Você está na página 1de 7

in Revista de Língua Portuguesa, nº 9, Julho, 1993, pp. 63-69.

Os Géneros da Literatura Oral Tradicional:


Contributo para a sua Classificação

'-iiiiii'ia/ loão David Pinto Correia

A designação «Literatura Popular»


corresponde a um conceito dema-
siado amplo e ambíguo que, por
isso mesmo, tem sido contestado
por muitos estudiosos. Durante muito
tempo, e desde Garrett, Teófilo Braga, Leite
de Vasconcellos, foi aceita como oportuna,
tanto mais que apontava para um conjunto pelo menos quatro subsectores de compo-
de práticas heterogéneas cuja incontestável sições: 1 -as de êxito efémero junto das
natureza comum era a sua manifestação lin- populações (uma canção de grande voga,
guística, o qual se situava no âmbito mais proposta por um intérprete de grande
englobante das práticas da Cultura Popu- sucesso) ou seja a literatura popular não
lar. Ainda nos nossos dias , defende-a tradicional; 2 - as propostas por autores
Manuel Viegas Guerreiro que a considera da Literatura-Instituição, com aproveita-
como o conjunto de textos que «circulam mento de estruturas e linguagem próprias
entre o Povo». A esta designação têm da «poética» dos géneros da Literatura Tra-
outros preferido «Literatura Étnica>> (A. ]. dicional (Festa Redonda, de Vitorino Nemé-
Greimas), ((Literatura Folclórica» (M. Pop) sio, ou Quadras ao Gosto Popular, de Fer-
ou simplesmente «Literatura Tradicionab nando Pessoa) ou literatura popularizante
(Menéndez Pidal e Lindley Cintra), embora (para utilizar a designação sugerida por ].
tenhamos de reconhecer que, se formos de Almeida Pavão); 3 - as produzidas por
fiéis aos significados estritos dos respecti- um dos representantes do Povo (Este Livro
vos qualificativos, nenhuma das alternati- que vos Deixo, de António Aleixo, ou Nas
vas coincida com o que ela se propõe Ondas do Mar Salgado, de Manuel Pardal)
abranger. ou literatura popular tradicionalista,· e
Já noutra ocasião reconhecemos que esta 4 - , finalmente, as aceites e transmitidas
Literatura Popular, no seu carácter mais ao longo dos tempos, património cultural,
vasto, poderia significar o conjunto de prá- colectivo e anónimo, que chamaríamos lite-
ticas linguístico-discursivas que abrangeria ratura popular tradicional.

• Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa e U.C.E.H. , Universidade do Algarve. 63


Deste panorama sobressai que só os dois Beltrão», com a sua quase centena de ver-
últimos subconjuntos nos interessam mais sões, ou o «conto», para o qual apontamos
particularmente: são eles que mais estreita- como exemplo «A Gata Borralheira» -,
mente se encontram ligados à vida do Povo podemos muito rapidamente esboçar um
- tomado este no sentido de «estratos cotejo quanto a características desse con-
populacionais da comunidade nacional mais junto maior de composições da Literatura
desfavorecidos do ponto de vista da eco- Popular em comparação com as da
nomia e da instrução, e de certo modo Literatura-Instituição.
cúmplices de uma condição rural» -, e, Em primeiro lugar, a Literatura-Institui-
acrescentemos, que garantem a desejável ção pressupõe sempre o texto na sua mani-
consecução poética da exemplaridade que festação escrita, enquanto o conjunto de
efectivamente articula e orienta o conteúdo composições de que estamos a tratar cen-
e a expressão dos textos propostos. tra o seu interesse na realização oral do
Defendemos, portanto, que duas verten- texto, aceitando apenas o registo escrito (ou
tes únicas terão de ser consideradas na Lite- sonoro, em cassete audio ou vídeo) como
ratura Popular: a tradicionalista, que assim um meio para garantir a memória da per-
propomos seja chamada, porque, indepen- formance passada.
dentemente de constituir «produção de Enquanto a Literatura dos ditos clássicos
autor», bem individualizada e mesmo auten- ou tão-só bons escritores se apresenta pre-
ticada (e, neste aspecto, muito tem de ferencialmente num texto único e fixo (se
comum com a Literatura-Instituição), recebe não houver uma só versão, proposto pelo
elementos de sentido ligados à Tradição respectivo autor ou pelos sucessivos edito-
(crítica social, alusão à experiência pessoal, res, será sempre necessário decidir-se por
etc.) e de realização expressiva (preferên- um texto definitivo, que será sempre o da
cia pelas quadras ou pelas décimas), e a tra- chamada edição crítica), a Literatura Oral
dicional, que, no seu anonimato, se pro- Tradicional vive justamente na da própria
duz continuadamente como composição variedade, com as versões e as variantes,
«colectiva», beneficiando da sua transmis- não só as sincrónicas, como também as de
são, e se torna presente nos vários momen- carácter diacrónico. E, em vez de autenti-
tos da experiência histórica e circunstan- cada e individualizada com a chancela do
cial do seu verdadeiro detentor, isto é, o nome de autor, essa Literatura Oral Tradi-
próprio Povo. Acrescentemos que qualquer cional constitui resultado anónimo da par-
destas vertentes pode transmitir-se pela ora- ticipação colectiva na própria transmissão
lidade e pela escrita. (o que, noutros estudos, temos chamado
Só a literatura popular tradicional nos c<produ-transmissão»), o que não quer dizer
interessa considerar no limite destas pági- que seja de autoria colectiva. Na verdade,
nas. Mais: tomaremos apenas como objecto houve suieito produtor no início do pro-
da nossa proposta de classificação a litera- cesso que antecedeu a aceitação e trans-
tura tradicional oral, ficando para outra missão do texto por parte da comunidade,
ocasião ocuparmo-rios da literatura tradi- mas esse quase sempre perdeu a sua iden-
cional escrita, vasto sector também, que tidade.
exige ser caracterizado e rigorosamente A realização discursiva do texto oral tra-
classificado, sobretudo porque se encontra dicional é quase sempre de natureza con-
por demais confundido (apesar de para tal' vergentemente múltipla, não rejeitando,
haver muito boas razões) com a parte mais como faz a chamada Literatura, a fusão com
abundante da chamada literatura de cordel. o discurso linguístico de outros, como o
gestual, o musical, o icónico. Neste aspecto,
2. Antes de mais, e pensando concreta- o texto literário é exclusivamente lin-
mente num género da Literatura Oral Tra- guístico.
dicional - que bem pode ser o «romance Outro carácter específico do texto oral

64 tradicional», mais especificamente num dos


seus textos, por exemplo, a «Morte de D.
tradicional é apresentar-se como prática de
extracontexto complexo - o que quer
((JFl[tõJ LITERATURA POPULAR I LITERATURA ORAL

dizer que sempre se articula com momen- através de meios estilísticos, poéticos e
tos muito variados da vida de trabalho, de retóricos, e que bem pode ser considerada
actividade ou de lazer da comunidade - : como profusão bem distribuída de meios
lembremo-nos de que um romance pode adequados com efeitos difusos de sentido.
ser cantado ou recitado numa «Segada» ou Estas são, por comparação com as da
num serão, de que uma «benzedura» Literatura-Instituição, as características que
integrar-se-á em determinados momentos da julgamos mais importantes para o corpus
vivência dos agentes. Não exige, como o de composições que cons tituem a Litera-
literário, situações de plena entrega à acti- tura Oral Tradicional. Todas elas se ade-
vidade de contacto, como a leitura ou a quam aos textos que, de seguida, procura-
recitação. remos arrumar e classificar por géneros.
Quanto à realização de expressão e con-
teúdo das versões dos vários textos, apon-
taríamos, como grandes diferenças das 3. Na classificação dos géneros da Litera-
manifestações da Literatura Oral Tradicio- tura Oral Tradicional, julgamos pertinente
nal, em confronto com as da «grande» Lite- propor uma divisão em macroconjuntos,
ratura, a economia de meios expressivos segundo as naturezas lírica, narrativo-
e a condensação, senão mesmo a elemen- -dramática e meramente dramática das com-
taridade, do seu conteúdo. No que respeita posições. Cada um desses macroconjuntos
ao primeiro aspecto, sabemos como os tex- aponta para um específico conteúdo e res-
tos tradicionais orais evitam a componente pectiva expressão: o primeiro diz respeito
descritiva, centrando-se na acção e no diá- ao sentimento, ao afecto, à confessionali-
logo, privilegiando categorias morfológicas dade ou mesmo a práticas que muito têm
tais como o substantivo e o verbo. O que a ver com as crenças e superstições; o
chamamos aqui «economia» vai consagrar, segundo, que engloba também os textos
por exemplo no romanceiro, subtis estra- derivados do género épico, abrange as com-
tégias de funcionamento do explícito com posições, quer em verso, quer em prosa,
o implícito, o que exige participação «ima- que assentam na componente discursiva
ginativa» do receptor ou, então, como con- que é a narração, e que têm, como ele-
sequência do que acabamos de dizer, a pura mento diminuto ou principal, o diálogo,
e simples dispensa de didascálias para apre- contado com muito pouca descrição; o ter-
sentação de quem vai tomar a iniciativa do ceiro integra as manifestações do género
diálogo; e ainda as fundamentais expressões dramático, isto é, desde os grandes «autos»
e estruturas formulísticas que marcam no aos «pequenos diálogos».
enunciado facilitações do circuito interlo- É evidente que, para cada um desses
cutivo, permitindo sobretudo ao transmis- macroconjuntos, temos de considerar duas
sor momentos de relançamento da mensa- vertentes: a religiosa e a profana. Ambas
gem («palavras não eram ditaS>>, «de calçada se fazem sentir ao longo dos géneros aqui
em calçada>>, «À entrada duma vila, à saída considerados, mais nuns que noutros. Fre-
dum lugar», etc.). quentemente, as composições de um
No que respeita ao conteúdo, temos de género profano testemunham a intenção de
salientar a condensação semântica das os seus assuntos serem aproveitados a lo
situações e dos respectivos agentes, bem divino.
como das categorias espaço e tempo, o
que, ligado à sua elementaridade, lhes con- 3.1.Começaremos pelas composições de
fere um forte alcance simbólico (pensemos carácter lírico. Dizem respeito à autêntica
em contos como A Gata Borralheira ou experiência da vida do Povo, na qual o sen-
O Capuchinho Vermelho). Estamos longe, timento ou a crença se revela como o
da táctica de atingir a profunda espessura suplemento principal da vivência quoti-
de significação que o texto literário diana. São quase sempre em verso, 6~
emprega, táctica esta que consiste, afinal, podendo, no entanto, em certos casos, ,
numa disseminação semântica conseguida como nas «benzeduras», se manifestarem (41.;
em prosa. Nessas compos1çoes, distingui- pedra no sapato», ((ser amigo de Peni-
remos três subconjuntos: che», etc.
-em primeiro lugar, o das práticas de c) as práticas de intenção meramente
carácter prático-utilitário, em que utilitária: encontram-se representadas
evidenciaremos: no nosso corpus sobretudo pelos:
a) as práticas de intenção mágica e -pregões: hoje quase desaparecidos
religiosa: principalmente na sua vertente can-
tada, foram importantes suportes poé-
- rezas e orações paralelas (em relação ticos para algumas actividades mercan-
às oficiais, da Igreja): por exemplo, o tis («Quem quer figos, quem quer
«Padre Nosso Pequenino», «Oração ao almoçar>>);
Levantar» ou «Oração ao Deitar>>, qual-
quer uma delas com motivos densos -em segundo lugar, as composições de
de carácter simbólico. carácter lúdico, isto é, aquelas que se
destinam a acompanhar momentos
- ensalmos, benzeduras, exorcismos: predominantemente recreativos ou
nestas composições, com suas estru- vertentes de lazer que sejam comple-
turas e registos linguísticos muito pró- mentares de actividades, mesmo que
prios (invocações, séries enumerativas, elas sejam de trabalho:
esboços narrativos), pretendem os
seus utentes actuar sobre a realidade , a) rimas infantis: trata-se de um ccvasto
com base no poder da palavra. continente», para aproveitar a expres-
são de uma-das estudiosas deste domí-
- cantigas de embalar/ de ninar/ de
nio, no qual podemos enumerar:
berço: a palavra aliada à melodia torna
possível o adormecimento do bebé - - fórmulas encantatórías: constituem as
são quadras que quase sempre têm a representantes de uma quase intenção
ver com o elogio do próprio destina- mágica sobre a realidade; são muitos
tário («menino de ouro>>), com uma os exemplos: «Joaninha avoa, avoa, teu
alegada afugentação do <cpapão» ou pai vai para Lisboa»; «Poisa, poisa,
ainda com a situação religiosa de a Maria Loisa, que amanhã dou-te uma
criança se identificar com o próprio coisa»
Jesus. - lengalengas: composições poéticas
que se estruturam fundamentalmente
b) as práticas de sabedoria: acrescente- numa sintaxe de encadeamento sobre-
mos que também se visam objectivos tudo copulativo e, de modo secundá-
prático-utilitários - são pequenas, mas rio, relativo: ccAmanhã é domingo/ Pé
densas mensagens em que se registam de cachimbo/ Galo monteiro/ Pisou na
seculares conclusões de conhecimento areia,/ A areia é fina/ Que deu no sino,/
teórico sobre a existência ou, mais O sino é de prata,/ Que deu na barata,
concretamente, indicações de carácter etc. >>;
meteorológico. Nelas, integraremos:
- anfiguris: julgamos que representam
-provérbios, sentenças, máximas, etc., prolongamentos das «fatrasias» de ori-
isto é, todas as manifestações da pare.- gem medieval: «Era não era/ Andava
miologia (incidem na vida de todos na serra./ Era seu pai nado,/ Sua mãe
os dias); por nascer./ Ora o pobre do homem/
- ditos/ expressões estereotipadas: na O que lh'havia de acontecer, etc.»
vida quotidiana dos portugueses, mui- - trava-línguas: apesar de os arrumar-
tos destes ditos e expressões, com mos nesta grande categoria das ((com-
muito de metafórico, constituem patri- posições lúdicas», estamos em crer que

66 mónio comum de uso frequente:


<<andava numa fona», «estar com uma
funcionam como importantes práticas
pedagógicas para a capacidade linguís-
/0FOCO/ LITERATURA POPULAR I LITERATURA ORAL _________........_._ _ _ _ _ _ __, f9!1!ffJ

tica: «- Pardal pardo, porque palras? I 3.2. Um segundo macroconjunto é consti-


Eu palro e palrarei,/ Porque sou o par- tuído pelas composições narrativo-dramá-
dal pardo,/ Palrador d'el-rei». ticas. Na sua maior parte, são em prosa;
no entanto, como nos romances, podem
b) cantigas: este é um domínio vasto do também ser em verso. Comunicam acções
nosso «cancioneiro», que deverá ser completas ou pequenos episódios narrati-
objecto de uma atenção muito espe- vos, sempre completados pelo diálogo.
cial, mas no qual, por agora, podere- Funcionalmente, pode este macrocon-
mos muito em geral distinguir: junto ser subdividido em quatro conjuntos:
-cantigas de raízes medievais (as para- - em primeiro lugar, o das composições
lelísticas}: são evidentes restos das explicativo-exemplares: - por elas, a
paralelísticas medievais - algumas comunidade pretende explicar aspec-
delas (os «ritmos», na expressão de tos não suficientemente esclarecidos
Leite de Vasconcellos) acompanham os pela razão, para o que adoptam «rela-
trabalhos rurais. Garantem o parale- tos» que são considerados ou «reais»
lismo semântico e estrutural e ainda ou aceites como verosímeis (pensemos
conservam as alternâncias de rima no significado profundo de expressões
toante -i-o e -a-o: «As meninas todas como «No te~po em que os animais
três Marias/ foram-se a colher as andri- falavam ... »). São quase sempre muito
nas.// As meninas todas três ]oanas/ marcadas pelo «fantástico», mais do
foram-se a colher as maçanas. // que pelo «maravilhoso»:
Quando lá chegaram, acharam-nas
colhidas,/ Quando lá chegaram a) mitos - entre eles, avultam os que
acharam-nas talhadas». Garrett considerava importantes para
a comunidade portuguesa: o sebastia-
-cantigas «inteiras»: apesar de quase
nismo e o das «mouras encantadas»;
sempre serem compostas por quadras,
estas, em número variável (dois ou b) lendas - histórias mais ou menos
três , ou mais), apresentam-se ligadas extensas acerca de vultos históricos ou
entre si no que respeita ao assunto; acerca de lugares muito concretos;
- cantigas de quadras soltas: cada uma algumas vezes, são francamente etio-
das estrofes destas cantigas trata de um lógicas. São inúmeras e podem ter
só assunto; alcance nacional ou significado muito
regional.
- quadras: cantadas ou recitadas isola-
damente. c) fábulas e apólogos- apesar da inve-
-outras (varia): poderá haver também rosimilhança derivada de os protago-
variações de estrofes com outro nistas serem animais ou objectos . a
número de versos. falarem, a exemplaridade das situações
torna-os textos credíveis («Foi no
c) adivinhas: são composições que tempo em que os animais e os objec-
exploram desenvolvimentos, por vezes tos falavam ... »), insubstituíveis mesmo
muito subtis , que exigem uma deci- pelas suas pertinentes edições de
fração final; introduzem-nas expressões moral». São composições muito
formulísticas sobejamente conhecidas: importantes para a tipologia simbólica
«Que é, que b ou «Qual é a coisa, de alguns motivos animais e objectuais
qual é ela». (a «raposa», o «lobo», o cc cordeiro», o
- em terceiro lugar, algumas outras com- «Cágado»).
posições que bem podem ser consi-
deradas numa alínea classificatória
muito oportuna que designaremos
- em seguida, o conjunto das composi-
ções registadoras-elementares: -
designamos deste modo, talvez con-
67
varia. testável, o conjunto de textos que
JULHO 1993 N. 9 ' - - " - -............~----.:-;.._:;...-..~-......:,;--~.:;.i,;M~--

- registam casos vários da expenencia lho) e à tradição nacional (pensamos


humana (realista ou feericamente con- em As Três Cidras do Amor, Os Dez
siderada), dotados de significação ele- Anõezinhos da Tia Verde-Água).
mentar, isto é, de conteúdo simples
- em terceiro lugar, as composições crí-
na sua estruturação e na própria repre-
ticas (humorísticas): dominam este
sentação do mundo, mas composto de
conjunto as anedotas, que temos de
elementos de grande densidade
considerar como o género por exce-
semântica. Dois grandes corpora o
lência vivo da tradição oral moderna,
compõem: o dos romances, em que
visto que satisfaz quanto às caracterís-
prevalece o «real» , senão mesmo o
ticas da Literatura Popular Tradicional
<<histórico», e o dos contos, em que
não só do ponto de vista da variação
a categoria dominante é o «maravi-
(muitas vezes, os textos não são senão
lhoso» (o «tudo é possível»).
adaptações ao tempo presente de rela-
a) romances: pequenas his tórias em tos mais antigos, actualizados para
verso, quase sempre episódicas, mas, outras personagens), como sobretudo
algumas vezes, com pretensões a nar- no que respeita à sua circulação oral
rações completas, nas quais predomina (quem pensa registar por escrito uma
o realismo dos agentes e das situações, anedota?).
de grande antiguidade, sendo o <<mara- -em quarto lugar, podemos pressupor
vilhoso>> um ingrediente muito pouco a existência d e outros relatos, de
utilizado. Entre estas composições, outras histórias, que irão prefazer os
avulta, pela sua representatividade varia.
nacional, a Nau Catrineta, mas, pela
sua vetustez, Cid e o Mouro Búcar, 3.3.As composições dramáticas constituem
Morte de D. Beltrão, Bela Infanta, o terceiro macroconjunto de composições
etc. da Literatura Oral Tradicional: dizem res-
peito às peças e aos diálogos que muito
b) contos: histórias em prosa, muitas
abundam na vida quotidiana do nosso
delas universais , nas quais a categoria
Povo. Empregam sobremaneira o diálogo,
prevalecente é o <<maravilhoso», ape-
garantido por uma tradição de família (para
sar de terem como ponto de partida
cada protagonista), o qual, para alguns dos
o aproveitamento de elementos da
mais importantes géneros, se encontra
<<representação do mundo>> . No que
registado no casco. Poderíamos acrescen-
respeita à sua representatividade, os
tar que, à semelhança do que aconteceu
contos são quase sempre válidos para
com Gil Vicente ou com Baltasar Dias, a
toda a comunidade, adultos ou jovens,
designação mais habitual para estas com-
impondo-se pela significação simbó-
posições é a de autos. No entanto, tere-
lica, quer na dimensão psicanalítica,
mos de considerar a sua tipologia funcio-
quer na dim~nsão etnoantropológica.
nal - por isso, temos os seguint es
Teremos de adiantar que os contos
subconjuntos:
tornam aceitáveis situações (<<metamor-
foseS>>, «inserção do sobrenatural», - em primeiro lugar, o das composições
etc.) e agentes (convívio de «humanos>> exemplares: - aludimos às composi-
com «fadas», «bruxas», <<gigantes>>, etc.) ções dramáticas que põem em cena
que, habitualmente, são considerados assuntos, histórias, personagens, exem-
ilógicos pelo senso comum. plarmente significativas quer a nível
nacional, quer a nível mais alargado
No que respeita à tradição, podemos (peninsular ou internacional). Temos
distinguir os contos que dizem res- em linha de conta:
peito à tradição universal (entre eles,
citemos A Gata Borralheira, A Bela a) tragédias e dramas: pensamos em
e o Monstro, O Capuchinho Verme- peças dramáticas como Sete Infantes
de Lara, Tragédia do Marquês de e, depois, o que aponta para a funcionali-
Mântua ou Tchiloli, ou, no que res- dade desses mesmos géneros e discursos.
peita a uma vertente exclusivamente Para mais tarde, ficará considerarmos
religiosa, os vários Autos da Paixão; cada um destes macroconjuntos de modo
mais promenorizado, exigindo-se atenção
b) comédias: embora muitas vezes, a muito especial a cada um dos respectivos
designação de comédia seja aplicada géneros.
a dramas, como é o caso da Comédia
dos Doze Pares de França, muitas são Notas - 1) Para não alongarmos esta nossa
as peças populares que se caracterizam contribuição, evitámos notas bibliográficas,
pela representação dos ((aspectos con- que seriam abundantes; elas serão introdu-
cretos e risíveis da vida» (Auerbach); zidas em futura versão, revista e aumen-
tada, deste artigo ou, mais concretamente,
c) simplesmente autos: esta é uma desig-
no capítulo dedicado ao assunto em Lite-
nação muito ambígua, que serve para
ratura Oral Tradicional - Conceitos, Pro-
muitas composições de natureza muito
blemas e Perspectivas, obra a publicar em
variada: desde o Auto de Floripes aos
breve.
já mencionados Autos da Paixão.
2) No entanto, consideramos que, para o
-depois, em segundo lugar, o das com- exposto, tivemos em linha de conta as
posições críticas: têm sobretudo em seguintes obras e artigos:
mira os costumes e as pessoas, e são
muito importantes em determinadas
épocas do ano, principalmente durante
o Carnaval:

a) entremezes, com os testamentos e as


farsas: por exemplo, o «Testamento
do Galo»;
b) cegadas: pequenas peças dramáticas
relizadas em várias regiões do País
(estamos a pensar nas que se realiza- AA. VV. - «Les genres de la littérature
ram no Seixal ou em Sesimbra, ainda populaire», n? especial de Poétique, n? 19,
há poucos anos). Paris, 1974;
-finalmente, o das composições regis- Braga, Teófilo - O Povo Português nos
tadoras do quotidiano: pretendem seus Costumes, Crenças e Tradições, 2 ~
tão-só pôr a público cenas de todos ed., Lisboa. Vol. I, Lisboa, 1985; Vol. II,
às dias: Lisboa, 1986;
a) representações (t:ts loas, por exemplo); Cascudo, Luís da Câmara (1984). Litera-
tura Oral no Brasil, 3 ~ ed. Belo Horizonte:
b) diálogos (curtas representações em S. Paulo.
momentos festivos).
Guerreiro, M. Viegas (1978). Para a His-
tória da Literatura Popular Portuguesa.
4. Esta é uma proposta de classificação Lisboa.
para os géneros da Literatura Oral Tradi- Pinto-Correia, João David (1987). Os
cional. Muito elementar, talvez mesmo sim- Romances Carolingios da Tradição Oral
plista em certos aspectos. No entanto, com Portuguesa, 3 vols. , Lisboa. (tese mimeo-
ela procuramos arrumar os principais géne- grafada) (a publicar muito em breve);
ros, segundo critérios coerentes: um, pri-
meiro, que tem em linha de conta a pró-
pria natureza das componentes discursivas;
Zumthor, Paul (1982). lntroduction à la
Poésie Orale. Paris. 69

Você também pode gostar