
O GUARANI:
ROMANCE
DE FUNDAÇÃO
DO POVO
BRASILEIRO
Um índio descerá de uma
estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá
numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada
a última nação indígena
E o espírito dos pássaros
das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais
avançada das mais avançadas
das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi.
Caetano Veloso, em “Um índio”

osé de Alencar é considerado um


dos fundadores do romance bra-
sileiro. Entre outros objetivos, ele
queria representar, através da fic-
ção, toda a variedade do país, do
sertão à corte, e, de certa forma,
conseguiu, já que seus romances
perfazem todo o caminho da di-
versidade dos tipos brasileiros
desde “Arnaldo”, o vaqueiro cearense (de
Quixeramobim), um herói do sertão, no livro

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O sertanejo (1875), ao gaúcho, em O gaúcho
(1870), ambas obras regionalistas, como MALACA ele deveria ter já que vivia harmonicamen-
te com os seus e com a natureza.
passando pela corte de “Aurélia Camargo”, CHETAS A afinidade entre o público e o indianis-
no clássico Senhora (1875), romance urba- mo deve-se ao nativismo: a valorização do
no e de costumes. Como dissemos, o autor índio ia ao encontro dos desejos, dos sen-
O Guarani obteve muito sucesso do
exaltou em suas obras aquele que se tornou timentos e do conteúdo emocional dos lei-
público e da crítica quando lançado
o símbolo nacional do romantismo: o ín- tores que compunham majoritariamente a
em 1857. Porém os leitores da época
dio. São representantes da fase indianista classe burguesa. Logo após o processo de
acostumados com a leitura de
do Romantismo brasileiro – também de- Independência, desenvolveu-se entre nós
folhetins, surpreenderam-se com o
nominada nativista – as obras: O Guarani o sentimento de nacionalidade, e nada
formato livro (romance) ainda não
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). melhor do que um herói para representar
tão bem desenvolvido no Brasil. Com
Embora a primeira obra de literatura este anseio. Isto não quer dizer que o Brasil
esse lançamento, o novo gênero
cearense de Alencar seja Iracema (1865), pudesse viver, naquele período, sem o por-
literário ganhou força e passou a ser
discorreremos um pouco sobre O Guarani tuguês, pelo contrário, o Brasil era comple-
produzido com maior frequência
(1857), pois este romance inaugural da ficção tamente dependente da coroa portuguesa.
entre os escritores no país. Outra
indianista no Brasil traz muitos dos elemen- Não podendo valorizar o negro, o ficcionista
curiosidade dessa publicação, é que
tos que caracterizam a escola romântica. voltou-se para o índio, heroicizando-o.
José de Alencar deixou o seu enredo ao
Publicado originalmente como folhetim, a Antonio Candido afirma ser Alencar “o
gosto do público, alterando a história
obra narra, através da história de amor do ín- único escritor de nossa literatura a criar um
conforme a opinião que recebia
dio Peri e a jovem lusa Ceci, o tema da misci- mito heroico, o de Peri” e explica: “Assim
constantemente dos seus leitores das
genação entre o índio e o branco. Para Ângela como Walter Scott fascinou a imaginação
páginas do Diário do Rio de Janeiro.
Gutierrez, “a sugestão do conúbio entre dois da Europa com seus castelos e cavaleiros,
seres harmoniosos e superiores, símbolos Alencar fixou um dos mais caros modelos
das raças indígena e branca, ratifica a obser- Outra característica da escola é a com- da sensibilidade brasileira: o do índio ideal
vação de Doris Sommer (2004, p. 179) de que paração com a natureza, evocando o sím- [...]” (CANDIDO,1969, p. 223-4)
Alencar alinhava-se a von Martius, ‘um histo- bolo de perfeição. Vejamos na obra: “Peri,
riador que identificava a mestiçagem como primeiro de todos, tu és belo como o sol,
a matriz da brasilidade’”. O que fica implícito e flexível como a cana selvagem...”; Outro
em O Guarani será, oito anos depois, explicita- exemplo é o fragmento: “ A nação Goitacá
do com o nascimento de Moacir, filho da dor, tem cem guerreiros fortes como Peri; mil ar-
em Iracema”. (GUTIERREZ, 2009, p. 10) cos ligeiros como o voo do gavião.”
A descrição de Peri é clara: “Enquanto O autor romântico comparava as pro-
falava [Peri], um assomo de orgulho selva- tagonistas com a natureza para dizer da
gem da força e da coragem lhe brilhava nos perfeição e da beleza de ambos: perso-
olhos negros, e dava certa nobreza ao seu nagens e natureza. Por essa razão a natu-
gesto. Embora ignorante, filho das florestas, reza é sempre idealizada e sempre pre-
era um rei; tinha a realeza da força.” sente na ficção romântica.
Esse exagero está em todos os capí- O mito do “bom selvagem”, de Rosseau,
tulos do romance. Isto, porém, não é um que afirma ser o homem bom por nature-
defeito e, sim, uma característica da za, sendo o viver em sociedade a causa da
escola. Era assim que os personagens ro- sua degradação moral, muito contribuiu
mânticos se posicionavam diante do mun- para que o indianismo fosse uma tendên-
do, exagerando, sendo demasiadamente cia generalizada do Romantismo. Aqui,
apaixonados e, por isso, sofrendo muito. vestido com a cor local, o índio literário do
Essa era a postura romântica. romance encarna a bondade natural que

CURSO literatura cearense 23


4.
IRACEMA: LENDA
DO CEARÁ
Iracema hoje quer ser moderna
Loura a força, ela deseja ser
Mas a cor que lhe veste o corpo
é de cabocla que a faz sofrer
O estrangeiro foi para não voltar
Deixou o seu filho que não quer mais ver.
Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry,
em “Maracatu Fortaleza”

romance Iracema (1865)


é considerado, segundo
o pesquisador Sânzio de
Azevedo, a primeira obra
de literatura cearense de
José de Alencar. Acerca
de Iracema, nos explica o MALACA
pesquisador: “No Ceará, o
Indianismo é representado
CHETAS
precisamente por uma das
obras principais do movimento brasileiro, A canção “Maracatu Fortaleza”,
Iracema.” (AZEVEDO, 1976, p.51). de autoria de Pingo de
A paisagem e a cultura da sua terra foi o Fortaleza e Rosemberg Cariry,
que de mais especial José de Alencar nos foi tema oficial do Maracatu Az
deixou, mesmo dentro dos cânones da épo- de Ouro no início da década
ca. O nacionalismo, que toda a doutrina ro- dos anos 2000.
mântica possui, teve em Alencar um vigoro- A música ganhou videoclipe
so pintor. Essa ideia de terra nossa, de país com direção de Petrus Cariry e
nosso, de cultura nossa está em quase todos está disponível no canal Pingo
os seus livros. Em dois deles, toda a paisa- de Fortaleza Solar, do artista
gem exuberante do Ceará foi essencial, para cearense João Wanderley
firmar um imaginário regional: Iracema e O Roberto Militão, conhecido
sertanejo como veremos mais a seguir. simplesmente como Pingo
Observe o que Alencar diz, no prólogo de Fortaleza. Confira no link:
da primeira edição de Iracema oferecido https://www.youtube.com/
pelo “filho ausente” à terra natal: watch?v=nijgoEZrWyM

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Os meninos brincam na sombra do outão Verdes mares bravios de minha terra natal,
com pequenos ossos de reses, que figu- onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;
ram a boiada. Era assim que eu brincava, Verdes mares, que brilhais como líquida
há quantos anos, em outro sítio, não mui esmeralda aos raios do sol nascente, per-
distante do seu. A dona da casa, terna e longando as alvas praias ensombradas
incansável, manda abrir o coco verde, ou de coqueiros; […]
prepara o saboroso creme do buriti para
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápi-
refrigerar o esposo, que pouco há recolheu
da a costa cearense, aberta ao fresco terral
de sua excursão pelo sítio, e agora repousa
a grande vela? […]
embalando-se na macia e cômoda rede.
[…] Três entes respiram sobre o frágil lenho que
vai singrando veloce, mar em fora.
Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se
iludam as reminiscências da infância avi- Um jovem guerreiro cuja tez branca não
vadas recentemente. Se não, creio que, ao cora o sangue americano; uma criança e
abrir o pequeno volume, sentirá uma onda um rafeiro que viram a luz no berço das flo-
do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe restas, e brincam irmãos, filhos ambos da
vem da várzea. Derramao, a brisa que per- mesma terra selvagem (...) (ALENCAR, 2005)
passou os espatos da carnaúba e na rama- Perceba que, nesse trecho, encontra-
gem das aroeiras em flor.
mos, além da paisagem, o mito da origem.
O livro é cearense. Foi imaginado aí, na
O livro inicia trazendo o fim da história de
limpidez desse céu cristalino azul, e depois
vazado no coração cheio de recordações Iracema e de Martim, o “guerreiro branco”,
vivazes de uma imaginação virgem, Es- cujos descendentes comporão nosso povo:
crevio para ser lido lá, na varanda da casa este é o mito. A criança na jangada, o Moa-
rústica ou na fresca sombra do pomar, ao cir (“filho da dor”, “o que vem da dor”, em tu-
doce embalo da rede, entre os múrmuros pi-guarani) é símbolo da mistura das raças,
do vento que crepita na areia, ou farfalha
nas palmas dos coqueiros.[…]
é o branco e o índio compondo a diversida-
de cultural do povo brasileiro.
Se, porém, ao abordar às plagas do Mucuri-
pe, for acolhido pelo bom cearense, preza- Ao longo da narrativa, surge a nossa
do de seus irmãos ainda mais na adversi- paisagem geográfica: Ipu, chapada da Ibia-
dade do que nos tempos prósperos, estou paba, Meruoca, Uruburetama, Maranguape,
certo que o filho de minha alma achará na Parangaba, Sapiranga, Messejana etc.
terra de seu pai a intimidade e conchego da
família […] (ALENCAR, 2005)
Observe que, só nessas primeiras li-
nhas, a autor traz em suas memórias mui-
tos elementos indicadores dos costumes
e da paisagem cearenses. Sua maneira
de avivar as cores e os gestos só reforçam
sua identidade romântica. A seguir, temos
alguns trechos da obra, nos quais a terra
cearense, espaço geográfico, é ambienta-
da como o cenário de Iracema:

CURSO literatura cearense 25


5.
Em O sertanejo, umas das obras regio-
nalistas do autor, o personagem Arnaldo
é jovem, belo, livre, forte, apaixonado e
completamente integrado ao seu am-
A COR DA TERRA: biente, o seu lugar. E os lugares, a cultura
e os costumes do povo cearense ganham
O SERTANEJO outras cores. Aqui, o que é acentuado é o
imaginário do sertão, a organização das
frânio Coutinho, a respeito
famílias, com sua ética e seus códigos de
do regionalismo:
sobrevivência. A primeira parte do livro é
A procura do colorido local pe- quase uma identidade da terra natal:
culiar conduziu à compreensão
da cultura popular, onde, para Esta imensa campina, que se dilata por
os românticos, residiria o cará- horizontes infindos, é o sertão de minha
ter original da criatividade lite- terra natal.
rária, e de onde partiria o veio Aí campeia o destemido vaqueiro cearense,
formador da literatura. que à unha de cavalo acossa o touro indô-
mito no cerrado mais espesso, e o derriba
Assim, como endossa pela cauda com admirável destreza.
Sânzio: “Essa busca de cor local, porém,
Aí, ao morrer do dia, reboa entre os mugi-
não privilegiou apenas o aborígine, mas dos das reses, a voz saudosa e plangente
também o mestiço, igualmente brasileiro, e do rapaz que aboia o gado para o recolher
cuja cultura era própria, diferente, portanto, aos currais no tempo da ferra.
da cultura portuguesa.” Quando te tomarei a ver, sertão da minha
terra, que atravessei há muitos anos na au-
rora serena e feliz da minha infância?
Quando tornarei a respirar tuas auras
impregnadas de perfumes agrestes, nas
quais o homem comunga a seiva dessa
natureza possante?

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Porém, o espaço, a terra descrita não é fan- mais e os cativa. [...] O gado dos currais, que
BOLACHINHAS tasia: é realidade projetada do cotidiano.
Como consequência disso, emerge a sau-
já se tinha acomodado e ruminava deitado,
levantando-se para responder ao canto do
aboiador, mugia não ruidosamente. [...]
dade, sentimento impulsionador do orgu-
Ao contrário de boa parte de seus Como vemos, ser humano e animal co-
lho de pertencer a uma determinada terra.
romances urbanos, em que as mulheres municam-se como se o animal soubesse do
Isto é o que alavancou o nacionalismo ro-
eram as protagonistas, Alencar, em significado do aboio, pois responde ao apelo
mântico e fez dele um dos principais ele-
seus romances regionalistas, trazia do vaqueiro. Aqui, mais uma vez, a harmonia
mentos de aceitação do público. Outros
personagens masculinos. entre os seres que vivem num mesmo espa-
fatores de “cearensidade” vão aparecendo
durante a narrativa, principalmente do va- ço geográfico é fundamental. Esse elemento
queiro/sertanejo cearense, inclusive nela o de harmonia é uma tática, para o leitor sentir

CONFEITOS autor descreve muitas características que


ele diz ser do “cearense da gema”.
a necessidade de integração com a sua terra
e que dela tenha orgulho. Talvez este seja um
Nos últimos ramos, lá no tope do jacaran-
dos objetivos de Alencar.
O personagem Arnaldo, vez ou outra dá, havia o sertanejo armado a rede, em Com todos esses exemplos, tanto de Ira-
aparece acompanhado por um que se embalava. Devia de achar-se mais cema, como de O sertanejo, podemos deduzir
“tigre”. No passado, era possível ser de cem pés acima da terra; e nessa grande que José de Alencar queria muito mais do que
encontrada com mais facilidade no altura, suspenso por duas finas cordas de representar uma região, com seus costumes e
algodão trançado, estava mais tranquilo
interior cearense a onça suçuarana. suas crenças. Ele queria dizer que a região é
do que se pousasse no chão, [...]
Os antigos denominavam essa essencial, para uma ideia mais ampla e cons-
Cessaram os repiques do sino; o sertanejo
suçuarana de “tigre” (nunca ciente do Brasil: esse é o seu nacionalismo.
adivinhando que estavam na reza ajoelhou
haviam visto o asiático animal), também num ramo da árvore, e com sin-
diferenciando-a da onça pintada. cero fervor acompanhou de longe no seu
nicho agreste a oração que lá se estava
elevando ao Senhor pela boa volta e feliz
chegada dos donos da Oiticica. Começou a
A referência à imensa campina é como ladainha cantada. [...]
o autor intenciona impressionar o leitor Em que pese a fantasia, o uso da rede ca-
pela visão e pelas qualidades inerentes a racteriza nossa terra, ainda hoje. As orações ao
esse espaço. Apesar dos percalços, a terra final da tarde e um dos cantos de louvor bem
significa a origem e a construção da vida. E exemplificam o cotidiano do cearense, devoto
os elementos da região vão aparecendo: a que sempre foi dos santos e obediente aos ri-
derruba do gado pela cauda; a destreza do tuais da igreja. O herói é perfeitamente adap-
vaqueiro e o seu aboio típico, que tantos ar- tado à natureza, porque é fruto dela, e com
tistas exaltaram; a ferra do gado, que é mo- ela vive em harmonia. Essa é outra ideia que
mento de repartição e de propriedade das Alencar passa, em muitos de seus romances.
reses; os odores do sertão etc. Sobre o aboio, tão característico, ainda Aboio/Aboiado
Perceba, cursista, que o narrador fala hoje, nas brenhas do nosso sertão: Canto dolente
das coisas do sertão com muito orgulho e monótono,
Ainda retiniam as últimas badaladas das sem palavras,
– esta é a visão do romântico sobre a sua trindades, quando longe, pela várzea além,
terra, porque é a terra da sua identidade, com que os vaqueiros
começaram a ressoar as modulações afe- guiam as boiadas ou
das suas aventuras e da sua memória, tuosas e tocantes de uma voz que vinha chamam as reses.
mesmo que tal memória, em relação às pe- aboiando. [...] Não se distinguem palavras
ripécias das personagens, venha revestida na canção do boiadeiro; nem ele as articula,
pois fala ao seu gado, com essa outra lin-
de muita imaginação e irrealidade, para
guagem do coração, que enternece os ani-
atender os cânones do Romantismo.

CURSO literatura cearense 27


cava em jornais do Ceará, de Pernambuco e
na Revista popular, editada no Rio de Janeiro
por Louis Garnier, editor e livreiro, continuan-
do ainda no Jornal das famílias, desde 1863,
também de Garnier, impresso em Paris, jun-
tamente com Joaquim Manuel de Macedo,
Lúcio de Mendonça e Machado de Assis. Em
1860, quando preso por desacato ao coman-
dante Machado, da Guarda Nacional, escre-
veu A machadada: poema fantástico, primei-
ra obra literária impressa no Ceará. Em
1871, publicou Canções da escola, primeira
obra infantojuvenil cearense, e, no mesmo
ano, publica Cenas populares, primeiro livro
de contos do Ceará. É um dos fundadores do
Clube Literário (1886), do Instituto do Ceará
(1887) e do Centro Literário (1894). Foi padei-
ro-mor honorário da Padaria Espiritual (1895)

6.
e é considerado um dos primeiros poetas
abolicionistas e folcloristas do Brasil.
Como podemos constatar, não seria
possível nesse módulo dar conta de expor
O REGIONALISMO a vida e a obra desse autor que inaugura
quase tudo a que se refere à literatura pro-
DE JUVENAL duzida no estado.
“Era um romântico, mas com uma parti-
GALENO cularidade que faz dele figura ímpar nos qua-
Romantismo cearense tem dros da poesia cearense, ou mesmo brasilei-
como marco inaugural o ra: a inspiração genuinamente popular.”
lançamento de Prelúdios Dessa forma o pesquisador Sânzio de Azeve-
poéticos (1856), livro de do apresenta Juvenal Galeno. E diz mais:
estreia de Juvenal Galeno, O cantor das Lendas e canções populares re-
publicado no Rio de Janei- presenta, assim, melhor talvez do que qual-
ro (Iracema teria sua publi- quer outro poeta do Brasil, aquela vertente
do Romantismo que procurava identificar-
cação 9 anos depois). E se- -se profundamente com a alma popular,
ria apenas esse o destaque produzindo a arte anunciada por Herder,
de Galeno na Literatura Cearense? Decerto antes mesmo do advento da escola.
que não, vejamos: Por isso, falando da obra do poeta cearen-
Ainda aos 13 anos, ao lado de Gustavo se, disse João Clímaco Bezerra ser ela, “na
Gurgulino de Souza, foi fundador do primeiro literatura brasileira, a primeira tentativa de
jornalzinho puramente literário do Ceará:
Ceará uma poesia tipicamente regionalista”.
o Sempreviva. Aos 17, ao ingressar no Liceu, De fato, reconhecido poeta social, com
junto com colegas, criou o Mocidade cearen- o olhar voltado aos pobres, aos humildes –
se, pioneiro da imprensa estudantil no es- embora de origem socialmente privilegiada
tado. Em 1859, escreveu Quem com ferro fere –, Galeno dedica a eles a sua obra, ao afir-
com ferro será ferido, primeira peça escrita mar: “Sei que mal recebido serei nos salões
e encenada no Ceará (1861). Em 1859, publi- aristocratas e entre os críticos que, estudan-

28 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


do no livro do estrangeiro o nosso povo, des- blica, em 1865, ano em que é lançado Ira-
conhecem-no a tal ponto de escreverem que BOLACHINHAS cema, de Alencar, Lendas e canções popula-
o Brasil não tem poesia popular! [...] Despre- res. Assim como José de Alencar, escolheu
zado nos salões, encontrarei bom gasalha- Franklin Távora (1842-1888), alguns tipos para compor sua obra, Juve-
do na oficina, na choça, no seio do povo; o considerado o fundador do nal Galeno, como todos os regionalistas,
operário entoará no trabalho estas canções, regionalismo no Nordeste, era opositor tirou do seu espaço real os modelos para
as crianças repeti-las-ão no lar, e o veterano ferrenho da literatura dita nacional de a sua composição literária, desta feita, não
recrutado, o escravo, o oprimido... derrama- José de Alencar. Franklin nasceu no mais como romance, mas como poesia.
rão muitas lágrimas ao escutá-las. E, assim, Ceará. Aos 2 anos, com os pais, passou Dolor Barreira afirma: “No Quadro sintético
cumprirei a minha missão.” (GALENO, 2010). a residir em Pernambuco, estado que é da evolução dos gêneros na Literatura Brasilei-
Mesmo em Prelúdios poéticos, em meio cenário de sua obra O Cabeleira (1876). ra, da autoria de Sílvio Romero, Juvenal, aliás
a poemas tipicamente românticos, Azevedo o único cearense citado no quadro relativo à
observou que Galeno traz três peças poéticas poesia, figura como representante do período
que comprovam a sua tendência à poesia romântico (quarto momento) entre os serta-
popular. São elas: “A noite de S. João”, “Can- ção do autor dedicada não apenas à poesia nistas, tradicionalistas e campesinos [...]”
tiga do violeiro: poesia popular” e “A canção popular, mas ao povo em si, a quem dedica- O regionalismo na poesia está ligado às
do jangadeiro”. Até então, se dizia, equivoca- ria a maior parte de seus trabalhos, incluindo particularidades dos agrupamentos sociais
damente, que os poemas do livro de estreia Lendas e canções populares, que seria escrito de cada canto do país, apresentando clima,
de Galeno eram de característica neoclássi- no período de 1859 a 1865. Também Netto, costumes, fala, cultura, aspectos do cotidia-
ca e que nada tinham de popular, o que fez em sua Cronologia comentada, por intermé- no, o que dá uma enorme riqueza de detalhes
com que muitos acreditassem que Gonçalves dio de cartas encontradas de Gonçalves Dias a serem estudados sobre os tipos e o ambien-
Dias, o primeiro grande indianista do Roman- destinadas a Galeno, afirma ser Cantigas do te que os envolvia. Sobre isso, José Aurélio
tismo, quando de sua passagem no Ceará, 3 sertão, o primeiro título de Lendas e canções Saraiva Câmara afirma: “Sem as poesias de
anos depois da sua publicação, teria sido o populares e que Canções da escola seria a Juvenal Galeno e sem as crônicas históricas
responsável por dar ao poeta o conselho, do primeira obra da literatura infanto-juvenil cea- de João Brígido, será impossível recompor a
nada, de produzir e cultuar a poesia popular. rense, como dissemos anteriormente. verdadeira fisionomia do Ceará oitocentista.”
Em 2010, durante a organização e publi- Voltando ao tema e para irmos adiante,
cação da Coleção Juvenal Galeno: obra com- em primeiro lugar, é fundamental que o(a)
pleta, Raymundo Netto encontrou os manus- cursista compreenda que o denominado
critos da única peça escrita por Galeno, Quem regionalismo não se trata de uma escola
com ferro fere, com ferro será ferido – encenada literária, como o Romantismo ou o Realis-
posteriormente, em 1861 –, e neles constatou mo, por exemplo.
o ano de sua escrita: 1859. A descoberta gerou Nas obras românticas, depois do indíge-
duas constatações: seria essa a segunda obra na, a figura local, como o sertanejo, assumiu
produzida por ele, e não A machadada: poe- o papel de herói idealizado. Para tanto, esse
ma fantástico (1860), como até então se pen- regionalismo foi fundamental. Além disso,
sava. Segundo: “na peça, Juvenal denuncia e observamos ainda mais sua importância ao
critica o abuso da autoridade dos delegados trazer para o palco romântico – geralmente
nas pequenas cidades do interior, a utilização urbano e centrado na corte – os tipos, cos-
do recrutamento e da cadeia pública como tumes, valores e paisagens de um Brasil ain-
instrumentos de vingança, a omissão e a par- da desconhecidos por ela.
ceria dos latifundiários, dos ricos e dos padres Galeno, após sua estreia em Prelúdios...,
aos desmandos do poder, a hipocrisia e dis- da escrita de sua única peça, da publicação
criminação social, a deficiência e corrupção de A machadada: poema fantástico (1860)
da justiça, o estado de pobreza e penúria da e de A Porangaba: lenda americana (1861)
maior parte da população indefesa”. (NETTO, – um poema indianista que, este, sim, traz
2010), o que demonstra, novamente, a aten- a influência do amigo Gonçalves Dias –, pu-

CURSO literatura cearense 29


Assim, Juvenal Galeno nos apresenta Agora, vamos fazer uma leitura mais de- último verso, o narrador interpreta o senti-
muitos temas caros à região, como o janga- talhada do poema “Cajueiro pequenino”, mento do outro, como os outros dois).
deiro, o mar, o boiadeiro, o escravo, o lavra- uma das pérolas do nosso Romantismo O narrador entra no mundo inanima-
dor, a lavadeira, entre outros, e, sem perder o regional, e um dos mais festejados do au- do do cajueiro e conta a história dos dois:
tom romântico, característico da sua compo- tor, para identificarmos fatores essenciais, “Quando em casa me batiam,/ Contava-te
sição poética, vai além e revela as injustiças e por meio dos quais poderemos classificá-lo o meu penar;/ Tu calado me escutavas,/
a desigualdade sociais, a política, a explora- como romântico e como regionalista. “Ca- Pois não podias falar”. Perceba que o ca-
ção, o sofrimento, mas também as alegrias, o jueiro pequenino” fazia parte do folclore e jueiro é o irmão e o amigo: “Que de ti seria,
modo de viver e a beleza de seu povo. da tradição dos trovadores cearenses. irmão?” Isso também dá um tom de proxi-
Encontramos alguns desses elementos Cajueiro pequenino, midade, de confiança, de um tipo de acon-
nos fragmentos dos poemas abaixo: Carregadinho de flor, chego muito próprio da infância.
“Ai, vida qu´eu levo por montes e vales, À sombra das tuas folhas Se no Romantismo a construção do
Catingas e grotas se vou campear; Venho cantar meu amor, herói era uma de suas forças, aqui, os pri-
E após descansando, cercado dos filhos, Acompanhado somente meiros sinais românticos estão na lingua-
E junto à consorte nos gozos do lar! Da brisa pelo rumor,
Cajueiro pequenino,
gem, no discurso, na seleção do léxico:
A vida qu´eu levo, pequenino, carregadinho, sonho, querido,
Ouvi-me cantar. (...)” Carregadinho de flor.
vida infantil, verdes ervinhas, todo gentil,
“O vaqueiro”. Tu és um sonho querido
De minha vida infantil, sonho infantil. Esses termos no diminuti-
In: Lendas e canções populares, 2010.
Desde esse dia... me lembro... vo, algumas expressões gentis, delicadas,
“Minha jangada de vela Era uma aurora d´abril, tudo isso aproxima o discurso do poema
Que ventos queres levar? Por entre verdes ervinhas
Tu queres vento da terra
da linguagem da criança.
Nasceste todo gentil, Porém, a caracterização romântica está
Ou queres vento do mar? Cajueiro pequenino,
Minha jangada de vela mais presente na partida, na dor e na sauda-
Meu lindo sonho infantil.
Que vento queres levar? (...)” de. O narrador sofre pelo cajueiro, por ele ser
“Cajueiro pequenino”.
“A jangada”. In: Lendas e canções populares, 2010. frágil, doente: é a sua sina ter crescido no chão
In: Lendas e canções populares, 2010. agreste, sobre o qual adiante falaremos: (“Tu
O poema todo é uma declaração de que foste sempre enfermo). Há um sofrimen-
“Além dos males que padece o corpo,
Medonha fome, o desarrimo, as dores, amor. Há dois elementos marcantes: o tom to sem referencial explícito: é um sentimento
Mortais angústias que o cidadão deplora, de ingenuidade, de delicadeza, de fragili- tipicamente romântico (não há romantismo
Sem da justiça, sem da lei favores, dade, inclusive (“Tu que foste sempre en-
Do povo o espírito ignorante perde-se fermo”); e o elemento saudade, associada
Em noite umbrosa, oh, do poder senhores! a uma certa dor, à tristeza, à melancolia e
“A instrução”. à partida. Esses elementos, atuando con- Antropomorfizar
In: Lendas e canções populares, 2010.
juntamente, darão a tônica do poema: o é atribuir, adquirir
O último poema, “A Instrução”, tem início sentimentalismo e a dor, dois fatores nu- características
humanas.
com o alerta de que a Constituição garante a cleares do Romantismo.
instrução primária a todos os cidadãos. É o O tom de ingenuidade é dado por dois ele-
Galeno engajado contra o analfabetismo. mentos: o próprio motivo e a seleção lexical.
Mas, voltando ao regionalismo, vaquei- A lembrança da infância de um narrador
ros e jangadas bem ilustram o tom regio- já adulto (“Fui-me longe... muitos anos”),
nal. Se há temas que se repetem, aqui, no de sua amizade com um cajueiro (coisa de
Ceará, podemos dizer que esses dois estão menino), que ganha status de pessoa, se
em muitos momentos históricos da nossa antropomorfiza: embora não fale, sabe
terra, não só na literatura, mas na pintura, muito bem escutar: “Se tu sofrias... eu, tris-
no desenho, na escultura, no folclore, na te,/Chorava como... ninguém!/ Cajueiro pe-
literatura de cordel etc. quenino,/ Por mim sofrias também!” (nesse

30 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE


sem sofrimento): “Se tu sofrias... eu, triste,/ meio dela que os leitores se sensibilizam. REFERÊNCIAS
Chorava como... ninguém!/ Cajueiro pequeni- Importante atentar também que o próprio
BIBLIOGRÁFICAS
no,/ Por mim sofrias também!”. O sofrimento cajueiro – o caju e/ou a castanha – é um
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense.
é condicional, apenas uma possibilidade: se dos principais indicadores do regionalismo,
Fortaleza: Publicação da Academia Cearense
o narrador não indica a causa do sofrimento, uma imagem muito presente, mesmo por de Letras, 1976.
da tristeza, ele está dizendo para o leitor que aqueles que nunca provaram da fruta.
AZEVEDO, Sânzio. Juvenal Galeno e a poesia
isso não tem importância: o importante é Outro dado que remete para esse as- do povo. Palestra pronunciada em 10.3.81,
sofrer – esta é a causa romântica. pecto particularizado do Ceará é a terra, o em celebração ao 50º aniversário de falecimento
Um detalhe lexical importante, nes- chão agreste, seco, sem água. Isso é muito de Juvenal Galeno. In Revista da Academia
te momento da análise, é a dinâmica do característico de textos nordestinos. Ve- Cearense de Letras, 1981.
verbo ausentar: “Mas um dia... me au- mos nos versos: “Afogado nestes matos,/ BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
sentaram...” Tal verbo é essencialmente Morto à sede no verão.../ Tu que foste sem- brasileira. São Paulo : Cultrix, 1995.
pronominal, reflexivo e, normalmente, pre enfermo/ Aqui neste ingrato chão!” BECHARA, Evanildo. Moderna gramática
transitivo indireto: alguém se ausenta por O cajueiro, antromorfizado, foi enfermo, portuguesa. 37ª Ed. Rio de Janeiro : Lucerna, 2001.
causa de algo, ou se ausenta por algo; ou porque é fruto deste chão. Há, aqui, um COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no
se ausenta de algo: por exemplo, eu me julgamento da terra: ingrata. Como ro- Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro. São José, 1966, p.171.
ausentei da reunião. mântico, o narrador não poderia dar uma CITELLI, Adilson. Romantismo. São Paulo:
Juvenal Galeno torna o verbo não-re- explicação naturalista, científica, ele pre- Editora Ática, 1986.
flexivo, embora permaneça transitivo indi- fere a explicação sentimental, que é o que COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil.
reto (“eles ausentaram a mim”). O impacto lhe interessa, a da terra não reconhecer os 17a.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
é muito maior, além de esteticamente ser benefícios do cajueiro, nem os cuidados de GUTIÉRREZ, Ângela. O Guarani e a Construção do Mito
muito mais rico, porque proporciona uma quem dele cuida, daí a ingratidão, muito do Herói. In: Rev. de letras, nº. 29. Vol. 1. jan./jul. 2009.
das mais belas imagens do poema. Usado própria nas narrativas românticas. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
em um sentido não comum (alguém fê-lo A voz do poema é a do próprio narrador: literários. São Paulo : Cultrix, 1995.
partir contra a vontade), ele não se ausen- um ser que canta sua vida de amizade e de _______. História da literatura brasileira, V. 2,
tou, mas alguém o ausentou. sofrimento. E um ser que trata o cajueiro Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1985.
Essa construção mostra o quanto os como se fosse uma pessoa, daí a afeição e SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura.
autores românticos também estavam aten- a identificação. No poema, há uma narra- 8.ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992.
tos à linguagem, porque sabiam que é por tiva, há uma história, há uma sequência de PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura
ações, que, no fundo, constrói a história e a brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
vida de um ser que muito sofreu. Ora, tudo PONTARA, Marcela; ABAURRE, M. Luiza. Literatura
do romântico é exagerado: no Romantismo, brasileira: tempos, leitores e leituras. São Paulo:
não há meio-termo: “Chorando beijei-te as Moderna, 2006.
folhas...”. Não precisamos comentar essa RAYMUNDO NETTO. Cronologia comentada de
passagem, pois está muito clara a intenção Juvenal Galeno. Fortaleza: Secult, 2010.
do autor em “humanizar” o cajueiro que, RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos
pagaria assim o alto preço de sofrer. primeiros cronistas aos últimos românticos.
Esses parágrafos mais técnicos e analí- São Paulo: Edusp, 1995, p. 365.
ticos foram aqui colocados para que você, SCHWARCZ, Lilia M. Um monarca nos trópicos:
cursista, sinta as inúmeras possibilidades de o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio
leituras, a enorme variedade de elementos
Pedro II. In: As barbas do Imperador: D. Pedro II,
e o vasto campo de pesquisa que pode ser um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
feita na análise de um texto, além, claro, de das Letras, 1998. p. 125-157.
compreender o jogo retórico e estilístico dos WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da
autores românticos, por esses dois grandes literatura. Tradução de José Palla e Carmo. Lisboa:
mestres do Romantismo brasileiro. Publicações Europa-América, 1971.

CURSO literatura cearense 31


AUTOR
Este curso é parte integrante do programa
Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198,
processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a
Paulo de Tarso Pardal Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

Atuou como entalhador, escultor, bancário e FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


economista. É compositor, luthier e instrumentista João Dummar Neto Presidente
(toca violão, cavaquinho e viola de 10 cordas). Ao André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro
lado da música, construiu sua carreira acadêmica. Marcos Tardin Gerente Geral
Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos
Graduou-se e concluiu o mestrado em Letras pela
Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes
Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi professor e Fabrícia Góis Analistas de Projetos
da Universidade Vale do Acaraú (UVA), Universidade
UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE)
Estadual do Ceará (Uece), Faculdade Farias Brito e da Viviane Pereira Gerente Pedagógica
Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem 11 livros Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos
publicados, entre ensaios, contos, poemas e partituras Joel Bruno Designer Educacional
e 5 CDs gravados, entre canções e chorinhos. CURSO LITERATURA CEARENSE
Raymundo Netto Coordenador Geral,
Editorial e Estabelecimento de Texto
Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo
ILUSTRADOR Emanuela Fernandes Assistente Editorial
Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico
Carlus Campos Miqueias Mesquita Diagramador
Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira Carlus Campos Ilustrador
em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na Luísa Duavy Produtora
construção do seu trabalho, aborda várias técnicas ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção)
como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas ISBN: 978-65-86094-29-9 (Fascículo 2)

e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes


como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção
gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São
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