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GUARULHOS
2022
RODOLFO OLIVEIRA PAIVA
Guarulhos
2022
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da
UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos
direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de
divulgação intelectual, desde que citada a fonte.
Ao sistema federal de educação pública, cuja recente expansão ajudou a transformar o meu
destino e o de tantos outros. À Unifesp, campus Guarulhos, lugar acolhedor onde pude estar
fisicamente por tão pouco tempo. À Andreia dos Santos Menezes, minha orientadora, pela
imensa compreensão e o território de liberdade somente concedido pelos verdadeiros mestres.
Ao secretário Douglas Barbosa, cuja prontidão e eficiência tornaram o percurso pandêmico
desta pesquisa certamente menos doloroso. Agradeço aos amigos cuja companhia não usufruí
porque necessitava escrever. E, por fim, ao Jean Rocha, cujo paciente companheirismo tem
me ensinado o poder dos afetos.
“Não abandonou no prazer dos livros o prazer da
vida, no estudo dos autores o estudo dos homens.
Encontrou tempo bastante para a leitura, a
pesquisa, a alegria, a festa e o amor, para todas as
fontes de seu saber.”
Sobre Pedro Archanjo, em Tenda dos Milagres
Nesta dissertação analisamos as relações de Tenda dos Milagres, romance de Jorge Amado
publicado em 1969, com os discursos atuantes à época da sua escritura em torno dos temas
das relações raciais no Brasil, da integração do negro na sociedade competitiva e do carnaval
como festa popular. Para tanto, partimos da concepção de linguagem e dos conceitos oriundos
do chamado Círculo de Bakhtin, principalmente os de enunciado concreto, discurso, meio
ideológico e carnavalização. Assim, buscamos flagrar as relações de sentido entre o romance
e aqueles discursos produzidos na primeira metade do século XX em torno do tema das
relações raciais no Brasil e da integração do negro à sociedade nacional. Depois disso,
buscamos uma compreensão da lógica de composição de Tenda dos Milagres a partir do
carnaval e da carnavalização, conforme os conceitos propostos por Mikhail Bakhtin, Roberto
DaMatta, Emir Monegal entre outros. Analisar a concepção carnavalesca do romance no
contexto de sua avaliação das relações raciais no Brasil levou-nos a estudar a representação
dos sujeitos negros e da cultura popular que dele emerge. Por fim, discutimos como as
imagens do romance vinculam-se, por um lado, à carnavalização e, por outro lado, em que
medida retomam estereótipos sobre a sexualidade das pessoas negras. Nossa intenção foi
contribuir tanto para os estudos sobre Jorge Amado, quanto para o debate a respeito da
representação do negro no contexto brasileiro.
En esta tesina se analizan las relaciones de Tenda dos Milagres, novela de Jorge Amado
publicada en 1969, con los discursos en el momento de su redacción en torno a los temas de
las relaciones raciales en Brasil, la integración de los negros en la sociedad competitiva y el
carnaval como una fiesta popular. El análisis partió de la concepción de lenguaje y conceptos
del llamado Círculo de Bakhtin, principalmente los de enunciación concreta, discurso, entorno
ideológico y carnavalización. Así, se buscó captar la relación de sentido entre la novela y los
discursos producidos en las primeras décadas del siglo XX sobre el tema de las relaciones
raciales en Brasil y la integración de los negros en la sociedad nacional. Además, el trabajo
señala la lógica compositiva de Tenda dos Milagres desde el carnaval y la carnavalización,
según los conceptos propuestos por Mikhail Bakhtin, Roberto DaMatta, Emir Monegal y
otros. Analizar la concepción carnavalesca de la novela en el contexto de su evaluación de las
relaciones raciales en Brasil llevó al estudio de la representación de los sujetos negros y de la
cultura popular que surge de ella. Además, se discute cómo las imágenes de la novela se
vinculan, por un lado, a la carnavalización y, por otro, en qué medida retoman los estereotipos
sobre la sexualidad de los negros. El trabajo busca contribuir tanto a los estudios sobre Jorge
Amado como al debate sobre la representación de los negros en el contexto brasileño.
Palabras clave: Jorge Amado, literatura brasileña, relaciones raciales, carnavalización,
representación negra.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
REFERÊNCIAS 108
11
1 INTRODUÇÃO
A motivação para esta pesquisa nasceu de uma viagem a Salvador. Na época havia
terminado a graduação e buscava uma maneira de reunir o que havia estudado em minha
formação em Humanidades ao meu interesse por literatura. Além disso, desde muito tempo
interessava-me especialmente pelo debate sobre a formação histórica do Brasil. A viagem à
Bahia fez com que voltasse a São Paulo com o desejo de estudar algo no qual pudesse reunir
todas essas paixões. Não demorou para que pensasse na literatura de Jorge Amado, uma vez
que sua obra está imbricada ao debate nacional e mundial ao longo do século XX em torno
dos mais diversos temas, entre eles o da formação racial e cultural do país. Por sua vez, a
escolha de Tenda dos Milagres (1969) como o objeto textual principal deveu-se a nele
confluírem tanto os discursos sobre as relações raciais no Brasil, quanto aqueles sobre o
humor e a cultura popular, outros temas do meu interesse.
Antes, porém, de delimitar propriamente o problema desta pesquisa, é importante
situá-la no horizonte teórico que a torna possível. Nesse sentido, a reflexão aqui realizada se
efetua no campo da chamada Análise Dialógica do Discurso, o que significa dizer que
partimos da orientação que vê na produção intelectual dos pensadores do chamado Círculo de
Bakhtin, principalmente de Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pável Medviédev, uma
reflexão original sobre o funcionamento da linguagem de maneira geral, e não apenas sobre
um gênero específico (cf. BRAIT, 2018; FIORIN, 2019; MAGALHÃES; KOGAWA, 2019).
A implicação mais imediata dessa orientação é que partindo desse arcabouço teórico
esperamos que nossa pesquisa tenha a coerência mínima necessária no que diz respeito à
concepção sobre a linguagem e à origem dos conceitos. Assim, é evidente que recorremos a
diversos outros autores, mas buscando perceber se eles tinham uma compreensão também
histórico-contextual da linguagem e dos seus produtos. É o caso, por exemplo, de Stuart Hall
(2016), de Edward Said (2011) ou bell hooks (2019), cujas reflexões nos forneceram
inspiração ou conceitos que, em diferentes graus, foram importantes para as nossas
conclusões. Sem contar as obras de Clóvis Moura (2019), Lélia Gonzalez (2020), Jessé Souza
(2021) entre outros importantes pensadores brasileiros, cujos trabalhos foram fundamentais
para situar historicamente e de maneira crítica várias das nossas questões.
Uma segunda implicação diz respeito ao objeto mesmo da pesquisa. Isso porque ao
nos debruçarmos sobre um romance – o Tenda dos Milagres (1969) – de uma perspectiva
discursiva dialógica, talvez seja preciso delimitar o escopo específico da análise. Nesse
sentido, sem perder de vista o romance como uma totalidade de sentidos – ou, nas palavras de
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Desse modo (já temos o direito de dizer isso), toda palavra realmente
pronunciada (ou escrita conscientemente) e não adormecida no léxico é a
expressão e o produto da interação social entre os três: o falante (autor), o
ouvinte (leitor) e aquele (ou aquilo) sobre quem (ou sobre o quê) eles falam
(o personagem). [...] O enunciado concreto (e não a abstração linguística)
nasce, vive e morre no processo de interação social entre os participantes do
enunciado. O seu significado e a sua forma são determinados principalmente
pela forma e pelo caráter dessa interação. Ao separar o enunciado do solo
real que o nutre, perdemos a chave tanto da forma quanto do sentido,
restando nas nossas mãos ou o invólucro linguístico abstrato, ou o esquema
do sentido, também abstrato (a famigerada “ideia da obra” dos antigos
teóricos e historiadores da literatura): duas abstrações que não podem ser
unidas entre si, pois não há terreno concreto para uma síntese viva delas.
(VOLÓCHINOV, 2019, p. 128)
Não pretendo tentar uma interpretação geral sobre o dialogismo, mas somente notar
que da perspectiva do Círculo de Bakhtin o ato de produção de enunciados 1 sempre expressa
mais que a relação entre um sujeito e um objeto. Ou seja, na composição do enunciado estão
1 Em um texto escrito na década de 1950, Mikhail Bakhtin apresenta uma definição semelhante, talvez mais
completa em si mesma: “O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e
únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da
linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais na língua, mas, acima de tudo,
por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional – estão indissoluvelmente ligados no conjunto do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um campo de comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos
gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2016, p. 11-12).
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sempre presentes ao menos dois sujeitos, numa interação que o constitui por dentro
(VOLÓCHINOV, 2019, p. 141) e que condiciona, entre outras coisas, os próprios elementos
estilísticos, gestuais ou composicionais. Esse terceiro elemento constitutivo do enunciado
pode ser um interlocutor imediato, como aquele existente no diálogo entre duas pessoas, mas
sem que todo diálogo se reduza a essa forma exemplar. Além disso, à maneira do exemplo
dado por Volóchinov, mesmo a compreensão de uma simples conversa sobre a chuva fica
prejudicada quando se desconhece a situação efetiva de enunciação. É essa situação concreta
o que o autor nomeia de “horizonte subentendido” dos falantes (VOLÓCHINOV, 2019, p.
120), ou seja, aquelas avaliações que dizem respeito às condições compartilhadas da vida e
que vão desde a situação imediata de se estar em casa num dia de chuva, passando pelas
condições sociais mais abrangentes como o pertencimento a uma família ou a uma classe, até
ao fato de pertencer a uma determinada época, ao momento histórico de uma dada sociedade
ou de uma certa nação (VOLÓCHINOV, 2019, p. 121). Esse horizonte compartilhado,
condição de sentido do enunciado, é parte atuante na composição do enunciado também na
medida em que tal contexto é ele mesmo formado pelos enunciados mais diversos: desde os
sobre as condições triviais da vida, até os sobre temas artísticos, religiosos, científicos,
políticos etc., todos compondo afinal a “realidade ideológica circundante” (MEDVIÉDEV,
2019, p. 59) com a qual interagem o enunciado mais simples e o romance mais complexo. Em
suma, esse contexto é a realidade ideológica na qual ambos os enunciados, tanto por meio da
escolha do seu conteúdo temático, quanto pelos procedimentos composicionais ou formais,
elaboram sua avaliação social específica (VOLÓCHINOV, 2019, p. 134).2
Dito isso, acredito poder dizer que por “diálogo” se entende as variadas formas de
interação entre enunciados. Em outros termos, que um enunciado é sempre, em algum grau,
uma resposta a outro enunciado que o provoca, assim como se projeta aos enunciados futuros
possivelmente elaborados em sua resposta ou que de alguma maneira o levam em
consideração (BAKHTIN, 2016, p. 58). Por essa razão, para o Círculo de Bakhtin o enunciado
é concebido como o verdadeiro elo da cadeia de “comunicação histórica e cultural”
(BEZERRA, 2016, p. 153). É também nesse sentido que utilizaremos o termo “discurso”,
2 Pareceram-me muito grandes as correspondências entre essa concepção da linguagem e aquela levada a cabo
por Eduard W. Said em seu Cultura e Imperialismo (2011), mesmo considerando as diferentes influências
teóricas do autor. Neste monumental estudo, Said busca “situar” (e.g. 2011, p. 285) as grandes obras da cultura
do século XIX e XX no contexto ideológico, político, econômico, territorial etc., do imperialismo europeu.
Porém, mais do que contextualizar em um sentido fraco as obras no seu momento histórico, o autor busca as
“conexões internas” (2011, p. 237) delas com a realidade contemporânea e imperial na qual foram produzidas.
Um outro argumento nevrálgico da sua análise é que as obras culturais precisam ser compreendidas levando em
conta as dinâmicas concretas de poder – no caso, do imperialismo – e que dão a alguns indivíduos e não a outros
a possibilidade, inclusive, de representar.
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posto que esta palavra parece ser utilizada por Bakhtin em ao menos dois sentidos: (I) como o
ato de produzir enunciados; (II) como uma cadeia de enunciados. Esse segundo sentido, por
sua vez, decorre da concepção dos enunciados como internamente dialogados, expressão da
interação entre os sujeitos, e relacionando-se entre si pelas respostas que dão aos enunciados
passados e futuros em torno deste ou daquele conteúdo temático (cf. BAKHTIN, 2011, p.
371).
É possível perceber ainda que se essas relações são relativamente simples em um
diálogo entre duas pessoas concretas, elas ganham em complexidade quando ocorrem em
outros tipos de enunciados ou gêneros discursivos: por exemplo, um tratado científico ou uma
obra filosófica. Também o interlocutor do enunciado pode ser próximo ou bem definido,
como numa correspondência. Porém, mais interessante é o caso de um diário, ou ainda do
gênero confessional: por exemplo, nas Confissões de Santo Agostinho, em que o interlocutor
é diretamente Deus, mas, ao mesmo tempo, um terceiro, o leitor ou a testemunha presumida
daquele diálogo (cf. BAKHTIN, 2015, p. 104). Quando são outros os gêneros filosóficos,
também são outros os interlocutores presumidos – o que dizer, por exemplo, do “alguns
homens nascem póstumos” nietzschiano? Certamente são distintas as relações em um tratado
de geometria ou em uma tese de antropologia.
Com relação ao romance, o interlocutor é certamente o leitor mas, como insiste
Volóchinov (2019, p. 142), somente na obra inferior esse leitor se identifica plenamente a um
público específico. O romance parece querer falar aos seus “contemporâneos” ou à sua
“época”, ainda que em certa medida isso signifique a classe e o grupo social do autor,
condicionantes dos seus critérios de avaliação e da hierarquia dos seus valores. Igualmente
complexas são as ressonâncias dialógicas em torno dos conteúdos temáticos – aspecto este
fundamental para nossos fins. Sobre isso, quando refletindo sobre as diferenças entre o
discurso de expressão monológica e dialógica, dizia Mikhail Bakhtin:
Essas considerações são relevantes uma vez que, diferentemente do diálogo cotidiano
entre duas pessoas (em que todos esses fatores certamente atuam, mas numa escala menor),
um romance pode ser visto como um complexo emaranhado de enunciados, respostas e
avaliações sociais organizados a partir das estratégias de composição disponíveis para seu
gênero discursivo, aliás sempre em constante desenvolvimento. Portanto, qualquer romance
interage com muitos outros discursos, sejam eles filosóficos, religiosos, políticos etc., atuantes
no seu meio ideológico, em um diálogo que é perceptível por meio das relações dialógicas,
entendidas como qualquer relação de sentido definida por uma convergência em torno de um
tema comum, de uma avaliação em comum (BAKHTIN, 2015, p. 88). São essas relações
dialógicas que nos permitem comparar textos às vezes muito distintos, como romances,
poesias, tratados de sociologia, estudos de psicologia ou músicas, percebendo neles
ressonâncias parecidas ou relacionadas, mesmo que muito sutis, em torno de um mesmo
problema. É o que permite perceber uma avaliação similar sobre um aspecto da vida prática e
ideológica de uma dada sociedade em determinado tempo, bem como ao longo do tempo.
Agora temos elementos para falar diretamente do nosso problema.
O objetivo desta dissertação é discutir, especificamente, um romance da chamada
segunda fase da literatura de Jorge Amado, o Tenda dos Milagres, publicado em 1969. O que
nos interessou foi compreender as relações dialógicas que o romance estabelece com aqueles
discursos atuantes à época de sua produção em torno do tema das relações raciais no Brasil,
da integração do negro na sociedade nacional, além do tema do carnaval e da cultura popular.
Nesse sentido, as perguntas centrais da pesquisa podem ser assim formuladas: qual o
posicionamento do romance no debate racial brasileiro de meados da década de 1960? Qual a
representação dos sujeitos e do povo, em especial do afro-brasileiro, que dele emerge? Qual o
país que Tenda dos Milagres imagina?3
No segundo capítulo buscamos, portanto, compreender Tenda dos Milagres no
contexto dos diferentes discursos que, de meados do século XIX até os anos 1960, discutiram
a formação do povo brasileiro, reatualizando de diferentes maneiras o tema das “raças
fundadoras”. Assim, sem querer discutir de imediato a verdade ou falsidade dos seus
enunciados, neste momento nos interessou compreender as linhas gerais da sua positividade
teórica, ou seja, do seu funcionamento discursivo, suas proposições e pressupostos, situando-
3 Isso na direção do que diz Benedict Anderson (2008), para quem o romance é um dos principais responsáveis
por construir a ideia de nação como uma grande “comunidade imaginada”, em sentido cultural, territorial,
linguístico etc.
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4 Para situar os discursos no seu contexto histórico e epistemológico foram fundamentais os trabalhos de
Schwarcz (1993), Munanga (2019) e Mesquita (2018), entre outros.
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mero artifício narrativo ou maneira de descontrair; mas que, pelo contrário, ele fornece a
própria “lógica imanente da criação” (cf. BAKHTIN, 2011, p. 179), o que se vincula
intrinsecamente no romance à filosofia da mistura defendida pelo autor. Como veremos ao ler
a obra à luz da teoria do carnaval de Mikhail Bakhtin e de outros pensadores, a festa
carnavalesca funda um mundo invertido, ainda que transitório. Um mundo às avessas que no
caso brasileiro significa um momento de utopia igualitária em que os atores sociais tendem a
interagir horizontalmente. Isso significa que o carnaval inverte por um momento as
hierarquias cotidianas entre pessoas e valores, rebaixando o que é tido como elevado,
destronando o que se diz com autoridade. Daí o sentido da carnavalização efetuada por Jorge
Amado em Tenda dos Milagres: como uma maneira de valorizar aquelas culturas e pessoas –
negros e mestiços da Bahia, além de bêbados, putas etc. – costumeiramente desprezados pela
sociedade e a literatura dominante. Além disso, desse ponto de vista, é interessante perceber
que os ecos carnavalescos no romance não se resumem às possíveis influências literárias,
efeito da leitura de Cervantes, Rabelais ou Machado de Assis5 – que certamente têm um papel
importante –, mas que os elementos do carnaval ali entranhados derivam do contato com uma
linguagem viva, mas que, ao mesmo tempo, estende raízes longínquas na história passada das
festas carnavalescas e da cultura de diversos povos. Dito de outro modo, isso tem a ver com
aquilo que Bakhtin chamou de evolução no “grande tempo”, isto é, que as obras da cultura e
da literatura são “preparadas por séculos; na época da sua criação colhem-se apenas os frutos
maduros do longo e complexo processo de amadurecimento” (BAKHTIN, 2011, p. 362).
Contudo, pareceu-nos que a valorização da corporeidade tipicamente carnavalesca
acaba, no romance, por ir ao encontro de outras cadeias de sentido que pensam os corpos
negros como expressão da pura animalidade ou da ausência de espírito. Assim, nas últimas
páginas da discussão buscou-se apontar como, na representação dos homens e das mulheres
em Tenda dos Milagres, existem elementos que reforçam ou, no mínimo, se sobrepõem às
imagens estereotipadas sobre a sexualidade das pessoas negras. Ora, dada a ambivalência
constitutiva da lógica carnavalesca no romance, nesse ponto o grande desafio foi compreender
como se dá a inversão dos valores hegemônicos, sem deixar de apontar as limitações ou
características problemáticas das suas imagens. E isso sem adotar um ponto de vista que,
implícita ou explicitamente, considere as hierarquias valorativas dominantes como o critério
único de avaliação. Dito claramente: como avaliar as imagens da sexualidade em Tenda dos
5 Uma leitura como a que faz Sergio Paulo Rouanet (2007) a respeito da obra de Machado de Assis guarda seu
interesse, desde que não se perca de vista ser ela uma tentativa de dar conta dos procedimentos literários ou
meramente formais; coisa que o autor possui, aliás, completa consciência.
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Milagres sem cair em um puritanismo tacanho? Uma saída foi, como não poderia deixar de
ser, situar as imagens do romance no contexto dos discursos que historicamente tiveram a
sexualidade das pessoas negras como tema (cf. SANTOS, 2014; GONZALEZ, 2020, p. 158).
Além disso, a partir da discussão sobre a concepção de moralidade e de sujeito moral na
sociedade moderna ocidental (cf. SOUZA, 2021), refletimos sobre os elementos da narrativa
que dialogam com esses valores. Evidentemente, toda essa discussão extrapola as
características e o tempo disponível para uma dissertação. Portanto, o que fizemos não foi
muito mais que indicar ideias e autores que possam ser interessantes para uma análise mais
aprofundada nessa direção. Talvez como uma provocação aos estudiosos do futuro.
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É fácil notar que o livro se inicia por uma paródia 6 dos intelectuais, acadêmicos, além
de jornalistas brasileiros da sua época, representados aqui como servos do poderio não
somente econômico, mas cultural e intelectual americano. Deboche, portanto, da elite
nacional que desprezava seus grandes pensadores, ou só era capaz de reconhecê-los quando
tal reconhecimento lhes era imposto por alguma autoridade estrangeira. Seja como for, o
romance se desenrola em torno destes dois recortes temporais. O primeiro, contado por um
6 Faremos uma discussão mais aprofundada do conceito de paródia no próximo capítulo, quando estivermos
discutindo o carnaval. Entretanto, aqui é interessante dizer que, segundo a teoria de Bakhtin, na linguagem
paródica se é tomado para fim de riso ou deslocamento outra linguagem como objeto. Ou seja, na paródia temos
a imagem de outra linguagem. Lembrando que por “linguagem” não se entende somente a língua com seus
elementos gramaticais etc., mas todo o conjunto de gestos, tons e estilos, maneiras de dizer, além do conteúdo
ideológico concreto nela elaborada. Isso significa que as representações de uma linguagem são tomadas como
“inseparáveis das visões de mundo e dos seus portadores vivos, pessoas que pensam, falam e atuam em
condições históricas e sociais concretas” (BAKHTIN, 2014, p. 370). Dizer que a paródia é uma imagem de uma
linguagem é dizer que é a imagem da linguagem de alguém: de uma pessoa ou grupo, de uma instituição, mesmo
de um movimento estético, de um gênero literário em voga, cujos sujeitos têm esta ou aquela entonação, maneira
de pensar, avaliar, valorar.
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Neste trecho podemos ver a intensa defesa por parte do professor Argolo da
inferioridade de negros e seus descendentes; aliás, de toda cultura não branca em relação aos
“povos arianos”. Dessa maneira, este personagem constitui a imagem paródica de uma pessoa
real: Raimundo Nina Rodrigues, professor de medicina legal na Bahia que nos primeiros anos
do século XX sustentou teorias defensoras da suposta superioridade da civilização europeia e
do “tipo ariano”, ou seja, dos brancos “puros” em relação aos indivíduos e culturas não
brancas. O romance, inclusive, além de vários elementos faz a parodia de datas e títulos. Por
exemplo, no romance um dos trabalhos publicados por Nilo Argolo chama-se A
Degenerescência Psíquica e Mental dos Povos Mestiços – o Exemplo da Bahia, e teria sido
publicado em 1904 (AMADO, 1969, p. 103). Esse título remete diretamente a um artigo de
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por tantas raças desiguais, e talvez pouco preparada para o exercício da cidadania” (RAFDR,
1919 apud SCHWARCZ, 1993, p. 321).
Tal discussão sobre a viabilidade ou não do Brasil enquanto nação habitou nesses anos
todas as principais instituições que a partir do Império fundaram-se no Brasil: institutos
históricos e geográficos, museus, faculdades de Direito e Medicina (SCHWARCZ, 1993).
Mas talvez tenha prosperado principalmente nas faculdades de Direito, que adotavam alguma
versão iluminista ou universalista da lei, e nas faculdades de Medicina, onde as propostas
seguiam com menor ou maior criatividade os modelos raciológicos de cunho positivista ou
evolucionista dos teóricos europeus.
Antes de prosseguir é importante notar que houve exceções à adoção destas teorias
racistas entre os membros da intelectualidade e da elite brasileira desses anos. Segundo
Kabengele Munanga (2019), as variações à adoção dos modelos de racismo científico foram
levadas adiante por pensadores que se voltaram mais para os condicionantes sociais, vendo
neles as causas reais da situação certamente aviltante da população negra e mestiça no Brasil;
e que apontaram o investimento em educação e a necessária melhoria das condições de vida
como solução para o problema – “o problema do negro”, como era chamado – e para a
construção da nação brasileira. Nomes como Alberto Torres, Manuel Bonfim ou Manuel
Querino criticavam a ideia de uma homogeneidade populacional como pressuposto
indispensável para a formação da nacionalidade, e apontavam os séculos de espoliação, além
das condições deploráveis de habitação e educação formal como as principais fontes do nosso
atraso. A situação da população negra não se devia, segundo tais autores, a alguma
característica inata, mas, pelo contrário, poderia o povo “progredir e aperfeiçoar-se”
(MUNANGA, 2019, p. 64).
Parece fora de dúvida, entretanto, que foram os modelos de determinismo biológico,
os evolucionismos e eugenismos os que mais frutificaram em solo nacional. Seja nas
formulações médicas, nas proposições legais ou na dita “modernização” das cidades, com a
destruição dos cortiços e a decorrente expulsão dos pobres e negros para áreas distantes
(ESTEVES, 2017); seja com a imigração de europeus para branqueamento populacional, sob
o argumento da preguiça e indisposição dos negros para o trabalho (MOURA, 2019, p. 115),
tais iniciativas suplantaram, em muito, qualquer movimento no sentido de constituir uma
nação coesa, não pela homogeneização violenta da suas características étnicas e culturais, mas
pela universalização dos pressupostos da cidadania. Entre os principais defensores de uma
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necessária “solução”, por violenta que fosse, para a existência física e cultural de negros e
mestiços, estava o nome de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906).
Em seu estudo sobre esse período, Schwarcz (1993) mostrou que, uma vez adotados os
modelos médicos e teóricos europeus disponíveis à época, seria difícil pensar em outros
termos que não aqueles sobre uma suposta diferença “natural” entre os povos. E, de fato,
foram esses os modelos seguidos por Nina Rodrigues, médico maranhense depois
estabelecido na Bahia: entre seus mestres estavam Lombroso, Ferri, Garófalo e Lacassagne,
juristas e médicos italianos defensores de uma vertente positivista do Direito e da teoria de
que os crimes teriam base natural e hereditária; ou seja, que o objeto de investigação penal
deveria se dar a partir do estabelecimento da relação causal entre o crime realizado e a
personalidade ou a psicologia do sujeito que o cometeu. Dessa forma, essa corrente descartava
a teoria do livre-arbítrio, posicionando-se contra as correntes liberais de interpretação da lei.
Também foram modelos de Nina Rodrigues as teorias eugenistas de Galton e o darwinismo
social de Spencer (RODRIGUES, 2015, p. 4), sem contar o conhecido tratado de Arthur de
Gobineau, o Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, publicado em 1855, no qual
se defendia a diferença de “raças”, além do suposto caráter degenerativo da “miscigenação”.
De fato, em um trabalho chamado Raças Humanas e Responsabilidade Penal no
Brasil, publicado em 1894, Nina Rodrigues defendia não somente a existência de diferentes
raças humanas, como também que cada uma delas estaria em uma fase diferente de evolução.
Seu objetivo era se opor à interpretação liberal e igualitária das leis teoricamente levada
adiante nas faculdades de Direito, principalmente em São Paulo, e que defendiam uma
capacidade de livre-arbítrio igualmente distribuída entre os indivíduos, ou ao menos capaz de
ser alcançada por todos. Para o autor, uma vez que as raças eram diferentemente capazes de
responsabilidade, não seria justo nem razoável a existência de um único código legal; pelo
contrário, deveriam existir leis adaptadas aos diferentes tipos individuais e raciais, teoria esta
que ele chamava de “responsabilidade atenuada” (2011 [1894], p. 52).7 Além do mais,
segundo Nina Rodrigues, seu argumento não poderia ser derrubado pela existência de
7 A respeito do negro, Nina Rodrigues afirmava: “O negro não tem mau caráter, mas somente caráter instável
como a criança, e como na criança – mas com esta diferença que ele já atingiu a maturidade do seu
desenvolvimento fisiológico –, a sua instabilidade é a consequência de uma celebração incompleta. Num meio de
civilização adiantada, onde possui inteira liberdade de proceder, ele destoa... como eram nossos países d’Europa,
essas naturezas abruptas, retardatárias, que formam o grosso contingente do delito e do crime. As suas
impulsividades são tanto melhor e mais frequentemente frequentadas para o ato antissocial, quanto às obrigações
da coletividade lhes aparecem mais vagas, quanto elas são, em uma palavra, menos adaptáveis às condições de
sua moralidade e do seu psíquico. O negro crioulo conservou vivaz os instintos brutais do africano: é rixoso,
violento nas suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez e esse fundo de caráter imprime o seu cunho na
criminalidade colonial atual” (NINA RODRIGUES, 2011 [1894], p. 49).
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exceções – como a daqueles indígenas ou negros de tipo “superior”, mais capazes moral e
intelectualmente até mesmo que a média dos brancos, pois “se admitem todos que essas raças
não estão aptas ainda para um alto grau de civilização, todavia ninguém desconhece que há
negros e pode haver índios que valham mais do que brancos. Para estes negros e índios [...] a
responsabilidade penal deveria ser completa” (2011 [1894], p. 50).
Sobre o tema da miscigenação, Nina Rodrigues se opunha frontalmente à tese que via
nela uma saída para a construção de uma homogeneidade nacional. Essas teorias, como as
defendidas por Silvio Romero a respeito da formação do povo brasileiro, argumentavam que o
elemento branco se sobreporia com o tempo ao negro ou ao índio, compensando as
deficiências destes graças ao caráter eugênico da “raça branca”, ou seja, em decorrência de
sua suposta superioridade natural. Ao comentar tais ideias, Kabengele Munanga aponta que:
Para Nina Rodrigues, pelo contrário, a miscigenação só serviria para degradar tanto o
branco quanto o negro ou o indígena, privando-lhes de suas relativas qualidades e gerando um
indivíduo em geral incapaz e desprezível. Lançando mão da teoria de um “retorno atávico”, o
médico argumentava que os mestiços poderiam repercutir tanto elementos da raça mais
evoluída, sendo assim indivíduos capazes de civilizar-se; como poderiam manifestar – o que
segundo ele seria o mais provável – as características das raças menos evoluídas, tanto no
caso dos mestiços de indígena quanto, e principalmente, nos de negro. Logo,
Sua conclusão era que em vez de incentivar a miscigenação, a elite branca dominante
deveria instituir ao menos quatro divisões penais correspondentes aos tipos raciais
predominantes em cada uma das regiões do país. Divisão esta que, segundo Munanga (2019,
p. 59), se levada adiante poderia ter significado uma “instituição da diferença” à maneira do
apartheid na África do Sul. Nesse ponto é importante observar que se de um ponto de vista
científico a argumentação de Nina Rodrigues é decorrência dos modelos raciológicos italianos
ou ingleses adotados por ele, é bom lembrar que esses mesmos modelos vinham sendo
seriamente contestados: primeiro pela ascensão da teoria da evolução de Darwin como
paradigma científico nas ciências naturais; depois pela elaboração de disciplinas como a
Sociologia ou a Antropologia, no interior das quais acabaram por prevalecer as explicações
culturalistas e históricas a respeito das diferenças entre os povos.
A adoção por parte da elite intelectual nacional de modelos teóricos ultrapassados ou
em vias de o ser não deve ser entendida unicamente como parte do ciclo normal de elaboração
reflexiva. Mais que isso, trata-se de sério indicador dos condicionantes sociais e políticos de
tais discursos raciológicos, ou simplesmente racistas. A adoção desses modelos expressava
também a necessidade de explicar a abissal discrepância de poder e prestígio entre os grupos
sociais. Em outros termos, a necessidade de elaborar em termos pretensamente científicos a
supremacia do grupo étnico branco ou embranquecido sobre a população não branca. Dessa
forma, lembremos que o Brasil vivia sob tutela das potências imperiais da época, tanto em seu
aspecto econômico quanto cultural; ou seja, dependência não mais em relação a Portugal, mas
à Inglaterra e à França, além dos Estados Unidos (FREYRE, 2003b; SAID, 2011). A atitude
de aceitação de hierarquias raciais e civilizacionais ecoava, primeiro, a dificuldade de
diferenciar teoricamente supremacia (domínio) de superioridade, seja ela moral ou espiritual.
Em segundo lugar, ecoava a necessidade por parte da elite nacional, detentora de uma
“brancura” bastante contestável (GUERREIRO RAMOS, 1955), de diferenciar-se do grupo
não branco da população, identificando-se ao mundo branco, europeu ou imperial.
Todos esses elementos estão presentes na composição do personagem Nilo Argolo
(imagem paródica de Nina Rodrigues), através da maneira como é caracterizado por Jorge
Amado na narração de Fausto Pena. Argolo, apesar das afirmações a respeito de sua
inteligência e erudição, é descrito sempre em situações cujo sentido é mostrar sua exagerada
seriedade, seu racismo ultrapassado, sua petulância e pedantismo. Sua presença é composta de
forma a enfatizar o elemento ridículo de sua pessoa: Nilo Argolo de Araújo, um “micróbio”
no dizer de sua prima Zabela; o objeto do riso, apesar das sete línguas que falava; além do
27
mais, o alvo preferido dos estudantes da faculdade quando tinham de eleger alguém para o
deboche ou a chanchada – estudantes estes, aliás, que representam no romance as ideias
progressistas, bem como a propensão ao riso e ao escárnio.
dificuldades, do povo da Bahia; além disso, a presença negra e africana, e sua contribuição na
formação de uma cultura “mulata”. Uma vez que, conforme afirma Pedro Archanjo, ou
melhor, conforme uma citação do seu livro: “Da miscigenação nasce uma raça de tanto talento
e resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespero na criação quotidiana da beleza
e da vida” (AMADO, 1969, p. 254). Assim, a narrativa se empenha em mostrar essa mistura
como constitutiva da própria vida de Archanjo. Além disso, também outras personagens – na
verdade, toda a narrativa – são moldadas de maneira a sugerir e ser “prova” da miscigenação
física e cultural, vista sempre como positiva e criativa, ao contrário do que dizia o discurso
racista de Nilo Argolo e companhia.
Mais uma vez, o personagem Pedro Archanjo é marcado pela “mistura”, tanto em seu
corpo quanto em sua história. Chegamos a mencionar que em um momento importante da
narrativa Archanjo assume, ao mesmo tempo, o posto de Ojuobá no terreiro de Majé Bassã e
o cargo de bedel na Faculdade de Medicina, isso no ano de 1900. Um movimento
característico do romance, posto que o personagem é sempre visto com um pé na cultura de
matriz negro-africana e outro na de matriz branco-europeia: nos lugares que frequenta, nos
livros que lê, nas histórias que conta, nas mulheres que deseja. Sempre um e outro, branco e
preto, sem que chegue a atravessar definitivamente a linha – ao menos assim pretende o autor
de Tenda – e ao fim permanecendo ao lado do povo negro e mestiço, dos pobres da Bahia.
segue rigidamente a cartilha católica, porém é alegre e sem dogmas rígidos – um exemplar,
portanto, tipicamente carnavalesco. É de se destacar ainda que, segundo o romance, essa
configuração amolecida se dava pela mistura, uma vez que o padre era frequentador ao
mesmo tempo da Igreja de Cristo e do Candomblé, o templo dos negros. Ideia de mundos
diferentes, mas fundidos, que é também sugerida pelo próprio nome da praça onde se localiza
a igreja: o Terreiro de Jesus, no centro histórico de Salvador.
Numa dessas tardes, de claro sol e doce brisa, Archanjo vinha pelo Terreiro
de Jesus em seu passo levemente gingado. Fora levar um recado do
secretário da faculdade ao prior dos franciscanos, um frade holandês de
barbas e careca, afável: com evidente prazer degustava um cafezinho, serviu
ao risonho bedel:
— Eu conheço o senhor... – falou com seu acento crespo.
— Passo o dia quase todo aqui na praça, na escola.
— Não foi aqui – o frade riu um riso cheio e folgazão. – Sabe onde foi? Foi
no candomblé. Só que eu estava de civil, escondido num canto, e o senhor
numa cadeira especial, junto da mãe-de-santo.
— O senhor, padre, no candomblé?
— Às vezes vou, não diga a ninguém. Dona Majé é minha camarada. Ela me
disse que o senhor é muito competente em matéria de macumba. Um dia
desses, se o senhor me der o prazer, desejo conversar consigo... – Archanjo
sentiu a paz do mundo no claustro de árvores frondosas, flores e azulejos; a
paz do mundo no envolvente franciscano.
— Quando quiser, estou às ordens, padre. (AMADO, 1969, p. 104)
obras, entre artigos de jornal e livros, publicados entre 1903 e 1923, especialmente sobre a
contribuição dos africanos e depois dos afro-brasileiros à construção da nação brasileira desde
a época colonial. Entre suas publicações constam: As Artes da Bahia (Escorço de uma
Contribuição Histórica), de 1909; A Raça Africana e seus Costumes na Bahia, de 1916; A
Arte Culinária na Bahia, de 1928; Costumes Africanos no Brasil, de 1938, entre outros
(LEAL, 2011, p. 80).
Ora, em Tenda dos Milagres se diz que foram publicados por Pedro Archanjo os
seguintes livros: A Vida Popular na Bahia, de 1907; Influência Africanas nos Costumes da
Bahia, de 1918; Apontamentos sobre a Mestiçagem nas Famílias Baianas, de 1928; A
Culinária Baiana: Origens e Preceitos, de 1930. Três destes quatro títulos remetem
diretamente aos títulos e datas dos livros realmente escritos por Manuel Querino. Porém, mais
que semelhanças de nomes e datas, importa-nos verificar relações entre as ideias defendidas
por Querino e aquelas atribuídas ao personagem Pedro Archanjo no romance de Jorge
Amado. Relações entre ideias ou enunciados que jogam luz sobre a utilização dos dados
biográficos e, além disso, sobre um procedimento de composição literária caro ao romancista.
Vejamos um trecho de um dos livros publicados por Manuel Querino:
Que não se estranhe ouvir ecos do discurso socialista nestas palavras, uma vez que,
segundo a nota biográfica de Leal (2011), antes de escrever os livros sobre a cultura afro-
brasileira, Querino participou da organização de partidos de orientação proletária, trabalhista
ou socialista, ainda no tempo do Império: elemento de militância política operária que liga,
uma vez mais, a biografia de Manuel Querino ao personagem Pedro Archanjo. Isso porque
conta a narrativa de Tenda dos Milagres que o velho Pedro Archanjo, quase na absoluta
miséria e depois de passados os anos da disputa com Nilo Argolo, viu-se metido em greve dos
trabalhadores da cidade, uma espécie de última contribuição à luta popular. Mesmo que com
dificuldades para viver, ganhando parco dinheiro nos trabalhos humildes, nos bicos e nas
aulas de português a meninos, narrava Fausto Pena que o velho achava forças para caminhar
de porta em porta, convencendo e motivando, ouvindo e anotando. Mais que isso, “poucos
moços podiam competir com aquele velho na ação e na iniciativa. Porque ele não o fazia a
mando, por obrigação, para cumprir tarefa de grupo ou de organismo partidário. Fazia-o por
achar justo e divertido.” (AMADO, 1969, p. 301).
32
Além das relações com a biografia e o pensamento de Manuel Querino podemos ver
neste episódio da vida de Pedro Archanjo ainda outra relação, pois aqui o autor conecta o
romance àquele outro livro publicado por Jorge Amado, num longínquo ano de 1935: o
Jubiabá. Naquele romance de juventude, cujos temas são semelhanças, mas a solução era
outra, acompanhamos a vida do protagonista Antônio Balduíno. Depois de uma série de
peripécias, o protagonista terminava se envolvendo nas disputas operárias em torno da greve
geral de 1934, na Bahia. O livro concluía, portanto, pela primazia da luta de classes como a
ferramenta dos pobres, brancos ou negros contra a opressão. Ora, é nesta mesma greve que
vemos Pedro Archanjo, um senhor ainda enérgico, lutando junto aos demais trabalhadores
contra os patrões – mas também contra os nazistas, as ditaduras e a favor da mistura de raças.
Dessa forma, Jorge Amado conecta os dois romances sobre a cultura popular negra e mestiça
da Bahia: pois nada impede que estivessem na mesma greve e de braços dados o jovem
Antônio Balduíno e o velho empolgado Pedro Archanjo.
que mais circulou entre segmentos decisivos da elite brasileira nos anos 1930, tendo sido um
polo importante no diálogo para a elaboração de um discurso nacional, além de ter sido uma
peça-chave na formatação de uma “razão de Estado” no período getulista. Trocando em
miúdos, as teses de Freyre contribuíram, a partir dos anos 1930 e 1940, para a formação de
uma espécie de senso comum oficial sobre o Brasil: sobre sua cultura, sua pluralidade e
mistura, suas relações tradicionais de poder (MESQUITA, 2018).
O cerne da interpretação efetuada em Casa-Grande & Senzala (2003a) estava em
avaliar a formação da sociedade brasileira em decorrência de duas grandes instituições: a
família patriarcal e a Escravidão. Ou, como diz seu subtítulo, estudar a “formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal”. Instituições essas que, em sua visão, teriam
sido o segredo da unidade brasileira, entendida, por um lado, como a integridade geográfica e
política do imenso território e, por outro, como a relativa “harmonia” e o “equilíbrio de
antagonismos” (MESQUITA, 2018, p. 44). Segundo Freyre, estas seriam as características
principais da sociedade brasileira, em especial em sua fase colonial, e que dependeriam, por
sua vez, da estabilidade encontrada na organização familiar patriarcal e na regularidade do
trabalho escravo. Isso, além de certa tendência do homem e da cultura portuguesa a se
misturar. Essa última característica que seria afinal a grande responsável pela formação no
Brasil de uma “sociedade híbrida” (FREYRE, 2003a, p. 64).8 Ou seja, pela “mistura”,
plasticidade e criatividade nacional, aspectos da vantagem competitiva brasileira em
comparação a outras sociedades tidas como mais rígidas.
Com sua interpretação Freyre reorientava a compreensão das relações raciais no
Brasil, passando a defender a predominância de causas sociais e culturais para as diferenças
entre os grupos étnicos (diferenças de condições de vida, capacidades intelectuais e padrões
comportamentais), porém sem descartar por completo eventuais influências de caráter
biológico. Além disso, o autor invertia o valor atribuído à existência no Brasil de uma
diversidade racial e de uma difundida miscigenação, pois, se para teóricos da época a enorme
mestiçagem era fator de atraso e certeza de fracasso civilizatório, em Casa-Grande & Senzala
esses mesmos elementos passam a significar uma vantagem competitiva do Brasil.
8 Os textos de Gilberto Freyre apresentam uma diversidade de termos, que apesar de servirem para elaborar
conceitos bastante próximos, possuem contornos muitas vezes fluidos. Isso talvez seja influenciado pelo fato de
serem empregados na análise de textos e contextos distintos, o que acaba por influir na escrita do autor – para
além da liberdade natural do gênero ensaístico. Assim, é interessante observar a utilização de diferentes palavras
como “híbrido” (ou “hibridação”), “mestiço”, “mulato”, ou ainda “meia-raça”, para designar fenômenos
aparentemente assemelhados. Não buscarei aqui, contudo, uma compreensão da peculiaridade de sentido de cada
termo ao longo dos livros ou mesmo da obra do autor. Tomarei todos eles como possuindo o significado geral de
“mistura”, tanto física quanto cultural, que seria para Freyre a característica fundadora da sociedade brasileira.
35
Em relação à obra de colonização portuguesa, o autor fazia ainda outra inversão ou,
mais precisamente, um resgate. Lembremos que a imagem de Portugal e dos portugueses
sofria à época várias críticas ou tinha ao menos sua importância relativizada. Para citar uma
delas, lembremos que Oswald de Andrade criticava o “Brasil doutor” de predominância
portuguesa e letrada – quando dizia, por exemplo, que “Vieira deixou o dinheiro em Portugal
e nos trouxe a lábia” (2017). Além do mais, numa vertente da historiografia a colonização
portuguesa era vista como a razão do atraso brasileiro, quase sempre em comparação à
colonização dos Estados Unidos pelos ingleses. Contrariando esses enunciados, Gilberto
Freyre enxergava na obra de colonização a razão original da grandeza do Brasil, dando aos
portugueses a primazia da construção histórica e cultural da sociedade brasileira.
Uma vez que Portugal teria no século XV, em decorrência de sua posição
intermediária entre Europa e África e do contato com o mundo árabe, adquirido certos traços
culturais e se tornado um povo mais aberto a influências – ou seja, dado que não haveria neles
rígidos sectarismos (em contraste com os supostos traços das culturas anglo-germânicas) –,
Freyre argumentava que isso teria facilitado a obra de colonização e dominação do território.
Sobre Portugal e os portugueses à época da colonização, afirmava:
Esse aspecto cultural explicaria como um país com tão pouca gente teria sido capaz de
dominar territórios tão extensos e, ao mesmo tempo, fazer surgir uma sociedade de tamanha
pluralidade quanto a brasileira. Nesse ponto surgia a questão da sexualidade, tão importante
na teoria freyreana, uma vez que na sua interpretação as relações sexuais eram vistas não
unicamente como expressão dos apetites individuais, mas sim como ação incentivada pelas
necessidades decorrentes do projeto de colonização do território. Isso somava-se a uma
suposta tendência do homem português a “misturar-se” com mulheres de outras raças sem
sectarismos rígidos de cor, o que seria testemunha da maleabilidade típica do seu povo.
Tendência esta que teria dado origem a uma população grandemente mestiça:
36
Essa disposição a ter relações com “mulheres de cor”, ameríndias ou africanas, teria
sido para Freyre a solução para as dificuldades portugueses da colonização no que diz respeito
ao contingente humano. Notemos aqui o valor positivo atribuído pelo autor à supremacia dos
tais “machos atrevidos” portugueses sobre homens e, principalmente, mulheres submetidas
para relações sexuais e de reprodução. Relações sexuais que o autor, ainda que notasse a
enorme discrepância de poder, não entendia como tendo ocorrido de modo necessariamente
forçado.9 Uma supremacia sexual, entretanto, que se ligava intrinsecamente à dominação
patriarcal e cristã descrita como a responsável, juntamente com a escravidão, pela formação
original do Brasil. Nesse sentido, o restante da argumentação de Casa-Grande & Senzala
tentará mostrar como a partir desse contato “íntimo” entre senhores e escravos teria surgido
uma sociedade mestiça, além disso capaz de harmonizar os antagonismos sociais, mas
mantendo sempre a predominância branca, portuguesa ou cristã. O elogiodesse tipo de
“equilíbrio de antagonismos” (FREYRE, 2003a, p. 69) tinha o efeito, portanto, de valorizar a
história nacional, pensada como o resultado da interação sexual e cultural, sem que se
chegasse a incentivar mudanças drásticas nas relações de poder entre o grupo étnico
dominante e os demais.
A reflexão freyreana sobre as relações de poder, considerando o resultado do contato
sexual e da miscigenação – mais propriamente do indivíduo mestiço – continua e torna-se
mais complexa (cf. SOUZA, 2000) quando em seu Sobrados & Mucambos ele se propõe
estudar não mais a dinâmica da sociedade colonial brasileira, mas a decadência do
patriarcalismo rural e a formação de uma sociedade urbana consolidada a partir do século
XIX.
9 A visão patriarcal, para não dizer fantasiosa, de Freyre a respeito da relação entre homens colonizadores e
mulheres ameríndias e africanas fica nítida também quando afirma: “Além do que, eram [as mulheres indígenas]
gordas como as mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se
entregando, de pernas abertas, aos ‘caraíbas’ gulosos de mulher” (FREYRE, 2003a, p. 71).
37
Um dos eixos centrais na argumentação deste livro é tentar mostrar como alguns
processos vieram a perturbar a suposta harmonia existente na relação das diferentes culturas e
classes sociais e que, segundo o autor, era a característica definidora da sociedade brasileira
em seu período colonial. Uma relação harmoniosa, segundo ele mesmo, estabelecida para a
manutenção da “supremacia da cultura europeia da élite predominantemente branca e da
classe senhoril” contra os “elementos que tentaram disputar ou comprometer tal supremacia”
(FREYRE, 2003b, p. 320) pois que realizada à maneira católica lusitana, que se caracterizaria
por sua forma “nada despótica” (FREYRE, 2003b, p. 325). Entretanto, entre os principais
elementos que vieram a modificar esse dito equilíbrio – ou seja, não outra coisa que o
domínio dos senhores brancos sobre a massa não branca e escrava – estavam as figuras do
bacharel e do mestiço: dois elementos principais daquilo que o autor chamou a “re-
europeização” do Brasil ocorrida a partir do século XIX.
Sobrados & Mucambos descreve o processo de transformação da sociedade brasileira
devido à urbanização das suas principais cidades, além de uma nascente industrialização a
partir do século XVIII e, principalmente, do XIX. Relacionado a isso, o forte afluxo de novas
ideias, valores e comportamentos oriundos da Europa: valores burgueses em oposição aos
valores católicos lusitanos; prestígio do francês e do inglês – na língua, na literatura, no
vestuário, na arquitetura – em detrimento dos costumes portugueses. Mais importante, a
valorização de certos saberes e técnicas, como as do direito, da medicina ou engenharia, em
detrimento dos saberes e costumes tradicionais. Em suma, toda um conjunto de novos
conhecimentos que relacionavam-se às nascentes atividades sociais, burocráticas ou
industriais, e cujos grandes agentes teriam sido o bacharel e o mestiço.
O primeiro deles relacionava-se principalmente às estruturas de Estado, uma vez que o
título de bacharel (ou de “doutor”) em Direito ou em Medicina facilitava cada vez mais o
acesso aos novos postos burocráticos, bem como às carreiras políticas. O segundo elemento,
ou seja, o indivíduo “mestiço”, teria tido também sua importância histórica e social ampliada,
fenômeno que se relacionava a sua existência intermediária tanto cultural quanto
economicamente. Isso porque o “mestiço” livre teria sido de início o responsável por muitas
daquelas atividades não realizadas nem por senhores nem por escravos, mas de importância
crescente em um contexto de urbanização e de incipiente industrialização. Suas possibilidades
de ascensão dependiam, entretanto, de uma ambígua classificação racial que poderia fazer
dele negro e escravo, ou branco e livre, a depender da aparência física, das atitudes
38
comportamentais e, além disso, do mero arbítrio de seus pais, que muitas vezes eram também
os seus senhores.
Porque em Sobrados & Mucambos o autor argumenta que existiria desde sempre na
sociedade brasileira uma tendência a não se adotar critérios rígidos de classificação racial,
prática esta que decorreria também daquela “miscibilidade” dos portugueses, ou seja, da
plasticidade e porosidade da cultura cristã lusitana. Daí influírem na classificação racial dos
indivíduos mais elementos que a exclusiva origem genética ou familiar (em contraste, por sua
vez, com os critérios considerados mais rígidos dos países anglo-saxões).
Em uma nota, Freyre diz que:
Em outro ponto, comentando a prática relativamente comum de dar alforria aos filhos
de senhores e de escravas, ao menos àqueles de tipo físico mais próximo do branco e de
comportamento mais à maneira europeia, Freyre concluía:
Não há perigo de que o problema negro venha surgir no Brasil [ou seja, uma
consciência e revolta negra, à maneira dos EUA]. Antes que pudesse surgir
seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento negro de
sua importância numérica, diluindo-o na população branca. Aqui o mulato, a
começar da segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara
exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos asseguram os
etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é
facilitada pela prevalência do “elemento superior”. Por isso mesmo, mais
cedo ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que isso já
começou a ocorrer. Quando a imigração, que julgo ser a primeira
necessidade do Brasil, aumentar, irá, pela inevitável mistura, acelerar o
processo de seleção”. (apud MUNANGA, 2019, p. 81)
11 É interesse nesse ponto uma declaração de Jorge Amado, por ocasião da sua posse na Academia Brasileira de
Letras: “Refletiram-se no romance de trinta as duas vertentes a que venho de aludir. Mas houve uma constante,
nos alencarianos e nos machadianos: a preocupação pelo Brasil, seu destino, seu futuro. Permita-me aqui dizer
uma palavra sobre esse tempo e os companheiros que os compuseram, quando a publicação de Casa-Grande &
Senzala foi um impacto ainda não renovado em nosso ensaio, quando surgiram os ensaístas e críticos de nossa
realidade, Luís Viana Filho, Afonso Arinos de Melo Franco, Artur Ramos [sic], Sérgio Buarque de Holanda,
Edison Carneiro. E os novos poetas como Drumond [sic], Schmidt, Murilo Mendes, Vinicius de Morais [sic]. Da
angústia e da miséria nasceu o romance de trinta” (AMADO, 1972, p. 12).
12 A interpretação da miscigenação como o elemento definidor da identidade nacional não é particularidade
única da construção do discurso nacional do Brasil, mas possui elementos em comum com muitos outros países
latino-americanos. Por exemplo, Laura Zang (2015) discute as semelhanças entre a visão de Gilberto Freyre e o
conceito de “raça cósmica” do mexicano José Vasconcelos. Segundo este último, nos países latino-americanos
haveria uma conjunção ideal de fatores para a constituição de uma “raça” futura que daria origem a uma
humanidade síntese de todas as raças anteriormente existentes.
13 Quero dizer que o valor das culturas ameríndias e africanas passa a ser medido pelo grau de sua mistura aos
elementos europeus e não pelo que elas pudessem ter de valor enquanto ameríndias ou africanas. Nesse sentido,
como mostra Ilana Goldstein sobre o ponto de vista de Jorge Amado, o escritor era incapaz de avaliar o valor das
produções culturais por outro critério que não o critério da mestiçagem. Como diz a estudiosa: “O que Jorge
Amado admira na escultura de Agnaldo, para ele o único acerto da mostra de Dakar, é o fato de ela não ser
somente negra: ‘nela encontramos os traços da influência branca, peninsular, ibérica, nos termos e nas formas –
seu Oxóssi é ao mesmo tempo São Jorge, e daí não podemos sair sem faltar à verdade mais elementar’. Na
opinião de Jorge Amado, a contribuição da África à nossa cultura, ‘primordial’ e ‘magnífica’, deveria ser exibida
na exposição em sua indissolúvel mistura com nossa face branca. ‘A África é nosso umbigo’, escreve Amado
nesse manuscrito e em muitos outros lugares. Mas fica implícito: é apenas o umbigo, não nosso corpo inteiro,
pois – e assim termina o manuscrito – ‘aqui os deuses e os homens se misturaram para sempre, felizmente’”
(GOLDSTEIN, 2003, p. 77).
42
não seriam mais avaliados como expressão de uma visão de mundo específica, mas como
parte de um patrimônio comum, ou ao qual deveriam, afinal, se incorporar. Por exemplo, se
para Nina Rodrigues só fazia sentido nomear seu estudo sobre o candomblé de Os Africanos
no Brasil – ou seja, de outros que não os brasileiros – na obra posterior de Edison Carneiro, os
candomblés da Bahia já são considerados obra nacional por definição. Em suas palavras, “até
mesmo nessas designações se reflete a assimilação desses cultos pela sociedade brasileira, o
que os torna – podemos dizê-lo com absoluta certeza – nacionais, de existência somente
possível no Brasil, e não mais africanos.” (CARNEIRO, 2008, p. 13, grifos do autor).
Por fim, é preciso afastar definitivamente a ideia de que no elogio da mistura se tenha
aceitado qualquer mistura.14 Pelo contrário, as práticas culturais e institucionais orientadas
pelo discurso de miscigenação parecem ter ocorrido no sentido de controlar as manifestações
ou costumes, especialmente de origem negra e popular, a fim de torná-las mais de acordo ao
discurso oficial. Penso, por exemplo, na valorização de manifestações afro-brasileiras, como o
Carnaval, os afoxés ou o samba, a partir de 1930. Manifestações incentivadas, porém,
disciplinadas de forma a não ofenderem – tanto quanto possível – os chamados bons costumes
nacionais (LIRA NETO, 2017, p. 11). Costumes estes que diziam respeito principalmente ao
cristianismo como uma metafísica patriarcal e modelo de regulação moral; e ao português
enquanto língua oficial nacional. A “defesa” destas instituições mantinha sua posição como
pilares da brasilidade, do Brasil como uma sociedade “latina”, “luso-tropical” ou “civilização
europeia nos trópicos”15 (FREYRE, 2011).
*
São muitas as relações dialógicas (BAKHTIN, 2016, p. 101) que vinculam o romance
de Jorge Amado ao discurso de miscigenação. Não somente relações de concordâncias ou
convergências entre enunciados, como também de discordâncias, distanciamentos,
ambiguidades e indecisões.16 De partida importa notar que o tema da integração das pessoas
14 Entre vários elementos, é também significativa a discussão de Gilberto Freyre (2011) sobre quais deveriam
ser os povos incentivados ou aceitos no processo de imigração para o Brasil. Bastante de acordo com sua leitura
da formação nacional, Freyre dizia que devia-se incentivar a vinda de portugueses, e tinha muitas ressalvas, por
exemplo, à vinda de japoneses e asiáticos em geral. Nunca é demais ressaltar que também em sua visão se
deveria trabalhar pela manutenção do predomínio cristão e, mais do que isso, católico da sociedade brasileira.
15 Ainda que cristianismo e língua modificados por “sobrevivências” (FREYRE, 2011, p. 33) dos outros povos
e culturas. A concepção da cultura lusitana e cristã como o tronco (ou substância) sobre o qual se acrescentou,
modificando sem descaracterizar, os elementos “adjetivos” das outras culturas, parece atravessar toda a reflexão
freyreana. Vale ressaltar também que, no seu Novo Mundo nos Trópicos (2011), além da defesa do cristianismo
católico e da língua portuguesa como elementos de unidade nacional, Freyre defendia o caráter moreno da
cultura e do brasileiro. Ou seja, previa que a população brasileira deveria caminhar para um tipo físico não muito
escuro, mantendo porém a predominância cultural latina e cristã.
16 Nesse ponto, é interessante essa reflexão de Bakhtin: “não se pode interpretar as relações dialógicas em
termos simplificados e unilaterais, reduzindo-as a uma contradição, luta, discussão, desacordo. A concordância é
43
negras à cultura nacional ou, mais precisamente, a ascensão social do indivíduo afro-brasileiro
é um dos temas principais de Tenda dos Milagres, ao lado do tema da riqueza da cultura
popular negra e mestiça da Bahia. Daí a tensão a atravessar todo o romance, em estrita relação
com vários dos aspectos tratados acima, e talvez sem uma solução definitiva: pois, de um
lado, estavam o mundo popular baiano de predominância afro-brasileira e, de outro, o “mundo
dos brancos”, cada qual com seus valores, visões de mundo ou linguagem. Dois mundos em
conflito para o qual a vida de Pedro Archanjo seria, segundo o ponto de vista do romance, um
modelo de síntese ideal.
Lembremos que na narrativa Pedro Archanjo sofre uma transformação. Se antes o
vemos boêmio e curioso, figura importante na vida popular e no candomblé, ao fim o vemos o
mesmo em alguns aspectos, mas em outros muito diferente: permanece boêmio e festeiro,
amante das mulheres – porém, mais profundo e, além do mais, materialista. A diferença surge
após dez anos debruçado sobre livros e teorias, a fim de bem derrubar em sua própria
linguagem as teses racistas de Nilo Argolo. Dez anos lendo de tudo, movido mais por missão
que por obrigação marcada a relógio:
uma das formas mais importantes de relações dialógicas. A concordância é muito rica em variedades e matizes.
Dois enunciados idênticos em todos os sentidos (‘Clima maravilhoso!’ — ‘Clima maravilhoso!’), se realmente
são dois enunciados pertencentes a diferentes vozes e não um só enunciado, estão ligados por uma relação
dialógica de concordância. Trata-se de um determinado acontecimento dialógico nas relações mútuas entre os
dois, e não de um eco” (BAKHTIN, 2016, p. 103, grifos do autor). Bakhtin aqui se opõe nitidamente à visão
hegeliana ou marxista, e ao postulado da contradição (negação) como a única relação ontológica fundamental.
Tais observações não apagam, é claro, a relevância ou a existência das contradições no processo histórico e
ideológico. Nesse sentido, ver por exemplo a discussão de Stuart Hall sobre as contradições presentes na vida
ideológica, em particular nas imagens fetichizadas (HALL, 2016, p. 207).
44
Lera muito e aprendera línguas: inglês, francês, espanhol, italiano, com ajuda de sua
amiga Zabela; quisera também aprender o alemão, com ajuda do professor Silva Virajá e de
frei Timóteo, mas entre tantos estudos lhe faltara o tempo (AMADO, 1969, p. 197). Isso
apesar de não ter abandonado “no prazer dos livros o prazer da vida, no estudo dos autores o
estudo dos homens. Encontrou tempo bastante para a leitura, a alegria, a festa e o amor, para
todas as fontes de seu saber” (AMADO, 1969, p. 198). Ao fim de tudo, dessa tão esforçada
“travessia”, efetuara a passagem como que do mito à razão. Em conversa com o professor
Fraga Neto, médico e marxista defensor do materialismo e da luta de classes, Archanjo
explicou a razão de ainda ir ao candomblé, de participar dos rituais e de ser ainda chamado
Ojuobá, depois de tantos anos de estudos e livros rigorosos publicados.
Provocava-lhe o professor:
através do seu casamento com uma moça loira e de olhos azuis, filha de família “branca”, rica
e tradicional – porém racista. Ao longo da história, os esforços de Tadeu, Pedro Archanjo e
dos outros são tão grandes no sentido de sua aceitação pela família da noiva, como o foram
para que conseguisse estudar e ser “alguém”, com direito a título e anel de doutor. O
pertencimento a uma família de prestígio, com a vinculação através do casamento a uma
mulher branca e seu patrimônio familiar 17 são aqui símbolos do que para Jorge Amado era ou
parecia ser o destino inevitável dos negros e mestiços numa sociedade em processo de
modernização, como a brasileira à época: a integração gradual do negro via ascensão ao
“mundo branco”; o abandono pensado como praticamente inevitável, por parte das novas
gerações esclarecidas pela educação, dos costumes religiosos e outras crenças populares; e o
esfacelamento gradativo das diversas culturas, diluídas em uma única cultura mestiça
singularmente brasileira.
É interessante notar que, também nesse ponto, há concordância de sentidos entre o
romance e a interpretação realizada por Gilberto Freyre, no que diz respeito à ascensão de
negros e “mestiços” a partir de meados do século XIX no Brasil. Uma vez que, como
argumentava o sociólogo, nem sempre a educação e a adoção de maneiras europeizadas
teriam sido o bastante para garantir aos “mestiços” ou brancos pobres, mesmo quando
bacharéis, sua integração à sociedade dominante. Assim, o casamento teria funcionado como
um meio desejado de realizar a ascensão social.
17 Também nesse ponto Tenda dos Milagres retoma Jubiabá (1935). Lembremos que a personagem Lindinalva
– ou seja, Linda e Alva – daquele livro pode ser vista como um arquétipo da “pureza”, “elevação moral” e
“beleza” não somente da mulher branca como da cultura cristã ou ocidental. Em Jubiabá a imagem de
Lindinalva acompanha Antônio Balduíno por todo o livro como um amor platônico, puro e inalcançável, muito
diferente do desejo meramente sexual que o protagonista dedica às mulheres negras. A trajetória dessa
personagem prossegue com sua degradação material e moral, até que por fim a vemos doente e na mais baixa
prostituição. Não esqueçamos que é o filho de Lindinalva, a quem Antonio Balduíno promete cuidar, a razão
última pela qual o protagonista engaja-se no trabalho e nas lutas operárias. Com essa observação não quero
diminuir o valor de Jubiabá para a história de representação do negro na literatura brasileira, mas somente
apontar uma recorrência nestes dois livros, a saber, a associação entre a mulher branca e a elevação moral ou
pureza. Uma discussão mais completa deste romance de Jorge Amado pode ser encontrada na análise de Eduardo
de Assis Duarte (2018).
47
Por fim, a trajetória de Tadeu Canhoto, imagem dos elementos acima mencionados,
culmina no seu afastamento, não somente físico, mas cultural e comportamental da família do
terreiro, da vida popular da Bahia e do mundo afro-brasileiro como um todo. Isso tudo é
notado por Archanjo que, sem querer fazer o mesmo, ou seja, sem querer abandonar seu povo,
entende e aceita sua decisão. Então, na ocasião da última visita de Tadeu a ele e a Lídio,
última vez em que se veem, faz a seguinte reflexão:
Tadeu entrou, veio até eles, beijou a mão do padrinho. Lídio, comovido, o
tomou nos braços.
— Está um lorde!
— Na minha posição, devo apresentar-me bem-vestido.
Pedro Archanjo considerou com olhos de amizade o importante senhor de pé
em sua frente. Tadeu devia andar pelos trinta a cinco anos, tinha catorze
quando Dorotéia o trouxera ao terreiro e o entregara a Archanjo: só fala em
leitura e em conta, não me serve para nada mas não posso torcer o destino,
mudar a sina do moleque. Também eu não posso torcer o destino, mudar os
caminhos, parar o tempo, impedir a subida, compadre Lídio, meu bom.
Tadeu Canhoto anda seu caminho, chegará ao topo da escada, para tanto se
preparou, e nós, meu camarado, o ajudamos. Veja, Dorotéia, seu menino a
subir, vai longe. (AMADO, 1969, p. 297).
Dona Flor e seus dois maridos, de 1966 (AMADO, 1995), é significativamente maior a
ênfase que o tema racial e a defesa da miscigenação recebe em Tenda dos Milagres. Não que
o tema estivesse ausente daqueles romances, mesmo da obra amadiana madura como um todo.
Entretanto, se em Gabriela o tema da “mistura” habita toda a narrativa, a começar pelo corpo
e história da protagonista, no desenrolar do romance este tema aparece por uma série de
outros “indícios”, entrelaçados de maneiras talvez mais sutis do ponto de vista da
composição: nas várias nacionalidades das personagens; nos vários costumes, cheiros,
sabores, festas etc. Apesar disso, sem aquela ênfase didática, tão frequente na história de
Pedro Archanjo.
Também em Dona Flor surge o tema da “mistura de raças”. Porém a um nível quase
cósmico, pelo menos ético, visto que a história trata da indecisão da protagonista, dividida
entre o amor carnal de Vadinho, seu primeiro esposo, e a versão mais casta e comportada que
lhe dedica o farmacêutico Teodoro. A “mestiça” Dona Flor se vê cindida entre o desejo
ardente, por um lado, enquanto por outro sente as pressões da moral estabelecida. Essa
experiência de cisão vivida pela personagem remete ainda, mesmo que de maneira sutil, ao
estereótipo que atribui ao elemento africano capacidades sexuais diferenciadas, e que
posiciona o negro sempre mais próximo do instinto e da natureza, enquanto ao branco cabe o
desenvolvimento do espírito e da cultura. Afinal, a oscilação entre esses dois polos constitui o
caráter da mulata dona Flor – ao mesmo tempo casta e ardente – e ao fim da narrativa
encontram uma solução de equilíbrio tipicamente carnavalesca. Sem contar que o tema da
miscigenação surge ainda, só que em sua dimensão cultural, astutamente fundido na figura de
Vadinho, uma espécie de Exu loiro, devasso e debochado.
Variedade de temas e sutilezas elaborados de maneira diferente em Tenda dos
Milagres, romance no qual observamos afirmações mais explícitas, sejam na forma de
críticas agudas ao racismo, ou de defesas apaixonadas da miscigenação, tanto por parte dos
personagens ou do narrador implícito, quanto de Fausto Pena, o narrador explícito. 18 Isso
18 Bakhtin já havia distinguido o autor-pessoa, ou seja, a pessoa concreta do artista, do autor-criador, essa
espécie de “consciência” imanente ou extensiva à obra que sentimos atuando como o maestro de toda a
composição, o seu último ponto de vista estético-valorativo. Bakhtin também fazia a distinção entre o narrador e
o autor-criador, também chamado por ele de autor-convencional (BAKHTIN, 2005, p. 99). Neste ponto discordo
de Faraco, quando este diz que segundo Bakhtin o “autor-criador (...) é uma voz” (FARACO, 2005, p. 44). Ora,
o autor-criador é o ponto de vista axiológico interno à obra, não se identificando plenamente a qualquer das
vozes narrativas, mesmo quando ela é anônima. No caso de Tenda dos Milagres, onde há mais de um narrador,
me parece útil ainda a distinção feita por Fiorin (2016b, p. 65) entre narrador-explícito (no caso, Fausto Pena), e
narrador-implícito (o narrador sem nome), nenhuma dessas vozes podendo ser confundidas com a função de
autor-criador. Nesse ponto é interessante esta observação de Bakhtin: “O autor não se limita à linguagem do
narrador nem à linguagem literária normal com a qual se correlaciona a narração (embora ele esteja mais
próximo de uma ou de outra linguagem); ele, porém, usa uma e outra linguagem para não deixar que nenhuma
50
talvez se compreenda, uma vez que à época em que foi escrito e publicado, ou seja, finais dos
anos 1960, outros discursos se elaboravam entorno da “questão racial”, e críticas eram feitas à
miscigenação, não somente como prática, mas como um ideal.
Vejamos uma passagem do livro. Nela, vemos ocasião da tentativa de montar uma
peça sobre Pedro Archanjo, onde estava envolvido Fausto Pena, que é aquele que também nos
narra o episódio. Ele diz:
delas capte inteiramente as suas intenções; ele se vale desse ‘troca de convites’, desse diálogo de linguagens em
cada momento de sua obra para permanecer ele mesmo como que neutro em termos de linguagem, um terceiro
entre as duas (embora, talvez, seja um terceiro tendencioso)” (BAKHTIN, 2015, p. 99-100).
19 O sociólogo Clovis Moura nos lembra, porém, que a principal força de contradiscurso ou contra-ideologia,
no sentido de resistência cultural afro-brasileira, não deve ser buscada somente nos movimentos negros, sociais e
politicamente organizados e formados, além disso, por uma “classe média negra”. Segundo este autor, a
resistência popular e a formação de um discurso contra-hegemônico têm se dado sobretudo em instituições como
o candomblé, as escolas de samba, as organizações diversas em favelas etc. (MOURA, 2019, p. 139).
51
É interessante notar que, apesar do esforço crítico, a tônica do TEN não pode ser
considerada “de esquerda”, como uma leitura apressada e simplista poderia inferir. Ao menos
não de uma esquerda revolucionária. Pelo contrário, seu discurso buscava reformar, e não
romper, um projeto patriótico e nacionalista. Além do mais, Abdias Nascimento, um dos seus
membros principais, havia tido relações com o movimento integralista, e sido militar por um
breve período – apesar de também ter estado preso, momento em que decidiu fazer teatro
(MACEDO, 2005). Com isso queremos dizer que, ao fazer um teatro que colocasse os negros
em cena, o TEN fazia coro ao ideal de integração à sociedade de classes, e cuja crítica nítida
ao discurso de miscigenação só viria mais tarde. Inicialmente o objetivo principal parecia ser
integrar o negro, entendido como o afro-brasileiro em geral, também no teatro, combatendo
assim as representações estereotipadas e substituindo-as por outras onde ele pudesse ter
dignidade e desenvolver autoestima.
Apesar disso, desde o início são relevantes nas suas formulações os diálogos com o
movimento de intelectuais negros francófonos (e marxistas), formado por pensadores e
artistas caribenhos e africanos, conhecidos por elaborar o conceito de “negritude”; além
obviamente dos artistas e movimentos negros norte-americanos, como os do chamado
“Harlem Renaissance” e outros – o escritor Richard Wright é recorrentemente citado por
Abdias Nascimento (e.g. NASCIMENTO, A., 2016, p. 61).
As muitas relações de sentido entre os enunciados do TEN e esses vários movimentos
extrapolam o escopo desta dissertação. Pretendo somente indicar, acompanhando a análise de
Barbosa (2013, p. 9), que a interpretação da “negritude” levada a cabo pelos integrantes do
TEN e pela sociologia de Guerreiro Ramos a partir de meados dos anos 1950 tendia a
enfatizar menos a existência de uma “subjetividade africana”, como acontecia entre os
intelectuais negros francófonos, para se aproximar da compreensão mais contemporânea de
“cultura negra”, de tom humanista, e na qual não está excluído o elemento nacionalista. Nesse
sentido, a apropriação da negritude pelo próprio negro era vista não somente como uma
52
afirmação frente à supremacia branca, mas também como um passo na construção de sua
brasilidade (BARBOSA, 2013, p. 11).
A partir dos anos 1950 e 1960 esse discurso crítico ganhará um importante parceiro
dialógico (cf. BAKHTIN, 2016, p. 137). Refiro-me aos enunciados de certas pesquisas
sociológicas, em especial aquelas capitaneadas no ano de 1951 pelo projeto da UNESCO para
o desenvolvimento de estudos etnológicos no Brasil sobre o tema racial. Partindo da hipótese
de que o país “significava um caso neutro na manifestação do preconceito racial e que seu
modelo poderia servir de inspiração para outras nações, cujas relações eram menos
‘democráticas’” (SCHWARCZ, 2007, p. 14), o projeto financiou uma série de estudos sociais
levados adiante por pesquisadores como Oracy Nogueira, Roger Bastide, Florestan Fernandes,
entre outros. Contrariando as expectativas, muitas destas pesquisas concluíram não pela
existência no Brasil daquela “harmonia racial”, o éden da “tolerância” e da ausência de
preconceitos, mas apontaram a existência não somente de preconceitos, como de abismais
desigualdades, além de um tipo específico de racismo: difuso, porém intenso, ainda que não
institucionalizado legalmente como no caso norte-americano ou sul-africano.
Florestan Fernandes, por exemplo, argumentava que os países da América Latina em
geral não haviam transformado drasticamente as hierarquias sociais na transição da sociedade
escravagista para a sociedade de classes. Diferentemente do que ocorrera nos países europeus,
a “revolução burguesa” não teria se dado no sentido de uma democratização real do poder, do
prestígio social e da renda. De maneira muito diferente, no Brasil a construção da sociedade
de classes teria acontecido por meio da marginalização e subalternização do negro, para a
atualização da “supremacia da raça branca” (FERNANDES, 2007, p. 300) sob a forma da
dominação burguesa e burocrática. Uma hegemonia racial que era agudamente visível no topo
das posições com maior poder de decisão, com maior prestígio e de melhor remuneração. Para
a composição desse quadro teriam convergido uma série de dinâmicas históricas e
mecanismos de socialização.
Entre as dinâmicas descritas por Florestan Fernandes estaria, na dimensão ideológica,
a elaboração do “mito da democracia racial” que, pregando a existência de uma harmonia
entre os grupos étnicos, e confundindo o conceito de democracia com o de mera tolerância,
com a convivência restrita ou com a interação sexual fortuita e ilegítima entre brancos e
negros, teria o efeito de ajudar na conservação das hierarquias sociais. Além de que
orientados por esse “preconceito de não ter preconceitos”, tanto os “setores dominantes da
raça branca” (FERNANDES, 2007, p. 303) quanto os demais grupos étnicos subalternos,
53
acabavam atuando por não atuar: ou seja, negando a existência de qualquer “questão” racial, e
acusando todo aquele que a apontasse de “inventar” o preconceito, brancos e negros
contribuíam, por sua própria inércia, para a manutenção da ordem racial.
Sem contar os efeitos psicossociais inerentes ao “mito”, no sentido da pressão pela
assimilação cultural, isso com relação àqueles poucos indivíduos de origem negra que
estivessem em condições de ascender socialmente, assim se integrando à sociedade
competitiva. Diante desse quadro, o desmascaramento da situação racial e a busca por uma
democratização real da sociedade dependeriam, para Fernandes, não somente da crítica
histórica e sociológica: seria preciso que os próprios negros, entendidos como os afro-
brasileiros em geral, à maneira do que ocorria no Teatro Experimental do Negro – só que em
maior escala – se organizassem politicamente e pautassem a transformação social em seus
próprios termos. 20
Ora, segundo o sociólogo, por “democracia”, no contexto da “ordem burguesa”, se
deveria compreender, além da liberdade formal, a igualdade nas condições de competição
pelo poder, pelo prestígio e pela renda. Entretanto, a situação social do afrodescendente no
Brasil não indicava a superação passada das desigualdades, nem apontava com certeza
inconteste para sua superação futura. Das estatísticas recorrentemente citadas, três são
especialmente importantes para a compreensão da natureza da crítica efetuada e, no nosso
caso, para a reflexão sobre certos elementos do romance de Jorge Amado.
Segundo os dados do censo de 1950, citados por Abdias Nascimento (2016, p. 102-
103), a população brasileira somava à época 51.944.397 de pessoas, das quais:
Brancos 32.027.661 61,6 %
20 Em suas palavras: “O fulcro da questão está num efeito específico: a ideologia e utopias raciais dominantes
impõem a todas as categorias étnicas, raciais ou nacionais submetidas à supremacia branca, sem exceção, uma
forte pressão assimiladora, que não deixa alternativas em problemas essenciais, de significado ou com
implicações políticas. Essa pressão é intransigente e monolítica, embora quase sempre se justifique em nome da
‘integração nacional’ ou da ‘democracia racial’ e da ‘democracia cultural’. Ela faz parte da complexa herança do
mundo colonial (pois nasceu e foi aperfeiçoada no trato com o índio, com os escravos negros e com os mestiços,
em condições nas quais eles constituíam maiorias hostis, firmando-se como um ‘perigo público’ para a ordem
escravista) e foi aperfeiçoada posteriormente, por imposições de novos contingentes nacionais, trazidos com a
imigração, e dos vários deslocamentos internos de populações mestiças. [...] No fundo, o que se atacou e
repudiou [nos movimentos sociais do ‘meio negro’] foi o modo unilateral com que a pressão assimiladora define
os ideais a serem atingidos, o qual tem redundado em monopólio da igualdade, da liberdade e do poder pelos
brancos dos estratos dominantes.” (FERNANDES, 2007, p. 303).
54
Brancos 82,66 %
Distribuição educacional:
Elementar Secundária Universitária
A conclusão lógica de Octávio Ianni era que “o branco elimina os negros e mulatos do
seu círculo de convivência mais íntimo: a família. É dessa forma que ele consegue dissimular
21 Em relação às estatísticas nacionais, a dificuldade constantemente referida diz respeito àquele processo de
infiltração e classificação no grupo “branco”, documentado por Gilberto Freyre: ou seja, o fenômeno de que os
indivíduos, quando suficientemente claros ou de classe social elevada, tendem a se classificar como “brancos”;
os mais escuros como “mulatos/mestiços/pardos” (na verdade, uma infinidade de nomenclaturas intermediárias),
e como “negros/pretos” somente aqueles que, nas palavras de Kabengele Munanga (2019), são os negros
“indisfarçáveis”. Ou seja, uma tendência que indica o status social do branco ou, o que dá no mesmo, o
desprestígio relativo do negro.
55
as rígidas barreiras àqueles impostas” (apud NASCIMENTO, A., 2016, p. 76). Supondo por
um instante, para além da existência, a verdade desses enunciados, são eles interessantes não
somente para compreender o que chamamos aqui de “discurso crítico”, como para vislumbrar
o meio ideológico e prático, nos anos 1950 e 1960, a circundar Jorge Amado e sua produção
romanesca. E talvez também compreender melhor a insistência presente em Tenda dos
Milagres em relação ao casamento de Tadeu Canhoto e seu adentrar em uma família
“branca”: pois a família deveria parecer a grande muralha a ser vencida pelo negro, uma vez
que se tomasse por necessária sua integração à sociedade competitiva, ao “mundos dos
brancos”. Por outro lado, tais números davam indício do tipo específico de “convivência
harmônica” existente na sociedade brasileira: ou seja, qualquer convivência, desde que não
envolvesse o compartilhamento da propriedade e do poder – uma vez que a família, como
instituição e nas relações que estabelece com o sistema de ensino, é uma das responsáveis
pela criação e manutenção do capital econômico e cultural, bem como dos pressupostos
necessários à sua reprodução (BOURDIEU, 1996, p. 35).
Para concluir as linhas gerais dessa discussão, permito-me fazer uma longa citação de
Abdias Nascimento, uma vez que ela parece sintetizar as principais conclusões desses estudos
e movimentos sociais críticos das décadas de 1950 e 1960:
22 São bem conhecidas as discordâncias de Jorge Amado com relação à interpretação de Roger Bastide a
respeito dos “contatos” entre a religião católica e as religiões africanas. Para Bastide, os orixás tinham como que
se disfarçado sob os santos católicos, para sua própria sobrevivência, porém com isso conseguindo manter o
essencial da sua visão de mundo. Amado, entretanto, em seus livros e declarações, acreditava na fusão de orixás
e santos católicos; para ele o fiel, ao cultuar o santo cristão, cultuava ao mesmo tempo o orixá, sem fazer
56
este processo como “uma máscara colocada sobre os deuses negros para
benefício do branco”, que incluía até a agressão armada da polícia e o
encarceramento de muitos fiéis em suas prisões. A forma mais insidiosa
desse processo de agressões tem sido a política de branquificar física e
culturalmente o país através do estímulo à imigração branca em massa, da
proibição à entrada de negro ou de africano depois da abolição da
escravatura e a miscigenação elevada à categoria de uma teoria
antropológica de salvação nacional. Tem razão Roger Bastide quando rotula
tudo isto de “ideologia que força [o negro] a se suicidar como negro para
poder existir como brasileiro”. (NASCIMENTO, A., 2016, p. 188)
distinção, e havendo então fusão e não sobreposição. Uma discussão mais precisa sobre esse ponto foi realizada
por Reginaldo Prandi (2009).
57
23 Analisando os desdobramentos posteriores a 1970, Sérgio Costa (2001) observava a relevância cultural e
política dos diferentes discursos étnicos, tanto para a sobrevivência grupal, quanto para a construção de
identidades e estratégias de atuação política dos movimentos sociais críticos ao que ele chamou, em um sentido
muito próximo ao que é aqui analisado, de “ideologia da mestiçagem” (COSTA, 2001, p. 144). Muito do que
dissemos parece se relacionar diretamente aos desdobramentos percebidos em sua análise.
24 De passagem, cito três romances publicados nos anos 1950 e 1960 e, cada um à sua maneira, sendo um
contraponto ao romance de Jorge Amado: primeiro, o romance de Chinua Achebe, O Mundo Se Despedaça
(2009), de 1958, cuja visão do encontro entre brancos e negros é a de que a vida e a cultura dos segundos foi
esfacelada pelos primeiros. Segundo, o Terra Estranha, do escritor afro-americano James Baldwin (2018),
publicado em 1965 e onde, além das complexas relações raciais nos EUA, nos é apresentada uma relativização
dos valores patriarcais e heterossexuais – também nesse ponto em absoluto contraste aos valores sustentados em
Tenda dos Milagres. Por fim, o Conversa na Catedral, do peruano Mario Vargas Llosa (1977), romance
extraordinário publicado também em 1969, que testemunha a efervescência da discussão racial na América do
Sul, para além do Brasil. Nele vemos a imagem de um Peru rigidamente dividido em hierarquias de raça, classe e
gênero, em relação às quais há pouco otimismo sobre as possibilidades de superação.
58
Apesar disso tudo, no universo romanesco de Tenda dos Milagres, a menção à “crítica
negra” ou, como lá é dito, aos defensores da “negritude nacional” (AMADO, 1969, p. 166), é
feita em tons satíricos, cuja intenção é reduzi-los a meros plagiadores das ideias – entendidas
como uma espécie de racismo às avessas – dos negros ou do imperialismo americano. Na
história, por exemplo, o personagem Estácio Maia, segundo o romance um defensor do
“poder negro”, é também descrito como “moço branco de cabelos loiros e olhos azuis, pouco
afeito inclusive a negras e mulatas” (AMADO, 1969, p. 66). E mais adiante, há a afirmação
da solução tida como mais adequada tanto para o problema das raças quanto para o das
classes:
— Certas coisas nos escapam, não estamos a par de detalhes que tornam
indesejável, em determinado momento, aquilo que, em aparência, é uma boa
ideia. Vou lhes revelar algo, algo muito confidencial: a diplomacia brasileira
neste preciso instante está trabalhando num acordo de grandes proporções
com a África do Sul. Temos o maior interesse em ampliar nossas relações
com esse poderoso país, de extraordinário índice de crescimento. [...] Dão-se
conta? Como então reunir nesta hora os sábios brasileiros para que eles
baixem o pau no apartheid, ou seja, na República da África do Sul? Não vou
sequer me referir aos Estados Unidos, aos nossos compromissos com a
grande nação americana. Exatamente quando aumentam suas dificuldades
59
Temos agora elementos suficientes para ver a viva imbricação de Tenda dos Milagres
com o contexto ideológico de sua época. Esperamos ter mostrado como o romance de Jorge
Amado, ao mesmo tempo em que parodia vários dos discursos sobre as raças no Brasil, se
posiciona em favor de uma certa compreensão da nacionalidade. Em outras palavras,
avaliamos que neste romance, de maneira mais explícita do que em outros do mesmo autor, há
um posicionamento favorável à “miscigenação”, vista não somente como um critério de
compreensão das relações raciais no Brasil, mas como a solução ideal do conflito social.
Entretanto, não se pode ver a relação do romance de Jorge Amado com o discurso de
miscigenação no Brasil como uma identificação pura e simples, sem contradições ou
gradações. Pelo contrário, vários elementos permitem vislumbrar uma aguda consciência
histórica no romance sobre os problemas relacionados aos caminhos que o Brasil poderia
seguir ou estava seguindo para realizar efetivamente a integração da população negra e
mestiça na sociedade nacional, crescentemente industrial. Por um lado, encarnada na trajetória
de Tadeu Canhoto, estava a perspectiva de uma integração individual, mas que ocorria às
custas da completa assimilação cultural. Ou seja, o abandono, por parte dos indivíduos
afrodescendentes em condições de ascender socialmente, dos elementos da cultura negra e
mestiça de onde provinham, com a decorrente perda de qualquer vínculo com esse mundo,
cujas possibilidades culturais, políticas, estéticas etc., não eram realmente consideradas como
válidas para a construção do país. Tadeu Canhoto, portanto, é a imagem daquela solução tão
elogiada pelos teóricos da “democracia racial”, do discurso que afinal sustentou a visão oficial
sobre o Brasil, atuante em grande medida até os nossos dias: o da integração por
peneiramento. Nesse ponto cabe bem uma observação contemporânea de Jessé Souza,
descontando por um instante a diferença de objetos e do tempo histórico:
60
Por outro lado, Tenda dos Milagres apresenta a trajetória de Pedro Archanjo, cuja
espécie de ascensão intelectual também ocorre em razão das suas capacidades individuais,
mas que não tem como resultado a perda dos vínculos culturais, afetivos ou políticos com o
mundo sociocultural afro-brasileiro de onde partiu – razão pela qual sua transformação
cultural não se reverte em ascensão material. Uma terceira via de evolução histórica
vislumbrada se daria por meio dos movimentos de negritude e demais críticos do discurso de
miscigenação. Porém no romance eles são compreendidos como movimentos elaboradores de
um “racismo às avessas”, incapazes de reconhecer o valor da miscigenação na construção de
uma humanidade harmônica, e não como propositores de “brasilidades” mais democráticas.
Razão pela qual são rechaçados ou, o que dá no mesmo, satirizados.
Muito pode ser dito a partir destes elementos. Um primeiro ponto é que o romance
parece ser incapaz de imaginar uma integração da população negra e mestiça à sociedade
competitiva que não passe por soluções baseadas unicamente nos talentos individuais – em
especial dos indivíduos mestiços. Em termos sociológicos, é certamente difícil esperar que se
alcance qualquer integração social efetiva sem que existam mecanismos institucionais,
estatais etc., capazes de abranger não somente indivíduos, mas populações. A história mostra
aliás que os estratos populacionais brancos dominantes sempre contaram com todo tipo de
ação institucional e estatal para a realização e manutenção da sua posição social. A visão de
uma integração baseada em eventuais talentos individuais é certamente limitada, ainda que o
romance seja astuto sociologicamente ao mostrar a importância dos vínculos familiares e das
amizades adequadas, ou seja, a relevância de se ter o capital de relações necessário para poder
alcançar o tipo de educação valorizada, e da maior parte das posições de prestígio na
sociedade burguesa. Assim, observados do ponto de vista das suas trajetórias de ascensão
social, tanto Pedro Archanjo quanto Tadeu Canhoto representavam literariamente, ainda que
com variações, formas de se relacionar com os mecanismos de controle do poder, do prestígio
social e da renda bastante ajustáveis às expectativas das classes dominantes hegemonicamente
61
Neste capítulo travaremos um diálogo com Tenda dos Milagres a partir de outra
perspectiva, agora com a intenção de compreender o sentido das imagens do carnaval e, mais
do que isso, da própria lógica carnavalesca que atravessa a sua composição, mobiliza e dá
vida ao seu universo romanesco. Para tanto será necessário circunscrever minimamente o que
se entende por “carnaval”, “carnavalesco”, “lógica carnavalesca”. Isso será feito
primeiramente a partir da obra de Mikhail Bakhtin (2013), do estudo da sua compreensão a
respeito do Carnaval, bem como dos temas a ele relacionados, como o riso, a paródia, a
linguagem familiar, entre outros.
Os conceitos forjados por Bakhtin sobre o Carnaval surgiram principalmente da sua
interpretação da obra de François Rabelais e dos amplos discursos culturais que o seu
romance incorpora. Portanto, trata-se de conceitos que são também uma tentativa de
compreensão da concepção cômica do mundo que seria, na verdade, a condição de sentido
desta obra. A utilização destas noções ou concepções é problemática, ao menos, por duas
razões. A primeira diz respeito a ter sido este estudo publicado em sua versão definitiva em
meados da década de 1960, e ter sofrido desde então críticas variadas, nos diversos contextos
intelectuais em que foi recebido, como mostra brilhantemente Antony Wall (2010). A
segunda dificuldade diz respeito ao próprio objeto estudado por Bakhtin. Refiro-me ao fato de
o autor ter tentado compreender os diálogos de uma obra específica com a cultura cômica
popular de um período e um lugar razoavelmente circunscritos: ou seja, a cultura popular
risonha da Idade Média ao Renascimento, na Europa ocidental.
Como então trazer esses conceitos para a compreensão de um romance de um escritor
brasileiro, que além do mais escreveu na década de 60 do século XX, não no século XVI?
Para tentar apontar um caminho, colocarei em diálogo a descrição proposta por Bakhtin da
“concepção carnavalesca do mundo” com as ideias de alguns estudos sobre o Carnaval de
pesquisadores latino-americanos. Buscarei principalmente nas reflexões de Monegal (1979),
DaMatta (1997) e Moura (2020) a ajuda para saber se há sentido em relacionar o carnaval
medieval àquele que se manifesta no mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, para tentar
vislumbrar as relações entre o mundo afro-brasileiro e os ritos carnavalescos. Aqui sigo ainda
uma interessante sugestão de Bakhtin, quando este diz que “o princípio da festa popular do
carnaval é indestrutível. Embora reduzido e debilitado, ele ainda assim continua a fecundar os
diversos domínios da vida e da cultura” (BAKHTIN, 2013, p. 30). Bem, é preciso saber de
63
que maneira se dá tal fecundação. Enfim, depois dessa discussão prévia teremos elementos
para concretamente situar as imagens carnavalescas presentes em Tenda dos Milagres, de
Jorge Amado. Mais do que isso, para ver como o romance, para além das tradições e
referências literárias, dialoga com importantes aspectos da cultura popular que ele incorpora
ou tenta representar.
Como mostrou Antony Wall (2010, p. 17), alguns críticos de Bakhtin, principalmente
entre os acadêmicos alemães, indicaram possíveis incongruências, erros mesmo, em
considerar as festas cômicas como “exteriores à Igreja e à religião” (BAKHTIN, 2013, p. 6),
64
defendendo, pelo contrário, que entre as festas oficiais da Igreja havia espaço para comicidade
e descontração. Contra essa crítica é preciso notar que o termo “exterior” na argumentação de
Bakhtin não parece ter sentido de algo apartado absolutamente, mas sim de concepções com
ênfases distintas que, entretanto, se relacionavam, na medida em que representavam em vários
pontos o inverso uma da outra. Isso porque na concepção “não-oficial” das festas
carnavalescas ecoava, para negar ou inverter, a concepção oficial da Igreja, numa relação
entre linguagens ou visões de mundo tipicamente dialógica (cf. FIORIN, 2019, p. 27).
Nesse sentido, as festas manifestavam uma visão de mundo alternativa. Este ponto é
para nós importante, pois parece ser o essencial da argumentação de Bakhtin: que dos rituais
festivos, como das outras manifestações da cultura cômica popular, emergia uma concepção
de mundo diferente da concepção oficial. Uma outra cosmologia voltada à materialidade do
corpo e da vida, regida pelos princípios da alegria, da abundância e da ambivalência.
Concepções essas que afastavam, ainda que provisoriamente, o caráter oficial e sério da
ideologia cristã dominante na vida cotidiana, para dar vasão à brincadeira, ao riso aberto e ao
jogo. Realizando-se, assim, em relações não hierárquicas, através de ritos e linguagens que
aproximavam e familiarizavam as pessoas na praça pública.25
É interessante notar que para Bakhtin a concepção carnavalesca do mundo não surge
de alguma concepção abstrata ou teórica, mas parece fundar-se na própria existência material,
até mesmo fisiológica, tanto do corpo individual quanto do popular. Nesse ponto talvez seja
adequado falarmos da relação entre os princípios da abundância, da alegria e da ambivalência,
25 Como veremos adiante, a leitura de Roberto DaMatta (1997) do Carnaval centra-se justamente na lógica da
inversão, na provisoriedade e na consciência aguçada ritualmente de se estar invertendo a totalidade dos valores
(religiosos, morais, espaciais etc.) vigentes na vida cotidiana. No caso brasileiro, isso significa a inversão dos
valores de uma sociedade hierárquica, autoritária e patriarcal, cuja ideologia oficial funda-se também na visão de
mundo cristã. Disso resulta a valorização do corpo, da não-contenção, da alegria e da irreverência, além dos
elementos culturais marginalizados, como os de origem afro-brasileira, como veremos.
65
Contudo, engana-se quem achar que essa lógica se restrinja aos limites – ou aos não-
limites – do corpo individual. Segundo Bakhtin seria esse somente o caso das imagens de um
grotesco primitivo, uma vez que em sua posterior evolução o grotesco englobou não somente
o corpo popular, como a própria história. Isso porque, de forma aguda principalmente no
Carnaval, a percepção da mudança incessante, da continuidade com o mundo material, e da
66
Teria sido muito vasta a existência do discurso paródico na antiguidade grega, como
no mundo romano e depois medieval. A paródia, entre outras maneiras de fazer rir, teria sido
27 Os comentadores não deixaram de notar as semelhanças entre esta concepção e a noção dos “jogos de
linguagem” de Ludwig Wittgenstein ou de outros pensadores com uma visão pragmática da linguagem (cf.
GONÇALVES; SIPRIANO, 2013).
68
28 As traduções apresentadas ao longo da dissertação são de nossa autoria, exceto quando identificadas. Texto
de partida: “Llamando la atención sobre un género secundario si no despreciado como es la parodia, mostrando
que la novela no deriva realmente de la épica, sino de la sátira menipea, es decir, invirtiendo el canon
aristotélico, que ni siquiera el marxista Lukács se había atrevido a alterar realmente, Bakhtin ayudó a cuestionar
el logocentrismo europeo u occidental. Su revaluación de la sátira menipea, del diálogo socrático, de la parodia y
del Carnaval, no sólo ofrecía una lectura diferente y polémica de los géneros que habrían de producir la novela
moderna. También invertía el sentido de la orientación del pensamiento marxista de su tiempo. Lo que había sido
hasta entonces considerado central (la tradición de la novela realista, burguesa, estudiada sobre todo por Lukács)
resultaba ser sólo una fase en un desarrollo mucho más largo y completo de un género diferente” (MONEGAL,
1979, p. 405)
29 As análises mais recentes dos escritores vanguardistas, como da obra de Oswald de Andrade, por exemplo,
continuam sublinhando a paródia como um procedimento fundamental. (cf. MAIA, 2006)
30 Texto de partida: “Desde el punto de vista de los colonizadores o desde el punto de vista de los colonizados,
el conflicto de culturas y de mitos produjo versiones igualmente carnavalizadas. En esas versiones, las culturas
opuestas y hasta heterogéneas aparecieron inesperada y brillantemente integradas. Los antropólogos ya han
estudiado las infinitas variaciones de algunos cultos afrocubanos o afrobrasileños, el sincretismo de culturas que
ellos implican, la mezcla y confusión de todo posible “origen” que practican. En el concepto de Carnaval,
71
América Latina ha encontrado un instrumento útil para alcanzar la integración cultural que está en el futuro y
para verla no como una sumisión a los modelos occidentales, no como mera corrupción de algún original
sagrado, sino como parodia de un texto cultural que en sí mismo ya contenía la semilla de sus propias
metamorfosis” (MONEGAL, 1979, p. 408)
31 Texto de partida: “suficientes testimonios de que la tradición latinoamericana de la parodia es demasiado
importante para sólo ser vista como una línea marginal. Por allí pasa la corriente más fecunda de nuestras
literaturas” (MONEGAL, 1979, p. 412)
72
onde podem festejar alegremente ou mesmo organizar competições onde podem atuar como
iguais – coisa que na vida cotidiana sabem não ser (cf. DAMATTA, 1997, p. 153).
Desse ponto de vista o carnaval no Brasil efetuaria uma inversão momentânea dos
valores, das regras e das funções, a começar pela dos espaços: uma vez que, conforme aponta
DaMatta, há neste ritual a invasão da “rua” pelas regras da “casa”. Com outras palavras, no
espaço onde habitualmente pratica-se o trabalho, o comércio ou a rápida circulação, seja de
pessoas, de carros ou de mercadorias, com vistas a um fim bem determinado, no carnaval
transforma-se no lugar onde, como em casa, se fica “à vontade”: sem fim determinado, nas
roupas que quiser, fazendo o que bem entende.
De igual maneira, há também uma inversão temporal, dado que os festejos acontecem
não durante o dia, momento símbolo da produtividade, mas geralmente à noite, ou no fim da
tarde. E sem hora certa para acabar. Tudo sempre em contraste com as regras espaço-
temporais da vida cotidiana. Além disso, lógica de inversão que é também nítida no caso das
fantasias (em todos os sentidos desta palavra) típicas dos dias carnavalescos brasileiros: nos
homens que se vestem de mulheres; nos brancos que se vestem de indígenas; nas brincadeiras
eróticas entre homens heterossexuais, completamente interditas na vida cotidiana; nas
mulheres que, aproveitando a liberdade nestes dias acessível, adotam comportamentos sexuais
somente permitidos na vida ordinária ao gênero masculino, direcionando-os frequentemente a
homens e mulheres de outras classes e raças.32 Enfim, segundo DaMatta, o carnaval realizaria
todo tipo inversão da ordem moral e comportamental, em que tudo o que é tido como baixo
ou inferior, material ou culturalmente falando, passa ao topo e torna-se visível:
Tão importante ou mais que a inversão espacial e moral generalizada é o fato de que
no carnaval sejam outros os sujeitos – ou atores, como diz DaMatta – a ocupar o centro do
ritual. Isso porque durante a festa todos os elementos marginalizados da vida social brasileira,
com seus corpos, práticas e valores, emergem ao centro da cena, na realidade conduzindo os
festejos. O carnaval é o momento, portanto, em que os diferentes segmentos da população
afro-brasileira, maioria entre os pobres e marginalizados, tomam o centro da cidade com sua
música, ritmo e cultura: seja de maneira mais institucionalizada, como nas escolas de samba;
com uma organização mais simples, como nos blocos de rua; ou mesmo sem organização
nenhuma, das maneiras mais espontâneas e variadas. O caso do samba é dos mais
significativos, pois, de ritmo subalternizado, música de negros, malandros e favelados, passou
a representar no discurso oficial, juntamente ao Carnaval, a própria “brasilidade” (LIRA
NETO, 2017). Também outros ritmos menos institucionalizados, mais marginalizados ou
subalternizados, emergem ao centro da cidade, embalando a festa.
Referindo-se ao caso das escolas de samba no Rio de Janeiro, Roberto DaMatta dizia:
Esta citação é importante uma vez que revela mais do que diz. Primeiro, por uma
espécie de sincera vulgaridade, o autor torna nítida a estrutura de sua enunciação: ou seja, ao
dizer “eles” – a saber, os negros e pobres – explicita o fato de que os negros são tomados
75
como o objeto de estudo, mas não como os destinatários ou leitores do seu trabalho. Estes
últimos estão implicitamente mencionados no “nossas regras” e “nossas cozinhas”. Cozinhas
e regras, não é preciso dizer, de pessoas brancas de classe média, interlocutoras presumidas da
maior parte da produção, não somente de Roberto DaMatta, como da academia brasileira de
ontem e de hoje.
De todo modo, é preciso reconhecer que, por um lado, são realmente as populações
marginalizadas e não detentoras dos saberes valorizados socialmente os principais sujeitos do
carnaval. Por outro lado, uma autora como Lélia Gonzalez também destaca as limitações dos
festejos carnavalescos, vendo neles uma espécie de compensação momentânea mítica da
subalternidade cotidiana, especialmente aguda em se tratando das mulheres negras, neste
momento transmutadas em “rainhas do carnaval” (GONZALEZ, 2020, p. 80). Voltaremos a
este último ponto no momento oportuno, quando formos abordar a elaboração em Tenda dos
Milagres de uma imagem carnavalizada das mulheres negras.
Agora importa observar que há alguma contradição em dizer, como o faz DaMatta,
que esses sujeitos “sabidamente ignorantes” são os mesmos que detêm um “surpreendente
poder de arregimentação e ordem”, estando implícito no mínimo algum saber prático. De fato,
a relação entre o carnaval e a população negra e pobre é mais contraditória. Se por um lado
existe esse elemento de compensação simbólica, também é preciso perceber aquilo que Clóvis
Moura chamou de uma “cultura de resistência” (2020, p. 231). Isso porque as escolas de
samba, ao menos em sua origem, tal como outras organizações da população afro-brasileira,
foram instituições capazes de impedir que as pessoas sob sua influência sofressem a perda
total da identidade étnica ou caíssem em estado de completa anomia. Através das escolas de
samba uma parcela da população negra brasileira, favelada e marginalizada, pôde forjar um
contradiscurso e uma contracultura especialmente visível durante o Carnaval, porém atuante
durante o ano inteiro, com importantes efeitos para sua sobrevivência social. E isso apesar (ou
em razão da) precariedade da sua condição:
Nesse sentido, as análises de Andréia dos Santos Menezes (2012, p. 194) sobre os
sambas das primeiras décadas do século XX, em especial aqueles que tratam da
“malandragem”, permitem entrever a maneira pela qual uma parcela da população negra lidou
com o fato objetivo da sua condição subalterna. Dessa forma, o samba, assim como as escolas
de samba, os terreiros de candomblé etc., foi uma instituição na qual o negro brasileiro pôde
elaborar uma visão de mundo, uma ética e uma estética própria, o que não excluía uma
aceitação por vezes irônica ou ambígua dos ideais da sociedade competitiva. Sociedade a qual
eles, por não deterem os pressupostos necessários, ou em razão do mais cínico preconceito –
isto é, a barragem social de que fala Clóvis Moura e, mais recentemente, Jessé Souza (2011,
p. 204) – somente se integravam marginalmente.
É preciso não esquecer, entretanto, que tais instituições, na medida em que atuam em
um contexto de hegemonia branca, estão sempre lidando com as pressões integracionistas da
sociedade abrangente, cujos efeitos mais frequentes são a cooptação ideológica e a
fragmentação social. Também por essa razão, e pensando na população afro-brasileira como
um todo, observa-se que os segmentos com consciência étnica específica são evidentemente
minoritários, contrastando com a identidade diluída, ambígua ou de tendência a refugiar-se no
tipo étnico considerado superior - em outros termos, na busca pelo embranquecimento que é
característica da maior parte da população do ponto de vista da sua dinâmica racial (MOURA,
2020, p. 211). Ainda assim, como aponta Vieira Filho (2016) sobre as manifestações
carnavalescas negras de Salvador entre fins do século XIX e o princípios do XX, organizações
como as escolas de samba, os batuques, os afoxés e outras festas públicas do candomblé
realizadas durante o carnaval foram para parte da população afro-brasileira uma importante
maneira de brincar e, se divertindo, produzir o seu contradiscurso.33
Para não fugirmos muito do nosso problema, penso que agora temos elementos
suficientes para falar da existência de uma “lógica carnavalesca”. Na verdade, se algo
relaciona o carnaval medieval àquele realizado nos dias de hoje entre nós, isso parece ser a
33 É aliás interessante para nós uma crítica de Nina Rodrigues retomada por Vieira Filho “Refiro-me à grande
festa do Carnaval e ao abuso que nela se tem introduzido com a apresentação de máscaras mal prontos (sic),
porcos e mesmo maltrapilhos e também ao modo por que se tem africanizado, entre nós, essa grande festa da
civilização. Eu não trato aqui de clubes uniformizados e obedecendo a um ponto de vista de costumes africanos,
como a Embaixada Africana, os Pândegos da África etc.; porém acho que a autoridade deveria proibir esses
batuques e candomblés que, em grande quantidade, alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme
barulhada, sem tom nem som, como se estivéssemos na Quinta das Beatas ou no Engenho Velho, assim como
essa mascarada vestida de saia e torço, entoando o tradicional samba, pois que tudo isso é incompatível com o
nosso estado de civilização” (NINA RODRIGUES, 1988, P. 157 apud VIEIRA FILHO, 2016, p. 332)
77
nas quais o povo da Bahia é visto tomando as ruas e invertendo a ordem das coisas, ou seja,
valorizando aquilo que não é costumeiramente valorizado. Comecemos pelas imagens
imediatamente perceptíveis.
Por exemplo, em um dos capítulos de Tenda dos Milagres narra-se a ocasião em que o
Afoxé dos Filhos da Bahia toma a ruas, liderado por um jovem Pedro Archanjo, rompendo
assim a proibição de haver desfiles carnavalescos negros, no ano de 1904:
O povo veio correndo para ver e batia palmas, gritava, a pular e a dançar, em
louco entusiasmo. Veio o entrudo inteiro: máscaras, zé-pereiras, mandus,
zabumbas, fantasias, blocos, cordões, esfarrapados, cabeçorras, caretas.
Quando o afoxé despontou no Politeama, ouviu-se um grito uníssono de
saudação, um clamor de aplauso: viva, viva, vivô!
A surpresa fazia o delírio ainda maior: o dr. Francisco Antônio de Castro
Loureiro, diretor interino da Secretaria de Polícia, não proibira “por motivos
étnicos e sociais, em defesa das famílias, dos costumes, da moral e do bem-
estar público, no combate ao crime, ao deboche e à desordem”, a saída e o
desfile dos afoxés, a partir de 1904, sob qualquer pretexto e onde quer que
fosse na cidade? Quem ousara, então? (AMADO, 1969, p. 75)
Archanjo” (AMADO, 1969, p. 77), para depois mostrar seu sumiço numa ladeira,
acompanhado de Lídio Corró e de outro comparsa, para enfim terminar de maneira
completamente carnavalesca:
Aqui, bastante de acordo com a observação de Ilana Goldstein (2003), vemos uma das
muitas imagens de Jorge Amado nas quais o povo é visto tomando as ruas; ou, dito de outro
modo, imagens nas quais o protagonista do livro se encontra (ou é encontrado) no meio da
multidão, denunciando assim sua filiação última ou sua origem. Esse recurso – cujas relações
com o que dissemos sobre a carnavalização são evidentes – é fartamente utilizado pelo autor
também em outros livros desta mesma época. Para exemplificar basta lembrarmos umas das
cenas de Gabriela, Cravo e Canela (2004) quando a protagonista, cansada dos
convencionalismos e da monotonia de um evento grã-fino, não resiste à música em
redondilhas e à alegria de uma festa popular, e acaba abandonando o evento (e o marido) para
dançar no meio do povo (AMADO, 2004, p. 307).
Todavia, em Tenda dos Milagres a visão de mundo carnavalesca penetra mais fundo
do que poderia presumir-se unicamente pela presença dessas imagens mais imediatas, sejam
as dos desfiles carnavalescos propriamente ditos, ou a das apropriações festivas do espaço
público. Avalio que mais importantes sejam outros aspectos, a começar pela recorrência no
romance de alguns temas fundamentais, principalmente: o tema da morte, do comer e do
beber, e o tema do amor. Conteúdos temáticos recorrentes não somente neste romance, mas
em todos os outros desta mesma época.
Num dos capítulos mais significativos de Tenda dos Milagres acompanhamos os
acontecimentos em torno da morte de Pedro Archanjo. Aliás, notemos que este é o que
inaugura a biografia de Archanjo narrada por Fausto Pena, o que desde logo é uma inversão
carnavalesca. Porque uma vez que a morte é o fecho da vida, é a partir dela que o narrador
pode resumir o sentido da biografia de Archanjo, adiantando ao leitor todos os momentos
fundamentais de sua existência e que serão posteriormente esmiuçados: os grandes amores, as
amizades, as atitudes políticas, enfim, todos os elementos que mostram a construção do seu
caráter, e que fazem da sua trajetória a manifestação de uma avaliação sobre a vida.
80
Avaliação que não é somente individual, mas que se comunica ao todo da vida
popular, ou seja, ao conjunto vital do qual Pedro Archanjo foi uma parte ativa. Assim, nesse
episódio o autor conecta de maneira especialmente bem-acabada a biografia do indivíduo ao
movimento da história coletiva que o rodeia, dando a entender que o sentido da vida de Pedro
Archanjo seria incompreensível se visto em separado da vida do corpo popular ao qual ele
estava organicamente vinculado. Por exemplo, vejamos a maneira como Archanjo deixa o bar
onde estava rodeado de amigos, buscando ainda não esquecer uma frase por lá ouvida:
Por esse episódio vemos não somente que a vida de Pedro Archanjo está conectada ao
movimento da história, como também nos é mostrada a pretensa coerência da sua filosofia da
mistura, que é também a dos seus companheiros. Ou seja, percebe-se uma conexão entre a
diversidade dos amigos, a indestrutibilidade do povo e o fato de que os nazistas, afinal,
perderam a guerra – imagens que pretendem ser prova de que as rígidas separações, mais cedo
ou mais tarde, serão derrotadas. Esse alegre relativismo abrange ainda a ideia de que o ódio
aos nazistas não deve traduzir-se numa condenação ao povo alemão em geral, posto que
existiria mesmo um deles que não somente vive na Bahia, como casou-se com uma mulher
negra, produzindo uma miríade de filhos mestiços. Isso seria indício, segundo o ponto de vista
do romance, não somente da tolerância e fertilidade do indivíduo, mas do próprio povo que o
originou. O episódio, portanto, conecta a existência daqueles amigos ao movimento mais
amplo da história, fazendo-os comungar alegremente da certeza de um progresso difícil, mas
de vitória garantida, em direção a um futuro de “mistura” universal.
A narração prossegue e nela acompanhamos o destronamento dos valores dominantes.
Primeiro, pela completa ausência do tom lúgubre, tal como dizia Bakhtin a respeito da
representação da morte no realismo grotesco. Evidentemente que há choros e lamentações.
Todavia, aqui a morte é percebida como parte da vida, em alguns momentos até mesmo como
uma festa – por exemplo, uma das prostitutas que arrumava o corpo de Archanjo chega a dizer
que ele precisava de uma gravata, porque Archanjo “nunca foi a nenhuma festa sem gravata”
(AMADO, 1969, p 40).34 Além disso, o episódio todo é a narração de uma transmutação, na
qual o morto é transfigurado em memória alegre por todos aqueles que o acompanham e que o
recordam com carinho. Há assim algo daquela ambivalência carnavalesca, na medida em que
a morte de Archanjo significa o ingresso numa outra vida, mesmo que feita de lembranças,
sem que se alcance aqui os píncaros fantásticos de outro livro. Refiro-me ao A Morte e a
Morte de Quincas Berro D’Água (1981), no qual a morte de Quincas é sua entrada numa
outra vida, mais alegre e de acordo com seus gostos, cuja duração é de uma noite e que
termina com sua segunda morte, no mar. Mesmo assim, quando o corpo de Archanjo é
retirado da sarjeta onde restou caído vislumbra-se algo do fantástico35:
34 Lembremos da personagem Norma de Dona Flor e seus dois maridos (1995), cujo grande divertimento na
vida consistia em participar dos velórios e enterros.
35 Uma boa leitura da obra de Jorge Amado no contexto da literatura latino-americana e das diferentes
utilizações de elementos fantásticos nos romancistas dessa época pode ser encontrada em Romero (2010).
82
36 Note-se que Ester é também o nome de um dos livros do velho testamento da Bíblia cristã. André Anéas faz
a seguinte caracterização da personagem título: “Na cidadela de Susã vivia Mardoqueu, da tribo de Benjamim.
Ele possuía uma prima chamada Hadassa, conhecida também como Ester, que fora criada por ele. Ester foi uma
das belas virgens selecionadas e agradou Hegai, responsável pelo Harém real, o qual a favoreceu, dando-lhe
tratamento de beleza e comida especial, além de deslocá-la ao melhor local do harém. Ester, por orientação de
Mardoqueu, não revelara o povo a quem pertencia nem a origem de sua família. Certo dia, chegou sua vez de se
apresentar ao rei. O rei se agradou muito de Ester e lhe favoreceu mais do que qualquer outra, vindo a se tornar
rainha no lugar de Vasti.” (ANÉAS, 2017, p. 69).
83
Por fim, o corpo é velado na Igreja do Rosário dos Pretos, com uma multidão de filhas
e mães de santo reunidas ao sacristão. Todo o povo de santo, ou seja, a gente do candomblé
sentada dentro da Igreja, imagem com a qual o autor afirma sua visão sobre a Bahia: uma
terra de convivência (inclusive religiosa) potencialmente harmônica. O capítulo da morte de
Pedro Archanjo termina em meio às danças rituais do candomblé rumo ao cemitério, uma
sequência de imagens de grande beleza, onde está ausente o tom lúgubre:
realismo grotesco e na obra de Rabelais. O russo argumentava que tais imagens seriam
incompreensíveis se vistas em separado da totalidade da visão de mundo popular
carnavalesca. Dizia ainda que as ações de comer e de beber no contexto do carnavalesco
medieval possuíam um sentido bastante diferente daquele que adquirem no mundo burguês.
Neste último, ganham o sentido de satisfação das necessidades fisiológicas, sendo retratadas
costumeiramente como atos individuais ou privados. De maneira diferente, as imagens dos
banquetes como as encontradas em Rabelais nunca eram atos individuais, mas significavam a
própria abundância da vida popular e coletiva. Nesse sentido, significavam a vitória do
homem sobre o mundo, do povo sobre a morte. Ao contrário da concepção burguesa, não
tinham o sentido, portanto, de isolar o corpo em um espaço individualizado ou situação
privada, mas o de enfatizar seu constante constituir-se na relação com o mundo. E também
eram o momento da palavra franca, a que se pronuncia entre os amigos, a palavra verdadeira.
Em suma, o banquete, como a bebida e a embriaguez, tinha o sentido de vitória alegre e de
abundância vital, além de constante abertura ao mundo material e humano.
Também o historiador Luiz Antonio Simas (2020) reflete sobre vários aspectos da
cultura popular afro-brasileira, entre eles o significado da alimentação e da bebida como
momentos de sociabilidade. Na leitura do autor, o banquete na tradição afro-brasileira instaura
relações que se dão nos momentos rituais e nas oferendas para divindades, na sabedoria dos
ingredientes e sabores indicados para potencializar o axé de cada um, ou ainda nos encontros
e pequenos festejos da vida cotidiana, nas mesas de bar e botequins. É interessante (e
belíssima) essa sua reflexão:
Retomo essas passagens, uma vez que é bastante evidente a importância da comida e
da bebida nos romances de Jorge Amado. Lembremos, por exemplo, o significado da
alimentação em livros como Gabriela, cravo e canela (2004) ou Dona Flor e seus dois
maridos (1995), romances nos quais o ato de cozinhar é indissociável da história e da
caracterização das suas protagonistas, além de ser elemento da própria composição do
romance – na história de Dona Flor as receitas culinárias inclusive abrem os capítulos. Além
disso, em ambos os casos o fato de serem cozinheiras de mão cheia relaciona-se com suas
qualidades sexuais diferenciadas, numa associação entre comida e sexualidade bastante
recorrente na linguagem popular.
Também em Tenda dos Milagres a comida e a bebida têm um papel fundamental, mas
aqui o banquete parece ter em especial esse sentido de vitória coletiva após uma longa
batalha. Vejamos, por exemplo, a festividade em razão da formatura de Tadeu Canhoto, após
seu longo percurso de desafio às resistências racistas para formar-se engenheiro:
em obras como Casa-Grande & Senzala (2003a), ou Sobrados & Mucambos (2003b) – livros
onde a comida e a bebida eram percebidas como uma das mais importantes expressões da
mistura, da criatividade e do suposto equilíbrio da cultura brasileira. Também o Manifesto
Regionalista (1952) fundia uma defesa das tradições, da alimentação e uma visão sobre os
papéis de gênero, quando afirmava que “a arte da mulher de hoje está na adaptação das
tradições da doçaria ou da cozinha patriarcal às atuais condições de vida e de economia
doméstica” (FREYRE, 1952, p. 8), numa reflexão cuja proposta central consistia na adaptação
dos valores patriarcais tradicionais às condições modernas (cf. ALBUQUERQUE JUNIOR,
2011).
Dito isso, vejamos mais um episódio de Tenda dos Milagres. Nele acompanhamos o
livreiro don León, depois de ele descobrir que Pedro Archanjo não era somente um bêbado
com mania de grandeza como pensara, mas um pensador que alguns professores da Faculdade
de Medicina liam com respeito. Corria então o livreiro ao encontro de Archanjo,
embrenhando-se nos becos da cidade, descendo as ladeiras do Pelourinho, tarde da noite:
Quando, por fim, descobriu a casa de Aussá naquele sujo labirinto em que
jamais se aventurara antes, a noite de luar descera sobre o caruru regado a
cachaça, cerveja e aluá. Indeciso à porta, o cheiro da comida de azeite nas
narinas, don León olhou a sala pobre e viu seu colega Bonfanti, de boca
cheia, os bigodes amarelos de dendê. Sentado entre Rosália e Rosa de Oxalá,
o rosto tranquilo e bom, mestre Pedro Archanjo comia com as mãos, que é a
maneira melhor de comer.
— Seja bem-vindo, don León, tome lugar na mesa.
Veio Aussá com um copo de cerveja, formosa morena trouxe um prato com
caruru, acaçá, moqueca de siri. (AMADO, 1969, p. 225)
Jorge Amado cria uma atmosfera na qual sentimos os aromas da comida saborosa e da
sensualidade e, ao mesmo tempo, da amizade tranquila entre os diferentes. Mistura-se assim a
comida, as amizades, as mulheres – temperos da utopia amadiana, sua espécie de Éden
popular e carnavalesco de ressonâncias patriarcais.
comum que aquelas mulheres e homens negros escravizados e percebidos como “belos” –
segundo os padrões brancos – fossem direcionados aos trabalhos nas casas senhoriais ou
permanecessem na capital, enquanto aqueles tidos como “feios” eram enviados aos trabalhos
no interior, sendo comumente vendidos por preços menores (SANTOS, 2014, p. 10).
Portanto, ao lado das práticas de dominação com vistas à exploração produtiva (na realidade,
práticas imbricadas) havia uma dominação sexual, além de dominação estética – esta última
também relacionada ao gozo sexual, mesmo quando não extrapolasse a “simples”
contemplação visual.
A preocupação com a genitália negra, ou seja, sobre as supostas diferenças de potência
sexual entre brancos e negros, prossegue e se reelabora no contexto pós-abolição, tanto no
Brasil quanto em países como os Estados Unidos. É significativa a visão de um teórico norte-
americano defensor do darwinismo social, na segunda metade do século XIX.
Beard acreditava, assim como a maioria dos darwinistas sociais que alguns
grupos étnicos e raciais haviam cessado de evoluir. [...] Como Beard
acreditava que os negros eram uma raça que tinha parado de evoluir,
declarou que eram “subcivilizados”, condição que explicava não somente
sua inferioridade mental como também a sua superioridade física –
principalmente na área do sexo e órgãos sexuais. Os negros possuíam uma
“constituição sobrenatural” na esfera erótica, escreveu Beard, o que os
aproximava da natureza e os distanciava da civilização, e, portanto, os
deixavam imunes à disfunção erétil. (FRIEDMAN, 2002, p. 115 apud
SANTOS, 2014, p. 18)
a do homem negro gentil e submisso, mas dotado de força física descomunal e capaz da mais
extrema brutalidade – como um reflexo da experiência da infância:
Contam, amor, que, certa feita, estando uma iabá de passagem na Bahia,
arreliou-se e ofendeu-se com a incontinência, o colossal deboche, a
presepada imensa de mestre Pedro Archanjo, arrendatário de mulheres,
macho de tantas fêmeas, pastor de dócil e fiel rebanho, mais parecendo um
93
Perdida a batalha, a iabá transforma-se então em Dorotéia, que daí em diante dançaria
para Exu no candomblé e na qual, segundo o narrador, ainda alguns “xeretas, a par do
acontecido, juram perceber distante afitim de enxofre quando Dorotéia abre a dança no
terreiro” (AMADO, 1969, p. 134). Enfim, por tudo que já dissemos é inegável o aspecto
carnavalesco dessa passagem – o seu alegre hiperbolismo, o elogio da fecundidade e da
vitalidade – cujo elogio da poderosa “estrovenga” de Pedro Archanjo pretende funcionar
como prova não somente da potência do personagem, mas, por extensão, do povo negro e
mestiço da Bahia. Por outro lado, é notável a primazia do falo de Archanjo – “que com seu
olor de macho descabaçava virgens léguas adiante, e as emprenhava” (AMADO, 1969, p.
132) – podendo ser dito sobre Jorge Amado algo próximo ao que dizia Bakhtin sobre
Rabelais: ou seja, apontar a existência da primazia masculina e do lugar secundário ou passivo
das mulheres na lógica de suas imagens, uma vez que se é verdade que o romance não nega às
mulheres o desejo e os prazeres do baixo corporal, também é razoavelmente evidente que é o
órgão sexual masculino aquele que exerce o papel ativo da fecundidade e da vitalidade.
Nesse ponto cabe perguntar sobre a relação entre essa representação carnavalizada e
aquilo que dissemos dos estereótipos sobre uma suposta hipersexualidade negra. Dito de
maneira mais precisa: qual o estatuto da inversão carnavalesca amadiana na relação com os
valores patriarcais e com as representações estereotipadas do negro?
Sem poder dar uma resposta que resolva a questão, parece-nos que em primeiro plano
não há uma contradição necessária entre a visão carnavalesca e os valores patriarcais.
Todavia, uma vez que as festas carnavalescas ocorrem em contextos sociais com valores
dominantes cristãos e patriarcais (a sociedade europeia da Idade Média ou o Brasil do século
XX), esses valores também são constantemente colocados em destaque ou são objetos de
inversão. Porém, no caso do romance de Jorge Amado, os valores patriarcais não parecem ser
completamente atingidos pela inversão carnavalesca – ou seja, apesar de todas as outras
inversões, a centralidade masculina permanece um valor dominante no seu sistema de
imagens, mesmo que matizado por uma representação em alguns aspectos subversiva da
materialidade do desejo feminino. Nesse ponto isso talvez se deva a uma identificação do
romancista com os valores populares, ou seja, uma vez que os valores patriarcais penetram
fundo na mentalidade das classes populares no Brasil – neste ponto dando alguma razão ao
que dizia Proença Filho sobre o espelhamento, em Jorge Amado, entre a representação e o
“comportamento brasileiro” (PROENÇA FILHO 2004, p. 166).37
37 O estudo coletivo coordenado por Jessé Souza sobre a socialização da classe dos mais marginalizados no
Brasil – que o autor chama provocativamente de “A Ralé Brasileira” (2009) – oferece vários subsídios para uma
compreensão da ostensiva virilidade comum entre os homens desta classe, sendo ela uma última fonte de
95
prestígio entre aqueles que não têm acesso a qualquer outra fonte de valorização social.
96
Rebolosa é o termo chulo e falso, vil para aquela navegação de ancas e seios,
em compasso de samba, em ritmo de porta-estandarte de rancho. Muito sexy,
a minissaia a exibir-lhe as colunas morenas das coxas, o olhar noturno, o
sorriso de lábios semi-abertos, um tanto grossos, os dentes ávidos e o
umbigo à mostra, toda ela de oiro. Não, não ia a rebolar-se, pois era a própria
dança, convite e oferta. [...]
Note-se que mesmo não sendo uma empregada doméstica, mas uma jornalista, ou seja,
mulher de classe média, ainda assim valem as observações acima apontadas sobre o status de
objeto das “mulatas” na cultura nacional, aqui dando razão à argumentação de Lélia
Gonzalez. Isso porque a personagem Ana Mercedes é inteiramente construída com referência
aos seus dotes físicos; ou, melhor dizendo, todas as suas características referem-se à
possibilidade de realizar algum tipo de gozo sexual, tendo como ponto de partida um olhar
masculino e patriarcal. A razão de existência desta personagem no romance não é outra que
enfatizar o lugar da mulher negra como objeto de cobiça e desfrute. Assim, a trajetória de Ana
Mercedes, para além de ser a primeira a receber o cientista Levenson – com quem depois vai
para a cama, a fim de provar “o que vale uma mulata brasileira” (AMADO, 1969, p. 72) – é a
de servir como fonte de discórdia entre os homens, todos ávidos de possuí-la. Tais disputas
são narradas por Fausto Pena, ele mesmo um pretendente frustrado e narrador das próprias
desventuras amorosas, de cuja narração emerge um perfil cínico e aproveitador da baiana,
pintada como alguém interessada na ascensão social por via da interação erótica. Em resumo,
nessa personagem feminina em Tenda dos Milagres não há outro aspecto que não a beleza
física ou a acessibilidade sexual: ela não tem conflitos, nunca está especialmente feliz ou
triste, não reflete sobre a justeza dos seus atos. Para a perspectiva do romance de Jorge
Amado a respeito dessa personagem vale a observação de bell hooks, para quem “a cultura
dominante sempre lê o corpo da mulher negra como um sinal de experiência sexual” (2019, p.
285). Ponto de vista também explicitado quando se narra a experiência de Levenson no Brasil:
Esse ponto de vista reforça o discurso sobre Brasil como um paraíso natural e, ao
mesmo tempo, como um lugar onde encontrar intensos prazeres sexuais, envolvendo
especialmente os corpos das mulheres negras. Entretanto, alguém poderia argumentar, como o
fazem Amaral (2011) e Melo (2020) a respeito da Gabriela de Jorge Amado, que a
representação de Ana Mercedes teria o sentido de afirmar a inadequação da personagem aos
ditames do moralismo tradicional, e que a representação carnavalizada da materialidade do
desejo feminino teria um aspecto subversivo em relação à norma moral. É necessário
considerar seriamente este argumento. Todavia, é também preciso situar propriamente as
99
representações no contexto das relações de raça e de classe que organizam tanto o meio social
quanto a própria arquitetura interna de Tenda dos Milagres. Isso porque a reflexão de Jorge
Amado não abrange somente a condição das “mulheres em geral”, mas representa a relação
das mulheres negras com as mulheres brancas; das mulheres pobres com as mulheres ricas;
das mulheres brasileiras com as estrangeiras etc., erigindo ao final um mosaico bastante
diverso de figuras femininas.
Nesse ponto, para poder sustentar melhor o argumento de que Ana Mercedes
representa no romance a visão sobre as mulheres negras ou “mulatas” como objeto sexual,
vejamos a representação de outra mulher, desta vez branca e estrangeira: a finlandesa Kirsi.
Essa personagem, que desembarca e tem uma breve passagem pela Bahia – mas com tempo
bastante para engravidar de Pedro Archanjo e gerar o menino mais bonito que já se viu,
segundo a opinião de um personagem (AMADO, 1969, p. 160) – tem ao menos um aspecto
em comum com Ana Mercedes, afora as diferenças de raça e nacionalidade: do ponto de vista
comportamental, ambas exercem sua sexualidade sem grandes constrangimentos em relação
às normas prescritas ao gênero feminino. Portanto, mesmo sem falar o idioma nacional, Kirsi
estabelece um vínculo afetivo e sexual com Pedro Archanjo, indo viver inclusive na casa do
baiano. É digno de nota, aliás, que a finlandesa seja a única mulher no romance com quem
Pedro Archanjo estabeleça um vínculo mais próximo do padrão familiar burguês, mesmo que
por um breve período. Além disso, é significativo que o filho gerado pelos dois seja a única
criança a quem o baiano reconheça publicamente a paternidade – os outros inúmeros filhos
surgidos das relações com mulheres negras, inclusive Tadeu Canhoto, são chamados de seus
“afilhados”. Vejamos como Kirsi é descrita no momento de sua chegada.
Mas quem veio foi Kirsi, a sueca, que aliás, corrija-se logo, não era sueca
como todos pensaram, disseram e ficou sendo; e, sim, finlandesa de trigo e
espanto. Cheia de espanto e chuva, na porta do Mercado do Ouro, na manhã
de quarta-feira de cinzas, um trejeito de medo e os olhos de infinito azul.
Levantou-se Pedro Archanjo da mesa de cuscuz e inhame, sorriu seu sorriso
aberto, para ela andou direto e firme, como se o houvessem designado para
recebê-la, e lhe estendeu a mão:
— Venha tomar café.
Se compreendeu ou não o convite, jamais se soube, mas o aceitou; sentou-se
à mesa na barraca de Terência e gulosa devorou aipim, inhame, bolo de
puba, cuscuz de tapioca.
A impetuosa Ivone roeu seu ciúme na tenda de Miro, em murmúrios de
xingos: “barata descascada”. Terência pousou na mesa os olhos tristes, quem
sabe mais tristes. A convidada, farta de comer, disse uma palavra em sua
língua e para todos riu. O moleque Damião, até ali em silêncio e de pé atrás,
se entregou por fim e riu também:
— Branca mais branca, de alvaiade.
100
É enorme, para não dizer chocante, a diferença das representações de Ana Mercedes e
da finlandesa Kirsi. Sobre esta última, a descrição de sua “aparição” ressoa toda ela a
deslumbramento, candura e, mais importante, respeito38, numa atmosfera de quase devoção.
Em nenhum momento as palavras para a descrever falam dos seus volumes físicos. Além do
mais, os homens podem até querer possuí-la mas, antes disso, parecem adorá-la. Isso mesmo
considerando o aspecto não convencional do seu comportamento – ela embarca num navio,
desembarca na Bahia e envolve-se com um desconhecido baiano e negro – o que não chega a
ser razão para que Kirsi seja diminuída ou animalizada. Por fim, se há na descrição do
narrador algum traço de distanciamento crítico, ele aparece na descrição dos ciúmes das
mulheres baianas presentes, presumivelmente negras. Percebe-se que existe então competição
entre elas. No entanto, isso logo é resolvido: as palavras e o tom da narrativa rapidamente
naturalizam o conflito, dando a entender que a inveja sentida pelas mulheres baianas seja
somente o sentimento compreensível de quem é indiscutivelmente inferior. Afinal, como não
invejar os “olhos de infinito azul”, a inocência e fragilidade, enfim, a candura e beleza de tão
“doce menina” (AMADO, 1969, p. 80)?
Por outro ponto de vista, percebemos as ressonâncias da filosofia racial defendida por
Amado, percebida na comunhão de uma mulher branca com Pedro Archanjo e o povo da
Bahia. Também há uma atmosfera carnavalesca, uma vez que a comida ressalta e preenche o
episódio de vitalidade e alegria. Contudo, isso não apaga e, na verdade, reforça uma
hierarquia imediatamente palpável: a de que Kirsi, a mulher “branca mais branca”,
praticamente flutua acima do resto, envolta em sua cândida beleza molhada de chuva. É a ela
– e a Rosa de Oxalá, como veremos – que Pedro Archanjo dedicará um tipo de interesse não
unicamente relacionado às virtudes sexuais e de alcova. Mas é somente com Kirsi que o
vemos caminhando na praia, contra o vento, num gesto de terna delicadeza, pois naquele dia
viam-se “longe, no areal, Archanjo e a sueca, de mãos dadas” (AMADO, 1969, p. 82). Aqui
podemos traçar outro paralelo com um argumento de bell hooks (2019, p. 128) ou seja, sua
afirmação de que as mulheres brancas são geralmente associadas à pureza e ao refinamento,
enquanto as mulheres negras são associadas à selvageria e à acessibilidade sexual.
No entanto, esses dois perfis não esgotam as figuras femininas mais relevantes em
Tenda dos Milagres. Antes de prosseguir, porém, será necessário aprofundar o sentido do que
estamos chamando aqui de “sujeito moral”. Tal concepção não diz respeito ao uso cotidiano
de termos como “moralidade” ou “moralismo”, mas quer lembrar os valores e princípios, isto
é, a gramática moral que organiza a vida social. Para essa discussão nos apoiaremos nos
elementos debatidos pelo sociólogo Jessé Souza.
Souza (2021) realizou, a partir de uma interessante leitura do discurso sociológico e
das teorias do reconhecimento social, uma espécie de genealogia da concepção de moralidade
e de sujeito moral dominante no mundo ocidental. Assim, buscou relacionar essas concepções
ao desenvolvimento da sociedade moderna capitalista e aos processos de reprodução das
desigualdades sociais. Segundo seu ponto de vista, a construção da noção de sujeito moderno
como aquele capaz de disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo tem funcionado
como um pressuposto da dinâmica capitalista e, por essa razão, como um verdadeiro
privilégio de classe. Isso na medida em que o desenvolvimento destas capacidades morais-
cognitivas depende de um tipo específico de socialização familiar e escolar. Por essa razão,
em sociedades como o Brasil ou os Estados Unidos, essa socialização diferenciada também
passa a ser um privilégio de raça, uma vez que as classes dominantes majoritariamente
brancas são aquelas que monopolizam os processos necessários para o desenvolvimento e a
manutenção desse “bem escasso”. Para os nossos fins, entretanto, interessam os elementos
trazidos pelo autor em torno da concepção de sujeito moral.
Por um lado, a noção de sujeito dominante na modernidade ocidental estaria
relacionada à noção de indivíduo como uma entidade autônoma capaz de juízo moral. Essa
ideia seria fruto de um longo desenvolvimento filosófico, religioso e depois secular, mas teria
resultado na institucionalização, em todas as esferas da vida, da gramática determinante do
pensamento ocidental: a distinção entre corpo e espírito. Dessa forma, a divisão platônica
entre mundo sensível e mundo das ideias, depois a cisão judaico-cristã entre o mundo de Deus
(ou da Lei) e o mundo dos homens, teria sido reelaborada com a reforma protestante e pela
filosofia moderna na cisão entre o dever moral e as inclinações do corpo – relações presentes
de forma cristalina, por exemplo, na filosofia moral de Kant (1985), ou seja, na articulação
102
realizada pelo filósofo entre o autocontrole, o respeito e o dever. Dessa maneira, a concepção
de sujeito moral dominante na sociedade moderna e, mais que isso, do sujeito merecedor de
estima, seria a daquele capaz de manter o controle sobre as inclinações corporais, de ver a si
mesmo e aos outros como indivíduos dignos de respeito e de fazer uso da razão ao mesmo
tempo que cumpre fielmente o seu dever (SOUZA, 2021, p. 59).
A sociedade ocidental contemporânea, entretanto, teria acrescentado uma outra
dimensão à essa concepção, aquilo que o autor chama de “expressivismo romântico”
(SOUZA, 2021, p. 135). Isto é, a ideia de que não basta o cumprimento disciplinado do dever
ou a realização de um trabalho considerado útil para a obtenção de uma vida satisfatória e
admirável. Mais que isso, nos termos da ideologia dominante, passa-se a buscar na realização
do amor romântico, no refinamento sentimental e na constituição da família, as fontes da
satisfação individual e do reconhecimento social.
interesse romântico mais autêntico. Curiosamente, esse desejo amoroso nunca se concretiza,
apesar de ser correspondido. Entre outras razões, isso se deve ao fato de ser Lídio Corró
apaixonado por Rosa de Oxalá. Em respeito ao amigo, portanto, tanto Pedro Archanjo quanto
Rosa de Oxalá submetem o desejo a um controle rigoroso. Vejamos a passagem onde se narra
essa triangulação amorosa.
Só Majé Bassã, a temível e doce Mãe, ela e mais ninguém sabe de Rosa e de
sua vida, o resto é falatório. “Vive com um ricaço branco, um velho de
família nobre, barão ou conde, duque dos Anzóis e Carapuça, o pai de sua
filha”; “É casado no padre e no juiz com um comerciante português e dele
teve a menina”. Puro converse de compadrio, bolodório de xeretas, a locê de
parler, no gosto da má-língua. Lídio nunca perguntou, nem quis saber.
Rosa chega, travessa e alegre, sua presença basta, que importa o resto?
Conversa, ri e dança; canta e a voz é grave, de noturno acento. Rosa envolta
em sombras na pobre luz da Tenda onde a flauta de Lídio chora e suplica.
Para quem dança? Para quem os volteios de seu corpo, os requebros dos
quadris, os olhos de manimolência? Para Lídio, constante e casual amante?
Para alguém que não está ali e não se sabe quem seja, marido, amásio, nobre
ou rico, o pai de sua filha? Para Archanjo? [...]
A única, porém, a ter ciúmes da gringa marinheira, a única entre todas, é
aquela que em seus braços não esteve nunca e cuja boca ele jamais beijou;
única a queimar o coração no ódio e a pedir a morte – morte para a branca e
para todas elas, sem distinção de cor –, é Rosa de Oxalá, os seios soltos sob a
bata, os quadris desatados sob as sete anáguas, dançando em frente aos dois.
Lídio suspira num sorriso; daqui a pouco a terá nos braços, alta fogueira.
Archanjo se tranca em seu enigma.
Milagre é isso, minha santa, milagre do Bonfim, milagre das Candeias,
prodígio de Oxalá – Rosa em canto e dança na Tenda dos Milagres, em noite
de aflições e adivinhas. (AMADO, 1969, p. 97-98).
Assim, Rosa de Oxalá é uma das muitas concubinas retratadas na literatura de Jorge
Amado (cf. MELO, 2020). Essa personagem, entretanto, ergue-se com uma densidade moral
raramente percebida nas personagens femininas do autor ou, ao menos, naquelas presentes em
Tenda dos Milagres. Apesar dos elogios a sua beleza física – “a bunda em navegação de maré
alta e um pedaço de seio iluminando o sol” (AMADO, 1969, p. 93) – a representação de Rosa
parece escapar à rude animalização. Sua ambiguidade na relação com Lídio Corró e Pedro
Archanjo; ou seu “segredo”, como diz o narrador, parece garantir-lhe uma dignidade e, além
do mais, uma racionalidade. Isso porque Rosa de Oxalá não é um simples joguete ou objeto
de prazer: pelo contrário, ela tem estratégias e interesses. Por vezes desaparece e só ressurge
quando quer. Quando se entrega sexualmente, é somente à sua maneira e na medida da sua
vontade. Fora ela, somente as mães de santo possuem maior dignidade no romance. Somente
com relação a essas respeitáveis senhoras o olhar do narrador é deserotizado, talvez por serem
mulheres velhas – na visão patriarcal, a mulher idosa é a antítese do erótico – porém, mais
104
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos uma leitura do romance de Jorge Amado de maneira a vê-lo como
intrinsecamente relacionado aos debates de seu meio ideológico, àqueles que a obra e o autor
perceberam como os assuntos urgentes, os que pediam um posicionamento. Tais problemas,
como vimos, pareciam girar em torno do percurso que a sociedade baiana – pensada como
parte da sociedade brasileira – havia percorrido até aquele momento; e os caminhos que
poderia seguir dali em diante. Isso no que diz respeito, principalmente, às relações entre as
raças e as classes sociais, ao valor das diferentes culturas e das tradições populares. Nesse
sentido, analisar o romance de maneira a nele perceber as relações com os discursos de uma
época é muito diferente de tratar o contexto como uma mera moldura que, em maior ou menor
grau, pode sugerir algo que facilite a compreensão. Mais que isso, o romance de Jorge Amado
parece ser de fato incompreensível se não visto como um participante vivo do diálogo da
época e das gerações. Nele desaguam as preocupações de um tempo, e em grande medida
também as crenças da classe e do grupo social do autor.
Assim, vimos como o romance avaliava, primeiro, as relações raciais no Brasil,
posicionando-se em favor da “mestiçagem” como o critério de classificação racial e como
solução ideal do conflito social. Debatendo o tema da integração do negro à sociedade
nacional, e do indivíduo afrodescendente à sociedade de classes, percebemos como o romance
avalia positivamente a maneira como a sociedade brasileira tradicionalmente integrou a
população e as pessoas negras ao processo global de competição pelo poder, o prestígio social
e a renda: ou seja, a integração por baldeamento, como dizia Gilberto Freyre. Em outros
termos, a integração social de alguns indivíduos afrodescendentes, mas à custa do seu
“branqueamento”, isto é, da quebra dos vínculos com suas origens negras e populares.
Por outro lado, discutimos como a narrativa parece esboçar um caminho diverso por
meio da figura do seu protagonista. Isso porque com Pedro Archanjo somos levados a pensar
que a vida poderia ser mais criativamente livre, sem qualquer tipo de preconceito ou pretensão
de pureza racial ou cultural. Nesse sentido, Archanjo parece dizer que invenção de um país
poderia se dar pelo aproveitamento de tudo que em todos os povos possa ser interessante.
Além disso, por meio dele o autor parece defender que a “criação cotidiana da beleza e da
vida” no Brasil poderia ocorrer sem o desprezo pela cultura popular negra e mestiça, isto é,
sem aquela supervalorização excludente da cultura chamada “erudita”, de matriz branco-
europeia. Pedro Archanjo sintetiza, portanto, a “filosofia da mistura” de Jorge Amado, a sua
106
Quero dizer que, sem deixar de criticar o que há de problemático em suas imagens,
parece inevitável pensar que poucos escritores entre nós foram tão dispostos a ouvir e a
deixar-se marcar pela variada cadência da linguagem popular, em especial do povo negro e
pobre. Dito de outro modo, poucos escritores esforçaram-se tanto em representar a visão de
mundo popular, em dar voz não somente ao seu palavreado, mas aos seus valores – aliás,
valores estes, é bom lembrar, que nem sempre são os mais progressistas, que nem sempre
seguem as regras da etiqueta ou do “bom tom”. Aqui, portanto, está uma importante
característica do autor: o fato de que, muito antes de querer “melhorar” o povo, Jorge Amado
parece se divertir com a sua fala franca, como ele dizia; também com os seus costumes, por
vezes até com a sua violência. E nessa mistura de simpatia e idealização talvez esteja boa
parte do segredo de sua perene popularidade.
Por essas e outros razões sua obra talvez seja ainda interessante àqueles que pretendem
dedicar-se a uma literatura popular, em qualquer sentido da palavra. Por fim, pobre o país cuja
literatura seja reduzida, por um lado, a tristes retratos da miséria; ou, por outro lado, à
literatura ascética e bem comportada dos literatos em condomínios fechados. E quem quer que
não tenha notado, tal como Jorge Amado, o que existe de risonho na dor, ou o humor de que é
capaz o povo nas situações mais adversas, ainda não caminhou pelo Brasil.
108
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