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MÁRDdeANDRADE

aspectos da
literatura brasileira
5|a edição

Andrade, Mário de, 1893-1945

A568a Aspectos da literatura brasileira. 5 .e d .


São Paulo, Martins; 1974.
X, 266 p.

1. Literatura brasileira — História e crí­


tica I . Brasil.
II . Título.

NXL
C C F /C B L /S P —72—0338 C D D : 8 6 9 .9 0 9
C D U : 8 6 9 .0 ( 8 1 ) —95

Índices para catálogo sistemático ( C D D ) :


1. Literatura brasileira : Crítica e história 8 6 9 .9 0 9
2. Literatura brasileira : História e crítica 8 6 9 .9 0 9
LIVRARIA MARTINS EDITORA S.A.
SUM ÁRIO

A dvertencia ................................................................................ 3

Tristão de A taíde ..................................................................... 7

A poesia em 1930 ..................................................................... 26

Luiz Aranha ou a Poesia preparatoriana .......................... 47

M achado de Assis ..................................................................... 89

Castro A lves ......................................................................... 109

Memórias de um Sargento de Milicias .............................. 125

A volta do Condor .............................................................. 141

O Ateneu ............................................... 173

A E legia de A b ril ..................................................................... 185

A m or e Mêdo ........................................................................... 197

O Movimento Modernista ...................................................... 231

Segundo Momento Pernambucano ....................................... 259


ADVERTÊNCIA

Reuni neste volume alguns dos ensaios de crítica literária,


escritos mais ou menos ao léu das circunstâncias e do meu
prazer. Espero que se reconheça neles, não o propósito de
distribuir jtistiça, que considero mesquinho na arte da crítica,
mas o esforço apaixonado de amar e compreender. Ê mesmo
certo que se por vezes sou um bocado áspero em minhas cen­
suras aos artistas isso provem de uma desilusão. A desilusão
de não terem eles me proporcionado, de arte, o quanto eu
sinto poderiam me dar.

Os estudos sobre Manuel Bandeira, Castro Alves e O


Ateneu foram publicados na Revista d o Brasil, na atual fase
carioca da revista. Os ensaios sobre A Poesia em 1930, Luís
Aranha e Tristão de Ataíde, foram publicados pela Revista
Nova, e A Elegia de Abril na recente revista Clima, ambas de
São Paulo. O estudo sobre As Memórias de um Sargento de
Milícias se publicou como introdução à edição de luxo desse
livro, feita pela Livraria Martins, de São Paulo. Quanto às
notas sobre Machado de Assis e A Volta d o Condor, foram
crônicas publicadas no Diário de Notícias do Rio de Janeiro,
mas de pretensão mais vaidosa no tamanho, a que, na última,
se ajuntou, como abertura, um artigo publicado na Revista
Acadêm ica do Rio.
M A R I O DE AN DRADE

As modificações não são substanciais. As feitas em traba­


lhos mais antigos derivam em especial de uma atitude e lin­
guagem de combate que já não teem mais razão de ser. As
modificações em escritos recentes derivam de jornais e re­
vistas ainda continuarem naquela subserviente covardia de,
agradar a magra dieta espiritual de seus leitores, corrigirem
os “erros” de gramática dos artistas. Deixo aqui o meu
protesto.
M. de A.
T R IS T Â O DE A T A ÍD E

(1931)
Bem definido pela religião que professa com uma firmeza
moral raríssima num país que apesar de suas cores tão vivas
só produz indivíduos de meias tintas, Tristão de Ataíde con­
tinua na quarta série dos Estudos a obra sectária que o carac­
teriza. Tristão de A taíde é talvez o exemplo mais util que
se possa apresentar à mocidade brasileira, covarde e indecisa.
Não apenas aos católicos, mas a todos em geral, que, na ordem
das suas crenças e destinos desejados, teem a copiar dele o
desassombro, a cultura coordenada, a nobreza de intenção, o
incorruptível do caráter.
Está claro que sob o ponto-de-vista literário, toda crítica
dotada de doutrina religiosa ou política é falsa, ou pelo menos
imperfeita. Pragmaticamente exata mas tendenciosa. H á um
contraste insolúvel entre os detalhes duma religião ou sistema
político, e a criação artística. Os estetas católicos se esfor­
çarão em falar que não há. Há. H á desde início, por ser
impossível estabelecer a medida justa em que a criação passe a
pecado. A não ser que se acredite em critérios tais ver o da­
quela censura fradesca, referida por Gonçalves Dias,, a qual
num soneto mudou pra “ ósculo” a palavra “ b e ijo ” , conside­
rada imoral.
P o r essa impossibilidade de limite, a Igreja condescende
com Camões, com Dante, Miguel A n jo ou Bernini. Só se
condena as obras decididamente contra, deixando as outras
pra essa espécie de intriga de com adres: campanhas de jornais,
surdina de confessionários, etc. É dolorosamente mesquinho.
Quem quer tenha seguido a evolução de Tristão de A taíde
através dos cinco volumes dos Estudos, notará desde logo que,
de crítico literário, ele vai gradativamente passando a comen-
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tador de idéias gerais. Essa mudança lhe veio em função do P or todos estes defeitos tradicionais, a crítica literária de
próprio catolicismo que aceitou em meio caminho. E é tam­ Tristão de A taíde já se ressentia duma tosquidão esboçadora
bém uma prova da contradição que existe entre a A rte e a muito grave, duma falta de subtileza de análise, que a entrada
crítica sectária. Não estou longe de crer que dentro de Tristão no Catolicismo só veio aumentar. E com efeito, o pensador
de Ataíde se processou todo um drama penoso de remorso, católico se via em grande parte despojado daquele liberalismo
que o tornou cada vez mais desgostado da crítica literária, que inda faz pouco Thibaudet achava imprescindível a toda
cada vez mais conciente, não digo das injustiças, mas das crítica literária. O que ganhava em combatividade perdeu em
indecisões, das irregularidades que praticava como crítico de poder de contemplação. A mudança de personalidade fo i pra
arte. Daí a precisão de se evadir dessa crítica dos artistas melhor, é minha op in ião; mas a crítica já indecisa dos Estudos
prà crítica das idéias gerais, em que todo sectarismo, todo adquiria mais uma indecisão nova. Sem praticar injustiças
pragmatismo pode se mostrar com mais lealdade e justiça. concientes, de que é incapaz, Tristão de A taíde oscilava agora
Como crítico literário, Tristão de Ataíde sofria dos d efei­ quanto ao ponto-de-vista em que devia encarar as obras. Daí
tos por assim dizer já tradicionais na crítica literária brasileira injustiças que, p or involuntárias, não deixam de ser flagrantes.
desde Sílvio Romero. Nesta barafunda, que é o Brasil, os Tal é o caso, p. ex., das atitudes diversas tomadas ante O Gaú­
nossos críticos são impelidos a ajuntar as personalidades e as cho de Paulo de Freitas (pág. 9 6), e A Bagaceira, de José
obras, pela precisão ilusória de enxergar o que não existe ainda, A m érico de Alm eida (3.a série, vol. I, pág. 137). A o primeiro,
a nação. Daí uma crítica prematuramente sintética, se con­ que romanceia sobre a vida particular de três pessoas, que
tentando de generalizações muitas vezes apressadas, outras podiam perfeitamente não ter espírito religioso, censura a
inteiramente falsas. Apregoando o nosso individualismo, eles ausência do sobrenaturalism o; ao passo que nem toca no assun­
socializam tudo. Quando a atitude tinha de ser de análise to diante da Bagaceira, que romanceia uma região, uma psico­
das personalidades e às vezes mesmo de cada obra em par­ logia coletiva, a que o problema religioso não apenas se prende
ticular, eles sintetizavam as correntes, imaginando que o conhe­ necessàriamente, mas é im precindível como realidade. A in­
cimento de Brasil viria da síntese. Ora tal síntese era, espe­ justiça é flagrante. Podia citar mais exemplos.
cialmente em relação aos fenômenos culturais, impossíveis: Mas não apenas em casos particulares se especifica a per­
porque, como sucede com todos os outros povos americanos, plexidade em que se via o pensador católico pra continuar
a nossa formação nacional não é natural, não é espontânea, como crítico literário. Uma nova anomalia grande surgia
não é, p or assim dizer, lógica. Daí a imundície de contrastes
vin garen ta:
que somos. Não é tempo ainda de compreender a alma-brasil
A prova mais íntima de que talvez formemos hoje uma
por síntese. Porque nesta ou a gente cai em afirmações pre­
literatura nacional realmente expressiva da nossa entidade (no
cárias, e inda p or cima confusionistas, como Tristão de Ataíde
que ela possa ser considerada como .entidade.. . ) , não está em
quando declara que o sentimento religioso “ é a própria alma
se parolar Brasil é mais Brasil, em se fazer regionalismo, em
brasileira, o que temos de mais diferente ( sic), o que temos de
exaltar o am eríndio; não está na gente escrever a fala brasilei­
mais nosso” (pág. 278) ; ou então naquela inefável compilação
ra ; não está na gente fazer folclore e ser dogmaticamente bra­
do fichário de Medeiros e Albuquerque que censurava um
poeta nacionalista por cantar o amendoim “ frutinha estran­ sileiro : está, mas no instintivismo que a fase atual da literatura
geira, talvez originária da Síria” . indígena manifesta, e é ruim sintoma. Se é certo que esse
instintivismo coincide em grande parte com o movimento uni­
Outros defeitos da crítica literária de Tristão de Ataíde versal das artes (Tristão de Ataíde a horas tantas equipara e
são a quase dolorosa incompreensão poética.; a conversão sis­ confunde o nosso primarismo atual e o do u n iverso. . . ) , essa
temática de todos os nossos valores individuais e movimentos coincidência me parece meramente exterior. Num Proust,
a fenômenos de mera im portação; e, o que é pior, a sujeição num Joyce, num Picasso, num Strawinsky (estes dois sintomà-
das opiniões artísticas dele à cour d ’amour européia. ticamente perdulários e viracasacas.. .) , em Carlito, no Surréa-
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lisme, em Mussolini (1 ), esse instintivismo universal representa A principal preocupação que a gente constata nestes E s­
ainda uma continuidade culta, reacionária (instintivismo por tudos novos é verificar afirmativamente a catolicidade da gen­
assim dizer org a n iza d o.. . ) , da exasperação racionalista do Oi- te brasileira. Inda numa crônica de 29 de março passado,
tocentos. Entre nós o instintivismo é outro, é ignaro e contra­ d ’0 Jornal, Tristão de Ataíde voltava à afirmativa. Esse
d itório: não representa nenhuma cultura nem nenhuma incul- assunto se desenvolve especialmente no capítulo V e no im por­
tura propriamente d ita : é apenas uma coisa informe, hedionda, tante CapítuloXXI. A todo momento no volume o pensador
dessocializante, ignara, ignara. É o instintivismo bêbedo e católico volta à idéia utilitária que o preocupa. Se reconhece
contraditório dum povo que já se lembra só fracamente do “ o agnosticismo radical ( . . . ) de quase todas as nossas inteli­
importante Diabo e inda poetiza popularmente sobre as sereias gências” (pág. 107) ; se verifica “ na mentalidade das novas
e C u p id o ; é o instintivismo que se deixa abater por 30 anos de gerações uma tal cegueira agnóstica” (pág. 37) ; se vê no bra­
miséria p olítica; cria de sopetão o entusiasmo revolucionário sileiro um “ povo de indiferenças alarmantes ( . . . ) , sem religião
de 1930, sem razão objetiva pro p o v o ; e depois dessa unanimi­ nos m oços” (pág. 321) ; se pra ele a situação em que nos
dade que se acreditara nacional, rompe num rush de cavação, encontramos é laicismo do Estado, barbarismo dos diletantes e
de novo empregadismo-público m amífero da espécie mais para­ santismo das classes mais espiritualmente abandonadas, “ para
sitaria, pedindo paga pessoal do sacrifício coletivo; e cria mais dar força ao tremendo indiferentismo integral ( sic) que corrói
essa macaqueação indecente do “ batismo de sangue” pela qual todas as nossas forças vitais, tanto econômicas como religiosas”
agora mandam os espadas-de-ouro, só porque mandaram a sol- (pág. 278) : por outro lado afirma que “ um dos fatores p ri­
dadesca. . . ensanguentar-se nas avexadas Itararés. E isso mordiais da nossa unidade foi justamente a F é ” (pág. 248) ;
entende que “ foi ele (o fator religioso) que nos deu uma alma
enquanto, como jamais, deslustra as conciências, não a necessi­
comum, uma tradição comum e a possibilidade de sempre (sic)
dade econômica, não a realidade geográfica do separatismo,
porém a queixa, o despeito, a irritação, o sentimento de separa­ fun dir os elementos disparatados que nos form aram ” (pág.
tismo. Tudo isso é que as nossas artes desmandibuladamente 2 4 8 ); indica que “ o laicismo absoluto das camadas superiores
( . . . ) não conseguiu ainda arrancar as virtudes e a Fé tradi­
instintivistas de agora representam. Frutos azedos, embora
cional das camadas inferiores, dessas que constituem propria­
muitas vezes admiravelmente líricos, duma contradição nem
mente o corpo da nacionalidade” (pág. 249) ; fala na “ parti­
mesmo sistemática, duma desorganização nem mesmo bárbara.
cipação real, profunda, ardente da Fé que form ou esse povo
Frutos do nada que somos como entidade. Frutos do mais
(brasileiro), que abriu a sua alma, que alimentou o seu ideal e
amargo nada humano. Se com preende pois a anomalia que
até hoje o penetra em toda a sua vida, sob todas as formas
eu indicava entre a literatura nossa e a crítica sectária e incon-
(sic), das mais puras às mais degeneradas” (pág 250).
testavelmente pragmática de Tristão de Ataíde. É que quanto
mais as artes estão verdadeiras, mais o crítico tem que as cen­ Reconheço que há certa perversidade em ajuntar assim
surar, porque representativas daquilo que é a expressão mais textos jornalísticos que tantas vezes, embora refletidos, depen­
nítida da realidade nacional! dem dum bom jantar ou dum quase desastre de automóvel
aguentado na esquina. Seria perversidade, se tivesse da mi­
P or tudo isso se compreenderá o drama interior do crítico,
nha parte & intenção de provar que o crítico se contradiz. Ora
drama que o leva cada vez mais a abandonar o estudo das obras
não vejo propriamente contradição nessas afirmativas apaixo­
literárias em favor da discussão das idéias gerais. Perdemos
nadas, quero apenas provar o quantò o problema da nossa cato­
um excelente crítico literário, apesar dos defeitos, excelente;
licidade persegue Tristão de Ataíde. Essa preocupação o leva
ganhamos um pensador católico. Que estamos de parabém é a
no entanto a algumas afirmações inválidas, e principalblente
minha opinião.
a um tal ou qual confusionismo entre religiosidade e báto-
licidade.
(1) Lembro Mussolini porque a tirania ditatorial é o processo mais
instintivo de governo, diretamente provindo dos primitivos reis-deuses, e A firm ação inválida me parece, p. ex., aquela que aludindo
dos reis representantes de divindades. aos versos pra Nossa Senhora, dum poeta sem fé, Augusto Me-
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yer (e poderia ter lembrado com muito mais razão, Manuel Ban­ essa coisa que ele (contraditor) também sente mas não vê,
deira . . . ) com enta: “ como que a mostrar quanto um sentimen­ que prova a falta de catolicidade da nossa gente. Argum ento
to religioso espontâneo lutava contra o seu cepticismo precoce” , de mil gumes.
do poeta (pág. 272). Ora isso me parece um carinho exagera- O problema da catolicidade brasileira é dos mais delicados
damente sectário. O problema religioso não apenas foi posto da entidade nacional e, p or mim, jamais cheguei a uma verdade
em moda na literatura de depois da Guerra (e era pois aqui nítida. Confesso que não consigo verificar bem na gente bra­
um caso de Tristão de Ataíde reverter o fenômeno individualis­ sileira um catolicismo essencial, digno do nome de religião.
ta do poeta a uma importação européia, como costuma fa ­ Principalmente como fenômeno social. D igo isso com tristeza
zer . . . ) , como se tornou moda toda especial do modernismo porque me parece mais outra miséria nossa, porém o que tenho
brasileiro. A té pintores, como Tarsila do Amaral, e escultores percebido em nós é uma tradição ou costume católico, vindo
como Brecheret (mas o caso deste não é nacionalista), não de fora pra dentro; na infinita maioria dos eruditos e semi-
escaparam dessa temática em voga. Preocupados especialmen­ -eruditos, muito deturpado pelo carinho sentimental às memó­
te em dar analiticamente as tendências que regiam com mais rias de infância e tradição. Nada ou quase nada essencial.
efusão a alma brasileira, os nossos artistas modernos logo sa­ P o r meio desse costume que tem quatro séculos de raizes, era
lientaram, especificaram e desenvolveram a religiosidade na­ natural que existisse em nós uma espontaneidade católica.
E la existe. Mas reage a infinita maioria das vezes como fe ­
cional. Porém não apenas essa religiosidade quando orien­
nômeno individualista (2 ) : não funde mais a gente em m o­
tada pela tradição cristã, como ainda pelo feiticismo africano
vimentos de ataque ou de defesa coletiva.
e pela superstição, que tanto irritam o pensador católico.
Se o jeito de expressar o assunto mudou pela maneira derra­ N o entanto nós sabemos como são furiosos aqui os m ovi­
mada e mais exteriormente brasileira com que atualmente so­ mentos criados pelo “ santismo” popular, pelos Antonio Con­
mos artistas, nem por isso a Nossa Senhora de Augusto Meyer, selheiros, pelos João A ntonio dos Santos, o criador da religião
a Macumba• de Graça A ranha, a Santa Teresinha de Manuel ( ? ) da Pedra Bonita. E o nosso padrinho padre C íc e r o ...
Bandeira, a Cabra Cabriola de Ascenso Ferreira, a Cuca ou Mas a própria superstição católica persevera em nós com
o Coração de Jesus de Tarsila do Amaral, deixam de ser tão bastante precariedade. É precária em nosso povo a conversão
temáticos como faunos e Pan pros parnasianos, Cupido e Ve- das crêndices confortadoras das indecisões quotidianas a uma
nus pros árcades. ordem católica de abusos. Essa conversão existe porem, abun­
Outra vez em que a afirmação do crítico me parece inváli­ dante, na idolatria de santos inventados. F icou célebre, não
da é quando afirma que a religião católica “ foi sempre, em apenas aqui no Estado, aquela briga de família que deu pra
nossa história, um princípio de ação e de reação” (pág. 275) A raraquara um apelido triste. Não importa saber do caso
e, depois de enumerar algumas provas reais disso, insuficientes todo, basta aqui lembrar que os dois Britos sergipanos, sacri­
pra justificar o “ sempre” entusiasmado, conclue: “ E se (os de- ficados à sêde dos seus inimigos mineiros, tiveram sepultura
turpadores da nossa H istória) não olham para o exterior, no novo cemitério regular da cidade, bem afastado, da cidade.
Apesar da lonjura e de tudo isso, fazem 34 anos, a sepultura
que fará com o que não está visível aos olhos do corp o! Com
dos Britos continua visitadíssima por todos, e na certa que
o que se sente mas não se vê. Com o que se sente mas não se
p or enorme maioria que nem conheceu os dois desinfelizes.
define (sic.). Com o que se sente e não se pode provar por
Esse cemitério até os de Araraquara conhecem por “ cemitério
estatísticas, pois transcende a toda estatística, e é mais leve que
todo peso, mais sutil que todo número, maior que toda m edida” dos B ritos” . A religiosidade trabalhou. Se conta que os
(pág. 278). Ora não é possível o pensador católico encontrar dois corpos esfaqueados continuam intactos no cemitério.
maneira mais rápida de invalidar o que vinha provando, do (2) É engraçadíssimo a gente reparar como, nas proximidades da
que citar em abono próprio essa coisa que ele é que sente e Semana Santa, em principal depois dela passar, aumenta o número de pes­
considera indefinível. E portanto não pode servir de prova. soas tirando chapéu, diante das igrejas. Depois a cumprimentação vai di­
Porque o contraditor dirá que é justamente esse indefinível. minuindo, diminuindo, fica reduzidíssima por novembro e dezembro.
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Outros falam que os ossos foram roubados. O certo é que e sólido equilíbrio, distante, p or cérto, da indiferença e mais
vsita n d o o cemitério dos Britos, a gente encontra a sepultura distante ainda do fanatism o” .
deles sempre cheia de velas e um rio m orto de cera no chão. O Diabo que é duma necessidade popular primordial, a
Mas não são ofertas a Deus pra que outorgue piedade às duas não ser na frase-feita das exclamações, tem vida pouca no
almas; são velas, crenças e ânsias ofertas aos Britos, sabei-me país. Nas Macumbas o identificaram com Exú, em que ele
lá em que embrulhadas de jerarquias celestiais, pra se con­ perdeu finalidade e função. Porém mesmo essa identificação
seguir, ou pagar, tal desejo, tal recuperação de saúde, etc. São parece tão falsa como a dos primeiros jesuítas e viajantes
promessas feitas aos Britos, que agem numa zona vasta como quando descobriam Jeová em Tupã e o Diabo nos daimônios
santos. Pra não dizer como deuses. Também contam que no da m itologia ameríndia. De Pernambuco, me interpretam
Paraná tem um túmulo que chora água curativa. E entre E xú como “ espírito escravo dos outros” espíritos. Nos Ca­
santos vivos do Brasil, alem da famosa Santa mineira de Co­ timbós nordestinos não achei o Diabo, pois não tem Mestre
catimboseiro que se identifique com ele. Também nas Page-
queiros, tem mais dois em Pernambuco, um padre Serra e uma
lanças da Amazônia, que após o hiato catimboseiro do Nordeste,
Santa Isabel do A lto do Céu. E a estigmatizada de Campinas.
renovam a tradição africana das Macumbas de R io-Baía e
Mas se esse abuso de supertição é hereditariamente de ordem
talvez do V odú antilhano, não sei que tenha Mestre, espírito
católica, por outro lado é sintomático que as bruxas, supersti­ mau ou coisa que o valha, identificável com o Diabo. P or
ção católica, não tivessem vitalidade nenhuma na tradição na­ Norte e Nordeste porém, mais que do Centro pro Sul, perma­
cional. Em Portugal, que nos deu a parte máxima do nosso fo l­ nece a Oração da Cabra Preta, em que se percebe, se não o
clore, a tradição da bruxa permanece viva. Luiz Pina, em 1929, enxofre pelo menos o pé do Pé-de-Cabra. E na tradição dos
inda publicava um livro lá sobre B ruxas e Medicina. No cantadores de. lá continua vivíssima a universal tradição da
último número da R evista Lusitana (v. X X V I I I , pág. 252) luta musical com o Cão. P or todo o resto do país o Diabo
se prova a sobrevivência dos sabás em Portugal. No Brasil, se tornou, quanto a crendice quotidiana, uma abusão desne­
onde se generalizaram as cruzes de estrada celebrando assas­ cessária, ao passo que muito menos étnica e tradicionalmente
sinados, não medraram nada as cruzes de encruzilhada que justificáveis, inda vivem de vida saborosa os sacis, os coru-
em Portugal “ encontram-se por toda a parte ( . . . ) a santifi­ piras, os Negrinhos do pastoreio, os tutús, as cucas — estas
car o lugar que é ponto de reunião das bruxas e do dem ônio” . últimas, resto pobre da bruxaria européia. Sem me dar ao
A liás o próprio costume de rezar nas cruzes de estrada, se trabalho de pesquisa grande, embora reconhecendo que no
inda persiste no Nordeste, já vai fraco e irregular. Em certas Brasil também tem muito jeito de nomear o Diabo, muito
regiões de São Paulo quase não existe mais. provérbio em que ele entra, pegando num só artigo desse
mesmo vol. da Rev. Lusitana, eis o que encontro em Portugal,
No extremo sul não é menos patente, ou talvez seja ainda só na regiãozinha de T u rq u e l: Disfarces vocabulares do D ia b o :
mais que no centro e no norte, essa religiosidade superficial. Diaço, Diago, Dialho, Diango, Dianho (g rifo o que sei perma­
Saint-Hilaire afirma serem os gaúchos “ mais ou menos estra­ necer no B rasil), Diatras, Diogo, Nabo, o das unhas grandes.
nhos a sentimentos religiosos” , observação que João Pinto da Faisca-velha (mãe do D iabo). Exclam ações: C ’os diabos!;
Silva comenta e confirm a desta m aneira: “ Não é lícito deixar C ’os diabos de C astela!; Com 10 (30, um cento de, 300, 600,
de reconhecer, por exemplo, a exatidão do seu conceito (de 1.000, 1.000.000) de diabos! (e lembrar que nos Volcoens de
Saint-H ilaire) relativo à fragilidade do espírito religioso, entre Lama o Robertò Rodrigues jura “ com dez milheiros de dia­
nós. Não há, pelo menos, na história rio-grandense ato ou bos ! . . . ) ; Os diabos se queim em !; Os diabos se p ercam !;
episódio que autorize outra conclusão. Se não existem provas Diabos o lev em !; Cara do D ia b o !; Cara de B arzab ú !; o raio
de completa indiferença, não se encontram tão pouco, ardentes do D ia b o !; o alma do D ia b o !; Raça do D ia b o !; Vai para o
afirmações de fé, demonstrações enérgicas de crença. E m ma­ in fe r n o !; V ai para o meio do in fe rn o !; Vai para cs quintos
téria religiosa, o que sempre se observou, aqui, fo i um belo do inferno!,- Vai para a casa do D ia b o !; Vai para o Diabo
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que te le v e !; Vai para o Diabo que te ca rregu e!; Oh homem nação facílima. Este escrito não saiu no 2." número da R e­
de Deus ou do D iabo! (falamos só “ oh homem de D e u s " ) ; vista Nova como devia, o que me permite lembrar ao leitor o
V iram o Diabo em gu edelh a!; V iram o Diabo azul; H ouve estudo dos Drs. Leonídio Ribeiro e M urilo de Campos, lá pu ­
o D iabo a q u a tro !; Diz,,o que o Diabo não lem b rou !; Deu blicado, sobre a violência com qué o Espiritismo grassa em
volta no in fe rn o ! Ditos sentenciosos: Abóbora e nabo nosso povo. Também o Dr. Osório Cesar, médico e escritor
enganou o D iab o; Quem com o Diabo cava a vinha, com o paulista, possue estudos a esse respeito. Numa viagem recente
D iabo a vin d im a ; Para um coxo, um calvo e para um calvo que fiz pelo interior paulista, apalpei o verdadeiro foco es-
o D iab o; O Diabo nunca foge para a ig re ja ; O Diabo tem piritista de Matão, cidadinha próspera. Se falava então de
uma manta e um chocalho; Mais tem Deus para dar que o horrores de moças convertidas em médiuns, urrando na escure-
Diabo para levar; O Diabo não é tão feio como o p in tam ; za das fazendas de-noite. E o padre tem luta brava pra con­
P or que sabe o Diabo tanto ? porque é v e lh o ; Quem o seu não seguir um bocado de cgtolismo na zona. Quanto ao Protes­
vê, o Diabo lho leva; Na vinha do Diabo não fica rabisco; tantismo creio que não careço lembrar opinião de ninguém.
Melhor é um com Deus que dois com o D iab o; Os demônios Mas lembro ainda um caso de viagem : Quando estive em
são muitos e a águS-benta é pouca. Está claro que podia Porto V elho pra conhecer a Madeira-Mamoré, notei na cida­
com pendiar também o que sei sobre o Diabo no Brasil, p rinci­ de importante e nova umas verdadeiras ruinas, paredões des­
palmente os eufemismos pra nomeá-lo que são muitos, mas
cobertos e imponentes. ’ Me falaram que era a única igreja
além de quase tudo nos vir de alem-mar, este exemplo duma
católica da cidade. Não foi fossível acabar, estava aban­
só região pequena de Portugal pequenino aturde pelo número,
donada porque a religião local era a protestante. Só mais
mostrando uma preocupação do Diabo de que positivamente o
tarde a recomeçaram. Se a Fé católica ajudou muito os m o­
brasileiro está livre. Displicentemente pego nos Proverbs and
vimentos da Colônia contra os calvinistas de Holanda e França,
Maxims, de Rayner, e conto sem cismar 59 provérbios sobre o
são raríssimos dum século pra cá os, não digo movimentos, mas
D iabo! Se vê como estamos longe do Diabo por toda esta
apenas casos, casos pansudos de revolta contra os nova-seitas,
documentação a ju n ta d a .. . enquanto o Diabo esfrega um olho.
que nem o engraçado da cidade pernambucana de Palmares
Mas é ainda na própria aplicação supersticiosa dos santos, (3 ). Casos, aliás, sem a mínima, perseverança, sem a mínima
das datas religiosas e das lendas sagradas que a catolicidade
essencialidade de fé ,. facilmente explicáveis pelo provérbio do
brasileira se mostra precária. Os nossos santuários são valha-
boi novo que posto em malhada velha até das vacas apanha.
coutos de desabusados e de abusos quando chega o tempo da Uma recordação de infância me conta que de-noite vários
festança. A simpática invocação de N. S. do Brasil não pegou,
colegas do Ginásio de N. S. do Carmo nos reuníamos pra
que era de religiosidade bem nacionalizadora, era de cultura
fum ar de escondido, beber cerveja e outros então crimes dos
própria e nenhuma importação. Pelo contrário, Santa Te-
14 anos. Entre estes primava o de atirar pedra nas vidraças
resinha, importada em g ra n d e ' parte pelos padres estranhos
dum colégio diz-que protestante que havia numa esquina do
que vivem aqui, se tornou dum abuso sentimental excessiva­
então inculto largo da República. H oje que posso me analisar
mente urbano e assanhado. O que prova a exterioridade da
melhor, sei que não era o zelo religioso de que nos imagináva­
importação. Sem querer ferir o sentimento de ninguém, é
incontestável que importações sacras assim, ou como o São mos possuídos que nos levava a atirar pedra, e sim o zelo das
Cristovão dos automóveis, são enormemente similares às mas­ pedradas que nos tornava católicos e cruzados.
cotes importadas do bricabraque europeu. E é incontestável que o primeiro do ano e o tríduo carna­
Nas classes incultas, em que não existe a vaidade, ou valesco teem significação brasileira pelo menos tão importante
o orgulho, ou se quiserem o preconceito das tradições cultas,
que faz a burguesia se dizer católica p or “ fam ília e história” (3 ) No Nordeste chamam ao protestante de “ nova-seita” . O primeiro
nova-seita que apareceu em Palmares, foi um norte-americano chamado
o Protestantismo e o Espiritismo, apesar do combate dos p a­ Anderlight. Realizou com a família um batismo público no rio Una. A
dres, encontraram uma complacência extraordinária e dissemi- população tôda foi vêr, vaiou e jogou lama nos tais.
18 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 19

pro povo como a Noite de Festa (N atal), ou a Semana Santa. No romanceiro nacional, especialmente no dessa zona prod i­
Não é bom falar do São João em que, quando a festa não é giosa de lirismo literário-musical que do Nordeste litorâneo
exclusivamente profana, o santo aparece enormemente pagani- entra sertões a dentro pelo caminho do São Francisco, especial­
zado à contaminação de mitos vegetais, como nos veio da mente no romanceiro nordestino, o padre é sistematicamente
Europa. O Carnaval, como costumes, é uma das criações mais ridicularizado, embora freqüentes as manifestações de catoli­
livres, mais nossas, mais originais do Brasil, apesar de im­ cidade ( 5 ) . Nos Violeiros do N orte (pág. 151), Leonardo Mota
portado. Nele nasceu e evolue a dansa nacional urbana por afirm a que o povo é sinceramente religioso, que o padre é res­
excelência. O espaço de Natal a Reis que inda tem uma verda­ peitado e que “ faria um rol reduzidíssimo quem se propusesse
deira significação popular no Nordeste, se caracteriza pelos a catalogar as irreverências religiosas contidas na poesia do
espetáculos das dansas dramáticas, em que o naco de catoli­ p ovo” . Outro observador do nosso nortista, José de Carvalho,
cidade, subsistente dos autos jesuíticos talvez, é pura super- em O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, afirma que as
íectação antiquada, sem significação nenhuma. E quanto às cantigas paraenses em louvor de certos santos “ nada teem
rezas tradicionais de oratórios particulares ou improvisados, de de religiosas ou litúrgicas” . E se maldar do padre, caçoar
famílias reunindo a redondeza com o chamariz do samba que dele, é irreverência religiosa, não posso concordar com Leonar­
as term ina: pelo chamariz se identificam com os mutirões, sem do Mota. O povo respeita no geral o padre, como respeita
ter a significação social nem mesmo ritual destes. qualquer “ seu d otô” , mas se desforra na poesia do respeito
E desleixadamente desabusado pra não dizer incrédulo, o místico que tem pelos que lidam com incenso, com papelada ou
nosso povo tradicionaliza coisas que jam ais uma catolicidade drogas, que são formas de feitiçaria. Quem quer tenha fr e ­
intrínseca não permitiria existissem. No meu Ensaio sobre qüentado o romanceiro nordestino de cordel, há-de concordar
Música Brasileira, registei uma roda infantil nossa, incrivel comigo.
pela falta de ingenuidade, rindo do padre e seus namoros (4 ). Mas essa caçoada ao padre também já é portuguesa. . .
Em Portugal como na Espanha, Leite de Vasconcelos ( Ensaios
(4) Falo da roda do Padre Francisco, colhida em Cananéia. O texto
não passa duma deformação, sem a significação primitiva, adquirida outra
E tnográficos, Lisboa, 1906, v. III, págs. 41 e 60) afirm a qué
mais bandalha. daquele passo de certas versões do Conde Claros em que “ o bom senso ( sic), popular não é nada favorável à igreja ” e
o conde, enganado em frade, vai confessar a infanta prestes a caminhar que “ sendo o nosso povo (português) nimiamente católico, fa ­
prà forca. nático p or vezes até, satiriza sempre que pode, nas suas poe­
No meio da confissão êle pede beijos e abraços, ao que a infanta se sias, o padre, os santos e a igreja ” . Sinto um certo exagero
enqu^sila tôda e responde que boca beijada pelo conde Claros só por êle
nisso. O padre, sim, esse é satirizado 80% das vezes. E é
será beijada. Então o conde se dá a conhecer e salva a moça. Numa
versão ribatejana diz o frade-conde: curioso lembrar que Casemiro de A breu nas estâncias a Faus-
— Venha cá, minha menina, tino X av ier de Novais não deixa de citar os “ frades dos
Que a quero confessar; conventos” entre os “ bons tipos” que o satírico português
No primeiro Mandamento
deverá zurzir. O versejador do Eva/ngélho das Selvas, poueo
Um beijinho me há-de-dar.
menos que sacrista, só fala de padre e frade pra ca çoa r: A rq u é­
A origem do nosso texto é essa. Parece ainda que teve contaminação
com outras fontes portuguesas, como a oração “ Meu Padre S. Francisco” tipo, Velha Canção, Iíamvondcórdio. Acha, descrevendo A
(Firmino Marques: Folclore do Conselho de Vinhais, 1928, pág. 6 5 ), em Cidade, que “ canta na catedral a hipocrisia” . Mas a maneira
que se fala de confessar os pecados e “ dar graça” nesta vida, oração à depreciativa de tratar o padre brilha na “ história brasileira” ,
que está ligada (1.° cap. cit.) a anedota sacra duma moça velha (é o caso
A ntonico e Corá, nosso melhor conto libertino em verso. Só
da nossa rod a ), que aos 30 anos vai se confessar pela primeira vêz. E
ainda com a significação de namoro padresco é imprecindível lembrar, como que eu não devia entrar na documentação dos intelectuais, cu jo
justificativa tradicional da nossa roda, aquela peça, musicalmente ame-icana, agnosticismo o próprio Tristão de Ataíde recon h ece...
textualmente bem portuga, impressa por João do Rio nos Fados e Canções de
Portugal sob o título Frei Paulino. A contaminação me parece provável.
Mas o significativo é a conversão dum romance puro português, e possivel­ (5) Note-se que no romanceiro paulistano o padre é completamente
mente de peças brejeiras para adultos, numa roda infantil n ossa ... ignorado.
20 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 21

Bem curioso, aliás, o conceito que o povo tem do padre. católica, também conservam o seu culto e ritos tapúios. Vivem
Este não é propriamente o ministro de Deus. Perda a função com duas religiões, o que não é pouca ambição. A o mesmo
de intermediário, em vez, age diretamente sobre os poderes tempo que o padre os batiza e casa, também o Vaiangá, pagé
invisíveis benéficos ou malignos, por meio dos gestos, das pala­ deles, faz o mesmo. Cultuam a Deus como a Mebapáme que
vras rituais e da prepàração mística anterior ào ofício de padre. é o sol. Isso é curioso de aproxim ar daquela observação de
É oi caraiba, o piaga, o pagé, o medicine-mam — é exatissima- A m brosetti ( Supersticiones y Leyendas, Buenos Aires, 1917,
mente o feiticeiro das religiões chamadas “ naturais” . Inda pág. 145) que el elem ento indio de la población dei valle Cal-
prova disso é a intriga do padre milagreiro, mais eficaz que os chaquí puede decirse que no tiene f é religiosa, en el sentidoi
seus êmulos, e ao qual o povo todo recorre. Não tem com uni­ verdadero de la palabra. E s puntual en la. observación de las
dade que não possua o seu frade, a sua freira especialista nessa fiestas y cerimonias religiosas, como también lo- es cuanáo se
coisa tão fácil do povo interpretar como milagre, pela aplica­ trata de hacer ofrendas, de invocar a la Pacha M am a; de modo
ção do princípio determinista da magia. Porém não creio que que en el la religión cristiana no ha hecho más que aumentar
esta seja tendência específica nossa, pois que contra ela já el número de sus supersticiones, sin diminuirle las muchas que
Dão Francisco Manuel punha em guarda o seu noivo, na Carta ya tenict cuando los espanoles entraron en esa región. A p r o ­
de Guia' de Casados. Mas é bem especialmente nossa, por ximo tais passos do meu assunto porque me parece quase esse
causa dos ritos brasis e africanos de feitiçaria mágica, perma­ o estado religioso atual do povo, disso que “ constitue propria­
necidos com tanta vitalidade em nossos meios mais civilizados. mente o corpo da nacionalidade” pra me servir das próprias
Nos Fandangos, a capelão de bordo do “ anau” Catarineta palavras de Tristão de A taíd e: uma superstição desbragada.
faz o mesmo papel cômico dos diabos e personagens ruins dos Schlichthorst( Rú) de Janeiro w ie es ist, pág. 6 5), se referindo
Milagres, Farsas, e Diableries medievais. Ouvi num Bumba ao femeeiro amante da Marquesa de Santos, diz que era voz
meu B oi cantarem um bendito de esmolar, pedindo dinheiro geral que dona Dom itila tinha enfeitiçado o imperador. E
aos assistentes pra dizer missa. Noutro Bumba rural da zona que se uma.superstição destas podia parecer ridícula a europeu,
potiguar dos engenhos, o Mateus, macaqueando o padre, fez não o era aqui onde os processos sobrenaturais e simpatias
com aplauso e enorme riso de todos um sermão blasfemo que estavam universalmente espalhados. A enormidade da nossa
levaria qualquer fé tessencial à revolta. Na Amazônia, pleno superstição, o uso e abuso quotidiano dos seus processos, a
mato, na dansa dramática da “ Ciranda” , como eles chama­ violência incontestável da magia branca e negra de prove-
vam, vi macaquear confissão e comunhão, em que o padre f i ­ niência ameríndia e africana, o uso das sibilas de todas as
gurado, entre muitas graças da mesma qualidade, falava vestimentas, provam a falta de catolicismo verdadeiro tanto na
fornecer por hóstia aos comungantes um pedaço de pirarucú. burguesia, como na massa popular. É contrapor a isso as
Enfim , muito embora ache pueril tirar destes exemplos opiniões de Paul Foerster e Menendez y Pelayo sobre a E spa­
extraídos dos nossos costumes sociais populares, qualquer afir­ nha eminentemente católica (V e r Ludw ig P fa n d l: Spanische
mação definitiva de falta de fé, mesmo católica, o que me K u ltu r und Sitte, Munique, 1924, pág. 101), ambos afirm ando
parece é que o Catolicismo, se existe generalizado no país que o Catolicismo im pediu na Espanha um desenvolvimento
como consolação individualista (não me atrevo a dizer como da superstição e da feitiçaria (mesmo de ordem cristã), tão
apoio de conciência. . . ) , não parece assumir entre nós os valo­ grande como a de outras terras européias.
res sociais duma religião.
Desde que o país se fez politicamente livre, jamais que o
Num trabalho recentemente publicado, de Carlos Estevão Catolicismo ligou os seres a ponto de constituir verdadeiramen­
de Oliveira ( Boletim do Museu, Nacional vol. IV , fase. 2 ), se te um movimento de opinião, igual pelo menos ao de A ntônio
conta que os A pinagé do norte de Goiaz, apesar dé vivendo Conselheiro ou do padre Cícero. H a ja vista o caso dos bispos.
há mais de cem anos sob a não sei se diga gestão religiosa Tristão de Ataíde, num artigo pro Jornal de 3 de maio passado,
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afirm ava que no dizer dum dos nossos historiadores a questão tão de A taíde fala na “ religiosidade vagamente teosófica” que
D. V ita l fora a causa principal da dissolução da monarquia irmana brasileiros e indianos (pág. 189), coincidência que
(cito de m em ória). H á um exagero tamanho nisso que dese­ também preocupava a Jackson de Figueiredo. E é ainda im ­
java saber se Tristão de Ataíde perfilha esse “ dizer dum dos portante notar que essa religiosidade nos vem não apenas da
nossos historiadores” . E se é certo que o caso tomou grande fonte luso-católica, com o talvez até mais dos sangues negro
vulto, antes: fez grande bulha, não é menos certo que não p ro­ e ameríndio. Pelo menos parecem provar isso certos ritos
vocou “ no corpo da nacionalidade” nenhuma reação forte. festivos permanecidos espantosamente até agora, sem ju stifi­
A liás pra falar dum assunto que toca diretamente a psico­ cativa quase que se pode dizer nem de raça, como p. ex. as
logia popular, p refiro menos a História que as histórias. Es­ dansas dos Cabocolinhos nordestinos, impressionantemente con­
tas, quando refletidoras de qualquer movimento coletivo, são servando as coreografias rituais de caça e guerra dos brasis,
mais expressivas. Principalmente porque as datas de História faz tanto inexistentes na região; os Maracatús que pelo Car­
se fabricam por meio de representantes do povo que entre nós naval vão ainda dansar na frente das igreja s; os Congados
o que menos teem sido é representativos da gente. A não ser da zona caipira, que inda conservam contacto vivo com as fes­
na desorganização moral. O próprio Tristão de Ataíde con­ tas católicas. E os movimentos numerosos das religiões, das
cordará com isso, pois reconhece (pág. 249) que “ cada dia é caraimonhagas e dos santões rurais.
maior a cisão entre as classes governantes e as classe go­
vernadas” . Mesmo sem aceitar a excessiva generalização de Freud e
seus discípulos, todos estes fenômenos expressivos ao mesmo
Assim o trágico é que a nossa catolicidade n ã o . . . deturpa
tempo da religiosidade e da sensualidade brasileiras, fenômenos
em nada a maneira de ser do brasileiro. Não diminue em nada
quando não diretamente provindos, sempre parentes dos tão
o egotismo, não coibe a descaracterização moral, não socializa,
eróticos ritos religiosos criados pela mentalidade p rim itiv a :
não nacionaliza, não funde, não cria uma unanimidade. Tris­
todos estes fenômenos da nossa religiosidade são eminentemen­
tão de A taíde não s e kesquece de salientar aquela verificação
te contraditórios não só da elevação filosófica católica como
feita p or Alcântara Machado, de que os bandeirantes paulistas
do Catolicismo tout court. Nos ritos criados pelos santões,
eram intimamente católicos. Mas a gente não percebe no que
especialmente no caso medonho da Pedra B o n ita ; nos horrores
essa catolicidade de boca lhes conformasse de alguma form a
denunciados pelos profetões, como o do caso mineiro de C ubas;
o caráter e os gestos. E os fracassos das tentativas de form a­
ção de partidos políticos católicos é outra prova inda mais nas defesas expiatórias como a dos guerreiros de Canudos; e
forte do que afirm o. E não se pode esquecer aquele reparo ainda nas superstições mais ou menos escatológicas como a do
fin o de Lima Barreto nos Bruzundangas (pág. 147) de ser boiato zebú do padre Cícero ou da estuprada menina Julieta,
admirável que um país dito católico não produza seus'padres hoje adorada por santa e martir nas vizinhanças de Sorocaba,
e tenha nos seus conventos quase exclusivamente freires e é impossível não discernir um erotismo exasperado. Erotismo
freiras da estranja. Atualmente é quase heróico o esforço dos tão típico e mais característico que o dos negros que vão nas
bispos pra desenvolver entre nós a vocação sa ce rd o ta l... festas religiosas de agôsto, em Pirapora, munidos de capotes
enormes dentro dos quais abotoam também as negras com que
O indivíduo brasileiro é católico ? . . . A inda isso me
parece duvidoso. E lembro agora o confusionismo em que sambam. Aqueles fenôm enos são a religiosidade criadora do
paira Tristão de A taíde que, pra afirm ar essa catolicidade, pavor, da angústia, do sofrimento, em que, mesmo desprezado
tanto fala em Catolicismo, como mais genericamente em reli­ o elemento importantíssimo de derivativo sexual das cantorias
gião. Que como generalidade marcante se reconheça na psico­ e especialmente das coreografias solistas de ginástica exaustiva,
logia do brasileiro a tendência religiosa, estou perfeitamente subsiste nítido o desejo de auto-punição, que tenho por uma
de acordo. É ainda e^se um lado em que, como psicologia, das observações mais finas da psicanálise. Nosso clima, nossa
coincidimos com os russos e com os indianos. O próprio Tris- alimentação, nossa preguiça, nosso sistema de vida e trabalho
24 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 25

rural, nossas dificuldades de comunicação, predispõem a uma de fobias, ou nos momentos de grande atrapalhação. Tristão
atividade sexual evidentemente em contradição com o depau­ de A taíde lembra liricamente a horas tantas as capelinhas que
peramento físico do nosso homem; corroido de doenças, des­ consagram a Nossa Senhora a morraria do B r a s il.. . É ver­
provido de higiene, defraudado por uma alimentação engana­ dade. Melancòlicamente, é possível responder a essa poesia
dora. Essa atividade, de que são prova as escadinhas de com outra poesia, e falar que as capelinhas estão nos morros
“ fam ílias” de cada par rural, provocava naturalmente uma pra que fiquem bem visíveis, porque ninguém não iria buscá-las
nevrose e exigia um derivativo. A nossa religiosidade macum- se escondidas nas noruegas do vale. A nossa catolicidade me pa­
beira, catimboseira, os santÕes e seus ritos, os profetões e seus rece exterior, inatingível, inativa e absurda, sem nenhuma ou
clamores, certas dansas dramáticas como os Cabocolinhos, os
quase nenhuma relação mais com a nossa vida terrestre, sem
Maracatús, os Pastoris; as coreografias propriamente ditas que
nenhuma influência em nossa atitude individual e social dian­
nem a dansa de São Gonçalo e os Congados afrocaipiras eram
te da vida. Catolicidade duma gente de que Jackson de F i­
isso: excitantes uns, derivativos outros. E principalmente
gueiredo denunciava o conform ismo, a tendência pros com pro­
manifestações ciliciais, o masoquismo disfarçado das autopu-
missos faceis, o individualism o vagamente espiritualista; cato­
nições. E, por grosseiros, mais acessíveis ao nosso povo tão
prim ário que a elevadíssima religião católica. A religiosidade licidade dum povo que tem p or sexo a paciência; catolicidade
se desenvolveu. A catolicidade se corroeu por dentro, ficou dum povo de que Tristão de A taíde indigita o primarismo
apenas uma casquinha epidérmica. E n fim : é fácil perceber (pág. 3 0), o instintivismo (pág. 4 4 ), e uma mocidade “ que se
na grande religiosidade do povo brasileiro, mesmo quando ela deixa levar pela vid a ” (pág. 4 3). O nosso católico é idêntico
se manifesta pelo credo e ritual católico, os processos, os carac­ aquele néscio de que fala Gregório de M a tos:
teres, as leis psicológicas e sociais que form am as religiões
naturais. Porem, leis, processos, caracteres não tendo, como
Que não elege o bom, nem mau. reprova
o Cristianismo, “ recebido de Deus a orientação e finalidade Por tudo passa deslumbrado e incerto
que por si, eles seriam incapazes de atin gir” , pra me expressar
conform e a concepção católica (H abert, em La Beligion des E o nosso catolicismo é um Catolicismo balão de oxigênio
P euples non civilisés do padre A . Bros, p. X I , ed. Lethielleu x).
e covarde, pra uso da bora da morte, com o aquele que tanto
Deismo e sexualismo serão talvez as fontes matrizes da reli­
temia Jean Barois. Some are atheists only in fa ir weather já
giosidade brasileira. A liás W etherell também, nas Stray
observa povo in g lê s .. . Se somos uma terra cheia de católicos,
N otes from Bahia, do meio do século passado, verificando várias
será d ifícil afirm ar que somos uma nação católica. Inda não
vezes a exterioridade do catolicismo nosso (v. pág. 18 e pág.
24) concluia (pág. 99) que os baianos eram apenas d e ista s... teremos de-certo atingido nem mesmo êsse gráu primário de ci­
vilização em que os clãs se organizam p or meio da re lig iã o! . . .
Todos êstes fenômenos e provas indicam religiosidade
muita em nosso povo, mas também a superficialidade em que Os Estudos de Tristão de Ataíde são um drama enorme.
nele permanece a F é católica. Seja p or má orientação dos Apaixonantes, irritantes, sectários, cultíssimos, nobilíssimos, se
padres; seja pelos nossos acidentes climáticos, fisiológicos, étni­ não representam porventura o mais característico da persona­
cos; seja ainda pelo nosso hinduismo místico que nos seus êxta­ lidade do grande pensador católico, representam melhormente
ses deliciosos nos seqüestra das preocupações e necessidades o seu martírio. E se é certo que já agora êle é das mais fortes
socias da te r ra : o mais visível é que a catolicidade brasileira se figuras de críticos que o país produziu, desconfio que os futuros
conserva em nós que nem um dêsses abrigos que o urbanismo não-sei-o-quê vivendo nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o
ergue no meio das ruas de circulação vasta. Não faz parte da espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente, apagar
rua nem da vida. Só presta episodicamente pra quem sofre o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão.
A P O E S IA E M 1930

(1931)

O ano de 1930 fica certamente assinalado na poesia bra­


sileira pelo aparecimento de quatro liv r o s : Algum a Poesia,
de Carlos Drummond de A n drade; Libertinagem , de Manuel
B an deira; Pássaro Cego, de Augusto Frederico Schmidt e
Poemas, de Murilo Mendes. Todos são poetas feitos, e embora
dois del-es só apareçam agora com seus primeiros volumes, desde
m uito que podiam ser poetas de livro. Mas quiseram escapar
dos desastres quase sempre fatais da juventude. Se fizeram
e fazem versos não é mais porque sejam moços, mas porque
são poetas.
Essa me parece uma das lições literárias do ano. Quatro
livros de poetas na força do homem. Acabaram as inconve­
niências da aurora. A poesia brasileira muito que tem sofrido
destas inconveniências, principalmente a contemporânea, em
que a licença de não m etrificar botou muita gente imaginando
que ninguém carece de ter ritm o mais e basta ajuntar frases
fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso-livre. Os moços
se aproveitaram dessa facilidade aparente, que de fato erá uma
dificuldade a mais, pois, desprovido o poema dos encantos
exteriores de metro e rima, ficava apenas. . . o talento. E
já espanta, um bocado dolorosamente, esse monturinho sapeca
de livros de moços, coisa inutil, rostos mais ou menos corados,
excessiva promessa, resum indo: bambochata que não resiste à
prim eira varredura do tempo.
Devia ser proibido por lei indivíduo menor de idade, quero
dizer, sem pelo menos 25 anos, publicar livro de versos. A
poesia é um grande mal humano. Ela só tem direito de existir
como fatalidade que é, mas esta fatalidade apenas se prova a
28 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 29

si mesma depois de passadas as inconveniências da aurora. cendo fisicamente um com o outro. Assim a rítmica dêle aca­
Os moços teem muitos caminhos por onde tornar eficazes as bou se parecendo com o físico de Manuel Bandeira. Raro uma
suas falsas atividades: conversém com o povo e o relatem, doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo,
descrevam festas de região bem detalhadamente, ou se inun­ em versos espetados, entradas bruscas, sentimento em lascas,
dem de artigos de louvor aos poetas adorados. Poesia não. gestos quebrados, nenhuma ondulação. A famosa cadência
oratória da frase dasapareceu. Nesse entido, Manuel B an­
Escrevam se quiserem, mas não se envolumem. O resultado
deira é o poeta mais civilizado do B rasil: não só pelo aban­
dessa envolumação precipitada das inconveniências da aurora,
dono total do enfeite gostoso, como por ser o m a is .. . tip o­
refletindo bem, foi desastrosa no movimento contemporâneo
gráfico de quantos, bons, possuímos. Quero dizer: se a
da nossa poesia. Uma desritmação boba, uma falta pavorosa
gente contar na Poesia a maneira dela se realizar, desde o
de contribuição pessoal, e sobretudo a conversão contumaz a grito inicial à poesia cantada, à manuscrita que se decora, à
pó de traque, da temática que os mais idosos estavam traba­ recitada com acompanhamento, à declamada, à poesia, enfim
lhando com fadiga, hesitações e muitos erros. concebida exclusivamente pra leitura de olhos m u d os: Manuel
Falei na desritmação dos versos dos m o ç o s .. . O que logo Bandeira é dentre os poetas vivos nossos o que precinde mais
salta aos olhos, nestes poetas de 1930, é a questão do ritmo do som. A poesia dele, na infinita maioria atual, é poesia pra
leitura. Se observe a aspereza rítima dum dos poemas mais
livre. Verso livre' é justamente aquisição de ritmos pessoais.
suaves do livro, como os versos são “ intrataveis” , incapazes de
Está claro que se saimos da impersonalização das métricas
se encaixar uns nos outros pra criar a entrosagem dum qual­
tradicionais, não é pra substituir um encanto socializador por
quer em balanço:
um vácuo individual. O verso livre é uma vitória do indivi­
dualismo. . . Beneficiem os ao menos dessa vitória. E é nisso
Quando eu tinha seis anos
que sobressaem as contribuições de Manuel Bandeira e Augusto Ganhei um porquinho da Índia
F rederico Schmidt. Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão.
Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia ( )
de Manuel Bandeira, pois que este livro confirm a a grandeza O meu porquinho da Índia foi a minha primeira namorada
dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o
livro mais indivíduo M anuel Bandeira de quantos o poeta já A inutilidade do som organizado em movimento é evidente.
publicou. A liás também nunca êle atingiu com tanta nitidez E citei o verso longo fin al pra mostrar toda a áspera rítm ica
os seus ideiais estéticos, como na confissão (P oética, pág. 23) do poeta. Aspereza tanto mais característica que, se estudar­
de a g o ra : mos esse verso pelas suas pausas cadenciais, a gente se acha
diante dos versos mais suaves da lín g u a : a redondilha e o
decassílabo:
Estou farto de lirismo comedido
Do lirismo bem com porta do.. .
( ) O meu porquinho da Índia (7 sílabas)
N ão quero mais saber do lirismo que não ê libertação. Foi a minha primeira namorada (10 sílabas)

E ntendam o-nos: libertação pessoal. Numa poesia emocionante pela simplicidade de expressão,
Essa cristalização de Manuel Bandeira se nota muito acolhendo mil símbolos fiéis, O Cacto, o último verso diz bem
ritmo atual de Manuel B a n d eira : E ra belo, áspero, intratavel.
particularmente pela rítm ica e escolha dos detalhes ocasiona-
dores do estado lírico. Manuel Bandeira lembra esses amantes A liás se dá mesmo uma luta permanente entre essa essên­
bem casados que, depois de tanta convivência, acabam se pare­ cia “ intratavel” do indivíduo Manuel Bandeira e o lírico que
30 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 31

tem nele. Vem disso o dualismo curioso que a gente percebe sia, é duma unanimidade brasileira muito grande. Nos poetas
nas obras dele, passando de jogos com valor absolutamente românticos o tema do exílio e do desejo de voltar é freqüente.
pessoal, duma detalhação por vezes pueril (no sentido etimoló- Com o neo-romantismo dos nossos parnasianos, o tema das bar­
gico da palavra), d ifícil de com preender ou de sentir com in­ cas, das velas que partem e “ não voltam mais” foi substituindo
tensidade pra quem não privou com o homem, a concepções a ave que voltava ou queria voltar ao ninho antigo. N o . . .
profundas, duma beleza extremada e interesse geral. Interesse néo-néo-romantismo dos contemporâenos, o desprendimento v o ­
em que não entra mais o conhecimento pessoal do poeta, ou luptuosamente machucador, a libertação da vida presente, que
coincidência psicológica com êle. A s melhores obras do poeta, se resume na noção de partir, agarrou freqüentando com insis­
Andorinha, O A n jo da Guarda, A V irgem Maria, Evocação tência significativa a poesia nova. Isso se nota não tanto nas
do R ecife, Teresa, N oturno da Rua da Lapa, pra citar apenas poesias de viagem, comuníssimas em qualquer dos nossos versoli-
o Libertinagem , são as poesias em que por mais pessoais que vristas, como pela declinação clara do desejo de partir. Em
sejam assuntos e detalhes, mais o poeta se despersonaliza, mais A ugusto Frederico Schm idt êsse desejo de partir (ou antes: o
é tôda a gente e menos é caracteristicamente ritmado. A p ró­ de abandonar aquilo em que se está) é uma obsessão constante.
pria Evocação do R ecife que atinge o recesso da fam ília cha­ Ora, em Manuel Bandeira, o fenômeno se partieulariza mais
mada nominalmente (Totônio Rodrigues, dona Aninha Vie- pelo emprêgo da própria frase “ vou-me embora” . Se pelo me­
ga s), é bem a maneira por que tôda a gente ama o lugarinho nos em mais dois poetas contemporâneos, de que me lembro no
natal. Em duas poesias, que agora c i t o : Poem a de Finados momento, a frase fo i empregada com sistematização consciente
e You-m e embora pra Pasárgada, o poeta se generaliza tanto, e não como valor episódico, o “ vou-me em bora” é ainda uma obs-
que volta aos ritmos menos individualistas da m etrificação, sessão da quadra popular nacional. Me retrucarão que será mais
como já fizera nas cantigas dos Sinos e do Berimbau, no R itm o certo dizer da quadra portuguesa. Posso aceitar que, como
Dissoluto. (1 ) lugar-comum poético, a frase nos tenha vindo de Portugal.
M uito curioso de observar é o Vc<u-me embora pra Pasár­ Aparece, aliás, em todo o folclore de origem ibérica. Porém
gada, com que Manuel Bandeira deu afinal a obra-prima poéti­ o “ vou-me embora” freqüenta m uito mais a quadra brasileira
ca dum estado-de-espírito bastante comum nos poetas brasilei­ que a portuguesa, onde, como pretendo demonstrar num estudo
ros de hoje. Já o início dêsse título-refrão que percorre a poe- futuro, o tema da partida, às mais das vezes, é traduzido
por “ adeus” — o que parece indicar que a noção de partir é
(1 ) Ésse poder socializante do ritmo medido tem uma prova crítica bem m uito mais saudosista em Portugal, onde mais frequentemente
evidente dêle e de Manuel Bandeira, quando êste na EvocaçSo do R ecife, se converte num sentimento de despedida, ao passo que entre
ao constatar, caçoista, a nossa escravização ao português gramaticado em nós será mais egoística e desamorosa ( o que concorda com o
Lisboa, principia dançando de repente e organiza, no meio dos versos livres, já tão reconhecido individualism o nosso), convertida no senti­
um verdadeiro refrão coreográfico e coral:
mento de abandonar aquilo em que se está. Se servindo pois
dessa constância nacional, Manuel Bandeira fez ela coincidir
. . .Porque êle é que fala gostoso o português do Brasil com um estado-de-espírito bem dos nossos poetas contem po­
Ao passo que nós râneos, incontestàvelmente menos filosofantes que os das duas
O que fazemos
gerações espirituais anteriores (B ilac, Raimundo Corrêia,
É macaquear
A sintaxe lusíada
Am adeu Amaral, Rosalina Coelho Lisboa, Ronald de Carvalho,
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia b e m ... (e tc.). Hermes Fon tes), porem mais em contacto com a vida quoti­
diana e mais desejosos de resolvê-la numa prática de felici­
Sôbr.e a fôrçá socializadora da métrica, ainda se notará a preferência dade. Incapazes de achar a solução, surgiu neles essa vontade
pelos ritmos ímpares de marcha, em Augusto Frederico Schmidt, que é um amarga de dar de ombros, de não se amolar, de partir pra uma
católico de feição francamente proselitista. farra de libertações morais e físicas de toda espécie. Vontade
32 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 33

transitória, episódica, não tem dúvida, mas importante, p or­ do verso medido, sistematizada em tantos poemas, seja uma
que esse não me-amolismo meio gozado deu alguns momentos tendência pra socializar-se, como em A ugusto Frederico Sch-
significativos da poesia ou da evolução espiritual de certos midt, ou pra se generalizar mais, como em Manuel Bandeira.
poetas contemporâneos brasileiros. Em última análise, o tema Salvo, talvez, o caso da Cantiga do V iúvo, o emprêgo da me­
do “ vou-me embora pra Pasárgada” , é o mesmo que está can­ trificação provem, nele, de uma vontade íntima de se aniquilar,
tado nas Danças, de M ario de A ndrade, e em especial é o que
de se esconder, de reagir p or meio de movimentos ostensiva­
dita o diapassão básico dos Poemas de B ilú , de Augusto Meyer.
mente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos (sempre
Se percebe o eco dele em alguns poemas de Sergio M illiet e de
Carlos Drumniond de Andrade, pra enfim se transform ar de ainda o “ vou-me embora pra Pasárgada” . . . ) contra a sua
estado-de-espírito em constância psicológica, já independente inenarrável incapacidade pra viver. É o que êle mesmo resu­
da conciência, em toda a obra de M urilo Mendes. Fiz esta me aliás naquele dar de ombros com que termina a Toada
digressão pra mostrar quanto Manuel Bandeira perdeu de si do A m o r:
mesmo, pra dar a um tema useiro dos nossos poetas de agora
a sua cristalização mais perfeita. Será, talvez, a ironia da Mariquita, dá cá o pito,
sorte contra esse grande lírico tão intratavelmente individua­ No teu. pito está o infinito (pág. 2 4 ).
lista, isso dele ser tanto maior poeta quanto menos Manuel
B a n d e ir a ... A análise de Algum a Poesia dá bem a medida psicológica
Carlos Drum m ónd de Andrade, dum individualismo tam­ do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drum-
bém exacerbado, nos deu um livro que revela o indivíduo mond de Andrade pra melhor achar jpelo livro o tím ido que
excessivamente tímido. Já isso transparece pela rítmica dêle, êle é. P ra êle se acomodar, carecia que não tivesse nem a
inaferravel, disfarçadora. Daí uma riqueza de ritmos muito sensibilidade nem a inteligência que possue. Então dava um
grande, mas, psicologicamente, quase desnorteante, porém. É desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem
o mais rico em ritmos destes quatro poetas. A s suas subtilezas saber o que são, cu ja mediocridade absoluta acaba fazendo-os
atingem às vêzes a arte filigranada de Guilherme de Alm eida. felizes! Mas Carlos Drum m ónd de A ndrade, timidíssimo, é
Assim p or exemplo naquele caso curioso de F uga em que, alem ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas
da prim eira quadra da pág. 94 parecer toda em versos de nove
que se contrariam com ferocidade. E dêsse combate tôda a
sílabas, embora contendo um de oito e outro de dez, a estrofe
poesia dele é feita. Poesia sem água corrente, sem desfiar e
seguinte, toda em octossílabos, termina com o decassílabo:
concatenar de idéias e estados de sensibilidade, apesar de toda
construída sob a gestão da inteligência.Poesia feita de explo­
E todo mundo anda — como eu — de luto. sões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes,às vezes os
versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inte­
V erso habilíssimo, que apesar das suas dez sílabas e pos­
ligência, as quedas de timidez se enterseccionam aos pinchos.
sível acentuação de decassílabo romântico, é bem ainda um
octossílabo, pois que o parêntese reflexivo “ como eu” funciona Reparem o final do Poem a das Sete F a c e s :
também como um, p or assim dizer, parêntese rítmico —- pre­
servando a unidade métrica da quadra. M eu Deus, porque me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Tem mesmo em Carlos Drum m ónd de Andrade um com ­
Se sabias que eu era fraco.
promisso claro entre o verso-livre e a metrificação. Os seus
versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos Mundo, mundo, vasto mundo,
medidos, contendo noções geralmente com pletas e acentuações Se eu me chamasse Raimundo
tradicionais. Mas não me parece que neste poeta a utilização Seria uma rima, não seria uma solução.
34 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 35

Mundo, mundo, vasto mundo Bandeira também caiu, às vezes, nessa precariedade) são a úni­
Mais vasto é meu coração. ca restrição de valor permanente que se possa fazer a A lgum a
Poesia. Culpa integral da inteligência. De inteligência inca­
Eu não te devia dizer
Mas essa lua paz e fatigada ( “ vou-me embora pra P a s á r g a d a !... ” ). Não
Mas êsse conhaque e mais humour. Não é ainda a sátira. Não creio que esses poe­
P õ e a gente comovido como o diabo. mas possam adiantar qualquer coisa ao poeta. E por eles será
aplaudido nas rodas dos semi-literarizados das academias e
Toda a timidez do poeta ressumbra do primeiro terceto. cafés. O que positivamente é uma desgraça.
Vem depois a explosão da sensibilidade na quintilha seguinte
Assim incapaz e fra gil diante da vida (V . o admirável
com uma fadiga provocando assonâncias, associações de ima­
No meio do Cam inho), era natural que a poesia de Carlos
gens, e o verso sublime (mas intelectualmente tolo) “ seria uma
rima, não seria uma solução” . E o diabo da inteligência explode Drumm ond de A ndrade se alargasse em m aior detalhação in­
na quadra fin a l: o poeta pretende disfarçar o estado de sensi­ dividual. De f a t o : a caracterização psicológica de A lgum a P o e­
bilidade em que está, faz uma gracinha bancando a corajosa, sia não assume apenas verdades totais do indivíduo, como a
bem de tím ido mesmo, e observa com verdade (pura inteligên­ de Libertinagem senão que desce a particularizações interessan­
cia, p ois), as reações do ser ante o m undo exterior. Essa poe­ tíssimas. Dois sequestros tem no livro, pelo menos dois, que
sia de arranco, que não se deverá con fu n dir com a superposi­ me parecem muito cu riosos: o sexual e o que chamarei “ da v i­
ção de dados objetivos que de W hitm an nos veio, é sistemática da besta” . A o seqüestro da vida besta, Carlos Drum m ond de
em todo o livro. A ndrade conseguiu sublimar melhor. A o sexual n ã o ; não o
tranform ou liricam ente: preferiu rom per adestro contra a preo­
Seria preferível, talvez, que Carlos Drum m ond de A n ­
cupação e lutas interiores, mentindo e se escondendo. O suave
drade não fôsse tão inteligente. . . A reação intelectual con­
tra a timidez já está mais que observado: provoca amargor, cantor do R ei de Siãa, o anjo de Purificação, o humorista de
tantas ironias, o paciente de sua própria casa, do recesso fa ­
provoca humour, provoca o fazer graça sem franqueza, nem
miliar, da vida besta, virou grosseiro, um ostensivo debochado.
alegria, nem saúde. E m Carlos Drum m ond de A ndrade p ro­
vocou tudo isso. A amargura não fez mal e fo i um valor a mais. O livro está rico de notações sensuais, ora sutis como a da pele
Nem o humour, pois que poesias como F uga, Toada de A m or, picada p or mosquitos, ou do dente de ouro' da bailarina, ora
Quadrilha, Família, são da melhor poesia de humour. E a to­ maleducados como o das tetas. Mas onde o seqüestro explo­
do instante se topa com notações humorísticas excelentes, como de com abundância provante é no livro estar cheio de coxas e
o final do São João D ’E l R ei: especialmente de pernas (págs. 10, 36, 62, 141, 144, 136, 117,
113, 110).

E todo me envolve
A in da não encontrei referência, entre as civilizações anti­
Uma sensação fina e grossa (pág. 42) ; gas e primárias, a êsse desvio do olhar masculino, universal
na Civilização Cristã, com que os homens julgam das quali­
ou quase todas as estrofes de Fantasia, principalm ente as n o­ dades boas d u m a ... peça, olhando-lhe as pernas. A explica­
tações sobre o Diabo que me lembraram Schelley. Mas onde ção do uso das saias me parece insuficiente. Deve haver nesse
a inteligência preju d icou o poeta e o deform ou enormemente, costume um acondicionam ento do ser sexual com as proibições
fo i em fazer ele aderir aos poemas curtos feitos prà gente dar dos Mandamentos, uma espécie de b lu ff: o cristão blefa a lei,
risada, o poema-cocteil, o “ poem a-piada” , na expressão feliz com uma inocência deliciosa. Carlos Drum m ond de A ndrade
de Sergio Milliet. O poema-piada é um dos maiores defeitos também fo i vítima desse desvio do olhar cristão, mas, porém,
a que levaram a poesia brasileira contemporânea. Antes de com uma deformação subconciente curiosa. Não creio que êle
mais nada, isso é fa c ílim o : há centenas de criadores de anedo­ seja na vida êsse grosseiro, que tantas pernas evocadas indi­
tas p or aí tudo. A ch o mesmo que os poemas-piadas (M anuel cam. O que êle quis fo i violentar a delicadeza inata, maltratar
36 M A R I O DE A N D R A D E
ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 37

tudo o que tinha de mais susceptível na sensibilidade dele, dar


passadas, ao passo que na contemporânea, desenhou a coisa
largas às tendências sexuais, inebriar-se nelas, clangorar per­
fácil, liquidada pronto, como desejava pra si. Um documento
nas e mais pernas, pra se vencer interiormente. Ser grosseiro, precioso de psicologia.
ser realista, já que não achava (p or causa da própria tim idez),
A ugusto Frederico Schmidt, nos dando em 1930 o Pássaro
saida delicada ou humorística pro caso. B isso culmina, pág.
Cego, levou dois anos pra publicar o mesmo número de obras
110 ( “ pernas” 3 v ezes!), na grosseria bem comovente com que
que Manuel Bandeira em 13. Isso determina o poeta. É terra
o que estava bancando o violento sensual, não conseguiu ven­
de p au -da lh o: numeroso, abastoso e voluptuariam ente disper-
cer as delicadezas íntimas, e em vez de falar que a mulher não
diçado. E assim a rítm ica dele. O poeta, que vem de judeus
passa dum sexo (que é o que êle queria gritar m alvadamente),
e soube tirar dessa origem temas e caracterizações de poesia,
exclam a: “ Todas são p ern as!” .
é mais propriamente um asiático. A gin d o dentro das quen-
O seqüestro da vida besta é mais artisticamente valioso. turas mais sensuais, tudo nêle reveste as delícias dessa m agni­
Ele representa a luta entre o poeta, que é um ser de ação ficência orientalizante. Na frase d ek , coisas, às vêzes, pos­
pouca, m uito empregado público, com família, caipirism o e sivelmente irritantes, que nem o abuso das repetições, as com ­
paz, enfim o “ bocejo de felicidade” , com o ele mesmo o des­ plicações pernósticas de sintaxe, a religiosidade sem discreção,
creveu, e as exigências da vida social contemporânea que já o feitio não apenas oratório, mas declamatório, o senso exíguo
vai atingindo o B rasil das capitais, o ser socializado, de ação de eontemporaneidade, tudo, enfim, que parece feito pra des­
muita, eficaz prà sociedade, mais público que íntimo, com valorizar, antes o valoriza. Assume um dom de necessidade
maior raio de ação que o cumprimento do dever na fam ília que infunde respeito. Na verdade os 32 cacoetes que fazem
e no empreguinho. O poeta adquiriu um a conciência penosa o material da poesia dêle, m uito embora ostensivos e dispostos
da sua inutilidade pessoal e da inutilidade social e humana sem a mínima delicadeza de coração (2 ), a juntam um grau
da “ vida besta” . Mas a tragédia era menos individualista.. tamanho de caráter à obra do poeta, que deixam de ser cacoetes
O poeta poude não atribuir a ela a im portância pessoal que pra se tornarem caracteres dela.
dava p ro caso sexual, e conseguiu p oetificar melhor, fazer disso Sob o ponto-de-vista técnico, A ugusto Frederico Schmidt
mais lirismo e mais poesia. Criou poemas de pura sensibili­ soube com habilidade rara e desde o prim eiro livro, escolher
dade, saudosa (In fâ n cia ), complacente (S w eet H om e), irônica na lição histórica da poesia brasileira o quanto havia de cons-
( Gidadezinha Q u alquer), ou humourísticos ( Família, e Sesta) tâncias capazes de lhe darem fisionom ia própria e tradicional.
A in d a o Chopin e a eterna Cantiga do V iúvo se enquadram Isso vale bem a gente observar porque incide no orientalismo
bem no ciclo. Outro poema, este curiosíssimo, também do do poeta. Outros também foram buscar através do B rasil
ciclo, é o Sinal de A p ito, duma pureza impressionante, em que constâncias que os tradicionalizassem. Mas o que os outros
a “ vida besta” aparece convertida em valor social mas vingati­ iam buscar na lição do povo popular, A ugusto Frederico
vamente reduzida, enfim a um simples maquinismo material Schm idt ia buscar na poesia burguesa, o que o demonstra bem
de gestos e sinais. E finalmente, como clim ax do seqüestro,
vem a Balada do A m or através das Idades. A gora o caso é
(2) Prova da tendência proselitista de Augusto Frederico Schmidt.
admiràvelmente expressivo. O poeta se vinga da vida besta, Os poetas proselitistas têem para lhes desculpar êsse excesso de indiscreção,
botando m iríficos suicídios e martírios estrondosos em casos de a franqueza dadivosa que os anima, a lealdade com que jogam tôda a rique­
amor de diferentes épocas passadas. Menos na contem porâ­ za numa cartada só. Todos êles, no geral, demonstram, com clareza imediata,
os “ processos” que fazem a técnica e a ideologia dêles. Se observe, por
nea, em que faz o amor dar em casamento, em burguesi,ee, em
exemplo, Marinetti, Verhaeren, Bilac, Maiakowsky, Sandburg, poetas sociais,
. . . vida b esta : é êle. O poeta não faz mais do que se retratar proselitistas incontestáveis, cujas “ maneiras” são fàcilmente pefceptíveis, em
“ através das idades” . A s dificuldades com que teve que lutar oposição a um Rimbaud, a um Lautreamont, a um Manuel Bandeira, a
(não sou indiscreto, pois que como as dele, pequenas, todos mesmo uma Francisca Júlia, não-meamolistas de marca maior, inaferráveis,
impossíveis de repetir. Entre Castro Alves e Alvares de Azevedo, mesma
teem ), êle exagerou liricamente e transportou pra épocas já
coisa.
38 M A E I O DE A N D E A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 39

pachá, bem mandarim. Aliás, é um católico de ação e neces­ m etrificado. Está claro que isso era necessário pra um poeta
sariamente havia de demonstrar exasperação monárquica. Mas de alma messiânica (sem intenção pejorativa nenhum a), cató­
eu, que a um tempo lhe censurei certos cacoetes, já não os lico p or natureza e fé. Se a muitos parecerá que o poeta
censuro mais. Fazem parte essencial dessa torrente majestosa, fo i buscar nos ritmos ímpares do Romantismo (Tristão de
e apesar de majestosa sempre suave, da poesia dele. Largas A ta íd e ), na escolha de dicções românticas, de sintaxes ar reve­
monotonias, coxas odalisquíssimas, danças rituais pesadas, zadas, de palavras velhas, um romantismo novo, a mim me
doces com muito açúcar, sêdas que são paredes de grossas. . . parece que todas essas normas usadas p or êle, proveem de
E sempre Deus. Um Deus desamavel, mas bem jesuítico, tendências mais lógicas. Na realidade, êle não fo i buscar nada
bonito, volumoso e duma violência sincera. P or tudo isso em ninguém , não, nem se fez sob o signo de Casimiro de A breu
A ugusto F rederico Schm idt é dentre os nossos poetas contem­ (3 ) , antes: as suas tendências o levaram a utilizações velhuscas
porâneos, o que melhor sabe cadenciar. Se observe este final (muitas são até parnasianas: o entroncamento, a evocação da
da admirável P r o fe c ia : Sublim e Porta, página 169), por aquela parte fatal e unani-
mizadora das religiões, em que eles se agarram ao passado com
S e não obedeceres à escolha do Senhor, será melhor
o inamovível da Lei e do Rito. Não me emparelho com isto aos
Que os animais ferozes dividam teu. corpo em pedaços. que consideram paralisadoras as religiões. Mas é inegável que
Que o mar te atire de encontro aos rudes rochedos Deus não requer nem progresso nem evolução. O inamovível
E desabem sôbre tua cabeça tôdas as desditas. da Lei e do Rito não é mais que a projeção mimética de Deus
Fortifica bem o teu espírito atormentado,
Tira da tua fraqueza o teu grande heroismo.
dentro da vida terrestre, um contraste danado. Essas renova­
Abandona tôda a poesia do mundo que é inútil ções, esses fantasmas antigos, que adornam a poesia de A ugus­
Pois a beleza distrai os homens e os diminue. to Frederico Schmidt, teem uma verdadeira função litúrgica
D eixa o teu corpo fechado para todas as volúpias. dentro dela.
Que a noite abandone teu corpo cansado,
Porque teu papel é maior que tu mesmo — e o precisas cum prir! A in d a aspecto essencial do poeta é o emprêgo das m ono­
(pág. 34) tonias da obcessão ( Abram as Portas, Menina M orta), repetindo
idéias, palavras, frases com uma pachorra asiática. Poemas
Cadenciado assim, sutil na tendência p ro verso longamente há em que as estrofes tiram valor emotivo de serem variantes
voluptuoso em que a própria exhaustão do respiro dificulta a mínimas de uma idéia única. Augusto Frederico Schm idt
lepidez da idéia (sempre lenta no poeta) ; tão sutil a ponto de valoriza esse processo do Tema com variações, às vêzes, muito
ser lento até em muitos versos curtos, pela disposição sin tática: bem. Inda m ais: a condescendência na repetição de certos
assuntos com o o rom ântico, da morte, o religioso, da profecia,
Avistou a cidade distante, o modernista, da brasilidade ( Canto do Brasileiro, Novo Canto
Iluminada, ardia, como em ch a m a s... (pág. 15 ), do B rasileiro) — coisas que noutro podiam demonstrar insa-

pela intercalação de quebras na célula rítm ica:


(3 ) N ão têm dúvida que o Romantismo se tornou uma revolta conciente
em Augusto Frederico Schmidt, dêsde o momento em que, fatigado da te­
Um dia passa, outro dia mática em voga do Modernismo (foi êle, creio, quem primeiro ecoou no
E os dias todos passando vück Brasil a noção do Antim odem o, de Maritain , e foi êle pela sua asiática
A minha mocidade há-de passar em breve falta de agilidade, quem criou com o Canto do Brasileiro, uma reprodu­
Só terei cinzas no coração (pág. 123), ç ã o . . . séria do “ Vou-me embora prà Pasárgada” ) , êle quis, e quis bem,
abrir caminho novo. Ser moderníssimo, p ois. . . Mas êsse romantismo, con­
ciente, e aliás episódico, deu ao poeta o que, me parece, menos o lustrará
e ainda pelo uso do entroncamento, e das palavras arcaicas nos tempos: além do vocabulário sediço que êle não conseguiu renovar
que interceptam a correnteza da naturalidade, temos que re­ nem impôr, certas poesias de tôda ou muita imitação ( A Deus, L ira ), pas-
conhecer : Augusto Frederico Schmidt vai tendendo pro versp tichos visíveis, cujo valor me escaDa inteiramente.
ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 41
40 M A R I O DE A N D R A D E

No meio das grandes correntes que estão movendo o século,


tisfação pela realização anterior — em A ugusto Frederico
a poesia brasileira se conserva como espectadora. Só mesmo
Schm idt são -bem valores equatoriais, são mesmo condescendên­
o nacionalismo que nos toca essencialmente pra conseguirmos
cia, complacência, conform ism o com as suas próprias desco­
viver em paz com a nossa terra, conseguiu tirar um bocado
bertas. O favor que concede à tristura, sem um grito mais
certas poetas da sua janelinha de ouro e prata. F oi o único
lancinante, sem um sarcasmo, sem uma irregularidade psico­
instante em que alguns desceram prà rua. Um mérito excep­
lógica mais rubra (estamos nos antípodas de Manuel B andei­
cional de Augusto Frederico Schmidt fo i esse de tomar posição
r a ), prova no poeta um áureo e sonoroso conformismo. A s
na rua. É um ca tólico; e cantando os seus ondulantes versos,
suas próprias insatisfações e remorsos religiosos, coados atra­
criou um convite à procissão, que a gente poderá aceitar. Do
vés dessa maneira geral de ser, tomam irrefragavelm ente um
lado oposto, o poeta político inda não apareceu.
ar de A rte Pura, que os imobiliza bem. No fim de um lamento
que podia vincar, a gente está mais é gozando. E é pois Porque, vamos e venhamos, a Poesia não pode permanecer
curioso de constatar que embora a poesia dele clame quedas de neste compromisso de facilidades sentimentaisinhas e didáticas
consciência, temores do In finito, fantasmas reachados, insatis­ em que quase exclusivamente se confina entre nós. É preciso
fação do presente: na verdade é uma poesia de arte, com muito acabar de vez com essa bobagem de distinguir Poesia e Prosa
conform ism o e sem a mínima inquietação. por meio do aspecto tipográfico — bobagem permanecida mes­
mo entre os versolivristas. O que as distingue é mesmo o
E se a todo instante na obra deste artista, se topa com
fu n d o : A Prosa transporta tudo pra um plano único, intelec­
im perfeições e desleixos de fatura numerosos, isso não invalida
tual, p or isso mesmo que desenvolvendo noções, é exclusiva­
em absoluto o caráter de arte dela. Essas im perfeições fazem
mente conciente. A Poesia, pelo contrário, transfunde as no­
parte mesmo da qualidade estética de Augusto Frederico
ções mais concientes pra um plano vago, mais geral, mais
Schmidt, que é de um barroco decidido. Como nos templos
complexamente humano. Nesse ponto é a principal contri­
carregados de enfeites, de Java, da índia, do B arroco, do
buição do Surréalisme, que conseguiu como jamais, especificar
próprio Gótico, é da natureza da obra dele a avaliação do
a essência da Poesia. Ou que a Poesia se traia inteiramente e
conjunto. Pouco im porta num portal gótico, num alto-relevo
vire cantadora pragm ática dos interesses sociais, ou vire, no
javanês, numa capela-mor barroca, a imperfeição, o mal aca­
máximo orgulho, inexoravelmente senhoril e livre da inteligên­
bado duma estátua ou duma voluta. Não é da natureza desses
cia. O meio-termo está se tornando cada vez mais inaceitável.
estilos aquela perfeição itinerante, completa p or si a cada
Noventa por cento da pseudo-poesia humana é falsificação. É
pormenor. O fu lg or generoso do con jun to (desprezada mes­
preciso atingir o lirismo absoluto, em que todas as leis técnicas
mo a unidade de concepção desse con jun to) é que vale exclusi­
e intelectuais só apareçam pelas próprias razões da libertação,
vamente e ignora essas imperfeições. Tanto fulgor e tanta ge­ e nunca como normas preestabelecidas. Ou então trair desa­
nerosidade que, no geral, as obras dessa estética ficam sempre vergonhadamente : pregar. Ou ser Juiz duma vez, ou ser
inacabadas, mesmo porque o acrescentamento, nelas, é sempre
“ louco” duma vez. V ersejar cantando a Terra, a Mãi Preta,
possível. Na literatura há também figuras que p or mais
descrever o Carnaval, gemer de amor batido ou vitorioso, em
mortas já, mais do passado, dão sempre a impressão de inaca­ Poesia, tudo isso é dum carrancismo didático medonho. Não
badas. Goethe, p or exemplo, pra subir dum pulo às supremas é Poesia, é festinha escolar. E é Prosa da ruim, porque d e fi­
grandezas. A o passo que em naturezas sem nenhuma genero­
ciente, incompleta como análise, deformada como essência. E
sidade, um Anatole France, um Machado de Assis, um Piran- a Poesia cada vez tem de ser mais lírica, no polo oposto à
dello, cada obra é total por si mesma, e mesmo quando ainda associação de idéias. Mas são admissíveis ainda e sempre a
vivos, esses autores não implicam espera, são acabados (é bem metrificação, a rima João Pessoa, o soneto, o verso-de-ouro e a
o caso de Pirandello) : outros há que, p or generosos, jamais, estupidez, desque bem raciocinados e falsificadores, porem can­
nem com a morte, dão a impressão de ter findado a obra, tando reivindicações, martírios, grandezas do homem social.
Dostoiewski, P rou st. . .
42 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 43

Nós chamaremos isso magoadamente Poesia, pra enganar o B, como está se vendo, mais um que foi-se embora pra
Burro humano, respeitabilíssimo e desinfeliz. B que ninguém Pasárgada. . . E este definitivamente, em toda a sua maneira
perceba a nossa mágoa. Ninguém perceba dentro de ninguém mais natural de poetar.
os estragos que faça o sacrifício. Seria d ifícil neste resumo, já tão enorme, dar uma idéia
E agora ressalto o valor dos Poemas, de Murilo Mendes. pormenorizada da contribuição que M urilo Mendes traz para
a nossa poesia, vou parar. O que me entusiasma sobretudo
Historicamente é o mais importante dos livros do ano. Murilo
nele, alem dessa essencialização poética a que escapa só o satí­
Mendes não é um surréaliste no sentido de escola, porem me
rico da primeira parte do livro (Jogador de D iabolô), é a
parece d ifícil da gente imaginar um aproveitamento mais se­
integração da vulgaridade da vida na maior exasperação so­
dutor e convincente da lição sobrerrealista. Negação da inte­ nhadora ou alucinada.
ligência superintendente, negação da inteligência seccionada
em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas,
Das cinco regiões onde navios angulosos
intercâmbio de todos os planos, que não exem plifico porque são Sangram nos portos da loucura
todo o livro. O abstrato e o concreto se misturam constante­ Vieram meninas morenas,
mente, form ando imagens ob jetivas: Pancadões, com seios empinados gritando Mamãe eu quero um
noivo! (pág. 45)

Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos (pág. 51) Os anjos maus. . .
São fortes e grandes, não é sopa não,
Têem dentes de pérolas, lábios de coral
Os cemitérios do ar esquentam Os aviadores partem prà combatê-los e morrem.
Com o fogo saido do sonho da vizinha (pág. 45.) A s viúvas dos aviadores não recebem montepio (pág. 34 ).
O manequim vermelho do espaço
Os homens largam a ação na paisagem elementar (pág. 81) ( )

Estou aqui, nú, paralelo à tua vontade (pág. 52), De tanto as costureiras do ateliê de dona Marotas
Se esfregarem nêle de-tarde
Já quer sair das camadas primitivas
etc. numa complexidade de valores, de belezas, de defeitos, de Daqui a mil anos será uma grande dançarina
irregularidades, tanto mais curiosos e eficazes que aparecem Dançará sôbre o meu túmulo diante do cartaz dos astros
Quando eu mesmo dançar minha vida realizada
dotados duma igualdade insolúvel: as belezas valem tanto como
No terraço dos astros (pág. 6 2 ).
os defeitos, as irregularidades tanto como os valores, numa
inflexível desapropriação da Arte em favor da integralidade
É inconcebível a leveza, a elasticidade, a naturalidade com
do ser humano. que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação
e os confunde. Essa naturalidade, essa coragem ignorante de
M urilo Mendes diz que é si, no Brasil, só seria mesmo admissível no gavroche carioca.
E de fato, M urilo Mendes, embora mineiro de nascença, é dono
A luta entre um homem acabado de todas as carioquices. E aqui lembro a contribuição nacio­
E um outro homem que está andando no ar (pág. 48) nal admirável dele. Impenetrável, visceral, inconfundível, há
brasileirismo tão constante no livro dele, como em nenhum
pra completar a verdade noutro poema, avisando que outro poeta do Brasil. Realmente este é o único livro brasi­
leiro da poesia contemporânea que sinto impossível a um
. ..n ã o é culpado nem inocente. estrangeiro inventar. Todos os outros, com maior ou menor
44 MA R I O DE A N D R A D E
ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 45

erudição, maior ou menor experiência pessoal, qualquer homem


Mas o castigo de tôda essa riqueza que lhes dá 0
do mundo teria feito. O que nos outros é fru to duma vontade,
difamarem a A rte e estraçalharem com ela, é que matam a p ró­
em M urilo Mendes, é apenas um fenômeno p or assim dizer
pria finalidade objetiva dela, a obra-de-arte. Em M urilo
de reação nervosa.
Mendes, como em Cícero Dias, desaparece fortemente a possi­
Como caroiquismo, como elasticidade na confusão do rea] bilidade da obra-prima, da obra completa em si e inesquecível
com o sonho, como nacionalidade independente, como tanta como objeto. Não são apenas todos os planos que se con fu n ­
com plexidade lírica de realização, só é comparável a M urilo dem nas obras deles, mas estas próprias obras, que se tor­
Mendes, e no desenho, o pernambucano Cícero Dias. Me pa­ nam enormemente parecidas umas com as outras, ou pelo menos
rece que formam ambos o que tem de mais rico e de mais novo indiferençaveis na memória da gente. Se o Tanto gentile, se
0 A lm a minha, se A s Pombas se distinguirão sempre entre
na arte brasileira de agora: uma parelha esplêndida que d ifa­
milhares de sonetos, e são logo incon fu n d íveis; se em Gonçalves
ma os cânones e conceitos da Arte, que mata a A rte no que
Dias 0 Y-Juca-Pirama é uma obra-prima e tal outro poema é
ela tem de mais pernicioso e inerente: o indivíduo mentindo,
medíocre, não possue 0 “ golpe de gênio” ; nesta nova ordem
a diferenciação das obras, a singularização dos valores, e o
de criação, utilizada p or M urilo Mendes e Cícero Dias, essa
famoso, verdadeiro e estupidíssimo “ golpe de gênio” . Esse possibilidade de distinção desaparece estranhamente. Um ou
bobo golpe de gênio que afinal das contas não há quem não outro verso, tal ou qual momento do quadro saltam p or mais
tenha, quando não 11a arte, pelo menos na vida. A vida quo­ belos, mais comoventes, mais profundos, porem as obras se
tidiana está cheia de golpes de gênio. Diante das obras desses enlaçam umas nas outras, vazam umas pràs outras, pairam
dois, não mais artistas, mas líricos admiráveis, tudo isso desa­ numa indiferença iluminada em que não é preciso mais dis­
parece. São homens que não mentem mais, libertos da conciência tinguir a grande invenção da invenção menos forte. Os outros
e de qualquer jerarquia psíquica, capazes de todas as fés e três poetas, mais submissos qual ao plano sensitivo, qual ao da
credos ao mesmo tempo. Só uma coisa eles não traem : a im- reflexão, e todos sob 0 domínio da organização intelectual, são
pulsão macunaimática do indivíduo (estou me referindo à arte mais desiguais. E xcetuando os poemas satíricos de M urilo
deles) : seres nem culpados nem inocentes, nem alegres nem Mendes, criados francamente sob a gestão do conciente, e onde
as obras se distinguem também (com o 0 já celebrado Quinze
tristes mais, dotados daquela soberba indiferença que Platiío
de N ovem bro), 0 mais se confunde numa grande massa dadi-
ligava à sabedoria. E 0 resultado importantíssimo desse ape­
vosa. E se 0 trato quotidiano do liv ro permite aos poucos a
nas aparente individualismo, que na realidade é antes um
gente ir afeiçoando mais tal poema e distinguindo este outro,
excesso do indivíduo no que êle tem de mais complexo, de mais a gente não possue mais razão pra separar a obra-prima e a
precário e desierarquizado: é que em vez de pormenorização justificar. Será um mal novo ? . . . N ão me parece que. Nem
pessoal, a obra deles é profundamente humana e genérica. Do tive intenção propriamente de distinguir milhorias ou deca-
mesmo jeito com que em Cícero Dias as formas assumem valo­ dências impossíveis. Estive apenas procurando do meu jeito,
res de universal, em sínteses tão asbtratas que nele um cachor­ a ordem de criação em que a poesia destes quatro grandes
ro se confunde com um burro, é 0 Quadrúpede, a pomba se poetas se situa.
confundindo com 0 urubú, é a A v e ; do mesmo jeito com que
nem particularização individualista, os seus assuntos são p ri­
mários e genéricos, a sexualidade (se confundindo com o am or),
o assunto da morte, 0 do prazer, 0 do Alem : também em M urilo
Mendes os assuntos são genéricos e esses mesmos, os ritmos se
tornam impessoais, versos longos mas respeitosos do respiro,
sem entroncamentos, desprovidos de luxo e imponência.
A E L E G IA DE A B R IL
(1941)

Poucas vezes me vi tão indeciso como neste momento, em


que uma revista de moços me pede iniciar nela a colaboração
dos veteranos. Seria mais hábil lhe ceder um desses estudos
especializados, que salvasse em sua máscara os meus louros
possíveis de escritor. Mas ainda conservo das minhas aventu­
ras literárias, aquela audácia de poder errar, com que aceitei
de um dos moços que me convidaram a este artigo a sugestão
de falar sobre a inteligência nova dó meu país. E confessarei
desde logo que não a sinto muito superior à de minha geração.
Nós ainda tínhamos muito presentes, e praticadas mesmo
em nossos anos de rapazes, as tradições da cabeleira. A inda
ouvíramos, e usáramos um bocado, a boêmia dos cafés e a cor
nevosa do absinto. Mas de um acorde de Debussy, de uma
opinião de W ilde ou de Gide, da corte de Guilherme II, para
um ritm o batido de Strawinski, um assunto de Rivera e os
companheiros de H itler, vai tal antagonismo, que as melhoras
da inteligência brasileira não me parecem satisfazer às exi­
gências do tempo e da nacionalidade.
É certo que sob o ponto-de-vista cultural progredimos bas­
tante. Se em algumas escolas tradicionais há muito atraso,
ju n to aos núcleos de certas faculdades novas de filosofia, ciên­
cias e letras, de medicina, de economia e política, já vão se
form ando gerações bem mais técnicas e bem mais humanísticas.
H á um realismo novo, um maior interêsse pela inteligência
lógica, que se observa muito bem nisso de serem agora mais
numerosos os escritores que iniciam carreira escrevendo prosa
e interessados só por ela, quebrando a tradição do livrinho de
versos inaugural.
186 M A R T-O D E A N D R A D E ASrECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 18 7

Esta melhoria sensível de inteligência técnica se manifesta cientes e nem ainda abstencionistas. E tempo houve, até o
principalmente nas escolas que tiveram o bom-senso de buscar momento em que o Estado se preocupou de exigir do intelectual
professores estrangeiros, ou mesmo brasileiros educados nou­ a sua integTação no eorpo do regime, tem po houve em que, ao
tras terras, os quais trouxeram de seus costumes culturais e lado de movimentos mais sérios e honestos, o intelectual viveu
progresso pedagógico uma mentalidade mais sadia que desistiu de namorar com as no^as ideologias do telégrafo. F oi a fase
do brilho e da adivinhação. A modos que sempre fui um serenatista dos simpatizantes.
subalterno Cherubini, desconfiado dos geniais e dos meninos-
Desse período curto mas suficientemente longo pára afetar
-p r o d íg io s .. . Sempre é certo que as poucas vezes em que fui
qualquer noção moral de inteligência, é que estamos sofrendo
chamado a servir publicamente, só o preparo das coletividades
os efeitos. Favorecida pela ignorância e pelo despoliciamento
em mais alto nivelamento me preocupou. Assim agí quando
cultural, a verdadeira tradição nova que a fase dos simpati­
fo i da reform a do Instituto Nacional de Música. Assim agí
zantes nos deixou, foi essa .maldição que poderá se chamar dè
no program a de expansão cultural do Departamento de Cul­
“ imperativo econômico da inteligência” ! Estarei p or acaso
tura e por isso tanto me detestaram os geniosos do a solo
resplendente. E ainda faz pouco, tendo o Sr. Ministro da muito escuro e desconhecedor das realidades, afirmando ver a
Educação me pedido um anteprojeto para uma escola de gorda maioria dos-intelectuais de agora tomar esse imperativo
belas-artes, se já, mais pacificado em minhas experiências, econômico por sua norma de conduta e única lei?
cedi um jardinzinho de exceção aos gênios em promessa, o O Estado proibira as serenatas com que o simpatizante
pressuposto que determinou meus conselhos e formas, fo i o de acordava a sua vizinhança e lhe deixava na insônia o retrato
um alto nivelamento artesanal. Sou sim pelo nivelamento das das Rosinas adventícias. Mas a intelectualidade se ajeitoü
coletividades. Não pelo nivelamento por baixo, que se perce­ fácil. Tirou das terminologias em moda sua nova fantasia
be a cada close-up do nosso ramerrão educativo, mas por um arlequinal de conform ism o: esta dolorosa sujeição da inte­
elevado nivelamento cultural da nossa inteligência brasileira, ligência a toda espécie de imperativos econômicos. A incon-
que evite a falsa altura, tão comum entre nós, dos arranha- ciência de minha geração, se não a absolve, a fataliza — homem
céus. . . em taipa de mão. E por isso não me desagrada a m o­ de um fim-de-século em que, meu Deus! no Brasil não re­
desta conciência técnica com que a escola de São Paulo se percutia n ad a ! Mas para o intelectual de agora não é possí­
afirm a em sua macia lentidão, na pintura como nas ciências vel mais invocar o estado-de-graça da fatalidade. Pois então
sociais, ajuntando pedra sobre pedra, amiga das afirmações rebatizaram à maluca, lhe deram sexo mais dom inador: são os
bem baseadas, mais amorosa de pesquisar que de concluir. Im perativos Econômicos que passam! E chuviscam agora
Mas esta primeira diferença grande me parece pouco. o s e s comodos voluntários dos abstencionismos e da com pla­
Da minha geração, de espírito form ado antes de 1914, cência. Ia acrescentando “ e da pouca vergonha” , mas me
para as gerações mais novas, vai outra diferença, esta profunda refreei a tempo. Na verdade os homens de pouca vergonha
mas pérfida, que está dando péssimo resultado. Nós éramos aparecem em qualquer época, muito embora as condições so­
abstencionistas, na infinita maioria. Nem poderei dizer “ abs- ciais do intelectual contemporâneo e o adubo dos imperativos
tencionistas” , o que im plica uma atitude conciente do esp írito : econômicos estejam se demonstrando muito favoráveis à proli­
nós éramos uns inconcientes. Nem mesmo o nacionalismo que feração de semelhantes cogumelos.
praticávamos com um pouco maior largueza que os regionalis­ Com e fe ito : alguns, e serão por acaso os melhores ? . . .
tas nossos antecessores, conseguira definir em nós qualquer desgostados da vida, malferidos em seu sentimento humano
conciência da condição do intelectual, seus deveres para com a pelas guerras, se retiram para o seu rincão de ciência, pagam
arte e a humanidade, suas relações com a sociedade e o estado. como é dever o imposto sobre a renda, apenas mui gratos se
A pressão dos novos convencionalismos políticos posteriores ao alguem lhes concede publicar algum documento precioso ou
tratado de Versalhes, mesmo no edênico Brasil se manifestou. descobrir uma nova estrelinha do céu. Outros, menos absten-
Os novos que vieram em seguida já não eram mais uns incon- eionistas e bem mais complacentes, gostam de pagar a quetn
188 M A R I O DE A N D R A D E
ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 189

lhes paga, trocando primogenitura e muitos elogios falados e


escritos, pelos tomates de alguma situação vitaminoea. Não âe Notícias. Não deixei de ser compreendido, o fui até muito
são bois alçados, como os primeiros, se preferem pingos ensi­ bem pelos culposos, embora eles não pudessem atingir toda a
extensão do meu pensamento. Muito poucos perceberam à
nados.
lógica de quem, tendo combatido, não pela ausência, mas pela
Os terceiros, não existe vivente que se lhes compare no liberdade da técnica num tempo de estreito formalismo, agora
reino animal. Mudam de ideais a qualquer notícia, não resis­ combatia pela aquisição de uma conciência técnica no artista,
tem ao sopro de qualquer brisa. Mas que podem fazer se care­ ou simplismente de uma conciência profissional, num período
cem de pão, se precisam pagar o médico da fam ília? Pão e de liberalismo artístico, que nada mais está se tornando que
doença, filho gripado e mulher grávida, são hoje para a inteli­ cobertura da vadiagem e do apriorismo dos instintos.
gência os mais fáceis avatares do cinismo moral. E um forte
número desses pretensos intelectuais são verdadeiros vácuos de Outro forte caso a lembrar seria o do surgimento de nu­
ignorância. Mas como se cultivar se lutam pela v i d a ! . . . A merosa poesia católica que outra coisa não faz senão se com-
luta pela vida não é mais, como no dicionário oitocentista, um prazer do pecado, mas isto já me parece mais um efeito que
propósito de trabalho e de vitória do mais fo r t e : é a glorifica­ causa, A causa é mais grave e mais tradicional tam bém :
ção da incompetência. A tanto chega o predom ínio das pala­ esta absurda e permanente ausência de pensamento filosófico,
vras sobre os homens. . . E se vê intelectuais, sem o menor de uma atitude filosófica da inteligência, entre os nossos inte-
respeito pelas glórias conquistadas, mudarem de diretrizes, lectuais. Os cientistas se refugiam no laboratório ou na expo­
da meia-noite para o meio-dia, servindo aos interesses mais sição sedentária das doutrinas alheias. Os artistas não teem
torvos. No sentido da sua dignidade moral, a inteligência bra­ onde se refugiar, mas se disfarçam com ingenuidade no padrão
sileira se transformou muito, passando da inconciência social, da arte social. Se acaso pretendemos saber o que os nossos
para a’ conciência da sua condição. Mas não creio tenha havido intelectuais pensam dos problemas essenciais do ser, se fica
melhoras. Se do meu tempo o mais que se possa dizer é que a tô n ito : não há o que respigar nas obras de quase todos e muito
foi amoral, hoje grassa na inteligência nova uma freqüente menos em suas atarantadas atitudes vitais. Não existe uma
imoralidade. obra, em toda a ficção nacional, em que possamos seguir uma
linha de pensamento, nem muito menos a evolução de um corpo
Se contemplamos a paisagem artística o que salta abun­ orgânico de idéias. E por isso causou enorme malestar e logo
dantemente aos olhos é a imperfeição do preparo técnico. O travou-se em torno dele a conspiração do silêncio, mesmo dos
experimentalismo dos “ modernistas” de minha geração já por que o deviam atacar, o aparecimento, a verdadeira aparição
vária parte se confundia com a ignorância e foi defesa de fantasmal de um Otávio de Faria que, certo ou errado, se
muitos. Mas ainda a maioria dos meus contemporâneos vinha
apresentava romanceando sôbre um núcleo de idéias organiza­
de costumes mais enérgicos em que não se passava p o f decreto. das em sistema. E é por esta falha várias vezes secular de
E todos os que resistiram ou padecem resistir à filtragem dos espírito .filosófico que são tão raros os “ casos” na inteligência
anos, foram técnicos honestos de suas artes. do Brasil, e ela se manifesta com vasta fraqueza de poder dra­
Mas a esse experimentalismo artístico veio logo se ajuntan­ mático e ausência quase total de concepção satírica. Ninguém
do um perigo ainda mais confusionista e sentimentalmente castiga. Ninguém previne. Ninguém sofre.
glorioloso, a tese da “ arte social” . Amontados nesta minerva Isto é, sofre sim ! Me esquecia do sofrimento humano
(minerva ou mercúrio ? . . . ) da fase dos simpatizantes, não criado, ou pelo menos largamente desenvolvido na ficção con ­
houve mais ignorância nem diletantismo que não se desculpasse temporânea do Brasil, esse herói novo, esse protagonista sinto-,
de sua miséria, como se a arte, por ser social, deixasse de ser mático de muitos dos nossos melhores novelistas atuais: o fra ­
simplesmente arte. cassado. De uns dez anos pra cá, sem a menor intenção de
F oi bem fatigante a experiência que tive, fazendo da téc­ escola, de moda literária ou imitação, numerosos escritores
nica o meu cavalo de batalha nas críticas literárias do Diário nacionais se puseram cantando (é bem o t e r m o !.. .) o tipo
do fracassado.
190 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 191

Observo mais uma vez não estar esquecido de que pra se \existente e foge, criar o seu imaginário m undo num sertão
dar entrecho, há sempre um qualquer fracasso a descrever, um tora do mundo.
amor, uma terra, uma luta social, um ser que faliu. Um Dom Não é possível aceitar esta frequência de um tipo moral,
Quixote fracassa, como fracassam Otelo e Madame Bovary. em nossa ficção viva, sem lhe reconhecer uma causa. E fu i
Mas estes, como quase todos os heróis da arte, são seres dotados grosseiro no enumerar apenas os retratos mais francos do p ro­
de ideais, de ambições enormes, de forças morais, intelectuais, tótipo. Com alguma sutileza, era ainda possível recensear
físicas, representam tendências generosas ou perversivas. São mais delicadas modalidades dele nas obras de outros im por­
enfim seres capazes de se impor, conquistar suas pretensões, tantes escritores nacionais. Os que indiquei me bastam para
vencer na vida, mas que no embate contra forças maiores são afirm ar que existe em nossa intelectualidade contemporânea a
dominados e fracassam. Mas em nossa literatura de ficção, preconciência, a intuição insuspeita de algum crime, de alguma
romance ou conto, o que está aparecendo com abundância não falha enorme, pois que tanto assim ela se agrada de um herói
é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição que só tem como elemento de atração, a. total fragilidade, e
do ser sem força nenhuma, do indivíduo desfibrado, incom pe­ frou xo conformismo. E se o Carlos, de Lins do Rêgo,é o mais
tente pra viver, e que não consegue opor elemento pessoal emocionantemente fraco, se o Cristiano, de Osvaldo Alves, o
nenhum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como ne­ mais irrespiràvelmente irresolu to: eu creio que o Faial, como
nhum ideal, contra a vida ambiente. Antes, se entrega à sua Gilberto Amado o propôs nas análises que fez da sua criatura,
conform ista insolubilidade, Quando, ao denunciar este fenô­ é o que mais convida a pensar, forte, belo, dominador, com
meno, me servi quase destas mesmas palavras, julguei lhe des­ todas as probabilidades de vitória, mas que se anula numa
cobrir algumas raízes tradicionais. H oje estou convencido de conform ista desistência e vai-se embora. Vai-se embora pra
que me enganei. O fenômeno não tem raízes que não sejam Pasárgada ? . . .
contemporâneas e não prolonga qualquer espécie de tradição. Porque os poetas, p or isso mesmo que mais escravos da sen­
Talvez esteja no Carlos do Ciclo da Cana de Açu&ar a sibilidade e libertos do raciocínio, ainda são mais adivinhões
primeira amostra bem típica deste fracassado nacional. Nos que os prosistas. Já em 1930, a respeito do Vou-m e embora
lembremos ainda do triste personagem de A n g ú s tia ... Já pra Pasárgada de Manuel Bandeira, pretendi mostrar que esse
mima crônica a respeito, pude enumerar mais um herói de mesmo tema da desistência estava freqüentando numerosamente
Cordeiro de Andrade, nada menos que seis outros num rom an­ a poesia moderna do Brasil. Se o com plexo de inferioridade
ce de Cecílio C arn eiro; e além destes fracassados cultos, outro, sempre fo i uma das grandes falhas da inteligência naeional, não
caipira, do escritor Leão Machado, e um nordestino do povo, sei se as angústias dos tempos de agora e suas ferozes mudanças
figura central do Mundo Perdido de Fran Martins. Poucos vieram segredar aos ouvidos passivos dessa mania de inferio­
tempos depois topava outra vez com o homem nos Fragm entos ridade o eonvite à desistêneia e a noção do fracasso total. E
de um Caderno de Memórias, do contista mineiro Francisco não é d ifícil imaginar a que desastrosíseima incapacidade do
Inácio Peixoto. Logo após vinha o Eduardo, de Menotti dei ser poderá nos levar tal estado-de-conciência. Toda esta lite­
Picchia, e alguns dos personagens de Saga. Em seguida era ratura dissolvente será por acaso um sintoma de que o homem
o fazendeiro, de Luís Martins. E com os últimos meses, posso brasileiro está às portas de desistir de si mesmo?
acrescentar mais três retratos ilustres a esta galeria pestilenta: E u sei que há diferenças e melhoras na inteligência nova
um, impressionantemente exato, descrito por Osvaldo Alves na do meu país, mas não consigo percebê-la mais enérgica nem
maior estréia de 1940, Um Homem fora do Mundo-, e os dois muito menos dotada de maior virtude. Nós, os modernistas
principais “ inocentes” de Gilberto Am ado, num livro bem irre­ de minha geração, sacrificávamos concientemente, pelo menos
gular mas de grave im portância: o Em ílio e essa estranha cria­ alguns, a possível beleza das nossas artes, em proveito de in­
ção, figura realmente apaixonante em seu mistério, Faial, o teresses utilitários. A arte se empobrecia de realidades esté­
moço que dotado de todas as forças a tudo renuncia da vida ticas, dissolvida em pesquisas. Experimentações rítmicas,
192 M A R I. O DE ANDRADE ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 193

auscultações do subeonciente, adaptações nacionais de lingua­ percebe em nossa geração atual. Antes, por muitas partes, ela
gem, de música, de cores e formas plásticas, de crítica — continua a devassidão genérica do meu tempo. Nós, enfim,
eram interesses que deformavam a isenção e o equilíbrio de éramos bem dignos da nossa época. A o passo que vai nos
qualquer mensagem. Então fomos descobrir, mais nas revis­ substituindo uma geração bem inferior ao momento que ela está
tas de combate que nos livros de filosofia, a palavra salvadora vivendo.
(sempre o perigo das lustrosas palavras. . . ) que acalmava as
T a lv ez' seja necessário que as inteligências moças mais
nossas ambições estéticas m altratadas: pragmatismo. A quilo,
capazes se esqueçam p or completo das elásticas verdades tran­
gente, eram pragmatismos tam bém ! Eram as necessidades da
sitórias e revalorizem o ideal da verdade absoluta. Não será
hora, as verdades utilitárias por que nos sacrificávamos, tão este o mais p atriótico. . . pragmatismo nacional ? É possível
mártires como os que se iam cristianizando chineses. acreditar sem fé. A creditar é muitas vezes um ato de carida­
O mal não era assim tamanho pois que a nossa conciência de. E se o homem não pode viver sem seus mitos, imagino
permanecia eminentemente estética, mas a desgraça é que a que seria sublime os mais capazes, mesmo sem fé, se porem na
palavra deslumbrou. E deslumbrou demais numa terrá e religião da uma-só verdade. Fazerem da verdade absoluta o
coletividade pouco afeita a estudos concienciosos e que, se seu mito e o seu estágio de purificação. Ou de superação.
libertando aos poucos de suas tradições religiosas, não se Não convém à inteligência brasileira se satisfazer tão cedo de
preocupava de preencher o vazio ficado com uma qualquer suas conquistas. A satisfação, como a felicidade, é um empo­
outra conceituação moral da inteligência. Só é verdade o que brecimento. E a palavra de Goethe não deverá jamais ser
é util, e toca o zabumba ensurdecedor dos pragmatismos. P rag­ esquecida: superar-se.
matismo ou displicência nova? E o intelectual se passa de Imagino que uma verdadeira conciência técnica profissio­
galho em galho, de árvore em árvore, na estilização mais na­ nal poderá fazer com que nos condicionemos ao nosso tempo
cionalista possível da dança do tangará. Isso • uma intelectua­ e os superemos, o desbastando de suas fugaces aparências, em
lidade coreográfica, inspirada na quadrilha dos “ imperativos vez de a elas nosi escravizarmos. Nem penso numa qualquer tec-
econômicos” , onde só se executa, com desilusória monotonia, o nocracia, antes, confio é na potência moralizadora da técnica.
passo do changez de places e o tour au vi-à-vis. E salvadora . .. Essa mesma técnica que se salvou Sócrates e
A minha p ífia geração era afinal das contas o quinto ato Rikiú pela morte, salvou Fídias, salvou o Baeh da Missa em
conclusivo de um mundo, e representava bastante bem a sua Si M enor, salvou os medievais, os egípcios e tantos outros, den­
época dissolvida nas garoas de um impressionismo que alagava tro da mesma vida. O intelectual não pode mais ser um abs-
as morais como as políticas. Uma geração de degeneração tencionista; e não é o abstencionismo que proclamo, nem mes­
aristocrática, amoral, gozada, e, apesar-da revolução moder­ mo quando aspiro ao revigoramento novo do “ m ito” da ver­
nista, não muito distante das gerações de que ela era o “ sor­ dade absoluta. Mas se o intelectual fo r um verdadeiro técnico
riso” final. E tève sempre o mérito de proclam ar a chegada de da sua inteligência, ele não será jamais um conformista. Sim­
um mundo novo, fazendo o modernismo e em grande parte plesmente porque então a sua verdade pessoal será irreprim í­
1930. A o passo que as gerações seguintes, já dç. um outro e vel, E le não terá nem mesmo esse conform ismo “ de p artid o” ,
mais blindado realismo, nada teem de gozadas, são alevantadas tão propagado em nossos dias. E se o aceita, deixa imediata­
mesmo, e já buscam, o seu prazer no estudo e na discussão dos mente de ser um intelectual, para se transformar num político
problemas humanos e n ã o . . . no prazer. Mas não parecem de ação. Ora, como atividade, o intelectual, p or definição, não
aguentar o tranco da sua diferença. A severidade dós costu­ é um ser político. Ele é mesmo, por excelência, o out-law, e
mes, a rusticidade dos amores e tendências, o número pequeno tira talvez a sua maior força fecundante justo dessa imposição
de preceitos-tabus, próprios das civilizações em ccimeço, e de irremediável da “ sua” verdade.
que são exemplos próximos, o início da civilização norteameri- Será preciso ter sempre em conta que não entendo por
cana, e em nossos dias a Rússia e a Alemanha, nada disto se técnica do intelectual simploriamente o artesanato de colocar
/
194 MA R T O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 195

bem as palavras em juizos perfeitos. Participa da téeniea, porânea. e mesmo de alguns aspectos e problemas dela não
tal como eu a entendo, dilatando agora para o intelectual o tratei por não poder fazê-lo. Lembrei apenas alguns motivos
que disse noutro lugar exclusivamente para o artista, não so­ de pensamento e análise que talvez a possam levar a maior d ig­
mente o artesanato e as técnicas tradicionais adquiridas pelo nidade. H á vinte anos atrás, se me perguntassem o que valia
estudo, mas ainda a técnica pessoal, o processo de realização mais, se o autor, se a idéia, eu responderia sem hesitar que o
do indivíduo, a verdade do ser, nascida sempre da sua m orali­ autor. A gora já não sei mais, vivo incerto. O homem é coisa
dade- profissional. Não tanto o seu assunto, mas a maneira sublime, porém se as idéias prevalecessem sobre os homens, já
de realizar o seu assunto. Que os assuntos são gerais e eternos, de muito que a paz teria pousado sobre a terra. E ando sau­
e .entre eles está o deus como o herói e os feitos. Mas a supe­ doso da paz.
ração que pertence à técnica pessoal do artista como do intelec­
tual, é o seu pensamento inconformável aos imperativos exte­
riores. Esta a sua verdade absoluta.
E junto desta técnica intelectual, talvez devêssemos obe­
decer mais à sensibilidade. . . Uma circunstâneia incontes­
tável da vida é que, premidos por ela, nós exercitamos quoti­
dianamente a nossa inteligência, não pra elevarmos a vida às
■suas alturas filosóficas, a uma qualquer interpretação dela,
mas pra justificarm os os nossos próprios atos. A diferença
quotidiana entre o exercício da inteligência e o da sensibili­
dade, é que esta se quotidianiza, vira costume, se esquece de
si, se esquece do amor, dos sentimentos, ao passo que a inteli­
gência jamais esquece de se exercer, na justificação malaba-
rística dos nossos quotidianos descaminhos. O sentimento, em
nós, vira “ costume” , e é por causa deste enfraquecimento da
sensibilidade que se criou o dia ritual do aniversário, em que
nos relembramos, no ar de festa, que o amor existe e o senti­
mento existe. E então nesse dia, não é só o te-deum e a seda
que o homem oferece aos seus amores divinos e profanos, mas
uma aproximação mais grave e mais sentida. Im agino que
será de muito benefício para o intelectual brasileiro, especial­
mente nos momentos decisórios de suas atitudes vitais, ele
auscultar mais vezes a sua sensibilidade. Desde que, enten­
da-se bem, não continuem esse conselho da sensibilidade, con ­
siderações justificadeiras da inteligência quotidiana e seus im­
perativos. Neste sentido* é possível afirm ar que, pelo menos
em períodos tão precários de integridade humana eomo o que
atravessamos, a sensibilidade é que é insensível, metàlieamente
ditatorial em seus mandos, ao passo que a inteligência é a mais
encegueeedora das paixões. Porque mais pervertida e mais
fáeil de se perverter a si mesma,
Não tive a menor pretensão de dar, nestas linhas, nm
remédio às angústias novas da inteligência brasileira eontem-
0 M O V IM E N T O M O D E R N IS T A

Manifestado especialmente pela arte, mas manchando


também com violência os costumes sociais e políticos, o m ovi­
mento modernista foi o prenunciador, o preparador e p or m ui­
tas partes o criador de um estado de espírito nacional. A
transformação do m undo com o enfraquecimento gradativo dos
grandes impérios, com a prática européia de novos ideais p o­
líticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas
internacionais, bem como o desenvolvimento da coneiência
americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da
educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam
a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional.
Isto fo i o movimento modernista, de que a Semana de A rte
M oderna ficou sendo o brado coletivo principal. H á um mé­
rito inegável nisto, embora aqueles primeiros m odern istas.. .
das cavernas, que nos reunimos em torno da pintora Anita
M alfatti e do escultor V itor Brecheret, tenhamos como que
apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacio­
nal muito mais com plexa que nós. F orça fatal, que viria
mesmo. Já um crítico de senso-comum afirm ou que tudo
quanto fez o movimento modernista, far-se-ia da mesma form a
sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa.
Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o movimento m oder­
nista, seria pura e simplesmente. . . o movimento modernista.
Fazem vinte anos que realizou-se, no Teatro M unicipal
de São Paulo, a Semana de A rte Moderna. É todo um passado
agradável, que não ficou nada feio, mas que me assombra um
pouco também. Como tive coragem para participar daquela
batalha! É certo que com minhas experiências artísticas muito
que venho escandalizando a intelectualidade do meu país, po­
rém, expostas em livros e artigos, como que essas experiências
não se realizam in anima nóbile. Não estou de corpo presente,
e isto abranda o choque da estupidez. Mas como tive coragem
232 MÁRI O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 233

pra dizer versos diante duma vaia tão bulhenta que eu não perada e estilizações decorativas do “ gên io” . Porque V itor
escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira Brecheret, para nós, era no mínimo um gênio. Este o m íni­
fila das p oltron as? . . . C o m o 'p u d e fazer uma conferência mo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos a que
sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anô­ ele nos sacudia. E Brecheret ia ser em breve o gatilho que
nimos que me caçoavam e ofendiam a valer ? . . . faria “ Paulicéia Desvairada” e sto u ra r.. .
O meu mérito de participante é mérito alh eio: fu i encora­ E u passara, esse ano de 1920 sem fazer poesia mais. Tinha
jado, fu i encegueeido pelo entusiasmo dos outros. Apesar da. cadernos e cadernos de coisas parnasianas e algumas tim ida­
confiança absolutamente firm e que eu tinha na estética reno­ mente simbolistas, mas tudo acabara p or me desagradar. Na
vadora, mais que confiança, fé verdadeira, eu não teria forças minha leitura desarvorada, já conhecia até alguns futuristas
nem físicas nem morais para arrostar aquela tempestade de de últim a hora, mas só então descobrira Verhaeren. E fôra
achincalhes. E si aguentei o tranco, foi porque estava deli­ o deslumbramento. Levado em principal pelas “ Villes Tenta-
rando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. culaires” , concebi imediatamente fazer um livro de poesias
P or mim, teria cedido. D igo que teria cedido, mas apenas “ m odernas” , em verso-livre, sobre a minha cidade. Tentei,
nessa apresentação espetacular que foi a Semana de A rte M o­ não veio nada que me interessasse. Tentei mais, e nada. Os
derna. Com ou sem ela, minha vida intelectual seria o que meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Se­
tem sido. rá que a poesia tinha se acabado em mim ? . . . E eu me acor­
A Semana marca uma data, isso é inegável. Mas o certo dava insofrido.
é que a pre-conciência primeiro, e em seguida a convicção de A isso se ajuntavam dificuldades morais e vitais de vária
uma arte nova, de um espírito novo, desde pelo menos seis anos espécie, foi ano de sofrimento muito. Já ganhava pra viver
viera se definindo n o . . . sentimento de um grupinho de inte­ folgado, mas na fúria de saber as coisas que me tomara, o
lectuais paulistas. D e prim eiro foi um fenomeno estritamente ganho fu g ia em livros e eu me estrepava em cambalaxos fin a n ­
sentimental, uma intuição divinatória, u m . . . estado de poesia. ceiros terríveis. E m família, o clima era torvo. Si Mãe e
Com efeito: educados na plástica “ histórica” , sabendo quando irmãos não se amolavam com as minhas “ loucuras” , o resto da
muito da existência dos impressionistas principais, ignorando fam ília me retalhava sem piedade. E com certo prazer a t é :
Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à expo­ esse doce prazer fam iliar de ter num sobrinho ou num primo,
sição de A nita M alfatti, que em plena guerra vinha nos mos­ nm “ p erdido” que nos valoriza virtuosamente. E u tinha
trar quadros expressionistas e cubistas ? Parece absurdo, mas discussões brutais, em que os desaforos mútuos não raro che­
aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de gavam àquele ponto de arrebentação q u e . . . porque será que a
escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos arte os p ro v o ca ! A briga era braba, e si não me abatia nada,
de êxtase diante de quadros que se chamavam o “ Homem A m a­ me deixava em ódio, mesmo ódio.
relo” , a “ Estudanta Russa” , a “ Mulher de Cabelos V erdes” .
F oi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um
E a esse mesmo “ Homem Am arelo” de formas tão inéditas
gesso dele que eu gostava, uma “ Cabeça de Cristo” , mas com
então, eu dedicava um soneto de form a parnasianíssima. . .
que ro u p a ! eu devia os olhos da ca ra ! A ndava às vêzes a-pé
Eramos assim.
por não ter duzentos réis pra bonde, no mesmo dia em que
P ouco depois Menotti dei Picchia e Osvaldo de Andrade
gastara seiscentos mil réis em liv ro s. . . E seiscentos m il réis
descobriam o escultor V ito r Brecheret, que modorrava em São
era dinheiro então. Não hesitei: fiz mais conchavos fin a n ­
Paulo numa espécie de exílio, um quarto que lhe tinham dado
ceiros com o mano, e afinal pude desembrulhar em casa a m i­
gratis, no Palácio das Indústrias, pra guardar os seus calun­
nha “ Cabeça de C risto” , sensualissimamente feliz. Isso a n o­
gas. Brecheret não provinha da Alemanha, como Anita M al­ tícia correu num átimo, e a parentada que morava pegado,
fatti, vinha de Roma. Mas também importava escurezas m e­ invadiu a casa pra ver. E pra brigar. Berravam, berravam.
nos latinas, pois fora aluno do célebre Maestrovic. E fazía­ A qu ilo era até pecado m ortal! estrilava a senhora minha tia
mos verdadeiras rêveries a galope em frente da simbólica exas­ veiha, matriarca da família. Onde se viu Cristo de tran cin h a !
234 MAK.IO DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 235

era fe io ! m edonho! Maria Luisa, vosso filho é um “ p erd id o” certos, leituras de livros e conferências explicativas. F oi o
mesmo. próprio Graça Aranha? fo i Di C a v a lc a n ti!... Porem o que
F iquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era importa era poder realizar essa idéia, além de audaciosa, dis-
bater. Jantei p or dentro, num estado inimaginável de estraça­ pendiosíssima. E o fautor verdadeiro da Semana de A rte
lho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção M oderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma figura como ele
de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bom ­ e uma cidade grande mas provinciana como São Paulo, pode­
ba no centro do m undo. Me lembro que cheguei à sacada, riam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana.
olhando sem ver o meu largo. Ruidos, luzes, falas abertas su­ Ilou ve tempo em que se cuidou de transplantar para o
bindo dos chofêres de aluguel. E u estava aparentemente cal­ R io as raizes do movimento, devido às manifestações impres­
mo, como que indestinado. Não sei o que me deu. F u i até sionistas e principalmente post-simbolistas que existiam então
a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais na capital da República. Existiam, é inegável, principal­
pensara, “ Paulicéia Desvairada” . O estouro chegara afinal, mente nos que mais tarde, sempre mais cuidadosos de equilí­
depois de quase ano de angústias, interrogativas. Entre des­ brio e espírito construtivo, formaram o grupo da revista
gostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco m a is'd e “ Festa” . Em São Paulo, esse ambiente estético só fermen­
uma semana estava jogad o no papel um canto bárbaro, duas tava em Guilherme de Almeida e. num D i Cavalcanti pastelis-
vezes m aior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num ta, “ menestrel dos tons velados” como o apelidei numa dedi­
livro (1 ). catória esdrúxula. Mas eu creio ser um engano esse evolucio-
Quem teve a idéia da Semana de A rte M oderna? P or nismo a todo transe, que lembra nomes de um Nestor Y itor ou
mim não sei quem foi, nunca sube, só posao garantir que não Adelino Magalhães, como elos precursos. Então seria mais
fu i eu. O movimento, se alastrando aos poucos, j á se tornara lógico evocar Manuel Bandeira, com o seu “ Carnaval” . Mas
uma espócie de escândalo público permanente. Já tínhamos si soubéramos deste por um acaso de livraria e o admirávamos,
lido nossos versos no R io de Janeiro; e numa leitura principal, dos outros, nós, na província, ignorávamos até os nomes, p or­
em casa de Ronald de Carvalho, onde também estavam Ribeiro que os interesses imperialistas da Côrte não eram nos mandar
Couto e Renato Alm eida, numa atmosfera de simpatia, “ P auli­ “ humilhados ou luminosos” , mas a grande camelote acadêmica,
céia Desvairada” obtinha o consentimento de Manuel Bandeira, sorriso da sociedade, útil de provinciano gostar.
que em 1919 ensaiara os seus primeiros versos-livres, no “ Car­ Não. O modernismo, no Brasil, fo i uma ruptura, fo i um
n aval” . E eis que Graça Aranha, célebre, trazendo da E u ro­ abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma re­
pa a sua “ Estética da V id a ” , vai a São Paulo, e procura nos volta contra o que era a Inteligência nacional. É muito mais
conhecer e agrupar em torno da sua filosofia. Nós nos ríamos exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse pre­
um bocado da “ Estética da V id a ” que ainda atacava certos parado em nós um espírito de guerra, eminentemente destrui­
modernos europeus da nossa admiração, mas aderimos franca­ dor. E as modas que revestiram este espírito foram, de início,
mente ao mestre. E alguem lançou a idéia de se fazer uma diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éra­
semana de arte moderna, com exposição de artes plásticas, con- mos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicio-
nalistas europeizados, creio ser falta de subtileza crítica. É
(1 ) Depois eu sistematizaria êste processo de separação nítida entre esqueeer todo o movimento regionalista aberto justamente em
o estado de poesia e o estado de arte, mesmo na com posição dos meus
São Paulo e imediatamente antes, pela “ Revista do B rasil” ; é
poemas mais “ dirigidos” . As lendas nacionais, por exemplo, o abrasileira-
mento lingüístico de combate. Escolhido um tema, por meio das excitações
esquecer todo o movimento editorial de M onteiro L obato; é
psíquicas e fisiológicas sabidas, preparar e esperar a chegada do estado de esquecer a arquitetura e até o urbanismo (D ubugras) neo-
poesia. Si êste chega (quantas vezes nunca c h e g o u ...) , escrever sem colonial, nascidos em São Paulo. Desta ética estávamos im­
coação de espécie alguma tudo o que me chega até a mão — a “ sinceridade” pregnados. Menotti dei Picchia nos dera o “ Juca M ulato” ,
do indivíduo. E só em seguida, na calma, o trabalho penoso e lento da
estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevía­
arte —• a “ sinceridade” da obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais
importante que o indivíduo. m os; e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro
'236 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 237

(lo movimento. Mas o espírito modernista e as suas modas da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais
foram diretamente importados da Europa. antiga, justificada no trabalho secular da terra e oriunda de
Ora São Paulo estava maito mais “ ao p ar” que o R io de qualquer salteador europeu, que o critério m onárquico do
Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia mes­ Deus-Rei já amancebara com a genealogia. E fo i p or tudo
mo ser importado por São Paulo e arrebentar na província. isto que Paulo Prado poude m edir bem o que havia de aven­
H avia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre tureiro e de exercício do perigo, no movimento, e arriscar a
R io e São Paulo. O R io era muito mais internacional, como sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura.
norma de vida exterior. Está c la r o : porto de mar e capital Uma coisa dessas seria impossível no Rio, onde não existe
do país, o R io possue um internacionalismo ingcnito. São aristocracia tradicional, mas apenas alta burguesia riquíssima.
Paulo era espiritualmente muito mais moderna porem, fruto E esta não podia encampar um movimento que lhe destruia o
necessário da economia do café e do industrialismo conseqüen­ espírito conservador e conformista. A burguesia nunca soube
te. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espírito perder, e isso é que a perde. Si Paulo Prado, com a sua
provinciano servil, bem denunciado pela sua política, São autoridade intelectual e tradicional, tomou a peito a realização
Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial da Semana, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de
c sua industrialiação, em contato mais espiritual e mais téc­ si os seus pares aristocratas e mais alguns que a sua figura do­
nico com a atualidade do mundo. minava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de
É mesmo de assombrar como o R io mantem, dentro da sua classe com o a do espírito. E foi nó meio da mais tremenda
malícia vibratil de cidade internacional, uma espécie de rura- assuada, dos maiores insultos, que a Semana de A rte Moderna
lismo, um carácter parado tradicional muito maiores que São abriu a segunda fase do movimento modernista, o período
Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece in­ realmente destruidor.
dissolúvel o “ exotismo” nacional (o que aliás é prova de vita­ Porque na verdade, o p e r ío d o .:, heróico, fôra esse ante­
lidade do seu caráter), mas a interpenetração do rural com o rior, iniciado com a exposição de pintura de Anita M alfatti e
urbano. Coisa já impossível de se perceber em São Paulo. terminado na “ festa” da Semana de A rte Moderna. Durante
Como Belem, o R ecife, a Cidade do S alvador: o R io ainda é essa meia-dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desin­
uma cidade folclórica. Em São Paulo o exotismo folclórico teressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das
não freqüenta a rua Quinze, que nem os sambas que nascem mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, evita­
nas caixas de fósforo do Bar Nacional. dos, achincalhados, malditos, ninguém não pode imaginar o
Ora no Rio malicioso, uma exposição como a de A nita delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que
M alfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se dei­ reagimos. O estado de exaltação em que vivíamos era incon-
xava levar. Na São Paulo sem malícia, criou uma religião. trolável. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os
Com seus Neros ta m b é m ... O antigo “ contra” do pintor outros a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial!
M onteiro Lobato, embora fosse um chorrilho de tolices, sacudiu E eram aquelas fugas desabaladas. dentro da noite, na
uma população, m odificou uma vida. eadillac verde de Osvaldo de Andrade, a meu ver a figura
Junto disso, o movimento modernista era nitidamente aris­ mais característica e dinâmica do movimento, para ir ler as
tocrático. Pelo seu carácter de jogo arriscado, pelo seu espí­ nossas obras-primas em Santos, no A lto da Serra, na Ilha das
rito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo m oder­ Palm as. . . E os encontros à tardinha, em que ficávamos em
nista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade exposição diante de algum raríssimo admirador, na redação
antípopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristo­ de “ Papel e Tinta” . . . E a falange engrossando com Sergio
cracia do espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena M illiet e Rubens Borba de Morais, chegados sabidíssimos
burguesia o temessem. Paulo Prado, ao mesmo tempo que da E u r o p a .. . E nós tocávamos com repeito religioso, esses
um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma peregrinos confortáveis que tinham visto Picasso e conver­
das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. Não sado com Romain R olla n d . . . E a adesão, no Rio de um
‘2 3 8 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 239

A lvaro M oreyra, de um Konald de C arvalho. . . E o descobri­ H avia a reunião das terças, à noite, na rua Lopes Chaves.
mento assombrado de que existiam em São Paulo muitos qua­ Primeira em data, essa reunião semanal continha exclusiva­
dros de Lasar Segall, já muito admirado através das revistas mente artistas e precedeu mesmo a Semana de A rte Moderna.
alemãs. . . Tudo gênios, tudo obras-primas geniais. . . A pe­ Sob 0 ponto-de-vista intelectual fo i 0 mais util dos salões, si
nas Sergio M illiet punha um certo malestar no incêndio, com a é que se podia chamar salão àquilo. Às vêzes doze, até quinze
sua serenidade equilibrada. . . E o filósofo dá malta, Couto artistas, se reuniam no estúdio acanhado onde se comia doces
de Barros, pingando ilhas de conciência em nós, quando no tradicionais brasileiros e se bebia um alcolzinho econômico. A
meio da discussão, em geral limitada a batebocas de afirmações arte moderna era assunto obrigatório e 0 intelectualismo tão
intransigente e deshumano que chegou mesmo a ser proibido
peremptórias, perguntava m ansinho: Mas qual é o critério
falar mal da vida alheia! A s discussões alcançavam transes
que você tem da palavra “ essencial” ? o u : Mas qual é o con­
agudos, 0 calor era tamanho que um ou outro sentava nas ja ­
ceito que você tem do “ belo horrível” ? . ..
nelas (não havia assento pra todos) e assim mais elevado domi­
Éramos uns puros. Mesmo cercados de repulsa quotidia­ nava pela altura, já' que não dominava pela voz nem 0 argu­
na, a saúde mental de quase todos nós, nos impedia qualquer mento. E aquele raro retardatário da alvorada parava de­
cultivo da dor. Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma fronte, na esperança de alguma briga p or gosar.
influência única e benéfica sobre nós. Ninguém pensava em
H avia 0 salão da avenida H igienópolis que era 0 mais se­
sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se ima­
lecionado. Tinha por pretexto 0 almoço dominical, maravilha
ginava precursor nem m artír: éramos uma arrancada de he­
de com ida lusobrasileira. A inda aí a conversa era estritamen­
róis convencidos. E muito saudáveis.
te intelectual, mas variava mais e se alargava. Paulo Prado
A Semanà de A rte Moderna, ao mesmo tempo que coroa- com o seu pessimismo fecundo e 0 seu realismo, convertia sem­
mento lógico dessa arrancada gloriosamente vivida (desculpem, pre 0 assunto das livres elocubrações artísticas aos problemas
mas, éramos gloriosos de a n tem ão.. . ) , a Semana de A rte M o­ da realidade brasileira. F oi 0 salão que durou mais tempo e se
derna dava um prim eiro golpe na pureza do nosso -aristocra- dissolveu de maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornan­
cismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia do-se, p or sucessão, 0 patriarca da fam ília Prado, a casa foi
paulista, si ainda sofreriamos algum tempo ataques p or vezes invadida, mesmo aos domingos, p or um público da alta que
crueis, a nobreza regional nos dava mão forte e . . . nos dissol­ não podia compartilhar do rojão dos nossos assuntos. E a
via nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pen­ conversa se manchava de pôquer, casos de sociedade, corridas
sado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de cavalo, dinheiro. Os intelectuais, vencidos, foram se arre-
de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhu­ tirando.
ma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural E houve o salão da rua Duque de Caxias, que fo i 0 maior,
paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. P rin ci­ 0 mais verdadeiramente salão. A s reuniões semanais eram à tar­
piou-»* o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos, até de, também às têrças-feiras. E isso foi a causa das reuniões
perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história artís­ noturnas do mesmo dia irem esmorecendo na rua Lopes Chaves.
tica do país registra. A sociedade da rua Duque de Caxias era mais numerosa e
Mas 11a intriga burguesa escaudalizadíssima, a nossa variegada. Só em certas festas especiais, no salão moderno,
“ orgia ” não era apenas in telectu al... O que não disseram, 0 construído nos jardins do solar e decorado p or Lasar Segall,
o grupo se tornava mais coeso. Também aí 0 culto da tradi­
que não se .contou das nossas festas. Champanha com eter,
ção era firme, dentro do maior modernismo. A cozinha, de
vícios inventadíssimos, as almofadas viraram “ coxins” , criaram
toda uma semântica do m a ld iz e r... N o entanto, quando não cunho afrobrasileiro, aparecia em almoços e jantares perfeitís­
simos de composição. E conto entre as minhas maiores ventu­
foram bailes públicos (que foram 0 que são bailes desenvoltos
ras admirar essa mulher excepcional que fo i Dona Olívia Gue­
de alta sociedade), as nossas festas dos salões modernistas eram
des Penteado. A sua discreção, 0 tato e a autoridade prodigiosos
as mais. inocentes brincadeiras de artistas que se pode imaginar.
240 M A R I O DE A 'N D E A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 241

com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidão hetero­ tendiam construir, formavam núcleos respeitáveis, não tem
gênea que se chegava a< ela, atraída pelo seu prestígio, artistas, dúvida, mas de existência limitada e sem verdadeiramente ue-
políticos, ricaços, cabotinos, foi incomparável. 0 seu salão, nhum sentido temporâneo. Assim Plinio Salgado que, vivendo
que também durou vários anos, teve como elemento principal em São Paulo, era posto de parte e nunca pisou os salões.
de dissolução a efervecência que estava preparando 1930. A Graça Aranha também, que sonhava construir, se atrapalhava
fundação do Partido Democrático, o ânimo político eruptivo muito entre nós; e nos assombrava a incompreensão ingênua
que se apoderara de muitos intelectuais, sacudindo-os para os com que a “ gente séria” do grupo de “ Festa” , tomava a sério
extremismos de direita ou esquerda, baixara um malestar sobre as nossas blagues e arremetia contra nós. Não. O nosso sen­
as reuniões. Os democráticos foram se afastando. P or outro tido era especificamente destruidor. A aristocracia tradi­
lado, o integralismo encontrava algumas simpatias entre as cional nos deu mão forte, pondo em evidência mais essa ge-
pessoas da rod a : e ainda estava muito sem vício, muito- desin­ minação de destino — também ela já então autofagicamente
teressado, pra aceitar acomodações. Sem nenhuma publicidade, destruidora, por não ter mais uma significação legitimável.
mas com firmeza, Dona Olivia Guedes Penteado soube terminar Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio
aos poucos o seu salão modernista. e sempre nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de
O último em data desses salões paulistas fo i o da alameda ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu.
Barão de Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsila. Os italianos, alemães, os israelitas se faziam de mais guardado­
Não tinha dia fixo, mas as festas eram quase semanais. D u­ res do bom-senso nacional que Prados e Penteados e A m a r a is .. .
rou pouco. E não teve jamais o encanto das reuniões que fa- Mas nós estávamos longe, arrebatados pelos ventos da des­
ziamos antes, quatro ou cinco artistas, no antigo ateliê da adrni- truição. E fazíamos ou preparávamos especialmente pela fes­
ravel pintora. Isto fo i pouco depois da Semana, quando fix a ­ ta, de que a Semana de A rte Moderna fôra a primeira. Todo
da na compreensão da burguesia, a existência de uma onda esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós
revolucionária, ela principiou nos castigando com a perda de tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer. E si tamanha
alguns emprêgos. A lguns estávamos quase literalmente sem festança diminuiu por certo nossa capacidade de produção e
trabalho. Então iamos para o ateliê da pintora, brincar de serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos diver­
arte, dias inteiros. Mas dos três salões aristocráticos, Tarsila timos. Salões, festivais, bailes célebres, semanas passadas em
conseguiu dar ao dela uma significação de maior independên­ grupo nas fazendas opulentas, sêmanas-santas pelas cidades
cia, de comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, che­
liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponência de rique­ gadas à Baía, passeios constantes ao passado paulista, Soro­
za e tradição no ambiente, que não era possível nunca evitar caba, Parnaíba, I t ú . . . E ra ainda o caso do baile sobre os
um tal ou qual constrangimento. No de Tarsila jamais senti­ vulcões. . . Doutrinários, na ebriez de m il e uma teorias, sal­
mos isso. O mais gostoso dos nossos salões aristocráticos. vando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consu­
E foi da proteção desses salões que se alastrou pelo Brasil míamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do
o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu prazer.
sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando O movimento de Inteligência que representámos, na sua
inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi fase verdadeiramente “ modernista” , não fo i o fator das mu­
essencialmente destruidor. A té destruidor de nós mesmos, danças político-sociais posteriores a ele no Brasil. F oi essen­
porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a li­ cialmente um preparador; o> criador de um estado-de espírito
berdade da criação. Essa a verdade verdadeira. Enquanto revolucionário e de um sentimento de arrebentação. E si nu­
nós, os modernistas de São Paulo, tínhamos incontestàvelmen- merosos dos intelectuais do movimento se dissolveram na p o ­
te uma repercussão nacional, éramos os bodes espiatórios dos lítica, si vários de nós participamos das reuniões iniciais do
passadistas, mas ao mesmo tempo o Senhor do B onfim dos Partido Democrático, carece não esquecer que tanto este como
novos do país todo, os outros modernos de então, que já pre­ 1930 eram ainda destruição. Os movimentos espirituais prece­
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dem sempre as mudanças de ordem social. 0 movimento social Carlos Gomes, e até mesmo de um A lm eida Junior, eram epi­
de destruição é que principiou com o P. D. e 1930. E no en­ sódicos como realidade do espírito. E em qualquer caso, sem­
tanto, é justo por esta data de 1930, que principia para a Inte­ pre um individualismo'.
ligência brasileira uma fase mais calma, mais modesta e quoti­ Quanto ao direito de pesquisa estética e atualização u ni­
diana, mais proletária, por assim dizer, de construção. À versal da criação artística, é incontestável que todos os m ovi­
espera que um dia as outras formas sociais a imitem. mentos históricos das nossas artes (menos o Romantismo que
E foi a vez do salão de Tarsila se acabar. M il novecentos comentarei adiante) sempre se basearam no academismo. Com
e trin ta . . . Tudo estourava, políticas, famílias, casais de alguma excepção individual rara, e sem a menor repercussão
artistas, estéticas, amizades profundas. O sentido destrutivo coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente
e festeiro do movimento modernista já não tinha mais razão- no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas jã consagradas, se
-de-ser, cum prido o seu destino legítimo. Na rua, o povo amo­ eliminava assim o direito de pesquisa, e consequentemente de
tinado g rita v a : — G etú lio! G etú lio! . . . Na sombra, Plinio atualidade. E fo i dentro desse academismo inelutável que se
S a lg a d o. pintava de verde a sua megalomania de Esperado. realizaram nossos maiores, um A leijadinho, um Costa Ataíde,
No norte, atingindo de salto as nuvens mais desesperadas, outro Cláulio Manuel, Gonçalves Dias, Gonzaga, José Maurício, Ne-
avião abria asas do terreno incerto da bagaceira. Outros pomuceno, Aluísio. E até mesmo um Alvares de Azevedo,
abriam mas eram as veias pra manchar de encarnado as suas até mesmo um Alphonsus de Guimaraens.
quatro paredes de segredo, Mas nesse vulcão, agora ativo e Ora o nosso individualismo entorpecente se esperdiçava no
de tantas esperanças, já vinham se fortifican do as belas fig u ­ mais desprezível dos lemas modernistas, “ Não há escolas!” , e
ras mais nítidas e construidoras, os Lins do Rego, os Augusto isso terá por certo prejudicado muito a eficiência criadora do
Frederico Schmidt, os Otávio de Faria e os Portinari e os Ca­ movimento. E si não prejudicou a sua ação espiritual sobre o
margo Guarnieri. Que a vida terá que imitar qualquer dia. país, é porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como
Não cabe neste discurso de carácter polêmico, o processo das próprias id é ia s .. . Já é tempo de observar, não o que um
analítico do movimento modernista. Em bora se integrassem Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um Carlos Drummond
nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito mo­ de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual. E o
dernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da que nos igualava, p or cima dos nossos dispautérios individua­
Inteligência nacional desse período, foi destruidor. Mas esta listas, era justamente a organicidade de um espírito atualizado,
destruição, não apenas continha todos os germes da atualidade, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade co­
como era uma convulsão profundíssim a da realidade brasilei­ letiva nacional. Não apenas acomodado à terra, mas gostosa­
ra. O que caracteriza esta realidade que o movimento moder­ mente radicado em sua realidade. O que não se deu sem algu­
nista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamen­ ma patriotice e muita fa lsific a ç ã o ...
tais: O direito permanente à pesquisa estética; a atualização Nisto as orelhas burguesas se alardearam refartas por
da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma debaixo da aristocrática pele do leão que nos vestira. . . P o r­
conciência criadora nacional. que, com efeito, o que se observa, o que caracteriza essa radica-
Nada disto representa exatamente uma inovação e de tudo ção na terra, num grupo numeroso de gente modernista de uma
encontramos exemplos na história artística do país. A noVida- assustadora adaptabilidade política, palradores de definições
de fundamental, imposta pelo movimento, fo i a conjugação nacionais, sociólogos otimistas, o que os caracteriza é um con for­
dessas três normas num todo orgânico da conciência coletiva, mismo legítimo, disfarçado e mal disfarçado nos melhores, mas
E si, dantes, nós distiguimos a estabilização assombrosa de na verdade cheio de uma cínica satisfação. A radicação na
uma conciência nacional num Gregório de Matos, ou, mais na­ terra, gritada em doutrinas e manifestos, não passava de um
tural e eficiente, num Castro A lv e s : é certo que a nacionalida­ conformismo acomodatício. Menos que radicação, uma canto­
de deste, como a nacionalistiquice do outro, e o nacionalismo de ria ensurdecedora, bastante acadêmica, que não raro tornou se
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um porque-me-ufanismo larvar. A verdadeira conciência da malidade de língua culta e escrita, estamos em situação inferior
terra levava fatalmente ao não-eonformismo e ao protesto, à de cem anos atrás. A ignorância pessoal de vários fez com
como Paulo Prado com o “ Retrato do B rasil” , e os vasqueiros que se anunciassem em suas primeiras obras, como padrões
“ anjos” do Partido Democrático e do Integralismo. E 1930 excelentes de brasileirismo estilístico. Era ainda o mesmo
vai s"r também nm protesto! Mas para um número vasto de caso dos rom ânticos: não se tratava dum a superação da lei
modernistas, o Brasil se tornou uma dádiva do céu. Um céu portuga, mas duma ignorância dela. Mas assim que alguns
bastante govern am ental.. . Graça Aranha, sempre desacomo- desses prosadores se firm aram pelo valor pessoal admirável
dado em nosso meio que êle não podia sentir bem, tornou-se o que possuiam (me refiro à geração de 3 0), principiaram as
exegeta desse nacionalismo conformista, com aquela frase de­ veleidades de escrever certinho. E é cômico observar que, ho­
testável de não sermos “ a câmara mortuária de P ortu gal” . je, em alguns dos nossos mais fortes estilistas surgem a cada
Quem pensava nisso! P elo con trário: o que ficou dito foi que passo, dentro duma expressão já intensamente brasileira,
não nos incomodava nada “ coincidir” com Portugal, pois o im­ lusitanismos sintáxicos ridículos. Tão ridículos que se tornam
portante era a desistência do confronto e das liberdades falsas. verdadeiros erros de gram ática! Noutros, esse reaportuguesa-
Então nos xingaram de “ prim itivistas” . mento expressional ainda é mais p re cá rio : querem ser lidos
O estandarte mais colorido dessa radicação à pátria foi alem-mar, e surgiu o problema econômico de serem comprados'
a pesquisa da “ língua brasileira” . Mas foi talvez boato falso. em Portugal. Enquanto isso, a melhor intelectualidade lusa,
Na verdade, apesar das aparências e da bulha que fazem agora numa liberdade esplêndida, aceitava abertamente os mais exa­
certas santidades de última hora, nós estamos ainda atualmente gerados de nós, compreensiva, sadia, mão na mão.
tão escravos da gramática lusa como qualquer português. Não Teve também os que, desaconselhados pela preguiça, re­
liá dúvida nenhuma que nós hoje sentimos e pensamos o solveram se despreocupar do p ro b le m a .. . São os que empre­
quantwm satis brasileiramente. D igo isto até com certa malirt gam anglieismos e galicismos dos mais abusivos, mas repudiam
conia, amigo Macunaíma, meu irmão. Mas isso não é o bas­ qualquer “ me parece” por artificial! Outros; mais cômicos
tante para identificar a nossa expressão verbal, muito embora
ainda, dividiram o problema em d o is : nos seus textos escrevem
a realidade brasileira, mesmo psicológica, seja agora mais forte
gramaticalmente, mas permitem que seus personagens, falan­
e insolúvel que nos tempos de José de A lencar ou de Machado
do, “ errem” o português. Assim, a . . . culpa não é do escritor,
de Assis. E como negar que estes também pensavam brasi­
é dos personagens! Ora não há solução mais incongruente em
leiramente? Como negar que no estilo de M achado de Assis,
sua aparência conciliatória. Não só põe em foco o problema
luso pelo ideal, intervem um quid fam iliar que os diferença
do erro de português, como estabelece um divórcio inapelável
verticalmente de um Garret e um O rtigão? Mas si nos român­
entre a língua falada e a língua escrita — bobagem bêbada
ticos, em Alvares de Azevedo, Varela, Alencar, Macedo, Castro
pra quem souber um naco de filologia. E tem ainda as garças
Alves, há unia identidade brasileira que nos parece bem maior
brancas do individualismo que, embora reconhecendo a legiti­
que a de Brás Cubas ou Bilac, é porque nos românticos che­
midade da língua nacional, se recusam a colocar brasileiramen­
gou-se a um “ esquecimento” da gramática portuguesa, que
te um pronome, pra não ficarem parecendo com F u la n o ! Estes
permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico e sua
ensimesmados esquecem que o problema é coletivo e que, si ado­
expressão verbal.
tado por muitos, muitos ficavam se parecendo com o B rasil!
O espírito modernista reconheceu que si vivíamos já de
nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento A tudo isto se ajuntava quase decisório, o interêsse e c o -'
de trabalho para que nos expressássemos com identidade. nômico de revistas, jornais e editores que intimidados com algu­
Inventou-se do dia prà noite a fabulosíssima “ língua brasilei­ ma carta rara de leitor gramatiquento ameaçando não comprar,
ra ” . Mas ainda era c e d o ; e a força dos elementos contrários, se opõem à pesquisa lingüística e chegam ao desplante de corri­
principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, re­ gir artigos assinados. Mas, morto o metropolitano Pedro II,
duziu tudo a manifestações individuais. E hoje, como n or­ quem nunca respeitou a inteligência neste país!
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Tudo isto, no entanto, era sempre estar com o problema cas patrioteiras, o trabalho honesto de fornecer aos artistas
na mesa. A desistência grande foi criarem o mito do “ escrever uma codificação das tendências e constâncias da expressão
naturalmente” , não tem dúvida, o mais feiticeiro dos mitos. lingüística nacional. Mas êles recuam diante do trabalho util,
No fundo, embora não conciente e deshonrosa, era uma desho- é tão mais fácil ler os clássicos! Preferem a ciencinha de ex­
nestidade como qualquer outra. E a maioria, sob o pretexto plicar um êrro de copisía, imaginando uma palavra inexistente
de escrever naturalmente (incongruência, pois a língua escrita, no latim vulgar. Os mais avançados vão até aceitar timida­
embora lógica e derivada, é sempre artificial) se chafurdou na mente que iniciar a frase com pronome obliquo não é “ m ais”
mais antilógica e antinatural das escritas. São uma lástima. êrro no Brasil. Mas confessam não e scre v e r.. . isso, pois não
Nenhum deles deixará de falar “ naturalmente” um “ Está se seriam “ sinceros” com o que beberam no leite materno. Be-
vendo” ou “ Me deixe” . Mas pra e screv er.. . com naturalida­ beram des-hormônios! Bolas para os filó lo g o s !
de, até inventam os socorros angustiados das conjunções, pra Caberia aqui também ç> repúdio dos que pesquisaram so­
se sairem com um “ E se está vendo” que salva a pátria da bre a língua escrita n a c io n a l.. . Preocupados pragmàtica-
retoriquice. E é umà delícia constatar que si afirmam escre­ mente em ostentar o problema, praticaram tais exagêros de
ver brasileiro, não tem uma só frase deles que qualquer luso tornar pra sem pre'odiosa a língua brasileira, E u sei: talvez
não assinasse com integridade n a c io n a l.. . lusa. Se iden tifi­ neste caso ninguém vença o escritor destas linhas. Em p ri­
cam àquele deputado mandando fazer uma lei que chamava' meiro lagar, o escritor destas linhas, com alguma -faringite,
de “ língua brasileira” à língua nacional. P ron to: estava re­ vai passando bem, muito obrigado. Mas é certo que jamais
solvido o problem a! Mas como incontestàvelmente sentem e exigiu lhe seguissem os brasileirismos violentos. Si os prati-
pensam com nacionalidade, isto é, numa entidade ameríndio- ticou (um tempo) foi na intenção de por em angústia aguda
-afro-luso-latino-americano-anglo-franco-etc., o resultado é essa uma pesquisa que julgava fundamental. Mas o problema p ri­
linguagem ersatz em que se desamparam — triste moxinifada meiro não é acintosamente vocabular, é sintáxico. E afirm o
moluscoide sem vigor nem caracter. que o Brasil hoje possue, não apenas regionais, mas generali­
Não me refiro a ninguém não, me refiro a centenas. Me zadas no país, numerosas tendências e constâncias sintáxicas
refiro justamente aos honestos, aos que sabem escrever e pos­ que lhe dão natureza característica à linguagem. Mas isso
suem técnica. São eles que provam a inexistência duma “ lin- decerto fieará para outro futuro movimento modernista, amigo
gua brasileira” , e que a colocação do mito no campo das pes­ José de Alencar, meu irmão.
quisas modernistas foi quase tão prematura como no tempo de
Mas como radicação da nossa cultura artística à entidade
José de Alencar. E si os chamei de inconcientemente desho-
brasileira, as compensações são muito numerosas pra que a
nestos é porque a arte, como a ciência, com o o proletariado não
atual hesitação lingüística se torne falha grave. Como expres­
trata apenas de adquirir o bom instrumento de trabalho, mas
são nacional, é quase incrível o avanço enorme dado pela m ú­
impõe a sua constante reverificação. 0 operário não compra
sica e mesmo pela pintura, bem com o o processo do H om o
a foice apenas, tem de afia-la dia por dia. 0 médico não fica
brasileiro realizado pelos nossos romancistas e ensaístas atuais.
110 diploma, o renova dia por dia no estudo. Será que a arte
Espiritualmente o progresso mais curioso e fecundo é o esque­
nos exime dêste diarismo profissional? Não basta criar o des­
cimento do amadorismo naeionalista e do segmentarismo re­
pudor da “ naturalidade” , da “ sinceridade” e ressonar à som­
gional. A atitude do espírito se transformou radicalmente e
bra do deus novo. Saber escrever está muito bem ; não é mé­
talvez nem os moços de agora possam compreender essa m udan­
rito, é dever primário. Mas o problema verdadeiro do artista
ça. Tomados ao acaso, romances como os de Em il Farhat,
não é êsse: é escrever milhor. Toda a história do profissiona-'
Fran Martins ou Teimo Vergara, ha vinte anos atrás seriam
llsmo humano o prova. Ficar no aprendido não é ser n atu ral: classificados como literatura regionalista, com todo o exotismo
é ser acadêm ico; não é despreocupação: é passadismo. e o insolúvel do “ característico” . H oje quem sente mais isso?
A pesquisa era ingente por demais. Cabia aos filólogos A atitude espiritual com que lemos êsses livros não é mais a da
brasileiros, já criminosos de tão vexatórias reformas ortográfi- contemplação curiosa, mas a de uma participação sem teoria
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nacionalista, uma participação pura e simples, não dirigida, Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa
.expontânea. estétiea, creio não ser possível qualquer con trad ição: é a vitó­
ria grande do movimento no campo da arte. E o mais carac­
É que realizamos essa conquista m agnífica da descentra­
terístico é que o antiacademismo das gerações posteriores à da
lização intelectual, hoje cm contraste aberrante com outras ma­
Semana de A rte Moderna, se fixou exatamente naquela lei
nifestações sociais do paíp. H oje a Côrte, o fulgor das duas
cidades brasileiras de mais de um milhão, não tem nenhum estético-técnica do “ fazer m ilhor” , a que aludi, e não como um
sentido intelectual que não seja meramente estatístico. Pelo abusivo instinto de revolta, destruidor em princípio, como foi
menos quanto à literatura, única das artes que já alcançou o do movimento modernista. Talvez seja o atual, realmente, o
estabilidade normal no país. A s outras são demasiado dispen­ prim eiro movimento de independência da Inteligência brasi­
diosas pra se normalizarem numa terra de tão interrogativa leira, que a gente possa ter como legítimo e indiscutível. Já
riqueza pública como a nossa. O movimento modernista, pon­ agora com todas as probabilidades de permanência. A té o
do em relevo e sistematizando uma “ cultura” nacional, exigiu Parnasianismo, até o Simbolismo, até o Impressionismo inicial
da Inteligência estar ao par do que se passava nas numerosas de um V ila Lobos, o B rasil jam ais pesquisou (com o conciência
Cataguazes. B si as cidades de prim eira grandeza fornecem coletiva, entenda-se), nos campos da criação estética. Não
facilitações publicitárias sempre especialmente estatísticas, é só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos
impossível ao brasileiro nacionalmente culto, ignorar um E rico depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes
Veríssimo, um Ciro dos A njos, um Camargo Guarnieri, nacio­ já academizadas. Era ainda um completo fenômeno de colô­
nalmente gloriosos do canto das suas províncias. Basta com­ nia, imposto pela nossa escravização econômico-social. Pior
parar tais criadoreb com fenômenos já históricos mas idênticos, que isso : êsse espírito acadêmico não tendia para nenhuma li­
um Alphonsus de Guimaraens, um Am adeu Am aral e os re­ bertação e para uma expressão própria. E si um Bilac da
gionalistas imediatamente anteriores a nós, para v e r ific a r' a “ V ia Lactea” é maior que todo o Lecomte, a . . . culpa não é
convulsão fundamental do problema. Conhecer um A lcides de Bilac. Pois o que êle almejava era mesmo ser parnasiano,
Maia, um Carvalho Ramos, um Teles Junior era, nos brasilei­
senhora Serena Forma.
ros de ha vinte anos, um fato individualista de maior ou me­
nor “ civilização” . Conhecer um Gulhermino Cesar, um Viana Essa normalização do espírito de pesquisa estética, anti-
M oog ou Olívio Montenegro, hoje é uma exigência de “ cultu­ acadêmica, porém não mais revoltada e dsstruidora, a meu ver,
ra ” . Dantes, esta exigência estava re le g a d a ... aos histo­ é a maior manifestação de independência e de estabilidade na­
riadores. cional que já conquistou a Inteligência brasileira. E como os
A prática principal desta descentralização da Inteligência movimentos do espírito precedem as manifestações das outras
se fixou no movimento nacional das editoras provincianas. E formas da sociedade, é fácil de perceber a mesma tendência de
si ainda vemos o caso de uma grande editora, como a Livraria liberdade e conquista de expressão própria, tanto na imposição
José Olímpio, obedecer à atração da mariposa pela chama, indo do verso-livre antes de 30, como na “ marcha para o Oeste”
se apadrinhar com o prestígio da Côrte, por isto mesmo êle se posterior a 3 0 ; tanto na “ Bagaceira” , no “ E strangeiro” , na
torna mais com provatório. Porque o fato da Livraria José “ Negra F u lô ” anteriores a 30, como no caso da Itabira e a
Olímpio ter cultamente publieado escritores de todo o país, nacionalização das indústrias pesadas, posteriores a 30.
não a caracteriza. Nisto ela apenas se iguala às outras editoras
E u sei que ainda existem espíritos coloniais (é tão fácil a
também cultas de província, uma Globo, uma Nacional, a
eru d ição!) só preocupados em demonstrar, que sabem mundo à
Martins, a Guaíra. O que exatamente caracteriza a editora da
fundo, que nas paredes de Portinari só enxergam os murais de-
rua do Ouvidor — U m bigo do Brasil, como diria Paulo Prado
— é ter se tornado, por assim dizer, o órgão oficial das oscila­ Rivera, no atonalismo de Francisco M ignone só percebem
ções ideológicas do país, publicando tanto a dialética integra­ Schoemberg, ou no “ Ciclo da Cana de Açúcar*’ , o romam-fleuve
lista como a política do sr. Francisco Campos. dos fra n ce se s...
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O problema não é com plexo mas seria longo discuti-lo aqui. influiu na invenção e na temática cubista. Assim como o
Me lim itarei a propor o dado principal. Nós tivemos no B ra ­ cultíssimo rom an-fleuve e os ciclos com que um Otávio de Paria
sil um movimento espiritual (não falo apenas escola de arte) processa a decrepitude da burguesia, ainda, são instintos e fo r­
que fo i absolutamente “ necessário” , o Romantismo. Insisto: mas funcionalmente populares, que encontramos nas m itolo­
não me refiro apenas ao romantismo literário, tão acadêmico gias cíclicas, nas sagas e nos Kalevalas e Nibelungos de todos
como a importação inicial do modernismo artístico, e que se os povos. Ja um autor escreveu, como conclusão condenatória,
poderá comodamente datar de Dom ingos José Gonçalves de que “ a estética do Modernismo ficou indefinivel” . . . Pois essa
Magalhães, como o nosso do expressionismo de A nita M alfatti. é a milhor razão-de-ser do Modernismo! Ele não era uma
Me refiro ao “ espírito” romântico, ao espírito revolucionário estética, nem na E uropa nem aqui. E ra um estado de espírito
romântico, que está na Inconfidência, no Basilio da Gama do revoltado e revolucionário que, si a nós nos atualizou, sistema­
“ U raguai” nas liras de Gonzaga como nas “ Cartas Chilenas” tizando como constância da Inteligência nacional o direito
de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou o esta­ antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolu­
do revolucionário de que resultou a independência política, e cionário das outras manifestações sociais do país, também fez
teve como padrão bem briguento a prim eira tentativa de língua isto mesmo_ no resto do mundó, profetizando estas guerras de
brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão necessá­ que uma civilização nova nascerá.
rio como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30
E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade
em diante, e também teve como padrão barulhento a segunda
social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma indepen­
tentativa de nacionalização da linguagem. A similaridade é
dência, um direito às suas inquietações e pesquisas que não
muito forte. tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana,
Esta necessidade espiritual, que ultrapassa a literatura ele nem pode imaginar que conquista enorme representa.
estética, é que diferença fundamentalmente Romantismo e M o­ Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo
dernismo, das outras escolas de arte brasileiras. Estas foram de um Lourenço Fernandes, contra a arquitetura do Ministério
todas essencialmente acadêmicas, obediências culturalistas que da Educação, contra os versos “ incompreensíveis” de um M u­
denunciavam m uito bem o colonialismo da Inteligncia nacional. rilo Mendes, contra o personalismo de um G u ig n a r d ? ... Tu­
Nada mais absurdamente imitativo (pois si nem era imitação, do isto são hoje manifestações normais, discutíveis sempre,
era escravidão!) que a cópia, no Brasil, de movimentos estéti­ mas que não causam o menor escândalo público. Pelo contrá­
cos particulares, que de form a alguma* eram universais, como o rio, são os próprios elementos governamentais que aceitam a
culteranismo ítalo-ibérico setecentista, como o Parnasianismo, realidade de um Lins do Rego, de um V ila Lobos, de um A lm ir
com o o Simbolismo, como o Impressionismo, ou como o W agne­ de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo das predestina­
rismo de um Leopoldo Miguez. São superfectações cultura­ ções. Mas um Flavio de Carvalho, mesmo com as suas expe­
listas, impostas de cima pra baixo, de proprietário a p rop rie­ riências numeradas, e muito menos um Clovis Graciano, mas
dade, sem o menor fundam ento nas fôrças populares. D ’aí um Camargo Guarnieri mesmo em luta com a incompreensão
uma base deshumana, prepotente e, meu D eus! arianizante que, que o persegue, um Otávio de Faria com a aspereza dos casos
si prova o imperialismo dos que com ela dominavam, p rova a que expõe, um Santa Rosa, jamais não poderão suspeitar o a
sujeição dos que com ela eram dominados. Ora aquela base que nos sujeitamos, pra que êles pudessem viver hoje aberta-
humana e popular das pesquisas ■'estéticas é facílim o encontrar tamente o drama que os dignifica. A váia acêsa, o insulto
no Romantismo, que chegou mesmo a retornar coletivamente público, a carta anônima, a perseguição fin a n c e ir a ... Mas
às fontes do povo e, a bem dizer, criou a ciência do folclore. E recordar é quase exigir simpatia e estou a mil léguas disto.
mesmo sem lembrar folclore, no verso-livre, no cubismo, no E me cabe finalmente falar sobre o que chamei de “ atuali­
atonalismo, no prèdom ínio do ritmo, no superrealismo miticò, zação da inteligência artística brasileira” . Com e fe ito : não se
no expressionismo, iremos encontrar essas mesmas bases popu ­ deve confundir isso com a liberdade da pesquisa estética, pois
lares e humanas. E até primitivas, como a arte negra que esta lida com formas, com a técnica e as representações da be­
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leza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que sinão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos se fa ­
isso, e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão zendo, não me levaria a esta confissão bastante cruel, de p er­
e uma fôrça interessada da vida. ceber em quase toda a minha obra a insuficiência do absten-
A prova mais evidente desta distinção é o famoso problema cionismo. Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas
do assunto em arte, no qual tantos escritores e filósofos se obras uma caducidade de combate. Estava certo, em p rin cí­
emaranham. Ora não há dúvida nenhuma que o assunto não pio. O engano é que nos pusemos combatendo lençóis super­
tem a menor importância para a inteligência estética. Chega ficiais dp fantasmas. Deveríamos ter inundado a caduci­
mesmo a não existir para ela. Mas a inteligência estética se dade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo,
manifesta por intermédio de uma expressão interessada da so­ de maior revolta contra a vida como está. Em v e z : fomos
ciedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana, quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutu­
imediatista e maior que a criação hedonística da beleza. E car os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura.
dentro dessa funcionalidade humana da arte é que o assunto E si agora percorro a minha obra já numerosa e que representa
adquire um valor prim ordial é representa uma mensagem im ­ uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a más­
prescindível. Ora, como atualização da inteligência artística cara do tempo e esbofetea-la como ela merece. Quando muito
é que o movimento modernista representou papel contraditório lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me
e muitas vezes gravemente precário. satisfaz.
Não me imagino político de ação. Mas nós estamos
Atuais, atualíssimos, universais, originais mesmo por
vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que
vezes em nossas pesquisas e criações, nós, os participantes do
servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um A m ador
período milhormente chamado “ m odernista” , fomos, com algu­
Bueno qualquer, falando “ não quero” e me isentando da atua­
mas excepções nada eonvincentes, vítimas do nosso prazer da
lidade por detrás das portas contemplativas de um convento.
vida e da festança em que nos desvirilizamos. Si tudo m udá­
Também não me desejaria escrevendo páginas explosivas, bri­
vamos em nós, uma coisa nos esquecemos de m u d ar: a atitude
gando a pau p or ideologias e ganhando os louros faceis de um
interessada diante da vida contemporânea. E isto era o p rin ­
xilindró. Tudo isso não sou eu nem é pra mim. Mas estou
cip al! Mas aqui meu pensamento se torna tão delicadamente
convencido de que devíamos ter nos transformado de especula­
confissional, que terminarei êste discurso falando mais direta­
tivos em especuladores. H á sempre jeito de escorregar num
mente de mim. Que se reconheçam no que eu vou dizer os que
ângulo de visão, numa escolha de valores, no embaçado duma
o puderem.
lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condi­
Não tenho a mínima reserva em afirm ar que toda a minha ções atuais do mundo. Não. Virâm os abtencionistas abstê­
obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tem­ mios e transcendentes (1 ). Mas por isso mesmo que fui sin­
po e minha terra. A ju d ei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, ceríssimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com todas
smuita coisa ! E no entanto me sobra agora a sentença de que as minhas cartas à vista, alcanço agora esta conciência de que
fiz m uito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma fom os bastante inatuais. Vaidade, tudo v a id a d e ...
ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo,
Tudo o que fizem os. . . Tudo o que eu fiz foi especial­
sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da
mente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em
vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu
que vivemos. É aliás o que, com decepção açucarada, nos
aristocracismo me puniu- Minhas intenções me enganaram.
explica historicamente. Nós éramos os filhos finais de uma
Vítim a d o meu individualismo, procnro em vão nas minhas civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do
obras, e também nas de muitos companheiros, uma paixão mais prazer individual represa as fôrças dos homens sempre que
temporânea, uma dôr. mais v ir il da vida. Não tem. Tem mais uma idade morre. E já mostrei que o movimento modernista
é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. E s­
tou repisando o que já disse a um m oço. . . E outra poisa (1 ) “ Uns verdadeiros inconcientes” , como já falei uma vez.
ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 255
254 M A B I O DE A N D R A D E

fo i destruidor. Muitos porém ultrapassámos essa fase destrui- H om o Im becilis acabará entregando os pontos à grandeza do
dora,não nos deixámos ficarnoseu espírito e igualámos nosso seu destino.
passo, embora um bocado turtuveante, ao das gerações mais E u creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna
novas. Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiram não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos ser­
a minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que não vir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente p o ­
terei passeado apenas, me iludindo de existir ? . . . É certo que lítica da humanidade. Nunca jamais êle foi tão “ momentâ­
eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgraças neo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos
dos homens. É certo que pretendi regar minha obra de orva­ podem ficar pra depois (1 ). E apesar da nossa atualidade, da
lhos mais generosos, suja-la nas impurezas da dôr, sair do nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não
limbo “ ne trista ne lieta” da minha felicidade pessoal. Mas ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participám os: o
pelo próprio exercício da felicidade, mas pela própria altivez amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência
sensualíssima do individualismo, não me era mais possível re- mesma da nossa idade.
nega-los como um êrro, embora eu chegue um pouco tarde à Si de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfa­
convicção da sua mesquinhez. ção que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira
A única observação que pode trazer alguma complacência do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem
para o que eu fui, é que eu estava enganado. Julgava since­ a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto,
ramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei, ninguém espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a
não imagina quanto, a minha obra — o que não quer dizer que multidão passar. Marchem com as multidões.
si não fizesse isso, ela fosse m ilh or.. . Abandonei, traição Aos espiões nunca foi necessária essa “ liberdade” pela
conciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fu n ­ qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do
damentalmente não sou. Mas é que eu decidira im pregnar indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de
tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem ? . . . Será
vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer que o direito é uma b o b a g e m !... A vida humana é que é
estético, a beleza divina. alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões. E é nessa
vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens.
Mas eis que chego a êste paradoxo irrespirável: Tendo A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que ha-de vir.
deform ado toda a minha obra por um anti-individualismo diri­
gido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um
hiperindividualismo im placável! E é melancólico chegar as­ (1 ) Sei que é impossível ao homem, nem êle deve abandonar os valo­
res eternos, amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que
sim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. numa idade humana como a que vivemos, cuidar dêsses valores apenas e se
Eu não posso estar satisfeito de mim. O meu passado não é refugiar neles em livros de ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo
mais meu companheiro. E u desconfio do meu passado. desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer
outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também.
M udar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou na
rampa dos cincoenta anos e que os meus gestos agora já são
t o d o s ... memórias m u scu la res?... E x omnibus bonis quae
homini tribu it natura, nullum melius esse tem pestiva m o rte ...
O terrível é que talvez ainda nos seja mais acertada a discre-
ção, a virarmos por aí cacoeteiros de atualidade, macaqueando
as atuais aparências do mundo. Aparências que levarão o
ho­
mem por certo a maior perfeição de sua vida. Me recuso a
imaginar na inutilidade das tragédias contemporâneas.O

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