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Miguel Torga

Poesia em

Diário
3 de janeiro de 1932
a
10 de dezembro de 1993

Professora Maria Regina Rocha


Miguel Torga
Adolfo Correia Rocha nasceu em 12 de agosto
de 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de
Sabrosa, distrito de Vila Real, em Trás-os-Montes.

A VIDA DO POETA EM DIÁRIO


A POESIA do DIÁRIO

Faleceu em Coimbra em 17 de janeiro de 1995.


Definição da palavra Diário: relato diário em que o autor
dá livre expressão ao curso do seu pensamento, relatando
acontecimentos e fazendo observações ou reflexões sobre os
mesmos. É comum a presença da componente emocional e
subjetiva, na manifestação de sentimentos, receios, dúvidas
ou ansiedades.
O Diário de Miguel Torga, em 16 volumes, tem início em 3
de janeiro de 1932. A última página tem a data de 10 de
dezembro de 1993.
Dos 24 aos 86 anos de idade, foram mais de 60 anos a
escrever as páginas do seu Diário.
Este Diário constitui o retrato de um homem, de um
escritor e de um tempo.

«Este diário (…) não é uma crónica dos meus dias,


mas a parábola deles.»
Coimbra, 3 de agosto de 1970.
Diário
Diário I: Coimbra, 3 de janeiro de 1932 – Coimbra, 15 de agosto de 1941
Diário II: Coimbra, 3 de set. de 1941 – Palheiros de Mira, 16 de maio de 1943
Diário III: Coimbra, 20 de maio de 1943 – Lavadores, 14 de agosto de 1946
Diário IV: Coimbra, 12 de set. de 1946 – Coimbra, 3 de abril de 1949
Diário V: Coimbra, 7 de abril de 1949 – Coimbra, 10 de fevereiro de 1951
Diário VI: Coimbra, 15 de fevereiro de 1951 – Coimbra, 11 de maio de 1953
Diário VII: Coimbra, 20 de maio de 1953 – Coimbra, 3 de outubro de 1955
Diário VIII: Coimbra, 7 de outubro de 1955 – Coimbra, Natal de 1959
Diário IX: Coimbra, 15 de janeiro de 1960 – Chaves, 20 de setembro de 1963
Diário X: Coimbra, 5 de outubro de 1963 – Coimbra, 30 de julho de 1968
Diário XI: Gerês, 2 de agosto de 1968 – Coimbra, 6 de abril de 1973
Diário XII: Coimbra, 17 de maio de 1973 – Coimbra, 22 de junho de 1977
Diário XIII: Coimbra, 8 de julho de 1977 – Coimbra, 20 de maio de 1982
Diário XIV: Coimbra, 21 de maio de 1982 – Coimbra, 11 de janeiro de 1987
Diário XV: Coimbra, 20 de fev. de 1987 – Coimbra, 31 de dezembro de 1989
Diário XVI: Coimbra, 11 de janeiro de 1990 – Coimbra, 10 de dez. de 1993
Poesia no Diário
702 Poemas
Média de 44 poemas por Diário

• Diário I – 46 • Diário IX – 41
• Diário II – 43 • Diário X – 43
• Diário III – 54 • Diário XI – 40
• Diário IV – 45 • Diário XII – 46
• Diário V – 54 • Diário XIII – 38
• Diário VI – 52 • Diário XIV – 49
• Diário VII – 51 • Diário XV – 35
• Diário VIII – 40 • Diário XVI – 25

Todos os volumes do Diário abrem e fecham


com um poema.
Diário I Coimbra, 3 de janeiro de 1932.
1.ª Página Santo e Senha
(24 anos, Deixem passar quem vai na sua estrada.
estudante Deixem passar
de Medicina, Quem vai cheio de noite e de luar.
em Coimbra) Deixem passar e não lhe digam nada.
Deixem, que vai apenas
Beber água de Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.
Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora
Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão.
Santo, Senha e Contra-Senha
(vocabulário do domínio militar)

Santo – palavra ou conjunto de palavras adotadas e transmi-


tidas em cada dia pelo comandante da guarnição, para
permitir o reconhecimento de indivíduos isolados
incumbidos de uma qualquer missão.

santo – nome de santo ou de pessoa As três palavras


senha – nome de cidade ou de batalha devem começar
contra-senha – nome de objeto ou de arma pela mesma letra.

O indivíduo a reconhecer diz o santo, o comandante do posto


responde com a senha e pode exigir contra-senha. O santo, a senha
e a contra-senha são fornecidos diariamente pelo comando e podem
ser substituídos no próprio dia, se necessário.
Diário I
Partida indiciada…
(26 anos)
Concluído o curso de Medicina, regressa a S. Martinho de
Anta e começa a exercer como médico, mas…
S. Martinho de Anta, 3 de março de 1934 – Aqui estou
enterrado em montes até às orelhas, a receitar xaropes e
a ler o Comércio do cabeçalho ao derradeiro anúncio.
«Pela cidade»… E vêm-me umas saudades dos elétricos,
das livrarias e do Joaquim António de Aguiar dentro da
casaca de bronze à Portagem, que até estas pedras
bravias se comovem. Já nem o negrilho posso ver! Ou
saio daqui para um sítio onde haja ao menos um cinema,
ou esta minha raiz, que mesmo do cabo do mundo bebeu
sempre neste chão, seca como um canoco.
Diário I
Partida indiciada…

(26 anos)
S. Martinho de Anta, 5 de março de 1934 – Como a gente
se perde! A linguagem que o meu sangue entende – é
esta. A comida que o meu estômago deseja – é esta. O
chão que os meus pés sabem pisar – é este. E, contudo, eu
não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se
transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que
morrem se voltam à terra natal.
Diário I
Partida indiciada…
(26 anos)
S. Martinho de Anta, 6 de março de 1934.

Hirtos, os montes velam


O cadáver gelado do meu sonho.
Num desespero íntimo, contido,
Que seca na raiz toda a verdura,
Velam seu corpo astral, caído
Numa vala sem fundo de amargura.
(27, 28 anos, a exercer Medicina em Vila Nova, concelho de
Miranda do Corvo, distrito de Coimbra)
Diário I
Vila Nova, 10 de fevereiro de 1935 – Não posso. Passar
a vida assim, a jogar a bisca com o prior, a levantar-me
às tantas da madrugada para ir ver um doente ao
Gandramás, a ouvir e a contar histórias de caça o resto
do tempo, valha eu o que valer, é um destino que não
mereço.
Vila Nova, 1 de novembro de 1935 – Depois de dias
como o de hoje tenho a sensação do vazio absoluto. Os
amigos têm que fazer, os doentes têm que morrer, os
livros parecem múmias, e a noite nem sequer traz
sono. Louvados sejam o barulho e as facadas da
Central!
Diário I Coimbra, 6 de fevereiro de 1936.

(28 anos, Brinquedo


ainda em Foi um sonho que eu tive:
Vila Nova) Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela


Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu


Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.
Diário I (31 anos)
Em casa de Vitorino Nemésio, no
Em Coimbra Tovim, conhece Andrée Crabbé, uma
jovem estudante belga, que frequentava o
Curso de Férias na Faculdade de Letras.

Coimbra, Tovim, 3 de setembro de 1938.


Idílio
Lírica, a tarde cai
Com secura nas folhas;
Lírica, a minha vista vai
A olhar o que tu olhas…
Oliveiras de sonho (32 anos)
A ver nascer a lua… Casa em 27 de julho de 1940 com
Liricamente ponho Andrée Crabbé. Depois de viverem
algum tempo em Leiria, tomam a
A minha mão na tua. decisão de se instalar em Coimbra.
Diário II

(34 anos)
Coimbra, 9 de setembro de 1941.

Correio
Carta de minha Mãe.
Quando já nenhum Proust sabe mais enredos,
A sua letra vem
A tremer-lhe nos dedos.

– «Filho»…
E o que a seguir se lê
É de uma tal pureza e de um tal brilho,
Que até da minha escuridão se vê.
Diário II

(34 anos) Coimbra, 27 de janeiro de 1942.

Destino

Vai um barco no rio.


É uma vela enfunada
Desta manhã de frio
E desta luz cansada.

Passa devagarinho
E lá se perde ao fundo,
A seguir o caminho
Que tudo tem no mundo...
Diário II

(35 anos) Coimbra, 2 de janeiro de 1943.


Certeza
Sereno, o parque espera.
Mostra os braços cortados,
E sonha a primavera
Com seus olhos gelados.
É um mundo que há-de vir
Naquela fé dormente;
Um sonho que há-de abrir
Em ninhos e semente.
Basta que um novo sol
Desça do velho céu,
E diga ao rouxinol
Que a vida não morreu.
Diário III
(38 anos) Évora, 1 de abril de 1946.
Canção a Évora

Évora que não és minha


E que eu gostava de ter:
Moira cativa e rainha,
Que não pude converter!

Não tenho nas minhas veias


Tenho montes,
Nem o templo de Diana,
Vinho maduro e granito,
Nem a praça de Geraldo,
E esta certeza de ser
Nem a brancura redonda
Filho de Cristo e de Judas.
Da água das tuas fontes…
Ah! Se eu pudesse mudar,
Já que tu, moira, não mudas!
Diário IV
(40 anos) S. Martinho de Anta, 1 de junho de 1948.

Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa


Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Abre os olhos ao menos, diz que sim!


Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Diário IV

(41 anos) Gerês, 12 de agosto de 1948.

Aniversário

Mãe:
Que visita tão pura me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nu e pequeno como me deixaste,
Ia chorar de medo e de abandono.
Então vieste, e outra vez cantaste,
Até que veio o sono.
Diário V
Coimbra, 24 de junho de 1949. (41 anos)

Estiagem Lírica
O Mondego secou.
Outro Camões agora que viesse
Tinha apenas areia
Com que apagar a tinta da epopeia
Que escrevesse.
Pobre da linda Inês já sem ervinhas
Onde pastar a lírica saudade!
Tão verdade
É morrer neste mundo a própria morte...
Nem ao menos a água que bebia!
Vejam que negros fados
Da sorte
E da Poesia…
Diário VI
(44 anos) S. Martinho de Anta, Natal de 1951.
Regresso
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.

Depois o céu abriu-se num sorriso,


E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
Diário VII
(45 anos) Gerês, 1 de agosto de 1953.

Nirvana

Paz das montanhas, meu alívio certo.


O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo, sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.
Diário VII
(48 anos) Coimbra, 3 de outubro de 1955.

Nascimento

Nascem os homens como deuses pobres:


Nus e de um ventre que desesperou
De os guardar
Sagrados e secretos no seu lago.
Nascem disformes, sem nenhum afago
Da raiva desabrida que os expulsa
E das mãos aterradas que os recebem.
Bebem
O ar do mundo aos gritos.
Olham sem ver, e são
Surdos e transitórios mitos
Da nossa devoção.
Diário VIII
(51 anos) Coimbra, 16 de outubro de 1958.

Flor Preservada
Colho, maravilhado,
A flor do teu sorriso;
E tudo à minha volta
Se transfigura:
O céu é um mar azul onde navegam aves;
E as montanhas, suaves
Ondulações
Do grande berço maternal do mundo.
Perturbado,
Confundo
As sensações;
E apenas sei que a vara de condão
É o sol de pétalas que me aquece a mão.
Flor Preservada

(…)

Filha:
Os poetas são loucos.
E poucos
Acreditam
Que a loucura
É o dom do eterno em cada criatura.
Mas neste testemunho comovido,
Neste poema erguido
Sobre a campa das horas
Como um facho de luz inconformada,
Terás, intacta, pela vida fora
A rosa da inocência que és agora.
Diário IX Coimbra, 20 de janeiro de 1963.
(55 anos) Recreio
Chilreio de crianças numa escola.
Brincam no intervalo.
Largam da mão
O Pássaro da Ilusão,
E vão depois, felizes, agarrá-lo.
O mestre aquece os pés ao sol do Inverno.
Já foi também menino...
Mas cresceu,
Aprendeu,
E descobriu as manhas do destino...
Sabe que ele nos engana,
Seja qual for o oiro que nos dê.
O Pássaro da Ilusão
É uma ilusão:
Só a inocência o vê, porque não vê...
Diário X

(57 anos)

Coimbra, 8 de julho de 1965 – Exame da quarta classe da


filha, que compartilhei do fundo da sala com o coração em
ânsias. Nunca cuidei que nesta idade ainda soubesse
papaguear tão corretamente os verbos, dividir tão
salomonicamente as orações, falar tão sabiamente dos
Descobrimentos. Só me faltavam os sapatos apertados.
Diário X
(59 anos) S. Martinho de Anta, 24 de dezembro de 1966.
Natal
Leio o teu nome
Na página da noite:
Menino Deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
De ser Deus e menino.
Em Deus não acredito.
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.
Diário XI
(65 anos) Coimbra, 6 de abril de 1973.

Missão
«Deixem passar...»
Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras do íntimo terror.
E cá vou, a passar,
Aterrado e sozinho,
A lembrar
O Santo e Senha com que abri caminho...
Diário XII
(65 anos) Coimbra, 17 de maio de 1973.
Viagem
É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...
Diário XII
(65 anos) Santo António do Zaire, 23 de maio de 1973.

Diogo Cão

A pura glória tem


A humilde singeleza do teu nome.
E cresce eternamente,
Como um caule imortal,
No fuste do padrão
Que a tua inquietação
Ergueu
Nestes confins do mundo onde chegou.
Limpo brasão de quem só descobriu
E nada conquistou.
Diário XII
(65 anos)
A voar para Moçambique, 1 de junho de 1973 – Tenho de me
render à evidência: o homem que voa dimensiona o mundo de outra
maneira. Que perspetiva poderia eu levar da imensidão africana, a
calcorreá-la a passo de caranguejo? A vida inteira não chegaria para
traçar nela meia dúzia de coordenadas. Assim, de um só relance,
abranjo a infinita grandeza deste corpo febril e sonolento, ao
mesmo tempo despido e inviolado. Corpo onde altas serras e
cordilheiras infindáveis são rugas insignificantes, e rios
intermináveis e caudalosos parecem veias exangues. Até o absurdo
de eu o espreitar de mil metros de altura, comodamente instalado
numa cadeira e a respirar ar condicionado, torna mais significativa
a minha observação. Vou comparando duas realidades: aquela a que
pertenço, já quase angélica de tão abstrata, e a que leveda lá em
baixo, ao rés-do-chão, concreta, terrosa, ainda larvar.
Diário XII
(66 anos)

Coimbra, 25 de abril de 1974 – Golpe militar. Assim eu


acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os
últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos
prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e
asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem
poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é
um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada…
Diário XIII Coimbra, 15 de fevereiro de 1981.
(73 anos) Depoimento

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.
Diário XIV

(76 anos) Coimbra, 1 de novembro de 1983.


Memória

De todos os cilícios, um, apenas,


Me foi grato sofrer:
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr,
Serenas,
As águas do Mondego.
Diário XIV
(79 anos) Coimbra, 11 de janeiro de 1987.

Estuário
O rio chega à foz.
Cansada, a minha voz
Desagua em silêncio
No grande mar do tempo.
A correr apressada
Desde a nascente,
Numa crescente
Inquietação lustral,
Foi um longo caudal
De solidão Agora, na exaustão da caminhada,
Na infinita extensão Encontra finalmente a paz calada,
Da humana aridez. O eterno repouso da mudez.
Diário XV
(79 anos) Coimbra, 20 de fevereiro de 1987.

Ícaro

Minhas asas humanas de poeta!


Derreteu-as o sol da lucidez.
Cego, abria-as ao vento
Da inspiração
E voava. Agora canto apenas
Mas pouco a pouco, Ao rés-do-chão da vida,
Como quem desperta, A olhar o descampado
Dei conta da cegueira. Do céu azul
E fui perdendo altura. Aberto à graça doutras emoções.
E o canto é triste assim desiludido.
Falta-lhe a perspetiva e o sentido
Que tinha quando eu tinha as ilusões.
Diário XVI

(82 anos)

Coimbra, 29 de maio de 1990 – Horas infindas fechado no


consultório a fazer contas à vida. A medir a frequência e o ritmo
das pulsações cardíacas, à espera que este meu velho relógio sem
corda sossegue ou pare de vez. É aqui que eu tenho esperança de
fechar os olhos, sozinho, sem despedidas dilacerantes, com os
olhos cheios da policromia do largo ajardinado fronteiriço, da
frescura líquida do rio remansoso e do aceno dos horizontes
alargados pela imaginação durante meio século ao mundo
inteiro. S. Martinho foi o lugar de onde. Coimbra o centro desse
mundo misterioso e apaixonante que de lá perspetivei.
Diário XVI
(83 anos)
Gaia, 30 de março de 1991.

Páscoa

Um dia de poemas na lembrança


(Também meus)
Que o passado inspirou. Ah, quem pudera
A natureza inteira a florir Ser de novo
No mais prosaico verso. Um dos felizes
Foguetes e folares, Desta aleluia!
Sinos a repicar, Sentir no corpo a ressurreição.
E a carícia lasciva e paternal O coração,
Do sol progenitor Milagre do milagre da energia,
Da primavera. A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.
Diário XVI Requiem por mim
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
(86 anos) Ruína humana.
Inválido do corpo
Coimbra, E tolhido da alma.
10 de dezembro de 1993. Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Miguel Torga
Adolfo Correia da Rocha

Faleceu em Coimbra
17 de janeiro de 1995

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