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Poesia em
Diário
3 de janeiro de 1932
a
10 de dezembro de 1993
• Diário I – 46 • Diário IX – 41
• Diário II – 43 • Diário X – 43
• Diário III – 54 • Diário XI – 40
• Diário IV – 45 • Diário XII – 46
• Diário V – 54 • Diário XIII – 38
• Diário VI – 52 • Diário XIV – 49
• Diário VII – 51 • Diário XV – 35
• Diário VIII – 40 • Diário XVI – 25
(26 anos)
S. Martinho de Anta, 5 de março de 1934 – Como a gente
se perde! A linguagem que o meu sangue entende – é
esta. A comida que o meu estômago deseja – é esta. O
chão que os meus pés sabem pisar – é este. E, contudo, eu
não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se
transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que
morrem se voltam à terra natal.
Diário I
Partida indiciada…
(26 anos)
S. Martinho de Anta, 6 de março de 1934.
(34 anos)
Coimbra, 9 de setembro de 1941.
Correio
Carta de minha Mãe.
Quando já nenhum Proust sabe mais enredos,
A sua letra vem
A tremer-lhe nos dedos.
– «Filho»…
E o que a seguir se lê
É de uma tal pureza e de um tal brilho,
Que até da minha escuridão se vê.
Diário II
Destino
Passa devagarinho
E lá se perde ao fundo,
A seguir o caminho
Que tudo tem no mundo...
Diário II
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Aniversário
Mãe:
Que visita tão pura me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nu e pequeno como me deixaste,
Ia chorar de medo e de abandono.
Então vieste, e outra vez cantaste,
Até que veio o sono.
Diário V
Coimbra, 24 de junho de 1949. (41 anos)
Estiagem Lírica
O Mondego secou.
Outro Camões agora que viesse
Tinha apenas areia
Com que apagar a tinta da epopeia
Que escrevesse.
Pobre da linda Inês já sem ervinhas
Onde pastar a lírica saudade!
Tão verdade
É morrer neste mundo a própria morte...
Nem ao menos a água que bebia!
Vejam que negros fados
Da sorte
E da Poesia…
Diário VI
(44 anos) S. Martinho de Anta, Natal de 1951.
Regresso
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Nirvana
Nascimento
Flor Preservada
Colho, maravilhado,
A flor do teu sorriso;
E tudo à minha volta
Se transfigura:
O céu é um mar azul onde navegam aves;
E as montanhas, suaves
Ondulações
Do grande berço maternal do mundo.
Perturbado,
Confundo
As sensações;
E apenas sei que a vara de condão
É o sol de pétalas que me aquece a mão.
Flor Preservada
(…)
Filha:
Os poetas são loucos.
E poucos
Acreditam
Que a loucura
É o dom do eterno em cada criatura.
Mas neste testemunho comovido,
Neste poema erguido
Sobre a campa das horas
Como um facho de luz inconformada,
Terás, intacta, pela vida fora
A rosa da inocência que és agora.
Diário IX Coimbra, 20 de janeiro de 1963.
(55 anos) Recreio
Chilreio de crianças numa escola.
Brincam no intervalo.
Largam da mão
O Pássaro da Ilusão,
E vão depois, felizes, agarrá-lo.
O mestre aquece os pés ao sol do Inverno.
Já foi também menino...
Mas cresceu,
Aprendeu,
E descobriu as manhas do destino...
Sabe que ele nos engana,
Seja qual for o oiro que nos dê.
O Pássaro da Ilusão
É uma ilusão:
Só a inocência o vê, porque não vê...
Diário X
(57 anos)
Missão
«Deixem passar...»
Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras do íntimo terror.
E cá vou, a passar,
Aterrado e sozinho,
A lembrar
O Santo e Senha com que abri caminho...
Diário XII
(65 anos) Coimbra, 17 de maio de 1973.
Viagem
É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...
Diário XII
(65 anos) Santo António do Zaire, 23 de maio de 1973.
Diogo Cão
De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.
Diário XIV
Estuário
O rio chega à foz.
Cansada, a minha voz
Desagua em silêncio
No grande mar do tempo.
A correr apressada
Desde a nascente,
Numa crescente
Inquietação lustral,
Foi um longo caudal
De solidão Agora, na exaustão da caminhada,
Na infinita extensão Encontra finalmente a paz calada,
Da humana aridez. O eterno repouso da mudez.
Diário XV
(79 anos) Coimbra, 20 de fevereiro de 1987.
Ícaro
(82 anos)
Páscoa
Faleceu em Coimbra
17 de janeiro de 1995