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PARECE IMPOSSÍVEL MAS SOU UMA NUVEM

Um grupo de sonhadores, de nariz no ar, contempla aquela nuvem – pobre escrava branca de todos os ventos.
- Parece um cavalo de batalha – diz um.
- Qual! – protesta outro. – A mim dá-me a impressão duma cabeça de romano. Só lhe falta falar latim.
Uma rapariga franze os lábios no desacordo lento de ruminar em voz alta:
- Cabeça de romano, não… Deixa-me examinar bem… Ah! Já sei! É uma ave… Isso mesmo: um cisne. Lá está o
pescoço. E as asas. Que elegância! Não veem?
- Qual cisne, qual carapuça – acode outro. – A mim parece-me um anjo vaporoso, leve, ténue, de asas suspensas…
Cada qual aspira reduzir a nuvem ao tamanho dos seus olhos. Este descobre nela um elefante; aquele, um camelo no
Deserto das Areias Azuis; estoutro, um templo chinês…
Só eu num dia seco de imaginação continuo a ver apenas uma nuvem. Mas para não fazer má figura, quando chega
a minha vez de opinar, opto resolutamente pelo hipopótamo:
- É tal qual um hipopótamo.
Riem-se muito e eu aproveito o alarido para pôr em prática a minha técnica de viver duas vezes ao mesmo tempo –
espécie de Elixir de Longa Vida que já me permitiu gozar, pelo menos, setenta anos de sol.
Por fora, à superfície dos sorrisos, converso, mecanizo gestos de atenção presente, provo que mereço a glória do meu
grau de licenciado em Direito. Encerrado no crânio, penso, discuto, retalho-me, berro, embalo-me com promessas, vibro, em
suma, todos os grandes deslumbramentos da liberdade plena.
A dificuldade consiste em manter o equilíbrio entre as duas vidas que nem sempre conseguem coexistir
harmonicamente separadas. Basta um grão de pó para que deixem de funcionar com independência. E ai de mim se a
máquina exterior se desarranja. O monstro secreto rompe a casca, atravessa a pele, apodera-se da boca e dos braços, e
desato a falar sozinho por essas ruas que é mesmo uma vergonha.
Mas voltemos ao assunto, menos triste.
Enquanto com voz nítida e tenaz sustento o meu teimoso ponto de vista do hipopótamo – por dentro, em
contraponto, começa o outro mundo a fermentar.
Pela primeira vez, ato certas observações desligadas na aparência, dou-lhes lógica e acabo por descobrir esta
verdade, vestida duma imagem literária, mas nem por isso menos verdadeira: Eu também sou uma nuvem. Uma nuvem de
natureza especial, evidentemente, de carne e osso, à Maiakóvski 1, com duas pernas, dois olhos, um baço, um fígado e esta
dorzinha de cabeça tão fina… Mas nem por isso menos nuvem de que qualquer outra – sujeita à tirania de ventos
semelhantes e ao mesmo destino vário de não possuir um carácter de aceitação unânime.
Porque, como os senhores decerto já se aperceberam, a minha qualidade de nuvem resulta apenas dessa ausência de
opinião una e indivisível a meu respeito.
Ninguém me vê do mesmo modo. Como a nuvem do céu – para alguns sou águia; para muitos, burro; para este, um
camelo; e para quase todos um animal indefinido.
Cada qual agarra em mim a realidade que mais lhe convém. Há patetas que me julgam engraçadinho e outros que
choram tédio mal envesgam a minha cara longa de gato-pingado2. Horrorizo meia dúzia de pessoas com a minha má-criação,
ao mesmo tempo que fascino outra dúzia com a minha amenidade de açúcar do meu temperamento. E depois de empolgar
três ou quatro tolos com discursos inteligentes, não me importo de exibir um solo de estupidez diante dum auditório de
cretinos espertos. Nem me indigno quando aquele barrigudo me pergunta se persisto em ir todas as noites ao Estoril jogar a
roleta. Em contrapartida, outro mais magro imagina que deposito dinheiro nos bancos. E outro, ainda mais magricelas,
prega-me sermões para me tirar da cabeça a ideia do suicídio.
Isto para não me referir aos que não desistem de louvar, na minha pessoa, o músico falhado, o ex-poeta decorativo
do Longe3, o tradutor de fitas, o ex-cônsul, o jogador de barra, o homem que mete o dedo no nariz ou o neurasténico dos
nervos enrodilhados.
A única divergência entre mim e a nuvem é que o pobre farrapo de vapor de água desliza pelo céu desprendido e
alheio à opinião dos olhos dos homens… Mas eu não. Eu colaboro.
Consciente ou inconscientemente, adapto-me às opiniões provisórias dos outros. Entro nas mil comédias do
ramerrão4 diário, sem me enganar nos papéis ou confundir as personalidades.
Graças ao meu profundo talento de Proteu 5, nunca os palermas que me supõem tímido assistiram a um rasgo de
revolta da minha parte. Nem os que me consideram abaixo da craveira normal puderam arrepender-se do seu juízo a
respeito da minha imbecilidade prevista.
Sou sempre o que eles querem: bom, mau, epilético, filósofo, íntegro, puritano, devasso, pianista, sonâmbulo, tudo…
Só nunca fui uma coisa: eu próprio.
Mas esse é um dos muitos segredos que hei de levar para a sepultura.
Entretanto por fora continuo a teimar:
- É um hipopótamo, já disse!
José Gomes Ferreira, “Parece-me impossível mas sou uma nuvem”, O Mundo dos Outros – Histórias e
Vagabundagens, 9.ª ed., Publ. Dom Quixote, 2000

1. Maiakóvski: Vladimir Maiakóvski (1893-1930), poeta, dramaturgo e pintor russo, um dos representantes do futurismo russo.
2. gato-pingado: empregado da agência funerária que acompanha os enterros.
3. Longe: Livro de poesia do autor, publicado em 1921.
4. ramerrão: monotonia.
5. Proteu. Deus marinho da mitologia grega que mudava frequentemente de forma; pessoa que muda constantemente de opinião;
volúvel.

ORIENTAÇÔES DE LEITURA
1. Este texto pode ser esquematizado da seguinte forma:

Grupo de sonhadores Narrador


Interpreta a forma de ‡  Por fora: interpreta a forma da nuvem
1.1. Explique o esquema,
uma nuvem comprovando a sua resposta com elementos
 Portextuais.
dentro: analisa a sua personalidade
2. Ordene as interpretações da forma da nuvem que surgem ao longo do texto:
a. Hipopótamo
b. Cavalo de batalha
c. Cisne
d. Cabeça de romano
e. Anjo
3. Selecione a opção que completa de forma adequada ao sentido do texto cada uma das afirmações seguintes.
3.1. O narrador encontra-se entre um grupo de “sonhadores”. No momento em que lança a hipótese do “hipopótamo”,
sente-se em estado de…
a.  fria e objetiva análise.
b.  devaneio e inspiração poética.
c.  ausência de imaginação.
3.2. O narrador formula a hipótese do “hipopótamo” devido ao impulso de…
a.  escandalizar o grupo.
b.  se conformar ao grupo.
c.  se diferenciar do grupo.
3.3. A reação do grupo conduz o narrador a exercer a sua “técnica de viver duas vezes ao mesmo tempo”. Para o narrador,
essa técnica…
a.  no desdobramento entre um “eu” social que adota os comportamentos e as atitudes daqueles que o rodeiam e um
“eu” íntimo e livre.
b.  num procedimento psíquico que permite imaginar dias de sol num tempo invernoso.
c.  em imaginar uma outra vida noutro tempo e noutro lugar.

4. De acordo com a perspetiva do narrador, explique em que consiste a dificuldade da “técnica de viver duas vezes ao
mesmo tempo”.
5. Enquanto o narrador persiste em manter a versão do hipopótamo, aponte a “imagem literária” que surge no seu
íntimo.
5.1. Que recurso expressivo utiliza para transmitir essa “imagem literária”?
5.2. Identifique as semelhanças e as diferenças entre os dois termos dessa “imagem literária”.
6. O narrador suscita nos outros as mais diversas interpretações da sua personalidade.
6.1. Por que razão isso acontece? Transcreva do texto quatro exemplos que o comprovem.
7. Que opinião, afinal, tem o narrador de si próprio? Justifique o teu ponto de vista, fazendo referência ao uso que ele faz
da metáfora (ao associar-se à nuvem e a Proteu, por exemplo), da enumeração e da antítese.

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