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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

RODOLFO OLIVEIRA PAIVA

O CARNAVAL MESTIÇO: RISO E RELAÇÕES RACIAIS EM JORGE


AMADO

GUARULHOS
2022
RODOLFO OLIVEIRA PAIVA

O CARNAVAL MESTIÇO: RISO E RELAÇÕES RACIAIS EM JORGE


AMADO

Dissertação apresentada à Escola de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Letras, na área de concentração em
Estudos Linguísticos
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andreia dos Santos
Menezes

Guarulhos
2022
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da
UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos
direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de
divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

Paiva, Rodolfo Oliveira.

O carnaval mestiço: riso e relações raciais em Jorge Amado /


Rodolfo Oliveira Paiva – 2022. – 114 f.

Dissertação (mestrado em Letras) – Guarulhos: Universidade


Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Humanas.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Andreia dos Santos Menezes.

Título em espanhol: Carnaval mestizo: risas y relaciones raciales en


Jorge Amado

1. Jorge Amado A. 2. Literatura Brasileira B. 3. Relações Raciais C.


4. Carnavalização I. Menezes, Andreia dos Santos. II. O carnaval mestiço:
riso e relações raciais em Jorge Amado.
Rodolfo Oliveira Paiva
O Carnaval Mestiço: Riso e Relações Raciais em Jorge Amado

Dissertação apresentada à Escola de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Letras
Aprovação: ____/____/________

Prof.ª Dr.ª Andreia dos Santos Menezes


Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. Anderson Salvaterra Magalhães


Universidade Federal de São Paulo

Prof.ª Dr.ª Rosangela Sarteschi


Universidade de São Paulo
Para Maria da Paz,
muito mais que uma mãe.
AGRADECIMENTOS

Ao sistema federal de educação pública, cuja recente expansão ajudou a transformar o meu
destino e o de tantos outros. À Unifesp, campus Guarulhos, lugar acolhedor onde pude estar
fisicamente por tão pouco tempo. À Andreia dos Santos Menezes, minha orientadora, pela
imensa compreensão e o território de liberdade somente concedido pelos verdadeiros mestres.
Ao secretário Douglas Barbosa, cuja prontidão e eficiência tornaram o percurso pandêmico
desta pesquisa certamente menos doloroso. Agradeço aos amigos cuja companhia não usufruí
porque necessitava escrever. E, por fim, ao Jean Rocha, cujo paciente companheirismo tem
me ensinado o poder dos afetos.
“Não abandonou no prazer dos livros o prazer da
vida, no estudo dos autores o estudo dos homens.
Encontrou tempo bastante para a leitura, a
pesquisa, a alegria, a festa e o amor, para todas as
fontes de seu saber.”
Sobre Pedro Archanjo, em Tenda dos Milagres

“O riso não coíbe o homem, liberta-o.”


Mikhail Bakhtin

“Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão.”


Lélia Gonzalez
RESUMO

Nesta dissertação analisamos as relações de Tenda dos Milagres, romance de Jorge Amado
publicado em 1969, com os discursos atuantes à época da sua escritura em torno dos temas
das relações raciais no Brasil, da integração do negro na sociedade competitiva e do carnaval
como festa popular. Para tanto, partimos da concepção de linguagem e dos conceitos oriundos
do chamado Círculo de Bakhtin, principalmente os de enunciado concreto, discurso, meio
ideológico e carnavalização. Assim, buscamos flagrar as relações de sentido entre o romance
e aqueles discursos produzidos na primeira metade do século XX em torno do tema das
relações raciais no Brasil e da integração do negro à sociedade nacional. Depois disso,
buscamos uma compreensão da lógica de composição de Tenda dos Milagres a partir do
carnaval e da carnavalização, conforme os conceitos propostos por Mikhail Bakhtin, Roberto
DaMatta, Emir Monegal entre outros. Analisar a concepção carnavalesca do romance no
contexto de sua avaliação das relações raciais no Brasil levou-nos a estudar a representação
dos sujeitos negros e da cultura popular que dele emerge. Por fim, discutimos como as
imagens do romance vinculam-se, por um lado, à carnavalização e, por outro lado, em que
medida retomam estereótipos sobre a sexualidade das pessoas negras. Nossa intenção foi
contribuir tanto para os estudos sobre Jorge Amado, quanto para o debate a respeito da
representação do negro no contexto brasileiro.

Palavras-Chave: Jorge Amado, literatura brasileira, relações raciais, carnavalização,


representação do negro.
RESUMEN

En esta tesina se analizan las relaciones de Tenda dos Milagres, novela de Jorge Amado
publicada en 1969, con los discursos en el momento de su redacción en torno a los temas de
las relaciones raciales en Brasil, la integración de los negros en la sociedad competitiva y el
carnaval como una fiesta popular. El análisis partió de la concepción de lenguaje y conceptos
del llamado Círculo de Bakhtin, principalmente los de enunciación concreta, discurso, entorno
ideológico y carnavalización. Así, se buscó captar la relación de sentido entre la novela y los
discursos producidos en las primeras décadas del siglo XX sobre el tema de las relaciones
raciales en Brasil y la integración de los negros en la sociedad nacional. Además, el trabajo
señala la lógica compositiva de Tenda dos Milagres desde el carnaval y la carnavalización,
según los conceptos propuestos por Mikhail Bakhtin, Roberto DaMatta, Emir Monegal y
otros. Analizar la concepción carnavalesca de la novela en el contexto de su evaluación de las
relaciones raciales en Brasil llevó al estudio de la representación de los sujetos negros y de la
cultura popular que surge de ella. Además, se discute cómo las imágenes de la novela se
vinculan, por un lado, a la carnavalización y, por otro, en qué medida retoman los estereotipos
sobre la sexualidad de los negros. El trabajo busca contribuir tanto a los estudios sobre Jorge
Amado como al debate sobre la representación de los negros en el contexto brasileño.
Palabras clave: Jorge Amado, literatura brasileña, relaciones raciales, carnavalización,
representación negra.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 A MESTIÇAGEM EM TENDA DOS MILAGRES 19

2.1 Em torno da miscigenação 19

2.2 Os paradoxos da integração 32

2.3 Ressonâncias da Crítica Negra 48

3 A LINGUAGEM CARNAVALESCA EM TENDA DOS MILAGRES 62

3.1 A lógica carnavalesca 63

3.2 A carnavalização em Tenda dos Milagres 77

3.3 Carnavalização e representação 88

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 105

REFERÊNCIAS 108
11

1 INTRODUÇÃO
A motivação para esta pesquisa nasceu de uma viagem a Salvador. Na época havia
terminado a graduação e buscava uma maneira de reunir o que havia estudado em minha
formação em Humanidades ao meu interesse por literatura. Além disso, desde muito tempo
interessava-me especialmente pelo debate sobre a formação histórica do Brasil. A viagem à
Bahia fez com que voltasse a São Paulo com o desejo de estudar algo no qual pudesse reunir
todas essas paixões. Não demorou para que pensasse na literatura de Jorge Amado, uma vez
que sua obra está imbricada ao debate nacional e mundial ao longo do século XX em torno
dos mais diversos temas, entre eles o da formação racial e cultural do país. Por sua vez, a
escolha de Tenda dos Milagres (1969) como o objeto textual principal deveu-se a nele
confluírem tanto os discursos sobre as relações raciais no Brasil, quanto aqueles sobre o
humor e a cultura popular, outros temas do meu interesse.
Antes, porém, de delimitar propriamente o problema desta pesquisa, é importante
situá-la no horizonte teórico que a torna possível. Nesse sentido, a reflexão aqui realizada se
efetua no campo da chamada Análise Dialógica do Discurso, o que significa dizer que
partimos da orientação que vê na produção intelectual dos pensadores do chamado Círculo de
Bakhtin, principalmente de Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pável Medviédev, uma
reflexão original sobre o funcionamento da linguagem de maneira geral, e não apenas sobre
um gênero específico (cf. BRAIT, 2018; FIORIN, 2019; MAGALHÃES; KOGAWA, 2019).
A implicação mais imediata dessa orientação é que partindo desse arcabouço teórico
esperamos que nossa pesquisa tenha a coerência mínima necessária no que diz respeito à
concepção sobre a linguagem e à origem dos conceitos. Assim, é evidente que recorremos a
diversos outros autores, mas buscando perceber se eles tinham uma compreensão também
histórico-contextual da linguagem e dos seus produtos. É o caso, por exemplo, de Stuart Hall
(2016), de Edward Said (2011) ou bell hooks (2019), cujas reflexões nos forneceram
inspiração ou conceitos que, em diferentes graus, foram importantes para as nossas
conclusões. Sem contar as obras de Clóvis Moura (2019), Lélia Gonzalez (2020), Jessé Souza
(2021) entre outros importantes pensadores brasileiros, cujos trabalhos foram fundamentais
para situar historicamente e de maneira crítica várias das nossas questões.
Uma segunda implicação diz respeito ao objeto mesmo da pesquisa. Isso porque ao
nos debruçarmos sobre um romance – o Tenda dos Milagres (1969) – de uma perspectiva
discursiva dialógica, talvez seja preciso delimitar o escopo específico da análise. Nesse
sentido, sem perder de vista o romance como uma totalidade de sentidos – ou, nas palavras de
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Bakhtin, a arquitetura composicional (BAKHTIN, 2014, p. 54) – estivemos especialmente


interessados na obra enquanto um momento da “comunicação histórica e cultural”
(BEZERRA, 2016, p. 153). Com isso, queremos dizer que o romance de Jorge Amado foi
analisado como pertencente a um determinado meio ideológico (MEDVIÉDEV, 2019, p. 59)
e que a análise buscou focar os vínculos que ele estabelece com aqueles discursos atuantes à
época de sua produção. Em outras palavras, buscamos principalmente perceber as relações
dialógicas (BAKHTIN, 2016, p. 103) existentes entre enunciados do romance e os discursos
formulados em torno de temas específicos, a saber, as relações raciais no Brasil, a integração
do negro na sociedade nacional e o carnaval como festa popular.
Nesse ponto, e antes de detalhar nossos objetivos específicos, é importante discutir,
ainda que brevemente, o significado de algumas noções do pensamento do Círculo de
Bakhtin, a começar pelo sentido de “diálogo”. Vejamos o que dizia Valentin Volóchinov,
ainda na década de 1920, sobre a natureza do enunciado:

Desse modo (já temos o direito de dizer isso), toda palavra realmente
pronunciada (ou escrita conscientemente) e não adormecida no léxico é a
expressão e o produto da interação social entre os três: o falante (autor), o
ouvinte (leitor) e aquele (ou aquilo) sobre quem (ou sobre o quê) eles falam
(o personagem). [...] O enunciado concreto (e não a abstração linguística)
nasce, vive e morre no processo de interação social entre os participantes do
enunciado. O seu significado e a sua forma são determinados principalmente
pela forma e pelo caráter dessa interação. Ao separar o enunciado do solo
real que o nutre, perdemos a chave tanto da forma quanto do sentido,
restando nas nossas mãos ou o invólucro linguístico abstrato, ou o esquema
do sentido, também abstrato (a famigerada “ideia da obra” dos antigos
teóricos e historiadores da literatura): duas abstrações que não podem ser
unidas entre si, pois não há terreno concreto para uma síntese viva delas.
(VOLÓCHINOV, 2019, p. 128)

Não pretendo tentar uma interpretação geral sobre o dialogismo, mas somente notar
que da perspectiva do Círculo de Bakhtin o ato de produção de enunciados 1 sempre expressa
mais que a relação entre um sujeito e um objeto. Ou seja, na composição do enunciado estão

1 Em um texto escrito na década de 1950, Mikhail Bakhtin apresenta uma definição semelhante, talvez mais
completa em si mesma: “O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e
únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da
linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais na língua, mas, acima de tudo,
por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional – estão indissoluvelmente ligados no conjunto do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um campo de comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos
gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2016, p. 11-12).
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sempre presentes ao menos dois sujeitos, numa interação que o constitui por dentro
(VOLÓCHINOV, 2019, p. 141) e que condiciona, entre outras coisas, os próprios elementos
estilísticos, gestuais ou composicionais. Esse terceiro elemento constitutivo do enunciado
pode ser um interlocutor imediato, como aquele existente no diálogo entre duas pessoas, mas
sem que todo diálogo se reduza a essa forma exemplar. Além disso, à maneira do exemplo
dado por Volóchinov, mesmo a compreensão de uma simples conversa sobre a chuva fica
prejudicada quando se desconhece a situação efetiva de enunciação. É essa situação concreta
o que o autor nomeia de “horizonte subentendido” dos falantes (VOLÓCHINOV, 2019, p.
120), ou seja, aquelas avaliações que dizem respeito às condições compartilhadas da vida e
que vão desde a situação imediata de se estar em casa num dia de chuva, passando pelas
condições sociais mais abrangentes como o pertencimento a uma família ou a uma classe, até
ao fato de pertencer a uma determinada época, ao momento histórico de uma dada sociedade
ou de uma certa nação (VOLÓCHINOV, 2019, p. 121). Esse horizonte compartilhado,
condição de sentido do enunciado, é parte atuante na composição do enunciado também na
medida em que tal contexto é ele mesmo formado pelos enunciados mais diversos: desde os
sobre as condições triviais da vida, até os sobre temas artísticos, religiosos, científicos,
políticos etc., todos compondo afinal a “realidade ideológica circundante” (MEDVIÉDEV,
2019, p. 59) com a qual interagem o enunciado mais simples e o romance mais complexo. Em
suma, esse contexto é a realidade ideológica na qual ambos os enunciados, tanto por meio da
escolha do seu conteúdo temático, quanto pelos procedimentos composicionais ou formais,
elaboram sua avaliação social específica (VOLÓCHINOV, 2019, p. 134).2
Dito isso, acredito poder dizer que por “diálogo” se entende as variadas formas de
interação entre enunciados. Em outros termos, que um enunciado é sempre, em algum grau,
uma resposta a outro enunciado que o provoca, assim como se projeta aos enunciados futuros
possivelmente elaborados em sua resposta ou que de alguma maneira o levam em
consideração (BAKHTIN, 2016, p. 58). Por essa razão, para o Círculo de Bakhtin o enunciado
é concebido como o verdadeiro elo da cadeia de “comunicação histórica e cultural”
(BEZERRA, 2016, p. 153). É também nesse sentido que utilizaremos o termo “discurso”,
2 Pareceram-me muito grandes as correspondências entre essa concepção da linguagem e aquela levada a cabo
por Eduard W. Said em seu Cultura e Imperialismo (2011), mesmo considerando as diferentes influências
teóricas do autor. Neste monumental estudo, Said busca “situar” (e.g. 2011, p. 285) as grandes obras da cultura
do século XIX e XX no contexto ideológico, político, econômico, territorial etc., do imperialismo europeu.
Porém, mais do que contextualizar em um sentido fraco as obras no seu momento histórico, o autor busca as
“conexões internas” (2011, p. 237) delas com a realidade contemporânea e imperial na qual foram produzidas.
Um outro argumento nevrálgico da sua análise é que as obras culturais precisam ser compreendidas levando em
conta as dinâmicas concretas de poder – no caso, do imperialismo – e que dão a alguns indivíduos e não a outros
a possibilidade, inclusive, de representar.
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posto que esta palavra parece ser utilizada por Bakhtin em ao menos dois sentidos: (I) como o
ato de produzir enunciados; (II) como uma cadeia de enunciados. Esse segundo sentido, por
sua vez, decorre da concepção dos enunciados como internamente dialogados, expressão da
interação entre os sujeitos, e relacionando-se entre si pelas respostas que dão aos enunciados
passados e futuros em torno deste ou daquele conteúdo temático (cf. BAKHTIN, 2011, p.
371).
É possível perceber ainda que se essas relações são relativamente simples em um
diálogo entre duas pessoas concretas, elas ganham em complexidade quando ocorrem em
outros tipos de enunciados ou gêneros discursivos: por exemplo, um tratado científico ou uma
obra filosófica. Também o interlocutor do enunciado pode ser próximo ou bem definido,
como numa correspondência. Porém, mais interessante é o caso de um diário, ou ainda do
gênero confessional: por exemplo, nas Confissões de Santo Agostinho, em que o interlocutor
é diretamente Deus, mas, ao mesmo tempo, um terceiro, o leitor ou a testemunha presumida
daquele diálogo (cf. BAKHTIN, 2015, p. 104). Quando são outros os gêneros filosóficos,
também são outros os interlocutores presumidos – o que dizer, por exemplo, do “alguns
homens nascem póstumos” nietzschiano? Certamente são distintas as relações em um tratado
de geometria ou em uma tese de antropologia.
Com relação ao romance, o interlocutor é certamente o leitor mas, como insiste
Volóchinov (2019, p. 142), somente na obra inferior esse leitor se identifica plenamente a um
público específico. O romance parece querer falar aos seus “contemporâneos” ou à sua
“época”, ainda que em certa medida isso signifique a classe e o grupo social do autor,
condicionantes dos seus critérios de avaliação e da hierarquia dos seus valores. Igualmente
complexas são as ressonâncias dialógicas em torno dos conteúdos temáticos – aspecto este
fundamental para nossos fins. Sobre isso, quando refletindo sobre as diferenças entre o
discurso de expressão monológica e dialógica, dizia Mikhail Bakhtin:

Ora, todo discurso concreto (enunciado) encontra o objeto para o qual se


volta sempre, por assim dizer, já difamado, contestado, avaliado, envolvido
ou por uma fumaça que o obscurece ou, ao contrário, pela luz de discursos
alheios já externados a seu respeito. Ele está envolvido e penetrado por
opiniões comuns, pontos de vista, avaliações alheias, acentos. O discurso
voltado para o seu objeto entra nesse meio dialogicamente agitado e tenso de
discursos, avaliações e acentos alheios, entrelaça-se em suas complexas
relações mútuas, funde-se com uns, afasta-se de outros, cruza-se com
terceiros; e tudo isso pode formar com fundamento o discurso, ajustar-se em
todas as suas camadas semânticas, tornar complexa sua expressão,
influenciar toda a sua feição estilística. (BAKHTIN, 2015, p. 48)
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Essas considerações são relevantes uma vez que, diferentemente do diálogo cotidiano
entre duas pessoas (em que todos esses fatores certamente atuam, mas numa escala menor),
um romance pode ser visto como um complexo emaranhado de enunciados, respostas e
avaliações sociais organizados a partir das estratégias de composição disponíveis para seu
gênero discursivo, aliás sempre em constante desenvolvimento. Portanto, qualquer romance
interage com muitos outros discursos, sejam eles filosóficos, religiosos, políticos etc., atuantes
no seu meio ideológico, em um diálogo que é perceptível por meio das relações dialógicas,
entendidas como qualquer relação de sentido definida por uma convergência em torno de um
tema comum, de uma avaliação em comum (BAKHTIN, 2015, p. 88). São essas relações
dialógicas que nos permitem comparar textos às vezes muito distintos, como romances,
poesias, tratados de sociologia, estudos de psicologia ou músicas, percebendo neles
ressonâncias parecidas ou relacionadas, mesmo que muito sutis, em torno de um mesmo
problema. É o que permite perceber uma avaliação similar sobre um aspecto da vida prática e
ideológica de uma dada sociedade em determinado tempo, bem como ao longo do tempo.
Agora temos elementos para falar diretamente do nosso problema.
O objetivo desta dissertação é discutir, especificamente, um romance da chamada
segunda fase da literatura de Jorge Amado, o Tenda dos Milagres, publicado em 1969. O que
nos interessou foi compreender as relações dialógicas que o romance estabelece com aqueles
discursos atuantes à época de sua produção em torno do tema das relações raciais no Brasil,
da integração do negro na sociedade nacional, além do tema do carnaval e da cultura popular.
Nesse sentido, as perguntas centrais da pesquisa podem ser assim formuladas: qual o
posicionamento do romance no debate racial brasileiro de meados da década de 1960? Qual a
representação dos sujeitos e do povo, em especial do afro-brasileiro, que dele emerge? Qual o
país que Tenda dos Milagres imagina?3
No segundo capítulo buscamos, portanto, compreender Tenda dos Milagres no
contexto dos diferentes discursos que, de meados do século XIX até os anos 1960, discutiram
a formação do povo brasileiro, reatualizando de diferentes maneiras o tema das “raças
fundadoras”. Assim, sem querer discutir de imediato a verdade ou falsidade dos seus
enunciados, neste momento nos interessou compreender as linhas gerais da sua positividade
teórica, ou seja, do seu funcionamento discursivo, suas proposições e pressupostos, situando-

3 Isso na direção do que diz Benedict Anderson (2008), para quem o romance é um dos principais responsáveis
por construir a ideia de nação como uma grande “comunidade imaginada”, em sentido cultural, territorial,
linguístico etc.
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os no contexto histórico ou mesmo epistemológico que os tornava possíveis. 4 De início,


portanto, desejamos perceber as relações do romance com o que chamamos aqui de “discurso
raciológico”: aqueles formulados no Brasil a partir de fins do século XIX que, partindo da
ciência racista de moldes europeus, apregoavam não somente a existência de uma diversidade
de raças humanas, como afirmavam a hierarquia entre elas – ou seja, que defendiam uma
absoluta superioridade da “raça branca” sobre as demais. Uma vez que partimos das menções
presentes no próprio romance, a variante do discurso raciológico que mais nos interessou foi
aquela formulada pelo médico baiano Raimundo Nina Rodrigues e seus seguidores, grupo
que, como veremos, sugeriu diversos elementos ao enredo e que o autor não se abstém de
parodiar.
Na segunda seção do segundo capítulo, busquei compreender o discurso forjado em
resposta ao primeiro e que buscou uma compreensão da formação sociorracial do Brasil a
partir de outras bases epistemológicas e valorativas. Neste ponto dediquei-me principalmente
a compreender os textos do sociólogo Gilberto Freyre, visto que sua obra serviu como uma
das fontes definidoras para o que chamamos de “discurso de miscigenação”. Similarmente ao
que foi dito acima, o esforço foi de reunir os enunciados de maneira a descrever suas
proposições principais e as linhas gerais do seu funcionamento. Um outro aspecto é que,
como se tentou mostrar, o romance de Jorge Amado apresenta muito mais convergências de
sentido com o discurso de miscigenação do que com os outros discursos analisados – aliás,
sua obra é certamente um dos sujeitos principais desse discurso. Contudo, convergência não
quer dizer identificação plena. Não se buscou, portanto, ver na obra literária a mera
“tradução” daquilo dito sociologicamente por Gilberto Freyre e outros, nem mesmo descrever
unicamente suas confluências. O que buscamos foi perceber no romance as concordâncias e
discordâncias, mas, principalmente, o que há nele de singularidade em termos de suas
avaliações e das hierarquias de valores. Por fim, na última seção do segundo capítulo
analisamos as relações dialógicas estabelecidas entre o romance e aquele discurso crítico tanto
ao pensamento raciológico do século XIX e XX quanto ao discurso de miscigenação, cujos
sujeitos principais foram os movimentos negros, apoiados a partir dos anos 1950 por
pesquisas sociológicas realizadas em outras bases científicas.
No terceiro capítulo procurei descrever as relações do romance com o riso e a cultura
popular carnavalesca. A hipótese apresentada é que em Tenda dos Milagres o carnaval não é

4 Para situar os discursos no seu contexto histórico e epistemológico foram fundamentais os trabalhos de
Schwarcz (1993), Munanga (2019) e Mesquita (2018), entre outros.
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mero artifício narrativo ou maneira de descontrair; mas que, pelo contrário, ele fornece a
própria “lógica imanente da criação” (cf. BAKHTIN, 2011, p. 179), o que se vincula
intrinsecamente no romance à filosofia da mistura defendida pelo autor. Como veremos ao ler
a obra à luz da teoria do carnaval de Mikhail Bakhtin e de outros pensadores, a festa
carnavalesca funda um mundo invertido, ainda que transitório. Um mundo às avessas que no
caso brasileiro significa um momento de utopia igualitária em que os atores sociais tendem a
interagir horizontalmente. Isso significa que o carnaval inverte por um momento as
hierarquias cotidianas entre pessoas e valores, rebaixando o que é tido como elevado,
destronando o que se diz com autoridade. Daí o sentido da carnavalização efetuada por Jorge
Amado em Tenda dos Milagres: como uma maneira de valorizar aquelas culturas e pessoas –
negros e mestiços da Bahia, além de bêbados, putas etc. – costumeiramente desprezados pela
sociedade e a literatura dominante. Além disso, desse ponto de vista, é interessante perceber
que os ecos carnavalescos no romance não se resumem às possíveis influências literárias,
efeito da leitura de Cervantes, Rabelais ou Machado de Assis5 – que certamente têm um papel
importante –, mas que os elementos do carnaval ali entranhados derivam do contato com uma
linguagem viva, mas que, ao mesmo tempo, estende raízes longínquas na história passada das
festas carnavalescas e da cultura de diversos povos. Dito de outro modo, isso tem a ver com
aquilo que Bakhtin chamou de evolução no “grande tempo”, isto é, que as obras da cultura e
da literatura são “preparadas por séculos; na época da sua criação colhem-se apenas os frutos
maduros do longo e complexo processo de amadurecimento” (BAKHTIN, 2011, p. 362).
Contudo, pareceu-nos que a valorização da corporeidade tipicamente carnavalesca
acaba, no romance, por ir ao encontro de outras cadeias de sentido que pensam os corpos
negros como expressão da pura animalidade ou da ausência de espírito. Assim, nas últimas
páginas da discussão buscou-se apontar como, na representação dos homens e das mulheres
em Tenda dos Milagres, existem elementos que reforçam ou, no mínimo, se sobrepõem às
imagens estereotipadas sobre a sexualidade das pessoas negras. Ora, dada a ambivalência
constitutiva da lógica carnavalesca no romance, nesse ponto o grande desafio foi compreender
como se dá a inversão dos valores hegemônicos, sem deixar de apontar as limitações ou
características problemáticas das suas imagens. E isso sem adotar um ponto de vista que,
implícita ou explicitamente, considere as hierarquias valorativas dominantes como o critério
único de avaliação. Dito claramente: como avaliar as imagens da sexualidade em Tenda dos

5 Uma leitura como a que faz Sergio Paulo Rouanet (2007) a respeito da obra de Machado de Assis guarda seu
interesse, desde que não se perca de vista ser ela uma tentativa de dar conta dos procedimentos literários ou
meramente formais; coisa que o autor possui, aliás, completa consciência.
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Milagres sem cair em um puritanismo tacanho? Uma saída foi, como não poderia deixar de
ser, situar as imagens do romance no contexto dos discursos que historicamente tiveram a
sexualidade das pessoas negras como tema (cf. SANTOS, 2014; GONZALEZ, 2020, p. 158).
Além disso, a partir da discussão sobre a concepção de moralidade e de sujeito moral na
sociedade moderna ocidental (cf. SOUZA, 2021), refletimos sobre os elementos da narrativa
que dialogam com esses valores. Evidentemente, toda essa discussão extrapola as
características e o tempo disponível para uma dissertação. Portanto, o que fizemos não foi
muito mais que indicar ideias e autores que possam ser interessantes para uma análise mais
aprofundada nessa direção. Talvez como uma provocação aos estudiosos do futuro.
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2 A MESTIÇAGEM EM TENDA DOS MILAGRES

2.1 Em torno da miscigenação


Nos primeiros capítulos de Tenda dos Milagres acompanhamos a chegada ao Brasil do
cientista norte-americano e ganhador do Prêmio Nobel James D. Levenson, no ano de 1968.
Não vinha, porém, para algum congresso acadêmico, mas sim para conhecer a terra de um
pensador baiano: Pedro Archanjo, o escritor de livros sobre a cultura popular e sobre a
miscigenação. Escritor praticamente desconhecido por seus conterrâneos, somente agora
conclamados pela autoridade do americano a revirar sebos e livrarias para então poder
escrever nas colunas de jornais, nas gazetas científicas, nos congressos, artigos sobre a imensa
importância do autor para a cultura nacional. Aquele seria finalmente o ano de Pedro
Archanjo: mesmo que post-mortem, quando de nada lhe servia a fama ou o interesse das
mulheres – “em vida tão de seu regalo e apetite” (AMADO, 1969, p. 26).

Aquele fora o “ano de Pedro Archanjo”, escreveu, em balanço de fim de ano,


destacado jornalista, ao enumerar os acontecimentos culturais. Realmente,
nenhuma figura intelectual gozou de tamanha evidência, nenhuma outra obra
obteve os elogios concedidos aos seus quatro pequenos volumes,
reimpressos às carreiras. Livros por tantos lustros esquecidos, ou melhor:
desconhecidos não só da massa de leitores mas também dos especialistas –
com as costumeiras e honrosas exceções das quais logo se dará notícia.
(AMADO, 1969, p. 26)

É fácil notar que o livro se inicia por uma paródia 6 dos intelectuais, acadêmicos, além
de jornalistas brasileiros da sua época, representados aqui como servos do poderio não
somente econômico, mas cultural e intelectual americano. Deboche, portanto, da elite
nacional que desprezava seus grandes pensadores, ou só era capaz de reconhecê-los quando
tal reconhecimento lhes era imposto por alguma autoridade estrangeira. Seja como for, o
romance se desenrola em torno destes dois recortes temporais. O primeiro, contado por um

6 Faremos uma discussão mais aprofundada do conceito de paródia no próximo capítulo, quando estivermos
discutindo o carnaval. Entretanto, aqui é interessante dizer que, segundo a teoria de Bakhtin, na linguagem
paródica se é tomado para fim de riso ou deslocamento outra linguagem como objeto. Ou seja, na paródia temos
a imagem de outra linguagem. Lembrando que por “linguagem” não se entende somente a língua com seus
elementos gramaticais etc., mas todo o conjunto de gestos, tons e estilos, maneiras de dizer, além do conteúdo
ideológico concreto nela elaborada. Isso significa que as representações de uma linguagem são tomadas como
“inseparáveis das visões de mundo e dos seus portadores vivos, pessoas que pensam, falam e atuam em
condições históricas e sociais concretas” (BAKHTIN, 2014, p. 370). Dizer que a paródia é uma imagem de uma
linguagem é dizer que é a imagem da linguagem de alguém: de uma pessoa ou grupo, de uma instituição, mesmo
de um movimento estético, de um gênero literário em voga, cujos sujeitos têm esta ou aquela entonação, maneira
de pensar, avaliar, valorar.
20

narrador anônimo, traça as peripécias desta “redescoberta” de Archanjo após a visita do


cientista americano, em capítulos dedicados a mostrar a construção de uma imagem distorcida
e oficial do escritor baiano. Neles acompanhamos como a imagem de Archanjo é difundida
nos veículos de imprensa ou nas peças publicitárias, e a maneira como pretendem elevá-lo à
condição de representante da cultura nacional. Além disso, junto aos preparativos pelas
comemorações do centenário do escritor, percebemos alusões a importantes acontecimentos
políticos da época: a ditadura brasileira, os movimentos por direitos civis nos Estados Unidos,
o apartheid na África do Sul. Também nesses capítulos conhecemos Fausto Pena, sociólogo e
poeta aspirante à fama, além de apaixonado por Ana Mercedes, a mulher negra – “mulata” no
dizer do livro – com quem o americano Levenson se relaciona em sua curta passagem pela
Bahia.
O segundo recorte temporal trata da biografia propriamente dita de Pedro Archanjo,
narrada por este Fausto Pena, que se dedica à pesquisa mais ou menos a pedido do cientista
Levenson. Essa biografia se inicia pela morte de Archanjo, passando pelos episódios
principais da vida do baiano nascido em 1868. Ficamos sabemos dos seus anos de juventude e
de sua formação junto ao povo e à cultura popular. Vemos o personagem quando trava
conhecimento com Lídio Corró, aquele que será seu grande amigo, como também temos
notícia dos seus amores e paixões, além dos vários filhos que gerou. Nessa sua biografia
também é narrado o ano de 1900, momento importante da vida de Archanjo, pois é quando
assume o cargo de bedel na Faculdade de Medicina e, ao mesmo tempo, o de Ojuobá, os olhos
de Xangô, no terreiro de mãe Majé Bassã. Esse episódio faz parte, como veremos, dos
inumeráveis momentos em que o personagem é mostrado participando de diferentes mundos
(branco e negro, erudito e popular etc.), cujo sentido é enfatizar sua mestiçagem física e
também cultural.
O emprego de Archanjo na Faculdade de Medicina da Bahia é bastante importante na
narrativa, uma vez que é lá que ele encontrará seu grande antagonista, aquele que representa
no livro a negação de tudo aquilo que ele e sua vida representam. Trata-se de Nilo Argolo de
Araújo, professor de medicina legal. Vejamos desde logo o episódio do primeiro diálogo
direto entre ambos. Tal encontro se dá no pátio da Faculdade de Medicina da Bahia, e
acontece em razão do primeiro livro publicado por Archanjo, chamado A Vida Popular da
Bahia, impresso com a ajuda de seu amigo Lídio Corró, e que era uma primeira resposta de
Archanjo às teses defendidas por Nilo Argolo sobre a inferioridade de “negros” e “mestiços”,
sua suposta degenerescência e tendência ao crime.
21

No pátio, conversam os dois:


— Li sua brochura e, tendo em conta quem a escreveu –, novamente o
examinou com os olhos fulvos e hostis –, não lhe nego certo mérito, limitado
a algumas observações, bem entendido. Carece de qualquer seriedade
científica e as conclusões sobre mestiçagem são necedades delirantes e
perigosas. Mas nem por isso deixa de ser repositório de fatos dignos de
atenção. Vale leitura.
Pedro Archanjo, em novo esforço, transpôs a muralha a separá-lo do
professor, reatou o diálogo:
— O senhor professor não acredita que tais fatos falam a favor de minhas
conclusões?
De sorriso escasso, pouco frequente na linha fina dos lábios, para o professor
o riso solto era rareza quase sempre provocada pela tolice, pela imbecilidade
dos indivíduos:
— Faz-me rir. Seu alfarrábio não contém uma única citação de tese,
memória ou livro; não se apoia na opinião de nenhuma sumidade nacional
ou estrangeira, como ousa dar-lhe categoria científica? Em que se baseia
para defender a mestiçagem e apresentá-la como solução ideal para o
problema de raças no Brasil? Para atrever-se a classificar de mulata nossa
cultura latina? Afirmação monstruosa, corruptora.
— Baseio-me nos fatos, senhor professor.
— Asnice. O que significam os fatos, de que valem, se não os examinamos à
luz da filosofia, à luz da ciência? Já lhe aconteceu ler algo sobre o assunto
em pauta – mantinha seu riso de zombaria: – Recomendo-lhe Gobineau. Um
diplomata e sábio francês: viveu no Brasil e é autoridade definitiva sobre o
problema das raças. Seus trabalhos estão na biblioteca da escola.
— Li apenas alguns trabalhos do senhor professor e do professor Fontes.
— E não o convenceram? Você confunde batuque e samba, hórridos sons,
com música; abomináveis calungas, esculpidos sem o menor respeito às leis
da estética, são apontados como exemplos de arte; ritos de cafres têm, a seu
ver, categoria cultural. Desgraçado deste país se assimilarmos semelhantes
barbarismos, se não reagirmos contra esse aluvião de horrores. Ouça: isso
tudo, toda essa borra, proveniente da África, que nos enlameia, nós a
varreremos da vida e da cultura da pátria, nem que para isso seja necessário
empregar a violência.
— Já foi empregada, senhor professor. (AMADO, 1969, p. 151-152)

Neste trecho podemos ver a intensa defesa por parte do professor Argolo da
inferioridade de negros e seus descendentes; aliás, de toda cultura não branca em relação aos
“povos arianos”. Dessa maneira, este personagem constitui a imagem paródica de uma pessoa
real: Raimundo Nina Rodrigues, professor de medicina legal na Bahia que nos primeiros anos
do século XX sustentou teorias defensoras da suposta superioridade da civilização europeia e
do “tipo ariano”, ou seja, dos brancos “puros” em relação aos indivíduos e culturas não
brancas. O romance, inclusive, além de vários elementos faz a parodia de datas e títulos. Por
exemplo, no romance um dos trabalhos publicados por Nilo Argolo chama-se A
Degenerescência Psíquica e Mental dos Povos Mestiços – o Exemplo da Bahia, e teria sido
publicado em 1904 (AMADO, 1969, p. 103). Esse título remete diretamente a um artigo de
22

Nina Rodrigues: Mestiçagem, Degenerescência e Crime, realmente publicado em 1899. Por


essa razão pensamos que a compreensão de Tenda dos Milagres e do personagem Nilo Argolo
deve passar pela caracterização do pensamento de Nina Rodrigues, cujas ideias representaram
na virada do século XIX para o XX um dos principais polos de discussão sobre o futuro (ou a
ausência de futuro) do Brasil como uma nação.
Naquele momento uma questão atormentava os vários segmentos da elite nacional: a
possiblidade ou não do país, que era então uma República e que só recentemente abolira a
escravidão, se tornar uma nação aos moldes dos países europeus. Mais explicitamente, a
pergunta poderia ser assim formulada: pode um país com tão poucos brancos, ou seja, com
uma população tão grande de não brancos, entre africanos, indígenas e descendentes mestiços,
ser uma nação? As respostas foram variadas, diversos foram os modelos propostos. No
entanto, podemos identificar dois objetos principais de preocupação: o grau de “mestiçagem”
da população e o status único ou diverso de cidadania a ser adotado (este último de maneira
mais ou menos implícita).
Schwarcz (1993) aponta um elemento decisivo e curioso: diz a autora que bebendo nas
fontes teóricas que bebiam, ou seja, nas teorias raciais de cunho positivista ou evolucionista, a
resposta àquela pergunta sobre o futuro do Brasil feita por médicos e intelectuais só poderia
ser uma: a nação estava fadada ao fracasso, uma vez que habitada por tanta gente escura; isto
é, por indivíduos considerados inferiores, descendentes de povos tidos como existindo em
estágio de desenvolvimento anterior se comparados aos povos europeus. Nas palavras de Nina
Rodrigues (2011, p. 49), tais povos eram ainda “crianças”, além do mais incapazes de se
civilizar. Apesar disso, a aporia vivida teoricamente por estes pensadores era que,
participando eles mesmos deste contexto, precisavam de alguma forma propor uma “solução”.
Fazendo uso dos instrumentos que possuíam, esses “homens de sciencia” forjaram
uma convivência bastante extravagante entre o discurso liberal e racial. Se o primeiro
constava no texto da lei e nas falas oficiais, o segundo surgia com frequência nos romances
naturalistas e nas teses científicas – seja na área do direito, na medicina, nas ciências naturais
ou na história. De um lado, portanto, estava a fala dos “homens de medicina”, que viam na
mistura de raças o nosso maior veneno e se responsabilizavam pela descoberta do antídoto; de
outro, “os homens da lei”, que, apenas teoricamente se afastavam desse debate, posto que
oficialmente defendiam a adoção de um Estado liberal, mas que na prática ponderavam sobre
a justeza de agir sobre a população que segundo um dos pensadores da época era “composta
23

por tantas raças desiguais, e talvez pouco preparada para o exercício da cidadania” (RAFDR,
1919 apud SCHWARCZ, 1993, p. 321).
Tal discussão sobre a viabilidade ou não do Brasil enquanto nação habitou nesses anos
todas as principais instituições que a partir do Império fundaram-se no Brasil: institutos
históricos e geográficos, museus, faculdades de Direito e Medicina (SCHWARCZ, 1993).
Mas talvez tenha prosperado principalmente nas faculdades de Direito, que adotavam alguma
versão iluminista ou universalista da lei, e nas faculdades de Medicina, onde as propostas
seguiam com menor ou maior criatividade os modelos raciológicos de cunho positivista ou
evolucionista dos teóricos europeus.
Antes de prosseguir é importante notar que houve exceções à adoção destas teorias
racistas entre os membros da intelectualidade e da elite brasileira desses anos. Segundo
Kabengele Munanga (2019), as variações à adoção dos modelos de racismo científico foram
levadas adiante por pensadores que se voltaram mais para os condicionantes sociais, vendo
neles as causas reais da situação certamente aviltante da população negra e mestiça no Brasil;
e que apontaram o investimento em educação e a necessária melhoria das condições de vida
como solução para o problema – “o problema do negro”, como era chamado – e para a
construção da nação brasileira. Nomes como Alberto Torres, Manuel Bonfim ou Manuel
Querino criticavam a ideia de uma homogeneidade populacional como pressuposto
indispensável para a formação da nacionalidade, e apontavam os séculos de espoliação, além
das condições deploráveis de habitação e educação formal como as principais fontes do nosso
atraso. A situação da população negra não se devia, segundo tais autores, a alguma
característica inata, mas, pelo contrário, poderia o povo “progredir e aperfeiçoar-se”
(MUNANGA, 2019, p. 64).
Parece fora de dúvida, entretanto, que foram os modelos de determinismo biológico,
os evolucionismos e eugenismos os que mais frutificaram em solo nacional. Seja nas
formulações médicas, nas proposições legais ou na dita “modernização” das cidades, com a
destruição dos cortiços e a decorrente expulsão dos pobres e negros para áreas distantes
(ESTEVES, 2017); seja com a imigração de europeus para branqueamento populacional, sob
o argumento da preguiça e indisposição dos negros para o trabalho (MOURA, 2019, p. 115),
tais iniciativas suplantaram, em muito, qualquer movimento no sentido de constituir uma
nação coesa, não pela homogeneização violenta da suas características étnicas e culturais, mas
pela universalização dos pressupostos da cidadania. Entre os principais defensores de uma
24

necessária “solução”, por violenta que fosse, para a existência física e cultural de negros e
mestiços, estava o nome de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906).
Em seu estudo sobre esse período, Schwarcz (1993) mostrou que, uma vez adotados os
modelos médicos e teóricos europeus disponíveis à época, seria difícil pensar em outros
termos que não aqueles sobre uma suposta diferença “natural” entre os povos. E, de fato,
foram esses os modelos seguidos por Nina Rodrigues, médico maranhense depois
estabelecido na Bahia: entre seus mestres estavam Lombroso, Ferri, Garófalo e Lacassagne,
juristas e médicos italianos defensores de uma vertente positivista do Direito e da teoria de
que os crimes teriam base natural e hereditária; ou seja, que o objeto de investigação penal
deveria se dar a partir do estabelecimento da relação causal entre o crime realizado e a
personalidade ou a psicologia do sujeito que o cometeu. Dessa forma, essa corrente descartava
a teoria do livre-arbítrio, posicionando-se contra as correntes liberais de interpretação da lei.
Também foram modelos de Nina Rodrigues as teorias eugenistas de Galton e o darwinismo
social de Spencer (RODRIGUES, 2015, p. 4), sem contar o conhecido tratado de Arthur de
Gobineau, o Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, publicado em 1855, no qual
se defendia a diferença de “raças”, além do suposto caráter degenerativo da “miscigenação”.
De fato, em um trabalho chamado Raças Humanas e Responsabilidade Penal no
Brasil, publicado em 1894, Nina Rodrigues defendia não somente a existência de diferentes
raças humanas, como também que cada uma delas estaria em uma fase diferente de evolução.
Seu objetivo era se opor à interpretação liberal e igualitária das leis teoricamente levada
adiante nas faculdades de Direito, principalmente em São Paulo, e que defendiam uma
capacidade de livre-arbítrio igualmente distribuída entre os indivíduos, ou ao menos capaz de
ser alcançada por todos. Para o autor, uma vez que as raças eram diferentemente capazes de
responsabilidade, não seria justo nem razoável a existência de um único código legal; pelo
contrário, deveriam existir leis adaptadas aos diferentes tipos individuais e raciais, teoria esta
que ele chamava de “responsabilidade atenuada” (2011 [1894], p. 52).7 Além do mais,
segundo Nina Rodrigues, seu argumento não poderia ser derrubado pela existência de

7 A respeito do negro, Nina Rodrigues afirmava: “O negro não tem mau caráter, mas somente caráter instável
como a criança, e como na criança – mas com esta diferença que ele já atingiu a maturidade do seu
desenvolvimento fisiológico –, a sua instabilidade é a consequência de uma celebração incompleta. Num meio de
civilização adiantada, onde possui inteira liberdade de proceder, ele destoa... como eram nossos países d’Europa,
essas naturezas abruptas, retardatárias, que formam o grosso contingente do delito e do crime. As suas
impulsividades são tanto melhor e mais frequentemente frequentadas para o ato antissocial, quanto às obrigações
da coletividade lhes aparecem mais vagas, quanto elas são, em uma palavra, menos adaptáveis às condições de
sua moralidade e do seu psíquico. O negro crioulo conservou vivaz os instintos brutais do africano: é rixoso,
violento nas suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez e esse fundo de caráter imprime o seu cunho na
criminalidade colonial atual” (NINA RODRIGUES, 2011 [1894], p. 49).
25

exceções – como a daqueles indígenas ou negros de tipo “superior”, mais capazes moral e
intelectualmente até mesmo que a média dos brancos, pois “se admitem todos que essas raças
não estão aptas ainda para um alto grau de civilização, todavia ninguém desconhece que há
negros e pode haver índios que valham mais do que brancos. Para estes negros e índios [...] a
responsabilidade penal deveria ser completa” (2011 [1894], p. 50).
Sobre o tema da miscigenação, Nina Rodrigues se opunha frontalmente à tese que via
nela uma saída para a construção de uma homogeneidade nacional. Essas teorias, como as
defendidas por Silvio Romero a respeito da formação do povo brasileiro, argumentavam que o
elemento branco se sobreporia com o tempo ao negro ou ao índio, compensando as
deficiências destes graças ao caráter eugênico da “raça branca”, ou seja, em decorrência de
sua suposta superioridade natural. Ao comentar tais ideias, Kabengele Munanga aponta que:

Desde os tempos coloniais, a população branca foi desigualmente distribuída


pelo extenso território. A imigração de italianos e alemães concentrou-se em
certas regiões do País com exclusão de outras, da mesma forma que foi
desigualmente distribuída pelos invasores. Baseando-se nessas
desproporções de distribuição no espaço geográfico nacional – de acordo
com o clima, as áreas privilegiadas pela imigração branca, pela concentração
dos negros, pela dizimação dos índios –, Nina reforça sua discordância da
tese sustentada por Sílvio Romero sobre a existência de um tipo étnico
brasileiro resultado da mestiçagem, através da qual realiza-se a
predominância da raça branca. (MUNANGA, 2019, p. 58)

Para Nina Rodrigues, pelo contrário, a miscigenação só serviria para degradar tanto o
branco quanto o negro ou o indígena, privando-lhes de suas relativas qualidades e gerando um
indivíduo em geral incapaz e desprezível. Lançando mão da teoria de um “retorno atávico”, o
médico argumentava que os mestiços poderiam repercutir tanto elementos da raça mais
evoluída, sendo assim indivíduos capazes de civilizar-se; como poderiam manifestar – o que
segundo ele seria o mais provável – as características das raças menos evoluídas, tanto no
caso dos mestiços de indígena quanto, e principalmente, nos de negro. Logo,

[...] é de todo impossível precisar, estabelecer leis fatais e invariáveis à


transmissão hereditária dos caracteres atávicos aos mestiços. E esta
circunstância complica sobremodo a tarefa do perito nos exames médico-
psicológicos. Mesmo nos mestiços mais disfarçados, naqueles em que o
predomínio dos caracteres da raça superior parece definitiva e solidamente
firmado, não é impossível revelar-se de um momento para outro o fundo
atávico do selvagem. (NINA RODRIGUES, 2011 [1894], p. 39)
26

Sua conclusão era que em vez de incentivar a miscigenação, a elite branca dominante
deveria instituir ao menos quatro divisões penais correspondentes aos tipos raciais
predominantes em cada uma das regiões do país. Divisão esta que, segundo Munanga (2019,
p. 59), se levada adiante poderia ter significado uma “instituição da diferença” à maneira do
apartheid na África do Sul. Nesse ponto é importante observar que se de um ponto de vista
científico a argumentação de Nina Rodrigues é decorrência dos modelos raciológicos italianos
ou ingleses adotados por ele, é bom lembrar que esses mesmos modelos vinham sendo
seriamente contestados: primeiro pela ascensão da teoria da evolução de Darwin como
paradigma científico nas ciências naturais; depois pela elaboração de disciplinas como a
Sociologia ou a Antropologia, no interior das quais acabaram por prevalecer as explicações
culturalistas e históricas a respeito das diferenças entre os povos.
A adoção por parte da elite intelectual nacional de modelos teóricos ultrapassados ou
em vias de o ser não deve ser entendida unicamente como parte do ciclo normal de elaboração
reflexiva. Mais que isso, trata-se de sério indicador dos condicionantes sociais e políticos de
tais discursos raciológicos, ou simplesmente racistas. A adoção desses modelos expressava
também a necessidade de explicar a abissal discrepância de poder e prestígio entre os grupos
sociais. Em outros termos, a necessidade de elaborar em termos pretensamente científicos a
supremacia do grupo étnico branco ou embranquecido sobre a população não branca. Dessa
forma, lembremos que o Brasil vivia sob tutela das potências imperiais da época, tanto em seu
aspecto econômico quanto cultural; ou seja, dependência não mais em relação a Portugal, mas
à Inglaterra e à França, além dos Estados Unidos (FREYRE, 2003b; SAID, 2011). A atitude
de aceitação de hierarquias raciais e civilizacionais ecoava, primeiro, a dificuldade de
diferenciar teoricamente supremacia (domínio) de superioridade, seja ela moral ou espiritual.
Em segundo lugar, ecoava a necessidade por parte da elite nacional, detentora de uma
“brancura” bastante contestável (GUERREIRO RAMOS, 1955), de diferenciar-se do grupo
não branco da população, identificando-se ao mundo branco, europeu ou imperial.
Todos esses elementos estão presentes na composição do personagem Nilo Argolo
(imagem paródica de Nina Rodrigues), através da maneira como é caracterizado por Jorge
Amado na narração de Fausto Pena. Argolo, apesar das afirmações a respeito de sua
inteligência e erudição, é descrito sempre em situações cujo sentido é mostrar sua exagerada
seriedade, seu racismo ultrapassado, sua petulância e pedantismo. Sua presença é composta de
forma a enfatizar o elemento ridículo de sua pessoa: Nilo Argolo de Araújo, um “micróbio”
no dizer de sua prima Zabela; o objeto do riso, apesar das sete línguas que falava; além do
27

mais, o alvo preferido dos estudantes da faculdade quando tinham de eleger alguém para o
deboche ou a chanchada – estudantes estes, aliás, que representam no romance as ideias
progressistas, bem como a propensão ao riso e ao escárnio.

“Monstro!”, diziam os estudantes ao citar o professor Argolo, reportando-se,


ao mesmo tempo, à sua tão propalada fama de luminar: “É um monstro, lê e
fala sete línguas”, e à sua ruindade, à sua desoladora aridez de sentimentos:
inimigo do riso, da alegria, da liberdade, nos exames arguidor sem
compaixão, tendo prazer em reprovar: “O Monstro se esporra todo quando
dá um zero”.[...] Uma anedota – por sinal verdadeira – conta que, sendo
amigo de longa data do dr. Marcos Andrade, juiz de direito da capital, num
comércio de relações cordiais a durar há mais de dez anos, ocorreu ao
professor visitá-lo certa noite, na observância de estabelecido hábito mensal.
Após o jantar, na intimidade da família, o magistrado pusera-se a la frescata,
ou seja: conservando a calça de listras, o colete, o colarinho duro e o
plastrão, retirando o redingote, devido ao intenso calor da noite de mormaço,
sufocante. [...] Ao vê-lo assim decomposto, em indecente traje, numa
intimidade quase de alcova, o professor Argolo pôs-se de pé:
— Até hoje pensei que Vossa Senhoria tinha-me consideração. Vejo que me
enganei – e sem mais dizer saiu porta afora. Recusando explicação e
desculpa do meritíssimo, retirou-lhe para sempre afeição e cumprimento.
Grosseira, suja e sem dúvida fala, a notícia dada em versos e entre risos no
Terreiro de Jesus, maligna vingança do estudante mundinho Carvalho,
reprovado pelo monstro:
“Vou cantar em versos brancos
Para evitar rimas em preto
O doutor Nilo Argolo
Nosso nobre catedrático
Com preconceito de cor
Mandou raspar os pentelhos
Da condessa dona Augusta
Tão lindos mais, ai, tão negros”. (AMADO, 1969, p. 149-150)

Percebemos aqui uma paródia das práticas europeizadas da elite da época – no


vestuário, nas maneiras e, talvez mais que tudo, no orgulho de ostentar um francês bem
pronunciado; assim como notamos a apropriação pelo autor dos procedimentos carnavalescos,
da linguagem grotesca e dos versos ridicularizadores típicos da cultura popular etc. No
entanto, eram as ideias de personagem tão risível que autorizavam, no universo da narrativa, o
ataque à cultura dos negros, como a perseguição policial aos terreiros de candomblé; além da
proibição de manifestações da cultura popular negra e mestiça, como o carnaval e os afoxés,
tidos como incivilizados, e cuja necessária extinção dependia, segundo Nilo Argolo (e Nina
Rodrigues), a possibilidade de constituir-se uma verdadeira nação.
É contra tais ideias, portanto, que Pedro Archanjo escreverá seus livros. Suas quatro
pequenas brochuras serão dedicadas a mostrar a força criativa, apesar da miséria e das
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dificuldades, do povo da Bahia; além disso, a presença negra e africana, e sua contribuição na
formação de uma cultura “mulata”. Uma vez que, conforme afirma Pedro Archanjo, ou
melhor, conforme uma citação do seu livro: “Da miscigenação nasce uma raça de tanto talento
e resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespero na criação quotidiana da beleza
e da vida” (AMADO, 1969, p. 254). Assim, a narrativa se empenha em mostrar essa mistura
como constitutiva da própria vida de Archanjo. Além disso, também outras personagens – na
verdade, toda a narrativa – são moldadas de maneira a sugerir e ser “prova” da miscigenação
física e cultural, vista sempre como positiva e criativa, ao contrário do que dizia o discurso
racista de Nilo Argolo e companhia.
Mais uma vez, o personagem Pedro Archanjo é marcado pela “mistura”, tanto em seu
corpo quanto em sua história. Chegamos a mencionar que em um momento importante da
narrativa Archanjo assume, ao mesmo tempo, o posto de Ojuobá no terreiro de Majé Bassã e
o cargo de bedel na Faculdade de Medicina, isso no ano de 1900. Um movimento
característico do romance, posto que o personagem é sempre visto com um pé na cultura de
matriz negro-africana e outro na de matriz branco-europeia: nos lugares que frequenta, nos
livros que lê, nas histórias que conta, nas mulheres que deseja. Sempre um e outro, branco e
preto, sem que chegue a atravessar definitivamente a linha – ao menos assim pretende o autor
de Tenda – e ao fim permanecendo ao lado do povo negro e mestiço, dos pobres da Bahia.

O moleque Damião apenas percebia o som do riso claro, abandonava tudo, a


briga mais emocionante, para vir sentar-se à espera das histórias. Dos orixás,
Archanjo sabia a completa intimidade; de outros heróis também: Hércules e
Perseu, Aquiles e Ulisses. Demônio travesso, terror dos vizinhos, debochado
e perdido, chefe de malta sem lei, Damião não aprenderia a ler não fosse
Archanjo lhe ensinar. Nenhuma escola o reteve, nenhuma palmatória o
convenceu, três vezes fugiu do patronato. Mas os livros de Archanjo – a
Mitologia grega, o Velho Testamento, Os três mosqueteiros, Viagens de
Gulliver, Dom Quixote de la Mancha –, a risada tão comunicativa, a voz
quente e fraterna: “sente aqui, meu camaradinho, venha ler comigo uma
história batuta”, ganharam o vadio para a leitura e as contas. (AMADO,
1969, p. 46)

Nesse sentido, é curioso o personagem do padre franciscano frequentador do terreiro


de candomblé, e também amigo de Archanjo e de Majé Bassã. Em certos aspectos, tal
personagem inverte o arquétipo do padre consolidado no romance naturalista ou realista:
aquele vil personagem, clérigo de baixa fé e moral, além de tudo mulherengo e cheio de
filhos, tantas vezes retratado e detratado na literatura – um caso exemplar é o padre Diogo do
romance O Mulato, de Aluísio Azevedo (2018). Este franciscano é o padre que também não
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segue rigidamente a cartilha católica, porém é alegre e sem dogmas rígidos – um exemplar,
portanto, tipicamente carnavalesco. É de se destacar ainda que, segundo o romance, essa
configuração amolecida se dava pela mistura, uma vez que o padre era frequentador ao
mesmo tempo da Igreja de Cristo e do Candomblé, o templo dos negros. Ideia de mundos
diferentes, mas fundidos, que é também sugerida pelo próprio nome da praça onde se localiza
a igreja: o Terreiro de Jesus, no centro histórico de Salvador.

Numa dessas tardes, de claro sol e doce brisa, Archanjo vinha pelo Terreiro
de Jesus em seu passo levemente gingado. Fora levar um recado do
secretário da faculdade ao prior dos franciscanos, um frade holandês de
barbas e careca, afável: com evidente prazer degustava um cafezinho, serviu
ao risonho bedel:
— Eu conheço o senhor... – falou com seu acento crespo.
— Passo o dia quase todo aqui na praça, na escola.
— Não foi aqui – o frade riu um riso cheio e folgazão. – Sabe onde foi? Foi
no candomblé. Só que eu estava de civil, escondido num canto, e o senhor
numa cadeira especial, junto da mãe-de-santo.
— O senhor, padre, no candomblé?
— Às vezes vou, não diga a ninguém. Dona Majé é minha camarada. Ela me
disse que o senhor é muito competente em matéria de macumba. Um dia
desses, se o senhor me der o prazer, desejo conversar consigo... – Archanjo
sentiu a paz do mundo no claustro de árvores frondosas, flores e azulejos; a
paz do mundo no envolvente franciscano.
— Quando quiser, estou às ordens, padre. (AMADO, 1969, p. 104)

Não se limitando a mostrar o lado supostamente harmônico do encontro de culturas –


o livro também narra os episódios de perseguição aos terreiros de candomblé, entre outras
coisas – não há dúvida de que o tom dominante no romance diz respeito à tentativa de
convencer o leitor sobre o aspecto tido como tipicamente baiano, além de brasileiro: a mistura
de raças e de culturas, a miscigenação. Por isso é preciso investigar quais outros discursos
tornam esse tipo de avaliação possível. Dito de outro modo, é preciso ver que outras vozes
falam na fala de Pedro Archanjo. Porque neste personagem podemos ouvir a voz de muitos
outros: por exemplo, de Edison Carneiro, de Gilberto Freyre, de Exu e do próprio Jorge
Amado. Contudo, no plano mais visível da narrativa, a pessoa a servir de fonte à construção
da personagem, procedimento caro ao autor, como vimos, é agora Manuel Querino, um
pensador baiano e afro-brasileiro (GOLDSTEIN, 2003, p. 180; SPERB, 2012).

Compartilham pessoa e personagem muitos elementos. Manuel Querino, que além de


escritor foi militante político e funcionário público, nasceu em 1851 em Santo Amaro da
Purificação, no Recôncavo Baiano, vindo a falecer no ano de 1923. Escreveu uma série de
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obras, entre artigos de jornal e livros, publicados entre 1903 e 1923, especialmente sobre a
contribuição dos africanos e depois dos afro-brasileiros à construção da nação brasileira desde
a época colonial. Entre suas publicações constam: As Artes da Bahia (Escorço de uma
Contribuição Histórica), de 1909; A Raça Africana e seus Costumes na Bahia, de 1916; A
Arte Culinária na Bahia, de 1928; Costumes Africanos no Brasil, de 1938, entre outros
(LEAL, 2011, p. 80).
Ora, em Tenda dos Milagres se diz que foram publicados por Pedro Archanjo os
seguintes livros: A Vida Popular na Bahia, de 1907; Influência Africanas nos Costumes da
Bahia, de 1918; Apontamentos sobre a Mestiçagem nas Famílias Baianas, de 1928; A
Culinária Baiana: Origens e Preceitos, de 1930. Três destes quatro títulos remetem
diretamente aos títulos e datas dos livros realmente escritos por Manuel Querino. Porém, mais
que semelhanças de nomes e datas, importa-nos verificar relações entre as ideias defendidas
por Querino e aquelas atribuídas ao personagem Pedro Archanjo no romance de Jorge
Amado. Relações entre ideias ou enunciados que jogam luz sobre a utilização dos dados
biográficos e, além disso, sobre um procedimento de composição literária caro ao romancista.
Vejamos um trecho de um dos livros publicados por Manuel Querino:

Do convívio e colaboração das raças na feitura deste País, procede esse


elemento mestiço de todos os matizes, donde essa plêiade ilustre de homens
de talento que, no geral, representaram o que há de mais seleto nas afirmações
do saber, verdadeiras glórias da nação. Sem nenhum esforço pudemos aqui
citar o Visconde de Jequitinhonha, Caetano Lopes de Moura, Eunápio Deiró,
a privilegiada família dos Rebouças, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Cruz
e Souza, José Agostinho, Visconde de Inhomirim, Saldanha Marinho, Padre
José Maurício, Tobias Barreto, Lino Coutinho, Francisco Glicério, Natividade
Saldanha, José do Patrocínio, José Teófilo de Jesus, Damião Barbosa, Chagas
o Cabra, João da Veiga Muricí e muitos outros só para falar nos mortos.
Circunstância essa que nos permite asseverar que o Brasil possui duas
grandezas reais: a uberdade do solo e o talento do mestiço. (QUERINO, 2018
[1918], p. 31)

Essa última ideia é formulada de diversas maneiras ao longo do romance. E, de fato,


importava a Manuel Querino mostrar, primeiro, a indispensabilidade do africano na
construção do país desde os primórdios da colonização; depois, a formação de um povo
“mestiço de todos os matizes” esforçado e com grande capacidade criativa. Assim, em seu
texto a contribuição do negro se iguala, se não excede, a contribuição dos portugueses; estes
que, segundo o escritor, eram compostos no início da colonização do Brasil pelos “piores
elementos da metrópole” (QUERINO, 2018 [1918], p. 10), as primeiras levas formadas de
31

“degredados, de indivíduos viciosos, de soldados de presídios” (QUERINO, 2018 [1918], p.


15). Em comparação a eles, o negro africano, ainda que escravizado, teria servido com a
disciplina e o cuidado no interior da família; com braços para as armas e a defesa do território;
além de possuir técnicas de mineração e de caça. Tudo isso junto, claro, aos frutos do seu
trabalho, o excedente com o qual as famílias brancas e proprietárias puderam criar e educar os
filhos, fazer arte e política. Nas palavras de Manuel Querino:

Quem quer que compulse a nossa história certificar-se-á do valor e da


contribuição do negro na defesa do território nacional, na agricultura, na
mineração, como bandeirante, no movimento da independência, com as
armas na mão, como elemento apreciável na família, e como o herói do
trabalho em todas as aplicações úteis e proveitosas. Fora o braço propulsor
do desenvolvimento manifestado no estado social do país, na cultura
intelectual e nas grandes obras materiais, pois que, sem o dinheiro que tudo
move, não haveria educadores nem educandos: feneceriam as aspirações
mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas mais valiosas. Foi com o
produto do seu labor que os ricos senhores puderam manter os filhos nas
universidades europeias, e depois nas faculdades de ensino do País,
instruindo-os, educando-os, donde saíram veneráveis sacerdotes,
consumados políticos, notáveis cientistas, eméritos literatos, valorosos
militares, e todos quantos ao depois fizeram do Brasil colônia o Brasil
independente, nação culta, poderosa entre os povos civilizados. (QUERINO,
2018 [1918], p. 31)

Que não se estranhe ouvir ecos do discurso socialista nestas palavras, uma vez que,
segundo a nota biográfica de Leal (2011), antes de escrever os livros sobre a cultura afro-
brasileira, Querino participou da organização de partidos de orientação proletária, trabalhista
ou socialista, ainda no tempo do Império: elemento de militância política operária que liga,
uma vez mais, a biografia de Manuel Querino ao personagem Pedro Archanjo. Isso porque
conta a narrativa de Tenda dos Milagres que o velho Pedro Archanjo, quase na absoluta
miséria e depois de passados os anos da disputa com Nilo Argolo, viu-se metido em greve dos
trabalhadores da cidade, uma espécie de última contribuição à luta popular. Mesmo que com
dificuldades para viver, ganhando parco dinheiro nos trabalhos humildes, nos bicos e nas
aulas de português a meninos, narrava Fausto Pena que o velho achava forças para caminhar
de porta em porta, convencendo e motivando, ouvindo e anotando. Mais que isso, “poucos
moços podiam competir com aquele velho na ação e na iniciativa. Porque ele não o fazia a
mando, por obrigação, para cumprir tarefa de grupo ou de organismo partidário. Fazia-o por
achar justo e divertido.” (AMADO, 1969, p. 301).
32

Além das relações com a biografia e o pensamento de Manuel Querino podemos ver
neste episódio da vida de Pedro Archanjo ainda outra relação, pois aqui o autor conecta o
romance àquele outro livro publicado por Jorge Amado, num longínquo ano de 1935: o
Jubiabá. Naquele romance de juventude, cujos temas são semelhanças, mas a solução era
outra, acompanhamos a vida do protagonista Antônio Balduíno. Depois de uma série de
peripécias, o protagonista terminava se envolvendo nas disputas operárias em torno da greve
geral de 1934, na Bahia. O livro concluía, portanto, pela primazia da luta de classes como a
ferramenta dos pobres, brancos ou negros contra a opressão. Ora, é nesta mesma greve que
vemos Pedro Archanjo, um senhor ainda enérgico, lutando junto aos demais trabalhadores
contra os patrões – mas também contra os nazistas, as ditaduras e a favor da mistura de raças.
Dessa forma, Jorge Amado conecta os dois romances sobre a cultura popular negra e mestiça
da Bahia: pois nada impede que estivessem na mesma greve e de braços dados o jovem
Antônio Balduíno e o velho empolgado Pedro Archanjo.

2.2 Os paradoxos da integração


Se a biografia de Manuel Querino dá indícios sobre alguns aspectos da construção do
personagem principal do romance, não é suficiente, porém, para compreendermos tanto
alguns outros elementos do enredo quanto o contexto sociocultural que dá sentido a sua
escritura. Ao nosso ver, é impossível compreender adequadamente o discurso sobre as “raças”
e a “miscigenação” no Brasil se não levarmos em conta o meio ideológico decorrente das
profundas mudanças socioculturais ocorridas no país após os anos 1920 e, principalmente,
1930. Além do mais, é difícil compreender o discurso de miscigenação, parte indissociável de
como se deu a construção de um discurso nacional entre nós (ALBUQUERQUE JUNIOR,
2011), sem mencionar os debates e contribuições intelectuais do período e, em especial, a
contribuição paradigmática dada pela obra de Gilberto Freyre. É impossível, portanto,
compreender o debate cultural e intelectual dos anos 1960, ou seja, o contexto imediato de
escritura de Tenda dos Milagres, sem ter as linhas gerais desse discurso plenamente elaborado
nos anos 1930 e 1940, nos dias de hoje conhecido como o defensor da existência de uma
“democracia racial” no Brasil.
Mencionamos acima que, do ponto de vista das elites nacionais, havia uma grande
questão à espera de resposta após a Abolição e a República: a da possibilidade do Brasil se
tornar uma nação e, mais do que isso, uma nação “branca” ou ocidental em meio a uma
33

população imensamente negra e mestiça. Tais questões se acentuavam na medida em que as


primeiras décadas do século davam lugar a transformações aceleradas: do ponto de vista
econômico havia a deterioração da antiga economia do açúcar e a mudança definitiva do eixo
de dinamismo para a região Sul-Sudeste, especialmente para São Paulo. Esse processo se
anunciava desde meados do século XIX e significava a perda de relevância não só econômica,
como política e cultural das regiões e elites tradicionais do nordeste do país. Juntamente a
isso, e relacionado também à urbanização e industrialização, estava o aumento do fluxo
imigratório, com especial intensidade nas duas primeiras décadas do século, que foi
financiado sob o argumento econômico de obtenção de mão de obra para o trabalho nas
lavouras de café, porém também no sentido de uma política de branqueamento (MOURA,
2019, p. 109), o que resultou efetivamente em uma transformação das feições da população.
Não somente das feições, pois os novos imigrantes, principalmente italianos, portugueses e
japoneses, vinham-se juntar aos demais grupos étnicos nacionais. Todos passando a habitar
principalmente as cidades e demais centros urbanos em expansão, contribuindo assim para um
maior conflito e complexidade cultural, inclusive linguística (SCHWARCZ; STARLING,
2015, p. 323).
Muito variadas foram as propostas políticas, culturais e estéticas surgidas nesse
contexto, a maior parte ambicionando dar solução aos novos ou não tão novos problemas do
país. Entre elas estavam as teorias abertamente racistas, os eugenismos e darwinismos sociais,
que ainda produziam seus efeitos; mas também os novos movimentos modernistas ou de
modernização que, nas artes e na cultura em geral, propunham novas imagens da recente
nação, de sua história e de seu povo.
É neste contexto que Gilberto Freyre publica o seu “romance da formação nacional”, o
Casa-Grande & Senzala, no ano de 1933. Esse ensaio foi uma complexa resposta a uma série
de discursos: na dimensão científica foi uma resposta às teorias racistas, uma tentativa de dar
ao problema das raças uma explicação predominantemente antropológica ou culturalista; na
dimensão cultural foi uma resposta aos modernistas em geral, e talvez aos modernistas
paulistas em particular – os “falsos modernismos” (FREYRE, 1952) – responsáveis por um
agudo experimentalismo estético e, igualmente importante, por uma crítica à ideia de tradição
em geral, além das tradições portuguesas em particular; na dimensão política, o Casa-Grande
& Senzala foi uma crítica aos defensores da política estadualista em prol de uma visão ao
mesmo tempo unificada e regionalista da nação. A compreensão dos principais enunciados
deste livro e de outros da obra freyreana se justifica uma vez que parece ter sido sua obra a
34

que mais circulou entre segmentos decisivos da elite brasileira nos anos 1930, tendo sido um
polo importante no diálogo para a elaboração de um discurso nacional, além de ter sido uma
peça-chave na formatação de uma “razão de Estado” no período getulista. Trocando em
miúdos, as teses de Freyre contribuíram, a partir dos anos 1930 e 1940, para a formação de
uma espécie de senso comum oficial sobre o Brasil: sobre sua cultura, sua pluralidade e
mistura, suas relações tradicionais de poder (MESQUITA, 2018).
O cerne da interpretação efetuada em Casa-Grande & Senzala (2003a) estava em
avaliar a formação da sociedade brasileira em decorrência de duas grandes instituições: a
família patriarcal e a Escravidão. Ou, como diz seu subtítulo, estudar a “formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal”. Instituições essas que, em sua visão, teriam
sido o segredo da unidade brasileira, entendida, por um lado, como a integridade geográfica e
política do imenso território e, por outro, como a relativa “harmonia” e o “equilíbrio de
antagonismos” (MESQUITA, 2018, p. 44). Segundo Freyre, estas seriam as características
principais da sociedade brasileira, em especial em sua fase colonial, e que dependeriam, por
sua vez, da estabilidade encontrada na organização familiar patriarcal e na regularidade do
trabalho escravo. Isso, além de certa tendência do homem e da cultura portuguesa a se
misturar. Essa última característica que seria afinal a grande responsável pela formação no
Brasil de uma “sociedade híbrida” (FREYRE, 2003a, p. 64).8 Ou seja, pela “mistura”,
plasticidade e criatividade nacional, aspectos da vantagem competitiva brasileira em
comparação a outras sociedades tidas como mais rígidas.
Com sua interpretação Freyre reorientava a compreensão das relações raciais no
Brasil, passando a defender a predominância de causas sociais e culturais para as diferenças
entre os grupos étnicos (diferenças de condições de vida, capacidades intelectuais e padrões
comportamentais), porém sem descartar por completo eventuais influências de caráter
biológico. Além disso, o autor invertia o valor atribuído à existência no Brasil de uma
diversidade racial e de uma difundida miscigenação, pois, se para teóricos da época a enorme
mestiçagem era fator de atraso e certeza de fracasso civilizatório, em Casa-Grande & Senzala
esses mesmos elementos passam a significar uma vantagem competitiva do Brasil.

8 Os textos de Gilberto Freyre apresentam uma diversidade de termos, que apesar de servirem para elaborar
conceitos bastante próximos, possuem contornos muitas vezes fluidos. Isso talvez seja influenciado pelo fato de
serem empregados na análise de textos e contextos distintos, o que acaba por influir na escrita do autor – para
além da liberdade natural do gênero ensaístico. Assim, é interessante observar a utilização de diferentes palavras
como “híbrido” (ou “hibridação”), “mestiço”, “mulato”, ou ainda “meia-raça”, para designar fenômenos
aparentemente assemelhados. Não buscarei aqui, contudo, uma compreensão da peculiaridade de sentido de cada
termo ao longo dos livros ou mesmo da obra do autor. Tomarei todos eles como possuindo o significado geral de
“mistura”, tanto física quanto cultural, que seria para Freyre a característica fundadora da sociedade brasileira.
35

Em relação à obra de colonização portuguesa, o autor fazia ainda outra inversão ou,
mais precisamente, um resgate. Lembremos que a imagem de Portugal e dos portugueses
sofria à época várias críticas ou tinha ao menos sua importância relativizada. Para citar uma
delas, lembremos que Oswald de Andrade criticava o “Brasil doutor” de predominância
portuguesa e letrada – quando dizia, por exemplo, que “Vieira deixou o dinheiro em Portugal
e nos trouxe a lábia” (2017). Além do mais, numa vertente da historiografia a colonização
portuguesa era vista como a razão do atraso brasileiro, quase sempre em comparação à
colonização dos Estados Unidos pelos ingleses. Contrariando esses enunciados, Gilberto
Freyre enxergava na obra de colonização a razão original da grandeza do Brasil, dando aos
portugueses a primazia da construção histórica e cultural da sociedade brasileira.
Uma vez que Portugal teria no século XV, em decorrência de sua posição
intermediária entre Europa e África e do contato com o mundo árabe, adquirido certos traços
culturais e se tornado um povo mais aberto a influências – ou seja, dado que não haveria neles
rígidos sectarismos (em contraste com os supostos traços das culturas anglo-germânicas) –,
Freyre argumentava que isso teria facilitado a obra de colonização e dominação do território.
Sobre Portugal e os portugueses à época da colonização, afirmava:

O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas,


a europeia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista
encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua
economia, de sua arte um regime de influência que se alternam, se
equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de
cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles
resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a
colonização do Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira,
igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre os
antagonismos. (FREYRE, 2003a, p. 69)

Esse aspecto cultural explicaria como um país com tão pouca gente teria sido capaz de
dominar territórios tão extensos e, ao mesmo tempo, fazer surgir uma sociedade de tamanha
pluralidade quanto a brasileira. Nesse ponto surgia a questão da sexualidade, tão importante
na teoria freyreana, uma vez que na sua interpretação as relações sexuais eram vistas não
unicamente como expressão dos apetites individuais, mas sim como ação incentivada pelas
necessidades decorrentes do projeto de colonização do território. Isso somava-se a uma
suposta tendência do homem português a “misturar-se” com mulheres de outras raças sem
sectarismos rígidos de cor, o que seria testemunha da maleabilidade típica do seu povo.
Tendência esta que teria dado origem a uma população grandemente mestiça:
36

Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro


contato e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de
machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e
competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e
na eficácia de ação colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade,
foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se em massa ou
volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas
extensíssimas. (FREYRE, 2003a, p. 71)

Essa disposição a ter relações com “mulheres de cor”, ameríndias ou africanas, teria
sido para Freyre a solução para as dificuldades portugueses da colonização no que diz respeito
ao contingente humano. Notemos aqui o valor positivo atribuído pelo autor à supremacia dos
tais “machos atrevidos” portugueses sobre homens e, principalmente, mulheres submetidas
para relações sexuais e de reprodução. Relações sexuais que o autor, ainda que notasse a
enorme discrepância de poder, não entendia como tendo ocorrido de modo necessariamente
forçado.9 Uma supremacia sexual, entretanto, que se ligava intrinsecamente à dominação
patriarcal e cristã descrita como a responsável, juntamente com a escravidão, pela formação
original do Brasil. Nesse sentido, o restante da argumentação de Casa-Grande & Senzala
tentará mostrar como a partir desse contato “íntimo” entre senhores e escravos teria surgido
uma sociedade mestiça, além disso capaz de harmonizar os antagonismos sociais, mas
mantendo sempre a predominância branca, portuguesa ou cristã. O elogiodesse tipo de
“equilíbrio de antagonismos” (FREYRE, 2003a, p. 69) tinha o efeito, portanto, de valorizar a
história nacional, pensada como o resultado da interação sexual e cultural, sem que se
chegasse a incentivar mudanças drásticas nas relações de poder entre o grupo étnico
dominante e os demais.
A reflexão freyreana sobre as relações de poder, considerando o resultado do contato
sexual e da miscigenação – mais propriamente do indivíduo mestiço – continua e torna-se
mais complexa (cf. SOUZA, 2000) quando em seu Sobrados & Mucambos ele se propõe
estudar não mais a dinâmica da sociedade colonial brasileira, mas a decadência do
patriarcalismo rural e a formação de uma sociedade urbana consolidada a partir do século
XIX.

9 A visão patriarcal, para não dizer fantasiosa, de Freyre a respeito da relação entre homens colonizadores e
mulheres ameríndias e africanas fica nítida também quando afirma: “Além do que, eram [as mulheres indígenas]
gordas como as mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se
entregando, de pernas abertas, aos ‘caraíbas’ gulosos de mulher” (FREYRE, 2003a, p. 71).
37

Um dos eixos centrais na argumentação deste livro é tentar mostrar como alguns
processos vieram a perturbar a suposta harmonia existente na relação das diferentes culturas e
classes sociais e que, segundo o autor, era a característica definidora da sociedade brasileira
em seu período colonial. Uma relação harmoniosa, segundo ele mesmo, estabelecida para a
manutenção da “supremacia da cultura europeia da élite predominantemente branca e da
classe senhoril” contra os “elementos que tentaram disputar ou comprometer tal supremacia”
(FREYRE, 2003b, p. 320) pois que realizada à maneira católica lusitana, que se caracterizaria
por sua forma “nada despótica” (FREYRE, 2003b, p. 325). Entretanto, entre os principais
elementos que vieram a modificar esse dito equilíbrio – ou seja, não outra coisa que o
domínio dos senhores brancos sobre a massa não branca e escrava – estavam as figuras do
bacharel e do mestiço: dois elementos principais daquilo que o autor chamou a “re-
europeização” do Brasil ocorrida a partir do século XIX.
Sobrados & Mucambos descreve o processo de transformação da sociedade brasileira
devido à urbanização das suas principais cidades, além de uma nascente industrialização a
partir do século XVIII e, principalmente, do XIX. Relacionado a isso, o forte afluxo de novas
ideias, valores e comportamentos oriundos da Europa: valores burgueses em oposição aos
valores católicos lusitanos; prestígio do francês e do inglês – na língua, na literatura, no
vestuário, na arquitetura – em detrimento dos costumes portugueses. Mais importante, a
valorização de certos saberes e técnicas, como as do direito, da medicina ou engenharia, em
detrimento dos saberes e costumes tradicionais. Em suma, toda um conjunto de novos
conhecimentos que relacionavam-se às nascentes atividades sociais, burocráticas ou
industriais, e cujos grandes agentes teriam sido o bacharel e o mestiço.
O primeiro deles relacionava-se principalmente às estruturas de Estado, uma vez que o
título de bacharel (ou de “doutor”) em Direito ou em Medicina facilitava cada vez mais o
acesso aos novos postos burocráticos, bem como às carreiras políticas. O segundo elemento,
ou seja, o indivíduo “mestiço”, teria tido também sua importância histórica e social ampliada,
fenômeno que se relacionava a sua existência intermediária tanto cultural quanto
economicamente. Isso porque o “mestiço” livre teria sido de início o responsável por muitas
daquelas atividades não realizadas nem por senhores nem por escravos, mas de importância
crescente em um contexto de urbanização e de incipiente industrialização. Suas possibilidades
de ascensão dependiam, entretanto, de uma ambígua classificação racial que poderia fazer
dele negro e escravo, ou branco e livre, a depender da aparência física, das atitudes
38

comportamentais e, além disso, do mero arbítrio de seus pais, que muitas vezes eram também
os seus senhores.
Porque em Sobrados & Mucambos o autor argumenta que existiria desde sempre na
sociedade brasileira uma tendência a não se adotar critérios rígidos de classificação racial,
prática esta que decorreria também daquela “miscibilidade” dos portugueses, ou seja, da
plasticidade e porosidade da cultura cristã lusitana. Daí influírem na classificação racial dos
indivíduos mais elementos que a exclusiva origem genética ou familiar (em contraste, por sua
vez, com os critérios considerados mais rígidos dos países anglo-saxões).
Em uma nota, Freyre diz que:

A ideia, hoje generalizada, de que influem sobre o status do brasileiro menos


a raça do que a classe e a região, foi por nós esboçada neste ensaio em 1936
e em nossos cursos de Antropologia e de Sociologia na Faculdade de Direito
do Recife e na Universidade do Distrito Federal, desde 1935. Sobre o
assunto, antecipou-se em inteligentes reparos, além de Debret e Koster, J. M.
Rugendas que escreveu em trabalho aparecido em 1835: “Por mais estranha
que pareça a afirmação que vamos fazer, cabe menos à vista e à fisiologia do
que à legislação e à administração resolver sobre a cor de tal ou qual
indivíduo. Os que não são de um negro muito pronunciado e não revelam de
uma maneira incontestável os caracteres de raça africana, não são
necessariamente homens de cor; podem de acordo com as circunstâncias ser
considerados brancos” (Viagem pitoresca através do Brasil (trad. de Sérgio
Milliet), 4º edição, São Paulo, 1949, p. 94). É oportuno recordar-se aqui a
“expressão chula de abençoar” recordada por Pereira da Costa à página 121
do seu Vocabulário pernambucano: “Deus te faça branco para honra dos
teus parentes!”. (FREYRE, 2003b, p. 772)

Em outro ponto, comentando a prática relativamente comum de dar alforria aos filhos
de senhores e de escravas, ao menos àqueles de tipo físico mais próximo do branco e de
comportamento mais à maneira europeia, Freyre concluía:

Aqui como nos Estados Unidos verificou-se não só a ascensão do mulato


escravo, dentro das casas-grandes, onde eram os preferidos para pajens e
mucamas, como do mulato livre, nas cidades e na Corte. Sua urbanização foi
mais rápida que a do negro livre, em consequência da seleção social se
dirigir sempre no sentido não só do indivíduo de pele mais clara e de
aparência mais europeia, como de formação ou traquejo também mais
europeu. (FREYRE, 2003b, p. 748)

Em decorrência dessas práticas e classificações teria surgido um contingente


populacional formado por indivíduos mestiços livres (além de brancos pobres) que teria
ocupado no Brasil escravista um lugar intermediário entre os senhores majoritariamente
39

brancos e os negros escravizados. Tais pessoas deteriam também um prestígio social


intermediário, menor em todos os seus efeitos que o da classe senhorial branca, porém maior
que o de negros escravos. Assim, no processo de urbanização mais intenso a partir da primeira
metade do século XIX – principalmente nas grandes cidades do Brasil colônia e império:
Salvador, Recife e Rio de Janeiro – tal contingente humano teria vislumbrado uma
possibilidade de ascensão social por meio da adoção dos modos “europeizados”, quando mais
superficialmente; ou, quando mais profundamente, pelo aprendizado dos saberes e das
técnicas de matriz europeia, ascensão esta mais acessível àqueles indivíduos de pele mais
clara e de hábitos comportamentais mais valorizados, para quem os preconceitos e as
resistências raciais eram menores (cf. SOUZA, 2000).
Por essas e outras razões Freyre argumentava que teria havido na história do Brasil um
processo de “baldeamento” (FREYRE, 2003b, p. 751) ou inclusão de indivíduos
afrodescendentes, bem como de descentes de branco e ameríndio, no grupo classificado como
branco. Processo que teria sido um contraponto à supremacia branca, portuguesa e cristã no
Brasil, mas longe certamente de significar sua subversão. 10 Dito de outra forma, a infiltração
de alguns indivíduos mestiços no grupo socialmente branco seria a maneira nacional de
contemporização, ou seja, de acomodação do conflito sociorracial. Maneira esta que Gilberto
Freyre avaliava como mais democrática se comparada ao praticado em outras sociedades
adeptas de classificações raciais mais rígidas, como a dos Estados Unidos.
De tudo isso, um primeiro ponto a considerar é que com essa compreensão das
relações raciais no Brasil podemos situar Freyre numa longa cadeia de pensadores e
enunciados, os quais viram na miscigenação uma maneira eficiente de manter a integridade
territorial e política e, mais que isso, de manter a dominação portuguesa ou branca no Brasil.
Foram vários os autores que viram no “mestiço” esse elemento intermediário, como que
fazendo a vez de uma classe média, não necessariamente com vistas à constituição de uma
nacionalidade, mas antes com o fim de resguardar a elite branca da massa não branca ou
escravizada, considerada sempre uma ameaça em potencial. Isso porque a existência de uma
camada populacional classificada como mestiça, mulata etc., e não como simplesmente negra,
formada por homens livres ainda que pobres, foi incentivada por funcionar como uma barreira
10 Em um sentido próximo, mas em outro texto, Freyre afirmava: “O Brasil é uma área onde se desenvolveu
uma civilização nacional cujas características decisivas são europeias e são, também – com todas as suas
deficiências, cristãs – culturalmente europeias e sociologicamente cristãs. Isso apesar de os não europeus, em
relação aos europeus, virem sendo numerosos desde o século XVI, na população brasileira, na qual também não
cristãos vêm sendo admitidos em número considerável, nas últimas décadas, através de uma política de
tolerância religiosa que põe à prova a vitalidade cultural do cristianismo face a imigrantes maometanos,
japoneses e judeus.” (FREYRE, 2011, p. 184).
40

de proteção entre a minoria branca dominante e negros potencialmente insubmissos. Esse


argumento sustentava-se na medida em que a existência de uma classificação intermediária
incentivava o desejo entre os indivíduos classificados como mestiços de se distanciar material
e simbolicamente do grupo negro ou escravizado, identificando-se assim ao grupo racial
dominante. Além disso, mesmo aqueles indivíduos mestiços a quem a ascensão social
concreta estivesse efetivamente barrada, seja por falta de posses, capital social ou
conhecimentos – e que, portanto, não seriam plenamente classificados como “brancos” –
podiam desfrutar do prestígio de serem socialmente percebidos como mais bonitos ou
sexualmente desejáveis, ou mesmo mais inteligentes que os negros de pele mais escura,
feições ou costumes mais distantes do padrão europeu.
Ao comentar esse dilema classificatório, Oliveira Viana, outro pensador do início do
século XX, ao tentar localizar o papel dos mestiços na história passada e futura do Brasil,
fazia a seguinte reflexão:

Não há perigo de que o problema negro venha surgir no Brasil [ou seja, uma
consciência e revolta negra, à maneira dos EUA]. Antes que pudesse surgir
seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento negro de
sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato, a
começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara
exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os
etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é
facilitada pela prevalência do “elemento superior”. Por isso mesmo, mais
cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já
começou a ocorrer. Quando a imigração, que julgo ser a primeira
necessidade do Brasil, aumentar, irá, pela inevitável mistura, acelerar o
processo de seleção”. (apud MUNANGA, 2019, p. 81)

Na visão de Oliveira Viana os mestiços seriam, portanto, um grupo de existência


transitória, posto que um dia a população brasileira poderia ser considerada finalmente
“branca”. Como bem apontou Fiorin (2016a), entre os teóricos do embranquecimento e
mesmo entre os abolicionistas do século XIX o que havia era o completo desprestígio de tudo
que pudesse indicar uma origem africana, tanto nos corpos quanto na cultura. Por esta razão, a
defesa do branqueamento por meio da miscigenação era vista por eles como uma forma de
eliminar o negro da vida brasileira em todos os seus aspectos, ou ao menos torná-lo
imperceptível, quando o Brasil poderia então ser considerado um país efetivamente “branco”.
Nesse ponto concordamos com Jessé Souza (2021) quando este diz que a sociologia de
Gilberto Freyre e o discurso de miscigenação elaborado a partir dos anos 1930, no contexto
do Estado Novo, efetuou uma inédita valorização dos elementos não brancos da sociedade,
41

respondendo os discursos anteriores e passando a conceber a possibilidade de uma construção


nacional que avaliasse positivamente a contribuição das classes populares.
Assim, é preciso reconhecer que naquele contexto, no qual a mestiçagem era sinal de
fracasso e o negro sinônimo de selvageria (como vimos ao discutir o discurso raciológico no
Brasil), enunciados como os presentes em Casa-Grande & Senzala sobre o valor positivo da
cultura negra e mestiça do Brasil tiveram uma importância não desprezível11. Contudo, o que
procuramos mostrar é que apesar da valorização relativa das culturas não brancas, a obra de
Gilberto Freyre reconhecia e, ao mesmo tempo, elogiava a existência de hierarquias sociais,
em especial no que diz respeito à manutenção do predomínio branco, ocidental ou cristão.
Para além disso, talvez possamos dizer que a contribuição de Gilberto Freyre ao
discurso de miscigenação tenha sido ver nesse critério concorrente de classificação racial (isto
é, concorrente à separação rígida entre brancos e não brancos) o segredo da integração
nacional, identificando praticamente brasileiro a mestiço. Assim, o sociólogo ajudou a
instituir a miscigenação não somente como algo a ser reconhecido, mas como um ideal a ser
alcançado12. Uma vez que esse discurso se tornou parte da visão oficial sobre a nação
brasileira, qualquer avaliação sobre o valor dos aspectos culturais ameríndios ou africanos
seria agora dependente do seu pertencimento à cultura nacional e, portanto, da sua mistura
vista como inevitável aos elementos ocidentais.13 Dito de outro modo, tais elementos culturais

11 É interesse nesse ponto uma declaração de Jorge Amado, por ocasião da sua posse na Academia Brasileira de
Letras: “Refletiram-se no romance de trinta as duas vertentes a que venho de aludir. Mas houve uma constante,
nos alencarianos e nos machadianos: a preocupação pelo Brasil, seu destino, seu futuro. Permita-me aqui dizer
uma palavra sobre esse tempo e os companheiros que os compuseram, quando a publicação de Casa-Grande &
Senzala foi um impacto ainda não renovado em nosso ensaio, quando surgiram os ensaístas e críticos de nossa
realidade, Luís Viana Filho, Afonso Arinos de Melo Franco, Artur Ramos [sic], Sérgio Buarque de Holanda,
Edison Carneiro. E os novos poetas como Drumond [sic], Schmidt, Murilo Mendes, Vinicius de Morais [sic]. Da
angústia e da miséria nasceu o romance de trinta” (AMADO, 1972, p. 12).
12 A interpretação da miscigenação como o elemento definidor da identidade nacional não é particularidade
única da construção do discurso nacional do Brasil, mas possui elementos em comum com muitos outros países
latino-americanos. Por exemplo, Laura Zang (2015) discute as semelhanças entre a visão de Gilberto Freyre e o
conceito de “raça cósmica” do mexicano José Vasconcelos. Segundo este último, nos países latino-americanos
haveria uma conjunção ideal de fatores para a constituição de uma “raça” futura que daria origem a uma
humanidade síntese de todas as raças anteriormente existentes.
13 Quero dizer que o valor das culturas ameríndias e africanas passa a ser medido pelo grau de sua mistura aos
elementos europeus e não pelo que elas pudessem ter de valor enquanto ameríndias ou africanas. Nesse sentido,
como mostra Ilana Goldstein sobre o ponto de vista de Jorge Amado, o escritor era incapaz de avaliar o valor das
produções culturais por outro critério que não o critério da mestiçagem. Como diz a estudiosa: “O que Jorge
Amado admira na escultura de Agnaldo, para ele o único acerto da mostra de Dakar, é o fato de ela não ser
somente negra: ‘nela encontramos os traços da influência branca, peninsular, ibérica, nos termos e nas formas –
seu Oxóssi é ao mesmo tempo São Jorge, e daí não podemos sair sem faltar à verdade mais elementar’. Na
opinião de Jorge Amado, a contribuição da África à nossa cultura, ‘primordial’ e ‘magnífica’, deveria ser exibida
na exposição em sua indissolúvel mistura com nossa face branca. ‘A África é nosso umbigo’, escreve Amado
nesse manuscrito e em muitos outros lugares. Mas fica implícito: é apenas o umbigo, não nosso corpo inteiro,
pois – e assim termina o manuscrito – ‘aqui os deuses e os homens se misturaram para sempre, felizmente’”
(GOLDSTEIN, 2003, p. 77).
42

não seriam mais avaliados como expressão de uma visão de mundo específica, mas como
parte de um patrimônio comum, ou ao qual deveriam, afinal, se incorporar. Por exemplo, se
para Nina Rodrigues só fazia sentido nomear seu estudo sobre o candomblé de Os Africanos
no Brasil – ou seja, de outros que não os brasileiros – na obra posterior de Edison Carneiro, os
candomblés da Bahia já são considerados obra nacional por definição. Em suas palavras, “até
mesmo nessas designações se reflete a assimilação desses cultos pela sociedade brasileira, o
que os torna – podemos dizê-lo com absoluta certeza – nacionais, de existência somente
possível no Brasil, e não mais africanos.” (CARNEIRO, 2008, p. 13, grifos do autor).
Por fim, é preciso afastar definitivamente a ideia de que no elogio da mistura se tenha
aceitado qualquer mistura.14 Pelo contrário, as práticas culturais e institucionais orientadas
pelo discurso de miscigenação parecem ter ocorrido no sentido de controlar as manifestações
ou costumes, especialmente de origem negra e popular, a fim de torná-las mais de acordo ao
discurso oficial. Penso, por exemplo, na valorização de manifestações afro-brasileiras, como o
Carnaval, os afoxés ou o samba, a partir de 1930. Manifestações incentivadas, porém,
disciplinadas de forma a não ofenderem – tanto quanto possível – os chamados bons costumes
nacionais (LIRA NETO, 2017, p. 11). Costumes estes que diziam respeito principalmente ao
cristianismo como uma metafísica patriarcal e modelo de regulação moral; e ao português
enquanto língua oficial nacional. A “defesa” destas instituições mantinha sua posição como
pilares da brasilidade, do Brasil como uma sociedade “latina”, “luso-tropical” ou “civilização
europeia nos trópicos”15 (FREYRE, 2011).
*
São muitas as relações dialógicas (BAKHTIN, 2016, p. 101) que vinculam o romance
de Jorge Amado ao discurso de miscigenação. Não somente relações de concordâncias ou
convergências entre enunciados, como também de discordâncias, distanciamentos,
ambiguidades e indecisões.16 De partida importa notar que o tema da integração das pessoas
14 Entre vários elementos, é também significativa a discussão de Gilberto Freyre (2011) sobre quais deveriam
ser os povos incentivados ou aceitos no processo de imigração para o Brasil. Bastante de acordo com sua leitura
da formação nacional, Freyre dizia que devia-se incentivar a vinda de portugueses, e tinha muitas ressalvas, por
exemplo, à vinda de japoneses e asiáticos em geral. Nunca é demais ressaltar que também em sua visão se
deveria trabalhar pela manutenção do predomínio cristão e, mais do que isso, católico da sociedade brasileira.
15 Ainda que cristianismo e língua modificados por “sobrevivências” (FREYRE, 2011, p. 33) dos outros povos
e culturas. A concepção da cultura lusitana e cristã como o tronco (ou substância) sobre o qual se acrescentou,
modificando sem descaracterizar, os elementos “adjetivos” das outras culturas, parece atravessar toda a reflexão
freyreana. Vale ressaltar também que, no seu Novo Mundo nos Trópicos (2011), além da defesa do cristianismo
católico e da língua portuguesa como elementos de unidade nacional, Freyre defendia o caráter moreno da
cultura e do brasileiro. Ou seja, previa que a população brasileira deveria caminhar para um tipo físico não muito
escuro, mantendo porém a predominância cultural latina e cristã.
16 Nesse ponto, é interessante essa reflexão de Bakhtin: “não se pode interpretar as relações dialógicas em
termos simplificados e unilaterais, reduzindo-as a uma contradição, luta, discussão, desacordo. A concordância é
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negras à cultura nacional ou, mais precisamente, a ascensão social do indivíduo afro-brasileiro
é um dos temas principais de Tenda dos Milagres, ao lado do tema da riqueza da cultura
popular negra e mestiça da Bahia. Daí a tensão a atravessar todo o romance, em estrita relação
com vários dos aspectos tratados acima, e talvez sem uma solução definitiva: pois, de um
lado, estavam o mundo popular baiano de predominância afro-brasileira e, de outro, o “mundo
dos brancos”, cada qual com seus valores, visões de mundo ou linguagem. Dois mundos em
conflito para o qual a vida de Pedro Archanjo seria, segundo o ponto de vista do romance, um
modelo de síntese ideal.
Lembremos que na narrativa Pedro Archanjo sofre uma transformação. Se antes o
vemos boêmio e curioso, figura importante na vida popular e no candomblé, ao fim o vemos o
mesmo em alguns aspectos, mas em outros muito diferente: permanece boêmio e festeiro,
amante das mulheres – porém, mais profundo e, além do mais, materialista. A diferença surge
após dez anos debruçado sobre livros e teorias, a fim de bem derrubar em sua própria
linguagem as teses racistas de Nilo Argolo. Dez anos lendo de tudo, movido mais por missão
que por obrigação marcada a relógio:

Longa e séria a relação, mesmo incompleta, de autores e livros estudados por


mestre Archanjo mas vale registrar alguns detalhes de sua caminhada,
acompanhá-lo da indignação ao riso. A princípio tinha de trancar os dentes
para prosseguir na leitura de racistas confessos e, pior ainda, dos
envergonhados. Apertava os punhos: teses e afirmações soavam como
insultos, eram bofetadas, surras de chicote. Por mais de uma vez sentiu ardor
nos olhos, gosto de lágrimas humilhadas ao atravessar páginas de Gobineau,
de Madison Grant, de Otto Amnon, de Houston Chamberlain. Ao ler, porém,
os chefes da Escola Antropológica Italiana de Criminologia, Lombroso,
Ferri, Garofalo, fê-lo às gargalhadas, pois correra o tempo e a acumulação de
conhecimentos dera a Archanjo serenidade e segurança – pôde constatar a
tolice onde anteriormente sofrera insultos e agressões. Leu amigos e
inimigos, franceses e ingleses, alemães, italianos, o norte-americano Boas,
descobriu o riso do mundo em Voltaire, deliciou-se. Leu brasileiros e
baianos: de Alberto Torres a Evaristo Morais, de Manuel Bernardo Calmon
du Pin e Almeida e João Batista de Sá Oliveira a Aurelino Leal. Não apenas
esses aqui citados, muitos outros mais, não teve conta nem medida.
(AMADO, 1969, p. 198).

uma das formas mais importantes de relações dialógicas. A concordância é muito rica em variedades e matizes.
Dois enunciados idênticos em todos os sentidos (‘Clima maravilhoso!’ — ‘Clima maravilhoso!’), se realmente
são dois enunciados pertencentes a diferentes vozes e não um só enunciado, estão ligados por uma relação
dialógica de concordância. Trata-se de um determinado acontecimento dialógico nas relações mútuas entre os
dois, e não de um eco” (BAKHTIN, 2016, p. 103, grifos do autor). Bakhtin aqui se opõe nitidamente à visão
hegeliana ou marxista, e ao postulado da contradição (negação) como a única relação ontológica fundamental.
Tais observações não apagam, é claro, a relevância ou a existência das contradições no processo histórico e
ideológico. Nesse sentido, ver por exemplo a discussão de Stuart Hall sobre as contradições presentes na vida
ideológica, em particular nas imagens fetichizadas (HALL, 2016, p. 207).
44

Lera muito e aprendera línguas: inglês, francês, espanhol, italiano, com ajuda de sua
amiga Zabela; quisera também aprender o alemão, com ajuda do professor Silva Virajá e de
frei Timóteo, mas entre tantos estudos lhe faltara o tempo (AMADO, 1969, p. 197). Isso
apesar de não ter abandonado “no prazer dos livros o prazer da vida, no estudo dos autores o
estudo dos homens. Encontrou tempo bastante para a leitura, a alegria, a festa e o amor, para
todas as fontes de seu saber” (AMADO, 1969, p. 198). Ao fim de tudo, dessa tão esforçada
“travessia”, efetuara a passagem como que do mito à razão. Em conversa com o professor
Fraga Neto, médico e marxista defensor do materialismo e da luta de classes, Archanjo
explicou a razão de ainda ir ao candomblé, de participar dos rituais e de ser ainda chamado
Ojuobá, depois de tantos anos de estudos e livros rigorosos publicados.
Provocava-lhe o professor:

— Sou coerente, você não é! – explodiu Fraga Neto: — Se não acredita


mais, não acha desonesto uma farsa, como se acreditasse?
— Não. Primeiro, como já lhe disse, gosto de dançar e de cantar, gosto de
festa, antes de tudo de festa de candomblé. Ademais, há o seguinte: estamos
numa luta, cruel e dura. Veja com que violência querem destruir tudo que
nós, negros e mulatos, possuímos, nossos bens, nossa fisionomia. Ainda há
pouco tempo, com o delegado Pedrito, ir a um candomblé era um perigo, o
cidadão arriscava a liberdade e até a vida. O senhor sabe disso, já
conversamos a respeito. Mas, sabe quantos morreram? Sabe por acaso por
que essa violência diminuiu? Não acabou, diminuiu. Sabe por que essa
violência diminuiu? Sabe como se deu?
— Já ouvi contar, mais de uma vez. Uma história de absurdos com seu nome
no meio.
— O senhor pensa que, se seu fosse discutir com o delegado Pedrito, como
estou discutindo com o senhor, teria obtido algum resultado? Se eu houvesse
proclamado meu materialismo, largado de mão o candomblé, dito que tudo
aquilo não passava de um brinquedo de criança, resultado do medo
primitivo, da ignorância e da miséria, a quem eu ajudaria? Eu ajudaria,
professor, ao delegado Pedrito e sua malta de facínoras, ajudaria a acabar
com uma festa do povo. Prefiro continuar a ir ao candomblé, ademais gosto
de ir, adoro puxar cantiga e dançar em frente aos atabaques.
[...]
— Se eu proclamasse minha verdade aos quatro ventos e dissesse: tudo isso
não passa de um brinquedo, eu me colocaria ao lado da polícia e subiria na
vida, como se diz. Ouça, meu bom, um dia os orixás dançarão nos palcos dos
teatros. Eu não quero subir, ando para a frente, camarado. (AMADO, 1969,
p. 275-276).

O que está representado é a maneira como a integração social se dá aos indivíduos


afro-brasileiros, ou seja, a pressão por adotarem, sem questionamento e como único critério
de razão, a visão de mundo branca ou ocidental. Mais que isso, a implícita pressão para que
45

abandonem qualquer vinculação às culturas de matrizes não branco-europeias, sejam


ameríndias ou africanas, tidas sempre como absurdas ou atrasadas. Essa pressão efetuada
sobre os indivíduos negros em ascensão social para se aculturarem ou embranquecerem foi
também estudada como uma linha de comportamento ou linha de cor (cf. BROOKSHAW,
1983; SOUZA, N., 1983; SOUZA, J., 2018) separando o mundo popular afro-brasileiro de um
“mundo dos brancos” (FERNANDES, 2007); linha cuja travessia torna os indivíduos de
origem negra socialmente aceitáveis aos olhos da sociedade dominante. Não outra coisa,
portanto, que aqueles processos de que falamos anteriormente ao analisar o discurso de
miscigenação – ou seja, a inclusão de indivíduos negros ou, principalmente, mestiços no
grupo social branco tão elogiado por Gilberto Freyre. As contradições dessa tensão ocorrem
na trajetória e na consciência do personagem Pedro Archanjo, sem que estejam ausentes as
angústias no que diz respeito à manutenção dos vínculos com o povo negro e pobre da Bahia,
ou com a mundo do candomblé, isso apesar do seu materialismo.
No entanto, em Tenda é através da trajetória de Tadeu Canhoto, “afilhado” (na
verdade, um filho de Archanjo) que as contradições envolvendo a integração e ascensão social
do negro ganham imagem mais intensa. Tadeu é pintado como um prodígio desde cedo,
quando se torna aprendiz de Lídio Corró em sua oficina de tipografia. Garoto curioso e
dedicado, decide que quer estudar, se bacharelar e tornar-se “doutor”. Sua mãe, a bela
Dorotéia, o deixou quando menino aos cuidados do “padrinho” Pedro Archanjo, para que
estudasse; e é com a ajuda deste, da família estendida do terreiro de candomblé e da velha
Zabela - uma prima de Nilo Argolo com histórico de deboche nas ruas de Paris - que Tadeu
consegue, finalmente, formar-se engenheiro.

Na oficina e nos livros, no saber de Archanjo, Tadeu encontrou o que


buscava. Mestre Pedro revia-se no afilhado: a mesma incontida ânsia, a
mesma curiosidade, e o ímpeto. Apenas no adolescente havia uma intenção
definida, um caminho traçado: não estudava ao acaso, ao deus-dará das
circunstâncias, pela vontade gratuita de aprender. Fazia-o com fim
determinado, porque queria ser alguém na vida. De onde lhe viera a
ambição? De quem a herdara, de que remoto avô? A teimosia era da mãe, a
incontrolável força daquele diabo de mulher. (AMADO, 1969, p. 141).

A culminância de sua trajetória de ascensão social não se dá somente com a formatura,


sua posterior indicação a um bom emprego, e a ida ao Rio de Janeiro para ajudar na
modernização daquela cidade, com cargo importante e digno salário. O auge do seu processo
de integração à sociedade, e da relativa aceitação por ela, se dá no romance e para o romance
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através do seu casamento com uma moça loira e de olhos azuis, filha de família “branca”, rica
e tradicional – porém racista. Ao longo da história, os esforços de Tadeu, Pedro Archanjo e
dos outros são tão grandes no sentido de sua aceitação pela família da noiva, como o foram
para que conseguisse estudar e ser “alguém”, com direito a título e anel de doutor. O
pertencimento a uma família de prestígio, com a vinculação através do casamento a uma
mulher branca e seu patrimônio familiar 17 são aqui símbolos do que para Jorge Amado era ou
parecia ser o destino inevitável dos negros e mestiços numa sociedade em processo de
modernização, como a brasileira à época: a integração gradual do negro via ascensão ao
“mundo branco”; o abandono pensado como praticamente inevitável, por parte das novas
gerações esclarecidas pela educação, dos costumes religiosos e outras crenças populares; e o
esfacelamento gradativo das diversas culturas, diluídas em uma única cultura mestiça
singularmente brasileira.
É interessante notar que, também nesse ponto, há concordância de sentidos entre o
romance e a interpretação realizada por Gilberto Freyre, no que diz respeito à ascensão de
negros e “mestiços” a partir de meados do século XIX no Brasil. Uma vez que, como
argumentava o sociólogo, nem sempre a educação e a adoção de maneiras europeizadas
teriam sido o bastante para garantir aos “mestiços” ou brancos pobres, mesmo quando
bacharéis, sua integração à sociedade dominante. Assim, o casamento teria funcionado como
um meio desejado de realizar a ascensão social.

A ascensão social do bacharel pobre que, abandonado aos próprios recursos,


não podia ostentar senão croisés ruços e fatos sovados, ou, então, sujeitar-se
a indiscrições de alfaiates pelos apedidos dos jornais; que não dispunha de
protetores políticos para chegar à Câmara nem subir à diplomacia; que
estudara ou se formara, às vezes, graças ao esforço heroico da mãe
quitandeira ou do pai funileiro; a ascensão do bacharel assim, se fez, muitas
vezes, pelo casamento com moça rica ou de família poderosa. (FREYRE,
2003b, p. 722)

17 Também nesse ponto Tenda dos Milagres retoma Jubiabá (1935). Lembremos que a personagem Lindinalva
– ou seja, Linda e Alva – daquele livro pode ser vista como um arquétipo da “pureza”, “elevação moral” e
“beleza” não somente da mulher branca como da cultura cristã ou ocidental. Em Jubiabá a imagem de
Lindinalva acompanha Antônio Balduíno por todo o livro como um amor platônico, puro e inalcançável, muito
diferente do desejo meramente sexual que o protagonista dedica às mulheres negras. A trajetória dessa
personagem prossegue com sua degradação material e moral, até que por fim a vemos doente e na mais baixa
prostituição. Não esqueçamos que é o filho de Lindinalva, a quem Antonio Balduíno promete cuidar, a razão
última pela qual o protagonista engaja-se no trabalho e nas lutas operárias. Com essa observação não quero
diminuir o valor de Jubiabá para a história de representação do negro na literatura brasileira, mas somente
apontar uma recorrência nestes dois livros, a saber, a associação entre a mulher branca e a elevação moral ou
pureza. Uma discussão mais completa deste romance de Jorge Amado pode ser encontrada na análise de Eduardo
de Assis Duarte (2018).
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Por fim, a trajetória de Tadeu Canhoto, imagem dos elementos acima mencionados,
culmina no seu afastamento, não somente físico, mas cultural e comportamental da família do
terreiro, da vida popular da Bahia e do mundo afro-brasileiro como um todo. Isso tudo é
notado por Archanjo que, sem querer fazer o mesmo, ou seja, sem querer abandonar seu povo,
entende e aceita sua decisão. Então, na ocasião da última visita de Tadeu a ele e a Lídio,
última vez em que se veem, faz a seguinte reflexão:

Tadeu entrou, veio até eles, beijou a mão do padrinho. Lídio, comovido, o
tomou nos braços.
— Está um lorde!
— Na minha posição, devo apresentar-me bem-vestido.
Pedro Archanjo considerou com olhos de amizade o importante senhor de pé
em sua frente. Tadeu devia andar pelos trinta a cinco anos, tinha catorze
quando Dorotéia o trouxera ao terreiro e o entregara a Archanjo: só fala em
leitura e em conta, não me serve para nada mas não posso torcer o destino,
mudar a sina do moleque. Também eu não posso torcer o destino, mudar os
caminhos, parar o tempo, impedir a subida, compadre Lídio, meu bom.
Tadeu Canhoto anda seu caminho, chegará ao topo da escada, para tanto se
preparou, e nós, meu camarado, o ajudamos. Veja, Dorotéia, seu menino a
subir, vai longe. (AMADO, 1969, p. 297).

Muitos elementos vinculam essas imagens àqueles enunciados dos discursos de


miscigenação no Brasil, e aos paradoxos da integração do negro, como se vê. Entretanto,
apesar de reconhecer as forças integrativas e as pressões socioculturais, como vistas no caso
de Tadeu Canhoto, e também do próprio Pedro Archanjo, em outros aspectos do romance há a
defesa da cultura popular, negra e mestiça, contra as pressões unificadoras nacionais. Jorge
Amado parece, assim, entrever a possibilidade de nessa cultura “mulata”, meio portuguesa e
meio africana – o elemento ameríndio é pouco mencionado ou valorizado por Amado
(GOLDSTEIN, 2003) – haver espaço, ao mesmo tempo, para a ciência e o riso, a alegria e a
modernidade, a conversa de bar e o almoço entre amigos; e não somente para o trabalho, a
rotina e o cansaço. Trataremos destes elementos na próxima seção.
Importa observar ainda que há em Tenda dos Milagres uma menor defesa da cultura
latina, cristã ou lusa como sendo a fonte cultural preponderante da vida nacional. A questão é
ambígua, mas em muitos momentos o romance parece vislumbrar a predominância africana
ou, no mínimo, a existência de uma cultura “mulata” na Bahia, como também no Brasil. Isso,
contra as pretensões acadêmicas e eruditas de igualar o Brasil à Europa, tido como modelo
único de civilização. Nesse sentido, por ocasião das perseguições aos afoxés e às
manifestações carnavalescas, diz o narrador com ironia:
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Em 1903, quando treze afoxés de negros e mulatos desfilaram seus cortejos


portentosos (“Romperão o préstito, atroando os ares com estridentes notas de
seus instrumentos, DOIS CLARINS, os quais envergarão LINDOS
COSTUMES DE TÚNIS, como prova de que a civilização não é UTOPIA
NO CONTINENTE NEGRO, como propalam os maldizentes” – assim
começava o manifesto ao povo, de um dos afoxés), em 1903, após o entrudo,
o jornalista cobriu a cabeça de cinza e de vergonha: “Se alguém julgar a
Bahia pelo carnaval, não pode deixar de colocá-la a par da África, e note-se,
para nossa vergonha, que aqui se acha hospedada uma comissão de sábios
austríacos, que naturalmente, de pena engatilhada, vai registrando esses
fatos, para divulgar nos jornais da culta Europa”. Onde estava a polícia? Que
fazia “para demonstrar que esta terra tem civilização”? A continuar essa
escandalosa exibição de África: as orquestras de atabaques, as alas de
mestiços e de todos os graus de mestiçagem – desde as opulentas crioulas às
galantes mulatas brancas –, o samba embriagador, esse encantamento, esse
sortilégio, esse feitiço, então onde irá parar nossa latinidade? Pois somos
latinos, bem sabeis, se não sabeis, aprendereis à custa de relho e de porrada.
(AMADO, 1969, p. 79)

Notemos nesta passagem os elementos parodizantes, a reprodução do tom e estilo de


escrita jornalística da época. Além disso, há que se destacar que para o ponto de vista
acadêmico parodiado, o critério de classificação racial iguala os afrodescendentes de todos os
matizes sob a rubrica de africanos – “exibição de África”; critério este que é contrastado pelo
narrador, que distribui os sujeitos numa cadeia de mestiços de diferentes feições e
nomenclaturas. Mesmo assim, há o afastamento risonho das pretensões europeias e latinas da
elite nacional.

2.3 Ressonâncias da Crítica Negra


Resta refletir sobre outras imagens, capturadas no texto romanesco, que permitem
entrever o diálogo estabelecido por Tenda dos Milagres com outros enunciados e discursos,
vivos à época da sua escritura. Já dissemos que são muitas as menções, no romance,
relacionadas a eventos políticos e raciais seus contemporâneos: referências ao nazismo; ao
apartheid sul-africano; às ditaturas brasileiras; aos movimentos negros norte-americanos, além
das ressonâncias que todos eles obtiveram em território nacional. Este último elemento é
fundamental para que compreendamos o sentido e a abrangência dessa enfática defesa
romanesca da miscigenação no Brasil, efetuada por Jorge Amado.
Relacionado a isso, um ponto a considerar é que em comparação aos romances
imediatamente anteriores, como Gabriela, cravo e canela, de 1958 (AMADO, 2004), ou
49

Dona Flor e seus dois maridos, de 1966 (AMADO, 1995), é significativamente maior a
ênfase que o tema racial e a defesa da miscigenação recebe em Tenda dos Milagres. Não que
o tema estivesse ausente daqueles romances, mesmo da obra amadiana madura como um todo.
Entretanto, se em Gabriela o tema da “mistura” habita toda a narrativa, a começar pelo corpo
e história da protagonista, no desenrolar do romance este tema aparece por uma série de
outros “indícios”, entrelaçados de maneiras talvez mais sutis do ponto de vista da
composição: nas várias nacionalidades das personagens; nos vários costumes, cheiros,
sabores, festas etc. Apesar disso, sem aquela ênfase didática, tão frequente na história de
Pedro Archanjo.
Também em Dona Flor surge o tema da “mistura de raças”. Porém a um nível quase
cósmico, pelo menos ético, visto que a história trata da indecisão da protagonista, dividida
entre o amor carnal de Vadinho, seu primeiro esposo, e a versão mais casta e comportada que
lhe dedica o farmacêutico Teodoro. A “mestiça” Dona Flor se vê cindida entre o desejo
ardente, por um lado, enquanto por outro sente as pressões da moral estabelecida. Essa
experiência de cisão vivida pela personagem remete ainda, mesmo que de maneira sutil, ao
estereótipo que atribui ao elemento africano capacidades sexuais diferenciadas, e que
posiciona o negro sempre mais próximo do instinto e da natureza, enquanto ao branco cabe o
desenvolvimento do espírito e da cultura. Afinal, a oscilação entre esses dois polos constitui o
caráter da mulata dona Flor – ao mesmo tempo casta e ardente – e ao fim da narrativa
encontram uma solução de equilíbrio tipicamente carnavalesca. Sem contar que o tema da
miscigenação surge ainda, só que em sua dimensão cultural, astutamente fundido na figura de
Vadinho, uma espécie de Exu loiro, devasso e debochado.
Variedade de temas e sutilezas elaborados de maneira diferente em Tenda dos
Milagres, romance no qual observamos afirmações mais explícitas, sejam na forma de
críticas agudas ao racismo, ou de defesas apaixonadas da miscigenação, tanto por parte dos
personagens ou do narrador implícito, quanto de Fausto Pena, o narrador explícito. 18 Isso

18 Bakhtin já havia distinguido o autor-pessoa, ou seja, a pessoa concreta do artista, do autor-criador, essa
espécie de “consciência” imanente ou extensiva à obra que sentimos atuando como o maestro de toda a
composição, o seu último ponto de vista estético-valorativo. Bakhtin também fazia a distinção entre o narrador e
o autor-criador, também chamado por ele de autor-convencional (BAKHTIN, 2005, p. 99). Neste ponto discordo
de Faraco, quando este diz que segundo Bakhtin o “autor-criador (...) é uma voz” (FARACO, 2005, p. 44). Ora,
o autor-criador é o ponto de vista axiológico interno à obra, não se identificando plenamente a qualquer das
vozes narrativas, mesmo quando ela é anônima. No caso de Tenda dos Milagres, onde há mais de um narrador,
me parece útil ainda a distinção feita por Fiorin (2016b, p. 65) entre narrador-explícito (no caso, Fausto Pena), e
narrador-implícito (o narrador sem nome), nenhuma dessas vozes podendo ser confundidas com a função de
autor-criador. Nesse ponto é interessante esta observação de Bakhtin: “O autor não se limita à linguagem do
narrador nem à linguagem literária normal com a qual se correlaciona a narração (embora ele esteja mais
próximo de uma ou de outra linguagem); ele, porém, usa uma e outra linguagem para não deixar que nenhuma
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talvez se compreenda, uma vez que à época em que foi escrito e publicado, ou seja, finais dos
anos 1960, outros discursos se elaboravam entorno da “questão racial”, e críticas eram feitas à
miscigenação, não somente como prática, mas como um ideal.
Vejamos uma passagem do livro. Nela, vemos ocasião da tentativa de montar uma
peça sobre Pedro Archanjo, onde estava envolvido Fausto Pena, que é aquele que também nos
narra o episódio. Ele diz:

As divergências referiam-se ao conteúdo do espetáculo e à figura de Pedro


Archanjo. Estácio Maia, declarando-se irredutível partidário brasileiro do
poder negro norte-americano, transformava Pedro Archanjo em membro da
organização Black Panther a declamar no palco discursos e palavras de
ordem de Carmichael, advogando a separação de raças, o ódio irremediável.
Uma espécie de professor Nilo Argolo às avessas. Negros de um lado,
brancos de outro, proibida qualquer mistura e convivência, em luta mortal.
Jamais conseguirei saber onde o violento líder da negritude nacional situava
os mulatos. (AMADO, 1969, p. 166)

O episódio, por se passar no teatro, é sugestivo. Justamente porque um dos principais


polos de crítica sobre a situação racial no Brasil estava à época relacionado ao Teatro
Experimental do Negro (TEN), fundado no Rio de Janeiro por Abdias Nascimento, Guerreiro
Ramos, entre outros (MACEDO, 2005). Não é que não existissem outras iniciativas, tanto nos
movimento sociais como em outras esferas da sociedade, a fazer críticas e debater o racismo e
a disparidade social no Brasil. Mas sim que a discussão efetuada no TEN, a partir das suas
produções estéticas, bem como dos enunciados que emergem da produção intelectual dos seus
membros, parece ter sido um dos primeiros e mais importantes discursos críticos, não somente
à situação social do negro no Brasil, mas ao próprio ideal de miscigenação, a partir dos anos
1950 e 1960.19
Fundado em 1944, o Teatro Experimental do Negro tinha como objetivos principais,
nas palavras de Abdias Nascimento:

a. resgatar os valores da cultura africana, marginalizados por preconceito à


mera condição folclórica, pitoresca ou insignificante; b. através de uma

delas capte inteiramente as suas intenções; ele se vale desse ‘troca de convites’, desse diálogo de linguagens em
cada momento de sua obra para permanecer ele mesmo como que neutro em termos de linguagem, um terceiro
entre as duas (embora, talvez, seja um terceiro tendencioso)” (BAKHTIN, 2015, p. 99-100).
19 O sociólogo Clovis Moura nos lembra, porém, que a principal força de contradiscurso ou contra-ideologia,
no sentido de resistência cultural afro-brasileira, não deve ser buscada somente nos movimentos negros, sociais e
politicamente organizados e formados, além disso, por uma “classe média negra”. Segundo este autor, a
resistência popular e a formação de um discurso contra-hegemônico têm se dado sobretudo em instituições como
o candomblé, as escolas de samba, as organizações diversas em favelas etc. (MOURA, 2019, p. 139).
51

pedagogia estruturada no trabalho de arte e cultura, tentar educar a classe


dominante “branca”, recuperando-a da perversão etnocentrista de se
autoconsiderar superiormente europeia, cristã, branca, latina e ocidental; c.
erradicar dos palcos brasileiros o ator branco maquilado de preto, norma
tradicional quando a personagem negra exigia qualidade dramática do
intérprete; d. tornar impossível o costume de usar o ator negro em papéis
grotescos ou estereotipados: como moleques levando cascudos, ou
carregando bandejas, negras lavando roupa ou esfregando o chão, mulatinhas
se requebrando, domesticados Pais Joões e lacrimogêneas Mães Pretas.
(NASCIMENTO, A., 2016, p. 161).

É interessante notar que, apesar do esforço crítico, a tônica do TEN não pode ser
considerada “de esquerda”, como uma leitura apressada e simplista poderia inferir. Ao menos
não de uma esquerda revolucionária. Pelo contrário, seu discurso buscava reformar, e não
romper, um projeto patriótico e nacionalista. Além do mais, Abdias Nascimento, um dos seus
membros principais, havia tido relações com o movimento integralista, e sido militar por um
breve período – apesar de também ter estado preso, momento em que decidiu fazer teatro
(MACEDO, 2005). Com isso queremos dizer que, ao fazer um teatro que colocasse os negros
em cena, o TEN fazia coro ao ideal de integração à sociedade de classes, e cuja crítica nítida
ao discurso de miscigenação só viria mais tarde. Inicialmente o objetivo principal parecia ser
integrar o negro, entendido como o afro-brasileiro em geral, também no teatro, combatendo
assim as representações estereotipadas e substituindo-as por outras onde ele pudesse ter
dignidade e desenvolver autoestima.
Apesar disso, desde o início são relevantes nas suas formulações os diálogos com o
movimento de intelectuais negros francófonos (e marxistas), formado por pensadores e
artistas caribenhos e africanos, conhecidos por elaborar o conceito de “negritude”; além
obviamente dos artistas e movimentos negros norte-americanos, como os do chamado
“Harlem Renaissance” e outros – o escritor Richard Wright é recorrentemente citado por
Abdias Nascimento (e.g. NASCIMENTO, A., 2016, p. 61).
As muitas relações de sentido entre os enunciados do TEN e esses vários movimentos
extrapolam o escopo desta dissertação. Pretendo somente indicar, acompanhando a análise de
Barbosa (2013, p. 9), que a interpretação da “negritude” levada a cabo pelos integrantes do
TEN e pela sociologia de Guerreiro Ramos a partir de meados dos anos 1950 tendia a
enfatizar menos a existência de uma “subjetividade africana”, como acontecia entre os
intelectuais negros francófonos, para se aproximar da compreensão mais contemporânea de
“cultura negra”, de tom humanista, e na qual não está excluído o elemento nacionalista. Nesse
sentido, a apropriação da negritude pelo próprio negro era vista não somente como uma
52

afirmação frente à supremacia branca, mas também como um passo na construção de sua
brasilidade (BARBOSA, 2013, p. 11).
A partir dos anos 1950 e 1960 esse discurso crítico ganhará um importante parceiro
dialógico (cf. BAKHTIN, 2016, p. 137). Refiro-me aos enunciados de certas pesquisas
sociológicas, em especial aquelas capitaneadas no ano de 1951 pelo projeto da UNESCO para
o desenvolvimento de estudos etnológicos no Brasil sobre o tema racial. Partindo da hipótese
de que o país “significava um caso neutro na manifestação do preconceito racial e que seu
modelo poderia servir de inspiração para outras nações, cujas relações eram menos
‘democráticas’” (SCHWARCZ, 2007, p. 14), o projeto financiou uma série de estudos sociais
levados adiante por pesquisadores como Oracy Nogueira, Roger Bastide, Florestan Fernandes,
entre outros. Contrariando as expectativas, muitas destas pesquisas concluíram não pela
existência no Brasil daquela “harmonia racial”, o éden da “tolerância” e da ausência de
preconceitos, mas apontaram a existência não somente de preconceitos, como de abismais
desigualdades, além de um tipo específico de racismo: difuso, porém intenso, ainda que não
institucionalizado legalmente como no caso norte-americano ou sul-africano.
Florestan Fernandes, por exemplo, argumentava que os países da América Latina em
geral não haviam transformado drasticamente as hierarquias sociais na transição da sociedade
escravagista para a sociedade de classes. Diferentemente do que ocorrera nos países europeus,
a “revolução burguesa” não teria se dado no sentido de uma democratização real do poder, do
prestígio social e da renda. De maneira muito diferente, no Brasil a construção da sociedade
de classes teria acontecido por meio da marginalização e subalternização do negro, para a
atualização da “supremacia da raça branca” (FERNANDES, 2007, p. 300) sob a forma da
dominação burguesa e burocrática. Uma hegemonia racial que era agudamente visível no topo
das posições com maior poder de decisão, com maior prestígio e de melhor remuneração. Para
a composição desse quadro teriam convergido uma série de dinâmicas históricas e
mecanismos de socialização.
Entre as dinâmicas descritas por Florestan Fernandes estaria, na dimensão ideológica,
a elaboração do “mito da democracia racial” que, pregando a existência de uma harmonia
entre os grupos étnicos, e confundindo o conceito de democracia com o de mera tolerância,
com a convivência restrita ou com a interação sexual fortuita e ilegítima entre brancos e
negros, teria o efeito de ajudar na conservação das hierarquias sociais. Além de que
orientados por esse “preconceito de não ter preconceitos”, tanto os “setores dominantes da
raça branca” (FERNANDES, 2007, p. 303) quanto os demais grupos étnicos subalternos,
53

acabavam atuando por não atuar: ou seja, negando a existência de qualquer “questão” racial, e
acusando todo aquele que a apontasse de “inventar” o preconceito, brancos e negros
contribuíam, por sua própria inércia, para a manutenção da ordem racial.
Sem contar os efeitos psicossociais inerentes ao “mito”, no sentido da pressão pela
assimilação cultural, isso com relação àqueles poucos indivíduos de origem negra que
estivessem em condições de ascender socialmente, assim se integrando à sociedade
competitiva. Diante desse quadro, o desmascaramento da situação racial e a busca por uma
democratização real da sociedade dependeriam, para Fernandes, não somente da crítica
histórica e sociológica: seria preciso que os próprios negros, entendidos como os afro-
brasileiros em geral, à maneira do que ocorria no Teatro Experimental do Negro – só que em
maior escala – se organizassem politicamente e pautassem a transformação social em seus
próprios termos. 20
Ora, segundo o sociólogo, por “democracia”, no contexto da “ordem burguesa”, se
deveria compreender, além da liberdade formal, a igualdade nas condições de competição
pelo poder, pelo prestígio e pela renda. Entretanto, a situação social do afrodescendente no
Brasil não indicava a superação passada das desigualdades, nem apontava com certeza
inconteste para sua superação futura. Das estatísticas recorrentemente citadas, três são
especialmente importantes para a compreensão da natureza da crítica efetuada e, no nosso
caso, para a reflexão sobre certos elementos do romance de Jorge Amado.
Segundo os dados do censo de 1950, citados por Abdias Nascimento (2016, p. 102-
103), a população brasileira somava à época 51.944.397 de pessoas, das quais:
Brancos 32.027.661 61,6 %

Negros e mulatos 19.479.399 37,6 %

Distribuição dos empregadores:

20 Em suas palavras: “O fulcro da questão está num efeito específico: a ideologia e utopias raciais dominantes
impõem a todas as categorias étnicas, raciais ou nacionais submetidas à supremacia branca, sem exceção, uma
forte pressão assimiladora, que não deixa alternativas em problemas essenciais, de significado ou com
implicações políticas. Essa pressão é intransigente e monolítica, embora quase sempre se justifique em nome da
‘integração nacional’ ou da ‘democracia racial’ e da ‘democracia cultural’. Ela faz parte da complexa herança do
mundo colonial (pois nasceu e foi aperfeiçoada no trato com o índio, com os escravos negros e com os mestiços,
em condições nas quais eles constituíam maiorias hostis, firmando-se como um ‘perigo público’ para a ordem
escravista) e foi aperfeiçoada posteriormente, por imposições de novos contingentes nacionais, trazidos com a
imigração, e dos vários deslocamentos internos de populações mestiças. [...] No fundo, o que se atacou e
repudiou [nos movimentos sociais do ‘meio negro’] foi o modo unilateral com que a pressão assimiladora define
os ideais a serem atingidos, o qual tem redundado em monopólio da igualdade, da liberdade e do poder pelos
brancos dos estratos dominantes.” (FERNANDES, 2007, p. 303).
54

Brancos 82,66 %

Negros e mulatos 15,58 %

(de quase nenhuma significação econômica)

Distribuição educacional:
Elementar Secundária Universitária

Brancos 90, 2% 96,3% 97,8%

Negros e mulatos 6,1% 1,1% 0,6%

Em complemento a esses números, absolutamente discrepantes, mesmo considerando


dificuldades típicas das pesquisas a respeito21, Abdias Nascimento (2016, p. 75) cita ainda
outros, de pesquisa efetuada por Octávio Ianni em 1972.
O sociólogo perguntava: você aprovaria o casamento do seu amigo, irmã, ou de você
mesmo, com um negro ou mulato?
Não gostariam que o (a) NEGRO MULATO

Amigo (a) casasse com... 35% 29%

Não gostariam que o irmão 74% 70%


casasse com...

Não gostariam que a irmã 76% 72%


casasse com...

Ergo, não gostaria de casar-se 89% 87%


com...

A conclusão lógica de Octávio Ianni era que “o branco elimina os negros e mulatos do
seu círculo de convivência mais íntimo: a família. É dessa forma que ele consegue dissimular

21 Em relação às estatísticas nacionais, a dificuldade constantemente referida diz respeito àquele processo de
infiltração e classificação no grupo “branco”, documentado por Gilberto Freyre: ou seja, o fenômeno de que os
indivíduos, quando suficientemente claros ou de classe social elevada, tendem a se classificar como “brancos”;
os mais escuros como “mulatos/mestiços/pardos” (na verdade, uma infinidade de nomenclaturas intermediárias),
e como “negros/pretos” somente aqueles que, nas palavras de Kabengele Munanga (2019), são os negros
“indisfarçáveis”. Ou seja, uma tendência que indica o status social do branco ou, o que dá no mesmo, o
desprestígio relativo do negro.
55

as rígidas barreiras àqueles impostas” (apud NASCIMENTO, A., 2016, p. 76). Supondo por
um instante, para além da existência, a verdade desses enunciados, são eles interessantes não
somente para compreender o que chamamos aqui de “discurso crítico”, como para vislumbrar
o meio ideológico e prático, nos anos 1950 e 1960, a circundar Jorge Amado e sua produção
romanesca. E talvez também compreender melhor a insistência presente em Tenda dos
Milagres em relação ao casamento de Tadeu Canhoto e seu adentrar em uma família
“branca”: pois a família deveria parecer a grande muralha a ser vencida pelo negro, uma vez
que se tomasse por necessária sua integração à sociedade competitiva, ao “mundos dos
brancos”. Por outro lado, tais números davam indício do tipo específico de “convivência
harmônica” existente na sociedade brasileira: ou seja, qualquer convivência, desde que não
envolvesse o compartilhamento da propriedade e do poder – uma vez que a família, como
instituição e nas relações que estabelece com o sistema de ensino, é uma das responsáveis
pela criação e manutenção do capital econômico e cultural, bem como dos pressupostos
necessários à sua reprodução (BOURDIEU, 1996, p. 35).
Para concluir as linhas gerais dessa discussão, permito-me fazer uma longa citação de
Abdias Nascimento, uma vez que ela parece sintetizar as principais conclusões desses estudos
e movimentos sociais críticos das décadas de 1950 e 1960:

O tratamento dramático do descendente africano – estereotipado e brochado


de preto – não constituiu um fenômeno isolado, restrito ao teatro. Muito pelo
contrário, trata-se de apenas um fator entre as facetas refletidas pelo contexto
geral da sociedade brasileira dominante, da qual o afro-brasileiro não
participava e não participa com igualdade de condições e de oportunidades
em relação aos demais grupos de diferentes origens étnicas ou raciais. Se o
mundo do teatro espelha o mundo de modo geral, o monopólio branco dos
palcos brasileiros não é exceção. Ele reflete o monopólio da terra brasileira,
dos meios de produção, da direção política e econômica, formação cultural
(educação, imprensa, comunicação de massa), tudo tão zelosamente seguro
nas mãos das classes dirigentes de origem branco-europeia. Todos os órgãos
de poder têm sido propriedade privada dessas classes, enquanto o
descendente do africano escravizado, responsável pela construção do país, só
encontra lugar nos mais baixos níveis de emprego e desemprego,
subeducado e jogado às condições mais inumadas de existência. Sua cultura
e religião de origem africana sofreram e sofrem todas as agressões
inimagináveis: desde as técnicas sutis de aculturação, assimilação e
folclorização, até a proibição e a tentativa de liquidação das religiões que
resultou numa “sincretização” compulsória 22. Roger Bastide caracterizou

22 São bem conhecidas as discordâncias de Jorge Amado com relação à interpretação de Roger Bastide a
respeito dos “contatos” entre a religião católica e as religiões africanas. Para Bastide, os orixás tinham como que
se disfarçado sob os santos católicos, para sua própria sobrevivência, porém com isso conseguindo manter o
essencial da sua visão de mundo. Amado, entretanto, em seus livros e declarações, acreditava na fusão de orixás
e santos católicos; para ele o fiel, ao cultuar o santo cristão, cultuava ao mesmo tempo o orixá, sem fazer
56

este processo como “uma máscara colocada sobre os deuses negros para
benefício do branco”, que incluía até a agressão armada da polícia e o
encarceramento de muitos fiéis em suas prisões. A forma mais insidiosa
desse processo de agressões tem sido a política de branquificar física e
culturalmente o país através do estímulo à imigração branca em massa, da
proibição à entrada de negro ou de africano depois da abolição da
escravatura e a miscigenação elevada à categoria de uma teoria
antropológica de salvação nacional. Tem razão Roger Bastide quando rotula
tudo isto de “ideologia que força [o negro] a se suicidar como negro para
poder existir como brasileiro”. (NASCIMENTO, A., 2016, p. 188)

Uma palavra precisa ser dita sobre o conceito de “afrodescendência”. Um primeiro


ponto é que, no contexto do “discurso crítico”, esse conceito visa se opor à descrição
conforme os graus de mestiçagem, ou seja, de acordo com a aparência física incentivada pelo
discurso de miscigenação. O argumento é que, estatisticamente falando, os indivíduos pretos e
pardos de todas as cores compartilham uma situação de marginalidade muito semelhante –
apesar de mais intensa, em certos aspectos, para os indivíduos de pele mais escura –
decorrente do fato de descenderem em algum nível das populações escravizadas e
sistematicamente expostas à destruição ou marginalização na história brasileira. Um segundo
aspecto diz respeito à lógica interna do conceito, e ao que temos chamado aqui de
classificação racial.
Lembremos que na interpretação de Gilberto Freyre, e no discurso de miscigenação
em geral, a predominância da explicação de caráter sociológico ou antropológico não excluía
considerações sobre a existência de regularidades biológicas com respeito a esta ou aquela
população; quero dizer, mesmo considerando a unidade da espécie humana, se trabalhava com
a existência de um tipo genotípica e fenotipicamente estável de certas populações, às quais
(ou no contexto das quais) se atribuía o desenvolvimento deste ou daquele padrão de cultura.
Por exemplo, ao tipo físico “branco” tido como primeiramente existente no território hoje
chamado europeu, Freyre observava certos desenvolvimentos de caráter cultural, religioso,
linguístico, comportamental, reunidos depois sob o conceito de “ocidental”. Em seguida
aplicava este conceito a outros territórios, como o norte-americano ou o brasileiro, vendo em
que medida esse padrão branco, tanto físico quanto cultural, era predominante ou competia
com outros – o mesmo valendo quando se referia ao tipo maometano, chinês etc. (FREYRE,
2011). Algo similar parece ocorrer com o conceito de afrodescendência. Na medida em que,
primeiro, se considerava a existência de certa regularidade de tipo físico, tanto de caráter

distinção, e havendo então fusão e não sobreposição. Uma discussão mais precisa sobre esse ponto foi realizada
por Reginaldo Prandi (2009).
57

genético, quanto de expressão exterior – manifesta principalmente na cor escura da pele –


existente nas populações do território africano e, mais importante, em sua descendência em
território nacional. Depois, se identificava naquelas populações africanas regularidades de
caráter cultural ou civilizacional. E nisso consiste sua diferença conceitual porque, afirmando
a existência de um padrão civilizacional, de uma civilização ou de várias em território
africano, o discurso crítico dotava o conceito de “negro” ou de “afrodescendente” de um
sentido contradiscursivo percebido como politicamente relevante num meio social de
hegemonia branca que menosprezava, implícita ou explicitamente, a África e as
manifestações culturais de origem africana. Fazendo isso, se opunha àqueles enunciados em
torno da miscigenação e da dita originalidade nacional, na medida em que via neles uma
maneira disfarçada de defesa da cultura branco-europeia. E assim buscava, por via da
afirmação do valor dos povos africanos, meios de preservação cultural e de formação da
autoestima de seus descendentes brasileiros de todos os matizes (NASCIMENTO, E., 2016, p.
216).23
A intensão com essa reconstrução é mostrar como o “discurso crítico”, ou seja, os
enunciados dos movimentos negros e aqueles formulados no contexto das pesquisas
sociológicas, extrapolam nos anos 1950 e 1960 a mera repercussão das ideias veiculadas pelos
movimentos negros norte-americanos. Não que aquelas ideias não tenham tido efeitos, ou não
tenham sido um polo importante de diálogo, de inspiração ou comparação para aqueles que,
no Brasil, estavam interessados em debater tais questões. De igual maneira, foram relevantes
os movimentos, produções, enunciados relacionados aos processos de independência dos
países africanos. De todos saíram inúmeros pensadores, intelectuais, artistas e obras
importantes.24

23 Analisando os desdobramentos posteriores a 1970, Sérgio Costa (2001) observava a relevância cultural e
política dos diferentes discursos étnicos, tanto para a sobrevivência grupal, quanto para a construção de
identidades e estratégias de atuação política dos movimentos sociais críticos ao que ele chamou, em um sentido
muito próximo ao que é aqui analisado, de “ideologia da mestiçagem” (COSTA, 2001, p. 144). Muito do que
dissemos parece se relacionar diretamente aos desdobramentos percebidos em sua análise.
24 De passagem, cito três romances publicados nos anos 1950 e 1960 e, cada um à sua maneira, sendo um
contraponto ao romance de Jorge Amado: primeiro, o romance de Chinua Achebe, O Mundo Se Despedaça
(2009), de 1958, cuja visão do encontro entre brancos e negros é a de que a vida e a cultura dos segundos foi
esfacelada pelos primeiros. Segundo, o Terra Estranha, do escritor afro-americano James Baldwin (2018),
publicado em 1965 e onde, além das complexas relações raciais nos EUA, nos é apresentada uma relativização
dos valores patriarcais e heterossexuais – também nesse ponto em absoluto contraste aos valores sustentados em
Tenda dos Milagres. Por fim, o Conversa na Catedral, do peruano Mario Vargas Llosa (1977), romance
extraordinário publicado também em 1969, que testemunha a efervescência da discussão racial na América do
Sul, para além do Brasil. Nele vemos a imagem de um Peru rigidamente dividido em hierarquias de raça, classe e
gênero, em relação às quais há pouco otimismo sobre as possibilidades de superação.
58

Apesar disso tudo, no universo romanesco de Tenda dos Milagres, a menção à “crítica
negra” ou, como lá é dito, aos defensores da “negritude nacional” (AMADO, 1969, p. 166), é
feita em tons satíricos, cuja intenção é reduzi-los a meros plagiadores das ideias – entendidas
como uma espécie de racismo às avessas – dos negros ou do imperialismo americano. Na
história, por exemplo, o personagem Estácio Maia, segundo o romance um defensor do
“poder negro”, é também descrito como “moço branco de cabelos loiros e olhos azuis, pouco
afeito inclusive a negras e mulatas” (AMADO, 1969, p. 66). E mais adiante, há a afirmação
da solução tida como mais adequada tanto para o problema das raças quanto para o das
classes:

Ildásio Taveira, concordando com Toninho na primazia da questão de


classes sobre a de raças, concedendo a Estácio Maia a existência no Brasil de
preconceitos de cor e de racista em quantidade, propunha um Archanjo sem
sectarismo, consciente de sua força e da força do povo, a defender a solução
do problema brasileiro, a miscigenação, a mistura, os mestiços, as mulatas e,
antes de tudo e sobretudo, Ana Mercedes, a quem repetia propostas nos
cantos do teatro, o infame. (AMADO, 1969, p. 167)

Há também no livro alusões ao clima de censura da Ditadura Militar, no tocante ao


tema racial, uma vez que a narrativa se passa também no ano de 1968. A maioria delas ocorre
no contexto da discussão em torno da apropriação da imagem de Pedro Archanjo e da
elaboração de um evento – que não acontece – que seria dedicado a comparar a “solução”
brasileira, a miscigenação, com o modelo do apartheid na África do Sul. Diga-se de
passagem, estes capítulos estão entre os mais engraçados do livro, gravitando entre o silêncio
imposto por um contexto político autoritário e a crítica debochada e necessária. Ilustrativo
disso é quando, comentando os motivos não muito claros da proibição do seminário, o Dr.
Zezinho, dono do jornal que propunha as comemorações do centenário de Archanjo,
explicava:

— Certas coisas nos escapam, não estamos a par de detalhes que tornam
indesejável, em determinado momento, aquilo que, em aparência, é uma boa
ideia. Vou lhes revelar algo, algo muito confidencial: a diplomacia brasileira
neste preciso instante está trabalhando num acordo de grandes proporções
com a África do Sul. Temos o maior interesse em ampliar nossas relações
com esse poderoso país, de extraordinário índice de crescimento. [...] Dão-se
conta? Como então reunir nesta hora os sábios brasileiros para que eles
baixem o pau no apartheid, ou seja, na República da África do Sul? Não vou
sequer me referir aos Estados Unidos, aos nossos compromissos com a
grande nação americana. Exatamente quando aumentam suas dificuldades
59

com os negros, também nós vamos mandar-lhes lenha? (AMADO, 1969, p.


123-124)

Ao que pergunta a inocente secretária do Centro de Estudos Folclóricos, dona


Edelweiss Vieira:
— Quer dizer que proibiram o seminário? – reincidiu a secretária do
Folclore, sem medir palavra, no vício da fala popular, direta e simples.
Dr. Zezinho, mais refeito, levantou os braços:
— Ninguém proibiu nada, dona Edelweiss, pelo amor de Deus. Estamos
numa democracia, ninguém proíbe nada no Brasil, faça-me o favor! Nós é
que, agora, aqui, examinando o assunto, à base de novos dados, decidimos –
nós, a comissão executiva e mais ninguém – suspender o seminário.
(AMADO, 1969, p.124)

Temos agora elementos suficientes para ver a viva imbricação de Tenda dos Milagres
com o contexto ideológico de sua época. Esperamos ter mostrado como o romance de Jorge
Amado, ao mesmo tempo em que parodia vários dos discursos sobre as raças no Brasil, se
posiciona em favor de uma certa compreensão da nacionalidade. Em outras palavras,
avaliamos que neste romance, de maneira mais explícita do que em outros do mesmo autor, há
um posicionamento favorável à “miscigenação”, vista não somente como um critério de
compreensão das relações raciais no Brasil, mas como a solução ideal do conflito social.
Entretanto, não se pode ver a relação do romance de Jorge Amado com o discurso de
miscigenação no Brasil como uma identificação pura e simples, sem contradições ou
gradações. Pelo contrário, vários elementos permitem vislumbrar uma aguda consciência
histórica no romance sobre os problemas relacionados aos caminhos que o Brasil poderia
seguir ou estava seguindo para realizar efetivamente a integração da população negra e
mestiça na sociedade nacional, crescentemente industrial. Por um lado, encarnada na trajetória
de Tadeu Canhoto, estava a perspectiva de uma integração individual, mas que ocorria às
custas da completa assimilação cultural. Ou seja, o abandono, por parte dos indivíduos
afrodescendentes em condições de ascender socialmente, dos elementos da cultura negra e
mestiça de onde provinham, com a decorrente perda de qualquer vínculo com esse mundo,
cujas possibilidades culturais, políticas, estéticas etc., não eram realmente consideradas como
válidas para a construção do país. Tadeu Canhoto, portanto, é a imagem daquela solução tão
elogiada pelos teóricos da “democracia racial”, do discurso que afinal sustentou a visão oficial
sobre o Brasil, atuante em grande medida até os nossos dias: o da integração por
peneiramento. Nesse ponto cabe bem uma observação contemporânea de Jessé Souza,
descontando por um instante a diferença de objetos e do tempo histórico:
60

Na estratégia do branqueamento, o decisivo é que a ascensão de negros e


mestiços seja individual, daqueles que aceitam as regras do sistema
dominante, e nunca coletiva, o que poderia pôr o sistema como um todo em
xeque. O que o progressismo neoliberal hoje faz é, sem tirar nem pôr, o que
as elites racistas brasileiras sempre fizeram para enfraquecer a resistência
popular, cooptando e “comprando” suas melhores cabeças. (SOUZA, J.,
2021, p. 40)

Por outro lado, Tenda dos Milagres apresenta a trajetória de Pedro Archanjo, cuja
espécie de ascensão intelectual também ocorre em razão das suas capacidades individuais,
mas que não tem como resultado a perda dos vínculos culturais, afetivos ou políticos com o
mundo sociocultural afro-brasileiro de onde partiu – razão pela qual sua transformação
cultural não se reverte em ascensão material. Uma terceira via de evolução histórica
vislumbrada se daria por meio dos movimentos de negritude e demais críticos do discurso de
miscigenação. Porém no romance eles são compreendidos como movimentos elaboradores de
um “racismo às avessas”, incapazes de reconhecer o valor da miscigenação na construção de
uma humanidade harmônica, e não como propositores de “brasilidades” mais democráticas.
Razão pela qual são rechaçados ou, o que dá no mesmo, satirizados.
Muito pode ser dito a partir destes elementos. Um primeiro ponto é que o romance
parece ser incapaz de imaginar uma integração da população negra e mestiça à sociedade
competitiva que não passe por soluções baseadas unicamente nos talentos individuais – em
especial dos indivíduos mestiços. Em termos sociológicos, é certamente difícil esperar que se
alcance qualquer integração social efetiva sem que existam mecanismos institucionais,
estatais etc., capazes de abranger não somente indivíduos, mas populações. A história mostra
aliás que os estratos populacionais brancos dominantes sempre contaram com todo tipo de
ação institucional e estatal para a realização e manutenção da sua posição social. A visão de
uma integração baseada em eventuais talentos individuais é certamente limitada, ainda que o
romance seja astuto sociologicamente ao mostrar a importância dos vínculos familiares e das
amizades adequadas, ou seja, a relevância de se ter o capital de relações necessário para poder
alcançar o tipo de educação valorizada, e da maior parte das posições de prestígio na
sociedade burguesa. Assim, observados do ponto de vista das suas trajetórias de ascensão
social, tanto Pedro Archanjo quanto Tadeu Canhoto representavam literariamente, ainda que
com variações, formas de se relacionar com os mecanismos de controle do poder, do prestígio
social e da renda bastante ajustáveis às expectativas das classes dominantes hegemonicamente
61

brancas no Brasil ou, em outros termos, ao discurso de miscigenação como um dispositivo de


manutenção da ordem racial (cf. TADEI, 2002).
Contudo, com relação a Pedro Archanjo e ao seu mundo, isso é somente parte da
verdade. Isso porque se por um lado o romance se encontra cindido entre Tadeu Canhoto e
Pedro Archanjo como dois caminhos possíveis, semelhantes em alguns aspectos, mas em
outros bastante distintos, a simpatia do autor recai obviamente sobre este último. Então,
olhando de um ângulo diferente, parece que na figura de Pedro Archanjo o autor pretende
sugerir que a invenção de um país original devesse se dar livre de todos os preconceitos, ou
seja, onde os indivíduos pudessem criativamente selecionar tudo o que nas diferentes culturas
pudesse ser interessante, útil ou valoroso, sejam elas brancas, negras, ameríndias, árabes etc.
Além disso, sua trajetória parece sugerir também que a transformação social pode ocorrer sem
a perda dos vínculos e sem que se despreze o valor da cultura popular negra e mestiça, pintada
como imensamente rica e criativa. Ora, em Tenda dos Milagres a defesa de uma “criação
cotidiana da beleza e da vida” que reconheça a potência da cultura popular tem um tom
fortemente positivo ou mesmo utópico – e, além disso, erótico, uma vez a ideia de mistura de
povos e culturas fundamenta-se também no incentivo ao intercâmbio sexual entre as raças,
nesse aspecto em total convergência com o discurso de miscigenação.
Assim, minha hipótese é que o romance retira do carnaval, concebido como uma festa
popular negra e mestiça, parte importante da sua lógica de composição e do seu ideário, o que
resulta numa espécie de filosofia de comunhão popular universal ou, ao menos, nacional.
Veremos adiante como o carnaval faz surgir um ambiente utópico e igualitário, e
investigaremos sua relação com Tenda dos Milagres. Por fim, é interessante notar como o
romance se equilibra em torno de proposições contraditórias, ou ao menos de difícil
conciliação: a ideia da integração social dos indivíduos negros através da quebra dos vínculos
com suas origens populares; e a valorização da cultura popular negra e mestiça, pensada como
fonte de vitalidade, criatividade e, segundo Jorge Amado, capacidade de convivência.
62

3 A LINGUAGEM CARNAVALESCA EM TENDA DOS MILAGRES

Neste capítulo travaremos um diálogo com Tenda dos Milagres a partir de outra
perspectiva, agora com a intenção de compreender o sentido das imagens do carnaval e, mais
do que isso, da própria lógica carnavalesca que atravessa a sua composição, mobiliza e dá
vida ao seu universo romanesco. Para tanto será necessário circunscrever minimamente o que
se entende por “carnaval”, “carnavalesco”, “lógica carnavalesca”. Isso será feito
primeiramente a partir da obra de Mikhail Bakhtin (2013), do estudo da sua compreensão a
respeito do Carnaval, bem como dos temas a ele relacionados, como o riso, a paródia, a
linguagem familiar, entre outros.
Os conceitos forjados por Bakhtin sobre o Carnaval surgiram principalmente da sua
interpretação da obra de François Rabelais e dos amplos discursos culturais que o seu
romance incorpora. Portanto, trata-se de conceitos que são também uma tentativa de
compreensão da concepção cômica do mundo que seria, na verdade, a condição de sentido
desta obra. A utilização destas noções ou concepções é problemática, ao menos, por duas
razões. A primeira diz respeito a ter sido este estudo publicado em sua versão definitiva em
meados da década de 1960, e ter sofrido desde então críticas variadas, nos diversos contextos
intelectuais em que foi recebido, como mostra brilhantemente Antony Wall (2010). A
segunda dificuldade diz respeito ao próprio objeto estudado por Bakhtin. Refiro-me ao fato de
o autor ter tentado compreender os diálogos de uma obra específica com a cultura cômica
popular de um período e um lugar razoavelmente circunscritos: ou seja, a cultura popular
risonha da Idade Média ao Renascimento, na Europa ocidental.
Como então trazer esses conceitos para a compreensão de um romance de um escritor
brasileiro, que além do mais escreveu na década de 60 do século XX, não no século XVI?
Para tentar apontar um caminho, colocarei em diálogo a descrição proposta por Bakhtin da
“concepção carnavalesca do mundo” com as ideias de alguns estudos sobre o Carnaval de
pesquisadores latino-americanos. Buscarei principalmente nas reflexões de Monegal (1979),
DaMatta (1997) e Moura (2020) a ajuda para saber se há sentido em relacionar o carnaval
medieval àquele que se manifesta no mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, para tentar
vislumbrar as relações entre o mundo afro-brasileiro e os ritos carnavalescos. Aqui sigo ainda
uma interessante sugestão de Bakhtin, quando este diz que “o princípio da festa popular do
carnaval é indestrutível. Embora reduzido e debilitado, ele ainda assim continua a fecundar os
diversos domínios da vida e da cultura” (BAKHTIN, 2013, p. 30). Bem, é preciso saber de
63

que maneira se dá tal fecundação. Enfim, depois dessa discussão prévia teremos elementos
para concretamente situar as imagens carnavalescas presentes em Tenda dos Milagres, de
Jorge Amado. Mais do que isso, para ver como o romance, para além das tradições e
referências literárias, dialoga com importantes aspectos da cultura popular que ele incorpora
ou tenta representar.

3.1 A lógica carnavalesca


Talvez uma maneira de começar seja apontando as manifestações da cultura popular
identificados por Bakhtin (2013, p. 4) como as grandes fontes da concepção carnavalesca do
mundo no período medieval: os ritos e espetáculos festivos, as obras cômicas verbais
paródicas, o vocabulário familiar e grosseiro da praça pública.
As festas cômicas teriam ocupado um significativo espaço na vida do homem
medieval, uma vez que ocorriam em vários períodos que, se somadas, se prolongavam por
vários meses do ano. Contavam-se entre as datas festivas, além do carnaval, os diversos
festejos públicos, como a “festa dos tolos”, a “festa do asno”, além de uma série de ritos
carnavalescos e festivos, consagrados pela tradição. Sem falar das festas religiosas, parte da
ideologia oficial do período, que eram acompanhadas frequentemente de algum tipo de
inversão cômica. Nesse sentido, segundo Bakhtin, “nenhuma festa se realizava sem a
intervenção dos elementos de uma organização cômica, como, por exemplo, a eleição de
rainhas e reis ‘para rir’ para o período de festividades” (BAKHTIN, 2013, p. 4):

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam


uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em
relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou Estado
feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas
totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao
Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo
mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam
em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões
determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que,
sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência
cultural da Idade Média nem a civilização renascentista. Ignorar ou
subestimar o riso popular na Idade Média deforma também o quadro
evolutivo histórico da cultura europeia nos séculos seguintes. (BAKHTIN,
2013, p. 4-5)

Como mostrou Antony Wall (2010, p. 17), alguns críticos de Bakhtin, principalmente
entre os acadêmicos alemães, indicaram possíveis incongruências, erros mesmo, em
considerar as festas cômicas como “exteriores à Igreja e à religião” (BAKHTIN, 2013, p. 6),
64

defendendo, pelo contrário, que entre as festas oficiais da Igreja havia espaço para comicidade
e descontração. Contra essa crítica é preciso notar que o termo “exterior” na argumentação de
Bakhtin não parece ter sentido de algo apartado absolutamente, mas sim de concepções com
ênfases distintas que, entretanto, se relacionavam, na medida em que representavam em vários
pontos o inverso uma da outra. Isso porque na concepção “não-oficial” das festas
carnavalescas ecoava, para negar ou inverter, a concepção oficial da Igreja, numa relação
entre linguagens ou visões de mundo tipicamente dialógica (cf. FIORIN, 2019, p. 27).
Nesse sentido, as festas manifestavam uma visão de mundo alternativa. Este ponto é
para nós importante, pois parece ser o essencial da argumentação de Bakhtin: que dos rituais
festivos, como das outras manifestações da cultura cômica popular, emergia uma concepção
de mundo diferente da concepção oficial. Uma outra cosmologia voltada à materialidade do
corpo e da vida, regida pelos princípios da alegria, da abundância e da ambivalência.
Concepções essas que afastavam, ainda que provisoriamente, o caráter oficial e sério da
ideologia cristã dominante na vida cotidiana, para dar vasão à brincadeira, ao riso aberto e ao
jogo. Realizando-se, assim, em relações não hierárquicas, através de ritos e linguagens que
aproximavam e familiarizavam as pessoas na praça pública.25

Contrastando com a excepcional hierarquização do regime feudal, com sua


extrema compartimentação em estados e corporações na vida diária, esse
contato livre e familiar era vivido intensamente e constituía uma parte
essencial da visão carnavalesca do mundo. O indivíduo parecia dotado de
uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas,
verdadeiramente humanas, com os seus semelhantes. A alienação
desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um
ser humano entre seus semelhantes. O autêntico humanismo que
caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da imaginação ou do
pensamento abstrato, mas experimentava-se concretamente nesse contato
vivo, material e sensível. O ideal utópico e o real baseavam-se
provisoriamente na percepção carnavalesca do mundo, única no gênero.
(BAKHTIN, 2013, p. 9)

É interessante notar que para Bakhtin a concepção carnavalesca do mundo não surge
de alguma concepção abstrata ou teórica, mas parece fundar-se na própria existência material,
até mesmo fisiológica, tanto do corpo individual quanto do popular. Nesse ponto talvez seja
adequado falarmos da relação entre os princípios da abundância, da alegria e da ambivalência,

25 Como veremos adiante, a leitura de Roberto DaMatta (1997) do Carnaval centra-se justamente na lógica da
inversão, na provisoriedade e na consciência aguçada ritualmente de se estar invertendo a totalidade dos valores
(religiosos, morais, espaciais etc.) vigentes na vida cotidiana. No caso brasileiro, isso significa a inversão dos
valores de uma sociedade hierárquica, autoritária e patriarcal, cuja ideologia oficial funda-se também na visão de
mundo cristã. Disso resulta a valorização do corpo, da não-contenção, da alegria e da irreverência, além dos
elementos culturais marginalizados, como os de origem afro-brasileira, como veremos.
65

como elementos da concepção carnavalesca sobre a existência material, corpórea, e ao mesmo


tempo histórica e cósmica da humanidade. Elementos esses intimamente ligados, na medida
em que expressavam a vitória (ainda que momentânea) do princípio material do mundo.
Observando essa concepção carnavalesca popular desde suas primeiras manifestações,
como também do sistema de imagens que lhe era característico, o do realismo grotesco, um
dos primeiros elementos a chamar atenção seria, segundo Bakhtin, a brutal diferença das
representações do corpo humano, se comparadas com os ideais ditos “clássicos”, ou depois os
valores do mundo burguês. Isso porque, como na imagem primitiva encontrada em uma gruta
em Roma – o termo grotesco derivaria, portanto, do italiano grota (BAKHTIN, 2013, p. 28)
–, nessa concepção o corpo humano nunca é representado de maneira perfeitamente acabada,
plenamente distinguido dos outros corpos e seres, mesmo dos outros objetos, como os
alimentos ou a própria terra. Há, pelo contrário, uma relativa confusão entre o mundo material
e o corpo humano, representado sempre de maneira a enfatizar essa vinculação ao mundo
físico e natural. Disso decorreria a ênfase de imagens que remetem aos orifícios – as quais,
aliás, o romance de François Rabelais (2009) é realmente farto –, bem como às trocas que o
corpo humano realiza com o mundo circundante: aos atos de comer, beber, como aos de
urinar, defecar, copular. Em todas essas ações a ênfase recai sobre o inacabamento, a
continuidade em movimento entre os seres vivos e a existência da qual são parte, assim como
nas imagens do nascimento e da morte. Nelas estaria especialmente presente o tema da
ambivalência, como sugeria a imagem da grávida idosa que ri:

Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu


L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e
gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso,
essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito
característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a
morte que dá à luz. Não há nada perfeito, nada estável ou calmo no corpo
dessas velhas. Combinam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice
e o corpo ainda embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo
ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem
completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a
concepção grotesca do corpo. (BAKHTIN, 2013, p. 22-23)

Contudo, engana-se quem achar que essa lógica se restrinja aos limites – ou aos não-
limites – do corpo individual. Segundo Bakhtin seria esse somente o caso das imagens de um
grotesco primitivo, uma vez que em sua posterior evolução o grotesco englobou não somente
o corpo popular, como a própria história. Isso porque, de forma aguda principalmente no
Carnaval, a percepção da mudança incessante, da continuidade com o mundo material, e da
66

infinita sucessão de nascimento e morte, resulta na percepção do relativismo de todas as


coisas, uma vez que tudo finda. Ao mesmo tempo, na alegria em torno da certeza da vida,
uma vez que de todo escombro nasce algo novo. A ambivalência, portanto, diz respeito não
somente ao corpo, como ao tempo e às épocas. Isto é, relaciona-se àquela sensação
tipicamente carnavalesca de uma cultura moribunda que precisa e dará lugar a algo novo, em
expansão. Certeza que se expressa de maneira alegre e zombeteira.
Assim é que o russo compreende tanto o “tom alegre” (BAKHTIN, 2013, p. 40)
quanto o “hiperbolismo positivo” (BAKHTIN, 2013, p. 40), a abundância característica do
Carnaval medieval, expressão tanto do princípio material, quanto da alegre certeza da
existência em contínua expansão, da vida popular que se multiplica infinitamente. Seria essa a
lógica, no Gargântua e Pantagruel, a dar sentido às cenas de enormes banquetes,
desenfreadas bebedeiras, recorrentes cópulas, “mijadas” que inundam cidades, números
excentricamente grandes, sem esquecer as incontáveis palavras para designar os órgãos
sexuais, masculinos e femininos, divertidamente nomeados, aludidos ou transformados em
metáforas, apelidos e trocadilhos, tão comuns no livro de Rabelais como na linguagem
popular e carnavalesca.
A diferença entre o grotesco medieval e o grotesco moderno ou contemporâneo estaria
justamente na presença, no primeiro, desse “tom alegre”, do otimismo risonho e brincalhão.
Além disso, na ausência de qualquer temor, inclusive em relação à morte, uma vez que ela era
vista como uma parte necessária da vida, não o seu final. Dito de outro modo, o “pensamento
grotesco interpreta a luta da vida contra a morte dentro do corpo do indivíduo como a luta da
vida velha recalcitrante contra a nova vida nascente como uma crise de revezamento”
(BAKHTIN, 2013, p. 44).26
Falamos da leitura bakhtiniana dos rituais festivos, como também dissemos algo da
cosmovisão carnavalesca expressa no sistema de imagens do realismo grotesco. Retomaremos
agora as manifestações verbais da cosmovisão carnavalesca. Aqui não convém repetir a
abundante variedade de textos utilizados por Bakhtin para apontar a existência de uma cultura
cômica verbal, tão ampla quanto diversa, seja na antiguidade greco-romana ou no período
medieval. Mais importante é compreender seu conceito de linguagem paródica, também a
função por ela exercida na elaboração de certa visão de mundo, posto que, segundo o autor, as
“formas paródicas e travestizantes prepararam o romance de várias maneiras importantes e
determinantes” (BAKHTIN, 2014, p. 378). Neste ponto, o ensaio de Bakhtin chamado “Da
26 Veremos adiante que o tema da morte é um dos que aparecem em Tenda dos Milagres, como aliás é um dos
temas favoritos de Jorge Amado. Ou seja, a morte risonha e festiva, destituída de qualquer temor e que, do ponto
de vista da vida popular, não significa um ponto final.
67

Pré-História do Discurso Romanesco” (2014), escrito décadas antes, mas publicado em


meados da década de 1970, é interessante por centrar-se no processo de constituição da
consciência cultural necessária para o surgimento do romance na era moderna.
Segundo essa visão, no “estilo paródico, a sua forma não é um gênero, isto é, não é a
forma de um todo, mas um objeto de representação” (BAKHTIN, 2014, p. 372). Dito de outro
modo, a linguagem paródica é como uma linguagem de segundo nível, uma vez que ela toma,
para derrisão ou deslocamento, outra linguagem como objeto. Ou seja, na paródia temos a
imagem de outra linguagem. Lembrando que por “linguagem” Bakhtin não entende somente a
língua com seus elementos gramaticais etc., mas todo o conjunto de gestos, tons e estilos, de
maneiras de dizer, além do conteúdo ideológico concreto, a visão de mundo nela elaborada.
Isso significa que as representações de uma linguagem são tomadas como “inseparáveis das
visões de mundo e dos seus portadores vivos, pessoas que pensam, falam e atuam em
27
condições históricas e sociais concretas” (BAKHTIN, 2014, p. 370). Assim, dizer que a
paródia é uma imagem de uma linguagem é dizer, portanto, que é a imagem da linguagem de
alguém: de uma pessoa ou grupo, de uma instituição, mesmo de um movimento estético, de
um gênero literário em voga, cujos sujeitos têm esta ou aquela entonação, maneira de pensar,
avaliar, valorar.
Nesse sentido, de maneira mais aprofundada:

De fato, no discurso paródico convergem e cruzam-se, de certo modo, dois


estilos, duas “linguagens” (interlinguísticas): a linguagem parodiada, por
exemplo, a linguagem de um poema heroico, e a linguagem que parodia – a
linguagem prosaica vulgar, a linguagem falada familiar, a linguagem dos
gêneros realistas, a linguagem “normal”, a linguagem literária “saudável”,
tal como imagina o autor da paródia. Esta segunda linguagem que parodia,
no fundo da qual se constrói e se expressa a paródia, não participa
diretamente dessa mesma paródia – rigorosamente falando – mas está
presente de modo invisível. [...] Deste modo, duas linguagens se cruzam na
paródia, dois estilos, dois pontos de vista, dois pensamentos linguísticos e,
em suma, dois sujeitos do discurso. É verdade que uma destas linguagens (a
parodiada) apresenta-se verdadeiramente, a outra, de maneira invisível,
como fundo ativo de criação e percepção. A paródia é um híbrido
premeditado, mas é um híbrido habitualmente interlinguístico, que se nutre
por conta da estratificação da linguagem literária em linguagens de
orientação e de gênero. (BAKHTIN, 2014, p. 390)

Teria sido muito vasta a existência do discurso paródico na antiguidade grega, como
no mundo romano e depois medieval. A paródia, entre outras maneiras de fazer rir, teria sido

27 Os comentadores não deixaram de notar as semelhanças entre esta concepção e a noção dos “jogos de
linguagem” de Ludwig Wittgenstein ou de outros pensadores com uma visão pragmática da linguagem (cf.
GONÇALVES; SIPRIANO, 2013).
68

elemento indispensável da cultura europeia, especialmente entre as camadas populares, pobres


e de línguas vulgares. Nestas épocas, como as demais formas de riso, elas funcionariam e
teriam sido sentidas como uma espécie de corretivo cômico, um inverso absolutamente
necessário da face séria e do tom solene das linguagens e dos gêneros oficiais, incluídos os
sacros – ou seja, havia também uma muito significativa paródia da Palavra Sagrada, do texto
bíblico, que expressava a maneira como os diversos povos, em seus diversos contextos, ao
mesmo tempo assimilavam e riam do discurso autoritário da Igreja, que se realizava na língua
latina oficial. Segundo Bakhtin, da profusão desses encontros dialógicos, desses
intercruzamentos linguísticos, teria emergido uma consciência relativística, condição
necessária para o posterior surgimento e aperfeiçoamento do romance. Isso porque, para ele,
“não se pode colocar a linguagem do romance num único plano, estendê-la numa única linha.
Trata-se de um sistema de planos que se intercruzam” (BAKHTIN, 2014, p. 370). Portanto, o
tipo de discurso romanesco deitaria raízes não somente nas formas de linguagem paródica,
mas na própria cultura cômica popular, na concepção carnavalesca do mundo elaborada ao
longo dos séculos.
Por fim, Bakhtin localiza nas variantes de linguagem familiar outra fonte da
concepção carnavalesca do mundo. Por linguagem familiar entende-se todo tipo de linguagem
geralmente “expulsa” das variantes oficiais, das maneiras corretas e respeitosas da
comunicação. Esse é o caso das grosserias, injúrias e palavrões que durante o carnaval eram
utilizadas não somente para ofender, em sentido negativo, mas para aproximar, tornar familiar
pelo riso e pelo escárnio, adquirindo um aspecto cômico. Palavras que ganhavam um sentido
de renovação do mundo, de valorização do aspecto material, do baixo corporal, expressando
assim a ambivalência alegre que na visão de Bakhtin caracterizava o carnaval medieval e
renascentista.

A linguagem familiar da praça pública caracteriza-se pelo uso frequente de


grosserias, ou seja, de expressões e palavras injuriosas, às vezes bastante
longas e complicadas. Do ponto de vista gramatical e semântico, as
grosserias estão normalmente isoladas no contexto da linguagem e são
consideradas como fórmulas fixas do mesmo tipo dos provérbios. Portanto,
pode-se afirmar que as grosserias são um gênero verbal particular da
linguagem familiar. Pela sua origem, elas não são homogêneas e tiveram
diversas funções na comunicação primitiva, essencialmente de caráter
mágico e encantatório. O que nos interessa especialmente, são as grosserias
blasfematórias dirigidas às divindades e que constituíam um elemento
necessário dos cultos cômicos mais antigos. Essas blasfêmias eram
ambivalentes: embora degradassem e mortificassem, simultaneamente
regeneravam e renovavam. E são precisamente essas blasfêmias
ambivalentes que determinam o caráter verbal típico das grosserias na
69

comunicação familiar carnavalesca. De fato, durante o carnaval essas


grosserias mudavam consideravelmente de sentido: perdiam completamente
seu sentido mágico e sua orientação prática específica, e adquiriam seu
caráter e profundidade intrínsecos e universais. Graças a essa transformação,
os palavrões contribuíam para a criação de uma atmosfera de liberdade, e do
aspecto cômico secundário do mundo. (BAKHTIN, 2013, p. 15)

Ainda que de maneira esquemática, apresentamos até aqui a compreensão bakhtiniana


do carnaval e de suas fontes principais na cultura cômica popular: os ritos e espetáculos
festivos, a linguagem paródica verbal, a grosseria familiar da praça pública, sem esquecer o
seu sistema de imagens característico, o realismo grotesco – elementos nos quais
predominariam os princípios da ambivalência, da alegria, do hiperbolismo positivo. Ou seja,
as diferentes manifestações do que Bakhtin considerava ter sido uma verdadeira cosmovisão
popular e carnavalesca, dotada de um universalismo ao mesmo tempo material e utópico, cujo
auge teria ocorrido no período renascentista de maneira geral, e em particular na obra de
François Rabelais. E que a partir de então teria degenerado, seja nas formas exclusivamente
satíricas (riso negativo) da modernidade, seja nas imagens bem-acabadas, individualistas e
burguesas do corpo. Ainda que, segundo Bakhtin, vez ou outra fosse possível perceber alguns
alegres fragmentos capazes de lembrar a antiga vitalidade da cultura cômica popular.
Sobre esse ponto é difícil avaliar. Apesar disso, é interessante perceber que o carnaval
continua sendo uma manifestação cultural importante, não somente no Brasil. De forma
similar, as manifestações verbais que de alguma maneira incorporam as imagens e o riso
carnavalesco continuam aparecendo: às vezes em facetas enfraquecidas, resultados de
tradições meramente literárias, mas também em elaborações potentes, de cujos diálogos
múltiplos com a cultura popular nascem filhos ainda capazes de renovar o mundo.
Uma reflexão nessa direção foi realizada pelo crítico uruguaio Emir Rodríguez
Monegal (1979), que buscou ler a produção literária latino-americana a partir das teorias de
Mikhail Bakhtin. Sobre as razões do seu interesse, dizia ele que:

Chamando a atenção para um gênero secundário, se não depreciado, como é


a paródia, e mostrando que o romance não derivava realmente da épica, mas
da sátira menipeia, o que significava inverter o cânone aristotélico que nem
mesmo o marxista Lukács havia se atrevido a alterar realmente, Bakhtin
ajudava a questionar o logocentrismo europeu e ocidental. Sua reavaliação
da sátira menipeia, do diálogo socrático, da paródia e do Carnaval não
somente oferecia uma leitura diferente e polêmica dos gêneros que haviam
produzido o romance moderno. Também invertia a orientação do
pensamento marxista de seu tempo. O que havia sido até então considerado
central (a tradição da novela realista, burguesa, estudada sobretudo por
Lukács) era visto agora somente como uma fase de um desenvolvimento
70

muito mais amplo e completo de um gênero diferente. (MONEGAL, 1979,


p. 405, tradução nossa)28

Em sua leitura da história dos movimentos de vanguarda latino-americanos do século


XX, Monegal vê na paródia uma das ferramentas principais utilizadas pelos escritores para
canibalizar – se apropriando aqui dos termos da vanguarda paulista de 1922 29 – os elementos
heterogêneos que violentamente se encontraram na formação cultural do continente. Para o
autor, a paródia representou em literatura o que o carnaval, enquanto um acontecimento
cultural mais amplo, representou para a sociedade latino-americana: um momento de deglutir,
assimilar e também dessacralizar as várias culturas e, em especial, a cultura europeia
hegemônica.
Obviamente que se tratava de um carnaval no qual, em conflituosa reelaboração,
encontraram-se os elementos das tradições europeias com aqueles de origem ameríndia e,
mais intensamente, com os de origem africana: os sons, as danças, as religiões, chamadas ao
centro de cena, em especial em países como Cuba e Brasil, onde tanto as tradições de matrizes
africanas quanto o carnaval constituem fenômenos culturais dos mais relevantes.

Do ponto de vista dos colonizadores ou do ponto de vista dos colonizados, o


conflito de culturas e de mitos produziu versões igualmente carnavalizadas.
Nessas versões, as culturas opostas e mesmo heterogêneas apareceram
inesperada e brilhantemente integradas. Os antropólogos já têm estudado as
infinitas variações de alguns cultos afro-cubanos ou afro-brasileiros, o
sincretismo de culturas que eles implicam, a mistura e confusão de toda
possível “origem” que praticam. No conceito de Carnaval, a América Latina
tem encontrado um instrumento útil para alcançar a integração cultural que
está no futuro e para vê-la não como uma submissão aos modelos ocidentais,
nem como mera corrupção de alguma originalidade sagrada, mas como
paródia de um texto cultural que contém em si mesmo a semente de suas
próprias metamorfoses. (MONEGAL, 1979, p. 408)30

28 As traduções apresentadas ao longo da dissertação são de nossa autoria, exceto quando identificadas. Texto
de partida: “Llamando la atención sobre un género secundario si no despreciado como es la parodia, mostrando
que la novela no deriva realmente de la épica, sino de la sátira menipea, es decir, invirtiendo el canon
aristotélico, que ni siquiera el marxista Lukács se había atrevido a alterar realmente, Bakhtin ayudó a cuestionar
el logocentrismo europeo u occidental. Su revaluación de la sátira menipea, del diálogo socrático, de la parodia y
del Carnaval, no sólo ofrecía una lectura diferente y polémica de los géneros que habrían de producir la novela
moderna. También invertía el sentido de la orientación del pensamiento marxista de su tiempo. Lo que había sido
hasta entonces considerado central (la tradición de la novela realista, burguesa, estudiada sobre todo por Lukács)
resultaba ser sólo una fase en un desarrollo mucho más largo y completo de un género diferente” (MONEGAL,
1979, p. 405)
29 As análises mais recentes dos escritores vanguardistas, como da obra de Oswald de Andrade, por exemplo,
continuam sublinhando a paródia como um procedimento fundamental. (cf. MAIA, 2006)
30 Texto de partida: “Desde el punto de vista de los colonizadores o desde el punto de vista de los colonizados,
el conflicto de culturas y de mitos produjo versiones igualmente carnavalizadas. En esas versiones, las culturas
opuestas y hasta heterogéneas aparecieron inesperada y brillantemente integradas. Los antropólogos ya han
estudiado las infinitas variaciones de algunos cultos afrocubanos o afrobrasileños, el sincretismo de culturas que
ellos implican, la mezcla y confusión de todo posible “origen” que practican. En el concepto de Carnaval,
71

Resta-nos dúvida sobre a capacidade do carnaval de fazer-nos alcançar concretamente


a almejada “integração”, mas pode-se compreender a sua força utópica em nosso contexto
cultural, na medida em que nos lembremos do “universalismo” de que fala Bakhtin para o
caso do carnaval medieval. Também por isso a valorização simbólica do carnaval por parte
das elites culturais latino-americanas parece ter ocorrido em conjunto com a valorização do
povo como detentor de elementos culturais ricos e desconhecidos e, ao mesmo tempo, como
fonte legítima à construção das identidades nacionais (cf. CANDIDO, 2006; ROMERO,
2010). Disso torna-se compreensível que escritores tão díspares como Jorge Luis Borges, José
Lezama Lima ou Jorge Amado, tenham visto na linguagem carnavalizada, com larga
utilização da paródia, uma forma de assimilar as heterogêneas culturas que tomavam como
fonte, somando-se ao esforço de imaginar uma linguagem que fosse própria dos seus
contextos locais. Nesse ponto, não deixa de ser significativa a conclusão de Emir Monegal, de
que tais obras seriam “provas suficientes de que a tradição latino-americana da paródia é
demasiado importante para ser vista somente como uma linha marginal. Por ali passa a
corrente mais fecunda de nossas literaturas” (MONEGAL, 1979, p. 412).31
De outra perspectiva, o antropólogo Roberto DaMatta (1997), ao estudar o carnaval
brasileiro (principalmente o exemplo carioca), insiste na sua gramática ritual, na lógica da
inversão, bem como nos seus efeitos de compensação e de reforço. Na ótica do autor, tais
características apontam para uma continuidade entre os ritos carnavalescos e a vida cotidiana.
E, de fato, sua argumentação é reveladora no sentido de comparar o que seriam os ritos
marcantes da vida nacional (a parada, o carnaval, a procissão) cada um manifestando, à sua
maneira, a rígida hierarquização em termos de classes, raças e valores que é a regra do mundo
social brasileiro.
Sobre o conceito de ritual, diz o autor:

Em outras palavras, procurei demonstrar, indo além dos argumentos de


Leach, Gluckman, Turner, que a matéria-prima do mundo ritual é a mesma
da vida diária e que entre elas as diferenças são apenas de grau, não de
qualidade. O ritual é a colocação em foco, em close up, de um elemento e de
uma relação. Nesta perspectiva, é mais ou menos inútil classificar os ritos

América Latina ha encontrado un instrumento útil para alcanzar la integración cultural que está en el futuro y
para verla no como una sumisión a los modelos occidentales, no como mera corrupción de algún original
sagrado, sino como parodia de un texto cultural que en sí mismo ya contenía la semilla de sus propias
metamorfosis” (MONEGAL, 1979, p. 408)
31 Texto de partida: “suficientes testimonios de que la tradición latinoamericana de la parodia es demasiado
importante para sólo ser vista como una línea marginal. Por allí pasa la corriente más fecunda de nuestras
literaturas” (MONEGAL, 1979, p. 412)
72

quando não se entendem bem as relações básicas de que são construídos. E,


de fato, entender as relações básicas do mundo social é, automática e
simultaneamente, entender o mundo ritual. Os rituais dizem as coisas tanto
quanto as relações sociais (sagradas ou profanas, locais ou nacionais,
formais ou informais). Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual,
as coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência e com maior
consciência. Os rituais seriam instrumentos que permitem maior clareza às
mensagens sociais. (DAMATTA, 1997, p. 85)

Partindo da análise do Carnaval como um ritual, o autor identifica na lógica da


inversão, ou seja, na subversão momentânea dos valores, papéis e espaços dominantes, a
característica formal do carnaval. No entanto, falar da inversão como a gramática universal do
carnaval não significa dizer que em todo lugar se inverte a mesma coisa. Isso porque, como
argumenta Roberto DaMatta, se no Brasil a inversão carnavalesca ocorre no contexto de uma
sociedade hierarquizada que atribui valor aos indivíduos a partir de múltiplas dualidades –
homem ou mulher; machão ou homossexual; virgem ou puta; pobre ou rico; negro ou branco
–, no caso de uma sociedade como a dos Estados Unidos, cuja ideologia oficial se fundaria na
competição, ou seja, na pressuposta igualdade dos competidores, a inversão carnavalesca se
daria no sentido de uma hierarquização. Nesta sociedade, segundo o autor, o carnaval
dramatiza o que a vida cotidiana busca recalcar (DAMATTA, 1997, p. 161), construindo
espaços rituais nos quais a divisão por critérios substantivos, como classe, cor ou origem,
possa ser ostentada sem qualquer disfarce. Isso não significa dizer, evidentemente, que a
sociedade norte-americana, por exemplo, não seja na prática organizada por este ou aquele
critério “substantivo”, mas que, no que diz respeito aos valores dominantes, tal sociedade se
orientou pela igualdade universal, acreditando dever premiar unicamente o mérito individual.
Caso muito diferente do brasileiro, no qual os valores de igualdade e hierarquia têm uma vida
ideológica muito mais conflituosa, sendo o último o que frequentemente predomina na vida
cotidiana, ajudando a construir uma sociedade organizada nas mais ínfimas circunstâncias por
critérios como classe, cor e origem, ainda que sutilmente elaborados, segundo o autor, em
discursos oficiais como o da “democracia racial” – discurso este que, pregando a harmonia de
todos, na realidade distingue hierarquicamente os indivíduos com base nesta ou naquela
marca étnica ou cultural. Elaborações, aliás, frequentemente rompidas pelas formas mais
diretas do “você sabe com quem está falando?” (DAMATTA, 1997, p. 193).
Disso decorre que o carnaval no Brasil se dê no sentido de uma inversão desse quadro
de rígidas disposições, momento em que os indivíduos deixam de ser identificados por valores
substantivos para fundarem momentaneamente um mundo em que a “regra é não ter regra”,
73

onde podem festejar alegremente ou mesmo organizar competições onde podem atuar como
iguais – coisa que na vida cotidiana sabem não ser (cf. DAMATTA, 1997, p. 153).
Desse ponto de vista o carnaval no Brasil efetuaria uma inversão momentânea dos
valores, das regras e das funções, a começar pela dos espaços: uma vez que, conforme aponta
DaMatta, há neste ritual a invasão da “rua” pelas regras da “casa”. Com outras palavras, no
espaço onde habitualmente pratica-se o trabalho, o comércio ou a rápida circulação, seja de
pessoas, de carros ou de mercadorias, com vistas a um fim bem determinado, no carnaval
transforma-se no lugar onde, como em casa, se fica “à vontade”: sem fim determinado, nas
roupas que quiser, fazendo o que bem entende.
De igual maneira, há também uma inversão temporal, dado que os festejos acontecem
não durante o dia, momento símbolo da produtividade, mas geralmente à noite, ou no fim da
tarde. E sem hora certa para acabar. Tudo sempre em contraste com as regras espaço-
temporais da vida cotidiana. Além disso, lógica de inversão que é também nítida no caso das
fantasias (em todos os sentidos desta palavra) típicas dos dias carnavalescos brasileiros: nos
homens que se vestem de mulheres; nos brancos que se vestem de indígenas; nas brincadeiras
eróticas entre homens heterossexuais, completamente interditas na vida cotidiana; nas
mulheres que, aproveitando a liberdade nestes dias acessível, adotam comportamentos sexuais
somente permitidos na vida ordinária ao gênero masculino, direcionando-os frequentemente a
homens e mulheres de outras classes e raças.32 Enfim, segundo DaMatta, o carnaval realizaria
todo tipo inversão da ordem moral e comportamental, em que tudo o que é tido como baixo
ou inferior, material ou culturalmente falando, passa ao topo e torna-se visível:

Temos, então, que no carnaval a rua é penetrada pelo “povo”, ficando


virtualmente ocupada por ele em todos os níveis: para o desfile, para o
passeio e para todas as outras ações sociais requeridas pela ocupação
demorada no mundo público. No carnaval, em vez das marchas frenéticas e
mortais dos ônibus e automóveis, temos uma marcha invertida, sem rumo ou
direção certos. O caminho do carnaval é altamente ritualizado porque é
abertamente consciente de si mesmo. Nele, não importa muito aonde se quer
chegar e o modo como se chega, mas simplesmente caminhar sem rumo e
sem direção, gozando intensamente o ato de andar, ocupando as ruas do
centro comercial da cidade, local das leis impessoais e desumanas do trânsito
do mundo diário. No carnaval de 1977, vi pessoas dormindo, urinando e
fazendo amor nos bancos dos pequenos jardins do centro da cidade. Também
vi pessoas com suas famílias acampadas em pleno centro. Olhavam
despreocupadas a passagem dos grupos de foliões e dos blocos
32 A crônica de um acontecimento desse tipo é feita pelo músico Chico Buarque, cuja canção de nome “Quem
te viu, quem te vê” narra o encontro de uma moça de alta classe com um rapaz pobre, provavelmente negro,
durante o carnaval. O tom melancólico da música está na constatação da brevidade do encontro, possível durante
um único dia dos festejos, para logo depois voltarem ambos aos seus contextos de classe específicos. Restando
ao rapaz, que é a pessoa poética da música, somente cantar a saudade daquela “cabrocha”.
74

carnavalescos, sentadas em cadeiras de alumínio. Por certo, tinham seu


automóvel aberto, onde as crianças dormitavam. Ao lado, como num
piquenique invertido, no meio do asfalto selvagem e devorador naquele
momento transformado e domesticado, tinham geladeiras de onde tiravam
garrafas de água e cerveja invejavelmente geladas. Era como se a avenida
Rio Branco, ponto central do mundo bancário, lojista e comercial do Rio de
Janeiro, uma espécie de Wall Street nativa, se tivesse transformado num
conjunto de “casas”, com seu característico espírito familiar, como vemos
nas vilas do interior. Era a cidade repartida em mil aldeias. (DAMATTA,
1997, p. 117-118)

Tão importante ou mais que a inversão espacial e moral generalizada é o fato de que
no carnaval sejam outros os sujeitos – ou atores, como diz DaMatta – a ocupar o centro do
ritual. Isso porque durante a festa todos os elementos marginalizados da vida social brasileira,
com seus corpos, práticas e valores, emergem ao centro da cena, na realidade conduzindo os
festejos. O carnaval é o momento, portanto, em que os diferentes segmentos da população
afro-brasileira, maioria entre os pobres e marginalizados, tomam o centro da cidade com sua
música, ritmo e cultura: seja de maneira mais institucionalizada, como nas escolas de samba;
com uma organização mais simples, como nos blocos de rua; ou mesmo sem organização
nenhuma, das maneiras mais espontâneas e variadas. O caso do samba é dos mais
significativos, pois, de ritmo subalternizado, música de negros, malandros e favelados, passou
a representar no discurso oficial, juntamente ao Carnaval, a própria “brasilidade” (LIRA
NETO, 2017). Também outros ritmos menos institucionalizados, mais marginalizados ou
subalternizados, emergem ao centro da cidade, embalando a festa.
Referindo-se ao caso das escolas de samba no Rio de Janeiro, Roberto DaMatta dizia:

O nome “escola”, para designar a associação de pessoas destituídas no


mundo cotidiana, coloca mais um paradoxo do mundo carnavalesco. Pois
trata-se de um nome fixado pelo tempo para grupos sabidamente ignorantes,
sistematicamente perseguidos pela polícia e residentes nas favelas dos
morros do Rio de Janeiro. Eles que, no mundo diário, vivem aprendendo
nossas regras e ocupam nossas cozinhas e oficinas, surgem agora como
professores, ensinando o prazer de viver atualizado no canto, na dança e no
samba. Revelam, por trás de um surpreendente poder de arregimentação e
ordem, uma fantástica vitalidade e amor à vida. Tudo isso que se traduz por
generosidade e que é típico daquelas camadas sistematicamente exploradas.
Afirmo, portanto, que o nome escola de samba tem, entre outros, um
significado altamente compensatório. (DAMATTA, 1997, p. 131-132)

Esta citação é importante uma vez que revela mais do que diz. Primeiro, por uma
espécie de sincera vulgaridade, o autor torna nítida a estrutura de sua enunciação: ou seja, ao
dizer “eles” – a saber, os negros e pobres – explicita o fato de que os negros são tomados
75

como o objeto de estudo, mas não como os destinatários ou leitores do seu trabalho. Estes
últimos estão implicitamente mencionados no “nossas regras” e “nossas cozinhas”. Cozinhas
e regras, não é preciso dizer, de pessoas brancas de classe média, interlocutoras presumidas da
maior parte da produção, não somente de Roberto DaMatta, como da academia brasileira de
ontem e de hoje.
De todo modo, é preciso reconhecer que, por um lado, são realmente as populações
marginalizadas e não detentoras dos saberes valorizados socialmente os principais sujeitos do
carnaval. Por outro lado, uma autora como Lélia Gonzalez também destaca as limitações dos
festejos carnavalescos, vendo neles uma espécie de compensação momentânea mítica da
subalternidade cotidiana, especialmente aguda em se tratando das mulheres negras, neste
momento transmutadas em “rainhas do carnaval” (GONZALEZ, 2020, p. 80). Voltaremos a
este último ponto no momento oportuno, quando formos abordar a elaboração em Tenda dos
Milagres de uma imagem carnavalizada das mulheres negras.
Agora importa observar que há alguma contradição em dizer, como o faz DaMatta,
que esses sujeitos “sabidamente ignorantes” são os mesmos que detêm um “surpreendente
poder de arregimentação e ordem”, estando implícito no mínimo algum saber prático. De fato,
a relação entre o carnaval e a população negra e pobre é mais contraditória. Se por um lado
existe esse elemento de compensação simbólica, também é preciso perceber aquilo que Clóvis
Moura chamou de uma “cultura de resistência” (2020, p. 231). Isso porque as escolas de
samba, ao menos em sua origem, tal como outras organizações da população afro-brasileira,
foram instituições capazes de impedir que as pessoas sob sua influência sofressem a perda
total da identidade étnica ou caíssem em estado de completa anomia. Através das escolas de
samba uma parcela da população negra brasileira, favelada e marginalizada, pôde forjar um
contradiscurso e uma contracultura especialmente visível durante o Carnaval, porém atuante
durante o ano inteiro, com importantes efeitos para sua sobrevivência social. E isso apesar (ou
em razão da) precariedade da sua condição:

A barragem da sociedade competitiva à interação social do negro escravo e


posteriormente livre causou – ao lado do traumatismo da escravidão – a
necessidade de ele, usando elementos religiosos, artísticos ou
organizacionais, tribais, se conservar organizado, não sendo destruído,
assim, pelo progresso de marginalização em curso. Tudo ou quase tudo que
o negro escravo fez no Brasil, usando elementos das suas culturas matrizes,
objetivava a um fim social: preservar o escravo e posteriormente o ex-
escravo do conjunto de forças opressivas existentes contra eles. Isso se
realiza através da criação de valores sociais de sobrevivência ou
autoafirmação capazes de municiá-los de elementos ideológicos e
76

sociopsicológicos aptos a se contraporem aos das classes dominantes e


segmentos brancos racistas. (MOURA, 2019, p. 174)

Nesse sentido, as análises de Andréia dos Santos Menezes (2012, p. 194) sobre os
sambas das primeiras décadas do século XX, em especial aqueles que tratam da
“malandragem”, permitem entrever a maneira pela qual uma parcela da população negra lidou
com o fato objetivo da sua condição subalterna. Dessa forma, o samba, assim como as escolas
de samba, os terreiros de candomblé etc., foi uma instituição na qual o negro brasileiro pôde
elaborar uma visão de mundo, uma ética e uma estética própria, o que não excluía uma
aceitação por vezes irônica ou ambígua dos ideais da sociedade competitiva. Sociedade a qual
eles, por não deterem os pressupostos necessários, ou em razão do mais cínico preconceito –
isto é, a barragem social de que fala Clóvis Moura e, mais recentemente, Jessé Souza (2011,
p. 204) – somente se integravam marginalmente.
É preciso não esquecer, entretanto, que tais instituições, na medida em que atuam em
um contexto de hegemonia branca, estão sempre lidando com as pressões integracionistas da
sociedade abrangente, cujos efeitos mais frequentes são a cooptação ideológica e a
fragmentação social. Também por essa razão, e pensando na população afro-brasileira como
um todo, observa-se que os segmentos com consciência étnica específica são evidentemente
minoritários, contrastando com a identidade diluída, ambígua ou de tendência a refugiar-se no
tipo étnico considerado superior - em outros termos, na busca pelo embranquecimento que é
característica da maior parte da população do ponto de vista da sua dinâmica racial (MOURA,
2020, p. 211). Ainda assim, como aponta Vieira Filho (2016) sobre as manifestações
carnavalescas negras de Salvador entre fins do século XIX e o princípios do XX, organizações
como as escolas de samba, os batuques, os afoxés e outras festas públicas do candomblé
realizadas durante o carnaval foram para parte da população afro-brasileira uma importante
maneira de brincar e, se divertindo, produzir o seu contradiscurso.33
Para não fugirmos muito do nosso problema, penso que agora temos elementos
suficientes para falar da existência de uma “lógica carnavalesca”. Na verdade, se algo
relaciona o carnaval medieval àquele realizado nos dias de hoje entre nós, isso parece ser a

33 É aliás interessante para nós uma crítica de Nina Rodrigues retomada por Vieira Filho “Refiro-me à grande
festa do Carnaval e ao abuso que nela se tem introduzido com a apresentação de máscaras mal prontos (sic),
porcos e mesmo maltrapilhos e também ao modo por que se tem africanizado, entre nós, essa grande festa da
civilização. Eu não trato aqui de clubes uniformizados e obedecendo a um ponto de vista de costumes africanos,
como a Embaixada Africana, os Pândegos da África etc.; porém acho que a autoridade deveria proibir esses
batuques e candomblés que, em grande quantidade, alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme
barulhada, sem tom nem som, como se estivéssemos na Quinta das Beatas ou no Engenho Velho, assim como
essa mascarada vestida de saia e torço, entoando o tradicional samba, pois que tudo isso é incompatível com o
nosso estado de civilização” (NINA RODRIGUES, 1988, P. 157 apud VIEIRA FILHO, 2016, p. 332)
77

lógica da inversão e da paródia. E isso numa sociedade – também de forma semelhante à


medieval – fortemente autoritária e hierarquizada, agora em termos também raciais, além dos
de classe. Juntamente a isso, uma sociedade cujos valores dominantes são oriundos de alguma
versão do cristianismo. Quero dizer que, mesmo considerando as brutais diferenças sociais,
culturais, políticas etc., em ambos os contextos o carnaval parece funcionar como uma
maneira de criar um mundo às avessas, valorizando tudo que é hegemonicamente considerado
baixo ou sem valor, em termos ao mesmo tempo materiais, culturais e populacionais. Por isso
todos os autores parecem concordar, também por sua possível função de “válvula de pressão”
ou de compensação simbólica do sistema, que enquanto dura a festa carnavalesca ela é vivida
como uma experiência utópica: como o prenúncio de um mundo novo, se não existente, ao
menos efetivamente possível. E onde todos podem estar juntos, entre iguais.
Nas próximas páginas discutiremos a maneira como o romance Tenda dos Milagres se
nutre do Carnaval e dos procedimentos carnavalescos, como a paródia, a utilização da
linguagem familiar etc., para realizar uma valorização da materialidade corporal e da
abundância da vida popular – mas também tentaremos mostrar como essa representação se
funde à discussão em torno das relações raciais no Brasil. Porque parece ser disso, ou seja, do
carnaval visto fundamentalmente como a festa da população afro-brasileira, que emana a
alegre energia utópica do romance de Jorge Amado.
Contudo, esse discurso carnavalizado não parece ser capaz de superar, nos seus piores
momentos, aquela outra cadeia de sentidos que conforma, em especial, as representações de
homens e mulheres negras. Esses sujeitos que foram semioticamente construídos na nossa
história como os representantes da carnalidade pura, detentores de corpos desprovidos de
espírito, meros animais árduos a copular. Isso em oposição aos corpos de origem branco-
europeia, pensados como os invólucros da alma, os naturais representantes da elevação e da
pureza. Evidentemente, as coisas no romance não são assim tão arquetípicas. Apesar disso,
tentarei mostrar como, por uma espécie de sobreposição discursiva, as imagens do romance de
Jorge Amado apontam para uma cadeia que os valoriza enquanto sujeitos da alegria e da
vitalidade popular e, ao mesmo tempo, para uma cadeia discursiva que os constrói
frequentemente como pura animalidade, especialmente em relação às mulheres negras.

3.2 A carnavalização em Tenda dos Milagres


São muitas as imagens do carnaval em Tenda dos Milagres. Tanto as que mostram a
festa carnavalesca propriamente dita, quanto aquelas imbuídas de uma lógica carnavalesca,
78

nas quais o povo da Bahia é visto tomando as ruas e invertendo a ordem das coisas, ou seja,
valorizando aquilo que não é costumeiramente valorizado. Comecemos pelas imagens
imediatamente perceptíveis.
Por exemplo, em um dos capítulos de Tenda dos Milagres narra-se a ocasião em que o
Afoxé dos Filhos da Bahia toma a ruas, liderado por um jovem Pedro Archanjo, rompendo
assim a proibição de haver desfiles carnavalescos negros, no ano de 1904:

O povo veio correndo para ver e batia palmas, gritava, a pular e a dançar, em
louco entusiasmo. Veio o entrudo inteiro: máscaras, zé-pereiras, mandus,
zabumbas, fantasias, blocos, cordões, esfarrapados, cabeçorras, caretas.
Quando o afoxé despontou no Politeama, ouviu-se um grito uníssono de
saudação, um clamor de aplauso: viva, viva, vivô!
A surpresa fazia o delírio ainda maior: o dr. Francisco Antônio de Castro
Loureiro, diretor interino da Secretaria de Polícia, não proibira “por motivos
étnicos e sociais, em defesa das famílias, dos costumes, da moral e do bem-
estar público, no combate ao crime, ao deboche e à desordem”, a saída e o
desfile dos afoxés, a partir de 1904, sob qualquer pretexto e onde quer que
fosse na cidade? Quem ousara, então? (AMADO, 1969, p. 75)

Vemos no episódio a sobreposição tão comum no romance entre o carnaval e o mundo


afro-brasileiro. Refiro-me à identificação efetuada por Jorge Amado entre a vida popular
baiana e o universo carnavalesco. Assim, para além da alegria, o Afoxé dos Filhos da Bahia
levava às ruas a história da “república libertária dos Palmares” (AMADO, 1969, p. 76),
ostentando Pedro Archanjo como o líder Zumbi, com “a lança em punho, o torso nu, uma pele
de onça tapando-lhe as vergonhas” (AMADO, 1969, p. 75). No episódio opõe-se
carnavalescamente, portanto, o mundo popular afro-baiano ao mundo branco opressor,
representado principalmente na figura da polícia.

O povo aplaudia o insubmisso, valente desafio; onde já se viu, sr. dr.


Francisco Antônio de Castro Loureiro, interino da polícia e branco de cu
preto, onde já se viu carnaval sem afoxé, brinquedo do povo pobre, do mais
pobre, seu teatro e seu balé, sua representação? Parece-vos pouco a miséria,
a falta de comida e de trabalho, as doenças, a bexiga, a febre maldita, a
maleita, a disenteria a matar meninos, ainda quereis, sr. dr. Francisco
Antônio Mata Negros, empobrecê-lo mais e reduzi-lo. Fit-ó-fó para o chefe
da polícia, na vaia, no assovio, na risada, fit-ó-fó. Palmas e vivas para os
intimoratos do afoxé, viva, viva, vivô! (AMADO, 1969, p. 76)

Notemos a utilização da linguagem popular de baixo calão, das palavras obscenas e


dos xingamentos como forma de destronar a autoridade, de ridicularizar o poder. O episódio
prossegue mostrando a repressão policial e a perseguição ao “pardo cabeça de tudo, Pedro
79

Archanjo” (AMADO, 1969, p. 77), para depois mostrar seu sumiço numa ladeira,
acompanhado de Lídio Corró e de outro comparsa, para enfim terminar de maneira
completamente carnavalesca:

Corriam os três em disparada, desabalados campeões. Mas, de repente,


Pedro Archanjo, simples guerreiro de Palmares e chefe da baderna, susteve a
maratona e começou a rir, a rir às bandeiras despregadas, um riso alto, claro
e bom de quem rompera a ordem injusta e proclamara a festa; abaixo o
despotismo, viva o povo, límpido e infinito riso de alegria, fit-ó-fó, fit-ó-fó,
viva e viva, vivô! (AMADO, 1969, p. 77)

Aqui, bastante de acordo com a observação de Ilana Goldstein (2003), vemos uma das
muitas imagens de Jorge Amado nas quais o povo é visto tomando as ruas; ou, dito de outro
modo, imagens nas quais o protagonista do livro se encontra (ou é encontrado) no meio da
multidão, denunciando assim sua filiação última ou sua origem. Esse recurso – cujas relações
com o que dissemos sobre a carnavalização são evidentes – é fartamente utilizado pelo autor
também em outros livros desta mesma época. Para exemplificar basta lembrarmos umas das
cenas de Gabriela, Cravo e Canela (2004) quando a protagonista, cansada dos
convencionalismos e da monotonia de um evento grã-fino, não resiste à música em
redondilhas e à alegria de uma festa popular, e acaba abandonando o evento (e o marido) para
dançar no meio do povo (AMADO, 2004, p. 307).
Todavia, em Tenda dos Milagres a visão de mundo carnavalesca penetra mais fundo
do que poderia presumir-se unicamente pela presença dessas imagens mais imediatas, sejam
as dos desfiles carnavalescos propriamente ditos, ou a das apropriações festivas do espaço
público. Avalio que mais importantes sejam outros aspectos, a começar pela recorrência no
romance de alguns temas fundamentais, principalmente: o tema da morte, do comer e do
beber, e o tema do amor. Conteúdos temáticos recorrentes não somente neste romance, mas
em todos os outros desta mesma época.
Num dos capítulos mais significativos de Tenda dos Milagres acompanhamos os
acontecimentos em torno da morte de Pedro Archanjo. Aliás, notemos que este é o que
inaugura a biografia de Archanjo narrada por Fausto Pena, o que desde logo é uma inversão
carnavalesca. Porque uma vez que a morte é o fecho da vida, é a partir dela que o narrador
pode resumir o sentido da biografia de Archanjo, adiantando ao leitor todos os momentos
fundamentais de sua existência e que serão posteriormente esmiuçados: os grandes amores, as
amizades, as atitudes políticas, enfim, todos os elementos que mostram a construção do seu
caráter, e que fazem da sua trajetória a manifestação de uma avaliação sobre a vida.
80

Avaliação que não é somente individual, mas que se comunica ao todo da vida
popular, ou seja, ao conjunto vital do qual Pedro Archanjo foi uma parte ativa. Assim, nesse
episódio o autor conecta de maneira especialmente bem-acabada a biografia do indivíduo ao
movimento da história coletiva que o rodeia, dando a entender que o sentido da vida de Pedro
Archanjo seria incompreensível se visto em separado da vida do corpo popular ao qual ele
estava organicamente vinculado. Por exemplo, vejamos a maneira como Archanjo deixa o bar
onde estava rodeado de amigos, buscando ainda não esquecer uma frase por lá ouvida:

Apalpa a parede, procura ver em torno, a vista de reduzira, não tinha


dinheiro para novos óculos, nem para um trago de cachaça tinha dinheiro. A
dor mais funda o encosta ao sobrado, arfante. Basta, no entanto, um esforço
para chegar em casa, uns quarteirões adiante, ao quartinho dos fundos do
castelo de Ester. À luz da lamparina escreverá com sua letra miúda – se a
dor se aquietar e permitir. Lembra-se do seu compadre Corró, caído morto
em cima do risco do milagre, um laivo de sangue no canto da boca. Tanta
coisa fizeram juntos os dois, ele o riscador de milagres, tanta correria nestas
ladeiras, cabrochas derrubadas nos portais. Lídio Corró morrera há muito
tempo: uns quinze anos, talvez mais. Há quantos, meu bom? Dezoito, vinte?
Já lhe falha a memória, mas a frase do ferreiro ainda a retém, íntegra, palavra
por palavra. Apoiado à parede, tenta repeti-la, não pode esquecê-la, deve
apontá-la quanto antes na caderneta. Apenas uns poucos quarteirões, umas
centenas de metros. Num esforço murmura a imprecação final do ferreiro,
que a sublinhara com um murro na mesa, a negra mão igual ao malho da
bigorna.
Fora ouvir rádio, as estações estrangeiras, a BBC de Londres, a Rádio
Central de Moscou, a Voz da América; seu amigo Maluf adquirira um
aparelho que pegava o mundo todo. As notícias daquela noite davam gosto,
os “arianos” apanhando de criar bicho. Todo mundo xingava os alemães,
porém, só se referia aos “bandidos arianos”, assassinos de judeus, negros e
árabes. Conhecia alemães ótimos, seu Guilherme Knodler casara com uma
negra e tivera oito filhos. Um dia foram lhe falar de arianismo, ele puxou o
cacete para fora das calcas e retrucou:
— Só se eu cortar o pau.
Quando Maluf, para comemorar as vitórias do dia, serviu uma pinga, a
discussão começou: se Hitler ganhasse a guerra poderia ou não matar tudo
que não fosse branco puro, acabando de vez com o resto do povo? Opina
daqui, opina de lá, pode, não pode, ora se pode, o ferreiro se alterou:
— Nem Deus, que fez o povo, pode matar tudo de uma vez, vai matando de
um a um e quanto mais ele mata mais nasce e cresce gente e há de nascer, de
crescer e de se misturar, filho da puta nenhum vai impedir! – a mão ao bater
sobre o balcão emborcou o copo e lá se foi o resto da cachaça. Mas o turco
era boa praça, compareceu com outra rodada antes da despedida.
Tenta o velho prosseguir sua subida, remoendo as palavras do ferreiro, “há
de nascer, de crescer e de se misturar...” Quanto mais misturado, melhor: o
velho quase sorri em meio à dor posta em cruz sobre seu lombo, dor mais
pesada de carregar. (AMADO, 1969, p. 33-34)
81

Por esse episódio vemos não somente que a vida de Pedro Archanjo está conectada ao
movimento da história, como também nos é mostrada a pretensa coerência da sua filosofia da
mistura, que é também a dos seus companheiros. Ou seja, percebe-se uma conexão entre a
diversidade dos amigos, a indestrutibilidade do povo e o fato de que os nazistas, afinal,
perderam a guerra – imagens que pretendem ser prova de que as rígidas separações, mais cedo
ou mais tarde, serão derrotadas. Esse alegre relativismo abrange ainda a ideia de que o ódio
aos nazistas não deve traduzir-se numa condenação ao povo alemão em geral, posto que
existiria mesmo um deles que não somente vive na Bahia, como casou-se com uma mulher
negra, produzindo uma miríade de filhos mestiços. Isso seria indício, segundo o ponto de vista
do romance, não somente da tolerância e fertilidade do indivíduo, mas do próprio povo que o
originou. O episódio, portanto, conecta a existência daqueles amigos ao movimento mais
amplo da história, fazendo-os comungar alegremente da certeza de um progresso difícil, mas
de vitória garantida, em direção a um futuro de “mistura” universal.
A narração prossegue e nela acompanhamos o destronamento dos valores dominantes.
Primeiro, pela completa ausência do tom lúgubre, tal como dizia Bakhtin a respeito da
representação da morte no realismo grotesco. Evidentemente que há choros e lamentações.
Todavia, aqui a morte é percebida como parte da vida, em alguns momentos até mesmo como
uma festa – por exemplo, uma das prostitutas que arrumava o corpo de Archanjo chega a dizer
que ele precisava de uma gravata, porque Archanjo “nunca foi a nenhuma festa sem gravata”
(AMADO, 1969, p 40).34 Além disso, o episódio todo é a narração de uma transmutação, na
qual o morto é transfigurado em memória alegre por todos aqueles que o acompanham e que o
recordam com carinho. Há assim algo daquela ambivalência carnavalesca, na medida em que
a morte de Archanjo significa o ingresso numa outra vida, mesmo que feita de lembranças,
sem que se alcance aqui os píncaros fantásticos de outro livro. Refiro-me ao A Morte e a
Morte de Quincas Berro D’Água (1981), no qual a morte de Quincas é sua entrada numa
outra vida, mais alegre e de acordo com seus gostos, cuja duração é de uma noite e que
termina com sua segunda morte, no mar. Mesmo assim, quando o corpo de Archanjo é
retirado da sarjeta onde restou caído vislumbra-se algo do fantástico35:

Mestre Pedro Archanjo ia contente da vida, contente da morte: aquela


viagem de defunto em carroça aberta, puxada por burro de guizos no
pescoço, com acompanhamento de bêbados, noctívagos, putas e amigos, na

34 Lembremos da personagem Norma de Dona Flor e seus dois maridos (1995), cujo grande divertimento na
vida consistia em participar dos velórios e enterros.
35 Uma boa leitura da obra de Jorge Amado no contexto da literatura latino-americana e das diferentes
utilizações de elementos fantásticos nos romancistas dessa época pode ser encontrada em Romero (2010).
82

frente do cortejo o guarda Everaldo trinando seu apito, atrás o solado


batendo continência, ah! Essa curta viagem parecia invenção sua, pagodeira
para registro na caderneta, para relato na mesa do amalá, na quarta-feira de
Xangô. (AMADO, 1969, p. 42)

O episódio continua com o recolhimento de Archanjo ao “castelo” (prostíbulo) de


Ester36, onde seu corpo será adequadamente vestido para o funeral. Aqui há mais uma
inversão dos valores dominantes, porque não é para alguma casa de família, na companhia de
mãe chorosa e de filhos, que o corpo de Pedro Archanjo será recolhido, mas à casa de
prostitutas, aquelas que na hierarquia de valores dominante representam o que há de mais
baixo (e perigoso): a mulher impura, a que não somente não teme o sexo, como vive dele. É,
portanto, pelas mãos dessas mulheres que o corpo será limpo e vestido, para depois ir à igreja
– diz mesmo o narrador que “o dinheiro para o enterro proveio sobretudo das mulheres da
vida. Para o caixão, os ônibus, as velas e as flores” (AMADO, 1969, p. 42). Nesse momento
vemos o correr da notícia da morte de Archanjo por entre vielas e castelos, chegando a
conhecidos e amigos, momento que elabora mais uma daquelas invasões coletivas das ruas de
que falamos:

De repente a ladeira começou a animar-se. Do Largo da Sé, da Baixa dos


Sapateiros, do Carmo, surgiram homens e mulheres, apressados e aflitos.
Não vinham pela morte de Pedro Archanjo, sábio autor de livros sobre
miscigenação, talvez definitivos, e, sim, pela morte de Ojuobá, os olhos de
Xangô, um pai daquele povo. Do castelo de Ester, a notícia se propagara de
boca em boca, de porta em porta, de casarão em casarão, rua afora, escada
acima, ladeira abaixo e nos becos. Chegou ao Largo da Sé a tempo de
embarcar nos primeiros bondes e ônibus.
Mulheres arrancadas do sono ou dos braços de tardos fregueses para a
lágrima e a lamentação. Trabalhadores de horário preciso, vagabundos sem
relógio de ponto, bêbados e mendigos, habitantes dos sobradões, dos infectos
cortiços, árabes de prestação, moços e velhos, gente de santo e comerciantes
do Terreiro de Jesus, um carroceiro com sua carroça, e Ester, um quimono
sobre a nudez mostrando tudo a quem quisesse ver. Mas, quem ia se
aproveitar, se ela puxava os cabelos e batia nos peitos:
— Ai, Archanjo, meu santo, por que não disse que estava doente? Como eu
ia saber? Agora, Ojuobá, como vai ser? Tu era a luz da gente, nossos olhos
de ver, nossa boca de falar. Tu era a coragem da gente e nosso entendimento.
Tu sabia de ontem e de amanhã, quem mais vai saber? (AMADO, 1969, p.
39)

36 Note-se que Ester é também o nome de um dos livros do velho testamento da Bíblia cristã. André Anéas faz
a seguinte caracterização da personagem título: “Na cidadela de Susã vivia Mardoqueu, da tribo de Benjamim.
Ele possuía uma prima chamada Hadassa, conhecida também como Ester, que fora criada por ele. Ester foi uma
das belas virgens selecionadas e agradou Hegai, responsável pelo Harém real, o qual a favoreceu, dando-lhe
tratamento de beleza e comida especial, além de deslocá-la ao melhor local do harém. Ester, por orientação de
Mardoqueu, não revelara o povo a quem pertencia nem a origem de sua família. Certo dia, chegou sua vez de se
apresentar ao rei. O rei se agradou muito de Ester e lhe favoreceu mais do que qualquer outra, vindo a se tornar
rainha no lugar de Vasti.” (ANÉAS, 2017, p. 69).
83

Por fim, o corpo é velado na Igreja do Rosário dos Pretos, com uma multidão de filhas
e mães de santo reunidas ao sacristão. Todo o povo de santo, ou seja, a gente do candomblé
sentada dentro da Igreja, imagem com a qual o autor afirma sua visão sobre a Bahia: uma
terra de convivência (inclusive religiosa) potencialmente harmônica. O capítulo da morte de
Pedro Archanjo termina em meio às danças rituais do candomblé rumo ao cemitério, uma
sequência de imagens de grande beleza, onde está ausente o tom lúgubre:

Chegam finalmente à porta do cemitério. Obás e ogãs, de costas como


ordena a obrigação, entram com o caixão de Ojuobá. Ao lado do jazigo, em
meio às flores e ao pranto, calam-se os atabaques, cessam a dança e a
cantiga. “Somos os últimos a ver essas coisas”, diz o poeta Simões ao
professor Azevedo, que se pergunta, aflito, quantos ali têm ideia da obra de
Archanjo. Não valeria a pena fazer constância em pequeno discurso? A
timidez o impede. Todos vestem de branco, a cor do luto. (AMADO, 1969,
p. 49)

Ainda a propósito da morte, mencionemos uma personagem interessantíssima de


Tenda dos Milagres: a dona Isabel Teresa Gonçalves Martins de Araújo e Pinho, “de direito
condessa de Água Brusca. Para os íntimos, Zabela.” (AMADO, 1969, p. 158). A personagem
Zabela representa no romance o mais típico riso carnavalesco, o hiperbólico positivo e a
alegria de viver. A dita condessa de Água Brusca representa ainda o relativismo e a ausência
de diferenciações rígidas, pois que em sua biografia tudo é contraditório: primeiro porque
Zabela pertence a uma antiga família nobre baiana que tivera engenhos e escravos. Entretanto,
apesar do passado familiar faz-se amiga de Pedro Archanjo e Tadeu Canhoto, negros mestiços
a quem ajuda: Archanjo, no aprendizado da língua francesa; Tadeu com sua formação e, mais
importante, na missão de casá-lo com a moça branca de família rica. Não bastasse isso,
Zabela é prima de Nilo Argolo, o professor da Faculdade de Medicina defensor da
inferioridade de negros e mestiços.
O narrador conta-nos sua biografia:

Um dia fora a riquíssima Princesa do Recôncavo em pompa e luxo. Dona de


plantações de cana, de engenhos de açúcar, de escravos, de sobrados nas
cidades de Santo Amaro, Cachoeira e Salvador. Por ela suspiraram os galãs
da corte e em duelo um oficial feriu de morte o noivo da catita, bacharel em
direito. Depois, no encalço de seus favores, arruinaram-se banqueiros e
barões. Teve vida acidentada, muitos amores, palmilhou o mundo; títulos,
cargos e fortunas a seus pés. Nunca se deu por dinheiro e os que, para tê-la,
gastaram loucamente em joias, palacetes, carruagens, só a tiveram quando
conseguiram lhe acender no peito a chama do desejo ou inspirar-lhe ao
84

menos breve inclinação; amorosa insaciável era de capricho fácil e coração


volúvel.
Com a chegada das rugas, das cãs e dos dentes falsos, dissolveu a fortuna em
régios presentes, dando-os aos gigolôs com a mesma nonchalança com que
em moça os recebera. O festim da vida passou a lhe custar absurdamente
caro e, sem vacilar, pagara o preço exigido: valia a pena. Reduzida por fim a
ossos magros, no físico e nas finanças, retornou à Bahia, com o gatarrão e a
lembrança do deboche desatinado e diminuto. Por que tão parco, por que não
fora mais? (AMADO, 1969, p. 157)

Zabela sintetiza os valores da abundância e, além disso, da contraditória e risonha


vontade de vida. A identificação entre ela e Pedro Archanjo é imediata. Conheceram-se
quando a velha estivera na tipografia de Lídio Corró para encomendar uma pintura. Então, em
contrapartida ao pedido de Archanjo para que lhe conte as origens de Nilo Argolo e da elite
baiana, Zabela pede que ele a leve para assistir uma macumba. De saída, enquanto descia os
degraus com a ajuda de Tadeu, afirma: “Velha não presta para nada e nem assim sinto
vontade de morrer – com a mão tratada tocou o queixo do rapaz: — Foi por um moreno assim
que minha avó Virgínia Martins perdeu o siso e temperou o sangue da família.” (AMADO,
1969, p. 160), numa afirmação de vitalidade e, ao mesmo tempo, da filosofia da mestiçagem
da qual ela é mais uma a subscrever.
Vejamos por fim o episódio de sua morte, a despreocupação e ausência de temor que o
caracteriza, porque, mais uma vez, em Tenda dos Milagres a morte nunca recebe tons
excessivamente sérios ou obscuros; pelo contrário, é ela ainda uma maneira pela qual o morto
fecunda a vida, seja com as boas lembranças que deixa, ou mesmo com seu último riso. E é
descontraída e rindo que vemos Zabela momentos antes de morrer, quando pedia a Archanjo
que acelerasse o trabalho sobre a origem das famílias baianas:

— Nilo Argolo é um micróbio, um verme, un sale individu, uma porcaria de


homem. Vá, meu filho, conte tudo tintim por tintim e escreva depressa para
que eu, antes de morrer, possa me rir de ces emmerdeurs.
Retornou Pedro Archanjo ao trabalho disciplinado e o fez com pressa,
conforme o pedido de Zabela: Quero ver o livro publicado, quero mandar um
exemplar a Nilo d´Ávila Argolo de Araújo avec une dédicace.
Não deu tempo, finou-se antes. Lúcida e ferina, na noite anterior à morte riu
sem parar, un fou rire, mon cher, quando Archanjo lhe contou sua mais
recente descoberta: um certo negro Bonboxê, avoengo dele, Archanjo, e,
sabe de quem? Do professor Argolo de Araújo. Oh la la! (AMADO, 1969, p.
280-281)

Passemos a outro dos temas recorrentes no romance: o da comida e da bebida.


Sobre isso, Mikhail Bakhtin observava o significado bastante complexo que o
banquete, ou seja, o ato coletivo de comer e de beber assumia no sistema de imagens do
85

realismo grotesco e na obra de Rabelais. O russo argumentava que tais imagens seriam
incompreensíveis se vistas em separado da totalidade da visão de mundo popular
carnavalesca. Dizia ainda que as ações de comer e de beber no contexto do carnavalesco
medieval possuíam um sentido bastante diferente daquele que adquirem no mundo burguês.
Neste último, ganham o sentido de satisfação das necessidades fisiológicas, sendo retratadas
costumeiramente como atos individuais ou privados. De maneira diferente, as imagens dos
banquetes como as encontradas em Rabelais nunca eram atos individuais, mas significavam a
própria abundância da vida popular e coletiva. Nesse sentido, significavam a vitória do
homem sobre o mundo, do povo sobre a morte. Ao contrário da concepção burguesa, não
tinham o sentido, portanto, de isolar o corpo em um espaço individualizado ou situação
privada, mas o de enfatizar seu constante constituir-se na relação com o mundo. E também
eram o momento da palavra franca, a que se pronuncia entre os amigos, a palavra verdadeira.
Em suma, o banquete, como a bebida e a embriaguez, tinha o sentido de vitória alegre e de
abundância vital, além de constante abertura ao mundo material e humano.

Como dissemos, na absorção de alimentos, as fronteiras entre o corpo e o


mundo são ultrapassadas num sentido favorável ao corpo, que triunfa sobre o
mundo, sobre o inimigo, que celebra a vitória, que cresce às suas expensas.
Essa fase do triunfo vitorioso é obrigatoriamente inerente a todas as imagens
de banquete. Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são
incompatíveis (enquanto que a morte e a comida são perfeitamente
compatíveis). O banquete celebra sempre a vitória, é uma propriedade
característica da sua natureza. O triunfo do banquete é universal, é o triunfo
da vida sobre a morte. Nesse aspecto, é o equivalente da concepção e do
nascimento. O corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova.
(BAKHTIN, 2013, p. 247, grifos do autor)

Também o historiador Luiz Antonio Simas (2020) reflete sobre vários aspectos da
cultura popular afro-brasileira, entre eles o significado da alimentação e da bebida como
momentos de sociabilidade. Na leitura do autor, o banquete na tradição afro-brasileira instaura
relações que se dão nos momentos rituais e nas oferendas para divindades, na sabedoria dos
ingredientes e sabores indicados para potencializar o axé de cada um, ou ainda nos encontros
e pequenos festejos da vida cotidiana, nas mesas de bar e botequins. É interessante (e
belíssima) essa sua reflexão:

Em ngúni, idioma do grupo linguístico zulu, falado em alguns lugares do sul


da África, não há palavra que designe o parentesco a partir do sangue. A
expressão que define a relação de parentesco é ubudlelane: os que comem
juntos. É na mesa, no balcão, no compartilhamento da comida, na união pela
celebração da festa, que a ideia de parentesco se estabelece. Os botequins
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mais vagabundos são como lares propiciadores de relações familiares, entre


ampolas geladas, mandurebas e petiscos dinamizadores da celebração
gordurosa da vida em comunidade. (SIMAS, 2020, p. 91)

Retomo essas passagens, uma vez que é bastante evidente a importância da comida e
da bebida nos romances de Jorge Amado. Lembremos, por exemplo, o significado da
alimentação em livros como Gabriela, cravo e canela (2004) ou Dona Flor e seus dois
maridos (1995), romances nos quais o ato de cozinhar é indissociável da história e da
caracterização das suas protagonistas, além de ser elemento da própria composição do
romance – na história de Dona Flor as receitas culinárias inclusive abrem os capítulos. Além
disso, em ambos os casos o fato de serem cozinheiras de mão cheia relaciona-se com suas
qualidades sexuais diferenciadas, numa associação entre comida e sexualidade bastante
recorrente na linguagem popular.
Também em Tenda dos Milagres a comida e a bebida têm um papel fundamental, mas
aqui o banquete parece ter em especial esse sentido de vitória coletiva após uma longa
batalha. Vejamos, por exemplo, a festividade em razão da formatura de Tadeu Canhoto, após
seu longo percurso de desafio às resistências racistas para formar-se engenheiro:

Na Tenda dos Milagres, após a dança ritual de saudação, silenciados os


atabaques, as garrafas foram abertas. Sobre a mesa onde juntavam os tipos
na composição das páginas havia quantidade de comida, variada e saborosa:
as moquecas, as frigideiras, os xinxins, os abarás, os acarajés, o vatapá e o
caruru, o efó de folhas. Muitas mãos amigas e competentes misturaram o
coco e o dendê, mediram o sal, a pimenta, o gengibre. De madrugada, em
vários terreiros de nações diversas, os bodes, os carneiros, os galos, os
cágados, as conquéns haviam sido sacrificados. Majé Bassã jogara os búzios,
três vezes responderam: trabalho, viagens e penas de amor. (AMADO, 1969,
p. 206)

E também a bebida, símbolo da alegria:


O copo de cachaça na mão, ergue-se Damião de Sousa, pigarreia, pede
silêncio, vai brindar. Espere! ordena a condessa. Para Zabela, brinde que se
preze, em festa decente, exige champanha, ou melhor, champagne francesa,
única digna de beber-se à saúde de um amigo verdadeiro. O professor Silva
Virajá lhe enviara três garrafas da melhor com votos de feliz Natal, Zabela
separou uma para a festa de Tadeu.
Bem-educada, Majé Bassã molha os lábios na bebida da fidalga. Lídio e
Archanjo fazem o mesmo: Zabela não conseguira ganhá-los para os vinhos
finos, mantiveram-se os dois compadres fiéis à cachaça e à cerveja. Após os
tropos da inflamada oratória, torrente impetuosa, Damião de Sousa emborca
seu cálice de um trago, eta bebida besta! Quem bebeu realmente a garrafa
quase inteira foi a doadora. Abraçaram-se Tadeu e Damião, juntos cresceram
no areal e na ladeira, partem agora, cada um com seu destino. (AMADO,
1969, p. 206)
87

Em outro ponto, acompanhamos também a alegria de Pedro Archanjo após publicar


seu livro chamado Influências africanas nos costumes da Bahia (AMADO, 1969, p. 219).
Alegre e com razão, afinal dedicara anos de disciplina e estudos, sacrificara festas, encontros
e bebedeiras. Por vezes deixara de fazer o que mais gostava, ou seja, estar entre o povo da
Bahia, para poder realizar a escritura do livro que agora via estava exposto na livraria do
espanhol Don León e no sebo do Bonfanti. Assim, estava finalmente livre para comemorar,
podia aproveitar a vida. E foi exatamente o que fez, como conta o narrador:

Aquela vaidade de autor de livro novo a namorar vitrinas durou pouco.


Pedro Archanjo foi completamente absorvido pelas comemorações de seus
cinquenta anos: sucessão ininterrupta de carurus, “dona Fernanda e seu
Mané Lima mandam convidar o senhor para o caruru que dão no domingo
pra seu Archanjo”, de batucadas, rodas de samba, encontros, reuniões,
comilanças e pileques, todos queriam celebrá-lo. Mestre Archanjo
mergulhou por inteiro naquele mar de cachaça, bailes e mulheres, no maior
entusiasmo. Parecia querer recuperar de um golpe o tempo gasto, durante
tantos anos, no estudo, no preparo do livro. Com fome e sede de vida, num
desparrame de energia, era visto em toda parte, apareceu em lugares onde
não voltara desde a juventude, reviu paisagens e refez itinerários esquecidos.
Novamente vadio e ocioso, conversador em soltas gargalhadas, sempre
disposto a um trago, em ronda de mulheres, a assuntar um tudo, a tomar
notas com a ponta do lápis na pequena caderneta negra. Com gula e pressa,
ávido. (AMADO, 1969, p. 221)

Notemos como a comemoração de Archanjo é toda descrita em termos alimentares:


Archanjo “mergulhou por inteiro”, como se mergulha uma colher numa panela. E o fez com
“fome e sede de vida”, ou seja, “com gula e pressa, ávido”. Além disso, o prazer de comer e
de beber confunde-se com os prazeres sexuais – pois Archanjo estava “sempre disposto a um
trago, em roda de mulheres” – e somente eram possíveis de realizar-se coletivamente, entre
“batucadas, rodas de samba, encontros, reuniões, comilanças e pileques”. Dessa maneira,
depois dos anos dedicados aos livros Pedro Archanjo mergulhou nos prazeres do “baixo
material” como diria Bakhtin, isto é, nas alegrias da alimentação e do sexo, tudo vivenciado
num clima de vitória coletiva.
Um ponto interessante diz respeito à função da bebida no romance. Isso porque em
Tenda dos Milagres e vários outros romances de Jorge Amado a bebida e, principalmente, a
cachaça exerce a função de ser símbolo da abundância, de forma semelhante à função
exercida pelo vinho na obra de Rabelais. Além disso, com relação à alimentação podemos
flagrar mais uma relação dialógica (BAKHTIN, 2016, p. 103) entre o romance de Jorge
Amado e os escritos de Gilberto Freyre. Lembremos da importância que tinha a alimentação
88

em obras como Casa-Grande & Senzala (2003a), ou Sobrados & Mucambos (2003b) – livros
onde a comida e a bebida eram percebidas como uma das mais importantes expressões da
mistura, da criatividade e do suposto equilíbrio da cultura brasileira. Também o Manifesto
Regionalista (1952) fundia uma defesa das tradições, da alimentação e uma visão sobre os
papéis de gênero, quando afirmava que “a arte da mulher de hoje está na adaptação das
tradições da doçaria ou da cozinha patriarcal às atuais condições de vida e de economia
doméstica” (FREYRE, 1952, p. 8), numa reflexão cuja proposta central consistia na adaptação
dos valores patriarcais tradicionais às condições modernas (cf. ALBUQUERQUE JUNIOR,
2011).
Dito isso, vejamos mais um episódio de Tenda dos Milagres. Nele acompanhamos o
livreiro don León, depois de ele descobrir que Pedro Archanjo não era somente um bêbado
com mania de grandeza como pensara, mas um pensador que alguns professores da Faculdade
de Medicina liam com respeito. Corria então o livreiro ao encontro de Archanjo,
embrenhando-se nos becos da cidade, descendo as ladeiras do Pelourinho, tarde da noite:

Quando, por fim, descobriu a casa de Aussá naquele sujo labirinto em que
jamais se aventurara antes, a noite de luar descera sobre o caruru regado a
cachaça, cerveja e aluá. Indeciso à porta, o cheiro da comida de azeite nas
narinas, don León olhou a sala pobre e viu seu colega Bonfanti, de boca
cheia, os bigodes amarelos de dendê. Sentado entre Rosália e Rosa de Oxalá,
o rosto tranquilo e bom, mestre Pedro Archanjo comia com as mãos, que é a
maneira melhor de comer.
— Seja bem-vindo, don León, tome lugar na mesa.
Veio Aussá com um copo de cerveja, formosa morena trouxe um prato com
caruru, acaçá, moqueca de siri. (AMADO, 1969, p. 225)

Jorge Amado cria uma atmosfera na qual sentimos os aromas da comida saborosa e da
sensualidade e, ao mesmo tempo, da amizade tranquila entre os diferentes. Mistura-se assim a
comida, as amizades, as mulheres – temperos da utopia amadiana, sua espécie de Éden
popular e carnavalesco de ressonâncias patriarcais.

3.3 Carnavalização e representação


O tema do amor (ou do sexo) em Tenda dos Milagres necessita uma nova seção. Isso
porque a sexualidade tem um papel dos mais significativos nos romances de Jorge Amado e,
ao mesmo tempo, é um dos temas mais difíceis, polêmicos e criticados de sua literatura.
Assim, pensar as imagens do amor sensual no romance significa certamente refletir sobre o
sentido delas no contexto do carnaval e da cultura popular, mas sem esquecer que tal cultura
89

se insere em uma sociedade surgida do colonialismo e da escravidão. Como efeito, com um


meio ideológico se constituiu de maneira a refletir as diversas práticas de subjugação de
mulheres e dos homens negros, revestindo seus corpos de sentidos muitas vezes aviltantes.
Comecemos pelas imagens das masculinidades negras. Nesse ponto, o historiador
Daniel Dos Santos (2014) faz um interessante retrospecto de como os corpos, em especial dos
homens negros, foram compreendidos no contexto da sociedade escravocrata brasileira,
refletindo sobre as práticas decorrentes do tráfico atlântico:

O processo de escravização dos povos africanos desenvolvido pelas


potências europeias ultramarinas a partir do século XVI e, principalmente, o
cotidiano do tráfico humano e as relações de exploração e escravismo
colonial no Brasil constituíram espacialidades em que inúmeros estereótipos
e projeções sobre o microcosmo dos homens negros foram forjados. Os
homens negros eram sempre caracterizados como indivíduos exóticos,
irracionais, fetichistas, bárbaros, incivilizados, dentre outros adjetivos,
classificações e juízos de valores de grande teor etnocêntrico e, sobretudo,
racista. [...] Além de seres animalescos, os negros escravizados também
passaram a ser visualizados como objetos, cargas, mercadorias de grande
valor financeiro no comércio transatlântico; valor que era delimitado e
fixado a partir de seus dotes físicos e sua robustez anatômica que seriam
empregados principalmente nos serviços agrícolas das monoculturas
coloniais de cana-de-açúcar e na extração de minérios em territórios
brasileiros. (SANTOS, 2014, p. 8)

Assim, afora as discussões teológicas sobre serem os africanos e ameríndios dotados


ou não de alma, na vida cotidiana da colônia os negros escravizados não parecem ter recebido
por parte da classe senhorial um tratamento muito diferente do dedicado aos animais de carga,
cujas preocupações sobre o seu “estado físico” refletiam fundamentalmente a perspectiva de
uma maior ou mais prolongada exploração. Portanto, além das características visíveis de
saúde física, tônus muscular etc., Santos (2014) recupera registros da preocupação sobre a
“capacidade reprodutiva” dos escravizados, o que envolvia também a discussão sobre o
tamanho ideal dos órgãos sexuais dos homens negros escravizados, cujos pênis eram
analisados como possíveis indícios de uma maior ou menor potência sexual.
No entanto, a dominação envolvia mais dimensões que não unicamente a produção,
entre eles o próprio prazer sexual ou mesmo estético. Santos (2014) retoma a discussão sobre
as relações de subjugação entre senhores e escravos, aí incluídas as práticas homossexuais
entre os senhores brancos e homens negros escravizados, que longe de serem unicamente
manifestação de um prazer erótico, eram uma das formas pelas quais os senhores brancos
afirmavam o seu domínio. Além disso, havia também a dominação estética: pois também era
90

comum que aquelas mulheres e homens negros escravizados e percebidos como “belos” –
segundo os padrões brancos – fossem direcionados aos trabalhos nas casas senhoriais ou
permanecessem na capital, enquanto aqueles tidos como “feios” eram enviados aos trabalhos
no interior, sendo comumente vendidos por preços menores (SANTOS, 2014, p. 10).
Portanto, ao lado das práticas de dominação com vistas à exploração produtiva (na realidade,
práticas imbricadas) havia uma dominação sexual, além de dominação estética – esta última
também relacionada ao gozo sexual, mesmo quando não extrapolasse a “simples”
contemplação visual.
A preocupação com a genitália negra, ou seja, sobre as supostas diferenças de potência
sexual entre brancos e negros, prossegue e se reelabora no contexto pós-abolição, tanto no
Brasil quanto em países como os Estados Unidos. É significativa a visão de um teórico norte-
americano defensor do darwinismo social, na segunda metade do século XIX.

Beard acreditava, assim como a maioria dos darwinistas sociais que alguns
grupos étnicos e raciais haviam cessado de evoluir. [...] Como Beard
acreditava que os negros eram uma raça que tinha parado de evoluir,
declarou que eram “subcivilizados”, condição que explicava não somente
sua inferioridade mental como também a sua superioridade física –
principalmente na área do sexo e órgãos sexuais. Os negros possuíam uma
“constituição sobrenatural” na esfera erótica, escreveu Beard, o que os
aproximava da natureza e os distanciava da civilização, e, portanto, os
deixavam imunes à disfunção erétil. (FRIEDMAN, 2002, p. 115 apud
SANTOS, 2014, p. 18)

O que estava contraditoriamente em jogo era o enunciado de que os negros seriam


incivilizados – e, portanto, estariam mais próximos da natureza, cujos indícios seriam os seus
atributos físicos diferenciados – ao mesmo tempo que essa presunção sobre uma
supersexualidade negra colocava em questão as ideias de virilidade e de supremacia dos
homens brancos, crentes da centralidade do falo ou, em outros termos, imbuídos de valores
intensamente patriarcais. Os rituais de castração de homens negros perpetrados pela Ku Klux
Klan eram significativos desta ambivalente angústia, na medida em que simultaneamente
reuniam o desprezo e a admiração (SANTOS, 2014, p.14).
No Brasil, além dos estereótipos sobre uma hiperpotência sexual negra ao mesmo
tempo desejada e temida, a partir dos anos 1930 a reflexão parece ter se debruçado também
sobre a importância da virilidade na formação da cultura nacional. Em outro ponto discutimos
a maneira como Gilberto Freyre, no seu Casa-Grande & Senzala, defendia a disposição
sexual dos portugueses como o elemento ao fim das contas responsável pelo sucesso da
colonização do território brasileiro. Ao longo do livro o autor discutia ainda se seriam
91

realmente os homens negros detentores de uma sexualidade exacerbada, afirmando que, na


verdade, pareciam ter sido os homens africanos menos sexuados e, além do mais, mais
difíceis de serem estimulados em comparação com o homem português. Sua argumentação
terminava sugerindo que a hipersexualidade frequentemente atribuída ao “mulato” devia-se
afinal à herança portuguesa e não à africana (SANTOS, 2014, p. 16). Esse debate talvez
pareça risível para os padrões de hoje, mas o importante é notar o fundo valorativo patriarcal
que orientava o debate, na medida em que a virilidade era efetivamente percebida como uma
fonte de valorização ou de prestígio social. Assim, em Gilberto Freyre como em outros
escritores da época, entre eles Jorge Amado, o elogio de uma “ética da virilidade”, presente na
representação dos homens negros e pobres, é um elemento que não pode ser ignorado.
Dito isso, seguindo as observações de Stuart Hall (2016, p. 190) podemos dizer que os
estereótipos ainda hoje existentes sobre o negro, especialmente aqueles sobre sua sexualidade,
têm ao menos três características principais: primeiro, a de “essencializar”, reduzindo a
pessoa negra a uma característica definidora única. Segundo, a característica de excluir o
negro do espectro considerado como o “normal”, construindo-o como um “outro”
animalizado ou monstruoso. Terceiro, que os estereótipos tendem a surgir onde existem
grandes disparidades de poder – entre eles o poder de representar de que fala Edward W. Said
(2011), no sentido de que a dominação também envolve a produção e o controle das imagens
dominantes na sociedade, talvez especialmente das que dizem respeito às classes, etnias ou
povos dominados. Assim, numa sociedade como a brasileira, as classes dominantes
hegemonicamente brancas detém praticamente o controle da produção de imagens sobre os
grupos dominados, produzindo representações nas quais a estereotipagem desempenha uma
papel fundamental. Nesse contexto, a resistência dos dominados significa também, em grande
medida, uma tentativa de rompimento ou reformulação das imagens colocadas em ampla
circulação pela hegemonia branca.
Nesse sentido, costuma-se apontar na literatura de Jorge Amado a presença de
inúmeros estereótipos. Proença Filho (2004), por exemplo, criticava ao mesmo tempo que
buscava compreender a presença dos estereótipos nos romances do escritor baiano, dizendo
que a construção dos personagens ora infantilizados, ora erotizados da sua literatura devia-se
ao “fato de que, na esteira da tradição do romance realista do século passado no país, a
maioria de suas estórias inserem-se no espaço da literatura espelho e, no caso, refletem muito
do comportamento brasileiro em relação às mulheres que privilegia” (2004, p. 166). O próprio
Jorge Amado tentava também justificar uma das imagens recorrentes em seus livros – a saber,
92

a do homem negro gentil e submisso, mas dotado de força física descomunal e capaz da mais
extrema brutalidade – como um reflexo da experiência da infância:

A quem mais admirava senão a Argemiro, de temerária fama, ou a Honório,


um gigante negro que se repete nos meus livros, a partir de Cacau? Diante de
Honório todos tremiam, constava que já liquidara não sei quantos, posso
garantir que era de uma bondade sem limites, de uma delicadeza sem igual.
(AMADO, 2010, p. 29)

Justificativas todas insuficientes, é claro, além de tudo levando-se em consideração


que, longe de ser um espelho perfeito, tais observações expressam o ponto de vista de um
menino “branco” de uma elite regional, cuja relação com o “gigante negro” era também a
existente entre o empregado e o filho do patrão – tipo de relação na qual a subalternidade
também se manifesta na forma de uma gentileza extremada. Seja como for, nossa questão
principal é saber o sentido das imagens da sexualidade e dos estereótipos envolvendo as
pessoas e os corpos negros em Tenda dos Milagres (1969). Além disso, queremos
compreender as relações dessas imagens com a visão de mundo popular e carnavalesca. Neste
ponto, aliás, é interessante recordar o que dizia Bakhtin sobre a relação existente na
concepção carnavalesca de mundo entre a vida material e corporal, a abundância e a
vitalidade. Ou seja, sua afirmação de que as referências ao “baixo material e corporal”,
especialmente o ventre e o falo, serviam no romance de Rabelais e no realismo grotesco para
enfatizar a abundância e a fecundidade popular, além de ser um signo do apagamento das
fronteiras entre o corpo individual e o mundo (BAKHTIN, 2013, p. 272-277).
Como já dito, é imensa a presença da sexualidade e as referências ao sexo e ao falo em
Tenda dos Milagres. Vejamos uma das passagens mais significativas neste aspecto, aquela em
que se narra o desafio feito a Pedro Archanjo por parte de uma “iabá” – como são chamadas
as Orixás femininas no candomblé. Nesse capítulo, no qual a narrativa desemboca
completamente no mágico ou maravilhoso, conta-se como uma dessas iabás pretendia vingar-
se de Archanjo, fazendo-o sentir na pele aquele estado de subserviência amorosa ao qual ele
reduzia as mulheres. Assim, a iabá fazia planos de humilhá-lo publicamente, expondo o seu
fracasso na tentativa de levá-la ao orgasmo – dado que as iabás seriam seres incapazes de
chegar ao gozo. Dessa maneira se inicia o capítulo:

Contam, amor, que, certa feita, estando uma iabá de passagem na Bahia,
arreliou-se e ofendeu-se com a incontinência, o colossal deboche, a
presepada imensa de mestre Pedro Archanjo, arrendatário de mulheres,
macho de tantas fêmeas, pastor de dócil e fiel rebanho, mais parecendo um
93

soba cercado de comborças, pois as puxavantes se conheciam e visitavam, e


juntas eram vistas cuidando dos meninos paridos de umas e de outras, todos
dele, e davam-se o trato de comadre e mana, tudo em meio a gaitadas, a la
vontê, em cavaqueira e patuscada, quando não reunidas no fogão a preparar
quindins para o tirano.
De todas cuidava Pedro Archanjo, cada uma sua vez, e a todas satisfazia
como se outro emprego não tivesse além daquele de cama e vadiagem,
folguedos de meter e mandar vara, doce ofício. Um lorde, um paxá, um
presunçoso tirado a zarro e a pé-de-mesa, numa vida de regalo. Bem de seu,
tranquilo, a la godaça, de mulher nenhuma sofrendo as agonias, os martírios,
o medo de perdê-la ou de não tê-la, pois as desavergonhadas, as desbriosas
viviam atrás dele em dengue e adulação; não cogitavam abandoná-lo, lhe
fazer ciúmes ou lhe pôr os cornos – nem por brincadeira pensar nisso. Na
maciota, Pedro Archanjo, o bom de bico e de xodó. (AMADO, 1969, p. 129)

Incomodada com tamanha incontinência, e decidida a vingar as mulheres da Bahia, a


iabá transforma-se segundo o narrador na “negra mais formosa até hoje vista em terras da
África, de Cuba e do Brasil, narrada em história, caso, relato ou xeretice: um destempero de
negra, um deslumbramento de azeviche” (AMADO, 1969, p. 130). Porém, Pedro Archanjo
fica sabendo das intenções da iabá em tempo suficiente de preparar-se, em razão de ter sido
avisado pelo próprio Exu, que lhe indicou ainda os necessários preparos, os banhos com
ervas, sal e pimenta aos quais deveria submeter a “estrovenga” e os dois “mabaças” – ou seja,
os órgãos sexuais para que estivessem no ponto adequado e para que Archanjo possuísse a
“estrovenga principal do mundo, pelo volume, em inchaço e longitude, pelo deleite, pela
formosura e pela arreitação” (AMADO, 1969, p. 132). Depois de pronto, Archanjo pôs-se à
espreita, apoiando-se na “estrovenga como se ela fosse seu bastão de obá, tanto crescera na
impaciente espera; tão-só com seu olor de macho descabaçava virgens, léguas adiante, e as
emprenhava” (AMADO, 1969, p. 132).

Apenas surgiu na esquina e começaram, não houve fuleragem nem fricotes;


mal a iabá apareceu e a estrovenga foi ao seu encontro e lhe subiu as saias
engomadas, ali mesmo metendo, na exata medida do xibiu: fofo com fogo,
mel com mel, sal com sal, pimenta com pimenta e malagueta. Contar essa
batalha, essa guerra das duas competências, o assalto da égua e do cavalo, o
miar da gata em desvario, o uivo do lobo, o ronco do javali selvagem, o
soluço da donzela na hora de mulher, o arrulho do pombo, o marulho das
ondas, contar, amor, quem poderia? [...]
Durou três dias e três noites o grão embate, o sumo pagode, sem intervalo:
dez mil trepadas e uma só metida, e a iabá tanto entesou-se em seu furor sem
termo que, de repente, deu-lhe um tangolomango e em gozo ela se abriu
como se rompe o céu em chuva. Irrigado o deserto, rota a aridez, vencida a
maldição, hosana e aleluia!
Adormeceu então; realizada fêmea, mas não mulher ainda, ah não!
(AMADO, 1969, p. 133)
94

Perdida a batalha, a iabá transforma-se então em Dorotéia, que daí em diante dançaria
para Exu no candomblé e na qual, segundo o narrador, ainda alguns “xeretas, a par do
acontecido, juram perceber distante afitim de enxofre quando Dorotéia abre a dança no
terreiro” (AMADO, 1969, p. 134). Enfim, por tudo que já dissemos é inegável o aspecto
carnavalesco dessa passagem – o seu alegre hiperbolismo, o elogio da fecundidade e da
vitalidade – cujo elogio da poderosa “estrovenga” de Pedro Archanjo pretende funcionar
como prova não somente da potência do personagem, mas, por extensão, do povo negro e
mestiço da Bahia. Por outro lado, é notável a primazia do falo de Archanjo – “que com seu
olor de macho descabaçava virgens léguas adiante, e as emprenhava” (AMADO, 1969, p.
132) – podendo ser dito sobre Jorge Amado algo próximo ao que dizia Bakhtin sobre
Rabelais: ou seja, apontar a existência da primazia masculina e do lugar secundário ou passivo
das mulheres na lógica de suas imagens, uma vez que se é verdade que o romance não nega às
mulheres o desejo e os prazeres do baixo corporal, também é razoavelmente evidente que é o
órgão sexual masculino aquele que exerce o papel ativo da fecundidade e da vitalidade.
Nesse ponto cabe perguntar sobre a relação entre essa representação carnavalizada e
aquilo que dissemos dos estereótipos sobre uma suposta hipersexualidade negra. Dito de
maneira mais precisa: qual o estatuto da inversão carnavalesca amadiana na relação com os
valores patriarcais e com as representações estereotipadas do negro?
Sem poder dar uma resposta que resolva a questão, parece-nos que em primeiro plano
não há uma contradição necessária entre a visão carnavalesca e os valores patriarcais.
Todavia, uma vez que as festas carnavalescas ocorrem em contextos sociais com valores
dominantes cristãos e patriarcais (a sociedade europeia da Idade Média ou o Brasil do século
XX), esses valores também são constantemente colocados em destaque ou são objetos de
inversão. Porém, no caso do romance de Jorge Amado, os valores patriarcais não parecem ser
completamente atingidos pela inversão carnavalesca – ou seja, apesar de todas as outras
inversões, a centralidade masculina permanece um valor dominante no seu sistema de
imagens, mesmo que matizado por uma representação em alguns aspectos subversiva da
materialidade do desejo feminino. Nesse ponto isso talvez se deva a uma identificação do
romancista com os valores populares, ou seja, uma vez que os valores patriarcais penetram
fundo na mentalidade das classes populares no Brasil – neste ponto dando alguma razão ao
que dizia Proença Filho sobre o espelhamento, em Jorge Amado, entre a representação e o
“comportamento brasileiro” (PROENÇA FILHO 2004, p. 166).37
37 O estudo coletivo coordenado por Jessé Souza sobre a socialização da classe dos mais marginalizados no
Brasil – que o autor chama provocativamente de “A Ralé Brasileira” (2009) – oferece vários subsídios para uma
compreensão da ostensiva virilidade comum entre os homens desta classe, sendo ela uma última fonte de
95

No que diz respeito à representação da sexualidade dos homens negros, se a


carnavalização não ocorre no sentido de uma inversão dos valores patriarcais, ela acontece na
inversão dos “sujeitos” desses valores. Lembremos da discussão apontada por nós em torno
do papel da virilidade na formação da cultura nacional, e do debate sobre a sexualidade de
negros, portugueses etc. No caso de Tenda dos Milagres a defesa do valor da cultura popular
parece envolver a valorização do falo negro – simbolizando a fecundidade e virilidade dos
homens negros e mestiços – como o grande responsável pela vitalidade do povo e da cultura
nacional. Contudo, parece haver uma sobreposição discursiva entre a carnavalização e os
enunciados sobre a sexualidade negra, sendo difícil afastar a sensação de que a lógica
carnavalizada do romance na realidade reforça os estereótipos existentes sobre uma
capacidade sexual diferenciada dos homens afrodescendentes.
Apesar disso, mesmo reconhecendo-se que a valorização carnavalesca da
materialidade tende a ir ao encontro de uma redução estereotipada do sujeito negro ao corpo,
a representação dos homens em Tenda dos Milagres não parece perder, na maior parte do
tempo, aquela quase palpável densidade humana. Dito de outro modo, os homens do romance
nunca são completamente excluídos da esfera da moralidade, quase nunca chegam à
animalização pura e simples – isto é, nunca deixam de ser imaginados como uma “pessoa
moral”, conforme a feliz expressão de Machado de Assis (1951). Quero dizer que os homens
em Tenda dos Milagres – e Pedro Archanjo é especialmente sofisticado nesse sentido – são
construídos, é claro, como sujeitos acossados por vontades físicas, porém vontades que não
excluem as angústias em torno das noções de dever, liberdade, certo e errado etc. Ou seja, são
representados em geral como pessoas capazes de reflexão moral, atravessados por desejos que
nunca ou só raramente se reduzem ao mero instinto.
O mesmo não pode ser afirmado tão amplamente sobre a representação das mulheres
negras no romance. Neste ponto chegamos provavelmente ao tema mais difícil desta
dissertação. Não somente porque a representação das mulheres seja um dos temas mais
criticados (positiva e negativamente) da literatura de Jorge Amado, ou porque a ambivalência
constitutiva da composição carnavalizada do romance impeça qualquer avaliação taxativa.
Mas também em razão da diversidade de tipos femininos em Tenda dos Milagres, o que
demandaria uma análise com muito mais páginas (e tempo) do que dispomos. O que direi a
seguir tem, portanto, um caráter de apontamentos, e nem de longe pretendo elaborar uma
visão exaustiva do assunto.

prestígio entre aqueles que não têm acesso a qualquer outra fonte de valorização social.
96

Comecemos discutindo uma das representações certamente mais recorrentes nos


romances de Amado: a imagem da “mulata”. Isto é, a mulher afrodescendente identificada por
possuir traços fenótipos mais próximos do tipo branco – também chamados “traços finos”,
lembrando que “fino” é ao mesmo tempo o antônimo de grosso e de grosseiro – além do
físico muitas vezes exuberante, para usar uma expressão de Beatriz Nascimento (1990). No
entanto, a categoria de “mulata” é problemática não pela eventual constatação da beleza ou
exuberância da mulher negra, mas pelo sentido de redução do sujeito unicamente ao corpo, ou
seja, a animalização que tais enunciados ajudam a realizar.
Nesse sentido, Lélia Gonzalez contundentemente argumentava:

Como acontece com todos os mitos, o da democracia racial oculta mais do


que revela, especialmente no que diz respeito à violência simbólica contra as
mulheres afro-brasileiras. Segundo Sahlins, é devido à conexão com o
sistema simbólico que o lugar da mulher negra em nossa sociedade como um
lugar de inferioridade e pobreza é codificado em uma perspectiva étnica e
racial. Essa mesma lógica simbólica determina a inclusão da mulata na
categoria de objeto sexual.
Assim, não é coincidência que Ilma Fátima de Jesus e O. Oluwafemi
Ogunbiyi nos contem que historicamente “o ato sexual entre o homem
branco e a mulher negra não é encarado como sexo normal; essa é a razão da
palavra ‘trepar’ (copular, transar), que qualifica o coito como um ato animal.
Supomos que o termo ‘mulata’ tem sua origem na grotesca visão do sistema
dominante na sociedade”. Além disso, sabemos que a palavra “mulata” vem
de mula – animal híbrido, produto do acasalamento de um jumento (macho
ou fêmea) e um cavalo ou égua. (GONZALEZ, 2020, p. 165)

Lembremos também que a mula é frequentemente um animal estéril. Não é ausente de


associações o fato de que muitas das “mulatas” dos romances de Jorge Amado serem descritas
como mulheres não somente sem filhos, como incapazes de os ter. No romance de Dona Flor,
por exemplo, a protagonista era mesmo biologicamente incapaz de ser mãe. Gabriela, por sua
vez, também não gera descendência, talvez por ser construída como tão inadequada para a
maternidade como o era para o casamento ou qualquer vínculo amoroso que não fosse
unicamente sexual. Em Tenda dos Milagres a “mulata” Ana Mercedes é também uma mulher
sem filhos. Adiante veremos como a representação das mulheres negras que são mães possui
um estatuto diferente.

Sigamos ainda com a argumentação de Lélia Gonzalez, pois é interessante o que a


autora dizia sobre as relações das “mulatas” com o carnaval. De acordo com o seu argumento
o carnaval efetuaria uma inversão do lugar social das mulheres negras, principalmente
daquelas consideradas belas pela sociedade dominante. Assim, no carnaval elas deixavam o
97

lugar de subalternidade privada para exercer a função de “rainha do carnaval”, por um


momento exercendo um papel de destaque no mundo público. Portanto, nessa inversão não
deixava de estar presente o outro lado do endeusamento carnavalesco – isto é, a realidade de
exploração privada das mulheres negras. Como dizia a autora: “É por aí, também, que se
constata que os termos ‘mulata’ e doméstica’ são atribuições de um mesmo sujeito. A
nomeação vai depender da situação em que somos vistas” (GONZALEZ, 2020, p. 80). Por
isso, longe de serem construídas como um tipo de musa cultural, as “rainhas” negras estavam
mais próximas de uma “fruta a ser degustada” (GONZALEZ, 2020, p. 165), sendo
convincente a argumentação de Lélia Gonzalez no sentido de mostrar como a elaboração
cultural e subjetiva dessas mulheres – formatadas para exercerem o papel da “mulata
profissional” (GONZALEZ, 2020, p. 166) – fazia delas unicamente um objeto do prazer
masculino, nacional ou estrangeiro.
Tais reflexões são oportunas para se pensar a representação das mulheres em Tenda
dos Milagres, em especial para a compreensão de uma de suas personagens, a jornalista Ana
Mercedes. Vejamos o momento no qual Mercedes nos é apresentada. No capítulo narra-se a
chegada do cientista James D. Levenson ao Brasil, mais precisamente o momento do seu
desembarque na Bahia, quando era esperado por um grande número de repórteres, além de
uma multidão de mulheres atraídas, segundo o narrador, pelas belas fotografias do norte-
americano. Ana Mercedes é a primeira a recebê-lo (movimento que é significativo em si
mesmo):

Microfones das estações de rádio, câmeras de televisão, refletores,


fotógrafos, cinematografistas, um cipoal de fios elétricos, e por entre eles a
jovem repórter do Diário da Manhã atravessou, risonha e rebolosa, como se
encarregada pela cidade de receber e saudar o grande homem.

Rebolosa é o termo chulo e falso, vil para aquela navegação de ancas e seios,
em compasso de samba, em ritmo de porta-estandarte de rancho. Muito sexy,
a minissaia a exibir-lhe as colunas morenas das coxas, o olhar noturno, o
sorriso de lábios semi-abertos, um tanto grossos, os dentes ávidos e o
umbigo à mostra, toda ela de oiro. Não, não ia a rebolar-se, pois era a própria
dança, convite e oferta. [...]

— Despudorada! – disse uma delas, de peitos de rola; referia-se a Ana


Mercedes.

Fascinado, o sábio fitou a moça: vinha decidida em sua direção, o umbigo de


fora, nunca vira a andar tão de dança, corpo assim flexível, rosto de
inocência e malícia, branca negra mulata. (AMADO, 1969, p. 23)
98

Note-se que mesmo não sendo uma empregada doméstica, mas uma jornalista, ou seja,
mulher de classe média, ainda assim valem as observações acima apontadas sobre o status de
objeto das “mulatas” na cultura nacional, aqui dando razão à argumentação de Lélia
Gonzalez. Isso porque a personagem Ana Mercedes é inteiramente construída com referência
aos seus dotes físicos; ou, melhor dizendo, todas as suas características referem-se à
possibilidade de realizar algum tipo de gozo sexual, tendo como ponto de partida um olhar
masculino e patriarcal. A razão de existência desta personagem no romance não é outra que
enfatizar o lugar da mulher negra como objeto de cobiça e desfrute. Assim, a trajetória de Ana
Mercedes, para além de ser a primeira a receber o cientista Levenson – com quem depois vai
para a cama, a fim de provar “o que vale uma mulata brasileira” (AMADO, 1969, p. 72) – é a
de servir como fonte de discórdia entre os homens, todos ávidos de possuí-la. Tais disputas
são narradas por Fausto Pena, ele mesmo um pretendente frustrado e narrador das próprias
desventuras amorosas, de cuja narração emerge um perfil cínico e aproveitador da baiana,
pintada como alguém interessada na ascensão social por via da interação erótica. Em resumo,
nessa personagem feminina em Tenda dos Milagres não há outro aspecto que não a beleza
física ou a acessibilidade sexual: ela não tem conflitos, nunca está especialmente feliz ou
triste, não reflete sobre a justeza dos seus atos. Para a perspectiva do romance de Jorge
Amado a respeito dessa personagem vale a observação de bell hooks, para quem “a cultura
dominante sempre lê o corpo da mulher negra como um sinal de experiência sexual” (2019, p.
285). Ponto de vista também explicitado quando se narra a experiência de Levenson no Brasil:

Sistemático, recusava convites de academias, institutos, grêmios, conselhos


culturais, professores – tudo isso tinha de sobra em Nova York e estava
farto, mas aquele sol do Brasil quando voltaria a tê-lo? Nas praias jogou até
futebol e foi fotografado atirando a gol, embora as mulheres fossem sem
dúvida seu esporte predileto. Estabeleceu intimidade com ótimos exemplares
nacionais, na praia e nas boates. (AMADO, 1969, p. 27, grifo nosso)

Esse ponto de vista reforça o discurso sobre Brasil como um paraíso natural e, ao
mesmo tempo, como um lugar onde encontrar intensos prazeres sexuais, envolvendo
especialmente os corpos das mulheres negras. Entretanto, alguém poderia argumentar, como o
fazem Amaral (2011) e Melo (2020) a respeito da Gabriela de Jorge Amado, que a
representação de Ana Mercedes teria o sentido de afirmar a inadequação da personagem aos
ditames do moralismo tradicional, e que a representação carnavalizada da materialidade do
desejo feminino teria um aspecto subversivo em relação à norma moral. É necessário
considerar seriamente este argumento. Todavia, é também preciso situar propriamente as
99

representações no contexto das relações de raça e de classe que organizam tanto o meio social
quanto a própria arquitetura interna de Tenda dos Milagres. Isso porque a reflexão de Jorge
Amado não abrange somente a condição das “mulheres em geral”, mas representa a relação
das mulheres negras com as mulheres brancas; das mulheres pobres com as mulheres ricas;
das mulheres brasileiras com as estrangeiras etc., erigindo ao final um mosaico bastante
diverso de figuras femininas.
Nesse ponto, para poder sustentar melhor o argumento de que Ana Mercedes
representa no romance a visão sobre as mulheres negras ou “mulatas” como objeto sexual,
vejamos a representação de outra mulher, desta vez branca e estrangeira: a finlandesa Kirsi.
Essa personagem, que desembarca e tem uma breve passagem pela Bahia – mas com tempo
bastante para engravidar de Pedro Archanjo e gerar o menino mais bonito que já se viu,
segundo a opinião de um personagem (AMADO, 1969, p. 160) – tem ao menos um aspecto
em comum com Ana Mercedes, afora as diferenças de raça e nacionalidade: do ponto de vista
comportamental, ambas exercem sua sexualidade sem grandes constrangimentos em relação
às normas prescritas ao gênero feminino. Portanto, mesmo sem falar o idioma nacional, Kirsi
estabelece um vínculo afetivo e sexual com Pedro Archanjo, indo viver inclusive na casa do
baiano. É digno de nota, aliás, que a finlandesa seja a única mulher no romance com quem
Pedro Archanjo estabeleça um vínculo mais próximo do padrão familiar burguês, mesmo que
por um breve período. Além disso, é significativo que o filho gerado pelos dois seja a única
criança a quem o baiano reconheça publicamente a paternidade – os outros inúmeros filhos
surgidos das relações com mulheres negras, inclusive Tadeu Canhoto, são chamados de seus
“afilhados”. Vejamos como Kirsi é descrita no momento de sua chegada.

Mas quem veio foi Kirsi, a sueca, que aliás, corrija-se logo, não era sueca
como todos pensaram, disseram e ficou sendo; e, sim, finlandesa de trigo e
espanto. Cheia de espanto e chuva, na porta do Mercado do Ouro, na manhã
de quarta-feira de cinzas, um trejeito de medo e os olhos de infinito azul.
Levantou-se Pedro Archanjo da mesa de cuscuz e inhame, sorriu seu sorriso
aberto, para ela andou direto e firme, como se o houvessem designado para
recebê-la, e lhe estendeu a mão:
— Venha tomar café.
Se compreendeu ou não o convite, jamais se soube, mas o aceitou; sentou-se
à mesa na barraca de Terência e gulosa devorou aipim, inhame, bolo de
puba, cuscuz de tapioca.
A impetuosa Ivone roeu seu ciúme na tenda de Miro, em murmúrios de
xingos: “barata descascada”. Terência pousou na mesa os olhos tristes, quem
sabe mais tristes. A convidada, farta de comer, disse uma palavra em sua
língua e para todos riu. O moleque Damião, até ali em silêncio e de pé atrás,
se entregou por fim e riu também:
— Branca mais branca, de alvaiade.
100

— É sueca – esclareceu Manuel de Praxedes, que vinha chegando por um


café e um trago. – Saltou do barco sueco, esse cargueiro que está recebendo
madeira e açúcar, veio na mesma alvarenga em que eu vim. – Manuel de
Praxedes trabalhava na carga e na descarga dos navios. – De vez em quando
uma dona rica e doida embarca num mercado para conhecer o mundo.
Não tinha a cara de rica nem de doida; pelo menos ali, na barraca, ainda
úmida, os cabelos colados ao rosto, tão inocente e frágil, doce menina.
(AMADO, 1969, p. 80)

É enorme, para não dizer chocante, a diferença das representações de Ana Mercedes e
da finlandesa Kirsi. Sobre esta última, a descrição de sua “aparição” ressoa toda ela a
deslumbramento, candura e, mais importante, respeito38, numa atmosfera de quase devoção.
Em nenhum momento as palavras para a descrever falam dos seus volumes físicos. Além do
mais, os homens podem até querer possuí-la mas, antes disso, parecem adorá-la. Isso mesmo
considerando o aspecto não convencional do seu comportamento – ela embarca num navio,
desembarca na Bahia e envolve-se com um desconhecido baiano e negro – o que não chega a
ser razão para que Kirsi seja diminuída ou animalizada. Por fim, se há na descrição do
narrador algum traço de distanciamento crítico, ele aparece na descrição dos ciúmes das
mulheres baianas presentes, presumivelmente negras. Percebe-se que existe então competição
entre elas. No entanto, isso logo é resolvido: as palavras e o tom da narrativa rapidamente
naturalizam o conflito, dando a entender que a inveja sentida pelas mulheres baianas seja
somente o sentimento compreensível de quem é indiscutivelmente inferior. Afinal, como não
invejar os “olhos de infinito azul”, a inocência e fragilidade, enfim, a candura e beleza de tão
“doce menina” (AMADO, 1969, p. 80)?
Por outro ponto de vista, percebemos as ressonâncias da filosofia racial defendida por
Amado, percebida na comunhão de uma mulher branca com Pedro Archanjo e o povo da
Bahia. Também há uma atmosfera carnavalesca, uma vez que a comida ressalta e preenche o
episódio de vitalidade e alegria. Contudo, isso não apaga e, na verdade, reforça uma
hierarquia imediatamente palpável: a de que Kirsi, a mulher “branca mais branca”,
praticamente flutua acima do resto, envolta em sua cândida beleza molhada de chuva. É a ela
– e a Rosa de Oxalá, como veremos – que Pedro Archanjo dedicará um tipo de interesse não
unicamente relacionado às virtudes sexuais e de alcova. Mas é somente com Kirsi que o

38 É interessante apontar a recorrência da associação entre a mulher branca e os ideais de pureza,


respeitabilidade e beleza da cultura cristã ocidental. Somente para ilustrar, pensemos na personagem Cecília do
romance O Guarani, de José de Alencar (2012); ou ainda na personagem Lindinalva, do romance Jubiabá de
autoria do próprio Jorge Amado (1935), já mencionada nesta dissertação. Lembremos também a associação entre
beleza, brancura e elevação moral presente no Poemeto erótico de Manuel Bandeira, onde se diz: “Teu corpo
claro e perfeito/[...] Teu corpo branco e macio/ É como um véu de noivado” (BANDEIRA, 1993, p. 60). Não é
preciso dizer que tais enunciados articulam implicitamente a associação entre o negro e o imperfeito, entre o
escuro e o impuro.
101

vemos caminhando na praia, contra o vento, num gesto de terna delicadeza, pois naquele dia
viam-se “longe, no areal, Archanjo e a sueca, de mãos dadas” (AMADO, 1969, p. 82). Aqui
podemos traçar outro paralelo com um argumento de bell hooks (2019, p. 128) ou seja, sua
afirmação de que as mulheres brancas são geralmente associadas à pureza e ao refinamento,
enquanto as mulheres negras são associadas à selvageria e à acessibilidade sexual.
No entanto, esses dois perfis não esgotam as figuras femininas mais relevantes em
Tenda dos Milagres. Antes de prosseguir, porém, será necessário aprofundar o sentido do que
estamos chamando aqui de “sujeito moral”. Tal concepção não diz respeito ao uso cotidiano
de termos como “moralidade” ou “moralismo”, mas quer lembrar os valores e princípios, isto
é, a gramática moral que organiza a vida social. Para essa discussão nos apoiaremos nos
elementos debatidos pelo sociólogo Jessé Souza.
Souza (2021) realizou, a partir de uma interessante leitura do discurso sociológico e
das teorias do reconhecimento social, uma espécie de genealogia da concepção de moralidade
e de sujeito moral dominante no mundo ocidental. Assim, buscou relacionar essas concepções
ao desenvolvimento da sociedade moderna capitalista e aos processos de reprodução das
desigualdades sociais. Segundo seu ponto de vista, a construção da noção de sujeito moderno
como aquele capaz de disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo tem funcionado
como um pressuposto da dinâmica capitalista e, por essa razão, como um verdadeiro
privilégio de classe. Isso na medida em que o desenvolvimento destas capacidades morais-
cognitivas depende de um tipo específico de socialização familiar e escolar. Por essa razão,
em sociedades como o Brasil ou os Estados Unidos, essa socialização diferenciada também
passa a ser um privilégio de raça, uma vez que as classes dominantes majoritariamente
brancas são aquelas que monopolizam os processos necessários para o desenvolvimento e a
manutenção desse “bem escasso”. Para os nossos fins, entretanto, interessam os elementos
trazidos pelo autor em torno da concepção de sujeito moral.
Por um lado, a noção de sujeito dominante na modernidade ocidental estaria
relacionada à noção de indivíduo como uma entidade autônoma capaz de juízo moral. Essa
ideia seria fruto de um longo desenvolvimento filosófico, religioso e depois secular, mas teria
resultado na institucionalização, em todas as esferas da vida, da gramática determinante do
pensamento ocidental: a distinção entre corpo e espírito. Dessa forma, a divisão platônica
entre mundo sensível e mundo das ideias, depois a cisão judaico-cristã entre o mundo de Deus
(ou da Lei) e o mundo dos homens, teria sido reelaborada com a reforma protestante e pela
filosofia moderna na cisão entre o dever moral e as inclinações do corpo – relações presentes
de forma cristalina, por exemplo, na filosofia moral de Kant (1985), ou seja, na articulação
102

realizada pelo filósofo entre o autocontrole, o respeito e o dever. Dessa maneira, a concepção
de sujeito moral dominante na sociedade moderna e, mais que isso, do sujeito merecedor de
estima, seria a daquele capaz de manter o controle sobre as inclinações corporais, de ver a si
mesmo e aos outros como indivíduos dignos de respeito e de fazer uso da razão ao mesmo
tempo que cumpre fielmente o seu dever (SOUZA, 2021, p. 59).
A sociedade ocidental contemporânea, entretanto, teria acrescentado uma outra
dimensão à essa concepção, aquilo que o autor chama de “expressivismo romântico”
(SOUZA, 2021, p. 135). Isto é, a ideia de que não basta o cumprimento disciplinado do dever
ou a realização de um trabalho considerado útil para a obtenção de uma vida satisfatória e
admirável. Mais que isso, nos termos da ideologia dominante, passa-se a buscar na realização
do amor romântico, no refinamento sentimental e na constituição da família, as fontes da
satisfação individual e do reconhecimento social.

A racionalização da esfera erótica mostra esse processo de modo exemplar.


Antes o sexo era, para a imensa maioria das pessoas, pouco mais que uma
necessidade do corpo, como comer e beber. Pouco a pouco, tanto a vida
cortesã quanto a nascente literatura romanesca passam a associar o desejo
sexual a um conjunto de sentimentos, os quais substituem a salvação no
outro mundo pela salvação aqui e agora a partir da fruição do desejo
amoroso transfigurado e sublimado. Na verdade, a sublimação do desejo
transforma a pulsão sexual por dentro, dando ensejo à vinculação com um
conjunto de sensações, desejos e sentimentos que antes não existiam como
tais. A partir daí, encontrar o amor se torna um desafio decisivo, a grande
promessa de felicidade mundana na vida de cada um. Nasce, especialmente a
partir do século XVIII, o ideal do amor romântico, que institucionaliza a
esfera erótica na forma do casamento por afinidade e da família nuclear.
(SOUZA, 2021, p. 99-100)

Penso que essas observações, apesar de excessivamente concisas, sejam suficientes


para discutirmos alguns pontos de Tenda dos Milagres, porque poder-se-ia ler a narrativa do
romance também como resultado do esforço de Jorge Amado em comprovar que os negros e
mestiços são “sujeitos morais” no sentido apresentado acima. Assim, toda a história de Pedro
Archanjo versa sobre a sua capacidade de dedicar-se aos refinamentos sensuais (Archanjo não
é um amante qualquer) ao mesmo tempo que se aplica ao estudo disciplinado e racional. Além
disso, por meio de sua amizade com Lídio Corró, o autor constrói o personagem como
alguém capaz do mais sincero respeito: não somente pelo amigo como pessoa em si mesma,
mas pelas relações amorosas deste, às quais por mais que deseje, nunca se intromete. Nesse
sentido, as características definidoras de um “sujeito moral” se concluem em Pedro Archanjo
por meio da personagem Rosa de Oxalá, uma vez que é a ela que Archanjo dedica o seu
103

interesse romântico mais autêntico. Curiosamente, esse desejo amoroso nunca se concretiza,
apesar de ser correspondido. Entre outras razões, isso se deve ao fato de ser Lídio Corró
apaixonado por Rosa de Oxalá. Em respeito ao amigo, portanto, tanto Pedro Archanjo quanto
Rosa de Oxalá submetem o desejo a um controle rigoroso. Vejamos a passagem onde se narra
essa triangulação amorosa.

Só Majé Bassã, a temível e doce Mãe, ela e mais ninguém sabe de Rosa e de
sua vida, o resto é falatório. “Vive com um ricaço branco, um velho de
família nobre, barão ou conde, duque dos Anzóis e Carapuça, o pai de sua
filha”; “É casado no padre e no juiz com um comerciante português e dele
teve a menina”. Puro converse de compadrio, bolodório de xeretas, a locê de
parler, no gosto da má-língua. Lídio nunca perguntou, nem quis saber.
Rosa chega, travessa e alegre, sua presença basta, que importa o resto?
Conversa, ri e dança; canta e a voz é grave, de noturno acento. Rosa envolta
em sombras na pobre luz da Tenda onde a flauta de Lídio chora e suplica.
Para quem dança? Para quem os volteios de seu corpo, os requebros dos
quadris, os olhos de manimolência? Para Lídio, constante e casual amante?
Para alguém que não está ali e não se sabe quem seja, marido, amásio, nobre
ou rico, o pai de sua filha? Para Archanjo? [...]
A única, porém, a ter ciúmes da gringa marinheira, a única entre todas, é
aquela que em seus braços não esteve nunca e cuja boca ele jamais beijou;
única a queimar o coração no ódio e a pedir a morte – morte para a branca e
para todas elas, sem distinção de cor –, é Rosa de Oxalá, os seios soltos sob a
bata, os quadris desatados sob as sete anáguas, dançando em frente aos dois.
Lídio suspira num sorriso; daqui a pouco a terá nos braços, alta fogueira.
Archanjo se tranca em seu enigma.
Milagre é isso, minha santa, milagre do Bonfim, milagre das Candeias,
prodígio de Oxalá – Rosa em canto e dança na Tenda dos Milagres, em noite
de aflições e adivinhas. (AMADO, 1969, p. 97-98).

Assim, Rosa de Oxalá é uma das muitas concubinas retratadas na literatura de Jorge
Amado (cf. MELO, 2020). Essa personagem, entretanto, ergue-se com uma densidade moral
raramente percebida nas personagens femininas do autor ou, ao menos, naquelas presentes em
Tenda dos Milagres. Apesar dos elogios a sua beleza física – “a bunda em navegação de maré
alta e um pedaço de seio iluminando o sol” (AMADO, 1969, p. 93) – a representação de Rosa
parece escapar à rude animalização. Sua ambiguidade na relação com Lídio Corró e Pedro
Archanjo; ou seu “segredo”, como diz o narrador, parece garantir-lhe uma dignidade e, além
do mais, uma racionalidade. Isso porque Rosa de Oxalá não é um simples joguete ou objeto
de prazer: pelo contrário, ela tem estratégias e interesses. Por vezes desaparece e só ressurge
quando quer. Quando se entrega sexualmente, é somente à sua maneira e na medida da sua
vontade. Fora ela, somente as mães de santo possuem maior dignidade no romance. Somente
com relação a essas respeitáveis senhoras o olhar do narrador é deserotizado, talvez por serem
mulheres velhas – na visão patriarcal, a mulher idosa é a antítese do erótico – porém, mais
104

importante, por desfrutarem de uma aura de dignidade e respeitabilidade que a posição no


candomblé lhes confere e que, para ser justo, Jorge Amado faz questão de representar. Mas
então o que dá a Rosa de Oxalá o seu valor no romance?
Aparentemente isso se deve ao valor da maternidade. Isso porque, fazendo uma leitura
atenta, percebemos que o narrador parece nos dizer que todo o recato e cuidado de Rosa deve-
se não ao interesse em permanecer como concubina de algum senhor rico, por apego aos bens
materiais ou coisa do tipo; mas sim ao fato de ter gerado uma criança com esse homem rico.
Páginas adiante, sabemos ainda que, a despeito da vontade da esposa legítima, este homem
poderoso fez questão de reconhecer a filha com Rosa de Oxalá. Por essa razão os sacrifícios e
a racionalidade de Rosa não dizem respeito a outra coisa que a preocupação com o futuro da
filha. É ela a razão do seu esforço e sacrifício.
Noutro aspecto, no episódio do encontro de Archanjo com a filha de Rosa de Oxalá,
percebemos nessas personagens mulheres uma espécie de espelhamento da relação entre
Pedro Archanjo e Tadeu Canhoto. Isso porque a bela menina “mestiça” também se casa com
um rapaz branco, sendo acompanhada ao altar pelo pai branco e rico. No entanto, Rosa de
Oxalá é proibida de acompanhar a filha, restando-lhe acompanhar o casamento escondida na
igreja. Mesmo assim, tal como Pedro Archanjo, ela justifica sua condição, tendo em vista que
considera ser um sacrifício pelo futuro da filha. Há assim um último ressoar da filosofia racial
elaborada em Tenda dos Milagres: pois também aqui a “integração” à sociedade nacional
acontece via um branqueamento percebido como inevitável e progressivo.
105

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos uma leitura do romance de Jorge Amado de maneira a vê-lo como
intrinsecamente relacionado aos debates de seu meio ideológico, àqueles que a obra e o autor
perceberam como os assuntos urgentes, os que pediam um posicionamento. Tais problemas,
como vimos, pareciam girar em torno do percurso que a sociedade baiana – pensada como
parte da sociedade brasileira – havia percorrido até aquele momento; e os caminhos que
poderia seguir dali em diante. Isso no que diz respeito, principalmente, às relações entre as
raças e as classes sociais, ao valor das diferentes culturas e das tradições populares. Nesse
sentido, analisar o romance de maneira a nele perceber as relações com os discursos de uma
época é muito diferente de tratar o contexto como uma mera moldura que, em maior ou menor
grau, pode sugerir algo que facilite a compreensão. Mais que isso, o romance de Jorge Amado
parece ser de fato incompreensível se não visto como um participante vivo do diálogo da
época e das gerações. Nele desaguam as preocupações de um tempo, e em grande medida
também as crenças da classe e do grupo social do autor.
Assim, vimos como o romance avaliava, primeiro, as relações raciais no Brasil,
posicionando-se em favor da “mestiçagem” como o critério de classificação racial e como
solução ideal do conflito social. Debatendo o tema da integração do negro à sociedade
nacional, e do indivíduo afrodescendente à sociedade de classes, percebemos como o romance
avalia positivamente a maneira como a sociedade brasileira tradicionalmente integrou a
população e as pessoas negras ao processo global de competição pelo poder, o prestígio social
e a renda: ou seja, a integração por baldeamento, como dizia Gilberto Freyre. Em outros
termos, a integração social de alguns indivíduos afrodescendentes, mas à custa do seu
“branqueamento”, isto é, da quebra dos vínculos com suas origens negras e populares.
Por outro lado, discutimos como a narrativa parece esboçar um caminho diverso por
meio da figura do seu protagonista. Isso porque com Pedro Archanjo somos levados a pensar
que a vida poderia ser mais criativamente livre, sem qualquer tipo de preconceito ou pretensão
de pureza racial ou cultural. Nesse sentido, Archanjo parece dizer que invenção de um país
poderia se dar pelo aproveitamento de tudo que em todos os povos possa ser interessante.
Além disso, por meio dele o autor parece defender que a “criação cotidiana da beleza e da
vida” no Brasil poderia ocorrer sem o desprezo pela cultura popular negra e mestiça, isto é,
sem aquela supervalorização excludente da cultura chamada “erudita”, de matriz branco-
europeia. Pedro Archanjo sintetiza, portanto, a “filosofia da mistura” de Jorge Amado, a sua
106

versão particular do discurso de miscigenação: a defesa de uma comunhão popular universal,


em sentido cultural mas também sexual.
Emerge dessa visão um tom fortemente utópico. Por essa razão, a partir dos estudos
sobre o carnaval, buscamos apontar os elementos da lógica carnavalesca mobilizados por
Jorge Amado na composição de Tenda dos Milagres, uma vez que pensamos ser o carnaval a
fonte principal da sua alegria energia utópica. Com esse fim apontamos várias inversões
carnavalescas efetuadas no romance, bem como analisamos sua compreensão risonha de
alguns temas, como o da morte, do comer e beber e, talvez mais importante, da sexualidade.
De maneira geral, pareceu-nos que a carnavalização em Tenda dos Milagres tem o efeito de
valorizar a visão de mundo popular negra e mestiça, destacando muito daquilo que o discurso
dominante despreza, tanto nos corpos, quanto na cultura.
Todavia, numa leitura atenta percebemos que a valorização da cultura popular e a
visão utópica da miscigenação como o ponto de convergência ideal não excluem a existência
de hierarquizações no romance. Assim, buscamos mostrar como na visão de mundo que
emerge de Tenda dos Milagres alguns valores permanecem dominantes, apesar das inversões
carnavalescas: entre outros elementos, a visão patriarcal da proeminência do homem,
representada na maior importância do masculino em comparação a uma certa passividade
feminina. Além disso, o diferente status da mulher branca – identificada aos valores de
pureza, beleza e elevação moral – em relação à representação animalizada das mulheres
negras, com exceção daquelas “elevadas” pela maternidade ou pelas funções religiosas. E por
“animalização” entendemos o efeito de reduzir o sujeito ao corpo, excluindo-o da esfera da
moralidade, isto é, das angústias que envolvem a escolha entre princípios ou valores.
Por fim, depois dessa discussão alguém poderia perguntar, com toda a razão, por que
ler um romance que avalia positivamente o discurso de miscigenação quando, depois de um
longo percurso, parecemos estar mais conscientes de suas limitações? Alguém poderia desejar
um motivo razoável para ler um livro repleto de imagens estereotipadas, racistas ou
patriarcais? Aqui poderia citar Mario Vargas Llosa e dizer:

Mas em seus romances – e esse é um dos maiores encantos que se destacam


– todas as desventuras do mundo não bastam para dobrar o desejo de
sobrevivência, a alegria de viver, o engenho brincalhão para dar a volta por
cima do infortúnio, que animam seus personagens. O amor pela vida é tão
grande neles que são capazes, como ocorre à excelente dona Flor e seu
marido defunto, de ressuscitar os mortos e restituí-los a uma existência que,
com todas as misérias que ela implica, está repleta de momentos de prazer e
felicidade. (VARGAS LLOSA, 2006, p. 17 apud ROMERO, 2010, p. 83).
107

De fato, se lermos Tenda dos Milagres em paralelo a outros importantes romances da


mesma época, como os de Chinua Achebe (2009), James Baldwin (2018) ou do próprio
Vargas Llosa (1977) percebemos a enorme vitalidade e vontade de vida que emana da
narrativa, em contraste à visão algo melancólica ou mesmo pessimista daqueles outros
escritores. Dissemos bastante sobre o que pensamos serem as fontes desse otimismo. Nesse
sentido, se de um ponto de vista acadêmico o romance de Jorge Amado parece ser uma porta
extraordinária para que se investigue o acirrado debate de sua época, do ponto de vista não
exclusivamente histórico parece-me que persistem ainda outras razões para ler Tenda dos
Milagres, bem como os outros romances do autor.

Quero dizer que, sem deixar de criticar o que há de problemático em suas imagens,
parece inevitável pensar que poucos escritores entre nós foram tão dispostos a ouvir e a
deixar-se marcar pela variada cadência da linguagem popular, em especial do povo negro e
pobre. Dito de outro modo, poucos escritores esforçaram-se tanto em representar a visão de
mundo popular, em dar voz não somente ao seu palavreado, mas aos seus valores – aliás,
valores estes, é bom lembrar, que nem sempre são os mais progressistas, que nem sempre
seguem as regras da etiqueta ou do “bom tom”. Aqui, portanto, está uma importante
característica do autor: o fato de que, muito antes de querer “melhorar” o povo, Jorge Amado
parece se divertir com a sua fala franca, como ele dizia; também com os seus costumes, por
vezes até com a sua violência. E nessa mistura de simpatia e idealização talvez esteja boa
parte do segredo de sua perene popularidade.

Por essas e outros razões sua obra talvez seja ainda interessante àqueles que pretendem
dedicar-se a uma literatura popular, em qualquer sentido da palavra. Por fim, pobre o país cuja
literatura seja reduzida, por um lado, a tristes retratos da miséria; ou, por outro lado, à
literatura ascética e bem comportada dos literatos em condomínios fechados. E quem quer que
não tenha notado, tal como Jorge Amado, o que existe de risonho na dor, ou o humor de que é
capaz o povo nas situações mais adversas, ainda não caminhou pelo Brasil.
108

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