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DAS BELAS-LETRAS

AO USO DO TERMO
“LITERATURA”
Prof. Vitor Cei
Caspar David Friedrich
LIMA, Luiz Costa. Das belas-letras ao uso do Der Wanderer über dem Nebelmeer
termo “literatura”. In: ______. História. Ficção.
Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, O caminhante sobre o mar de névoa
2006, p. 321-336.
1818
Pintura a óleo
Das belas-letras ao conceito de
literatura no romantismo alemão

Friedrich Schlegel e o conceito


ROTEIRO DA moderno de literatura

AULA Madame de Staël como precursora


de uma história social da literatura

A estética cristã de François-René


de Chateaubriand
CONTEÚDOS
Das belas-letras ao conceito de literatura no romantismo alemão
 A diferença entre a concepção de belas-letras da poetologia humanista,
propagada a partir do Renascimento, e a vigência moderna do termo
“literatura”, com Friedrich Schlegel;
 O surgimento do sujeito moderno e o desaparecimento das belas-letras.
Friedrich Schlegel e o conceito moderno de literatura
 A peculiaridade do romance (fragmento 26 do KF);
 O ar de família entre o poema e o romance (fragmento 53 do KF);
 A duplicidade do termo “literatura”;
 A ilimitação da ideia de literatura.
INTRODUÇÃO
Segundo Luiz Costa Lima, é bem conhecida a diferença que separa a
concepção de belas-letras na poetologia humanista, propagada a partir do
Renascimento, e a vigência moderna do termo “literatura”, que se inicia com
os Lyceums-Fragmente (1797) e os Athenäum-Fragmente (1798), do jovem
Friedrich Schlegel.
Na poetologia humanista, “poesia era o termo específico, e literatura o termo
genérico, que abrangia a imensa área a que se estendia o uso da retórica
[...] A direção se modifica nos fragmentos de Schlegel” (p. 321).
Antes de entrar na discussão, precisamos saber: o que significa belas-letras? o
que foi a poetologia humanista?
BELLES-LETRES
Primitiva e genericamente, o vocábulo belles-letres correspondia às humaniores
litterae ["letras mais humanas“] dos romanos: designava a
atividade da imaginação, diferenciada em poesia, prosa, teatro, ensaio,
eloqüência, retórica, por oposição aos textos científicos e
filosóficos, bem como às escrituras sagradas (distinção
entre litteratura e scriptura).
Com o tempo, passou a rotular a produção literária caracterizada pela elegância
e requinte, mas com um acento pejorativo que o vernáculo “beletrismo” acusa.
Massaud Moisés, Dicionário de termos literários
http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/belles-lettres/
BELAS-LETRAS
1. As artes que têm expressão no uso da palavra falada ou escrita, como a
oratória, a literatura, a poesia, a gramática, a dramaturgia etc., a partir
de critérios estéticos ou humanísticos
2. Expressões artísticas literárias, em função de sua qualidade estética, de
sua expressividade
3. A arte, os recursos, as técnicas de bem se expressar literariamente, de bem
escrever
http://www.aulete.com.br/belas-letras
BELETRISMO
1. Criação literária, nesta compreendidas oratória, retórica e poesia
2. Pejorativo: Atividade literária de segunda ordem
HUMANISMO
Platão e Aristóteles definiram o ser humano como ser racional. A Escolástica, o
Humanismo, o Renascimento e o Iluminismo foram movidos por interpretações
desse preceito.
Enquanto a Escolástica, grosso modo, interpreta a concepção de mundo cristã
por um viés do relacionamento entre criador (Deus) e criatura (humanidade), o
Humanismo, entre os séculos XIV e XV, fixou-se no homem como centro do
mundo, adaptando os clássicos antigos ao pensamento moderno.
Autores de destaque: Rafael Sanzio, Giovanni Boccaccio, Giovanni Pico della
Mirandola, Erasmo de Roterdã, Nicolau Maquiavel, Thomas Morus, Francisco
de Sá de Miranda, François Rabelais e Francesco Petrarca.
Autorretrato (1506?) Transfiguração (1518-1520)

RAFAEL
SANZIO
1483-1520
Rafael Sanzio
Escola de Atenas
1509
POETOLOGIA HUMANISTA
As poetologias quinhentistas e seiscentistas se baseiam nas questões postas
por Aristóteles na Poética e na Retórica.
Quinhentistas: assim como as poéticas renascentistas, via na metáfora um
recurso útil à imitação do poeta (desaconselhável, contudo, aos textos
filosóficos). Seguindo a Poética, vê a metáfora como ornamento.
Seiscentistas: vinculada aos herdeiros italianos e espanhóis da cultura
humanista, tendiam a aproximar a metáfora do engenho, evidenciando, assim,
a produção de conhecimento pela inventividade. Baseia-se no terceiro livro
da Retórica, no qual Aristóteles diz que a metáfora transmite “algo novo”,
reconhecendo-a como produtora de conhecimento.
SÁ DE MIRANDA (1481-1558) |QUINHENTISMO
O sol é grande: caem co'a calma as aves, Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria. Vi tantas águas, vi tanta verdura,
Esta água que de alto cai acordar-me-ia, As aves todas cantavam de amores.
Do sono não, mas de cuidados graves.
Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Ó cousas todas vãs, todas mudaves, Também mudando-me eu fiz doutras cores.
Qual é tal coração que em vós confia? E tudo o mais renova: isto é sem cura!
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.
GREGÓRIO DE MATOS GUERRA (1636-1696) |SEISCENTISMO
DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA
A cada canto um grande conselheiro, Muitos mulatos desavergonhados,
Que nos quer governar cabana e vinha; Trazidos sob os pés os homens nobres,
Não sabem governar sua cozinha, Posta nas palmas toda a picardia,
E podem governar o mundo inteiro.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
Em cada porta um bem frequente olheiro,
E eis aqui a cidade da Bahia.
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
O USO DA PALAVRA “LITERATURA”
Roberto Acízelo de Souza explica que até o século XVIII, a palavra
“literatura” mantém o sentido primitivo de sua origem latina – litteratura –,
significando conhecimento relativo às técnicas de escrever e ler, cultura do
homem letrado, instrução; da segunda metade do século XVIII em diante, o
vocábulo passa a se referir ao produto da atividade do homem de letras, isto
é, o conjunto de obras escritas, estabelecendo-se, assim, a base de suas
diversas acepções modernas.
Cf. SOUZA. Teoria da Literatura, p. 44-45.
O USO DA PALAVRA “LITERATURA”
Como até o século XVIII o vocábulo literatura permaneceu significando
conhecimento das técnicas de escrever e ler, instrução, cultura do homem
letrado, para designar as obras que modernamente consideramos literatura
stricto sensu empregavam-se os termos genéricos poesia (para composições
em versos) e eloquência (para discursos públicos em prosa destinados a
apresentação oral), além de uma extensa nomenclatura relativa aos gêneros
e espécies em prosa e verso, como epopéia, ode, idílio, égloga, epístola,
sermão, novela, etc. Assim, até então faltava um termo abrangente que se
aplicasse tanto às composições em verso quanto àquelas em prosa,
configurando-se desse modo uma espécie de persistente lacuna no
vocabulário, aliás assinalada desde Aristóteles.
SOUZA. Teoria da Literatura, p. 46.
A TRANSIÇÃO
Costa Lima avalia que na formação do moderno sistema das belas-artes ainda não
se verifica sua diferenciação das ciências naturais, que se tornará significativa no
século XVII, em consequência do impacto das obras de Galileu e Descartes.
Para Friedrich Schlegel, a manutenção das litterae humaniores (expressão
ciceroniana cujo sentido indica que o conhecimento dessas letras torna o homem
mais humano), possível quando do império da retórica, já se tornara ridícula com a
autonomização das ciências da natureza. O advento do sujeito moderno, isto é, do
indivíduo autodirigido, com o decorrente reconhecimento da subjetividade
individual, abole a concepção da Antiguidade clássica, onde o herói se destaca
como o representante dos valores de seu grupo. Os antigos topoi, até então
recursos impessoais à disposição de qualquer escritor, dão lugar à ligação imediata
entre a vida e a obra do autor. Isso ocorre especialmente com o romance, que, por
não ter regras previstas em nenhuma poética, seria muito mais flexível do que os
outros gêneros literários.
FRIEDRICH SCHLEGEL 1772-1829
FRIEDRICH SCHLEGEL
Ele foi um poeta, crítico literário, filósofo, filólogo,
linguista e tradutor alemão. Irmão mais novo do
também filósofo August Schlegel, participou da
primeira fase do Romantismo na literatura alemã,
conhecida como Frühromantik ou Romantismo de
Jena.
Na casa dos irmãos em Jena, reuniam-se
escritores, poetas e filósofos que deram origem
ao romantismo alemão, como Goethe, Tieck e
Schiller.
O JOVEM SCHLEGEL
Lyceums-Fragmente (1797)

Athenäum-Fragmente (1798)
A CONCEPÇÃO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
A consciência histórica sobre a diferença entre a poesia dos antigos e dos
modernos é um dos pilares da teoria da literatura do primeiro romantismo
alemão. A combinação entre o antigo e moderno atravessa igualmente a
crítica e a criação literária dos românticos. Suas obras revelam não apenas o
imenso respeito e admiração pela Antiguidade, mas a busca pela
aproximação entre esses dois mundos.
Uma das premissas mais importantes do pensamento crítico-literário de
Friedrich Schlegel é o conhecimento histórico das épocas da poesia.
A CONCEPÇÃO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
Schlegel desenvolve a concepção de que a crítica literária e o trabalho
filológico são instrumentos imprescindíveis para a completude e o
aperfeiçoamento da própria literatura. Propondo uma exegese crítico-
literária que aproxime a reflexão filosófica, a crítica e o estudo histórico da
literatura, o estudioso indica a união da filosofia com a filologia, ou seja, a
aproximação entre sua visão histórica dos fenômenos literários com a
seriedade filológica no trato dos textos e manuscritos.
Através do contato com a obra filológica dos antigos estudiosos de
Alexandria, os denominados diaskeuastas, Schlegel desenvolve a concepção
de que o exercício de crítica literária deve ser uma tarefa infinita.
A CONCEPÇÃO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
“Quanto mais a poesia se torna ciência, tanto mais também se torna arte. Para
que a poesia se torne arte, o artista deve ter profundo discernimento e ciência
de seus meios e fins e, assim, deve o poeta filosofar sobre sua arte. Para que
não seja apenas inventor e trabalhador, mas também conhecedor da sua
especialidade, e para que possa compreender seus concidadãos no campo da
arte, deve também tornar-se um filólogo”.
“Toda a história da poesia moderna é um comentário contínuo ao curto texto
da filosofia: toda arte deve se tornar ciência e toda ciência, arte; a poesia e
a filosofia devem fundir-se”.
SCHLEGEL, apud COSTA LIMA, p. 322.
A CONCEPÇÃO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
“Sua destinação não é apenas reunificar todos os gêneros separados da
poesia e pôr a poesia em contato com filosofia e retórica. Quer e também
deve ora mesclar, ora fundir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia-de-
arte e poesia-de-natureza” (SCHLEGEL, apud LIMA, p. 325-326).
A CONTRADIÇÃO DA CONCEPÇÃO DE SCHLEGEL
“Tomado ao pé da letra, o conceito de um poema científico é tão absurdo
quanto o de uma ciência poética”. SCHLEGEL. Lyceums-Fragmente, §61, apud
LIMA, p. 322.
Observa-se que, em vez de arbitrariamente contraditórios, os fragmentos
resultam de duas concepções de unidade, presentes na Alemanha de então.
Por um lado, o avanço da ciência tornou ridículo o ideal de um poema
científico; por outro, a perspectiva de saberes divididos e compartimentados
era um espantalho para o intelectual da época.
Os fragmentos antagônicos expressam o voto já irrealizável de um saber que
circulasse entre poesia, filosofia e ciências. Schlegel
ROMPIMENTO COM AS BELAS-LETRAS
A antiga unidade das [belas-]letras, corporificada por aquele que sabia
combinar palavras e períodos, tende a se dissipar, substituída pela
aproximação entre poesia e literatura” (LIMA, p. 321).
Por um lado, poema e romance são vistos como manifestações de uma mesma
disposição textual. Por outro, o romance recebe uma posição de destaque. Ou
seja, ora enfatizando a familiaridade entre o romance e o poema, ora a
peculiaridade do romance, “configura-se a unidade potencial da poesia com a
literatura” (LIMA, p. 322).
ORIGEM DA SUBJETIVIDADE |FIM DAS BELAS-LETRAS
“É o surgimento do sujeito moderno, i. e., o indivíduo autodirigido, que está na
origem do desaparecimento das belas-letras”. A convicção de que a matéria-
prima do romance é a subjetividade do autor, isto é, o reconhecimento da
subjetividade individual, em contraste com a Antiguidade Clássica, que exaure
o antigo critério retórico dos topoi à disposição de qualquer letrado (LIMA, p.
223-324).
“Não seria supérfluo escrever mais de um romance se o artista não se tornou
um homem novo? Não é raro que todos os romances de um autor estejam
estreitamente ligados e sejam de certo modo, um mesmo romance” (SCHLEGEL,
apud LIMA, p. 323).
DIFERENÇA ENTRE POESIA E ROMANCE
Schlegel questiona se a vida de cada ser humano seria um romance. Costa
Lima afirma que “nunca ninguém questionara se cada vida seria um poema,
pois o poema não era pensável como algo independente da linguagem que o
compõe. [...] Como o romance não dispunha do esquema que as póeticas
asseguravam aos diversos gêneros poéticos, para que se pusesse ao lado do
poema precisava descobrir para si um outro e próprio modo de
configuração” (LIMA, p. 324).
DIFERENÇA ENTRE POESIA E ROMANCE
Os fragmentos de Schlegel explicam que o romance se distingue do poema
porque não dispõe de um padrão formal a que deveria obedecer; em vez
dele, sua matéria prima é a vida que viveu e/ou conheceu quem o compôs; no
entanto, a vida é um encaixe maior ou menor de acidentes, enquanto o
romance é uma forma.
“O privilégio que o romance alcança é o de uma matéria antes não
privilegiada: a matéria da vida individual”.
LIMA, p. 325.
AR DE FAMÍLIA ENTRE POEMA E ROMANCE
“Do ponto de vista da unidade, a maioria dos poemas modernos são
alegorias (mistérios, moralidades) ou novelas (aventuras, intrigas); uma mescla
ou uma diluição delas”.
SCHLEGEL. Lyceums-Fragmente, §53
IMPORTÂNCIA DO ROMANCE
A forma mais elaborada da sabedoria de vida se condensava no romance:

“Os romances são os diálogos socráticos de nosso tempo. Nessa forma liberal,
a sabedoria da vida refugiou-se do saber escolar”.
SCHLEGEL. Lyceums-Fragmente, §26
OS FRAGMENTOS DO JOVEM SCHLEGEL
Em suma, podemos perceber nos fragmentos de Schlegel que: 1) o termo
literatura ora era intercambiável com poesia e poema, ora assumia um perfil
próprio; 2) enquanto o poema supunha modelos de composição prefixados, o
romance (gênero literário por excelência) era uma narrativa sem regras fixas;
3) o par poesia-literatura se impunha a partir do momento em que se
socializava a importância do sujeito autodirigido, cuja identidade passava a
independer de conjuntos externos (a família, a comunidade, a nação); 4) os
traços acentuados, além de não eliminarem a ambiguidade da palavra
literatura, não eram suficientes para definir qual era o território próprio da
literatura.
Cf. LIMA. História. Ficção. Literatura, p. 333.
SCHLEGEL PÓS- FRAGMENTOS
A MUDANÇA
“Mesmo não detalhando sua mudança político-intelectual, seus ensaios agora
assumem outro caráter. Dos dados biográficos, apenas se destaque: ao fracasso
financeiro da revista Athenäum, correspondera a decisão do autor de sair da
Alemanha, que considerava imprópria para seu reconhecimento. Dirige-se então
a Paris...” (LIMA, p. 334).
Schlegel, diante da dificuldade de formular o que seria específico à literatura,
por um lado afirma a impossibilidade de uma delimitação específica da
literatura, por outro concluirá que a literatura depende de algo externo: a
História. (LIMA, p. 335)
LITERATURA COMO ENCICLOPÉDIA
MANUSCRITO DE 1803-1804
A poética, a arte, a oratória, a história, a filosofia pertencem ao gênero que
age pela linguagem [...] Todas as formas e produtos que se reúnem sob a
literatura pertencem ou ao conceito de ciência ou de arte, ou aos dois
simultaneamente. Assim a poesia é arte; a filosofia, ciência; e a retórica, uma
mistura de ambas. [...] Igualmente, a história fica no meio: enquanto busca o
conhecimento, aproxima-se da ciência, ao passo que pela exposição se
aproxima da arte [...] Assim como a matemática, a química e a física apenas
mostram isoladamente, i. e., de maneira especial, o que já está contido na
filosofia, assim também a pintura, a escultura e a música exprimem
separadamente, de maneira mais viva e melhor, o que a poesia realiza
globalmente. À medida que a literatura abrange todas as ciências e artes, é ela
a enciclopédia”. SCHLEGEL, apud LIMA, p. 334-335).
LITERATURA E HISTÓRIA
Schlegel acrescenta que a literatura, dependente da recepção e afirmando-
se como pendant dos gêneros poéticos codificados, dependia de algo a ela
externo: a História. Subordinando o estudo da literatura ao percurso da
História, Schlegel se adequava a um modelo que faria fortuna no século XIX e
se manteria intacto até décadas recentes:
“Antes de começarmos nossa exposição histórica, será preciso oferecer um
conceito provisório de literatura, que precise a dimensão e os limites do todo.
Mas esse conceito só pode ser provisório na medida em que o conceito mais
pleno é a própria história da literatura”.
SCHLEGEL, apud LIMA. História. Ficção. Literatura, p. 336.
HISTORICIDADE DA LITERATURA
Essa historicidade da arte romperia com classificação tradicional dos gêneros
de dar conta da nova situação moderna, romântica. Schlegel preferia falar
de gêneros que predominam em cada época: a tragédia para os gregos, a
sátira para os romanos e o romance para os modernos/românticos.
Sem conceituação específica, dependente da historiografia, o estudo da
literatura constituiria, no melhor dos casos, uma especialização sua. Seguindo
os padrões da historiografia em geral, as histórias da literatura serão
nacionais, factualistas, lineares e teleológicas, deixando o valor estético das
obras em segundo plano.
[9] Chiste é espírito social incondicionado, ou
genialidade fragmentária.
[11] Até agora nada de verdadeiramente hábil,
nada que contenha profundidade, força e destreza,
foi escrito contra os antigos; sobretudo contra sua
poesia.
LYCEUMS-FRAGMENTE [16] Gênio não é certamente questão de arbítrio,
(1797) mas de liberdade, como chiste, amor e crença, que
um dia terão de se tornar artes e ciências. Deve-se
exigir gênio de todo mundo, mas sem contar com
ele.
[20] Um escrito clássico jamais tem de poder ser
totalmente entendido. Aqueles que são cultos e se
cultivam têm, no entanto, de querer aprender
sempre mais com ele.
[27] Um crítico é um leitor que rumina. Por isso,
deveria ter mais de um estômago.
[32] A classificação química da solução pelo
ressecamento ou umedecimento também é aplicável,
na literatura, à dissolução dos autores, que, depois
LYCEUMS-FRAGMENTE de atingir sua altura máxima, têm de desaparecer.
Uns evaporam, outros se liquefazem.
(1797) [33] Uma das duas é quase sempre inclinação
dominante de todo escritor: ou não dizer muito
daquilo que teria absolutamente de ser dito; ou
dizer muito daquilo que não precisava ser dito de
modo algum. O primeiro é o pecado original das
naturezas sintéticas; o segundo, das analíticas.
[60] Em sua rigorosa pureza, todos os gêneros
poéticos clássicos são agora ridículos.
[2] O tédio, tanto no modo como surge quanto nos
efeitos, se assemelha ao ar empesteado. Os dois
gostam de se propagar quando muita gente se reúne
num ambiente fechado.
[4] Para grande prejuízo da teoria dos gêneros
poéticos freqüentemente se negligenciam as subdivisões
dos gêneros. Assim, a poesia-de-natureza se divide,
ATHENÄUM por exemplo, em natural e artificial, e a poesia
popular em poesia popular para o povo e poesia
popular para os de boa condição e doutos.
[24] Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos.
Muitas obras dos modernos já o são ao surgir.
[45] É novo ou não é: eis a questão que, diante de uma
obra, se faz do ponto de vista mais alto e do mais
baixo, do ponto de vista da história e do da
curiosidade.
“Os historiadores da literatura não só se ligavam
ao Schlegel ‘convertido’, e, com ele, se desfaziam
da tentativa de aprofundar a mediação da
forma, como, de antemão, se contrapunham ao
ressurgimento da teoria, que florescerá entre
O LEGADO DE 1960 e 1980. A teoria se confundiria com o afã
classificatório, ao passo que a história da
SCHLEGEL literatura nos daria acesso ao ‘essencial’, a vida
das obras, seus condicionamentos e propósitos.
Nesse sentido, a reflexão que aqui se desenvolve
é um tanto retardada: ela teima em efetuar uma
teorização que já voltou ao quarto dos fundos
dos estudos literários” (LIMA, p. 336).
“A radicalização da crítica em Friedrich Schlegel
parece colocar-nos diante do problema da
objetividade da crítica de arte: se o julgamento a
respeito da qualidade no âmbito da arte deve ser
orientado por uma teoria, os conceitos a
fundamentar tal teoria devem ser válidos
universalmente. O problema está justamente nesta
PARA PENSAR fundamentação – uma vez que a razão desvelou-
se órgão cognitivo insuficiente, fica patente sua
incapacidade em submeter todas as obras de arte
ao tribunal por ela mesma instituído. Schlegel não
parece assumir a partir daí que toda crítica
estética seja tão somente – subjetiva. No entanto,
uma vez rejeitada a possibilidade de crítica
objetiva, ficamos com a seguinte pergunta: que
tipo de crítica é ainda possível?” (FOSCOLO,
2010)
MADAME DE STAËL 1766-1817
Madame de Staël como precursora de uma história social da literatura
 A literatura em suas relações com as instituições sociais;
 A emoção empenhada;
 Preservação da normatividade moral das belas-letras;
 A identificação da poesia e da literatura como expressão da subjetividade.

A estética cristã de François-René de Chateaubriand


 A fundação francesa de um conceito moderno de poesia;
 A disseminação da concepção moderna de literatura;
 O efeito emotivo da literatura;
 A identificação da poesia e da literatura como expressão da subjetividade.
ANNE-LOUISE GERMAINE
DE STAËL-HOLSTEIN
Romancista e ensaísta pouco estudada no Brasil,
escreveu vários ensaios políticos e literários que
são documentos importantes do Romantismo e
do Iluminismo.
Sua vida foi agitada: ela participou da
Revolução Francesa, foi amiga de August
Schlegel, inimiga pessoal de Napoleão
Bonaparte, foi amante de Benjamin Constant.
IMPORTÂNCIA
Madame de Staël teve sua importância para os Estudos Literários por dois
motivos principais:
1. Considerar a influência dos aspectos sociais, religiosos e morais na
produção literária, e vice-versa, tornando-se precursora de uma história
social da literatura;
2. Adaptar o ideal romântico alemão (Schlegel e cia) para a realidade
francesa, em diálogo com as demais culturas da Europa, tornando-se
precursora da Literatura Comparada.
DA LITERATURA (1800)
Ela afirma que a literatura engloba os escritos filosóficos e as obras de
imaginação, “tudo o que enfim concerne ao exercício do pensamento nos escritos,
com exceção das ciências físicas” (apud LIMA, p. 326-327).
“Não há sequer o esforço, que víamos oscilante em Schlegel, de diferenciar poesia
e literatura” (LIMA, p. 327).
“A poesia é de todas as artes aquela que está mais perto da razão. No entanto, a
poesia não admite nem a análise nem o exame que serve para descobrir e
propagar as ideias filosóficas. Aquele que quisesse enunciar uma verdade nova e
ousada escreveria de preferência na língua que entrega exata e precisamente o
pensamento; procuraria antes convencer pelo raciocínio do que atrair pela
imaginação” (LIMA, p. 327).
DA LITERATURA EM SUAS RELAÇÕES COM AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS
Enquanto Schlegel explica a literatura a partir de sua caracterização conceitual,
de cunho reflexivo, o argumento de Stäel segue trilhas sóciohistóricas.
“A autora não se punha como precursora de uma teoria da literatura, mas de
uma história social. Nessa linha há de entender seu realce da imaginação. A
literatura é movida pela imaginação quando dotada da capacidade de co-
mover, de conduzir o receptor a questionar emocionalmente as instituições sociais
que o acompanham” (LIMA, p. 328).
“A razão lhe importa na medida que suscita emoção”. (LIMA, p. 329).
DA LITERATURA EM SUAS RELAÇÕES COM AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS
A teoria fundamental é que uma obra deve expressar a realidade moral e
histórica, o Zeitgeist da nação em que é concebida. Assim, Stäel apresenta a
primeira tentativa de pensar o relacionamento entre literatura e sociedade,
tornando-se precursora da crítica sociológica e da história social da literatura.
Madame de Staël colocou questões ainda atuais, por exemplo:
O que caracterizaria uma literatura nacional?
De que forma uma literatura nacional se articula com a história do país?
INDEFINIÇÃO DA LITERATURA
“Conceitualmente, o termo [literatura] permanece vazio? Sua distinção com o
que dele se aproxima, poesia, indefinido? Embora tais questões não tivessem
sido levantadas a Mme. De Stäel, não custa supor que ela responderia com
seu desprezo pelo pensamento guiado por passos lógicos. A razão lhe
importa à medida que suscita emoção [...] muito menos Schlegel teria êxito em
precisar internamente o território da literatura” (LIMA, p. 329).
VISCONDE DE CHATEAUBRIAND 1768-1848
FRANÇOIS-RENÉ DE CHATEAUBRIAND
Ele foi um escritor, ensaísta, diplomata e político francês pré-romântico que
exerceu uma profunda influência na literatura romântica europeia, incluindo a
portuguesa e a brasileira: “Chateaubriand se converte no máximo propagandista
do ideal romântico” (LIMA, p. 331).
Quando eclodiu a revolução francesa era oficial de cavalaria, negou-se a lutar
pela coroa e partiu para os Estados Unidos (1791). Depois
voltou à Europa, morou na Inglaterra e retornou à França.
Reconciliou o pensamento racionalista com o cristianismo: “A estética cristã criada
por René de Chateaubriand, no Gênio do Cristianismo, pode ser compreendida
como a fundação francesa de um conceito moderno de poesia” (BARCK, apud
LIMA, p. 331).
O GÊNIO DO CRISTIANISMO (1800)
Avalia as relações entre cultura pagã e cultura cristã, o que determinaria
também uma reflexão sobre os modelos canônicos e sua subversão, e,
portanto, sobre as diversas formas de configuração dos diferentes discursos
decorrentes da cultura, enquanto produções e práticas sociais inseridas num
determinado contexto histórico. Ao tomar como referência certa parte do
teatro francês do século XVII e, sobretudo, a tragédia de inspiração greco-
latina, Chateaubriand revela que, na verdade, a dicção das personagens não
é, e nem pode mais ser, a dicção clássica pagã, mas a da França
contemporânea cristã. Isso demonstra como a interpenetração de culturas se
faz de modo complexo, à revelia de qualquer projeto estético de adoção de
pressupostos de elaboração artística alheios às práticas sócio-culturais de um
povo em determinado momento de sua história.
A CONCEPÇÃO DE LITERATURA
Em vez de exaltar a literatura como instrumento cívico, restringindo seu
interesse aos que tivessem um propósito político, a tinha por condizente a
qualquer um. “Em outras palavras, em vez de a imaginação conjugar-se à
persuasão cívica, visava a despertar o sentimento do receptor” – com a
assumida “religião do sentimento” (LIMA, p. 331).
“Diante do dilema de ou refletir sobre o que caracterizaria o território da
literatura ou ressaltar o efeito emotivo que suas obras provocam,
Chateaubriand opta pelo segundo caminho” (LIMA, p. 331).
ANTIINTELECTUALISMO
“Chateaubriand não cogita da literatura como um modo discursivo próprio,
senão como um fluxo de emoções” (LIMA, p. 332).
Em Chateaubriand, essa orientação assumia um verdadeiro viés anti-
intelectualista, oferecendo à resposta emotivo-sentimental do leitor outro
critério para que a literatura continuasse a manter a grandeza que tivera nos
séculos anteriores.
“Ora, considerando que a ‘a imaginação é rica, abundante e maravilhosa; a
existência pobre, seca e desencantada’, há que se concluir que a grandeza do
cristianismo estaria em estimular essa inesgotável fonte pessoal. Indagar-se
sobre ela, ao contrário, seria introduzir lógica, cálculo, razões” (LIMA, p. 332).
RELIGIOSIDADE
“Não sou nada; não passo de um simples solitário; muitas vezes escutei os
sábios disputar sobre o Ser primeiro e não os compreendi; mas sempre notei
que é à vista das grandes cenas da natureza que este Ser desconhecido se
manifesta no coração do homem” (CHATEAUBRIAND, apud LIMA, p. 330).
“Consideremos agora os efeitos do cristianismo na literatura em geral. Pode-
se classifica-la sob três pontos principais: filosofia, história, eloquência” (LIMA,
p. 331).
“o cristianismo, ele próprio considerado como paixão, fornece ao poeta
tesouros imensos”. (CHATEAUBRIAND, apud LIMA, p. 332).
MORALIDADE CRISTÃ
Chateaubriand subordina o juízo crítico à normatividade moral. Comparando,
por exemplo, os personagens da Jerusalém libertada, de Tasso, com os heróis
da Ilíada, de Homero, dirá sem meias medidas:

“Que diferença, com efeito, entre cavaleiros tão francos, tão desinteressados,
tão humanos e guerreiros pérfidos, avaros, cruéis, insultando os cadáveres de
seus inimigos, poéticos, enfim, por seus vícios, como os primeiros o são por suas
virtudes!” (CHATEAUBRIAND, apud LIMA, p. 332).
O LEGADO DE CHATEAUBRIAND
“Chateaubriand se mantém atual: a relação com a literatura faz-se com os
sentimentos; indagar-se sobre conceitos, sobre a propriedade dos termos,
teorizar, são atividades a ela abomináveis. Em suma, o introdutor da
compreensão moderna de poesia na França é aquele que a torna indistinta
da resposta sentimental do receptor. O conceito de literatura permanece
vazio, sem fronteiras e, em consequência, a serviço dos valores dominantes”.
(LIMA, p. 332-333).
O julgamento moral da obra literária também tem ocorrido com frequência
no Brasil do século XXI.
“Seria o termo ‘literatura’ apenas uma
convenção, impossível de caber em um
PARA PENSAR conceito, de que se haveria sempre de
repetir ser carente, vazio, de fronteiras
intermináveis?” (LIMA, p. 347)
CONSIDERAÇÕES FINAIS I
• A obra de Friedrich Schlegel mostra o importante papel que a filosofia e a
história desempenhavam no pensamento alemão sobre a literatura.
• Madame de Stäel e Chateaubriand foram os principais responsáveis pela
difusão do romantismo. Por eles, expandiu-se a identificação da poesia e da
literatura como expressão da subjetividade.
• Costa Lima: “Embora não tenha pretendido uma história das variações do
termo ‘literatura’, as anotações precedentes são bastantes para mostrar que
‘literatura’ nunca teve um sentido unívoco” (LIMA, p. 348).
CONSIDERAÇÕES FINAIS II
Schlegel, Stäel, Chateuabriand e o pré-romantismo/romantismo no geral
concordam com os seguintes preceitos:
Querem reabilitar a imaginação como faculdade cognitiva: se pela razão
erigiu-se um indivíduo vazio, reabilitar a imaginação é tratar de preenchê-lo.
Se a imaginação é capaz de captar a multitude dos fenômenos que nos cercam
em toda a sua pluralidade, a poesia – como ideal estético – é capaz de dar a
este todo um sentido, unidade.
Se a filosofia é o reino da razão, do ideal, e a poesia o da imaginação, do
real.
Ao fim e ao cabo, a atividade estética por excelência seria a construção da
própria subjetividade

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