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FAYOLLE, Roger, Lacritique littéraire, Paris, A. Colin, 1978.

HERNADI,Paul(ed.), Whatiscritícism? Bloomington, IndianaUniversityPress,


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HOHENDAHL, Peter Uwe, The institution of criticism, Ithaca-London, Cornell


University Press, 1982.

WELLEK,René, Concepts ofcriticism, NewHaven-London, YaleUniversity Press,


1963.

2. O conceito de literatura

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OBJECTIVOS

Depois do estudo deste capítulo, o aluno deverá estar apto a:


explicar a origem e a evolução semântica do vocábulo literatura;

explicar a constituição do conceito de literatura;


compreender o conceito'de literariedade;

explicara crisedosconceitosformalistasdeliteraturae literariedade;


compreender as limitações e insuficiênciasdos conceitos pragmáti-
cos de literatura;

identificar a literatura como sistema semiótico, como instituição e


como corpus textyal.

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2.l História semântica do lexema 'literatura'

O lexema literatura derivahistoricamente, por via erudita, do lexema latino


Utteratura, o qual,porsuavez,é umdecalque dovocábulogregogrammatikë.
Nasprincipaislínguas europeias,oslexemasderivados,porviaerudita,de
litteratura entraram, sobformas muito semelhantes - cf. espanhol: literatura;
francês: littémture; italiano: letteratura; inglês: Uterature -, na segunda
metade do século XV, sendo um pouco mais tardio o seu aparecimento na
língua portuguesa e na língua alemã (século XVI)e na língua russa (sé-
culo xvil).
O lexema latino litteratura, derivado do radical littera - letra, carácter
alfabético -, significa saber relativo à arte de escrever e ler, gramática,
instrução,erudiçio.O litteratus- lexemadoqual,emportuguês,procedem a
forma popular letrado e a forma erudita literato - erao homem quesabia
desenhare decifrarasletras, aquelequeconheciaa gramática,emespecial a
gramáticalatina,e que,porissomesmo,gozavadeprestígio culturale social.
Nasdiversas línguas europeias, atéaoséculoXVIII,o conteúdo semântico do
lexema literatura foi substancialmente idêntico aodo seu étimo latino, desig-
nandoliteratura, emregra,o sabere a ciênciaemgeral.No GénieduChristia-
nisme(nOT), aindaChateaubriandcongloba,soba designaçãodeliteratura, a
filosofia,a astronomia,a matemática,a química, a histórianatural,a história
e a eloquência!
Anteriormente à segunda metade do século XVIII, quando sepretende deno-
minara artee o corpustextualqueactualmente designamosporliteratura, são
utilizados lexemas e sintagmas como poesia, eloquência, verso e prosa, etc.
Na segunda metade do século XVIII, o lexema literatura apresenta uma pro-
funda evolução semântica, em estreita conexão com as transformações da
cuÏtura europeianesseperíodo histórico.Subsistemnoseuuso^,porforçada
tradição linguística e cultural, os significados acima referidos, mas
manifestam-se também, em correlação com aquelas transformações, novos
conteúdossemânticos,quedivergemdosanteriormente vigentese quediver-
gem também entre si.
Porumlado,o lexemaliteraturapassoua significarumespecífico fenómeno
estético, uma específica modalidade de produção, expressão e comunicação
artísticas, enfim, uma arte, tal como a pintura e a música. Por outro lado,
passoutambéma designarosprodutos,o corpusdetextosresultantesdaquela
arte.

Dosignificadodecorpusemgeraldetextosliterários, passoucompreensivel-
mente o lexema literatura a significar também o conjunto daprodução literá-
rïa de um determinado país, tornando-se óbvias as implicações filosófico-
-políticas de tal conceito de literatura nacional: cada pais possuía^ uma
lit eratura comcaracterísticas próprias, literatura que
uma expressão do
era

espírito nacionale queconstituía, por conseguinte,umdosfactoresfunda-

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mentais para se definir a natureza peculiar de cada nação. Sintagmas como
literaturaalemã,literaturafrancesa,literaturaitaliana,etc.,foram-setornando
de uso frequente a partir dos últimos anos do século XVlll.
Eis as linhas fundamentais da evolução semântica do lexemâ literatura até ao
limiar do Romantismo. Tal evolução, porém, não se quedou aí, mas prosse-
guiu ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, em breve síntese, as mais
importantes acepções adquiridas pelo lexema neste período de tempo:
a) «Conjunto das expressões escritas do espírito humano», ou seja, o
conjunto das obras literárias de todos os povos e de todos os tempos.
Este conceito de literatura mundial ou universal (Weltliteratur) foi
primeiramente formulado por Goethe, em 1827;
b) Conjunto da produção literária de uma época - literatura do sécu-
Io XVIII, literatura victoriana -, ou de uma região - pense-se na
famosadistinçãoformuladaporMmedeStaêlentreliteraturadonorte
e literatura do sul, por exemplo;
c) Conjunto de obras que se particularizam e ganham feição especial
quer pela sua origem, quer pela sua temática ou pela sua intenção:
literatura feminina, literatura deterror, literatura revolucionária, litera-
tura de evasão, etc.;
d) Bibliografia existente acerca de um determinado assunto: literatura
sobre o barroco, literatura sobre o estruturalismo, etc. Este significado
é originário da língua alemã, da qual transitou para outras línguas;
e) Retórica, expressão artificial e falsa. Verlaine, no seu poema Ari
poétique, escreveu o famoso verso: «Et tout lê reste est littérature»,
identificando pejorativamente literatura e expressão retórica, falsa e
artificial;
f) Por elipse, emprega-se simplesmente literatura em vez de históriada
literatura;
g) Por metonímia, literatura significa também manual de história da
literatura;

h) Literatura pode significar ainda conhecimento sistemático, científico,


dofenómenoliterário.Trata-sedeumsignificadocaracteristicamente
universitário do lexema e ocorre em sintagmas como literatura compa-
rada, literatura geral, etc.

2. 2 Génesehistórico-culturaldo cotíceito de literatura

Como se conclui de quanto atrás ficou exposto, foi na segunda metade do


século XVIII que, em virtude de profundas transformações semânticas, o
lexema literatura adquiriu ossignificados fundamentais que ainda hojeapre-
senta: uma arte que utiliza como meio de expressão e comunicação a lingua-

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mentais para se definir a natureza peculiar de cada nação. Sintagmas como gem verbal, uma específica categoria da criação artística, um conjunto de
literaturaalemã,literaturafrancesa,literaturaitaliana,etc.,foram-setornando textos resultantes desta actividade criadora, uma instituição de índole
de uso frequente a partir dos últimos anos do século XVIII. sociocultural.
Eisaslinhasfundamentaisdaevoluçãosemânticado lexemáliteraturaatéao Como observa Alain Viala, no seu importante livro intitulado Naissance de
limiar do Romantismo. Tal evolução, porém, não se quedou aí, mas prosse- 1'écrivain. Sociologie de la littérature à l'âge classique (Paris, 1985), acreditar
guiu ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, em breve síntese, as mais que as transformações lexicais e as práticas culturais são sincrónicas seria
importantes acepções adquiridas pelo lexema neste período de tempo: aceitar um nominalismo infundamentado. Ao longo do século XVII, em
a) «Conjunto das expressões escritas do espírito humano», ou seja, o Françacomo noutros países europeus, vai-se configurando a literatura como
conjunto das obras literárias de todos os povos e de todos os tempos. instituição, vai-se fortalecendo e difundindo a ideia de que as belas-letras
Este conceito de literatura mundial ou universal (Weltliteratur) foi representam um domínio particularizado, predominantemente constituído
primeiramente formulado por Goethe, em 1827; pelas obras dos escritores - poetas, oradores, historiadores - e nãopelas
obras dos autores, que cultivavam indistintamente asletras e asciências. Uma
b) Conjunto da produção literária de uma época - literatura do sécu-
Io xvm, literatura victoriana -, ou de uma região - pense-se na análiselexicográfica, semânticae sociológicacomo aquela empreendida por
Alain Viala contribui de modo importante para matizar o nosso conhecimento
famosadistinçãoformuladaporMmedeStaëlentreliteraturadonorte
e literatura do sul, por exemplo; histórico da emergência do fenómeno da literatura - e não apenas da emer-
gênciadotermo literatura -, masnãopermite concluir quea modificaçãodo
c) Conjunto de obras que se particularizam e ganham feição especial conceito de literatura seja anterior a meados do século xvill.
quer pela sua origem, quer pela sua temática ou pela sua intenção:
As razõesdestamodificação e dastransformações semânticas do termo litera-
literatura feminina,literatura deterror, literatura revolucionária, litera- tura sãode váriaordem, emboraprofundamente conexionadas.
tura de evasão, etc.;
d) Bibliografia existente acerca de um determinado assunto: literatura Porum lado, o termociência adquiriu entãoum significado mais estrito, em
consequência do desenvolvimento da ciência indutiva e experimental, de
sobre o barroco, literatura sobre o estruturalismo, etc. Este significado modo que se tornou cada vez menos aceitávelincluir nas belas-Ietras os
é originário da língua alemã, da qual transitou para outras línguas; escritos de carácter científico. Em consonância com este desenvolvimento da
e) Retórica, expressão artificial e falsa. Verlaine, no seu poema Ari ciênciaindutiva e experimental, ocorreu também umaprogressiva valorização
poétique, escreveu o famoso verso: «Et tout lê reste est littérature», da técnica, difundindo-se a consciência de quetambém as obras de conteúdo
identificando pejorativamente literatura e expressão retórica, falsa e técnico não cabiam dentro do âmbito das belas-letras.
artificial;
Paralelamente comestacrescente especificaçãoepistemológica daciênciae da
f) Por elipse, emprega-se simplesmente literatura em vez de históriada tecnologia,foi ganhandofundamentaçãoe consistênciateoréticaso reconhe-
literatura; cimento da existência de uma esfera devalores peculiares e irredutíveis, por
g) Por metonímia, literatura significa também manual de história da exemplo,aosvaloresdapolítica, damoraloudaciência- a esferadosvalores
literatura; daarte, dosvalores estéticos. Duas datas, 1735- em que Baumgarten cria, na
sua obra Meditationes philosophicae de nonnulis ad poema pertinentibus, o
h) Literatura pode significar ainda conhecimento sistemático, científico,
vocábulo estética - e 1790 - em que Kant fundamenta e analisa, na sua
do fenómeno literário. Trata-se deum significado caracteristicamente
Kritik der Urteilskraft (Crítica do juízo estético), a existência autónoma dos
universitário do lexema e ocorre em sintagmas como literatura compa- valoresestéticos-, podemserconsideradascomomarcosfundamentaisdeste
rada, literatura geral, etc.
processo de reconhecimento da peculiaridade e da autonomia dos valores
estéticos.

2. 2 Génesehistórico-culturaldo cotíceito de literatura Assim se constituiu uma das antinomias fundamentais da cultura ocidental
nos dois últimos séculos - a antinomia da chamada cultura humanística
Como se conclui de quanto atrás ficou exposto, foi na segunda metade do versuscultura científíco-tecnológica. O fenómenoliteráriorepresentou, desde
século XVlll que, em virtude de profundas transformações semânticas, o o inicio, o mais relevante factor do primeiro pólo desta antinomia e a sua
lexemaliteratura adquiriuossignificadosfundamentais queaindahojeapre- importância haveria de alargar-se com o Romantismo, quer como sistema de
senta: uma arte que utiliza como meio de expressão e comunicação a lingua- valores oposto à ciência, à técnica e à civilização burguesa e capitalista
- civilização cujo progresso dependerá crescentemente dosuporte científíco-

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-tecnológico -, quer como sistema de valores susceptível de funcionar em
substituição de códigos éticos e religiosos em crise (a literatura erigida em
valor absoluto, teorias da arte pela arte, etc. ). Ora, tudo parece indicar que
palavras únicas têm tendência para substituir frases ou expressões, quando
significados novos, interesses culturais novos e importantes passam a ser
representados pelas frases ou expressões. Terá sido o que se verificou na
segunda metade do século XVIII. Sintagmas como belas-letras, letras humanas,
poesia e eloquência, etc., foram substituídos pelo lexema literatura - um
vocábulo etimologicamente ligado à escrita, ao texto escrito, ao texto que se
particulariza por usar de determinado modo a linguagem escrita.
O significado do outro vocábulo que poderia ter competido semanticamente
com literatura, o vocábulo poesia, passou a estar cada vez mais, do sé-
culo XVIII em diante, ou circunscrito a um domínio bem caracterizado da
produção literária, ou alargado a um âmbito, quer relativo ao belo artístico em
geral, quer relativo ao belo natural, que transcende a esfera da literatura.
Com efeito, verifícou-se nas literaturas europeias, desde as primeiras décadas
do século XVIII, uma acentuada valorização de textos e géneros literários em
prosa, desde o romance e o conto ao ensaio e à sátira ideológico-política. Se o
racionalismo neoclássico e o espírito filosófico iluminista desempenharam
importante papel na valorização de uma prosa literária apta à comunicação e
ao debate de ideias, o Pré-romantismo rasgou novos horizontes à prosa
literária,com o romance, a novela, asmemórias,a biografiae a autobiografia
- génerosliteráriosqueadquiriramentãoum estatuto estéticoe sociocultural
de que não usufruíam nos séculos anteriores.
Esta importância crescente da literatura em prosa - sobretudo de uma
literaturanarrativaemprosa- estárelacionadacom um dosgrandesfenóme-
nos culturais e sociológicos ocorridos no século XVIII: o alargamento substan-
ciai do público leitor. Este alargamento foi uma consequência do triunfo
económico, político e cultural da classe burguesa e originou um vigoroso
desenvolvimento da indústria e do comércio livreiros, a proliferação de insti-
tuições que possibilitavam e promoviam a leitura - bibliotecas públicas,
gabinetes e sociedades de leitura -, o aparecimento, pela primeira vez na
história, de escritores que tinham a possibilidade de viverem do rendimento
proporcionado pelas suas obras - é o caso de Voltaire - ea formação de uma
opiniãopúblicaque haveriade exerceruma funçãorelevante nãosóno campo
das questões ideológico-políticas e sociais, mas também no campo das mani-
festações artísticas.
Dentro de tal condicionalismo, não era possível alargar a designação de poesia
a uma produção literária em que avultavam cada vez mais, quer sob o ponto de
vista qualitativo, quer sob o ponto de vista quantitativo, os textos em prosa.
Poesia passou a designar predominantemente os textos literários que apresen-
tavam determinadas características técnico-formais- os textos poemáticos,
os textos escritos em verso - ou então passou a designar uma categoria
estética susceptível de qualificar quer obras artísticas não-literárias, quer
determinados aspectos e manifestações da natureza ou do ser humano (a

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-tecnológico -, quer como sistema de valores susceptível de funcionar em
poesiadeumapintura,a poesiadeumapaisagem,a poesiadeumrosto,etc. ).
substituição de códigos éticos e religiosos em crise (a literatura erigida em Tinha deseadoptar portanto outra designação genérica mais extensiva. Essa
valor absoluto, teorias da arte pela arte, etc. ). Ora, tudo parece indicar que designaçãofoi literatura.
palavras únicas têm tendência para substituir frases ou expressões, quando
significados novos, interesses culturais novos e importantes passam a ser A partir da difusãodo novo significado do termo literatura, começaram a
representados pelas frases ou expressões. Terá sido o que se verificou na
verifícar-se inevitavelmente usosanacrónicos dotermo, istoé,a suaaplicação
a épocas e a autores em que o termo não existia com o novo significado. Assim,
segunda metade do século XVIII. Sintagmas como belas-Ietras, letras humanas,
poesia e eloquência, etc., foram substituídos pelo lexema literatura - um
por exemplo, passou a falar-sedeliteratura grega,literatura latina, literatura
vocábulo etimologicamente ligado à escrita, ao texto escrito, ao texto que se
medieval, da concepção de literatura em Aristóteles, em Horácio, etc.
particulariza por usar de determinado modo a linguagem escrita.
2. 3 Do conceito de literatura ao conceito de literariedade
O significadodo outro vocábuloquepoderiater competido semanticamente
com literatura, o vocábulo poesia, passou a estar cada vez mais, do sé- A Pequenahistóriaatrásdelineadadovocábuloliteratura deixalogopreveras
culo XVIII em diante, ou circunscrito a um domínio bem caracterizado da dificuldades inerentes ao estabelecimento de uma definição do"respectivo
conceito: o vocábulo é fortemente polissémico; o conceito de literatura é
produção literária, ou alargado a um âmbito, quer relativo ao belo artístico em
geral, quer relativo ao belo natural, que transcende a esfera da literatura.
relativamente moderno e constituiu-se no âmbito deum determinado circuns-
tancialismohistórico-cultural;a literaturanãoconsisteapenasnumaherança,
Com efeito,verificou-senasliteraturas europeias,desdeasprimeirasdécadas num conjunto fechado e estáticodetextos inscrito nopassado, masapresenta-
do séculoXVIII,uma acentuadavalorizaçãodetextos e génerosliteráriosem -se antes como um ininterrupto processo histórico de produção de novos
prosa,desdeo romancee o contoaoensaioe à sátiraideológico-política. Se o textos, os quais não só podem representar, no momento histórico do seu
racionalísmo neoclássico e o espírito filosófico iluminista desempenharam aparecimento, uma novidade e uma ruptura imprevisíveis em relação aos
importantepapelnavalorizaçãodeumaprosaliteráriaaptaà comunicação e textosCateentãoconhecidos,maspodemaindaprovocarmodificaçõespro-
ao debate de ideias, o Pré-romantismo rasgou novos horizontes à prosa fundasnostextosanteriormente produzidos, namedidaemquepropiciam, ou
literária,como romance,a novela,asmemórias,a biografiae a autobiografia determinam, novas leituras desses mesmos textos.
- génerosliteráriosqueadquiriramentãoum estatuto estéticoe sociocultural
de que não usufruíam nos séculos anteriores.
Na época positivista, as dificuldades e os melindres do estabelecimento do
conceitodeliteraturaforamsimplistae radicalmente suprimidos, aoaceitar-se
Esta importância crescente da literatura em prosa - sobretudo de uma
como literatura, seguindo talvez a sugestão oferecida pela etimologia do
literaturanarrativaemprosa- estárelacionadacomumdosgrandesfenóme- vocábulo, todas as obras, manuscritas ou impressas, que representassem a
nos culturais e sociológicos ocorridos no século XVIII:o alargamento substan- civilização de qualquer época ou de qualquer povo, independentemente de
ciai do público leitor. Este alargamento foi uma consequência do triunfo possuírem, ou não, elementos de natureza estética. Neste amplo conceito
económico, político e cultural da classe burguesa e originou um vigoroso positivista de literatura, cabem tanto o poema lírico, o romance e a comédia
desenvolvimento daindústriae do comérciolivreiros, a proliferaçãodeinsti- como uma obra historiográfíca, filosófica, jurídica, etc.
tuições que possibilitavam e promoviam a leitura - bibliotecas públicas,
gabinetes e sociedades de leitura -, o aparecimento, pela primeira vez na
Em clara e consciente reacção contra este conceito positivista de literatura,
história, de escritores que tinham a possibilidade de viverem do rendimento que dominou em tantos manuais de história literária da segunda metade do
proporcionado pelas suas obras - é o caso deVoltaire - ea formação deuma
século xix e aindadasprimeiras décadasdoséculo XX,ostrêsmais influentes e
opiniãopúblicaquehaveriadeexercerumafunçãorelevante nãosóno campo
maisfecundosmovimentos deteoriae crítica literáriasdaprimeirametadedo
das questões ideológico-políticas e sociais, mas também no campo das mani-
século actual - o formalismo russo, o new criticism anglo-americano e a
festações artísticas. estilística - coincidem noreconhecimento danecessidade urgente, metodolo-
gicamente prioritária, deestabelecer com rigor um conceito deliteratura qua
Dentro detal condicionalismo, nãoerapossível alargara designaçãodepoesia literatura,istoé enquantofenómenoestéticoespecífico. Implícita ouexplici-
a umaproduçãoliteráriaemqueavultavamcadavezmais,quersobo pontode lamente, proponham, ounão,taxativasdefiniçõesdeliteratura, o formalismo
vista qualitativo, quer sob o ponto de vista quantitativo, os textos em prosa. russo, o new criticism e a estilística advogam o princípio de que os textos
Poesiapassou a designarpredominantemente ostextos literários que apresen- literáriospossuemcaracteresestruturais queosdiferenciaminequivocamente
tavam determinadascaracterísticas técnico-formais- os textos poemáticos, dostextosnão-literários,daíprocedendoa viabilidadee a legitimidadedeuma
os textos escritos em verso - ou então passou a designar uma categoria definiçãoreferencial de literatura, isto é, de uma definição que explica a
estética susceptível de qualificar quer obras artísticas não-literárias, quer natureza do objecto definido.
determinados aspectos e manifestações da natureza ou do ser humano (a

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A ideiadaexistênciadeumaespecificidadedodiscurso literárioe daesferada
literatura é de origem kantiana e desenvolveu-se, ao longo do século XIX,
muitas vezes emformulações radicais, nasteorias daarte pela arte. Nofinaldo
séculoXIXe primeiros anos do séculoXX,a ideia,bem viva naspoéticasdo
simbolismo e do modernismo, ganhara novo alento com a filosofia neo-
-kantiana, que estabelecia a existêncianacultura de domínios bem delimita-
dos e caracterizados.
O conceitodeliterariedade,formuladoporRomanJakobsonlogonospnmei-
ros anos do formalismo russo, num ensaio publicado em 1921, corresponde a
esta necessidade teorética de identificar a especificidade daliteratura. A litera-
riedade,definidaporJakobsoncomo o quefazdeumadeterminada obrauma
obra literária, como o sistema de processos que transformam um acto verbal
numaobraliterária, é concebidacomoumaessênciatranstemporal, universal,
nãoafectadapelasmudançascontextuais, quesemanifestacomoumconjunto
detraços discursivos invariantes e específicos que torna peculiares, formal e
semanticamente, os textos literários.
No âmbito do formalismo russo, constituiu-se uma teoria explicativa da
literariedade que estava destinada a conhecer uma fortuna excepcional nos
estudos literários contemporâneos: a linguagem literária é concebida e des-
crita como sendo o resultado, o produto de uma função específica da lingua-
gem verbal.
No mesmo ensaio de 1921, intitulado «A nova poesia russa», em que formula
pelaprimeiravezo conceito deliterariedade, Jakobsonescreveque«apoesia e
a linguagem nasuafunção estética», aparecendo como marca distintiva desta
funçãoo valorautónomoconcedidoà palavra.Numoutro estudomaistardio,
intitulado «O que é a poesia?», Jakobson, ao analisar o conceito de poetici-
dade, refere-se a uma função estética e a uma funçãopoética dalinguagem, que
se manifesta no facto de «aspalavras e a sua sintaxe, a sua significação, a sua
forma externa e interna não serem indícios indiferentes da realidade, mas
possuírem o seuprópriopesoe o seuvalor.próprio».Numasériedeconferên-
cias inéditas sobre o formalismo russo, proferidas em 1935 naUniversidade de
Brno e das quais se conhecem apenas alguns extractos, de novo Jakobson
analisaa naturezadapoesiacomfundamento nafunçãopoéticadalinguagem,
apresentando esta função como a dominante, isto é,como o elemento focal,
especificante, da obra poética e da linguagem poética em geral e caracten-
zandoestalinguagempelofactodeestar«orientadaprecisamenteparao sinal
enquanto tal». A função estética não anula a existência, na obra poética, de
outras funçõeslinguísticas - Jakobson menciona mais duas, a funçãoreferen-
ciaie a funçãoexpressiva -, mas subordina-as hierarquicamente, demodo que
elas se encontram, na estrutura poética, não apenas submetidas à função da
dominante, mas também transformadas por esta. Por outro lado, a função
estética pode ocorrer em textos não-poéticos, mas com carácter adjuvante ou
subsidiário,ou seja, sem o estatuto de dominante.
Por conseguinte, das diversas análises que Jakobson consagrou à função
estéticaoufunçãopoéticadalinguagemverbal, durante osanosdedesenvol-

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A ideiadaexistênciadeumaespecificidadedo discursoliterárioe daesferada
vimento doformalismo russoe duranteosanosimediatamente subsequentes à
literatura é de origem kantiana e desenvolveu-se, ao longo do século XIX, sua forçada desagregação - nos anos vinte e trinta deste século, respectiva-
muitasvezesemformulaçõesradicais,nasteoriasdaartepelaarte. Nofinaldo
mente -, conclui-se que, em seu entender, nos textos em que aquela função
século XIX e primeiros anos do século XX, a ideia, bem viva nas poéticas do actua como dominante as estruturas verbais adquirem valor autónomo,
simbolismo e do modernismo, ganhara novo alento com a filosofia neo-
onentando-se ossinaislinguísticos parasimesmos, para«asuaforma externa
-kantiana, que estabelecia a existência na cultura de domínios bem delimita-
e interna», e nãoparaumarealidadeextralinguística - orientaçãoprópriada
dos e caracterizados.
funçãoreferencial - ouparaa subjectividade do autor - orientação própria
O conceito de literariedade, formulado por Roman Jakobson logo nos primei- dafunçãoexpressiva. Quer dizer, Jakobson considera indissociáveis a função
ros anos do formalismo russo, num ensaio publicado em 1921, corresponde a estética ou poética da linguagem e a natureza autónoma e autotélica-do texto
estanecessidadeteoréticadeidentificara especificidadedaliteratura. A litera- poético, isto é, na tradição da estética kantiana, um texto que tem em si
riedade, definidapor Jakobsoncomo o que fazde uma determinadaobra uma próprio a sua razão de ser e a sua finalidade.
obra literária, como o sistema de processos que transformam um acto verbal
numaobraliterária,é concebidacomo umaessênciatranstemporal, universal,
O conceito de função poética da linguagem desempenha um papel muito
importante nas teorias do Círculo Linguístico de Praga sobre a natureza da
nãoafectada pelas mudanças contextuais, que semanifesta como um conjunto
linguagem poética. Nas Teses de 1929, o grande texto programático do estru-
de traços discursivos invariantes e específicos que torna peculiares, formal e
semanticamente, os textos literários.
turalismo checo, contrapõe-se a funçãodecomunicação dalinguagem, que se
verifica quandoa linguagem estádirigidaparaa realidadeextralinguística, à
No âmbito do formalismo russo, constituiu-se uma teoria explicativa da funçãopoética,queocorrequandoa linguagem«estádirigidaparao sinalemsi
literariedade que estava destinada a conhecer uma fortuna excepcional nos mesmo» e que caracteriza demodo específico a linguagem poética. Oselemen-
estudos literários contemporâneos: a linguagem literária é concebida e des- tos do sistema. linguístico. desempenham nalinguagem prática e nalinguagem
crita como sendo o resultado, o produto de uma função específica da lingua- teórica, caracterizadas pela função de comunicação, um papel apenas instru-
gem verbal. mental, aopasso que adquirem nalinguagem poética «valores autónomos mais
No mesmo ensaio de 1921, intitulado «A nova poesia russa», em que formula ou menos consideráveis».

pelaprimeira vez o conceito de literariedade, Jakobson escreve que «apoesia é


Num estudo que logo setornou famoso, intitulado «Linguistics andpoetics»,
a linguagemna suafunçãoestética»,aparecendocomo marcadistintivadesta publicado em 1960, Roman Jakobson retomou substancialmente as suas
função o valor autónomo concedido à palavra. Num outro estudo mais tardio,
teorias dos anos vinte sobre a função estética da linguagem, expondo-as sob
intitulado «O que é a poesia?», Jakobson, ao analisar o conceito de poetici-
forma sistemática, num quadro teórico mais amplo e com um aparato cientí-
dade, refere-se a uma funçãoestética e a uma funçãopoética dalinguagem, que
se manifesta no facto de «as palavras e a sua sintaxe, a sua significação, a sua
ficomaiscomplexo(fornecidos,ume outro,sobretudopelalinguística geral e
pela teoria da comunicação). A teoria jakobsoniana da função poética da
forma externa e interna não serem indícios indiferentes da realidade, mas
linguagem exposta no citado estudo constitui a formulação mais desenvolvida
possuírem o seuprópriopeso e o seuvalor próprio». Numasériede conferên- e amadurecida do conceito formalista de literariedade.
ciasinéditassobreo formalismo russo,proferidasem 1935naUniversidadede
Brno e das quais se conhecem apenas alguns extractos, de novo Jakobson Segundo Jakobson, a comunicação verbal pressupõe necessariamente a inte-
analisa a natureza da poesia com fundamento nafunçãopoéticadalinguagem, racçãodeseis«factores inalienáveis», quepodem serassim esquematicamente
representados:
apresentando esta função como a dominante, isto é, como o elemento focal,
especifícante, da obra poética e da linguagem poética em geral e caracteri- CONTEXTO
zandoestalinguagempelo factodeestar«orientadaprecisamenteparao sinal EMISSOR MENSAGEM DESTINATÁRIO
enquanto tal». A funçãoestética não anula a existência,na obra poética, de CONTACTO
outras funçõeslinguísticas - Jakobson menciona mais duas, a funçãoreferen- CÓDIGO
ciaie a funçãoexpressiva -, mas subordina-as hierarquicamente, de modo que
elas se encontram, na estrutura poética, não apenas submetidas à função da Cada um destes factores origina uma função linguística específica, embora
dominante, mas também transformadas por esta. Por outro lado, a função seja difícil apresentar uma mensagem em que se realize de modo exclusivo
estética pode ocorrer em textos não-poéticos, mas com carácter adjuvante ou apenas uma dessas funções: em geral, verifíca-se em cada mensagem a pre-
subsidiário, ou seja, sem o estatuto de dominante. sençademaisdoqueumafunção,impondoumadelaso seupredomínio sobre
Por conseguinte, das diversas análises que Jakobson consagrou à função as outras («função predominante»). A estrutura verbal de uma mensagem
estéticaou funçãopoéticada linguagemverbal, durante os anos de desenvol- depende primariamente da função que nela é predominante.

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Por conseguinte, Jakobson distingue seis funções na linguagem verbal:
a) A função expressiva ou emotiva (denominação proposta por A. Marty,
suíço discípulo de Brentano e colaboradordo Círculo Linguístico de
Praga), centrada sobre o sujeito emissor e aspirando a «uma expressão
directadaatitudedo sujeito emrelaçãoàquilodequefala. Tendea dar
a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou fingida. » As interjei-
coes representam o estrato da língua puramente emotivo, mas a fun-
cãoemotiva é inerente, em vário grau, a qualquer mensagem, quer se
considere o nível fónico,quer o nível gramatical ou o nível lexical. A
informação veiculada pela linguagem não pode ser restringida à
informação de tipo cognitivo.
b) A função conatíva - Jakobson designa assim a função denominada
apelativa ('Appell') por Karl Bühler -, orientada para o destinatário e
encontrando a sua manifestação gramatical mais pura no vocatívo e
no imperativo. As í. ases imperativas, ao contrário das declarativas,
não podem ser submetidas a uma prova de verdade, nem transforma-
das em frases interrogativas.
c) A função referencial (chamada também denotativa ou cognitiva),
orientadapara o referente, para o contexto.
d) A função fática, que ocorre como predominante nas mensagens que
têm como finalidade «estabelecer, prolongar ou interromper a comu-
nicação,verificarseo circuitofunciona[... ], fixara atençãodo interlo-
cutor ou assegurar que esta não afrouxa» (por exemplo: 'olhe lá', 'ora
diga-me', 'está a ouvir-me?', etc. ).
e) A função metalinguística, que ocorre «quando o emissor e/ou o recep-
tor julgam necessário averiguar se ambos utilizam na verdade o
mesmo código». Quando o discurso está centrado no código, desem-
penha por conseguinte uma função metalinguística. Esta função
representa um instrumento importante nas investigações lógicas e
linguísticas, mas o seu papel é também relevante na linguagem
quotidiana.
f) Finalmente, a função poética, centrada sobre a própria mensagem: «A
orientação (Einstellung) para a mensagem enquanto tal, o centro de
interesse incidindo sobre a mensagem considerada por si mesma, é o
que define a função poética da linguagem.» A função poética não
constitui a função exclusiva do conjunto de textos que Jakobson
designa por «arte da linguagem», pois ela é apenas a Sua função
dominante, ao lado da qual as outras funções atrás enumeradas
desempenham um papel ancilar e subsidiário. Em contrapartida, a
função poética pode desempenhar um papel secundário, embora
muito importante, em mensagens cuja função dominante seja uma das
outras funções (por exemplo, nos slogans da publicidade comercial ou
nas fórmulas da propaganda político-eleitoral/ em que se manifesta
como dominante a função conativa).

44
Por conseguinte, Jakobson distingue seis funções na linguagem verbal: Acerca da função poética da linguagem, aduz ainda Jakobson mais alguns
elementos caracterizadores que importa conhecer.
a) A função expressiva ou emotiva (denominação proposta por A. Marty,
suíço discípulo de Brentano e colaborador do Círculo Linguístico de Assim, escreve que «esta função, que põe em evidência o lado palpável dos
Praga), centrada sobre o sujeito emissor e aspirando a «uma expressão
sinais, aprofunda por isso mesmo a dicotomia fundamental dos sinais e dos
directa daatitude do sujeito emrelaçãoàquilo dequefala. Tende a dar objectos. » Estaafirmaçãoinscreve-senalinhaderumo,jáatrásanalisada,das
doutrinas dos formalistas russos - entre eles, o próprio Jakobson - e dos
a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou fingida. » As interjei-
estruturalistas do Círculo Linguístico de Praga, segundo a qual a função
coes representam o estrato da língua puramente emotivo, mas a fun-
cão emotiva é inerente, em vário grau, a qualquer mensagem, quer se poética ou estética sedistingue dafunçãodecomunicação dalinguagem pelo
considere o nível fónico, quer o nível gramatical ou o nível lexical. A facto de, nesta última, existir uma relação instrumental com a realidade
informação veiculada pela linguagem não pode ser restringida à extralinguística que nãoseverifica naquela. Nesta perspectiva, a autonomia e a
autotelicidade da mensagem poética dependem da inexistência deste tipo de
informação de tipo cognitivo.
relações instrumentais com a realidade extralinguística: a mensagem poética,
b) A função conativa - Jakobson designa assim a função denominada enquanto organizaçãoformal, enquanto textura designifícantes («o lado pal-
apelativa('Appell') porKarlBühler-, orientadaparao destinatário e pável dos sinais») - jogo de ritmos, aliterações, eufonias, rede de paralelis-
encontrando a sua manifesiição gramatical mais pura no vocativo e mos, anáforas, etc. -, constitui-se em finalidade de si mesma.
no imperativo. As frases imperativas, ao contrário das declarativas, Por outro lado, Jakobson estabelece como critério linguístico que permite
nãopodem sersubmetidas a umaprova deverdade, nemtransforma- reconhecer empiricamente a função poética - e, por conseguinte, como
das em frases interrogativas.
elemento, «cujapresença é indispensável emtoda a obrapoética» - o facto de
c) A função referencial (chamada também denotativa ou cognitiva), que«afunçãopoéticaprojecta o princípio deequivalência doeixodaselecção
orientada para o referente, para o contexto. sobre o eixo da combinação. » Qual o significado deste princípio, solidário da
d) A funçãofática, que ocorre como predominante nas mensagens que asserção jakobsoniana transcrita e analisada no parágrafo anterior? A selec-
têm como finalidade «estabelecer, prolongar ou interromper a comu- cão e a combinação constituem os dois modos fundamentais de ordenação
nicação, verificar seo circuito funciona [... ], fixar a atenção do interlo- operantes na actividade linguística, conforme essa actividade se processe
cutor ou assegurar que esta não afrouxa» (por exemplo: 'olhe lá , ora respectivamente noplanoparadigmáticoounoplanosintagmático:«Aselecção
diga-me', 'está a ouvir-me?', etc. ). realiza-se nabasedaequivalência, dasimilitude e dadissimilitude, dasinoní-
miae daantonímia, aopasso que a combinação, a construção dasequência, se
e) A função metalinguística, que ocorre «quando o emissor e/ou o recep-
funda na contiguidade. » Ora, na poesia, a sequência, a cadeia sintagmática
tor julgam necessário averiguar se ambos utilizam na verdade o
mesmo código». Quando o discurso estácentrado no código, desem-
tem como fundamental procedimento constitutivo o princípio da equivalên-
penha por conseguinte uma função metalinguística. Esta função cia:«Empoesia,cadasílaba é colocadaemrelaçãodeequivalênciacomtodas
as outras sílabas da mesma sequência; presume-se que todo o acento de uma
representa um instrumento importante nas investigações lógicas e
linguísticas, mas o seu papel é também relevante na linguagem palavra é iguala qualquer outro acentovocabular; domesmo modo, a átona
quotidiana.
equipara-se a outra átona; a longa (prosodicamente) iguala-se a longa e a
breve iguala-se a breve; limite de palavra e ausênciade limite equivalem a
f) Finalmente, a função poética, centrada sobre a própria mensagem: «A limite e ausência de limite de palavra; pausa sintáctica corresponde a pausa
orientação (Einstellung) para a mensagem enquanto tal, o centro de sintáctica, ausência de pausa corresponde a ausência de pausa. As sílabas
interesse incidindo sobre a mensagem consideradapor si mesma, é o convertem-se em unidades de medida e o mesmo acontece com as pausas e os
que define a função poética da linguagem. » A função poética não acentos.»
constitui a função exclusiva do conjunto de textos que Jakobson Como Jakobson expôs mais minuciosamente nos seus estudos «Poetry of
designa por «arte da linguagem», pois ela é apenas a sua função grammarandgrammarofpoetry» e «Grammaticalparallelism anditsrussian
dominante, ao lado da qual as outras funções atrás enumeradas facet», desenvolvendo ideias de um dos seus poetas predilectos, Gerard
desempenham um papel ancilar e subsidiário. Em contrapartida, a Manley Hopkins, toda a repetição do mesmo conceito gramatical, toda a
função poética pode desempenhar um papel secundário, embora recorrência damesma 'figura gramatical' e damesma 'figurafónica'represen-
muito importante, emmensagens cujafunçãodominante sejaumadas tam«oprincípio constitutivo daobrapoética».Estaprojecçãodasimilaridade
outras funções (por exemplo, nos slogans dapublicidade comercial ou
na contiguidade gera uma «propriedade intrínseca, inalienável» de toda a
nas fórmulas da propaganda político-eleitoral, ' em que se manifesta
poesia - a ambiguidade, a plurissignificação, fenómeno que ocorre não
como dominante a função conativa).
apenas em relação à mensagem, mas também em relação ao seu emissor, ao

45
44
seu destinatárioe à sua referência. «A supremaciada funçãopoéticasobre a
função referencial», escreve Jakobson, «não oblitera a referência(a denota-
cão), mas torna-a ambígua. A uma mensagem com duplo significadocorres-
pondem um emissor desdobrado, um destinatário desdobrado e, além disso,
O estudo de Jakobson inti- uma referência desdobrada.»
tulado «Closing statements:
Linguistics andpoetics», foi
publicado no volume edi-
tado por T. A. Sebeok, Style 2. 4 A crise dos conceitos de literatura e de literariedade
in language, New York-
-London. 1960. Sobre os
outros estudos citados, cf. A teoria jakobsoniana da função poética da linguagem, cujo objectivo é
R. Jakobson, Questions de
poétique. Paris, 1973.
explicar em termos linguísticos a essênciada literariedade, é insatisfatória e
insuficientesobdiversosaspectos. Elaboradaa partir dedeterminadasteorias
e determinadas práticas poéticas - as teorias e as práticas de certo roman-
tismo alemão e inglês, do simbolismo e do modernismo -, mostra-se dotada
de alta capacidadedescritiva e explicativaem relaçãoaos textos poéticosque
se adequam àquelas teorias e práticas, mas apresenta reduzida, ou até nula,
capacidade descritiva e explicativa em relação a grande parte daprosa literária
e em relaçãomesmo à poesiaque seafastado referido modelo, como acontece
com a poesia escrita em verso livre.
A oposição entre a função de comunicação, para utilizar este termo e este
conceito do estruturalismo de Praga, e a função poética da linguagem tem
subjacenteumaconcepçãoneokantianadaartee daliteraturaemgeralnaqual
se valoriza, por um lado, o que o próprio Jakobsondesignou como semiose
introversiva - os mecanismos e processos formais que configuram o texto
literário como uma estrutura fechadasobre si mesma, autotélicae intransitiva
e se desvaloriza, por outra parte, a potencialidade referencial do discurso
literário, a sua força ilocutiva e perlocutiva, ou seja, a sua capacidade de
representar e questionar o real e de nele intervir.
Por último, e deixandode lado objecçõesmais específicas e técnicas,deve ser
sublinhadoque a teoriajakobsonianadafunçãopoéticaassentana chamada
falácialinguística, denunciadalogo nos primeiros anos do formalismo russo
por Grigorij Vinokur,isto é,assentano erro de concebera literatura como um
subsistema dependente do sistema linguístico. Com efeito, para Jakobson a
função poética é uma das funções da linguagem e a poética é uma das
subdisciplinas da linguística. Como procuraremos demonstrar adiante, tal
concepçãodo sistema literário é inaceitável.
Curiosa e paradoxalmente, o já referido estudo de Jakobson, «Linguística e
poética», foi publicado (1960) quando começavam a desenvolver-se, nafíloso-
fiadalinguagem,nalinguística e no campo dosestudosliterários,orientações
quehaviamdecolidirinevitavelmente comprincípios e conceitosteoréticosdo
formalismo russo, entre os quais o conceito de literariedade. Referiïno-nos às
orientaçõespragmáticasque, procedentes de várias matrizes, mas sobretudo
derivadas das Investigaçõesfilosóficas (1953) de Wittgenstein, conduziriam,
nosanossessentae principalmentenos anossetenta,à constituiçãodalinguís-
tica pragmática, da teoria do texto e da pragmáticada literatura.

46
seu destinatárioe à suareferência.«A supremaciadafunçãopoéticasobre a Tais orientações pragmáticas, conferindo fundamental relevância aos usuá-
função referencial», escreve Jakobson, «não oblitera a referência (a denota- rios do sistema semiótica literário, aos agentes dos actos de comunicação
cão), mas torna-a ambígua. A uma mensagem com duplo significado corres- literária e aos contextos em que estes ocorrem, minaram os fundamentos do
pondem um emissor desdobrado, um destinatário desdobrado e, além disso, conceitoformalistadeliterariedadee acabarampor colocarem criseo próprio
O estudo de Jakobson inti- uma referência desdobrada.» conceito de literatura.
tulado «Closing statements:
Linguistics and poetics», foi O conceito formalista de literariedade, como vimos, é um conceito apragmâ-
publicado no volume edi- tico, acontextual: a literariedade identifica-se como um conjunto de marcas
tado por T. A. Sebeok, Styie 2. 4 A crise dos conceitos de literatura e de literariedade
in language, New York- formais que caracterizam, de modo invariante, os textos literários. Ora,
-London, 1960. Sobre os segundo asreferidas orientaçõespragmáticas, nãoexistem marcasformais que
outros estudos citados, cf.
R. Jakobson, Questions de
A teoria jakobsoniana da função poética da linguagem, cujo objectivo é distingam especificamente, de modo universal e atemporal, os textos
poétique. Paris, 1973. explicar em termos linguísticos a essênciada literariedade, é insatisfatória e literários.
insuficientesobdiversosaspectos.Elaboradaa partirdedeterminadasteorias Todavia, segundo asversões que poderemos classificar como versões mitiga-
e determinadaspráticaspoéticas- as teorias e as práticasde certo roman- das dapragmática da literatura, o texto literário diferencia-se de outros tipos
tismo alemãoe inglês,do simbolismo e do modernismo -, mostra-sedotada de textos, porque possui mecanismos peculiares de comunicação e porque
de alta capacidade descritiva e explicativa em relação aos textos poéticos que funciona, por conseguinte, segundo modelos comunicacionais próprios. Estes
se adequam àquelas teorias e práticas, mas apresenta reduzida, ou até nula, modelos, como é óbvio,exigem a participaçãoadequadado leitor, mas têm
capacidade descritiva e explicativa emrelaçãoa grandeparte daprosaliterária . como fundamento aqueles peculiares mecanismos de comunicação, isto é,
e emrelaçãomesmoà poesiaqueseafastadoreferidomodelo,comoacontece elementos que existem nos textos. Poder-se-á dizer que tais versões mitigadas
com a poesia escrita em verso livre. da pragmática da literatura elaboram um conceito de literariedade comunica-
A oposição entre a função de comunicação, para utilizar este termo e este cional, entendendo-se por esta expressão uma convenção constante que se
conceito do estruturalismo de Praga, e a função poética da linguagem tem manifesta textualmente em termos de processo comunicativo.
subjacente umaconcepçãoneokantianadaartee daliteratura emgeralnaqual Tais versões mitigadas da pragmáticada literatura estãorepresentadas, por
se valoriza, por um lado, o que o próprio Jakobson designou como semiose exemplo, por Marcello Pagnini que, na sua obra Pragmática delia letteratura
íntroversiva - os mecanismos e processos formais que configuram o texto (Palerma, 1980), caracterizaa literatura como um sistema semióticoe como
literário como uma estrutura fechada sobre si mesma, autotélica e intransitiva uma actividade demodelizaçãoqueintrojecta noprópriotexto ostrêsfactores do
- e se desvaloriza,por outra parte, a potencialidadereferencial do discurso modelo comunicativo habitual: o emissor, o receptor e o objecto ou o referente.
literário, a sua força ilocutiva e perlocutíva, ou seja, a sua capacidade de O texto literário apresenta introjectados, inscritos nasuaprópriatextualidade,
representar e questionar o real e de nele intervir. um emissor, um receptor e um referente. O leitor, a fim de ler o texto literário
Porúltimo, e deixandodelado objecçõesmaisespecíficas e técnicas,deveser como literatura, tem de aceitar esta convenção.
sublinhado que a teoriajakobsoniana da funçãopoética assenta na chamada Segundo asversões quepodemos classificar como versõesradicaisdapragmá-
falácialinguística, denunciadalogo nos primeiros anos do formalismo russo <» tica da literatura, não existem nos textos quaisquer marcas formais ou comu-
por Grigorij Vinokur,isto é,assentano erro deconcebera literaturacomoum nicacionaisque constituam a intrínseca especificidadeliteráriadessestextos.
subsistema dependente do sistema linguístico. Com efeito, para Jakobson a As leituras peculiares realizadas pêlos leitores é que tornam um texto num
função poética é uma das funções da linguagem e a poética é uma das texto literário.
subdisciplinas da linguística. Como procuraremos demonstrar adiante, tal Estasversõesradicaisdapragmáticadaliteratura estãomodelarmenterepre-
concepção do sistema literário é inaceitável.
sentadas na obra de Stanley Fish intitulada Is there a text in this class? The
Curiosa e paradoxalmente, o já referido estudo de Jakobson, «Linguística e authority of interpretive communities (Cambridge, Mass. - London, 1980).
poética»,foipublicado (1960) quando começavam a desenvolver-se, nafiloso- Segundo Fish, um poema e uma lista bibliográfica são diferentes, apenas
fiadalinguagem, nalinguística e nocampodosestudosliterários, orientações porque a diferença resulta de operações interpretativas diferentes que os
quehaviamdecolidirinevitavelmentecomprincípios e conceitosteoréticosdo leitores realizam e nãoporque ela tenha a suafonte em qualquer propriedade
formalismo russo, entre os quais o conceito de literariedade. Referitno-nos às inerente a um e a outra. Não são as características formais de um texto que
orientaçõespragmáticasque, procedentes de váriasmatrizes, mas sobretudo originam uma determinada leitura, mas é,sim, uma determinada leitura que
derivadas das Investigações filosóficas (1953) de Wittgenstein, conduziriam, constrói peculiares características formais num texto. Aliás, segundo Stanley
nosanossessentae principalmentenosanossetenta,à constituiçãodalinguís- Fish, pode-se formular a conclusão geral de que «todos os objectos são
tica pragmática, da teoria do texto e da pragmática da literatura. construídos e que sãoconstruídos pelas estratégiasinterpretativas que pomos
em acção».

46 47
S^S^S-^^^. -o^^p»
uteróms':Ia>u:ra^'rq^TOS\l:T^l^ár»^
determinada ^TerprectZa es^rtZbemjÍC^^^^^^^
comunidade
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co^ldadeinterpretativa'Stanle^^re "Ï^T^^ra^le
ï^S^^^^^SS
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escritanoâmbuododon^ZÏ^S^^esJ?!oes^certos-?o;de
IÏ:Assim:aïitera^r"a"^°°q^ca1'^^
m^nte,Pois.quaÍquer>c;^^S;^, ^^a;desag^a-se inevitaïeL-
radacomoinalterável^na^^nc^Zaturae."tcratura
qualquercoisa(lueé^"side-
ex.mplo'r'poad:'^^dneTec,SSVutc -sh^P.:^:puoc;
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^^^KSS^^temod°"--e
^Ï!ce Te^^^I<^5Ï^P^;Z^ Ïe;istènda:^:;m:
-7repr7s:n7:mmaïuqmuedoesnnT^Ilo bjectoque ProP""ham
estudar ... se

conceitodel^tu7a"deZT^l^^me;o,^SSesdequeote7m0^
^PoéticadoSnnbo;^c;:^^u^t^m^doalv°. Comefeito;
^^°^:o7eZ°;
mesmo
oM:^,d^^^
postergados, em"^ntruapSl^I;t^alu for_am desvalor^dos'e
ra

foramre-semantizado;pos^^^^^eral^oconceitodepoesiaque
daÏÏteratu^Z^^^^^°^ncÍ^aproclamaçã;ï;CZ^
^Et ó:^ec=roamo:^^^^^
^os. oscasos' porém'"° tóPi^u^^aTl iteerfín, aMaÏs. distintas; Em
cultura :da soA
crise da exprime estad0^^^^
ci^dpe^ciZnma^aJ;lla !u. ra

visões do mundo. ' '""^ "'luclu£tls e reílecte conflitos deideologias e de

SE?^^^^:^^pi°sc
"ma escandalosa manifestação"del eZ^S e,rSonárias'. de ílue constit^
r^OT^;""d:''';^a°Ïi, teSïJ, d,;ura'. ;!L^^^^
etc.,temtidofrequentementeuc±om^^^aturald_a Iiteraturademassas'
dcI,mi.adoï, sd,7;;;,^:::S^i^'WT
Práticas discu"rlv asïere s^i?S^^
/
dearteouà noção~d;^;^;^:^ue Possãms-reconduzidasà ideia
-SSÏ^S^ZÏ^S^^-ï-'--
", ^A^dra :S^S£, uelt^:,?"tos,'.^
valores, padrões de comportamentol uv^2<lpllm m. d?undiu
e
muitas' vezes

poaasàícrew^^^^^^s^E
48
Emconformidade como modelopragmático dotextoliterárioelaboradopor hegemónicos. Hágrandes escritores de 'direita' e de 'esquerda', conservadores
Stanley Fish, é o leitor que, mediante leituras literárias, constrói os textos
e revolucionários,burgueses e anti-burgueses,etc. Condenarin totó a litera-
literários e a literatura, mas o leitor está também já construído por uma tura por razões ideológicas como as apontadas é uma atitude ditada apenas
determinada comunidade interpretatíva, por um sistema de intefigíbilidade por estreitas razões ideológicas.
publicamente disponível que é o sistema literário. Graças a este conceïto~de
comunidade interpretativa, Stanley Fish evita a anarquização individual do As teorias pragmáticas daliteratura proporcionaram, sem dúvida, elementos
conceito deliteratura, masnãopodeevitar a suatotal mudança, tanto sincró- importantes e pertinentes para um conhecimento mais exacto do fenómeno
nica como diacronicamente. literário. Chamaram a atenção, desenvolvendo ideiasjá expostas nos anos
trinta pelo estruturalismo da Escola de Praga e pela estética fenomenológica
Asconsequências lógicasdeumaconcepção radical dapragmática dalitera- do filósofo polaco Roman Ingarden, para a função relevante do leitor na
tura estão formuladas de modo taxativo por Terry Eagleton no seu livro
existênciaplena do texto literário e revelaram as características peculiares da
Literary theory. Anintroduction (Oxford, 1983):literatura^ «umadesignação comunicação literária, pondo em evidência as limitações do conceito forma-
queaspessoas dão devezemquando, pordiferentes razões,a certos tipos de lista de literariedade. Elaboraram e difundiram, porém, ideias e argumentos
escrita no âmbito do domínio que Michel Foucault chamou práticas discursi- inconsistentes, inexactos e inaceitáveis.
vás».Assim, a literatura como categoria 'objectiva' desagrega-seinevitavel-
mente, pois«qualquer coisapodeserliteratura e qualquer coisaqueé conside- Em primeiro lugar, torna-se necessário afirmar que algumas teorias pragmáti-
!adac?moinalterávele inquestionavelmente literatura- Shakespeare,por cãsconcederamaoleitor um poderarbitrárioemrelaçãoaoestatutoliterário
exemplo - pode deixar de ser literatura». ounãoliteráriodostextos,ignorandoquera intencionalidadee o trabalhodo
autor, quer as estruturas dos textos.
Asteoriaspragmáticasdaliteratura,aodissolveremdestemodoo conceitode
literatura -^ condenando-se paradoxalmente por isso à inexistência7como Empiricamente, é facilmente refutável a afirmação de que qualquer texto
reconheceTerryEagleton,vistoque'enterram' o objecto quesepropunham considerado como literário pode deixar de ser assim considerado e de que, em
estudar ... ^-, representam maisumdosnumerosos ataquesdequeo termo e o contrapartida, qualquer texto pode passar a ser considerado como literário.
conceitodeliteratura, desdehámaisdeumséculo,têmsidoalvo. Comefeito. Não há informação de que, alguma vez, a canção X de Camões, a tragédia
na poética do Simbolismo, na estética de Benedetto Croce, na poética do Phedre de Racine, a 0& ona grecian urn de Wordsworth, o romance Ulysses de
Surrealismo, etc., o termo e o conceito deliteratura foram desvalonzad~os~e JamesJoyce,etc., tenhamdeixadosdeserreconhecidoscomotextosliterários
mesmopostergados'. emcontraPosição como termo e o conceito depoesiaque (este reconhecimento, convém sublinhar, não tem a ver com o problema da
foramre-semantizadospositivamente. O anúncioe a procÍamação da'morte' valoração desses textos, nem com o problema da variabilidade das suas
da literatura converteram-se até numa espécie de tópico, ora lutuoso7ora interpretações).
jubilatório, re-utilizado com fundamentações e finalidades distintas. Em Há milhões de textos, por outro lado, que nunca foram lidos como textos
todos^os casos, porém, o tópico da 'morte' daliteratura exprime estados~de literários e que nuncaforam como tal considerados: tratados de química e de
>ede física, códigos jurídicos, constituições políticas, estudos de farmacologia,
visões do mundo.
guias de investimento financeiro, etc.
I!.aig.um^.teorias Pragmáticasradicais da
literatura, por exemplo, ataque
o Os numerosos casos de inclusão e exclusão de textos literários do cânone, isto
contra a literatura é alimentado pelasideiasdequea literatura e umainstitui- é,do corpustextual escolhido e valorado comomodelar e comorepositório de
cãoburguesa,dequetem servidoosinteressese asestratégiasdepoderdas valores culturais nucleares, não significam a mudança da natureza desses
forçaspolítica e socialmente conservadoras e reaccionárias, dequeconstitui textos,mastão-sóumaalteração,emsituaçõeshistórico-culturaisdiversas,da
uma escandalosa manifestação de elitismo cultural, etc. Neste^contexto. a valoração que lhes é atribuída.
revalorização da literatura oral, daparaliteratura, da literatura de~massas" Os casos de textos que, não tendo sido escritos com intencionalidade literária
etc:' tem. tido frequentemente como propósito o apagamento das fronteiras
- embora seja sempre arriscado discriminar, neste domínio, o que releva e o
delimitadoras daliteratura e a desintegraçãodestanumaespéciedegaláxi'ade que não releva de uma intencionalidade literária - e que, durante um tempo
práticasdiscursivas semespeotficidades quepossamserreconduzida"sa"ideia
de arte ou à noção de experiência estética. mais ou menos longo, não foram considerados como textos literários, e que,
posteriormente, viramreconhecidoo seu estatuto literário,exigemumarefle-
Os ataques ideológicos ao conceito de literatura são destituídos de funda- xão mais acurada.
mento, poisquea literatura, nestes doisúltimos séculos,como afinala poesia Observe-se, antes de mais, que estes casos - exemplarmente representados
ao^longo de toda a históriado Ocidente, exprimiu e difundiu muïtasí"vezel
valores,padrõesdecomportamento, visõesdomundodiferentese atécontra- pela obra de Edward Gibbon, Decline and fali of the roman empire - são
postas as crenças, convicções e interesses dos grupos social e politicamente relativamente escassos. Percorra-se umahistóriadaliteratura portuguesa, da
literatura espanholaoudaliteratura francesadoséculoXXe verificar-se-áque,

48
49
quase sem excepção, as obras literárias aí estudadas e valoradas como relevan-
tes textos literários foram escritas e publicadascomo textos literários.
indubitável queler Decline andfali oftheroman empire ou Portugal contem-
poràneo de Oliveira Martins como textos literários pressupõe e exige que o
leitor adopte e ponha em prática um modelo de leitura literária, mas não é
irrefragável - bem pelo contrário - que tal leitura literária sejacompleta-
mente dissociável das estruturas rítmicas, estilísticas, retóricas, semânticas e
pragmáticasdotexto. Comefeito,pensamos quetextoscomo aquelesmencio-
nados solicitam leituras literárias, porque apresentam estruturas formais,
semânticas e pragmáticas que são identificáveis como características da
semiose literária e porque os leitores que os lêem como textos literários
colocam entre parêntesis oucancelam como nãopertinentes asinformações de
carácter historiográfico nele contidas.
Esta nossa argumentação pressupõe logicamente que sem leitura literária
nenhum texto possui uma existência plena como texto literário, mas rejeita as
ideias deque a chamada leitura literária sejauma operação semiótica omnipo-
derosa, capaz de converter em literatura qualquer texto, e de que seja uma
leitura orientada e regulada por convenções e normas que não abrangem
também os escritores e que não se manifestam e objectivam nos próprios
textos.

Criticar e refutar o conceito formalista delitera. -iedade e a teoriajakobsoniana


de função poética da linguagem não equivale a aceitar o princípio - ou
axioma- pragmáticode que o discursoliterárionãopossuimarcasformais
distintivas. È muito fácil, com efeito, recortar num romance, num drama ou
num poema lírico um segmento discursivo quepoderia sertambém um frag-
mento de uma notícia de jornal, de um livro de geografia ou de um guia
turístico, como é igualmente fácil encontrar exemplos de segmentos discursi-
vosdeumanotícia dejornal, deumareceitaculinária,deumlivro debiologia,
etc., que apresente marcas fónico-rítmicas, estilísticas, retóricas, etc., que têm
sido consideradas como peculiares do discurso literário. No âmbito dos seg-
mentos discursivos ou dasunidades lexemáticas, nãoé possível provar nada a
este respeito, porque é possível provar tudo.
A análise desta problemática só pode ser pertinentemente equacionada no
quadrodaunidadetextual:a literariedade,comofenómenosemióticacomuma
dimensão sintáctica, uma dimensão semântica e uma dimensão pragmática, só
é adequadamente apreensível e caracterizável a nível do texto e não a nível do
enunciado ou da palavra isolada. Há textos - tragédias, comédias, poemas
épicos,églogas,canções,sonetos, etc. - que apresentam umaestrutura textual
específica, com observância de convenções e normas que não relevam do
sistemalinguístico, queutilizam demodopeculiar osrecursos e meios expres-
sivos dalíngua natural em que sãoproduzidos, que constróem mundos possí-
veis dotados de mecanismos semânticos especiais e que sópodem ser adequa-
damente lidos segundo modelos de comunicação que se encontram
parcialmente inscritos e previstos nos próprios textos.
Paradoxalmente,StanleyFishfundamentaa existênciadascomunidadesinter-
pretativas naqueles que compartilham estratégias interpretativas «não para

50
quasesemexcepção,asobrasliteráriasaí estudadase valoradas comorelevan- ler, mas para escrever textos, para construir as suas propriedades». Isto
tes textos literários foram escritas e publicadas como textos literários. significa que o sistema de inteligibilidade que regula as estratégias interpreta-
tivas dos leitores - sistema que o próprio Fish designa por sistema literário
Éindubitável que ler Decline andfali ofthe roman empire ou Portugal contem- -é constituído por convenções e normas que regulam também a produção
porâneo de Oliveira Martins como textos literários pressupõe e exige que o dos textos literários e que se manifestam na materialidade e no significado
leitor adopte e ponha em prática um modelo de leitura literária, mas não é destes mesmos textos. Por conseguinte, para o próprio Stanley Fish o conceito
irrefragável - bem pelo contrário - que tal leitura literária seja completa- deliteraturafundamenta-sesempre em propriedadesformais dostextos pro-
mente dissociável das estruturas rítmicas, estilísticas, retóricas, semânticas e duzidos numa determinadacomunidadeinterpretativa - no mesmo estádio
pragmáticas do texto. Com efeito, pensamos que textos como aqueles mencio- sincrónico e namesma comunidade interpretativa, oscritérios deliterariedade
nados solicitam leituras literárias, porque apresentam estruturas formais, dos leitores coincidirão com os conceitos de literariedade dos produtores de
semânticas e pragmáticas que são identificáveis como características da textos -, apenas se verificando uma variabilidade diacrónica ou sincrómca
semiose literária e porque os leitores que os lêem como textos literários dessas propriedades formais (uma comunidade interpretativa projectará os
colocam entre parêntesis oucancelam como nãopertinentes asinformaçõesde seuscritériosdeliterariedadesobreostextosproduzidosnoutrascomunidades
carácter historiográfico nele contidas. interpretativas precedentes ou coevas). A própria argumentação de Stanley
Esta nossa argumentação pressupõe logicamente que sem leitura literária Fish invalida assim a sua asserção de que todos os textos podem potencial-
nenhumtextopossuiumaexistênciaplenacomo texto literário,masrejeitaas mente ser considerados como literatura.
ideiasdequea chamadaleituraliteráriasejaumaoperaçãosemióticaomnipo- Julgamos que é também indispensável sublinhar que a emergência do novo
derosa, capaz de converter em literatura qualquer texto, e de que seja uma conceito de literatura na segunda metade do século XVIII, se trouxe consigo
leitura orientada e regulada por convenções e normas que não abrangem elementos culturais, sociológicose institucionaisnovos, nãorepresentouuma
também os escritores e que não se manifestam e objectivam nos próprios ruptura - e muito menosumaruptura total - com o fenómenodaprodução
textos.
textual até então designado por poesia e assim designado, sem interrupção,
Criticare refutaro conceitoformalistadelitera. iedadee a teoriajakobsoniana desdea aurorada cultura ocidental. Sejamquaisforem asrelaçõesdapoesia
de função poética da linguagem não equivale a aceitar o principio - ou com o mito, com a religião, com o folclore, etc., é inquestionável que desde há
axioma - pragmático de que o discurso literário não possui marcas formais maisdedoismilénios,comodemonstraa PoéticadeAristóteles,existiajáclara
distintivas. Émuito fácil, com efeito, recortar num romance, num drama ou consciênciadassuascaracterísticas peculiares, querno respeitante à suaforma
num poema lírico um segmento discursivo que poderia ser também um frag- de expressão, quer no respeitante à sua forma de conteúdo. Os mecanismos
mento de uma notícia de jornal, de um livro de geografia ou de um guia semiológicos que configuram formal, sémica e pragmaticamente os textos
turístico, como é igualmente fácil encontrar exemplos de segmentos discursi- poéticos, desdea Gréciaantigaatéao séculoXVIII,sãofundamentalmente os
vos deuma notícia dejornal, deumareceita culinária, deum livro debiologia, mesmos mecanismos semiológicos que funcionam nos textos denominados
etc., que apresentemarcasfónico-rítmicas, estilísticas, retóricas,etc., quetem literários desde a segunda metade do século XVIII e por isso mesmo falar de
sido consideradas como peculiares do discurso literário. No âmbito dos seg- 'literatura grega' ou de 'literatura latina' constitui, sob este ponto devista, um
mentos discursivosou dasunidadeslexemáticas,nãoé possível provar nada a anacronismo bem reduzido e justificado.
este respeito, porque é possível provar tudo. A permanência e a invariância dos referidos mecanismos semiológicos não
A análise desta problemática só pode ser pertinentemente equacionada no significam que a literatura não apresente variações, transformações mais ou
quadrodaunidadetextual:a literariedade,comofenómenosemióticocomuma menos profundas, no plano diacrónico. A literatura é,como todos os sistemas
dimensãosintáctica,umadimensãosemânticae umadimensãopragmática,só semióticos culturais, um sistema aberto, cuja evolução pode modificar de
é adequadamente apreensível e caracterizável a nível do texto e não a nível do maneira importante a ideia que, num dado momento histórico, existe de
enunciado ou da palavra isolada. Há textos - tragédias, comédias, poemas literatura, e a literatura, enquanto conjunto de textos, é também, correlativa-
épicos,églogas,canções,sonetos, etc.- queapresentam umaestrutura textual mente, um conjunto aberto, não sendo possível formular quaisquer regras
específica, com observância de convenções e normas que não relevam do historicamente recursivas dotadas de capacidade preditiva em relação aos
sistemalinguístico, queutilizamdemodopeculiarosrecursose meiosexpres- textos que, no futuro, se hão-deintegrar nesse conjunto aberto e que hão-de
sivos da língua natural em que são produzidos, que constróem mundos possí- introduzir alterações, por sua vez, na dinâmica e na economia de todo o
veis dotados de mecanismos semânticos especiais e que sópodem ser adequa- conjunto.
damente lidos segundo modelos de comunicação que se encontram Háelementos textuaisconsideradosnumperíodo históricocomo extraliterá-
parcialmente inscritos e previstos nos próprios textos. rios - e atéantiliterários - e que, noutro período histórico, podem vir a ser
Paradoxalmente,StanleyFishfundamentaa existênciadascomunidadesinter- consideradoscomoelementostextuaisliterários.Assim,porexemplo,o Clas-
pretatívas naqueles que compartilham estratégias interpretativas «nãopara

51
50
sic-sm°fra^x^^^^^^rr^
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linguístico
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gica e funcionalmente distmtos, em,D^ l,l^micros"di'ferenciados: torna-se
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ÍlnstituTção e a literaturacomotextoliterário.

BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA
GARCIABERRIO.A.....O,T^* '.«-. "'*".cáudra-1989'
Press, 1978.

JAKOBSON,Roman,&^A '."<.-""<.".^era"-Ta"s-Minuit-">63'
Questionsdepoétique.Paris,Seuil,1973.
POZUELOYVANCOS,Jo,.Maria.^ ^ '."W"K"rwMadrid'câ'e<lra'
1988.

p^T. M.. L,»,... T^.. ---/'"<ra^"cmBtoomingt°°-


Indiana University Press.

-.,=íS=-. S:==.S"""""l~
. BLLEK,K»..H. .»^» - »""wto- B"Eht°°'ncH"ww
Press, 1982. ^_

52
sicismo francêsexcluía dostextos literários temas de origem e natureza folcló-
rica e elementos lexicais de cunho realista ou próprios do comportamento
linguístico de estratos sociais inferiores. Posteriormente, o Pré-romantismo e
o Romantismo conferiram àqueles temas estatuto literário e o Realismo e o
Neo-realismoconverteram em relevante factor textual literário aquele léxico
postergado pelo Classicismo francês. Estas transformações, próprias deum
sistema aberto como o sistema literário, no qual ocorre um constante e
complexo fluxo deentradas e saídas em relação à esfera danão-literatura, são
originadas por alterações do sistema denormas aceite pela comunidade literá-
ria - escritores, leitores, críticos, teorizadores, professores, etc. -, sob a
acçãodemudançasoperadashistoricamente nasestruturas sociaise culturais,
e representam um alargamento das fronteiras do discurso literário, mas não
propriamente a emergência de uma conceituação radicalmente nova da
literatura.

A dilucidação do conceito de literatura implica o estudo de objectos ontoló-


gica e funcionalmente distintos, embora interdependentes, e implica, por
conseguinte, o estabelecimento de planos analíticos diferenciados: torna-se
necessário analisar a literatura como sistema semiótico, a literatura como
instituiçãoe a literatura como texto literário.

BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA

GARCÍA BERRIO, António, Teoria de la literatura, Madrid, Cátedra, 1989.

HERNADI,Paul(ed. ),Whatisliterature?,London-Bloomington,IndianaUniversity
Press, 1978.

JAKOBSON, Roman, Essais de linguistique générale. Paris, Minuit, 1963.

Queslions depoétique. Paris, Seuil, 1973.

POZUELO YVANCOS, José Maria, Teoria dei lenguaje literário, Madrid, Cátedra,
1988.
3. O sistema semiótico literário

PRATT,MaryLouise,Towarda speechacttheoryofliterary discourse,Bloomington,


Indiana University Press.

VALDÉS,MárioJ. ; MILLER,Owen(eds.), Identity of t he literary text, Toronto-


-Buffalo-London, University of Toronto Press, 1985.

WELLEK, René, The attack on lilerature and other essays, Brighton, The Harvester
Press, 1982.

52
sicismo francês excluía dos textos literários temas de origem e natureza folcló-
rica e elementos lexicais de cunho realista ou próprios do comportamento
linguístico de estratos sociais inferiores. Posteriormente, o Pré-romantismo e
o Romantismo conferiram àqueles temas estatuto literário e o Realismo e o
Neo-realismo converteram em relevante factor textual literário aquele léxico
postergado pelo Classicismo francês. Estas transformações, próprias de um
sistema aberto como o sistema literário, no qual ocorre um constante e
complexo fluxo deentradas e saídas em relaçãoà esferada não-literatura, são
originadas por alterações do sistema denormas aceitepelacomunidade literá-
ria - escritores, leitores, críticos, teorizadores, professores, etc. -, sob a
acçãodemudançasoperadashistoricamentenasestruturassociaise culturais,
e representam um alargamento das fronteiras do discurso literário, mas não
propriamente a emergência de uma conceituação radicalmente nova da
literatura.

A dilucidaçãodo conceito de literatura implica o estudo de objectos ontoló-


gica e funcionalmente distintos, embora interdependentes, e implica, por
conseguinte, o estabelecimento de planos analíticos diferenciados: torna-se
necessário analisar a literatura como sistema semiótico, a literatura como
instituiçãoe a literatura como texto literário.

BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA

GARCÍA BERRIO, António, Teoria de la literatura, Madrid, Cátedra, 1989.

HERNADI, Paul (ed. ), What is literature?, London-Bloomington, Indiana University


Press, 1978.

JAKOBSON, Roman, Essais de linguistique générale. Paris, Minuit, 1963.

Questions de poétique. Paris, Seuil, 1973.

POZUELO YVANCOS, José Maria, Teoria dei lenguaje literário, Madrid, Cátedra,
1988. 3. O sistema semiótico literário

PRATT, Mary Louise, Toward a speech act theory ofliterary discourse, Bloomington,
Indiana University Press.

VALDÉS,Mário J. ; MILLER, Owen (eds.), Identity of the literary text, Toronto-


-Buffalo-London,University of Toronto Press, 1985.

WELLEK, René, The attack on literature and other essays, Brighton, The Harvester
Press, 1982.

52
OBJECTIVOS

Depois do estudo deste capítulo, o aluno deverá estar apto a:


compreender os conceitos de sistema semiótica literário e de código
literário;
estabelecerasrelaçõesentre o sistemaliterárioe os estilosdaépoca;
estabelecer as relações entre o sistema literário e os géneros
literários;
caracterizar a metalinguagem literária;
compreender em que consiste a memória do sistema literário;
explicar a normatividade do códigoliterário;
distinguir literatura canónicae não canónica.

55
3.l Osconceitos desistemasemióticoliterárioe decódigoliterário
O conceitodesistemaliteráriofoiprimeiramente elaboradopêlosformalistas
russos, segundo o modelo epistemológico e teórico da ciêncialinguística
prop.osto por Ferdinand de saussure no seu Cours de linguistique general
)l6). DeacordocomSaussure,a actividadelinguística concretae individuaï.
áeïënaá&porparo!e'só
fada, circuitos de
podeserproduzidae sópodeserentendidaïmteipTe-'
em
comunicação, porque se funda abstract
numa entidade a.

num-sls!ema de si8nos'. num conjunto de convenções paytilhadas por uma


comunidade, numainstituiçãosocial,enfim, queealangue.
I^ogoem1923,GrigorijVinokur,noseuestudointituladoPoerica.Linguística.
sociologia'afírma queosactosáeParolePoéticos,istoé,ostextos"poéticos
concretos e individuais, nãoconstituem expressõesestilísticas individuais assis-
temáticas,masquesãoactosexpressivosindividuaisreguladosporum~sïstema
ïpecial'. poruma/ff"^eesPecífíca quesedistinguefuncionalmente da'fo^
comunicação corrente e que se constrói a partir desta e sobre esta. Tal
/a^ule specífíca é °sistema literári0' construído segundo o mo'deïo'da"lmguï
mas irredutível àscategorias desta. ~ ---o-,
Em1928,noseuestudoprogramático«Osproblemasdosestudosliterários e
linguísticos», JurijTynjanove RomanJakobsonsublinhama importâncïada
aplicaçãodascategoriassaussurianas á&parole e dalangueao"dommio"da
literatura e afirmam: «Tambémaqui[naliteratura] nãosepodeconsÍderar"o
enunciadoindividualsemo relacionarcomo complexoexistentedasnormas;
Umsistema semiótíco é umasériefinitadesignosinterdependentes entre os
quais^atravésderegras,sepodemestabelecerrelaçõese operaçõescombinató-
nas,de modoa produzir-se semiose,istoé,«oprocesso emquealgofunciona
sinal».
como Definiremos código como o conjunto finito des regras e convém

coes que permite ordenar e combinar unidades discretas, no quadro deum


determinadosistemasemiótico,a fimdegerarprocessosdesigmfícação'e7e
^mu"^ação.queseconsubstanciam emtextos.Nestaperspectiva, o código
nãoseidentifica, portanto, com a totalidade do sistema, mas representai
In.s_trumento °PerativoquePossibilitao funcionamento dosistema,quefun-
damenta e regula a produção detextos e que,por issomesmo^^^7 uma
relevância nuclear nos processos semióticos.
^m^no_s. soentfnder' por conseguinte' ° sistema e o código,como a langue
saussunana, sãoconceitos quedizemrespeito aoplanoparadigmático, istoé,
aoplanodasrelaçõesinstituídas inabsentiaentreasunidades^emiótícas"em
termos de similitude, de alternativa
de oposição,
ou
qual possibilitad
o a um

operador(emsentidoinformático)a selecçãoe o ordenamentodessasteesmas


unidades semióticas. Por sua vez, o conceito de estrutura é um~conceÍto
) aoplanosintagmático,istoé,aoplanodasrelaçõesinpraesentiaentre
asunidades semióticas, combinadas por um operador num texto.
^codigo: exactamente Porque introduz num sistema constrições, regras,
critérios de ordem, substituindo por probabÏlidaïere
determinada gama de
pordeterminadas soluçõesimperativas a equiprobabilidade^para quetende"-

57
riam os elementos constitutivos do mesmo sistema, confígura-se como uma
rede de opções, de alternativas, de possibilidades, na qual as permissões, as
injunçõese a eventualidadedepráticastransgressivasseco-articulamdemodo
vário e em função de múltiplos factores internos ou externos ao sistema.
O sistema semiótico literário é um sistema modelizante secundário, segundo a
terminologia proposta pela chamada «escola de semiótica soviética» e em
particular pelo seu mais destacado representante, Jurij Lotman, isto é, um
sistemasemióticaqueseconstituie seorganizaa partirdo sistemamodelizante
primário que é a língua natural. Os sistemas modelizantes possibilitam ao
homem a organizaçãoestrutural, comfunçõesgnoseológicas, comunicativas e
pragmáticas, do mundo circundante, passando os seres e as coisas a serem
estruturados e categorizadoscomo sinais.Éatravésdosmodelosassimelabo-
rados que o homem constrói a semiosfera representada pela cultura.
O sistema modelizante secundário que é o sistema literário representa, assim,
uma langue, na acepção semiótica do termo, que não coincide com a língua
natural e que também não se identifica com um estrato estilístico-funcional
destamesmalíngua. Construindo-se sobrea língua natural, sópodendo existir
e desenvolver-se em indissolúvel interacção com a expressão e o conteúdo da
língua natural, «aliteratura tem um sistema seu de signos e de regras para a
sintaxe detais signos, sistema quelheé próprio e que lhe serve paratransmitir
comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (cf. Jurij M.
Lotman, La struttura dei testo poético, Milano, 1972, pp. 28-29). A existência
deste sistema semiótica, desta langue, é que possibilita a produção de textos
literários e é que fundamenta a capacidade de estes mesmos textos funciona-
rem como objectos comunicativos no âmbito de uma determinada cultura.
Quer dizer, a literatura é um sistema modelizante secundário e é também,
consequentemente, um corpus de textos que representa a objectivação, a
realização concreta e particular - as múltiplas paroles, numa perspectiva
saussuriana - desse sistema.
O sistema semiótica literário, ao constituir-se sobre outro sistema semiótica
- o sistemalinguístico -, confígura-se emrigorcomoum diassistema.Tam-
bem o códigoliterário, por idênticasrazões,seconfigura como umpolicódigo
que resulta dadinâmica intersistémica e intra-sistémica de uma pluralidade de
códigos e subcódigos pertencentes ao sistema modelizante secundário que é a
literatura e queentram emrelaçãodeinterdependência - nuns casos, necessa-
namente; noutros casos, opcionalmente - com os códigos do sistema modeli-
zante primário e também com códigos de outros sistemas modelizantes
secundários.

Nopolicódigoliteráriopodemos distinguire caracterizar osseguintes códigos:


a) Códigofónico-rítmico. - Este código, que regula aspectos importantes
da urdidura material dos textos literários, tanto no âmbito da prosa
como no âmbito da poesia, mantém uma imediata e fundamental
relação de interdependência com o código fonológico do sistema
modelizante primário e com os traços e as articulações supra-
-segmentaisdossignificanteslinguísticos, mascontraitambém,sobre-
tudo no que tange ao domínio do ritmo, importantes relações com o

58
riam os elementos constitutivos do mesmo sistema, confígura-se como uma código léxico-gramatical e com o código semântico do sistema linguís-
rede de opções, de alternativas, de possibilidades, na qual as permissões, as tico. A substância e a forma da expressão do sistema modelizante
injunções e a eventualidade de práticas transgressivas se co-articulam de modo primário proporcionam os elementos materiais e semióticos sobre os
vário e em função de múltiplos factores internos ou externos ao sistema. quais se realiza um processo de semiotização literária que pode alcan-
O sistema semiótica literário é um sistema modelizante secundário, segundo a çarum grau elevado de codificação (e.g., a musicalidade subtil e difusa
terminologia proposta pela chamada «escola de semiótica soviética» e em do verso simbolista; o ritmo da prosa oratória barroca; o ritmo da
particular pelo seu mais destacado representante, Jurij Lotman, isto é, um chamadaprosa poética, etc. ).
sistemasemióticaqueseconstituie seorganizaa partir dosistemamodelizante O códigofónico-rítmico, como qualquer dos códigosa seguir enume-
primário que é a língua natural. Os sistemas modelizantes possibilitam ao rados, pode manter umarelaçãoimportante com o códigografemático
homem a organização estrutural, com funçõesgnoseológicas, comunicativas e em que serealizar o código fonológico do sistema modelizante primá-
pragmáticas, do mundo circundante, passando os seres e as coisas a serem no, pois que existe a possibilidade de a forma, a combinação e a
estruturados e categorizados como sinais. Éatravésdosmodelos assim elabo- disposição espacial dos grafemas, tanto na sua execução manuscrita
radas que o homem constrói a semiosfera representada pela cultura. como na sua execução tipográfica, desempenharem, em conjugação
O sistema modelizante secundário que é o sistema literário representa, assim, com os espaços em branco da página, uma função marcante na estru-
tura do texto literário.
uma langue, na acepção semiótica do termo, que não coincide com a língua
natural e que também não se identifica com um estrato estilístico-funcional Por outro lado, no quadro do sistema modelizante secundário, este
desta mesma língua. Construindo-se sobre a língua natural, sópodendo existir código mantém uma primordial relação de interdependênciacom o
e desenvolver-se em indissolúvelinteracçãocom a expressãoe o conteúdoda códigométrico e podetambém apresentar relaçõesimportantes com o
língua natural, «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras para a códigoestilístico - manifestações,por exemplo, defono-iconismono
sintaxe de tais signos, sistema que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir texto literário - e com o códigoque regula os valores semânticos e
comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (cf. Jurij M. pragmáticos dos textos literários, em correlação com a concepção do
Lotman, La struttura deitesto poético,Milano, 1972,pp. 28-29). A existência mundo modelizadanessestextos e com a funçãoquelhes é atribuída
destesistema semiótica, desta langue, é que possibilita a produção de textos numa determinada situaçãohistórico-social (o ritmo, por exemplo, de
literáriose é que fundamentaa capacidadede estes mesmos textos funciona- um texto poético de combate ideológico-cultural, de índole panfletá-
rem como objectos comunicativos no âmbito de uma determinada cultura. ria, como «A cena do ódio» de Almada Negreiros, não pode ser
Quer dizer, a literatura é um sistema modelizante secundário e é também, idênticoaoritmo deumpoemaelegíaco como«OmeninodasuaMãe»
consequentemente, um corpus de textos que representa a objectivação, a de Fernando Pessoa).
realização concreta e particular - as múltiplas paroles, numa perspectiva b) Códigométrico. - Estecódigoregula a organizaçãopeculiar daforma
saussuriana - desse sistema. daexpressãodostextos poéticos- que consideramos,como adiante
O sistema semiótica literário, ao constituir-se sobre outro sistema semiótico exporemos,umsubconjuntodostextosliterários-, quernotocante à
- o sistemalinguístico -, configura-seem rigorcomoum diassistema.Tam- constituição do verso, quer no concernente à combinação e ao agru-
bem o código literário, por idênticas razões, se configura como um policódigo pamento dos versos em estrofes e noutras macroestruturas métricas do
que resulta da dinâmicaintersistémica e intra-sistémica de uma pluralidade de texto (forma da sextina, forma dacanção, etc. ). O código métrico, que
códigose subcódigospertencentesaosistemamodelizantesecundárioqueé a selecciona «os seus elementos relevantes entre os fenómenos relevantes
literatura e que entram em relação de interdependência - nuns casos, necessa- dalíngua, embora nem todos estes setornem relevantes sob o ponto de
riamente;noutros casos,opcionalmente- com oscódigosdo sistemamodeli- vista métrico», é condicionado imediata e fortemente pelo código
zante primário e também com códigos de outros sistemas modelizantes fonológico do sistema modelizante primário - nãoé possível realizar
secundários. o mesmo código métrico numa língua com acento dinâmico e numa
No policódigo literário podemos distinguir e caracterizar os seguintes códigos: língua com acento cronemático, por exemplo -, mas encontra-se
também em relação de interdependência com o código léxico-
a) Códigofónico-rítmico. - Este código, que regula aspectos importantes -gramatical - a distribuição dos acentos exigidapelo modelo do verso
da urdidura material dos textos literários, tanto no âmbito da prosa pode impor, por exemplo, modificações importantes na estrutura
como no âmbito da poesia, mantém uma imediata e fundamental frásicapreceituada na norma linguística - e com o código semântico
relação de interdependência com o código fonológico do sistema - a rima pode marcar ou sugerir uma relação semântica entre as
modelizante primário e com os traços e as articulações supra- unidades linguísticas que correlaciona, um ictopodesublinhar seman-
-segmentaisdossignifícantes linguísticos, mascontraitambém,sobre- ticamente um lexema, etc.
tudo no que tange ao domínio do ritmo, importantes relações com o

58 59
O código métrico, na sua génese, no seu desenvolvimento e na sua
desagregação, está indissoluvelmente ligado ao código semântico-
-pragmático do policódigo literário e aos sistemas semióticos que
configuram a ideologia deuma dadacomunidade social, num deter-
minado tempo histórico.
c) Código estilístico. - Este código, em relação de acentuada interde-
pendênciacom o códigoléxico-gramatical - e muito sensível àssuas
variações diacrónicas e sincrónicas - e com o código semântico do
sistemamodelizanteprimário- mastambém,emmuitoscasos,com o
códigofonológicodestemesmo sistema-, regulaa organizaçãodas
microestruturas formais do conteúdo e daexpressão do texto literário.
Quer dizer, o código estilístico organiza a coerência textual de curto
raio de acção («short-range text coherence»), tanto a nível semântico
('estrutura profunda') como a nível detextura ('estrutura desuperfí-
cie'), mediante normas opcionais e/ou constritivas de aplicação
tópica,istoé,mediantemicroestruturadores queoperamnoâmbitode
constituintes textuais contíguos.
Sobo ponto devistaintra-sistémico, o códigoestilístico mantémuma
relação importante de interdependência com o código semântico-
pragmático e como códigotécnico-compositivo (mas sublinhe-se que
entre todos os códigos constitutivos do policódigo literário existem
sempre relações sistémicas).
d) Códigotécnico-compositivo. - Estecódigoregulaa organizaçãodas
macroestruturas formais do conteúdo e daexpressão do texto literário
(estrutura dopoemaépico,estrutura datragédia,formasdanarrativa,
etc. ). Por conseguinte, o código técnico-compositivo orienta e ordena
a coerência textual de longo raio de acção («long-range text cohe-
rence»), mediante normas opcionais e/ou constritivas de aplicação
transtópica.
Dotado deacentuada autonomia perante o códigolinguístico - auto-
nomia comprovada pelo facto de, na tradução de um texto literário,
serpossível preservar indemnes asmacroestruturas formais, ao invés
do que acontece com as microestruturas -, o código técnico-
-compositivo apresenta relações importantes de interdependência com
o códigométrico - no concernente à organizaçãodasmacroestrutu-
rãsmétricas deum texto poético-, com o códigoestilístico e com o
código semântico-pragmático do policódigo literário. As macroestru-
turas reguladas pelo códigotécnico-compositivo relacionam asestru-
luras sémicas ou do conteúdo, caracterizadas pela não-linearidade,
com as estruturas textuais lineares reguladas pelo código estilístico.
Asinfluências exercidas sobreo sistema semiótica literário poroutros
sistemas modelizantes secundários denatureza estética- sobretudo a
musica a pintura e o cinema -, embora verificáveis a qualquer nível
do policódigo literário, ocorrem muito frequentemente ao nível do
código técnico-compositivo.

60
O código métrico, na sua génese, no seu desenvolvimento e na sua
e) Códigosemântico-pragmático. - Emprincípio, nenhuma substância
desagregação, está indissoluvelmente ligado ao código semântico-
-pragmático do policódigo literário e aos sistemas semióticos que do conteúdo é específica do. sistema e do texto literários (noutra
perspectiva, pode-se afirmar que nenhuma substância do conteúdo é
configuram a ideologia deuma dadacomunidade social, num deter- alheiaaosistemae aotexto literários). Masa substânciadoconteúdo.
minado tempo histórico.
c) Código estilístico. - Este código, em relação de acentuada interde-
quernoâmbitoparadigmático,quernoâmbitosintagmático,é sujeita
a específicos processos de semiotização que lhe conferem uma forma
pendênciacom o códigoléxico-gramatical - e muito sensível àssuas particular. No plano paradigmático, o código semântico-pragmático
variações diacrónicas e sincrónicas - e com o código semântico do regula a produção dasunidades e dosconjuntos semioliterários, resul-
sistemamodelizanteprimário- mastambém,emmuitoscasos,com o tantes dainteracção defactores lógico-semânticos, histórico-sociais e
códigofonológicodestemesmo sistema-, regulaa organizaçãodas estético-literários, que manifestam ou o universo semiótica cosmoló-
microestruturas formais doconteúdoe daexpressãodotextoliterário. gico ou o universo semióticoantropológicoou o universo semiótico
Quer dizer, o códigoestilístico organiza a coerênciatextual de curto social ou um universo semiótica configurado pelas inter-relações dos
raio de acção(«short-range text coherence»), tanto a nível semântico três universos antes referidos.
('estrutura profunda') como a nível detextura ('estrutura desuperfí- As unidades e os conjuntos semioliterários constituem macro-signos
cie'), mediante normas opcionais e/ou constritivas de aplicação do sistema literário e, tal como acontece com as microestruturas e as
tópica, isto é,mediante microestruturadores queoperam no âmbito de
constituintes textuais contíguos. macroestruturas textuais, são condicionados e determinados em
grandemedidapelaexistênciadeumcorpusliterário,peladinâmicada
Sobo ponto devistaintra-sistémico, o códigoestilístico mantémuma tradiçãoe dainovaçãonointerior do sistemaliterário - e,demodo
relação importante de interdependência com o código semântico- especial, pelo peculiar processo de semiotização que é a intertextuali-
pragmáticoe como códigotécnico-compositivo (massublinhe-seque dade - e por factores semióticos exógenos ao sistema literário. Com
entre todos os códigos constitutivos do policódigo literário existem efeito, o códigosemântico-pragmático, pelamediaçãoindispensável
sempre relaçõessistémicas).
docódigosemânticodosistemalinguístico, entraemcorrelaçãocom
d) Códigotécnico-compositivo. - Este códigoregula a organização das os códigos religiosos, míticos, éticos e ideológicos actuantes num
macroestruturas formais doconteúdoe daexpressãodotextoliterário determinado espaço geográfico e social e num determinado tempo
(estrutura dopoemaépico,estrutura datragédia,formasdanarrativa, histórico e por isso os macro-signos literários regulados por aquele
etc. ). Por conseguinte, o código técnico-compositivo orienta e ordena código manifestam de modo primordial e privilegiado a 'visão do
a coerência textual de longo raio de acção («long-range text cohe- mundo', o 'modelo do mundo' consubstanciados no texto literário. No
rence») mediante normas opcionais e/ou constritivas de aplicação policódigo literário, o códigosemântico-pragmático desempenha uma
transtópica. funçãodominante, porque a estrutura profundadotexto é denatureza
Dotado deacentuada autonomia perante o códigolinguístico - auto- semântica e só a partir desta estrutura, considerada como «pro-
nomia comprovada pelo facto de, na tradução de um texto literário. grama», se pode analisar e compreender adequadamente a estrutura
serpossível preservar indemnesasmacroestruturas formais, aoinvés superficial do texto e as regras e convenções fanicas, prosódicas,
do que acontece com as microestruturas -, o código técnico- grafemáticas, métricas, estilísticas, técnico-compositivas e semântico-
-compositivo apresenta relações importantes deinterdependência com -pragmáticasque a organizam.
o código métrico - no concernente à organização das macroestrutu-
rãsmétricasdeum texto poético-, com o códigoestilístico e com o 3. 2 Sistema semiótico literário e estilos de época
código semântico-pragmático do policódigo literário. As macroestru-
luras reguladas pelo código técnico-compositivo relacionam as estru- O conceito de sistema só pode ser idealmente delimitado e caracterizado
turas sémicas ou do conteúdo, caracterizadas pela não-linearidade. smcronicamente. Todavia, comojá alguns formalistas russos, emparticular
com as estruturas textuais lineares reguladas pelo código estilístico. JurijTynjanov,puseramemrelevo,o sistemaliterário,comotodosossistemas
Asinfluênciasexercidassobreo sistemasemióticaliterárioporoutros semióticos culturais, evolui, modifica-se ao longo da história, ora manifes-
sistemas modelizantes secundários de natureza estética - sobretudo a tando-se novos signos, novas convenções e novas normas, ora declinando e
musica a pintura e o cinema -, embora verificáveis a qualquer nível desaparecendo outros signos, outras convenções e outras normas.
do policódigo literário, ocorrem muito frequentemente ao"nível do Pode-se dizer que o sistema literário, em termos puramente semiológicos, é
códigotécnico-compositivo. homogéneo e invariável, mas que, em termos históricos e sociológicos, na

60

61
realizaçãohistoricamenteconcretadosseusesquemassemiológicosinvarian-
tes,o sistemaliterárioseencontraemmudançacontínua - oratãolenta c
seafígura_como imobilidade'oratãocélerequeseconfiguracomo7e~voTuÏão
-, chegando mesmo a converter-se num teatro de conïïito entre'SÏE
convenções, normas e valores diversos e antagónicos.
Sobo pontodevistadaevoluçãohistórica,podecontrapor-se, duranteum
' temporal mais ou menos longo, um sistema em declínio a um sistema
ascensionaloujáhegemónico,emboraestacontraposiçãonãoexcluafen7me^
nosdembricaçãooudemiscigenaçãodossistemasemconfronto~(s7tuação
típica deváriasliteraturas europeias noperíodo detransiçãodo'NeocÍa^f-
cismo para o Romantismo).
Porvezes^os sistemas em contraposição nãoapresentam demodo claro a
marcadedeclínio e dedominância, podendo antesconfígurar-se; numdado
período, como sistemas concorrenciais, dotados devitalidade equivalente
porquecorrespondem a ideias,valores,interessesideológicose atitudes~Draï
áegrupossociaissuficientemente poderosos paramantë-
reïln tre-si'durante algum temp0 'um relativo equilíbrio na luta pelo poder
socjocultural^emiïgação comumabaseeconómicae comumasuperestrutura
t (este fenómeno ocorreu, por exemplo, naliteratura francesa dao"rï
meirametade doséculoxvil, quando umsistema literário barroco secont7a-
°lampe slstema literário clássic0)- Quando este equilíbrio de forças, porém,
um

seio ~;eesta ruptura é semPreinevitável sistema literário represen-'


-, o

tativo da classe ou do grupo social em descensão volver-se-á"em''sTstema


progresswamentemarcadopel°ePigonisInoe peloanacronismo,perdendo-a
suaposiçãononúcleodosistema sociocultural e deslocando-se paraa perife-
nadestë. Emcontrapartida,o sistemaliteráriohegemónicoreguÍa7chamado
> deépoca.Mas,comoescreveJurijLotman, '"«nenhumcódigo'",poïcom"-
plexaquesejaa suaestruturahierárquica,podedecifraradequa7ame7t7tudo-
quanto é realmente dado num texto cultural aonível daparole. O códieo~de
uma época não é pois a única cifra, mas a cifra prevalecente»

3. 3 Sistemasemióticoliterário e génerosliterários
Da^correlação peculiar dos códigos fónico-rítmico, métrico, estilístico e
tecnico~compositivo'J5
outra sob influxo de
0r um lad0'e do códig° semântico7ragmïtíco7i
parte^, o determinada tradição literária e no âmbit'0'de
certas.coordenadassocioculturais'resultam códigosqueregulamparticulares
classesdetextosrelativamentehomogéneas,tanïo formalocomo^emân"tí^
pragmaticamente - sãoos códigos específicos dos géneros literários.
s.obumângu10semiótic0'° géneroliterárioapresenta-se,naspalavrasde
Ía. corti', como 'um
Proërama construído sobre leis muito gerafs que dizem
respeito à relação dinâmica entre certos planos temático-simbólicos~e certos
planosforlnais'encontrando~seo conjuntoemrelaçãodistintívao'uopo7itÍ^
ioutrogénero»(cf. MariaCorti, Pn^/^/foc^Mm-
cazione letteraria, Milano, 1976, pp. 158-159). O códigoque caracterizïe

62
realização historicamente concreta dos seusesquemas semiológicos invarian-
tes, o sistema literário seencontra em mudança contínua - oratãolenta que regula um género literário - o género épico, o género bucólico, o género
trágico, etc. - é constituído por relações biunívocas entre uma forma de
seafiguracomoimobilidade,oratãocélerequeseconfiguracomorevolução
expressão e uma forma de conteúdo consideradas a nível de sistema modeli-
-, chegando mesmo a converter-se num teatro de conïïito entre signos, zante secundário.
convenções, normas e valores diversos e antagónicos.
Sob o ponto de vista da evolução histórica, pode contrapor-se, durante um Estas relações biunívocas, em cuja constituição e em cujo funcionamento
lapso temporal mais ou menos longo, um sistema em declínio a um sistema interactuam factores acrónicos de ordem lógico-semântica e factores históri-
ascensional oujáhegemónico, embora estacontraposição nãoexclua fenóme- cos e socíológico-culturais, assumem o carácter de convenções e normas de
nosdeimbricaçãooudemiscigenaçãodossistemas emconfronto (situação impositividade variável que representam instituições ou institutos da litera-
típica de várias literaturas europeias no período de transição do Neoclassi- tura, entendendo-se porinstituiçãoouinstituto «umanorma ouumconjunto
cismo para o Romantismo). de normas que ordenam um campo particular da experiência de modo a
predispô-lo a atingir certos fins». Tais instituições literárias constituem «sis-
Por vezes, os sistemas em contraposição não apresentam de modo claro a
temas operativos móveis e plurívocos» que se organizam, se transformam. se
marca dedeclínio e dedominância, podendo antes confígurar-se, num dado exaurem e por vezes revivem no decurso da história,em funçãode factores
período, como sistemas concorrenciais, dotados de vitalidade equivalente, internos do próprio sistema literário ou/e em função de forças e elementos
porque correspondem a ideias, valores, interesses ideológicos e atitudes prag- exógenosaomesmo sistema,masqueestãoeminteracçãocomele(mutações
máticasdeclassesoudegrupos sociais suficientemente poderosos paramante- culturais, ideológicas, políticas, económico-sociais, etc. ).
rementresi durantealgumtempo,umrelativo equilíbrio nalutapelopoder
sociocultural, emligaçãocomumabaseeconómicae comumasuperestrutura Em relação ao autor/emissor, os códigos dos géneros literários funcionam
política (este fenómeno ocorreu, por exemplo, naliteratura francesa dapri- como um filtro, como um modelo interpretativo da realidade do mundo. da
meira metade do século XVII, quando um sistema literário barroco se contra- sociedade e do homem, quer no plano temático, quer no plano formal:
pôsa um sistema literário clássico). Quando esteequilíbrio deforças, porém, impõem, aconselham ou sugerem a adopção de certos personagens, de certos
serompe - e estaruptura é sempre inevitável -, o sistema literário represen- motivos, de certos temas, de certo registo linguístico, de certos estilemas, de
tativo da classe ou do grupo social em descensão volver-se-á em sistema certosesquemasmétricos,decertasmacroestruturas daformadaexpressão. Em
progressivamente marcado pelo epigonismo e pelo anacronismo, perdendo a relaçãoaoleitor/receptor, criam um horizonte deexpectativas, que seidenti-
suaposição no núcleo dosistema sociocultural e deslocando-se paraa perife- ficacom um programa deleitura, predispondo o receptor parauma determi-
riadeste. Emcontrapartida, o sistema literário hegemónico regulao chamado nadaforma daexpressão e uma determinada forma do conteúdo, guiando-o
estilo deépoca.Mas,como escreve Jurij Lotman, «nenhum condigo,por com- napercepção e nacompreensão dacoesãoe dacoerênciado texto, orientan-
do-o na construção dos significados, etc.
plexaquesejaa suaestrutura hierárquica, podedecifrar adequadamente tudo
quanto é realmente dadonumtexto cultural aonível daparole. O códigode
uma épocanão é pois a únicacifra, mas a cifra prevalecente» 3. 4 Sistema semiótico literário e metalinguagem literária
A organização do sistema literário, a natureza e o funcionamento dos seus
3. 3 Sistema semiótica literário e génerosliterários
signos e códigos, têm sido objecto, ao longo da história, de uma reflexão e de
Da correlação peculiar dos códigos fónico-rítmico, métrico, estilístico e uma conceptualização que constituem a metalinguagem literária e que se
técnico-compositivo por um lado, e do códigosemântico-pragmático, por manifestam nosmetatextos daliteratura, isto é,aqueles textos nos quais, com
outra parte, sob o influxo de determinada tradição literária e no âmbito'de objectivosdescritivos,analítico-explicativos e/ounormativos,semencionam,
certas coordenadas socioculturais, resultam códigosqueregulam particulares formulam, caracterizamoujustificam ossignos,asconvenções,asregras,os
classes detextos relativamente homogéneas, tanto formal"como semântica e mecanismos semióticos, enfim, que subjazem aos processos de produção,
estruturação e recepção dos textos literários.
pragmaticamente - são os códigos específicos dos géneros literários.
Sob um ângulo semiótica, o género literário apresenta-se, nas palavras de Estametalinguagem literária, imediatamente vinculada à práticaliteráriade
MariaCorti como«umprogramaconstruído sobreleismuitogeraisquedizem umdeterminado período históricoporumafunçãodeinterdependência, deve
respeito à relação dinâmica entre certos planos temático-simbólicos e certos ser considerada como factor integrante do sistema semiótica literário - nesta
planosformais,encontrando-seo conjuntoemrelaçãodistintivaouopositiva perspectiva, impõe-se reconhecer «que o que denominamos literatura/poesia
faceaoprograma deumoutrogénero»(cf.MariaCorti, Principideliacomuni- e uma pratica mais a sua metalinguagem» -, distinguindo-a da teoria da
cazione ïetteraria, Milano, 1976, pp. 158-159). O código que caracteriza e literatura, pois que não obedece àsexigências epistemológicas, heurísticas e
metodológicasque caracterizamuma teoria científica.

62

63
A metalinguagem literária manifesta-se necessariamente sob a forma de uma
poéticaexplícita, aparecendo formulada sobretudo emtextos queapresentam
comofinalidade exclusiva oudominante a defesaoua condenação, a descrição
e a análise com carácter mais ou menos marcadamente normativo, das con-
venções e regras que configuram oscódigosliterários: artes poéticas, tratados
de poética e de retórica, programas e manifestos de escolas e movimentos
literários, prefácios, epígrafes, etc. A metalinguagem literária pode
manifestar-setambémsoba formadefragmentos depoéticaexplícita insertos
naestrutura detextosliterários- romances, poemasépicos,églogas,epísto-
las, etc. -, quer atribuídos imediata e directamente à responsabilidade do
autor/emissor, quer endossadospor esteà responsabilidade depersonagens
que nesses textos figuram (recorde-se, a título exemplificativo, a discussão
sobre o realismo e o naturalismo que, no capítulo VI d'Os Maios de Eçade
Queirós, sedesenvolve entre algumas daspersonagens do romance).
Em nosso entender, admitir, como propõem alguns autores, a existência de
uma «metalinguagem literária implícita» equivale a cair no erro de uma
contradictiointerminis,poiso conceitode'metalinguagem' implicao conceito
de'explicitude'.A 'consciêncialiterária'deumautor,deumgrupodeescrito-
rés,etc.,é quepodemanifestar-se soba formadeumapoéticaexplícita ousob a
forma de umapoéticaimplícita, isto é,de umapoéticanãoexplicitamente
teorizada, mas defluente daprópriarealizaçãodostextos literários. A recons-
tituiçãodoscódigosliterários actuantes num dadoperíodo histórico e numa
determinadacomunidadesocioculturalexigeo conhecimentotantodapoética
explícita como da poética implícita e a análise das modalidades de relação
verificáveis entre ambas.

3. 5 A memória do sistema semiótíco literário

A memóriadosistemasemiótíco literárioé constituída pelo 'bancodedados'


dosistema,ouseja,peloconjunto designos,denormase deconvençõesque,
num dadomomento histórico, existem no âmbito dosistema, atinentes a todos
os códigosque discriminámos no respectivo policódigo. A memóriarepre-
senta em termos semióticos, a chamada tradiçãoliterária, que não deve ser
identificada com uma inerte ou indiferenciada acumulação diacrónica de
elementos, já que a memória, em cada estádio sincrónico do sistema, se
encontra organizada e valorada sistemicamente. Sem a memória, o sistema
nãofuncionaria- oscódigosnãopodemobviamentesergeradosnaausência
dememória -, mas o policódigo, tanto pela suametalinguagem como pela
prática dele decorrente, pode privilegiar o próprio princípio da tradição
literária, atribuindo valor cimeiro ao complexo semiótica de temas e formas
quejáestáconformado, quevemtransmitidoporgeraçõesanteriorese que é
aceite como exemplar repositório de signos e das respectivas normas de
combinaçãoe transformação, e reforçando assima estabilidadedosistemaem
função de um património cultural e literário reputado como canónico ou
clássico; oupodeprivilegiar umprincípio deruptura, mais oumenos violenta e
ampla, com a tradição literária, com o corpus de signos e a competente

64
A metalinguagem literária manifesta-se necessariamente sob a forma de uma gramática que consubstanciam a memóriado sistema, valorizando por conse-
poética explícita, aparecendo formulada sobretudo em textos que apresentam guinte asideias de novidade, de originalidade, de contestação das regras e dos
como finalidade exclusiva ou dominante a defesa ou a condenação, a descrição padrões estéticos dominantes, etc. Todavia, observa-se que, no primeiro caso,
e a análise com carácter mais ou menos marcadamente normativo, das con- a tradição literária se identifica com uma particular tradição literária - para
vençõese regrasqueconfiguramoscódigosliterários:artespoéticas,tratados um autor neoclássico como Correia Garção, por exemplo, a tradição literária
de poética e de retórica, programas e manifestos de escolas e movimentos integrava Horácioe António Ferreira, masexcluía Góngorae Jerónimo Baía,
literários, prefácios, epígrafes, etc. A metalinguagem literária pode abarcavaBoileau e Racine, masnãocompreendia Graciánnem Calderóndela
manifestar-setambémsoba formadefragmentosdepoéticaexplícita insertos Barca- e que,nosegundo caso,o ataqueà tradiçãoliterária,mesmo quando
na estrutura de textos literários- romances, poemas épicos,églogas,epísto- iconoclástico, é quase sempre o ataque também a uma particular tradição
las, etc. -, quer atribuídos imediata e directamente à responsabilidade do literária, acompanhado da descoberta e da exaltação de outra tradição literá-
autor/emissor, quer endossadospor este à responsabilidadede personagens ria (integrada, em geral, numa tradição de 'antitradição'). Assim, por exem-
que nesses textos figuram (recorde-se, a título exemplificativo, a discussão pio, os românticos postergaram a tradição literária neoclássica, mas redesco-
sobre o realismo e o naturalismo que, no capítulo VI d'Os Maias de Eça de briram outra tradição literária, abrangendo escritores que haveriam mais
Queirós,se desenvolve entre algumas das personagens do romance). tardedesercaracterizados como maneiristas e barrocos (Tasso, Shakespeare,
Em nosso entender, admitir, como propõem alguns autores, a existência de Lope de Vega, etc. ); os surrealistas criticaram corrosivamente a tradição
uma «metalinguagem literária implícita» equivale a cair no erro de uma literária do Realismo e do esteticismo finissecular, mas proclamaram a sua
contradictio in terminis, pois o conceito de 'metalinguagem' implica o conceito tradição literária, que vai do 'romance negro' setecentista e de Sade até
de'explicitude'.A 'consciêncialiterária'deumautor, deumgrupodeescrito- Lautréamonte Apollinaire,passandopor Novalis,Hõlderline Nerval. Pode-
rés,etc.,é quepodemanifestar-sesoba formadeumapoéticaexplícita ousob a -seafirmar que a emergênciahistóricadeum novo policódigo implica sempre
forma de uma poética implícita, isto é, de uma poética não explicitamente a reestruturação, com maior ou menor amplitude, da tradiçãoliterária.
teorizada, mas defluente daprópria realização dos textos literários. A recons- Na memória do sistema literário, coexistem elementos de natureza meta-
tituiçãodos códigosliteráriosactuantesnum dadoperíodo históricoe numa -histórica- elementos inscritos na esfera da semiose biológica, arquétipos,
determinadacomunidadesocioculturalexigeo conhecimentotanto dapoética mitos, símbolos e esquemas formais gerados pelas 'estruturas antropológicas
explícita como da poéticaimplícita e a análise das modalidades de relação do imaginário', elementos de ordem lógico-semântica, atinentes quer à forma
verificáveis entre ambas. da expressão, quer à forma do conteúdo - e elementos de natureza histórica,
produzidos no fluir da temporalidade histórica e no âmbito de uma dinâmica
histórica.A presençadeelementos denaturezameta-históricanamemóriado
3. 5 A memória do sistema semiótico literário
sistema literário não implica que este não constitua uma entidade semiótica
A memória do sistema semiótica literário é constituída pelo 'banco de dados' historicamente fundada e configurada e só globalmente inteligível, na sua
do sistema, ou seja, pelo conjunto de signos, de normas e de convenções que, organização,no seufuncionamento e nasuateleonomia, quando integrada no
numdadomomento histórico,existemno âmbitodo sistema,atinentesa todos seu horizonte histórico específico. Os elementos meta-históricos estão subor-
os códigos que discriminámos no respectivo policódigo. A memória repre- dinados à nomologia do sistema e esta nomologia é, em última instância, de
senta, em termos semióticos, a chamadatradiçãoliterária, que não deve ser teor histórico, razão por que, dentro da lógica e da dinâmica sistémicas, os
identificada com uma inerte ou indiferenciada acumulação diacrónica de próprios elementos meta-históricos são investidos de funções e significados
elementos, já que a memória, em cada estádio sincrónico do sistema, se históricos, embora não se deva ignorar ou menosprezar a sua relativa inva-
encontra organizada e valorada sistemicamente. Sem a memória, o sistema riância, a sua lógica intrínseca, as suas articulações transtemporais, a sua
nãofuncionaria - os códigos nãopodem obviamente ser gerados na ausência pervivência através das épocas e de espaços geográfíco-culturais diversos.
de memória -, mas o policódigo, tanto pela sua metalinguagem como pela Mas não só a respeito destes elementos meta-históricos é lícito falar de
prática dele decorrente, pode privilegiar o próprio princípio da tradição constantesouinvariantesdo sistemaliterário.Comefeito,muitos elementos da
literária, atribuindo valor cimeiro ao complexo semiótico de temas e formas memóriado sistemaliterário, que apresentam uma génesee um desenvolvi-
que já está conformado, que vem transmitido por gerações anteriores e que é mento histórico-culturaismais ou menosrigorosamentedelimitadose carac-
aceite como exemplar repositório de signos e das respectivas normas de terizados - elementos estes procedentes tanto de uma matriz literária como
combinação e transformação, e reforçando assim a estabilidade do sistema em de uma matriz extraliterária (crenças religiosas, cerimónias rituais, folclore,
função de um património cultural e literário reputado como canónico ou etc. ) -, podem converter-se em elementos relativamente transtemporais,
clássico;oupodeprivilegiarumprincípio deruptura,maisoumenosviolenta e funcionando como macro-signos que, para além das modulações ou trans-
ampla, com a tradição literária, com o corpus de signos e a competente formaçõesparcelares, mantêminalteráveis, aolongodeséculos,certasmarcas

64 65
sémicase/ouformaisquemanifestame garantema ^alden^Eo^e

teeuxrtoonsegarse^s;Gc aTu ;grr durada Idade Média e em


épo^P-te^so^
:Z^^"mT:nlS^u^s^o^^^^
^^n^a^s^stilord e'épo^-^por^emplo^^^^
ï^S^^^S
^ssss^^sï

' Cf. Adrian Marino, La cri-


tique dês idées littéraires,
Bruxelles, 1977, pp. 206 e
:p^:t^^e^. ^^^^^^
220.

2 Cf. Harold Bloom, The


anxiety of influence, New
York, 1973.

papeïna estruturação daculturaocidental. _^ ___, ^, ^mió.

d*o7ont"eúdo-detextos anteriormente produzidos. A

66
funciona assim como um efectivo contexto vertical do texto literário, um
sémicas e/ou formais que manifestam e garantem a sua identidade. E o que contexto entretecido de múltiplos e, por vezes, difusos nexos que seafundam
acontece,por exemplo, comalgunstópicos(topoioulocicommunes) - moti- naespessuradotempoe noqualossignos(ostextos)datradiçãoseconvertem
vos,temase esquemas formais queserepetem aolongodostempos, permane- em autênticos referentes homossistémicos dos textos em que se produzem a
cendo substancialmente invariáveis - que têm a sua origem imediata em alusãoou a conexão intertextual cônsciaouinconsciamente motivadas. Este
textos gregos, helenísticos e latinos e que se disseminaram nas literaturas contexto vertical, semioticamente importante em todos os tipos de textos
europeias emlíngua vulgardurante a IdadeMédiae emépocasposteriores ou literários, assume particular relevância nos textos da poesia lírica.
queseformaramjánasliteraturas europeiasmodernas,noâmbitodocódigo
de determinados estilos de época - por exemplo, os tópicos do código Em relação ao receptor, a memória do sistema literário funciona como o
petrarquista ou ostópicosdocódigobarroco- ounoâmbitodocódigode mecanismo semiótica quepossibilita, dificulta ou interdita a leitura literária
determinados génerosliterários- ostópicos,por exemplo, docódigobucó- dos textos: possibilita, quando a memória utilizável pelo receptor seencontra
lico. Estes tópicos, todavia, embora funcionando semíoticamente num raio emrelaçãodeintersecçãosemioticamenteprodutivacoma memóriautilizada
temporal de langue durée- e daí lhes advéma relativatranstemporalidade pelo emissor; dificulta, quando o receptor conhece fragmentária e precana-
queosmarca como tópicos -, nãosóestãoenraizados originariamente numa mente a memória literária da qual se alimenta e a partir da qual se estrutura o
historicidade peculiar, como também se transformam funcionalmente em texto; interdita, quando entre a memória literária utilizada pelo autor e a
conformidadecom o sistemaliterário em que, diacronicamente,possamvir a memória literária possuída pelo receptor existe uma relação de exclusão
integrar-se- o tópicodasruínas, por exemplo, assumesignificadosdiversos mútua.
nocódigodapoesiarenascentista, nocódigodapoesiabarroca e nocódigoda
poesiaromântica-, de modo que a historicidade de cadasistemaliterário 3. 6 A normatividadedo códigoliterário
relativizanecessariamentea suaconstânciasémicae/ouformal. Namemória
do sistema literário observa-se assim uma tensão contínua entre factores
meta-históricos e factores históricos, entre a lógicadainvariância e a impositi-
O códigoliterárioé sempreumconjunto finito denormas e convenções,mas a
vidadedatransformaçãotemporal, entrea conservaçãoe a inovação- tensão
sua impositividade apresenta-se como bastante variável diacronicamente,
dependendo da organização interna do próprio código e da sua correlação
que, muitas vezes, gera situações indeterminadas de tipo fuzzy (e por isso com outros códigos actuantes contemporaneamente no mesmo espaço
Adrian Marina, no limite do paradoxo, se refere a um nível «invariante
cultural.
historicizado» e a «elementos histórico-constantes» para caracterizar certos
' Cf. Adrian Marina, Lacri- aspectos de tal tensão).' O códigoliterário podeestarconstituído comrigore minúcia,distinguindo-se
tique dês idées littéraires, A memória do sistema desempenha uma função de grande relevância no as suas normas e convenções por uma formulação explícita e por uma sólida
Bruxelles, 1977, pp. 206 e
220. processo da comunicação literária. Funciona como um thesaurus em que articulaçãointerna.Naorganizaçãoe nofuncionamento destetipodecódigo
perduram, confluem e dialogam motivos, imagens, símbolos, temas, esquemas literário desempenha uma função de grande relevo, senão mesmo de domi-
formais, técnicas compositivas, estilemas, etc., a cujo influxo o emissor nãose nância, a metalinguagem mediante a qual o sistema se autodescreve e se
podeeximir- colocamos sempreentreparêntesesa 'linguagem edénica'do autocaracteriza e queseconsubstancia emmetatextos: tratados depoéticae de
hipotético 'poeta adâmico' -, quer imite esse thesaurus sob o signo da retórica,textosliterárioscujaformadoconteúdoé atinente aoprópriosistema
auctorítas, quer o module sob o signo daaemulatio, quer imponha qualquer e à suametalinguagem, prefáciose notasdeíndole programático-doutrinária,
tipodedescontinuidadeemrelaçãoaosseusmodelos(aansiedadeedipiana,se manifestos deescolas, etc. Quando nametalinguagem de um códigoliterário
2 Cf. Harold Bloom, The se aceitar a tese de Harold Bloom, 2 que todo o poeta sente em lutar contra os assumem preponderância princípios estéticos como a aceitação de que no
anxiety of influence, New
York, 1973.
seusgrandesprecursores, procurando contradizer, distorcer, lacerar, enfim, o processo da produção literária cabe à arte uma função nuclear como a
legadopoéticodequeeleé filho, reafirma apenas, noplano danegatividade, a apologiadoprimado datradiçãoliterária, comoa necessidade daimitaçãode
função semiótica relevante da memória do sistema). Não é sem uma razão autores e textos reputados como modelares - o quepressupõe a formação de
profunda que na cultura grega, desde Hesíodo, as Musas são configuradas um cânone-, então osmetatextos desse códigoapresentam logicamente um
comofilhasdeZeuse daMemória(Mnemosyne) e nãocarecedesentido que à teor preceptivo e uma função primordialmente conativa ou didáctico-
faculdade e aos poderes da memória tenha sido assinalado um importante -conatíva: estabelecem os parâmetros da semiose literária «correcta», formu-
papel na estruturação da cultura ocidental. lando normas e convenções que o emissor deve actualizar nos seus textos,
A memóriado sistema, maisespecificamente,representao mecanismosemio- prescrevendo proibições, fixando critérios devaloração estética. Estetipo de
ticoquepossibilitaaoescritorpraticara alusãoliterária,a intertextualidade, a códigoliterário é característico doClassicismo e doNeoclassicismo e pode-se
re-utílização, numdadotexto,deelementos daformadaexpressãoe daforma encontrar a sua manifestação paradigmática na Art poétique de Boileau.
do conteúdo de textos anteriormente produzidos. A memória do sistema

67
66
-.ï^^::^^^^^??
exte^prors lÏa. ^°^^^"<;?^ ^l^^PO"tica:
amoldar.^ru: ^Sa ^n^Z^r>^é;d;imPO;ição^e
sociale religiosa e manifesta asu_amre^cl;^;;da ^"difundida com uma
;r:or^oxia^. rir,a^p^^nt^^^^^^^
^^^^^^^^^^
^??S££5Eï=^
s^:^^ȕ^^^^-os
da memória do sistema literário.

v^^^^^^^^^^
ment!eS^?n^^^^Ï^^ll^i^ntórcgrale
^ertos
Pnnc^ln lT:f;^ami^lAunuol rmua^^^^^^
convenções numerosas e Pamcu1^^^-^, ^^ eméticos conformadores
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A impositividade de um código literário pode ainda dimanar deuma instância Se a ruptura profunda e violenta provocada por um emissor face ao código
exterior ao processo da semiose literária, mas que nele interfere a fim de o dominante se apresentar como um fenómeno marcadamente individual,
amoldar aos seus objectivos. Essa instância pode ser de natureza política, poder-se-á estar perante um caso anómalo, com implicações detipo psicanalí-
social e religiosa e manifesta a sua interferência quer através da imposição de tico ou outras do foro psíquico - e os seus textos representarão entidades
uma «ortodoxia» literária explicitamente formulada e difundida com uma aleatóriasno sistema semiótica literário -, ou poder-se-áestar perante um
função conativa pelo sistema escolar e pêlos meios de comunicação social, complexo caso de antecipação devalores - semânticos, pragmáticos, tècmco-
quer através deuma censura prévia, quer ainda através de uma repressão post -formais, etc. - que apenashão-deganharcompreensão e aceitaçãocolectivas
noutro horizonte histórico e noutro contexto sociocultural. Nesta última
factum.Aquela«ortodoxia»é constituída nãoapenaspornormas,convenções
e valores que se torna obrigatório aceitar e realizar, mas também por exclu- hipótese, o emissor considerado como hermético e maldito pêlos receptores
soes, esquecimentos, ocultação e,muitas vezes, destruição decertos elementos seus contemporâneospoderáser revalorado posteriormente como precursor
da memória do sistema literário. deum novo códigoentãoemergenteouhegemónicoe osseustextospassarão a
desempenhar no sistema semiótica literário uma função comunicativa e pro-
Noutros casos, o códigoliterário pode apresentaruma organizaçãorelativa- dutiva que a lógicados códigosanteriores lhes denegava.
mente esquemática, comapreciávelmargemdeindeterminação, comportando
certosprincípios e normasgerais,massemenunciarímpositivamente regras e 3. 7 O núcleo e a periferia do sistema: literatura canónica e literatura
convenções numerosas e particularizadas. Anormatividade frouxa deste tipo marginal
de código pode ser ainda acentuada pêlos princípios estéticos conformadores
da sua metalinguagem: por exemplo, a proclamação da liberdade criadora, a No sistema literário, como em qualquer sistema semiótico cultural,
valorização do engenho e do génio, em detrimento de quaisquer regras ou distinguem-se e contrapõem-se diversos níveis, estratos ouespaçosdesemiose e
normas, a afirmação do relativismo dos valores estéticos, etc. Em teoria, de produção textual.
enquanto o tipo decódigoanteriormente descrito conduza umauniformiza- Segundo uma concepção topológica do sistema, o núcleo é representado pela
cãorígida do campo daprodução literária, estoutro tipo de códigopermite e literatura canónica ou literatura superior ou literatura sem nenhum modifica-
até incentiva e justifica a diversificação deste campo, abrindo caminho à dor, isto é,pelo conjunto de obras consideradas como particularmente valio-
existênciasincrónicade um poliglotismo literário. sãs e como modelares pela comunidade literária e, sobretudo desde o sécu-
Se há casos em que o autor aceita dócil e passivamente a imperatividade do lo XX, pela escola. O cânone literário é constituído através dejuízos de valor
código,produzindo textos que constituem repetiçõestriviais e estereotipicas que nele incluem ou dele excluem autores e obras, sendo a sua constituição
dasnormas e convenções nele estabelecidas, outros casos severificam, porém, uma contínua luta entre os agentes e as forças que disputam a hegemonia do
em que o autor provoca uma ruptura declarada com o código, infringindo poder simbólico. O cânone estásempre sujeito, por isso mesmo, a modifica-
extensa e profundamente, ou mesmo subvertendo, as suas regras e conven- coes diacrónicas, em conformidade com a variação dos valores estético-
coes. Em geral, semelhante fenómeno não é de âmbito individual, -literários, dos factores culturais, sociais, etc., embora apresente constâncias
manifestando-se antes de modo relativamente homogéneo em vários emisso- ou permanências fundamentais (no cânone da literatura portuguesa, por
res/autores interligados por factores como a inserção no mesmo quadro exemplo, Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, Camilo, Eça de Queirós,
histórico-geracional, uma análoga atitude ideológico-pragmática, etc., e indi- Fernando Pessoa... ). A literatura canónica é valorada como um património
cia a emergência histórica - que pode ser acompanhada da formulação de cultural que identifica de modo insubstituível a própria comunidade nacional
uma poética explícita - de um novo código literário. Se a ruptura com o (e assim Camões, Cervantes ou Dante, por exemplo, sãosímbolos dePortugal,
código até então dominante se revestir de um radicalismo extremo, como da Espanhae da Itália).
acontece com os chamados movimentos de vanguarda, os textos produzidos
A partir do núcleopara a periferia do sistema, sucedem-se zonas ou níveis de
apresentarão uma legibilidade reduzida - e tendencialmente nula - para um valor decrescente: a literatura secundária ou menor, que se integra todavia na
número muito elevado de receptores e o processo da comunicação literária literatura stricto sensu, e a paraliteratura, a infraliteratura, â subliteratura, a
sofrerá assim fortes perturbações numa dada comunidade sociocultural. literatura de consumo, a literatura de massa, a literatura popular, a literatura
Todavia,seo códigosubjacentea taistextossefortornandoconhecidodeum marginal, a literatura 'kitsch'.
número crescente de receptores, o raio da comunicação aumentará, subirá o
número de receptores aptos a decodificarem os textos antes considerados Estes últimos termos designam modalidades de semiose e de textos que se
herméticos ou agramaticaise assistir-se-áà gradual integraçãonos sistemas situam naperiferia do sistema, mas apresentam motivações e matizes semânti-
literárioe cultural - sobretudoatravésdainstituiçãoescolar- defenómenos cãs diferenciadas.
anteriormente refractários e subversivos em relação àqueles sistemas.

69
Notermoparaliteratura, o morfemaprefixaipara-significaqueostextosassim
denominados se situam ao lado da literatura, constituindo umaÏiteratura
periférica ou uma literatura marginal. Implicitamente, o termo contém uma
valoraçãonegativa,porqueestardistantedonúcleodosistema'significanão
participar da dinâmica relevante, inovadora e eminentemente criativa do
sistema. Maisacentuadamente doqueperiférico, o termo marginal comporta
elementos sémicosque,paraalémdeumainformaçãosobrefronteirastopoló-
gicas, assinalam uma posição inferior ou degradada na escala dos valores
éticos e socioculturais de uma colectividade.

Asdesignações deinfraliteratura e subliteratura, como resultam dosmorfemas


prefixais infra-e sub- enfatizam a ideiadequeostextospor elasabrangidos
são esteticamente inferiores e mesmo desprovidos de valor, ocupando~uma
posiçãosubalterna e desprestigiada no quadro dosvalores socioculturais de
uma comunidade.

A designação de literatura de consumo coloca o acento tónico na atitude do


público leitor que consome tal literatura, mas não dissocia esta atitude da
qualidadedosprópriostextoslidos.Éumpúblicoleitorque,paradistracção e
entretenimento, lê uma literatura trivial (Trivialliteratur), uma literatura
ligeira(cf.'músicaligeira')quenãoperdura,carecentedospredicadosformms
e semânticos que caracterizam a grande literatura, a literatura clássica enten-
didacomoaquelaliteraturaqueperdura,queresisteàsmudançasdogosto e
que é preservada como uma dasmais altas heranças culturais deuma comuni-
dade.A leitura deconsumo contrapõe-seà leitura defruição,isto é,a uma
leituraqueco-envolvea apreciaçãoe a valorizaçãoestéticasdaspropriedades
e qualidades artísticas dos textos.

Também a designação de literatura de massa põe em foco a natureza e o


condicionalismo do processo comunicativo que é próprio de tal literatura e
quesereïïecte nascaracterísticas dessamesmaliteratura. A literatura demassa
é a literaturaproduzidaparaserconsumidaporumpúblicoleitorpertencente a
umasociedadedemassa, isto é,um público numericamente muito vultuoso.
heterogéneo na sua formação cultural e no seu estatuto económico-social.'
amorfo e carecente derelaçõesfundadas numapresença convivente, embora
osseusmembros submetidosa umcomumsistemaderelações,obrigações e
serviços comunitários, reajam de modo relativamente uniforme a determina-
dosestímulos. Estepúblicoconstituiu-se aolongo dosséculosXIXe XX.eín
virtude das profundas transformações políticas, 'económicas, sociais e cultu-
rais que ocorreram no Ocidente - revolução industrial, crescimento gigan-
tescodaspopulaçõesurbanas,democratizaçãodoensinoe dacultura.etc°-.
emborasepossamapontaremséculosanteriores- noBarrocoespanhoï, por
exemplo - certos fenómenos literários que apresentam algumas caracterfstï-
cãs próprias da literatura de massa.

A designação deliteratura popular é multívoca, pois que o termo 'popular'


apresenta uma forte polissemia.

Segundo o Romantismo conservador e tradicionalista, a literatura popular é


aquelaliteratura queexprime, nasuaprofundagenuinidade, o espírito nacïo-

70
No termo paraliteratura, o morfema prefixai para- significa que os textos assim nal deum povo, tal como aparece modelado napeculiaridade dos seus valores
denominados se situam ao lado da literatura, constituindo uma literatura tradicionais, das suas crenças e do seu viver histórico. A literatura popular
periférica ou uma literatura marginal. Implicitamente, o termo contém uma contrapõe-se, nesta perspectiva, à literatura de arte ou literatura artística
valoração negativa, porque estar distante do núcleo do sistema significa não (Kunstlíteratur), identificada com a literatura do Classicismo.
participar da dinâmica relevante, inovadora e eminentemente criativa do
sistema. Mais acentuadamentedo que periférico,o termo marginalcomporta Segundo o Romantismo revolucionário e utopicamente socialista, a literatura
elementos sémicos que, para alémdeuma informação sobre fronteiras topoló- popular é a literatura que exprime os sentimentos, osproblemas e os anseios do
gicas, assinalam uma posição inferior ou degradada na escala dos valores povo, entendendo-se porpovo a classesocialtrabalhadora quesecontrapõeàs
éticos e socioculturais de uma colectividade. classes sociaishegemónicas,detentoras dos meios de produçãoeconómica e
ideológica e dos meios de dominação política. Esta literatura é escrita, por
As designações de infraliteratura e subliteratura, como resultam dos morfemas vezes, por trabalhadores e operários, mas é quase sempre produzida por
prefixais infra- e sub-, enfatizam a ideia de que os textos por elas abrangidos autores de origem e condiçõesburguesas que advogam projectos pedagógico-
são esteticamente inferiores e mesmo desprovidos de valor, ocupando uma -reformistas ou revolucionários de libertação do povo.
posição subalterna e desprestigiada no quadro dos valores socioculturais de
uma comunidade. Antes, porém, que se formassem e difundissem o conceito romântico-
-tradicionalista e o conceito romântico-socialista de literatura popular, ambos
A designação de literatura de consumo coloca o acento tónico na atitude do
mitifícantes, embora em sentido divergente, daentidade denominada povo,já
público leitor que consome tal literatura, mas não dissocia esta atitude da existiaumaliteraturaquepodeadequadamenteserdesignadacomoliteratura
qualidade dospróprios textos lidos. Éumpúblico leitor que,paradistracção e
entretenimento, lê uma literatura trivial (Trivialliteratur), uma literatura
popular: umaliteratura quesedirigiaa umpúblicosemüetrado,desprovido da
cultura das classes sociais hegemónicas ou em ascensão - cultura senhorial,
ligeira (cf. 'músicaligeira') que nãoperdura, carecente dos predicados formais
e semânticos que caracterizam a grande literatura, a literatura clássica enten-
cultura clerical, cultura burguesa - algumas vezes analfabeto - e daí a
dida como aquela literatura que perdura, que resiste às mudanças do gosto e frequente prática da leitura colectiva -, ao qual proporcionava entreteni-
que é preservada como uma das mais altas heranças culturais de uma comuni- mento, realização imaginária de sonhos e anseios, alguma instrução e infor-
dade. A leitura de consumo contrapõe-se à leitura de fruição, isto é, a uma mações sobre acontecimentos e personagens históricos ou lendários, sobre
leitura que co-envolve a apreciação e a valorização estéticas das propriedades fenómenos da natureza, etc. Esta literatura, produzida muitas vezes por
e qualidades artísticas dos textos. autores anónimos, vai dapoesia lírica à poesia satírica e narrativa, da novela,
do conto e do romance ao texto dramático, do livro de devoção religiosa à
Também a designação de literatura de massa põe em foco a natureza e o hagiografía, da obra didáctica ao panfleto de índole política e social e possui
condicionalismo do processo comunicativo que é próprio de tal literatura e em vários países da Europa, sobretudo a partir do século XVII, os seus
que sereflecte nas características dessa mesma literatura. A literatura demassa peculiares circuitos de produção e distribuição.
é a literatura produzida para serconsumida por um público leitor pertencente a
uma sociedadede massa, isto é, um público numericamente muito vultuoso, A designaçãodeliteratura 'kitsch' difundiu-sesobretudo noúltimoquartelde
heterogéneo na sua formação cultural e no seu estatuto económico-social, século. A palavra alemã Kitsch, de difícil tradução noutras línguas, designa
amorfo e carecente de relaçõesfundadasnumapresençaconvivente, embora manifestações artísticas inautênticas, caracterizadas por um hábil efeitismo
os seus membros, submetidos a um comum sistema de relações, obrigações e formale semântico,marcadasoraporumsentimentalismoemoliente,orapor
serviços comunitários,reajam de modo relativamente uniforme a determina- uma graciosidade frívola, ora por um erotismo difuso, ora galante, ora mór-
dos estímulos. Este público constituiu-se ao longo dos séculosXIXe XX, em bido, e sempre refractárias à problemática das grandes questões religiosas,
virtude das profundas transformaçõespolíticas, económicas,sociais e cultu- éticas, psicológicas, sociais, etc. Não raro estilisticamente revivalista, a litera-
rais que ocorreram no Ocidente - revolução industrial, crescimento gigan- tura 'kitsch' espelha o esvaziamento ético e a exaustão cultural da sociedade
tescodaspopulaçõesurbanas,democratizaçãodo ensinoe dacultura, etc. ^, burguesa ao longo dos séculosXIX e XX.
emborasepossamapontaremséculosanteriores- no Barrocoespanhol,por
exemplo - certos fenómenosliterários que apresentam algumas característi- Éindispensável acentuar que a distinção estabelecida pela metalinguagem e
cãspróprias da literatura de massa. pela praxis do sistema literário, desde o Renascimento até ao Neoclassicismo
setecentista,entreumaliteraturaelevadaeumaliteratura inferior,entre géne-
A designaçãode literatura popular é multívoca, pois que o termo 'popular' ros literários maiores e géneros literários menores, não é coincidente com a
apresenta uma forte polissemia. distinção romântica e pós-romântica entre a grande literatura, a literatura
Segundo o Romantismo conservador e tradicionalista, a literatura popular é superior, a Kunstliteratur, por um lado, e a Trivialliteratur, a literatura inferior,
aquelaliteratura que exprime, na suaprofundagenuinidade,o espírito nacio- a literatura marginal, por outro.

71
70
Com efeito, no sistemaliterário, desde o Renascimentoao Neoclassicismo,os
géneros literários menores, como a égloga, a sátira, a epístola, etc., consti-
tuíam também géneros canónicos, reconhecidos e estudados nas artes poéticas
e praticados por autores que também escreviam tragédias e poemas épicos, ou
seja,génerosliteráriosmaiores. Pelo contrário,o romance, o contofolclórico,
a poesia obscena, etc., eram colocados à margem do sistema literário pêlos
representantes da literatura canónica. O que se alterou profundamente, a
partir do Romantismo, foi o paradigma axiológico subjacente à distinção
entreKunstliteratureTrivialliteratur. Desde o Renascimento até ao Neoclassi-
cismo, a Kunstliteratur define-se semântica, pragmática e sintacticamente
como um fenómeno 'aristocrático': a sua forma de conteúdo exclui a represen-
tacão da vida quotidiana e familiar, a «basse circonstance» (Boileau); é escrita
e lida por quem detém a legitimidade sociocultural por excelência, isto é, por
aqueles que são os herdeiros e os continuadores do legado dos antigos, isto é,
dosautores-modelo gregose latinos; a suaformadeexpressãofunda-senuma
prática intertextual que privilegia a continuidade da cultura, a invariância dos
modelos, a universalidade das normas e das convenções retóricas e estilísticas.
A partir do Romantismo, porém, a Kunstliteratur - ou digamos, apenas, a
literatura - caracteriza-see é valorizadaprogressivamente pelas suasmarcas
deinovação,deanticonvencionalidadee deforçatransgressiva,aopassoque a
Trivialliteratur, tal como a 'literatura académica' ou 'oficial', se define pela
estereotipie semântica e formal, pela reiteração imitativa e residual de modelos
e códigos. Esta alteração do paradigma axiológico impôs inevitavelmente uma
revisãodo valor assinaladoàsobras anteriores ao Romantismo, contribuindo
poderosamente, por exemplo, para a reabilitação da literatura maneirista e
barroca.

A existência de uma fronteira, ou de uma clivagem, entre a literatura e a


paraliteratura constitui um dado observacional reconhecível e comprovável
de múltiplos modos, desde a análise sociológica dos processos e circuitos de
produção, difusão e consumo dos textos literários e paraliterários até ao
exame do modo como o sistema de ensino, em cada comunidade e em diferen-
tes momentos históricos, recebe e valora esses mesmos textos.

Tal fronteira, porém, é muitas vezes precáriae fluida, sendo passível, sobre-
tudo, de profundas alterações diacrónicas. No seu tempo, por exemplo,
EugèneSuefoi consideradoum romancistaque sesituavae eracitadoaolado
de Balzac e que exerceu uma larga influência nas literaturas europeias em
meados do século XIX, mas hoje a sua obra está inequivocamente incluída no
âmbito da paraliteratura. Pensando neste caso paradigmático e em muitos
fenómenos congéneres ocorrentes na literatura francesa, Jean Tortel refere-se
a uma «inversãode óptica»que consistiriana «passagemda literatura para a
' Cf. JeanTortel, «Qu'est-ce paraliteratura»:1 uma parte estatisticamente importante dos textos lidos e
que la paralittérature?», in
AÃ.W., Entretiens sur la
valorados como literários num dado período histórico seria relegada, em
paralittérature. Paris, 1970, períodos históricossubsequentes, para a categoria da paraliteratura.
p. 30.
Esta «inversão de óptica» constitui um fenómeno verificável em todas as
literaturas, mas torna-se indispensável clarificar os seus fundamentos, a sua

72
Com efeito, no sistema literário, desde o Renascimento ao Neoclassicismo, os dinâmicae as suas consequências. Em primeiro lugar, é necessário não con-
géneros literários menores, como a égloga, a sátira, a epístola, etc., consti- fundir este fenómeno- transiçãode uma obra do domínio da literatura para
tuíam tambémgéneroscanónicos,reconhecidose estudadosnasartespoéticas o domínio daparaliteratura- com o fenómenoda desqualificaçãoou degra-
e praticadospor autoresquetambémescreviamtragédiase poemasépicos,ou daçãodo valor atribuído à obra de certos escritores que, incensados na sua
seja, géneros literários maiores. Pelo contrário, o romance, o conto folclórico, época,lidosporum numerosopúblico,laureadosacademicamente,figurando
a poesia obscena, etc., eram colocados à margem do sistema literário pêlos nos livros escolares seus contemporâneoscomo modelos literários e linguísti-
representantes da literatura canónica. O que se alterou profundamente, a cos, vêm a cair, passado algum tempo após a sua morte, no esquecimento
partir do Romantismo, foi o paradigma axiológico subjacente à distinção geral, sem público leitor que justifique a reedição dos seus textos, julgados
entre Kunstliteratur e Trivialliteratur. Desde o Renascimento até ao Neoclassi- pêlos manuais de história literária como autores de segunda ou terceira
cismo, a Kunstliteratur defíne-se semântica, pragmática e sintacticamente categoria»gradualmentesegregadosdasantologiasliteráriasorganizadaspara
como umfenómeno'aristocrático':a suaformadeconteúdoexcluia represen- o ensino. Este fenómeno, com motivações intrinsecamente estético-literárias e
tacão da vida quotidiana e familiar, a «basse circonstance» (Boileau); é escrita motivaçõessocioculturais - factores estes nuncadissociáveise sempre sujei-
e lida por quem detéma legitimidadesociocultural por excelência,isto é,por tos a variações diacrónicas -, tem a sua contrapartida na redescoberta, na
aqueles que são os herdeiros e os continuadores do legado dos antigos, isto é, reabilitaçãoe na revaloraçãode alguns escritores esquecidos,menosprezados
dos autores-modelo gregose latinos; a suaformadeexpressãofunda-senuma ou até exautorados pelo público da sua própria época e que podem adquirir,
práticaintertextual queprivilegiaa continuidadedacultura, a invariânciados para leitores de épocassubsequentes, particular valor e grande importância
modelos, a universalidade das normas e das convenções retóricas e estilísticas. tanto noplano estéticocomo noplano sociocultural. A passagemdeumaobra
A partir do Romantismo, porém, a Kunstliteratur - ou digamos, apenas, a do âmbito da literatura para o âmbito da paraliteratura representa sempre
literatura - caracteriza-see é valorizadaprogressivamente pelas suasmarcas uma desqualificaçãoestética- e falar de 'paraliteratura' em vez de 'infralite-
deinovação,deanticonvencionalidadee deforçatransgressiva,aopassoque a ratura' ou 'subliteratura' não modifica substancialmente os dados do pro-
Trivialliteratur, tal como a 'literatura académica' ou 'oficial', se define pela
blema -, mas a secu. nda.úzaçaopost mortem da obra de um escritor hiperboli-
estereotipie semântica e formal, pela reiteração imitativa e residual de modelos
camente valorada durante a sua vida não representa necessariamente a sua
e códigos.Estaalteraçãodoparadigmaaxiológicoimpôsinevitavelmenteuma
reclassificaçãonodomínio daparaliteratura.Seassimacontecesse,ter-se-iade
revisãodo valor assinaladoàsobras anteriores ao Romantismo, contribuindo
fazer equivaler 'literatura' a 'grande literatura' e seria forçoso excluir da
poderosamente, por exemplo, para a reabilitação da literatura maneirista e
barroca. literatura, relegando-as para o campo da paraliteratura, as obras de muitos
autores minores. Pelo contrário, entendemos que, num plano teorético e
A existência de uma fronteira, ou de uma clivagem, entre a literatura e a analítico, a diferenciaçãoentre o estético e o não-estético não pressupõe a
paraliteratura constitui um dado observacional reconhecível e comprovável problemática do valor estético e que, consequentemente, a distinção entre
de múltiplos modos, desde a análise sociológica dos processos e circuitos de literatura e não-literatura não é função do valor literário. Um texto inscreve-se
produção, difusão e consumo dos textos literários e paraliterários até ao no âmbitoda literatura, porque, sob o ponto de vista semiótica- compreen-
exame do modo como o sistema de ensino, em cada comunidade e em diferen- dendo,portanto, o parâmetrosemântico,o parâmetro sintácticoe o parâme-
tes momentos históricos, recebe e valora esses mesmos textos. tro pragmático -, ele é produzido, é estruturado e é recebido de determinado
modo, independentemente de lhe ser atribuído elevado, mediano ou ínfimo
Tal fronteira, porém, é muitas vezes precária e fluida, sendo passível, sobre-
tudo, de profundas alterações diacrónicas. No seu tempo, por exemplo, valor estético;um texto inscreve-se no âmbito da paraliteratura, não porque
EugèneSuefoi consideradoum romancistaquesesituavae eracitadoaolado possua reduzido ou nulo valor estético - carência de que compartilha com
de Balzac e que exerceu uma larga influência nas literaturas europeias em textos literários -, mas porque apresenta caracteres semióticos, nos planos
meados do séculoXIX,mas hoje a sua obra estáinequivocamenteincluída no semântico, sintáctico e pragmático, que o diferenciam do texto literário.
âmbito da paraliteratura. Pensando neste caso paradigmático e em muitos O textoparaliteráriodependedo mesmo sistemasemiótico,consideradocomo
fenómenoscongéneresocorrentes naliteraturafrancesa,JeanTortel refere-se mecanismo pancrónico, de que depende o texto literário e nele actuam os
a uma «inversãode óptica»que consistiriana «passagemda literatura para a mesmos códigos, considerados como entidades semióticas abstractas e trans-
' Cf. JeanTortel, «Qu'est-ce paraliteratura»:1 uma parte estatisticamente importante dos textos lidos e culturais, que actuam num texto literário. Num romance de Paul Féval ou
que la paralittérature?», in
AÃ.W., Entretiens sur la valorados como literários num dado período histórico seria relegada, em num melodrama de Pixérécourtfuncionam, como num romance de Flaubert
paralittérature, Paris, 1970, períodos históricossubsequentes, para a categoria da paraliteratura. ou num dramade Musset, códigosestilísticos, códigostécnico-compositivos,
p. 30.
Esta «inversão de óptica» constitui um fenómeno verificável em todas as
códigossemântico-pragmáticos.Mas os signos, as normas e as convenções, a
literaturas, mas torna-se indispensável clarificar os seus fundamentos, a sua capacidadee o sentido modelizantes destes códigos são heterogéneosnum e
noutro domínio, porque são heterogéneas tanto as relações intra-sistémicas

72 73
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Cf. JeanTortel, «Qu'est-ce
que la paralittérature?», m
AA.VV., Entretiens sur la
paralittératwe. Paris, 1970,
p. 30.
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Com efeito, no sistema literário, desde o Renascimento ao Neoclassicismo, os
dinâmicae as suas consequências. Em primeiro lugar, é necessárionão con-
fundir este fenómeno - transição de uma obra do domínio da literatura para
géneros literários menores, como a égloga, a sátira, a epístola, etc., consti-
tuíam também géneros canónicos, reconhecidos e estudados nas artes poéticas o domínio daparaliteratura- com o fenómenoda desqualificaçãoou degra-
e praticadospor autores quetambémescreviamtragédiase poemasépicos,ou dação do valor atribuído à obra de certos escritores que, incensados na sua
seja, géneros literários maiores. Pelo contrário, o romance, o conto folclórico, época,lidos por um numeroso público, laureados academicamente, figurando
a poesia obscena, etc., eram colocados à margem do sistema literário pêlos nos livros escolares seus contemporâneoscomo modelos literários e linguísti-
representantes da literatura canónica. O que se alterou profundamente, a cos, vêm a cair, passado algum tempo após a sua morte, no esquecimento
partir do Romantismo, foi o paradigma axiológico subjacente à distinção geral, sem público leitor que justifique a reedição dos seus textos, julgados
entre Kunstliteratur e Trivialliteratur. Desde o Renascimento até ao Neoclassi- pêlos manuais de história literária como autores de segunda ou terceira
cismo, a Kunstliteratur define-se semântica, pragmática e sintacticamente categoria,gradualmentesegregadosdasantologiasliteráriasorganizadaspara
como umfenómeno'aristocrático':a suaformadeconteúdoexcluia represen- o ensino. Este fenómeno, com motivações intrinsecamente estético-literárias e
tacãodavidaquotidianae familiar,a «bassecirconstance»(Boileau);é escrita motivações socioculturais - factores estes nunca dissociáveis e sempre sujei-
e lida por quem detéma legitimidadesociocultural por excelência,isto é,por tos a variações diacrónicas -, tem a sua contrapartida na redescoberta, na
aqueles que sãoos herdeiros e os continuadoresdo legado dos antigos, isto é, reabilitaçãoe na revaloraçãode alguns escritores esquecidos, menosprezados
dos autores-modelo gregos e latinos; a sua forma de expressão funda-se numa ou atéexautoradospelo públicoda suaprópriaépocae que podem adquirir,
práticaintertextual queprivilegiaa continuidadedacultura, a invariânciados para leitores de épocassubsequentes, particular valor e grande importância
modelos, a universalidade das normas e das convenções retóricas e estilísticas. tanto noplano estéticocomo noplano sociocultural. A passagemdeumaobra
A partir do Romantismo, porém, a Kunstliteratur - ou digamos, apenas,a do âmbito da literatura para o âmbito da paraliteratura representa sempre
literatura - caracteriza-se e é valorizada progressivamente pelas suas marcas uma desqualificação estética - e falar de 'paraliteratura' em vez de 'infralite-
de inovação, de anticonvencionalidade e de força transgressiva, ao passo que a ratura' ou 'subliteratura' não modifica substancialmente os dados do pro-
Trivialliteratur, tal como a 'literatura académica' ou 'oficial', se define pela blema -, mas a secundarizaçao post mor tem da obra de um escritor hiperboli-
estereotipiesemânticae formal,pelareiteraçãoimitativae residualdemodelos camente valorada durante a sua vida não representa necessariamente a sua
e códigos. Esta alteração do paradigma axiológico impôs inevitavelmente uma
reclassificaçãono domínio daparaliteratura. Seassimacontecesse,ter-se-iade
revisãodo valor assinaladoàsobras anteriores ao Romantismo, contribuindo
fazer equivaler 'literatura' a 'grande literatura' e seria forçoso excluir da
poderosamente, por exemplo, para a reabilitação da literatura maneirista e
barroca.
literatura, relegando-as para o campo da paraliteratura, as obras de muitos
autores minores. Pelo contrário, entendemos que, num plano teorético e
A existência de uma fronteira, ou de uma clivagem, entre a literatura e a analítico, a diferenciação entre o estético e o não-estético não pressupõe a
paraliteratura constitui um dado observacional reconhecível e comprovável problemática do valor estético e que, consequentemente, a distinção entre
de múltiplos modos, desde a análise sociológicados processos e circuitos de literatura e não-literaturanãoé funçãodo valor literário. Um texto inscreve-se
produção, difusão e consumo dos textos literários e paraliterários até ao no âmbito da literatura, porque, sob o ponto de vista semiótica - compreen-
examedo modo como o sistemade ensino, em cadacomunidadee em diferen- dendo, portanto, o parâmetro semântico, o parâmetro sintáctico e o parâme-
tes momentos históricos, recebe e valora esses mesmos textos. tro pragmático -, ele é produzido, é estruturado e é recebido de determinado
modo, independentemente de lhe ser atribuído elevado, mediano ou ínfimo
Tal fronteira, porém, é muitas vezes precária e fluida, sendo passível, sobre-
tudo, de profundas alterações diacrónicas. No seu tempo, por exemplo, valor estético;um texto inscreve-se no âmbito da paraliteratura, não porque
EugèneSuefoi consideradoum romancistaquesesituavae eracitadoaolado possua reduzido ou nulo valor estético - carênciade que compartilha com
de Balzac e que exerceu uma larga influência nas literaturas europeias em textos literários -, mas porque apresenta caracteres semióticos, nos planos
meados do século XIX, mas hoje a sua obra está inequivocamente incluída no semântico, sintáctico e pragmático, que o diferenciam do texto literário.
âmbito da paraliteratura. Pensando neste caso paradigmático e em muitos O textoparaliteráriodependedo mesmosistemasemiótica,consideradocomo
fenómenos congéneres ocorrentes na literatura francesa, Jean Tortel refere-se mecanismo pancrónico, de que depende o texto literário e nele actuam os
a uma «inversão de óptica» que consistiria na «passagem da literatura para a mesmos códigos,consideradoscomo entidadessemióticasabstractase trans-
' Cf. Jean Tortel, «Qu'est-ce paraliteratura»: uma parte estatisticamente importante dos textos lidos e culturais, que actuam num texto literário. Num romance de Paul Féval ou
que la paralittérature?», in
AÃ.W.. Entretiens sur la
valorados como literários num dado período histórico seria relegada, em num melodrama de Pixérécourt funcionam, como num romance de Flaubert
paralittérature. Paris, 1970, períodos históricos subsequentes, para a categoria da paraliteratura. ou num drama de IVtusset, códigos estilísticos, códigos técnico-compositivos,
p. 30. códigossemântico-pragmáticos.Mas os signos, as normas e as convenções, a
Esta «inversão de óptica» constitui um fenómeno verificável em todas as
capacidadee o sentido modelizantes destes códigossão heterogéneosnum e
literaturas, mas torna-se indispensávelclarificar os seus fundamentos, a sua
noutro domínio, porque são heterogéneastanto as relações intra-sistémicas

73
72
tradição literária, isto e,
dos citados códigos, as suas relações com a
córnea
memória do sistema semiótica em que se integram, como as suas relações
ÍnterTistémicaTeextra-sistémicas, istoé,assuasrelaçõescomoutrosfenóme^
nos culturais, de natureza histórica e sociológica, e com
não-culturaís.

to a metalinguagem literária desempenha uma função relevante^na


rn a"recepç°ãodo texto literário, função é extremamente débil,
a sua

^u7ténula, noconcernente aotexto paraliterário. Correlativamente, o texto


Uterário,quernoestádiodasuaprodução,quernoestádiodasuarecepção,
; oscódigosdequeemúltimainstânciadepenae,
Ïransformando-os, renovando-os,discutindo-os,subvertendo-os. A paralite^-
ra"tura7peïo contrário,revela-sedestituída destacapacidadedeinovação^
) emrelaçãoaosseuscódigos,cujasregras e convenções
dócil
tanto
rautor"como o leitor típico do texto paraliterário actualizam e passiva-

mente.'Os"códigosdotextoliterárioencontram-se,pois,emmudançacontí;
nua,"oratão lenta que seconfigura como estabilidade, orarão céleree. tôo
tumultuaria queprovocarupturascomasnormase ospadrões <
- situaçãocaracterística daactuaçãodasvanguardasliterárias-:' aoPasso
) textoparaliterário setransformam tãopoucoe tãodemora-
damente que parecem estáticos, repercutindo-se ndes, sempre com granae
atraso, com carácter residual e marcada simplificação, asinovações esmlsu-
cãs,téc^ico-compositivas, semântico-pragmáticas,etc.,entretanto introauz^
duas'e7onsagrada^nopolicódigo de
da literatura. Esta relação especularidade
total existente entre otëxto paraliterário e osseus códigos explica, em}
te,a razãoporqueasobrasdaparaliteratura, emboraostentemna^capa e
^rostóonomedo^autor, circulamfrequentementenoscircuitosdedifusão e
deconsumo^como sefossem obras anónimas, isto é,obras conhecidas quase
7pdoseutítulo e raramenteidentificadastambémpelonomedo^autój;
NaTiteratura portuguesa, por exemplo, o romance popular^ ^adoadr
7exto~tÍpico decertaparaliteratura pós-românticasentimental eregio^-
,

ïialista, tem sido lido e conhecido por numerosos leitores de que só uma
pequenaparcelaseriacapazdemencionaro nomedoseuautor.
Talheterogeneidade defuncionamento doscódigosnoâmbitodauteratume
n7ambito&da"paraliteratura reenviaà problemáticado^alor estéticodos
r7spect'ivostextos,sobretudo seseadoptara perspectivadaesteticainforma:
cional,emconformidadecoma quala reiteraçãoespecular,naestrutu
text^S normas e convenções inscritas no códigogera a trivializaf^e^0
esvaziamento da informação estética contida nesse mesmo texto. ^ O texto
Ïrterario, quetendeparao estereótipoconsumado,paraa ^petiçãoestota
nasuaorganizaçãosintagmática dasinstruções registadas noPlano^paraaig-
mático^apresenta. poisumacapacidademínima ounuladeinformaÇã0'lstóe^
deTmorevïsibilïdade e denovidade,coma correlativadegradaçãodoseuvalor
estétïo; contrário do que acontece
ao
texto literario-
obserye
com o
;^
tético
rém7que muitos textos literários -
de valor
alguns dos quais es
nerÏte'reconhecido - não oferecem elevado índice denovidade, ^^
^naUsadosà^luzdaestéticainformacional(bastapensar,paraalémdoscasos

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dos citados códigos, assuasrelações com a tradição literária, isto é,com a diacronicamente repetidos dostextos epigónicos,nostextos produzidos em
Lotman
memoria"do'sistema semiótico em que seintegram, _como as suas relações co nformidade cornas sistemas artísticos regidos pelo princípio que
' Cf. Jurij M. Lotman, La
Ílnte'rsistémrc a"seextra-sistémicas, isto é, relações
as
outros
suas
fenóme^
com designa por estética da identificação)1;por outro lado, muitos texto^^e struttura dei testo poético,

noTculturaïs^de natureza histórica e sociológica, e com fenómenos ostentam uma acentuada novidade em relação aos códigos vigentes aq Milano, 1972, p. 339.

não-culturais.
dasuaprodução- novidadequepode assumirdimensões^deruptura^e^
iconodastia, como sucedetantasvezescom obrasvanguardistas - nãosão
função relevante
a metalinguagem literária desempenha uma
jia credores necessariamente de um elevado valor estético.
rário,a suafunçãoé extremamentedébiï, Por estas razões,fundamentais na constituição de uma axiologiaestético-
^"aténula, noconcernente aotexto paraliterário. Correlativamente, o texto ^terïria, mas'também relevantes na análise do funcionamento global
Uterario;"quer noestádiodasuaprodução, quernoestádiodasuarccePÇã,°' sistemasemióticoliterário,parece-nosjustificadae operatonamente tecu
rôeemcausafrequentemente oscódigosdequeemúltimainstânciadepenae,
Íransformando-os, renovando-os,discutindo-os,subvertendo-os. A paralit^ a distinção estabelecida por StefanMorawski entre novidade e original]
ratura7peïo contrário,revela-sedestituída destacapacidadedeinovação^ como categorias constitutivas e critérios valorativos dos^ob^ectos estèUcos^a
ïonamento emrelaçãoaosseuscódigos,cujasregrase convenções tanto novidademarcaa separação,a rupturaemrelaçãoa padrõesformaisesemicos
rauto7como o leitor típico do texto dócil
paraliterário actualizam e passiva- domm"ante7num dado contexto'histórico, ao passo que a originalidade se
mïnte. '0s"códigosdotextoliterárioencontram-se, pois,emmudançacontí^- fundanummododiferenciado devero mundo, o qualconduza umarealiza-
nuZoratãoletía queseconfigura como estabilidade, oratão célere^e^ao ção~e a uma articulação peculiares dos signos estéticos' da\suas^^gr, as 2 Cf. Stefan Morawski, Fun-

tuumuÏtuária queprovocarupturascomasnormase ospadrõesestabelecidos Semânticas e sintácticas, das suas funções e dos seus valores^. A novidade, damentos de estética, Barce-

^."skuaçãocaracterística daactuaçãodasvanguardasliterárias-:^aopasso conïxionada sobretudo como fenómeno dovanguardismo artístico, pode-se lona, 1977, pp. 161ss.

) textoparaliterário setransformam tãopoucoe tãodemora- reproduzir e proliferar atédecair no pastiche e no maneirismo eP^ona^a
^mTnï^e parecemestáticos,repercutmdo-se ndes,semprecomgrande o'riginaÏidade;pordefinição,nãoé reprodutível. Nassuasmter-relaÇõesP°^i;
^traïo?colm carácterresiduale marcadasimplificação,asinovaçõese_stiustl- vei^verifica-sequea novidadepodecarecerdeoriginalidade,quea novidad
cãs.técnico-compositivas, semântico-pragmáticas, etc.,entretanto iniroauz^- a originalidade podem coincidir ousobrepor-se parcialmente e quea_ongma;
drs e>(:onsagmda7no'policódigo da literatura. Esta relação de especulandade Udadepode ocorrer dissociada danovidade. Nasgrandes obrasuteranas^a
total existente entre o texto paraliterário e osseuscódigosexplica,em s novidade e a originalidade coexistem e interfecundam-se, s
e,a razãopor. queasobrasdaparaliteratura, emboraostentemna^capa e maioTou menor^tensão recíproca; emmuitostextosliteráriosdevanguarda,
^rostóonomedo^autor, circulamfrequentementeaoscircuitosdedifusão e rn unca"aïcançam estatuto de «grandes obras», avulta novidade,
o
a mas

es casseia originalidade; nalgumas obras, enfim, a originalidade e,

deconsumo^como sefossem obras anónimas, isto é,obras conhecidas quase a

> seutítulo e raramente identificadas tambémpelo nomedo^autor. tÏrouxa capacidadeinovadora.Ostextosparaliterários,comodecorre.


Sa"lliterS7ra portuguesa, por exemplo, o romance popular^ Rosa^adro ^ficou~exposto, carecem tanto denovidade como deoriginalidade (o
minores).
, textotípico decertaparaliteraturapós-românticasentimentalercgio^- ïrn ão"aconteci e necessariamente com textos literários de autores

naiista/tem sido lido e conhecido por numerosos leitores de que sóuma A indeterminaçãoe a precariedadedafronteiraentrea literaturae a paralite-
pequenaparcela seriacapazdemencionar o nomedoseuautor. ratura manifestam-se tambémemrelaçãoaosreceptores dostextosrespecti-
Talheterogeneidade defuncionamento doscódigosnoâmbitoda^teraturaj vos. Embora sejafácilpredizer e afirmar, apriori, quemuitos textos literário^
n^âmbitoc'da"paraliteratura reenviaà problemáticadovalor estéti^dos tanto'deepocas'transactascomodoperíodo contemporâneo,nãosãoudosPor
r'esDuectívos textos, sobretudo seseadoptara perspectiva daestéticainform^ uníaYrande faixadereceptores queconsomemtípica^e habitualmentetextos
cS^'conformidadecoma quala reiteraçãoespecular,naestruturadeum rários - o leitor que tem como leituras predilectas e_absorventes as
text^da^normase convençõesinscritasnocódigogeraa trlviauzaçao^^° ^arrativa"s sentimentais doromance-rosa deDelly, deCorín Tellado, etc. ^ou
de espi
esvaziamento da informação estética contida nesse mesmo texto. ^ O texto as narrativas movimentadas e eróticas dos romances
onagem^
^ÍngrJ ohnLe Carré, etc., não lê com certeza Fernando Pessoa, Ponge,
ÏÍterario; quetendeparao estereótipoconsumado,paraa repetiçãoestota
na-suaorganizaçãosintagmática dasinstruções registadas noPlano,Paraalg- Musil7JorgeLuísBorges,etc.-Jásetornaarriscadoasseveraro inverso^isto
máti~co, apresenta. poisumacapacidademínima ounuladeinformaçã0'lstoe; é7que'osT^tores quetêmcomoleiturashabituaise predilectastextosliterários
; e denovidade,coma correlativadegradaçãodoseuvalor lïpoderemos particularizar,textosda'grandeliteratura'- nuncalêem'ou
^tétiïo;ao"contrário do que acontece texto literário-
com o
obserye ;se; raramente lêem,\extos paraliterários. Embora não conheçamos quaisquer
i:ém7quemuitos textos literários - alguns dos quaisdevalor^etlco investigações"estatísticas dignasdeconfiançasobretais questôe^nao nos
netíï reconhecido - não oferecem elevado índice de novidade, se "aventuroso afirmar que muitos leitores que, por gosto estético^ por
ÏnaTisadoïàïuzda estéticainformacional(bastapensar,paraalémdoscasos Í:ormação'cuïtural e atéporexigênciadoseutrabalhoprofissional(professo-

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rés,críticos, etc.),lêempredominantemente textosliterários,também^lèem
textosparaïiterários, desdeo romancepolicialdeSimenon,deAgatha^Chri^
ti'e,'etc","atéromances deaventuras como osdeAlexandre Dumas Pai^
Femm'ore"Cooper, etc.Masexisteainda,nopúblicoleitor dequalquer comu-
nidade,umtipodeleitormédio,sobo pontodevistaculturale estético,que
ïeTermdiferencialmente tanto textos literários comdeterminadas caracte-
rísticas comotextos paraliterários. Torna-seindispensável,todavia,registar
duasanotações:primeiro,quetambémnodomínio daparaliteraturaexistem
láleitoresquelêeme apreciamumtextodevanDinne
^udeJulesVerne,masquesãoincapazesdesuportara leituradeumapagina
deMickey Spillane oudeEmílio Salgari); segundo, quenemsempre è tacu a
um leitor'discriminar, dentre os textos seus contemporâneos, quais ,
quevirãomaistardea serrelegadosparao domínio daparaliteratura.
A dinâmicadasrelaçõesentrea literaturae a paraliteratura comportainfluên-
ciaTetënsõesrecíprocas devárianatureza.A 'literatura elevada'pode fechar-
ï aristocraticamente emsimesma,excluindodeliberadamente doseuâmbito
todososelementossemânticose formaisquenãoseintegremnumatradição
literária 'culta'. Estedissídio, imposto por uma literatura que aceitatácitaou
declaradamente, com fundamentos doutrinais diferentes, o preceito hora-
ciano da aversão ao 'público ignaro' (odi profanum uulgus), veníica-se em
histórico-literários como o Renascimento, o Neoclassicismo^e o
Simbolismo:umescoldeautores,beneficiáriodeumrequintadopatrimónio
cultural, escreve para outro escol de leitores (the happy few\ ignorand0^
d7sp"rezandoosautores,ostextose osreceptoresquesesituamnaPenfenado
funaonamentohistórico-socialdosistemasemióticoliterário^Noutroscasos,
porém^ocorre umaosmoseimportante, nosentidodaperiferiaPara°Jentro
do"sistemasemióticaliterário,entreosgéneros'não-canonizados'e osgénero.
ïanonïzados': não sópode suceder, em determinado momento histórico,^
'canonização' de um género até então adscrito em geral ao domínio
- o exemplo paradigmático deste fenómeno, na. época
moderna,é representadopelaascensãodoromancedaperiferiaatéaocentro
dosistemasemióticaliterário-, comotambémpodeacontecerqueosautores
da"'grande literatura' vão haurir elementos semânticos e formais para a
ão"dos"seus textos em textos paraliterários. Este último fenómeno
ocorreu com frequência, por exemplo, no Barroco, no Romantlsmo^no
ReaÍismoVmencionemos a profunda aliança entre 'poesia culta' e 'poesia
r' que se verificou no Barroco português e no. Banoco. esPannol',°
SzamenTona 'Uteratura popular' - nãonecessariamenteidentificável,
corno"vimos, com 'literatura oral' - de muitos textos da literatura oito-
pre-
ro mântica eromântica, as influências exercidas pelo romance popular
centísta emnarradores como Dickens,Dostoiewskij, Galdós,etc.
Por outro lado, como já assinalámos, ocorrem fenómenos deinfluência do
centrodosistemaliteráriosobrea suaperiferia,istoé,fenómenosdeinfluência
da'literatura canonizada' sobrea 'literatura não-canonizada', poisqueneste
marcada
sleurepeïu'tem'sempre, embora com considerável atraso temporal e

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rés, críticos, etc. ), lêem predominantemente textos literários, também lêem
textosparaliterários,desdeo romancepolicialdeSimenon,deAgathaChrïs-' simplificação, características semânticas e formais da'grande literatura'. Por
tíe, etc., até romances de aventuras como os de Alexandre Dumas Pai. de ^ezes;. tod^via'estarela(?ãomimétícaassumeumafunçãoirónicae transgres^-
FenimoreCooper,etc.Masexisteainda,nopúblicoleitordequalquercomu- siva,transformando-seentãoo textoparaliterárionumaparódiadoestiloodos
^ad.e'-.um, típo deleitormédi0'sob° Pontodevistaculturaleestético,que temas, dos valores ideológicos, etc., dos textos da 'grande literatura'.
podelerindiferencialmente tanto textosliterários comdeterminadas cararte^
éticascomotextosparaliterários. Torna-seindispensável,todavia,registar
duas anotações: primeiro, que também no domínio da paraliteratura exis tem
gradaçõesqualitativas(háleitoresquelêeme apreciamumtextodevanDinne
^ud.ejulesverne'mas quesãoincaPazesdesuportara leituradeuma'página
deMickeySpillane de Emílio Salgari);
ou
segundo, que nem"sempre7fáSra
umleitor discriminar' dentre ostextos seus"contemporâneos, quaisaqueïes BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA
que virãomais tarde a serrelegados para o domínio daparaliteratura.
A dinâmicadasrelaçõesentrea literaturae a paraliteraturacomportainfluên-
ciase tensõesrecíprocas devárianatureza.A 'literaturaelevada''podefechar-
BOJTAR98E5ndre'slavicstructuralism'Amsterdam,Philadelphia,JohnBenjamins,
-searistocraticamente emsimesma,excluindodeliberadamente doseuâmbito
todososelementos semânticose formaisquenãoseintegremnumatradïção EVEN-ZOHAR,Itamar,Papersinhistoricalpoetics, TelAviv,ThePorterInstitutefor
Poetics and semiotics, 1978.
'culta'. Estedissídio, imposto porumaliteratura~que aceitatácitaou
declaradamente, com fundamentos doutrinais diferentes; o preceito'hora^ FROW, John, Marxismandliterary history, Cambridge-Mass, HarvardUniversit
cíanoda aversãoao 'público ignaro' (odiprofanum »M/^), verifica-se'"em Press, 1986.
períodos histórico-literários como o Renascimento, o Neoclassicismo' e"o
Smbolismo:umescoldeautores,beneficiáriodeumrequintadopatrimónio LOTMAN,I.,Lastrucíure dutexteartistique. Paris,Gallimard, 1973.
cultural, escreveparaoutro escoldeleitores (the happyfew), \gnorando'e
desprezandoosautores,ostextose osreceptoresquesesituamnaperiferiado MIGNOLO, Walter, Elementos parauna teoria deitexto literário, Barcelona. Ed.
nco-social do sistema semiótico literário. Noutros casos. Crítica, 1978.
porem, ocorre uma osmose importante, no sentido daperiferia parao centro
dosistemasemióticaliterário,entreosgéneros'não-canonizados'e'osgéneros MOISAN,Clément, Qu'est-ceque1'histoirelittéraire? Paris,PUF. 1987.
canonizados^: histórico, ~a
não só pode suceder, em determinado momento
.

canonização' de um género até então adscrito em geral ao domínio da PREVIGNANO,Ca^lo(ed. ),Za .CT/O^^^a^ slavi.Programmi, problemi, ana-
lisi, Milano Feltrinelli, 1979.
parafíteratura - ° exemP10 Paradigmático deste fenómeno, -na"epoca
moderna, é representado pelaascensãodoromance daperiferia atéaocentro
dosistemasemióticaliterário-, comotambémpodeacontecerqueoïautores STEINER,Peter,Russianformalism. A metapoetics, Ithaca-London, CornellUniver-
sity Press, 1984. ' ' ----'
da 'grande^literatura' vão haurir elementos semânticos e formai"para"a
produção dos_seus textos em textos paraliterários. Este último fenómeno
ocorreu com frequência, por exemplo, no Barroco, no Romantismo e no
_eali,sm,o: mencionemos a Profunda aliança entre 'poesia culta' e 'poesia
popular' que se verificou no Barroco português e no Barroco espanhol,"o
enraizamento na 'literatura popular' - não necessariamente identificável.
co-mo, _vlmos' con^ 'literatura orar - de muitos textos da literatura pré-
-românticae romântica, asinïïuências exercidaspelo romancepopular oito-
centista em narradores como Dickens, Dostoiewskij, Galdós,etc.'
Por outro lado, como já assinalámos, ocorrem fenómenos de influência do
centrodosistemaliteráriosobrea suaperiferia,istoé,fenómenosdeinnuência
da'literaturacanonizada'sobrea 'literaturanão-canonizada',poisque~nesta
serepercutem sempre, embora com considerável atraso temporal e marcada

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