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AFINAL, o QUE É

LITERATURA?
Mirian Hisae Yaegashi Zappone
Vera Helena Gomes Wielewichi

DrssNvorvrMENTo Hrsrónrco- s rnaÂNrrc o Do rERMo LTTERATURA

Quando pensamos, leitores desse liwo e, portanto, leitores já iniciados no caminho das letras, na
pergunta O que é literatura?, imediatamente vêm à nossa mente nomes de obras arroladas há muito tempo
como tal. Quem não pensa n'Os lusíndas, de Camões , no Dom Casmurro, de Machado de Assis, nos versos
de Gonçalves Dias ou de Castro Alves, em lracemn, de José de Alencar, no Crande sertão: ueredas, de
Guimarães Rosa e em muitos outros, para ficar apenas na tradição literária em língua portuguesa?
Esse processo mental de associação entre apalavraliteratura e esse rol específico de textos parece-
nos muito natural e imediato, de forma que o próprio conceito de literatura imiscui-se, mistura-se
com a descrição desse determinado conjunto de textos. E, assim, ficamos com â impressáo de falar
de um objeto, a literatura, como um fato concreto, imediato, pronto e acabado, como se sempre
tivesse sido assim. Essa associação é tão ajustada, tão natural, que ninguém questiona a veracidade de
ser o Dom Casmurro uma obra da literatura brasileira: a literatura é tanto Dom Casmurro quanto Dont
Casmurro é literatura.
Como comenta V/illiams (1979), ao falar desse processo de associação entre conceito e descrição
da literatura, "esse é um sistema de abstração poderoso, e por vezes proibitivo, no qual o conceito de
'literatura' é ativamente ideológico" (WILLIÂMS,1979, p. 51). E o aspecto ideológico dessa associacão
reside no fato de ele apagar ou encobrir para todos nós a idéia de que o conceito de literatura
construiu-se e constrói-se através de um processo que é social e histórico ao mesmo tempo. Com
isso queremos estabelecer que aquela relação entre Dom Casmurro e literatura e literatura e Drrn
Casmurro pode não ser tão direta ou concreta quanto faz supor a associaçáo que fizemos no primeiro
parárgrafo âo perguntar O que é literatura?
Bem, se não se trata de uma relação direta, mas de uma relação que obscurece o próprio modü
de construção desse conceito, parece-nos que uma forma de deslindar os aspefios scizis Ê
--*@EoRrA LrrERÁRrA

históricos, que influíram e influem sobre sua construção, seria verificar como, afinal, o conceito veio
a se desenvolver.
A idéia moderna de literatura, ou seja, como uma arte particular, diferenciada da música, da
pintura, da arquitetura, enfim como uma categoria específica de cria$o arrística que resulta num
determinado conjunto de texrtos só veio a ser formulada a partir da segunda metâde do século )§ruI
e desenvolvida, de forma mais completa, no século XDC
Àpalavra literatura, como informa Aguiar e Silva (1988), deriva da palavra latinalitteratura, que
fora, por sua vez, imitada do substantivo grego ypctppcrftKq (grammatiké)" Nx línguas européias
modernas, termos correlatos de literatura, do latim, aparecem em meados do século )§/
(aproximadamente 1450). No intervalo de tempo entre meados desse século e meados do século
XVI[, há uma literature na língua inglesa, uma littérature, em francês, urna letteratura, no italiano, e
umaliteratura em português. O uso desse termo nas diversas línguas estava, entretanto, muito longe
de abarcar o caráter especializado com que o vemos hoje.
Nesse intervalo de tempo, não se fazia literatura, mâs se tinhâ literatura, ou seja, ela era mais um
atributo de um indivíduo que era cepaz de ler e que havia realizado leituras. Literatura relacionava-se
à capacidade de ler e de, portanto, possuir conhecimento, erudição e ciência. Assim, literatura não
designava uma produção artística. Ela abarcave tanto o conhecimento dos indivíduos sobre vários
ramos do saber, da gramática à filosofia, da história à matemática, quanto o amplo conjunto dos
textos que propiciavam esse conhecimento.
Como a partir do final do século XV a reprodução de materiais escritos começou a transferir-se
das mãos dos copistas para a oficina do impressor, o conhecimento ot a literaturd passou a ser
adquirida de forma mais específica através de textos impressos e, obviamente, como o número das
pessoas capàzes de ler era bastante restrito, a literatura era atributo de poucos. Logo, mesmo no
sentido inicial de seu emprego, a saber, como uma condição cultural (muito próximo ao conceito
atual de letramento), a literatura especificava uma distinção social particular, ligando-a, porlanto, às
classes privilegiadas.
Para designar especificamente os textos de caráter imaginativo, enquanto criação artística, eram
utilizadas normalmente as palavras poesia, eloqilência, uerso ou prosa. A palavra poesia assumiu, com o
tempo e a partir do próprio desenvolvimento do termo literatura, uma especializaçáo:. de
"composições de cunho imaginativo", passou a se referir unicamente às composições metrificadas e,
posteriormente, às composições metrificadas, escritas e impressas. Literatura, por sua vez, tornou-se
uma categoria mais ampla e abrangente do quepoesir (wtrriaus, 1979, p. 52).
Retornando, pois, ao processo de especializaçáo do termo íiteratura, foi no século X\[II que se
registraram as primeiras mudanças do uso de literatura como "conhecimento", "saber", "erudição"
para um uso diferente, agora relacionado à idéia de "gosto" ou "sensibilidade", embora ainda
permaneçam resíduos do significado anterior. Os dicionários e enciclopédias, tão em voga nesse
momento do Século das Luzes, ajudam a ilustrar essa passagem. O Dicüonnire philosophique, de
Voltaire (1694-1778), registra as dificuldades que cercavam aqueles que tentavam definir literaturâ
nessa época circunscrita a meados do século XVIII, até as últimas décadas desse século:

Literatura; essa palavra é um desses termos vagos tão freqüentes em todas as línguas [...] a literatura designa
em todâ a Europa um conhecimento de obras de gosto, um veniz de história, de poesia, de eloqüência, de
crítica [...]. Chama-se bela literatura as obras que se interessam por objetos que possuem beleza, como â
poesia, a eloqüência, a história bem escrita. A simples crítica, a polimatia, as diversas interpretaçóes dos

I autores, os sentimentos de alguns antigos filósofos, a cronologia náo sáo bela literatura porque essas
pesquisas sáo sem beleza (vonarpn, 1764 apud acuraR r snva, 1988, p. 4-5).

O próprio autor do texto chama atenção para â falta de delineamento mais preciso pâra o termo,
quando o indica como um "termo vâgo". Além disso, notamos certa ambigüidade na sua descrição,
pois literatura ainda aparece como conhecimento, embora o autor a associe com o aspecto estético
como se vê em "bela literaturâ" ou mesmo em "objetos que possuem beleza". Segundo Aguiar e
Silva (1988), a partir das últimas três décadas do século XVIII e de forma crescente, o termo literatura
vai incorporando o sentido de fenômeno estético e de produção artística.

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*,@ AFTNALT O QUE É LTTER.AÍURA?

Nessa mesma época, começam a surgir as primeiras


literaturas nacionais, a partir da composição
das primeir as histórias da literatura em diferentÉs
paí,t'' A gêne1e dessas histórias da literatura' bem
anteriores ao século xvIII, pode ser encontrada "*
t.rto, i,ticialmente de caráter bio-bibliográfico'
de inventários' Escarpit (1958) cita algumas
mas que jâ tematizavr* , ,rid, de autores em forma
delas: vita di Dante Alighieri,feita por Boccacio,
em 1358, ou a lllustrium majoris Britanniae scriptnrum'
entre 7548 a 1559' Sendo um
lnc est Angliae, Co*Urir, ac Scotiae, Catalogus, aá 1on, Bale, composta
processo de condicioá-.rrro feito pel-o próprio
desenvolvimento das línguas nacionais' essas
consciência muito precisa de seu papel' a saber'
a
biografias pâssâm a se desenvolver e a "aq,i'lt uma
Assim, até o final do século )(\rIII' quase todas
busca das fontes nacionais da literatura de cada país' tLrc
as nações já possuem uma história literária. Na
inglaterra, encontrâm os The History of Poetry from
entre 4
Eigítuenth Centurf' de Thomas V/arton'
177 e
Close oJ tlrc Eleuenth to the Corumencement of ttrc
178i., e The Liues of the Poets, de Samuál Johnion,
entre 1779 e 1781 Na Itália' começa a ser

publicada a Storia delJa letteratum iÍnliana de iirolamo


Tiraboschr, em 17'72; em Portugal,hâMemórias
diuídidas em uárias cartas' de 7774''fambém
no
parú d História LiterjLria de Portugal , 'r^ domínios,
que, em 1777 ' surge a primeira história da
mundo oriental, observa-se a mesma tendência, de forma
Ban (ESCARPIT, 1958, p' 1758-1762)'
literaturajaponesa, Kuni*ufumi-Yonono-ato,de Kokei
através das quais se defendeu o
Vale ressaltar que as idéias de gosto, dá b.l.r, e de sensibilidade,
o resultado da atividade de setores dominantes
argumento estético da literatura, fáram, sem dúvida,
de disseminar seus valores' Esse gosto'
que exercer".r, , pópria atividade_ do gosto como forma
exercido como algo objetivo, desempenhou, em termos
de valores de classe' um papel
pelos "amadores cultos" que o exerciam'
suficientem.rrr. rr.i.-Àri'i.o pár, qrr. forr. aceito, tanto 'V/illiams
(1979) chama atenção para o
quanto pelo públicã 1"iro, que pauiatinamente se ampliava'
certos textos' possuir uma base
fato de esse "gosto", que passotl a aquilatar comá literários
caracteristicemente br.gr.sa e subjetiva, de forma
que podia ser aplicado' sem reservas' tânto a
,,Gosto em literatura poderia ,., .ottfrrdido com 'gosto' em tudo o mais'
textos como a vinhos:
foram notavelmente integradas' com a
mas, dentro dos termos de classe, as ..ações à literatura
..lrii público leitor" (wrtnus, 1979'p' 54)'
ru integraçáo do
Esse exercício do'gosto, inicialmente realizado
pelás "amadores cultos", vai' a partir do séc' XD(
em uma nova disciplina praticada cadavez
passando ao domínioia crítica, que vai se transformar
maisnosambientesrelacionadosàsacademiaseàsuniversidades.
lJmasegundaeimportantemodulaçãonoconceitodeliteraturaéaquelaoperadanaassociação
i,criativas,, ou "imaginativas", em oposiçáo âos textos de.caráter objetivo ou
de literatura com obras
que o texto fosse bem escrito segundo o gosto
ilillt
,|il aos da ciência. Assim, para ser literatura nào bastava
história ou de ciências, mas esse texto deveria ser'
burguês vigente, o que poderia incluir um texto de
d. ,'igrrrn Ãodo, a expressão da crixividade humana'
Tal passagem t;, sem dúvida, certos correlatos históricos
e sociais' F{istoricamente' essâ
exigência do desenvolvimento das ciências indutiva
e
especialização do termo literatura corresponde à
no bojo da sociedade capitalista industrial'
experimental e do desenvolvimerrto de novas téJnicas
a diferença .t'itt o' valores da moral ou
da ciência e
Esse desenvolvimento torna mais clara e patente
das antinomias fundamentais da cultura
os valores artísticos e estéticos. "Âssim, ,. .o,,,tit'í' "*'
chamada cultura humanística velsus cultura
ocidental nos dois últimos séculos - a antinomia da
Essa antinomia, por sua vez' condicionaria a
científico-tecnológica" (acuran E 5ILVA, 1988, p. 10).
e textos de caráter "científico ou moral"'
separação entre textos de caráter "imaginativo"
textos de caráter "imaginativo" ou
Socialmente, a especiali zaçáo do"termo literatura, enquanto
,,criativo", tem sua contrapartida num fenômeno também correlato ao desenvolvimento da
sociedade capitalista: , ,r...rridrde de desafiar as
formas repressivas da nova ordem social através do
a textos criativos ou através dessa consciência
argumento da criatividade humana. Assim, dat vuáo
de relações humanas marcadas pela ética
imaginativa era uma forma de contrapor-se às novas formas
da produçáo, pela dissoluçáo da vida iocial em
práticas exclusivamente marcadas pelo trabalho'
de esp.ecialização' partindo de
Como se vê, o termo literatura passou po, ,* complexo processo
um atributo de possuidores de
um sentido inicial - as obras impressas qrl forrr..ir* à ,.rrrl.itores
e, posteriormente, a textos de caráter
literatura passando a textos de "gostá" e "sensibilidade"
-
t.
-r<l TlEoRrA LrrERÁnra

"rmaginativo" ou "criativo". Ao cl-regar a esse nível de especializaçáo, o problema central eln termos
de conceituação da literatura passa a ser o r0r,?0 valorizar os terlos a partir desses critérios, ou seja,
dando mais importância à sua dimensão imaginativa ou estótica. Nesse sentido, mais uma vez a
crítica, aquela lnesma atividade construída sobre uma base burguesa, terá papel preponderante ao
julgar entre o "criativo" e o "estético", sempre através de critérios seletivos: nem tudo o que é
literatura imaginativa é "literatura", nem tudo o que é belo é imagrnativo. o que atesta a imprecisão
do terrno e a dificuldade de acercar um objeto de estudo cuja própria configuração é móvel, em
razão de seu caráter histórico e social.
Essas tentativas de definição daliteratura, entretanto, continuam e, a partir da segunda metade
do século XD( e início do século )O! ganham novo tom, pois busca-se definir literatura enquanto
dado objetivo, concreto, obseruável. Surgem, nesse momento, propostas de definição da literatura
como collunto de textos portadores de características que corresponderiam à ssaliteroriedade. Nessas
propostas, obsela-se a idéia de que os te\.tos literários teriam certas características cstruturais ou
tefiuais muito peculiares, as quais os tornariam diferentes dos demais textos, considerados, portanto,
não-literários.
Trata-se de uma tentantiva de trazer a discussão sobre o que é literatura para um campo mais
l
objetivo, utilizando métodos que se distanciavam da subjetividade que permeara a definição do ,l

termo até entáo. A defesa dessa especificidade objetiva como rnarca dos textos literários era Gita com
base em métodos e processos de análise também objetivos. Essa concepção objetiva de literatura
disseminou-se fortemente nos estudos literários nas primeiras décadas do século )O( através do
Formalismo Russo, do Ner.a Criticism e da Estilística.
IJm terto bastante conhecido de um autor formalista, Vitor Chklovski, ajuda a ilustrar como
eles procuravam demonstrar que o caráter literário de um tefio poderia ser observado em suas
qualidades internas ou textuais. O próprio título do terto, "A arte como procedimento", de 1917,
refere-se ao fato de que o autor do texto literário criaria certos procedimentos, certos modos de
elaboração textual que concederiam ao seu texlo o caráter de líterariedade. Par:- os formalistas, o
caráter estético de um texto seria resultado da utilização de procedimentos desautomatizados de
linguagem em oposição à utilização de procedimentos comuns, já automatizados no uso da
linguagem cotidiana. Ào desautontatizzr a linguagem, o autor de um texto o tornaria singular,
especial e, portanto, artístico, ou seja, literário. Assim, o caráter estético em literatura seria a soma de
todos os procedimentos desautomatizados utilizados num texto;

t I chamaremos objeto estético, no sentido próprio da palavra. os objetos criados através de


procedimentos particulares, cujo objetivo é assegurar parâ estes objetos uma percepção estética. [...]

O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento: o procedimento da
arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma.
aumentâr a dificuldade e a duração da percepçáo. [...] E- arte, a liberaçáo do objeto do automatismo
perceptivo se estabeleceu por diferentes meios (cHxtovsxt, 1971, p. a1, 15).

 proposta formalista parte da idéia, no que se assemelha ao Nerr Criticiyn e à EsÍilística, de que os
tertos literários possuem traços de linguagem ou de propriedades texluais, ou uma essência estética que
os irmana, tornando-os literários em oposição aos texlos que não possuem tais traços. Em razão de
estudarem a literatura a partir dessas características texluais específicas, tais correntes de estudo ficaram
conhecidas como texÍualislas. BasicameÍrte e de forma sumária, podem ser consideradas como marcas
te>'1uais de literariedade: 1) a oposição da linguagem literária à linguagem comum, sendo a literatura uma
ibrna ter:tual que coloca em primeiro plano a própria linguagem, ou seja, há ênfase nafunção poétira dessa
linguagem; 2) a integração da iinguagem como organização especial de palavras e estruturas que
estabelecem relações específicas entre si, potencializando o sentido dos textos; 3) a distinção entre o
caráter referencial dos textos não-literários e o caráter ficcional dos tertos literários, ou se-ja, a literatura
rbarcaria tertos que criam uma reiação especial com o mundo: uma relação ficcional onde o mundo, os
--, -:rtos e os seres evocados não precisam, necessariamente, ser reais, mas criados ou imaginados; 4) os

,-,.---. lrterários teriam um fim em si mesmos, pois, ao coiocar :r própria linguagem em primeiro plano,
:j---::r:r-- -:erandooseucaráterestético,queocasiolaria,porsuavez,oprazernosreceptoresdessetexlo.

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/iã
**"4{1j AFTNALt o QUE É LTTERATURA?

Todas as carâcterísticas anteriormente apontadas podem ser facilmente observadas em muitos


textos arrolados como literatura e, não raramente, elas foram abstraídas pelos teóricos e pertir do
esrudo e da leitura de textos literários, como é o caso do próprio Chklovski (7977), anteriormente
citado, que estuda as obras de Tolstoi (1828-1910) para dizer que uma das marcas da literatura é a
desautomatízaçáo da linguagem, feita por meio de muitos procedimentos, entre eles o de
singularização (criar uma percepção particular do objeto, diferente do mero reconhecimento).
Não tardaram, entretanto, as reações a essâ visão objetiva ou essencialista de literatura. Muitos
âutores começam a questionar se, efetivamente, o que caracterizava a literatura eram certas
"propriedades internas" dos textos. Âssim, a partir da década de 60 do século )O( começam a surgir
várias reações a esse ponto de vista, cujos argumentos centrais podem ser encontrados nas relações
entre a literatura e seus leitores, já que muitos autores observam que os fatores distintivos de
literariedade, defendidos pelas correntes textualistas, não eram exclusividade de textos literários,
podendo também ser encontrados em textos de natureza referencial. Assim, o ponto de discussão
sobre o que é literatura desloca-se da esfera do texto e de suas "propriedades peculiares" e passa para
a esfera do leitor, uma vez que o texto só existiria a partir do ato de leitura dos leitores e o seu
significado só emergiria através de um ato interpretativo.
Na França, essa preocupação com o estatuto do leitor e com as formas de circulação dos texlos
aparece muito claramente em Soci,ologia da literatura e Histoire des Littératures: littérauresfrançaises, connexes
et marginales, textos nos quais Escarpit, em 1958, propõe o que chama de abordagem sociológica da
literatura. Nela, o caráter literário define-se basicamente por meio da recepção, das relações
estabelecidas entre autor/texto e o seu público e todos os meios de transmissão que os ligam:

Todos os escritores, no momento em que escrevem, têm presente um público para além deles próprios.
IJma coisa náo está inteiramente dita até que é dita a alguém: isto é, como vimos, o sentido do acto da
publicaçáo. Mas podemos igualmente afirmar que uma coisa apenas pode ser dita a alguém (isto é,
publicada) se for dita por alguém. Os dois "alguém" não têm forçosamente que coincidir. E mesmo raro
que tal âconteça. Por outras palawas, existe um público-interlocutor na própría origem da criação liteníia
(rscRRlIr, 1969, p.165, grifos nossos).

Ou ainda:

Todo o facto literário pressupóe escritores, livros e leitores ou, de maneira geral, criadores, obras e um
público. Constitui um circuito de trocas que, por meio de um sistema de transmissão extremamente
complexo, dizendo respeito âo mesmo tempo à arte, à tecnologia e ao comércio, une indMduos bem
definidos (rscaRur, 1969, p. 9).

Também articulando as leituras realizadas pelos leitores ao longo do tempo no que se pode
chamar de história da leitura, Chartier (1997) propõe, contemporaneamente, uma abordagem de
literatura que leva em conta a figura do leitor. Para ele, a literatura não teria uma nâtureza
característica, própria, mas seria uma construção de sentidos propostos para ceftos textos. A
historicização seria um modo de desvendar os mecanismos de construção do literário, entre os quais
a leitura teria importância preponderante:

Uma história da literatura é então uma história das diferentes modalidades de apropriaçáo dos textos. Ela
deve considerâr que o "mundo do texto", usando as palavras de Ricoeur, é um mundo de "performances"
I cujos dispositivos e regras possibiiitam e restringem a produção do sentido (cruanrmn, 1,997 , p. 68).

Além da leitura, importa para Chartier (1997) a historicizaçáo do literário, ou seja, a verificação
de como acontecem as variações, no tempo e espâço, entre o que é considerado literário ou não. Em
busca dessa historicização da literatura, ele propõe o estudo de algumas categorias responsáveis por
construir a literariedade:

Decorre daí a definiçáo de domínios de investigaçóes particulares (o que não quer dizer próprias a tal ou tal
disciplina): assim, por exemplo, a variação dos critérios que definiram a "literariedade" em diferentes
períodos, os dispositivos que constituíram os repertórios das obras canônicas; as mârcas deixadas nas

23
LITERÁRIA

-€EoRIA produzidas (segundo as épocas e as possíveis


próprias obras pela "economia da escrita" em que foram
pelo mercado), ou, ainda' as categorias que
coerçóes exercidas pela instituiçáo, pelo pr,.o.írrio o., iautor"
de "obra", de "Iivro"' de "escrita"' de
construíram a "instituição literária" (como as noções de
"copyright" etc.) (cHÂRTIEr.,1997, p' 68-69)'

Em rerras brasileiras, a noção de sistema literário, elaborada


por Candido (1981), representa uma
ao; leitores e onde znatllrezà social do
abordagem semelhânte, na quai o literário âparece rssoci*do
enquanto manifestaçáo cultural'
literário é resgatada pzrz àprópria caÍacteríz;ção da literatura
Apresentado inicialmente emAforrnaçai da literatura brasileira,
de 1959, o conceito de sistema
formação da literatura brasileira' no
literário é, para Candido, um modelJ.xplàativo do processo de
qual os elementos da tríade autor-obra-público aparecem
como fundamentais pàrz à caracterlzàçáo
a articulação desses três elementos' haveria'
das condições em que a literatura podeiia existir. Sem
segundo o crítico, apenâs mdnfesta@ es literárias:

iiterárias, de literatura propriamente dita, considerada


[...] convém principiar distinguindo manifestaçóes
aqui um sistema à. ob.r, l-ig.dr. por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas
das características internas (língua' temas'
dominantes de uma fase- Estes denominadores são, além
embora literariamente organizados' que se
imagens), certos elementos de Íràtúreza social e psíquica, distinguem: a
da civilizaçáo' Entre eles se
manifestam historicamen te e fazernda literatura ,rp..to otgâttico
mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto
existência de um conjunto de produtores literários,
os quais a obra não vive; um mecanismo
de receptores, fo.-*do o. áif....rt.. tipos de público, sem
transmissor (de modo geral, uma lingoagem tiadr:zida em estilos), que liga uns a outros (CANDIDo'
1981, P' 23)-

literatura brasileira, o conceito de


Além de constituir argumento de sua tese sobre a formaçáo da
compondo uma trilha na qual se
sistema literário aparece Ém diversos outros textos de Canàido,
de seu sistema' Em o escritor e o
podem perceber outros detalhes sobre os elementos constituintes
e o mecanismo de retroação do
público de 1955, aparecem mais visíveis a noção de circulação-literária
das obras sobre os leitores e dos leitores
sistema literário, quando o autor mostra a d|pla influência
sobre os autores e, conseqüentemente, sobre as obras:
outras e sobre os ieitores; e só vive
A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre^as
deformando-a. A obra não é produto fixo,
na medida em que estes â vivem decifrr.do-i aceitando-a,
registrando uniformemente o seu efeito' Sáo
uníuoco ante qualquer públko; nenx este é passiuo, homogêneo,
. juntâ o autor, termo iniciai desse processo de
dois termos que atuam um sobre o outlo, aos qrrais se

círatlação líterária, para configurar a realidade da literatura


,tr,"ndo no temPo (caN»roo' 1'985b' p' 74'
grifos nossos).

Mais recentemente, as mesmas idéias reaparecem no texio Iniciação


à literatura

brasileira, publicado inicialmente em 1'997:


a atividade literária regular: autores
Entendo por sistema a articulação dos elementos que constituem
definindo uma vida literária:
formando ,* .àr;rr-r,o virtual, J veículos que permitem seu-relacionamento,
permitindo com isso que eias circulem e
públicos, r.rt.itort, amplos, capâzes de ler oude ouvir as obras,
precedentes' funcionando como exemplo ou
âtuem; tradição, que é o reconhecimento de obras e âutores
para rejeitar (CANDID6, 1999,p' 15)'
justificativa daquiio que se quer fazer, mesmo que seja

passam sempre pela


Baseadas num pressuposto sociológico, as idéias de Candido sobre literatura
relação que a literatura eitabelece com a sociedade onde surge.
o
Disso decorre czrâter coletivo da
que requer uma
lit.àtrr.r, assim referido pelo autor: "A literatura, porém, é coletiva, na medida em e se
certâ comunhão de meios expressivos" (cAtsotoo, 1985a, p'
139)' Se literatura- é comunicaçáo
de sistema literário de Candido
erige entre os espâços que unem autor-obra-público, o conceito
pode ser produtivo como explicação teóri., do funcionamento e construção da literatura' O
conhecimento de como esses elementos se relacionam dinamicamente
no tempo pode ajudar a
compreender os caminhos através dos quais a literatura vai se construindo
e se constituindo,
enqllanto expressão de uma sociedade.

24
*-^,"{} AFTNAL, o euE É LTTERAÍuRA?

LITERATURAE RELÂÇÓES DE PODER


do
O panorama oferecido até aqui mostra como, ao longo do tempo, construíram-se os sentidos
como outras
termo líteratgra e todos eles são Íérteis exemplos para se mostrar que a sua definição'
do poder com o
definições, ou estabelecimentos de "verdades", é permeada pelo envolvimento
texto que
conhecimento. Não são, portanto, apenas características intrínsecas a um determinado
específico vai
fazerncom que ele seja iiterário ou não, mas também o poder do conhecimento
"boa"
determinar s. aq1rel. texto pode ser considerado literatura ou não e, em sendo literatura'
se é

ou "ruim".
hoje por
Vamos discutir essa colocação em outras palavras. Já vimos que aquilo que entendemos
(2001), na
lireratura, na sala de aula, nem sempre foi visto como literatura. Como aponta Eagleton
de valorizadas
Inglaterra do século XVIII, por exemplo, a literatura abrangia todo o conjunto obras
ainda
peL sociedade, como filosofia, história, ensaios, cartas e poemas' Duvidava-se que o romance'
que agrupavam textos literários eram
Lmergente, pudesse vir a se tornar literatura. Os critérios
icleolãgicos, selecionando escritos que expressassem os valores e gostos de uma determinada
sociedãde. A arte da palavra que se faz'n nas ruas, como baladas e romances populares, não pertencia
ao rol literário.
É .o* aquilo que chamamos hoje de período romântico que âs conceituações de literatura
"imaginativo"' passa a
começam , ,a dararrrolver. Nesse período, escrever sobre algo que não existe,
ser interessante. Entretanto, como aponta Eagleton, a escrita imaginativa entra
em choque com o
na França e nos
espírito revolucionário da época, já que os regimes feudais estão sendo derrubados,
Estados (Jnidos, pela ascensão da classe média, enquanto a Inglaterra vem tornar-se a primeira nação
da
industrial capitalista do 1-rundo. A situação social que se tem então é de uma quase escravidão
classe assalariada recém-formada, com intermináveis horas de um trabalho
massacrante e alienante, e

a rejeição de tudo aquilo que não pudesse ser transformado em mercadoria.


A literatura romântica,
,q.ri, t"- um papel a cumprir: denunciar e transformar a sociedade'
Assim, como uma forma de resistência ao estado absolutista no século XVIII inglês,
havia sido
jornais e periódicos' Em
criado um espaço de discussão literária em clubes e ca{és, bem como em
jornalístico
meados clo século, entretanto, o crescimento do número de leitores e do mercado
figura do
aumentou as possibilidades de uma escrita profissional, propiciando o aparecimento da
,,homem de letras". lJm precursor do intelectual do século XD(, o homem de letras possui um
conhecimento ideológico genérico, tornando-se capaz de discorrer sobre a cultura
ea
intelectualidade de s,rr"épo.I. Fazendo da escrita seu ganha-pão, ele procurava ajudar
o público a
enrender as complexidadés da transformação econômica, social e religrosa (EAGLETON,1991)'
Até o século XVIII, o público leitár era claramente definido: havia a "sociedade polida",
morais' e os
intelectualizada e inter.rsadr, tanto peias artes, quanto pela manutenção de valores
incapazes de ler, dedicados ao trabalho braçal, com os quais a produção críttca e literária não
classe de leitores
precisava, grosso modo, se preocupar. A partir daí, entretanto, vai surgindo uma
;pessoas influentes", bem versadâs nâs discussões culturais
intermediáiia, que não é mais formàd" d.
e intelectuais, nem pelos analfabetos que náo conseguem ler coisa nenhuma' Essa nova
classe de

leitores é alfabetizaàr, *r, náo faz o mesmo sentido da leitura feita pelas "pessoas influentes"
para viver,
intelectualmente. Assim, o crítico literário dirige-se a um público que, como ele, trabalha
mas não está inserido nas formas do diálogo intelectualizado polido das elites. fu questóes de classe
forçosamente passam afazer parte das preocupaçóes do homen-r de letras.
Ao mesmo tempo em que essa nova classe de leitores burgueses é fortalecidâ, com suas novâs
necessidader, o .onh..i-erlto especializado vai se definindo, tornando o trabalho
do homem de
"amadorística",
letras extremamente complicado. A função humanista desenvolvida por ele de forma
ingenuamente náo-profissional, com sua confiança na responsabiliclade ética, na autonomia
ináividual e na livre rranscendência do eu, como afirma Eagleton (1991), perde terreno pâre o
conhecimento especiaiizado e para um gosto público determinado pelo mercado. Assim, o sábio
pela
decide afastar-se da esfera ,ocirl, buscando ambientes menos "contaminados" para sua busca
verdade. É d.rm forma que a universidade passa a abrigar as discussóes literárias.

a5
/\\
-*.- "{UEoRrA LrrERÁnrr

A instituição da literatura inglesa como tema acadêmico deu-se para buscar a satisfação de
algumas finalidades ideológicas. Primeiramente, o estudo do "inglês" destinava-se a "pacificar e
incorporar o proletariado, gerar uma sociedade complacente entre as classes sociais e construir uma
herança cultural nacional que servisse para fortalecer a hegemonia da classe dominante num período
de instabilidade social" (EAGLETON, 1991, p. 57) A indagação transcendental decorrente desse
projeto justifica a função alienadora atribuída, por vezes, à literatura. Além disso, a universidade veio
profissionalizar os estudos literários. A academização da crítica deu ao homem de letras uma base
institucional e uma estrutura profissional, rrras o separou da esfera púb1ica. Para Eagleton (1991), a
crítica literária alcançou sua segurança cometendo um suicídio político: seu momento de
institucionalizaçáo acadêmica é seu desaparecimento como força socialmente ativa. Suas
preocupações com as "letras" ou com a "vida" raramente saem dos limites universitários.
É d.ru forma de discussão literária, institucionalizada nas universidades inglesas, que a crítica
literária atual deriva. É a academia, com suas pesquisas, estudos e publicações, além de discussões em
sala de aula, e trabalhos jornalísticos de críticos que passaram pelas universidades, que acaba
determinando, hoje em dia, o que é literatura, o que é literatura boa ou ruim, e como ela deve ser
lida. Entretanto, pode-se questionar até que ponto as discussões acadêmicas sobre literatura chegam
ao público leitor. Quem se importa, além de professores universitários e seus alunos, se o
personagem é plano ou redondo, se a narrâtiva é homo ou heterodiegética, qual seria uma leitura
psicanalítica de um conto ou desconstrutivista de um poema? Em quê essa leitura literáiia
"p ro fi ss ionalizada" contribui para a s ociedade ?
Vamos procurar discutir a importância da leitura literária acadêmica lembrando a questão do
poder. À resposta para nosso questionamento, se a leitura acadêmica imporra ou náo para o público
leitor de uma forma geral, vamos deixar para o final. Já vimos que a universidade, hoje em dia, tem
um papel fundamental na definição daquilo que é ou não considerado literatura, daquilo que é "boa"
literatura, e como deve ser lida. A comunidade acadêmica, portanto, tem o poder de definir literatura
pela posição que essa comunidade ocupa na sociedade, já que o conhecimento especializado ê
altamente valorizado. Se a universidade e, por exlensão, a escola de um modo geral, diz que
determinado texto ó literário e de born nível, entende-se que seja assim. O problema, entretanto, não
reside tanto nas escolhas feitas e nas exclusões delas decorrentes.
A crítica literária refugiou-se nas universidades para buscar a verclade de forma não poluída pelos
problemas sociais. Mas, o que é a verdade? Náo seria a verdade uma questão de escolha, condenando
outras "verdades" ao esquecimento, mais do que a expressão de uma essência imutável? Foucault
(1996) afirma que a verdade nada mais é do que uma construção do discurso, mudando de acordo
com variações culturais e ideológicas, em diversos momentos da história. Discurso, conhecimento e
poder estão entrelaçados. Existem, portanto, condiçóes para a produção do discurso que envolvem
relações de poder, gerando conhecimento e controlando o acesso a ele. O autor fala de uma série de
procedimentos que contribuem para a produção e controie dos discursos, ou seja, para a produção e
controle da "verdade". Vamos ficar com apenas dois: a oposição entre o verdadeiro e o falso e as
disciplinas.
 divisão entre verdadeiro e falso, segundo Foucauit (1996), é historicamente constituída, já que
aquilo considerado hoje como verdade nem sempre o foi. Para os poetas gregos do século \4 a.C.,
por exemplo, o discurso verdadeiro era aquele que inspirava medo e terror. Aquilo que era dito era
considerado realidade, o discurso fazia acontecer, trançando-se junto com o tecido do destino. Se
saltamos para a virada do século XVI, em especial na Inglaterra, a verdade pâssa a ter a obrigação de
ser observada, medida e ciassificada. O objeto a ser conhecido deve ser visívei, verificável,
comprovável. Um nível técnico de saber é necessário, o conhecimento precisa ser empregado para
ser verificável e útil. É .tr" forma de verdade que conhecemos até hoje. O verdadeiro, agora, é o
científico, o comprovável, o palpável. O desejo de que a verdade seja alcançada move a busca
científica e está sujeito a um respaldo institucional. Ele é renovado e reforçado por práticas, como a
pedagogia, por exemplo, e por sistemas de livros, publicações, bibliotecas, sociedades letradas e
laboratórios. A verdade também é renovada pela maneira como o conhecimento é distribuído e
atribuído em uma sociedade. Âssim, a verdade é estabelecida por grupos detentores do poder do

26
.* AFINAL, O QUE É LITERATURA?

ir-l-iutável. As próprias descobcrtas científicas são


--.rnhc.cimento e não representa ulxa essência
certo morllento e por certo glupo
:;.;istas e reelaboradas, e aquilo que é consideracio verdadeiro em
sc dá com a clcfi'ição e a valoraçáo da
-i; pessoas poclerá ser desac.e.litaào r-ro futuro. Â rnesma coisa
estudados coll-]o iiteratura 1-roje' e
-::lratura. Textos consideraclos nio-literírios t-to passado são
vir a ser valorizados pela
.liores "[tenores", ou quc procluzem gêneros ,,a'-'o' respeitados, podem
nos discursos e ser
.:ldemia. As drscipiinas collstitllelx o oLltro princípio regulador da verdade
para Foucaulr (1996), as iisciplinas são relativas e r-nóveis e pcrtuitcur t111]lr
---.nsiderado aqui.
,-..rpstrução, mas dentro cJe certas fropteiras. A disliplina
não é a somx de tudo que pode ser dito
:.-,bre algo, net'n o conjunto dc tudo que pocle ser âceito sobre
urn mesmo dado em virtucle de algunl
verclacles, sendo aqueles
:ri,cípio de coerênciiou sisterliaticidade. As clisciplinas são feitas de erros e
::rclissociáveis destas. Para que Llmx proposição pertença a
uma cliscipllna' eia deve ser caPaz clc ser
reconhece seus pri,cípios
::tscrira em certo l-iorizonte teórico. D.ss. ib.-^, cada disciplina
-..crdadeiros c fàisos, mas deixa além de suxs margens os "rno,stros" c10 co,heci.rcrrro rrío
requisitos pesaclos para
::conhccido. Foucault (1996) afirma que uma pl.opo'içio cleve preencher
de ser tà1sa ou a
.s;ar inscrida no agrupamento de uma disciplina. Diferentemente 'erdacleira'
lir-rserida no vercladeiro-" cle uma drsciplina' Para que Llrn texto sejx ou t-tão
:.-oposição cleve estar
seus elementos collstitutivos sejam literários'
-:rerário, portarto, não ó necessário sin-rplesmente que
dentro dos padrÓes
:ras que aqueles eleme,tos qre f"rào dele um texto literário esteja'-r
--onsiderados literários" pelas áisciplir-ras envolvidas. Em outras palavras, seú literatura' elr Llll-l
c1o mercado cditorial'
-1:terminado momento histórico, aquilo que a teoria e a crítica literárias, a1ém
:;cidirem como literatura.
Dentro dessa lir-rl-ra de raciocínio, podemos e ntcnder a seguinte definiçáo dc literatura:

tex1l1f,l que suscita certos tipos de atel-rção'


A literatura, poderían-ros concluir, é ur-n ato de fala ou evento
dar fazer perguutas e Íàzer pl:olllcssas'
Co*trrstl com outr:os tipos de atos de íal:r, tais como inforn-ração,
tratâr algo cot-t-to literatura é clue eles a encolltl:am l1l1t]l
Na nraior parte do tempo, o que leva os leitores a
oL1 numâ seção de uma revista' biblioteca
contexro quc a identifi.. .o,'r'ro literatura: num livro de poen-ras
ou livraria (cuLLER, 1999, P' 34)'

do texto literário, quc


cr,rller (1ggg) chama a atenção para elernentos qLle scrilm diíerenciadores
literatura mercceria urna atet-ição
:-:iarn coln que a fala cotidiana.não fosse considerada literatura' A
que os leitores tenl-ran-r uma
:;!r-cial de ser-rs leitores. O seu caráter ficcional, por exemplo, possibilita
qLl(] estalxos ern contato
,,i:ção diferente com o munclo. Quando lemos um texto literário' sãllemos
inclui falante' atores'
---:-t url evento [ngüístico que projeta um mundo ficcionai qLle a respo,cler a Llm texto
'-----:trecil-r,rentos e ul-lr
iftrti.o implícito. §rb.rr-ro, que náo somos chamaclosEntretanto, as frontciras
.:;:írio corno seríarnos a um texto ftistórico ou científico, por exen-ip10.
O caríter cieDtíijctl
: ,-:: a história e a ficção, ou cntre a ficçio e aciência, não são tão rígrdas assim'
do Padre
. ::.:órico de Os ,rr,õrr,'de Euclides c1a Cunl-ra, r'rão pode ser desprezado' O-s Sentrões' Ao
- :-':tio Vieira, hoje estuclaclos nlâis por scu valor literário, foram cscritos con-r fins doutrinários'
pocle carregar corlsigo muito do caráter
-;s::-1o tempo, a história política reccnte, por exemplo,
que podem comprovar
..-_-::nal cie uma,,realidade construída". Âpeiar da exrstência de docun-rentos
: j:- a,u aquele fato, até or-rcle podemo, praairr. o
que realmente acontecell 11o caso do ex-presidente
sobre a trajetória
::-s:,eiro Fernanclo Co11or a" Uel1o (1gg0-19g2)i Ató o,-rd. acluilo qr-re srbetr-to-s
ficcional da mídra e
:--.:; político brasileiro é o "retrtto da realidadc'i . até oude é u1-11:l corlstrução

- : ::l:úresses particulares?
ou não-enl qr:e
J c.tério a que Culler (1999) se refcre para sabermos se Llrn texto é literário
,: , .,- da biblioteca oL1 cla livrana e le se ellcolltra - sugere ccrto
grau de arbitraricclade rla
a ser' Não ó
!::;:Ilinação cla literaricdacle do texto. Se dissermos qLle este livro é literatura' passará
pcssoas accrca cle
:,::-, lssilit. Cou1o vimos, o colltexto l-ristórico faz com que as conccpçóes das
a moda, a alin'rentação, a ciêncili e' elltrc
---,5 çlrisas mudem. Essas coisas poclern ser os costllmes,
; -. -. iiteratura. Ao lnesmo tempo, a cluestáo de pocler tambér-n cletermina o que é t-tão litet-ltur:''
or'r
é literário' clc Ltrtss;' l
-,: -:t-- grupo de pessoas, entendiclas 1fo assunto, afirma que cleterrninado texto
,:: --:l.rcado 1ra seÇão de litcratura de livrarias e bibliotccas. Se relacionart-nos cssc it-'lll;l{l l
27
" --"\Tj7\ EoRrA LrrERÁnrr

situacional e histórico com a questão do poder e do conhecimento de que nos fala Foucault (1,996),
podemos chegar à seguinte definição de literatura, de Fish (1980):

Literatura, é meu ârgumento, é uma categoriâ convencional. Àquilo que será, a qualquer tempo,
reconhecido como literatura é função de uma decisão comum sobre aquilo que contará como literatura.
Todos os rexlos têm potencial para isso, naquilo que é possível considerar qualquer trecho de linguagem de
tal forma que ele revelará aquelas propriedades presentemente entendidas como literáriat. [...] A conclusão
é que enquanto literatura é ainda uma categoria, é uma categoria abena, não definida por ficcionalidade, ou
por descaso conl uma verdade proposicional, ou por uma predominância de tropos ou figuras, mas
simplesmente por aquilo que decidimos colocar ali. E a conclusão dessa conclusão é que o leitor é quem
"{az" a literatura. Isso soa como ex'tremo subjetivismo, mas é qualificado quase imediatâmente quando o
leitor é definido não como um agente livre, fazendo literatura de alguma forma ar-rtiga, mas um membro de
uma comunidade cujas assunçóes sobre literatura determinam o tipo de atençáo que ele presta e, assim, o
tipo de literatura que "ele" faz. (As aspas indicam que "ele" e "faz" não estão sendo entendidas como
seriam de acordo com uma teoria de agência individual âutônomâ). Âssim, o ato de reconhecer literatura
não é compelido por algo no tex1o, nem emerge de uma vontade independente e arbitrária; em lugar disso,
procede de uma decisão coletiva acerca do que contará como literatura, uma decisão que estará em vigor
somente enquânto uma comunidade de leitores ou crentes continuar a sustentá-la (p. 10-11).

Nessa concepção de literatura de Fish (1980) fica claro que a decisão sobre aquilo que é ou náo
é literatura, emborâ fortemente centrada no leitor, não é uma opção individual. A interpretaçáo,
tâmbém podemos deduzir daí, não é um "achismo", escolha de cada leitor em particular. Embora a
experiência com o texto literário se dê de uma forma individual e única, o leitor náo se desvencilha
de suas próprias histórias no momento da leitura e elas contribuem para a sua produção de
significado. Essas histórias são frutos de suas vivências e das influências que o leitor sofre de seu
modo de ver o mundo. E a escola, com sua forma de saber institucionalizada, é uma das grandes
determinantes de maneiras de se ver as coisas, ou de verdades. Assim, a literatura é definida por
umâ comunidade que determina os critérios parâ se reconhecer o texto como literário. Essa
"comunidade interpretativa", como denominada por Fish (1980), vai não só definir a literatura
classificando-â como de alta ou baixa qualidade, mas tâmbém apontâr as leituras possíveis. Fazem
parte da comunidade interpretativa literária, como vimos anteriormente, professores
universitários, críticos literários, o mercado editorial e a escola, de uma forma muito concreta,
com seus professores e aiunos.
Assim, a crítica e a teoria literárias estudadas nos meios acadêmicos têm papel fundamental na
definição de literatura e nas possibiiidades e restriçóes das leituras literárias. Como nos ensina
Foucault (1996), as disciplinas não só possibilitam discursos como os restringem. Ântes de os
estudos culturais, feministas e pós-coloniais, por exemplo, serem validados pela academia, ieituras de
iiteratura de massa, de autoria feminina e de autoria de minorias étnicas e sexuais, estavam "fora da
verdade" acadêmica. O contex-to histórico não propiciava que tais tex'tos fossem considerados fonte
legítima de estudos. Hoje em dia, apesar de ainda encontrarmos alguma resistência por pârte de alas
mais conservadoras dos estudos literários, essas literaturas antes ditas "marginais" não são mais
baniclas das salas de aula e das publicações especializadas.
Da mesma forma, parece senso comum que o texto literário seja piurissignificativo,
possibilitando várias leituras. Prova disso é o grande número de correntes críticas contemporâneas,
procurando iluminar aspectos diferentes de um mesmo t."to. É claro que, novamente, essa
proliferação de sentidos não equivale a nenhum sentido. Cada leitura que se quer válida recorre a
elementos dentro do texto e fora dele para comprovar seu ponto de vista, e as diversas correntes
críticas, bem como a teoria literária, provêem esses elementos. Outra íorma de percebermos as
diversas possibilidades de ieituras de um texto literário é a forte relação entre a literatura e as outras
artes, como a pintura e o cinema, além da televisão e da música. lJm terto literário serve de
argumento parâ a criação de outros textos literários, dialogando entre si, bem como para z criação de
textos visuais ou musicais, por exemplo. Narrativas épicas viram quadros, romances viram filmes e
desenlros animados, poemas viram cançóes populares. A iinguagem literária é tradrzída em outras
linguagens, aguçando o senso crítico e a criatividade de ieitores, espectadores e ouvintes. Em contato

28
*- AFÍNAL, o QuE É LTTERATURA?
<D
produções de
o público encontrâ sugestóes pala suas. próprias
--om essas diversas leituras, espâço a
da fide-lidade ao texto literário cedem
srgnificados. Nesses casos, discurro", ".t"'
"-"'**r:::,::Ti':t".".'.'i:,"Hiffi::ü"'iil:T".'11""ra Acreditamos que todas as
que âs vaiida duÍante certo
Jefinições sejam parciais, já que
localizaar, tã,,* contexto histórico
àe ser uma tarefa inútil por
discutii literatura, teoÍzzaÍsobre literatura' está longe
Entretanto, sempre
rempo.
a..r,.rao' ôoào Eagleton (1991)' a questão teórica
não podermo, pr..irr"il";ú;. 'nt"-" nâo lkte estáo familiarizadas'
da criança sobre práticas que ainda
lembra a imagem da perplexidade
levando-a a produzii q'estionamt"to'
tãt'. 1"o"1lt,1:tii'::.:.:*H ;J:iÍJtJi::J];
ótvio' A investigação teórica permlte
ess
estranhamento, parece palavra literatura com
práticas consideradas "normais" .
".t",r,"i]i, ;;i; ;";., a própria associação da
assim' *T,11T^:::j
ciÍadtno início deste capítulo' À invest igaçáoteórica permite'
Dotn casmurro, A quem lnteressa
tomadas de posições..Podemos voltar à nossa pergunta anterior:
realidade e novas texto? Se o
é plano o,r r.dor-rãã,-"' q"f a explicaçao"psicanaiítica de um
saber se o personagem não interessa a
indagações for meramente produzir assunto [^'^-^ saia de aula'
objetivo dessas essas discussóes
a professor., . ,lrrros. Por or,.à Ldo,de transformá-lo' interessam a
enquanto
ninguém, ,-r.- -.í-o
proporcionam formas "estranias"
d. ,. 'r."t " ;;"át e possibilidades leitor' E isso'
lidas ajudam f'oat"o novas histórias' únicas para aquele
todos. Àssim, as histórias "
afinal, é literatura'

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