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POPULAR
Introdução
Um dos aspectos mais interessantes e característicos da poesia po-
pular é a referência à oralidade, presente mesmo nos textos escritos.
Como você deve saber, a cultura popular é assim definida em rela-
ção a uma cultura erudita. Em geral, a ideia de “povo” está associada
a uma cultura iletrada ou que não domina plenamente os códigos
linguísticos da norma culta. Historicamente, essa distinção entre po-
pular e erudito a partir da oposição entre oral e escrito levou a uma
valorização da segunda forma com a mais nobre e complexa. Neste
texto, você vai aprender que a oralidade está na origem de toda
forma de literatura e, ainda hoje, mesmo em culturas plenamente
letradas, tem presença marcante.
Por que essa descoberta é revolucionária? Porque o fato de obras tão va-
lorizadas nos círculos literários (nos quais a escrita era soberana) terem uma
origem oral eleva a importância de uma literatura de transmissão oral. Além
disso, indica uma relação estreita entre a oralidade e a literatura erudita e
escrita, diferentemente do que se pensava até então.
Oralidade e performance
Quando você reflete sobre a literatura oral, precisa destacar dois aspectos
– de um lado, a materialização de uma voz e de um corpo que comunicam;
de outro, a presença e a intervenção do ouvinte no momento em que o
texto se constitui.
Se você pensar no processo de produção de um texto cuja origem e divul-
gação se deem na escrita, vai perceber que seu autor produz segundo cara-
terísticas e modelos que considera adequados ao fim daquela obra. Ele tem
em vista um público leitor a quem dirige seu texto. Trata-se de um trabalho
individual e solitário.
A realização plena desse texto se dá no momento em que é recebido pelo
leitor e, efetivamente, lido. Ainda que tenha interpretações diversas e sentidos
que podem se ampliar, o mesmo texto escrito pode ser lido diversas vezes,
pelo mesmo leitor e/ou por vários leitores, que irão se deparar sempre com a
mesma sequência linguística.
Um texto oral se constrói na presença do ouvinte, leva em conta as reações
deste e, ainda, incita-o a participar do processo composicional. Na oralidade,
esse processo constitui um momento único, irrepetível. É impossível replicar
aquele mesmo instante comunicativo do mesmo modo.
Conto 1
Uma formiga prendeu o pé na neve.
“Ó neve, tu és tão forte que o meu pé prendes!”
Responde a neve: “Tão forte sou eu que o Sol me derrete”.
“Ó Sol, tu és tão forte que derretes a neve que o meu pé prende!”
Responde o Sol: “Tão forte sou eu que a parede me impede”. [...]
“Ó carniceiro, tu és tão forte que matas o boi, que bebe a água,
que apaga o lume, que queima o pau, que bate no cão, que mor-
de o gato, que come o rato, que fura a parede, que impede o Sol,
que derrete a neve que o meu pé prende!”
Responde o carniceiro: “Tão forte sou eu que a morte me leva”.
Conto 2
Uma vez uma formiga foi ao campo e ficou presa num pouco de
neve. Então ela disse à neve: “Oh, neve, tu és tão valente que meu
pé prendes?” A neve respondeu: “Eu sou valente, mas o sol me
derrete”. Ela foi ao sol e disse: “Oh sol, tu és tão forte que derretes
a neve, a neve que meu pé prende?” O sol respondeu: “Eu sou
valente, mas a nuvem me esconde”. [...]
Vai ao homem: “Oh, homem, tu és tão valente que matas a onça,
que devora o cachorro, que bate no gato, que come o rato, que
fura a parede, que para o vento, que desmancha a nuvem, que
esconde o sol, que derrete a neve que meu pé prende?” – “Eu
sou valente, mas Deus me acaba. Foi a Deus: “Oh, Deus, tu que és
tão valente que acabas o homem, que mata a onça, que devora
o cachorro, que bate no gato, que come o rato, que fura a pare-
de, que para o vento, que desmancha a nuvem, que esconde o
sol, que derrete a neve que meu pé prende?” Deus respondeu:
“Formiga, vai furtar”. Por isso é que a formiga vive sempre ativa
e furtando.
Mesmo sendo textos narrativos, você pode perceber neles certo ritmo, dado tanto
pelas repetições quanto pelas rimas (“tu és tão valente que meu pé prendes?”).
O primeiro conto foi coletado em Portugal. O segundo, no Brasil. Isso
exemplifica a circularidade e a persistência da literatura popular, que vai se
transformando e se adaptando ao longo do tempo e conforme a região.
Entre ambos os contos, você pode notar certas regularidades e, também,
diferenças. O conto 2 tem um final um pouco diferente, inclusive com a expli-
cação sobre o motivo de a formiga estar sempre andando e carregando coisas.
Muito provavelmente, podemos atribuir essas diferenças às adaptações
feitas pelos contadores das histórias, que levam em consideração o público a
quem se dirigem e os hábitos do lugar. No conto português, há uma referência
ao “carniceiro”, ou açougueiro, termo pouco usado no Brasil. Na versão bra-
sileira, temos a “onça” como elemento regional.
Como você pode constatar, a oralidade requer certa reprodução de formas
fixas (como a sequência previsível nos contos), mas também envolve a memória,
que adapta e recria essas formas, de modo a encantar e conquistar os ouvintes.
O cavaleiro Roldão
Religiosa e composta
Das belezas corporais
Cheia de mil perfeições
Dos dons espirituais
E por isso o seu irmão
Gostava dela demais
Na literatura de tradição oral, como você leu há pouco, o modo de contar é tão
significativo quanto aquilo que é dito. Talvez por isso não nos importemos de ouvir a
mesma história contada mais de uma vez. A performance é o que garante que a expe-
riência seja única.
As três lebres
Havia n’outros tempos um rei que tinha uma filha, que dizia que
só casaria com o homem que fosse capaz de inventar uma adi-
vinhação que ela não adivinhasse. Correram ao palácio muitos
príncipes e fidalgos, mas todos se foram sem que as suas adivi-
nhações ficassem por adivinhar. Foi-se passando muito tempo e
estas notícias corriam por muitas partes, até que chegaram aos
ouvidos de certo aldeão muito esperto e ele ao saber isto dispôs-
-se logo a partir para o palácio, sem saber ainda o que havia de
perguntar à princesa. Montou a cavalo, sem mais bagagem do
que o seu livro de orações, e sem farnel de qualidade alguma.
Durante o caminho teve fome, e sede, mas não havia ali em tal
descampado nem comer, nem água; então o aldeão, olhando, viu
morto no chão um coelho, tomou-o, e depois de o esfolar, fez
uma fogueira do seu livro de orações, assou o coelho, e comeu-o.
A sede era, porém, cada vez maior; ele então fez correr muito o
cavalo até que o suor lhe caía em bica; apanhou-o no seu chapéu
e bebeu-o, e depois continuou a sua viagem. Chegado ao palácio
viu muitos fidalgos, que perguntavam adivinhações, à princesa,
e ela tudo adivinhava. Então ele depois de todos terem falado
levantou-se e disse:
“Comi carne sem ser caçada
Em palavras de Deus assada;
Bebi água que não foi do céu caída,
Nem também na terra nascida.
Adivinhai agora, princesa, se de tanto sois capaz.”
Então a princesa disse que pedia três dias para adivinhar, pois era
esta a que maiores voltas lhe havia fazer dar à cabeça. Ficou o
aldeão no palácio à espera que a princesa adivinhasse; mas logo
ao primeiro dia se foi ter com ele uma aia da princesa que lhe
disse: “Explicai-me o que hoje perguntaste à princesa, e fazer-
-vos-hei tudo que me pedirdes.” Respondeu o aldeão: “Explicar-
-vos-ei tudo d’aqui a três dias, se me deixardes ficar esta noite no
vosso quarto.” Disse logo a aia que sim, e fez uma cama no chão
para o aldeão dormir n’ela. Deitou-se o aldeão, e a aia julgando
que ele já dormia, deitou-se também; mas logo que viu que ela
estava deitada, tirou-lhe uma saia que ela tinha despida, e saiu
do quarto. No dia seguinte foi ter com ele outra aia da prince-
sa, a quem sucedeu o mesmo que à primeira. Finalmente, sem
saber o que tinha sucedido às aias, foi a princesa ao terceiro dia
ter com o aldeão, e ele disse-lhe também o mesmo que tinha
dito às aias; mas em vez de tirar uma saia à princesa tirou-lhe o
seu chambre de dormir que era de finas rendas. No quarto dia,
logo de manhã, foi o aldeão explicar a adivinhação às aias e à
princesa; e à hora em que a corte estava toda reunida para ou-
virem, a princesa respondeu logo: “A carne sem ser caçada, em
palavras de Deus assada, era um coelho que encontraste morto
no caminho, e que assaste no teu livro das orações. A água sem
ser da terra nascida, nem do céu caída, era o suor do teu cavalo.”
“É verdade, disse o aldeão.” Então o rei, levantando-se, ordenou
ao aldeão que se fosse para a sua terra pois nada tinha a esperar.
Mas ele disse logo. “Já que a princesa é tão inteligente, peço-lhe
que adivinhe agora esta:
Nesse conto, o número três se repete – três lebres, três dias, três encontros,
três mulheres. Você também deve ter notado a linguagem cifrada das adivi-
nhas, que são consideradas estruturas formulares. Há, ainda, certa repetição
e regularidade – vários pretendentes, várias adivinhações, o mesmo resultado;
descrição das três noites, os pedidos das mulheres, a mesma resposta do aldeão.
Quanto à linguagem, além das rimas nas adivinhas, a narrativa apresenta
algumas repetições e aliterações: “inventar uma adivinhação que ela não adi-
vinhasse”; “todos se foram sem que as suas adivinhações ficassem por adi-
vinhar”; “perguntavam adivinhações, à princesa, e ela tudo adivinhava”; “as
saias das aias”; “Basta, basta”.
Leituras recomendadas
FERNANDES, F. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo: UNESP, 2007.