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BACO ENTRE BACAS

O nome de Dioniso
e seu culto remontam a alta antiguidade. O nome aparece na escrita Linear B de
Pilos; e inscrição e oferenda votivas atestam que o santuário de Hagia Eirene em
Ceos consagrava-se a Dioniso desde o século XV a.C.. O dionisismo pertence à
herança indoeuropéia; e quando na época arcaica restabeleceu-se a comunicação
com o oriente, a influência trácia e frígia reforçou entre os gregos os
elementos tradicionais do legado comum a esses povos. O mais antigo dos
festivais dionisíacos, as Antestérias, é celebrado tanto na Ática quanto na
Jônia e deve, portanto, ser anterior à colonização da Ásia Menor (cf. Tucídides,
II, 15, 4).
Um outro nome do Deus, Bákkhos, aparece pela primeira vez, na literatura
supérstite, no Éàipo Tirano de Sófocles (v. 211). Esse nome designava antes o
ramo carregado pelos iniciados (como em Xenófanes, frag. 17); depois designaram-
sè Bákkhoi (Bacos) e, no feminino, Bákkhai (Bacas) os portadores do ramo. Assim
passou a chamar-se Baco o Deus mesmo, enquanto conduz os Bacos; e ainda: Báquio
(Bakkheîos) e Baqueu (Bakkheús), como Deus dos Bacos e da Baquéia (Bakkheía: a
festa e o furor báquico).

A tragédia Bacas de Éurípides


tira seu título do coro composto pelas Bacas originárias da [Lídia e guiadas
pelo Deus a Tebas na Grécià.
Ela constitui reconhecidamente o mais completo documento que a antiguidade nos
legou a respeito do culto dionisíaco. A autenticidade e o realismo de suas
descrições é confirmada pela iconografia da cerâmica grega, por outros
testemunhos da época, e por diversos paralelos que em nosso teinpo a
Antropologia estabeleceu com usos e costumes religiosos semelhantes em diversos
povos e em diversas épocas.

Prólogo
Nas Bacas, quem diz o prólogo é o Deus Dioniso mesmo que, nesta sua primeira
epifania, apresenta-se como filho de Zeus, situa a ação em sua terra natal,
Tebas, e contempla e dá a contemplar os lugares aí consagrados pelo seu
nascimento (,v,v. l-12). A filiação divina de Dioni. so, afirmada por ele desde
o primeiro verso, reconhecida por seus fiéis e negada por seus opositores,
reitera-se mais de uma dezena de vezes (vv. 84, 366, 417, 466, 522, 550, 581,
603, 725, 859, 1037, 1042, 1341) e constitui o motivo e o eixo do drama.
Dioniso descre,ve o itinerário de sua marcha triunfante por terras bárbaras, ao
fim da qual chega a Tebas (vv. 1_3-20). É notável que o Deus se apresente, ao
mesmo tempo, coino nativo de Tebas e como recém-chegado de países bárbaros. O
catálogo deste itinerário, sem dúvida, reflete o conhecimento de práticas
cultuais afins ao dionisismo nessas terras estrangeiras. Dioniso, porém, não é o
único recém-chegado; também o é seu séquito de mulheres lídias que como Bacas
compõem o coro. Esta ambigüidade entre nativo e estrangeiro, - enfatizada pela
presença do Deus em sua terra natal acompanhado todavia de estrangeiras lídias,
- aponta iim lraço característico do culto extático: o estranhamento, a
extraordinária surpresa que diversamente empolga tanto ao cultor em seu êxtase
quanto a quem obser,va o seu comportamento durante o êxtase.
Dioniso apresenta as demais personagens do drama e suas atitudes perante o Deus
(vv. 21-54). As irmãs de Sêmele, mãe de Dioniso, negam a filiação divina e
consideram as n£ipcias com Zeus sofismas de Cadmo para encobrir o erro da filha
que, por essa mentira, teve com a morte o casti.go de Zeus. Por tal difamação de
sua mãe, Dioniso as puniu com a loucura, e elas, junto com as outras mulheres de
Tebas, todas aturdidas e com paramentos rituais, correm pelas montanhas.
Penteu, priino de Dioniso, recebe L1cl ci,vô de ambos, Cadmo, o poder real em
Tebas; ele, porém, coiubate o Deus e repele-o. Por isso, Dioniso quer
iiiostr,ir-se-llie Deus iiato, a Penteu e a tod.os os tebanos, para que assiin o
reconheçani, - eis o motivo do Deus e do drama. - Insiste-se na tr¿insmutaçàø
cla forma di~..ina na ioriiia hiimana (vv. 4, 53, 54); este é o priineiro
prødígio realizado pelo Deus em Tebas: a si.ia manifes~ tação mesma sob o
aspecto de uin mortal. Há serenidade na figura humana do Deus, mas tainbéin a
clara advertência de que não tolerará a expulsão das Bacas (vv. 50-2).
Dioniso conclama as niulheres que o seguem desde a Lídia a percutireiu os
ta~l~'borins lrígios diante do palácio real de Penteu, anunciando assim ao povo
a prcsença do Deus. Ele mesmo irá ao Citéron e parti<zip¿irà dos coros iormados
pelas tebanas por ele enlouquecidas (,v,v. 53-63).

Prelúdio
Atendendó a essa conclamaçào do Deus, o coro entra na orquestra, cantando um
prelùdio (vv. 64-72) eni que as Bacas se declaram oriunLias de l'molo, sagrada
montanha da Lídia, a dançarem por Brômio ("Freittente") e a ceiebrarem Báquio; e
pedem a atenção dos que estão na rua e eni casa, e reverente silêncio para que
se ouçam os hinos a Dioniso.

Párodo
Esses hinos coiistituem o párodo (vv. 64-169), composto por dois pares de
estrclfe e antístroie e por um epodo.

A primeira estrofe (vv. 72-87)


canta a beatitude do conhecedor dos mistérios divinos que, santificando a si_ia
vida e integrado como membro da comuniLiade espiritual do tíaso, é uiii Baco nas
montanhas, coroado de heras e a brandir o tirso. O rito báquico, que também se
chama "trabalhos" (oi~giûfi, v. 34), é iclentificado aos "trabalhos" (órgia, ~,.
80j da grc~.nde inãe Cibele. É comum, desde o século VI a.C., a 'identificaçãó
da Deusa Cibele joriginária da Frígia e cultuada na Jônia e ilhas viziiihas)
coni Réia, mãe dos Deuses Olímpios. - As Bacas conclainafii-se a trazer Dioniso
das montanhas frígias para as amplas ruas cia Grécia, a incorporarem este culto
selvático praticado em lugares ermos na vida e nll contexto político da cidade.

A primeira antístrofe (vv. 88-104)


narra o duplo nascimento do Deus: do ventre de mãe mortal c da coxa de pai
imortal. O primeiro nascimento Lià-se ao golpe dL) raio, quando a rnãe humana é
destruída pela inanifestaçào própria da natiireza do pai. Por contraste, o
segundo iiascinienlø tràz consigo a harii~onia entre o Deus tauricórnio, os
honiens e as teras: coroaçlo pelo pai com serpentes ao nascer, assim com
serpentes coroam-se as Loucas (Mainádes, v. 102) ao cultuá-lo.

A segunda estrofe (vv. 105-119)


exorta Tebas, terra nutri? de Sêmele, a que se torne Baca: a terra toda hà de
usar os paraiiientcls rituais, santificar-se e dançar condi,izida por Bròmio; a
festa báquic~, empolga também as forças tel£iricas.

A segunda antístofe (vv. 120.-134)


Volta-se a Creta, ilha natal de Zeus, corroborando a exortação a Tebas pela
referência ao culto cretense de Zeus e de Dioniso. Os "Adolescentes" (Koiiretôn,
v. 12ù), sacerdotes de Réia que nos tempos míticos protegeram o recém-nascido
Zeus da sanha devoradora Lie seu pai Crono, são aqui associados aos Celibantes,
sacerdotes de Cibele, dos quais se diz que inventaram o tamborim e fizeram dele
presente à Helae Itéia; esta o deu aos Sátiros e seguidores de Dioniso. Esta
etiologia cofere a este instrumento estranho à música grega a alta dignidade de
estar associado ao nascimento de Zeus.

O epodo (v. 135-169)


dcscreve a doçura dll êxtase ~Tisionário em que o Dei.is e seu cultor são um e o
mesmo. Baco, tJ doce guia do tíaso nas montanhas, portanto a sagraiia iiébrida,
corre à frente de todos a perseguir uin bode e cai sobre ele no'chão,
dilaceranLio-o e devorando-lhe crua a carne: crudívora graça (omúphagon
khiíiifi, v. 139). Neste procedimento ritual, dito omophaj~ía, a presença divina
se re~lel¿i tanto na vítima da dilaceração (sparagmiís) quanto no Bacll a
dil,iL:erà-la e a devorá-la: "eis o regente Brôinio, evoé!" (,'iùd'é.im.kJias
fiiòfiii.ùs, ,iuoî! v. 141). Tal revélação da presença divina faz fluir leite do
chão, fluir vinho, fluir mel nectário, e o ar recender a incen.so sírio. A dança
e as corridas errantes prosse~uem, dirigidas pelo Deus, portador da tocha acesa
e do tirso, que as provoca, compelindo com gritaria e sacudindo a cabeça para
trás e para frente de modo a pri)jetar para o céu a cabeleira. Ouvindo-o gritar
evoés e os incE>ntivos: ó íte Bákkhai:~ ú íte ~ Bákkhai! (vv. 152s.), uníssono
aos tambores, à flauta e às canções, as Bacas o seguem aos saltos.
Na tragédia em geral, os integrantes do coro são exclusivamente cidadãos em
plena posse de seus direitos civis~ ainda quando riapresentem figuras temininas,
pois o coro apresenta ~empre o ponto de vista próprio da pólis e, de uma
m.aneira clu de outra, configura sempre a condição dos homens mortais dentro do
í.ioril.onte ia das possibilidades próprias da póiis. - Como se ~.verifica isto
J~este coro de estrangeiras lídias marcadamentta exótico? O coro das Bacas
mostra o culto d1llnisí~.co eni si_ia forma tradicional; descreve seus
paranientos: a corL)a de heras, c1 tirsL) jbastào adornado com heras e pàmpanos
e com unia pinha no alto), a nébrida (pele de corça que se ata ao pescoço);
descreve seu comportamento e gestos: o tíaso (grupo de Bacas guiado por um
Baco), as corridas errantes nas montanhas, o sacudimento da cabeça para frente e
para trás, solta a cabeleira, a laceração e imediata devoração ritual de
afiimais, as visões miríficas que consumam as danças extáticas; narra os seus
niitos e formula os seus preceitos e exigências religiosas. - O ponto de vista
próprio da póiis reflete-se no louvor e celebração Lias formas tradicionais do
culto, consagradas pelo uso e iniorporadas às instituições e atividades próprias
da póiis. Deste niodo, a proximidade do divino não rompe a normalidade nem
coinpromete o funcionamento habitual das instituiçses políticas. - Quanto ao
caráter exótico do coro das Ba¿as, já o tínhamos explicado como um índice cleste
traçø peculiar aos cultos extáticos: o estranhamento da realidade cotidiana
causai.lo pelas visões extraordinárias e pelas atitudes rituais de queim as vê

O primeiro episòdio (vv. 170-369)


põe em cen.a primeiro duas personagens que são, a rigor e em líáimo sentido,
heróis: o adivinho Tirésias, servo de Apolo, e Cadnio, o fundador de Tebas. Na
Odisséia, XI, 23ss., Tirésias jà aparece recebendo as "honras heróicas" de
Odisseu, que o invoca num sacrifício cruento, para indagar-lhe o caminho de
volta a Ítaca, pois a'iirésias a terrível Perséfone, rainha dos ínferos,
concedeu o privilégio de conservar o espírito firme e o poder divinatório entre
as sombras inanes dos mortos)Od, X, 492-5)= Esse sacriiício que Odisseu lhe
consagrou é semelhante ao oferecido, em tempos históricos, aos mortos
considerados heróis cujo poder se teme e cujo favor assim se procura conciliar
com oferendas junto ao tùmulo.
Tirésias e Cadmo, veneráveis autoridades em religião e em política, aparecem
como Bacos, portando tiisos, coroaLias as cabeças com ramos de heras e vestidas
as nébridas. O cego Tirésias se conduz ao palácio sem o seu habitual menino
guia; e uma insólita disposiçâo para dançar em honra do Deus einpolga a ambos os
anciâos: milagres de Dioniso. - É notável que Tirésias justiÍique sua atitude
alegando respeito a "pátrias tradições que temos coetâneas Lio tenipo" (vv.
201s.), num anacronismo típico da tragédia: o Lirama mostra a difícil conquista
de Tebas por Dioniso, no entanto já são "pátrias tradições", como na Atenas do
século V.
Ao chegar, o rei Penteu, antes de perceber a presença dos dois anciãos, expõe
sua preocupação com a cidade, cujas mulheres abando naram as casas e dançam em
tíasos nas montanhas, comportainento para ele suspeito de corrupção e
libertinagem; sua preocupação com o forasteiro lídio que oferecendo os mistérios
báquicos às mulheres assim as seduz, e que ainda diz ser Dioniso Deus, quando
sabidamente foi fulminado pelo raio com sua mãe que mentiu nùpcias de Zeus.
Penteu afirma sua contraposição ao novo culto, com as já expedidas ordens de
prisão das mulheres Bacas e principalmente do forasteiro Baco.
Ao ver os anciãos com os paramentos báquicos, Penteu acusa Cadmo de senilidade,
e Tirésias de ganância por lucros advindos da nova crença. A resposta de
Tirésias em defesa do Deus (vv. 266ss.) trai certo pendor retórico e
racionalização do mito correntes na Atenas do século V. Particularmente a
tentativa de explicar o segundo nascimento do Deus mediante um tríplice
trocadilho entre méros, merôi e homéreuse ("côdea", "coxa" e "côdea-refém", vv.
292, 295, 297) lembra a "sabedoria rùistica" que Sócrates recusava (agroloi tinì
sophíai, Platão, Fedro, 229 e 3). É notável a diferença entre a aceitação
ingênua do mito pelas Bacas na primeira antístrofe do párodo (v. 96) e a
intelectualização do mito no esforço de Tirésias por persuadir Penteu (vv. 286-
97).
Neste esforço, Tirésias aponta os dons do Deus: além do vinho como remédio dos
males, a adivinhação e o pavor louco que atordoa o exército adversário;
profetiza sua instalação em Delfos e sua grandeza na Grécia; e contra a acusação
de corrupção e libertinagem, adverte:
"Não Dioniso obrigará a ser sensatas "as mulheres em Afrodite, mas por natureza
"o ser sensato em tudo vigora sempre." (vv. 314-6) Por fim, Tirésias compara a
alegria do rei, quando o povo o exalta, ao suposto prazer do Deus, se o honram,
para concluir pela necessidade de dançar em honra do Deus; e remata apontando o
combate ao Deus como a mais dolorosa loucura, pois "nem com drogas" Penteu teria
remédio, "nem sem elas" adoece (vv. 326s.). - A ambigüidade destas drogas
dionisíacas (que, benéficas, seriam o remédio, e que, maléficas, causam a
loucura de Penteu) é a mesma ambigùiidade da loucura mesma, ministrada por
Dioniso de modo benéfico e venturoso a seus cultores e de modo maléfico e
destrutivo a seus opositores. As mulheres seguidoras de Baco se dizem "Loucas"
(Mainási, v. 51; Mainádes, v. 103) mas a atitude dc Penteu, ao combater o Deus,
também se diz ser loucura (maínei, v. 326; ménienas, v. 359).
Cadmo ihtervém no esforço de persuadir Penteu com dois argumentos díspares: um
baseado na conveniência política, para a família real, de admitir a Divindade de
Dioniso; outro baseado no sentimento pio de que a negação da Divindade acarreta
desgraça, exemplificando com "a triste sorte de Actéon" (v. 337), punido por
suas palavras excessivas contra Ártemis. , Nenhum dos argumentos logra seu
escopo. A réplica de Penteu é violenta e sua contraposição ao Deus torna-se
furiosa: ordena o arrasa~ mento do santuário de Tirésias, para punir sua adesão
ao novo culto, e a prisão e apedrejamento público do forasteiro "que traz doença
no~ va para as mulheres e polui os leitos" (vv. 353-4). Penteu crê que o
respalda o apoio-popular, ou não condenaria o forasteiro ao apedrejamento
público. - Tirésias constata a loucura de Penteu e convida Cadmo a suplicar ao
Deus pelo rei furioso e por todos, temendo que Penteu atraia "dor" (pénthos, v.
367) ao palácio. Para o adivinho, o nome de Penteu anuncia o seu destino:
Penthéus/pénthos, "dor", "luto".

Estásimo I

Na primeira estrofe (vv. 370-86)


do primeiro estásimo (vv. 37043l), ante a violência persecutória de Penteu, o
coro invoca a Deusa Liceidade (Hosía, v. 370), para que contemple a "não lícita
transgressão" (oukh hosían h)brin, vv. 374s.) ao Brômio, ao Deus dos coros, do
riso e da alegria, das festas consagradas aos Deuses nas quais o esplendor da
uva põe fim às aflições dos mortais.

Na primeira antístrofe (vv. 386-401),


o coro contrapõe a arrogância da palavra e do pensamen~ to à quietude e à
prudêneia tomadas como norma de vida. Convicto de que os Deùses habitantes do
Céu, ainda que longínquos, contemplam as ações dos mortais, o coro distingue
entre "sapiência" (tò sophón) e "sabedoria" (sophía):

Tò sophòn d'ou sophía.


"A sapiência não é sabedoria."
(v. 395)

Aflora nesta antístrofe a condenação da política iinperialista de Atenas e do


racionalismo de filósofos e sofistas que desderLham as crenças tradicionais nos
Deuses e na justiça divina. Tò sophón é a sapiência humana das elites que,
baseada na experiência e observação pessoais, volta as costas para a sabedoria
(sophía) ancestral, comum do povo, manifesta na tradição e no culto. Na figura
legendária de Penteu, portanto, projetam-se características das elites políticas
e intelectuais do século V ateniense: do ponto de vista do corL), ~
persegi.iição a Dioniso confunde-se com a busca de grandezas políticas e o
desprezo da tradição, o que constitui "modos próprios de loucos" (v. 400).
"Louco" (mainónienos) é, desde Homero, epíteto de Dioniso e, no entanto, aplica-
se também à atitude insensata de seus perseguidtJres: ambigùiidades da loucura e
do saber, na referência de Dioniso.

Na segunda estrofe (vv. 402~15),


o devaneio da evasão para um abrigo seguro: Chipre, a ilha de Afrodite, Deusa
que, como protetora da fecundidade vegetal e animal, do instinto, das graças e
da inspiração poética, é freqüentemente associada a Dioniso; Faros, ilha que por
metonímia designa o Egito ("que os fluxos de cêntupla foz do rio bárbaro fazem
frutífera sem as chuvas", vv. 407ss.); Piéria, "sede dal Musas" às quais dirige
Dioniso Mousagétes e associam-se as Graças (Khárites) e o Anseio (Póthos);
nesses lugares é lícito trabalharem as Bacas (Bákkhaisi thémis orgiázein, v.
415).

Na segunda antístrofe (vv. 417-31),


o coro reitera a filiação divina de Dioniso, sua alegria, sua bondade e
generosidade, mas também sua intransigência com "soberbas gentes"; e formula
para si votos de que possa acolher "o que o povo humilde crê e põe ein prática",
1.e. a "sabedoria" (sophía).

No segundo episódio (vv. 434-518),


defrontam-se o homem perseguidor e o Deus perseguido. Não o demoveu de sua
ignorante e insensata perseguiçào nenhum dos sinais numinosos que anunciavam a
presença do Deus no país: nem as Bacas recém-chegadas da Lídia, nem a exaltação
que arrebatava todas as mulheres tebanas, nem a conversão e empolgamento
báquicos dos veneráveis anciãos Cadmo é Tirésias. - Cumprindo ordens do rei, um
servidor conduz preso o ,forasteiro e, apresentando-o ao rei, comunica novas
aparições de sinais numinosos: a serena e altiva espontaneidade com que a
estranha caça se entrega aos caçadores, de modo a despertar~lhes o pudor de
capturá-la; os grilhões que por si se soltaram dos pés das Bacas encadeadas, e
as chaves que não por mão humana abriram'portas, de modo que as prisioneiras vão
soltas e aos saltos, invocando Brômio, buscar asilo nos santuários (vv. 434-48);
e conclui o servidor:

"Cheio de muitos milagres este homem chega


"a Tebas."
(vv. 449s.)

Todos estes sinais miríficos, porém, são reduzidos pelo rei Penteu ao nível do
mero fazer humano e, pior, compreendidos como mesquinhez e torpeza. O rei está
cego à Divindade destes sinais divinos. O Deus, visando mostrar-se e fazer-se
reconhecer, cerca-o de solicitude e apresenta-se diante dele sob o aspecto de um
rrmortal a serviço do Deus mesmo e, por isso, feito prisiòneiro e algemado. As
primeiras palavras do rei, neste diálogo, revelam orgulhosa confiança ein sua
destreza atlética e o quanto está longe do sentido da realidade com que depara:
"Soltai suas mãos, pois está na rede: "'Não é tão rápido de modo a me escapar."
(vv. 451s.)
Neste'diálogo entre o rei e o Deus, evidenciam-se dois pontos de vista: o da
heróica negação da Divindade dos ïndícios divinos e o da numinosa solicitude em
manifestar-se como Nume. A persistência de Penteu em negar a Divindade dos
indícios divinos reduz a solicitude numinosa a "truques" (ekibdéieusas, v. 475),
"escapatória" ( parakhéteusas, v. 479), "ardil" (dóiion, v. 487), "malignos
sofismas" (sophismáton kakôn, v. 489) e "treino retórico" (ùuk agúmnastos iógon,
v. 491).
A revelação misteriosa de Dioniso e a compreensão destes mistérios dionisíacos
exigem que se dê à própria existência a forma que se revela nestes mistérios: só
assim, com a condição de que se realize na própria existência a verdade
revelada, pode-se compreender esta re~ velação, pois realmente só se pode
compreendê-la na forma da vida divina presente no ser que somos nós, homens
mortais.
O rei Penteu interroga o seu suposto prisioneiro na expectativa de informações
que não ultrapassem o âmbito finito do fazer humano; e assim lhe formula
questões concernentes à vida divina cuja verdade não se dá à compreensão que a
procura no nível da figura e do fazer humanos. A Penteu, persistente em sua
ignorância do Nume dos sinais numinosos, parece ser apenas treino retórico de
escamotear informações a impossibilidade verídica de se falar do sentido da vida
divina sem ultrapassar o âmbito e o nível nos quais Penteu espera as respostas.
Por exemplo, Penteu interroga e Dioniso res)onde:

"Os trabalhos, que forma têm para ti?


"A mortais não-bacos é interdito saber.
"Que vantagem tem quem os celebra?
"Não te é lícito ouvir, mas vale saber.
"Dizes ver claro ao Deus, como ele era?
"Como queria, não lhe dava ordem eu."
(vv. 471ss.)

O conhecimento da forma dionosíaca interdito a mortais nãobacos (abakkheútosin,


v. 472) unicamente se dá à compreensão de quem se dispõe a acolher em seu ser
mesmo como a sua própria identidade a forma dada por esse conhecimento. Este
conhecimento da forma dionisíaca é interdito a Penteu enquanto Penteu não é
Baco, pois neste conhecimento da forma dionisíaca o nexo necessário entre
verdade, conhecimento e existência vige ao modo da unidade de mito e de culto.
Mito é a interpelação do Deus ao homem: "vendo quem O vê, assim dá os trabalhos"
(v. 470). Culto é o impulso, suscitado no homem por essa interpelação, no
sentido de criar formas que testemunhem a sublime presença do Deus interpelante;
neste impulso criador, o homem dá primeiro à sua própria existência a forma
contempladora e contemplada na interpelação divina. - Através do mito de Dioniso
e do seu culto, a presença do Deus no homem, a participação do homem no Deus e a
imitação do Deus pelo homem consubstanciam~se na figura humana e divina do Baco
e do tíaso de Bacos. - Tal consubstanciação tambéin se mostra neste diálogo,
quando o rei Penteu tenta intimidar, e o seu suposto prisioneiro tenta adverti-
lo quanto à gravidade e implicação de suas ameaças:

"Primeiro te cortarei os luxuriantes cachos.


"Sacras melenas, deixo-as crescer para o Deus.
"Depois entrega esse tirso de tuas mãos.
"Toma-o de mim tu, porto-o por Dioniso.
"E guardaremos teu corpo dentro do cárcere.
"O Nume virá livrar-me quando eu quiser.
"Quando o evocares de pé entre as Bacas.
"E o que agora sofro, presente ele vê.
"E onde está? Não visível a meus olhos.
"Junto de mim; tu sendo ímpio não o vês."
(vv. 490ss.)

Em sua ignorância do Nume dos sinais numinosos, Penteu ignora também não só os
limites de seu próprio poder (vv. 504s.), mas ainda o sentido de suas palavras,
de suas ações e de seu próprio ser (vv. 506s.). Até o nome lhe pesa, velada e
ominosamente, como um nome próprio para o infortùinio (v. 508). Nessas
condições, combate ao Deus e dá ordem de prisão contra Baco.

O segundo estásimo (vv. 519-75)


tem uma estrutura triádica: estrofe, antístrofe e epodo.

Na estrofe (vv. 519-36),


as mulheres do coro, apavoradas com a prisão de seu guia, voltam-se para a Deusa
Dirce, filha do rio Aquelôo, fonte alma e, sobretudo, testemunha da natividade
divina cuja iniciática revelação a Tebas Zeus mesmo pro- clamou. Por ser
Divindade tutelar de Tebas e por deixar-se ver na figura visível da fonte que
nutre a região, Dirce é interpelada pelo coro de Bacas como responsável pelo que
ali lhes acontece, e assim o coro, pressagiosa e profeticamente, adverte-a de
que ainda há de cuidar de Brômio (no duplo sentido da conversão ao seu culto e
da punição por seus atuais padecimentos).

Na antístrofe (vv. 537-55),


o coro reitera e enfatiza a filiação terres- tre de Penteu para explicar sua
natureza e atitude contrária ao Deus. Seu pai Ekhíon, cujo nome significa
"Viperino", é um dos spartoí ("se- meados") nascidos da Terra. Esta origem
ctônica do pai contrapõe Penteu a Dioniso, como o filho da Terra ao filho do
Céu, ao mesmo tempo que o assiinila aos gigantes nascidos da Terra e inimigos de
Zeus. O caráter guerreiro destes gigantes e a ameaça de decapitação proferida
por Penteu (v. 241) justificam a qualificação de phónios ("san- guinário") dada
a ele duas vezes (vv. 543 e 555). O coro evoca Dioniso para que contemple seus
padecimentos atuais e iminentes e para que refreie essa "transgressão"
(h )bris).

O epodo (vv. 556-75)


evoca os lugares cultuais freqùientado pelo Deus itinerante: Nisa, identificável
como o monte Pangeu, na Trácia; os cimos Corícios, no Pamaso; o Olimpo, entre
Macedônia e Tessália, onde a cítara de Orfeu encanta árvores e feras assim como
a Baquéia põe em harmonia todos os viventes: homens, feras e forças telùricas;
Piéria, vizinha do Olimpó, na Macedônia, cujos rios Áxio, Lídias e o inéncionado
sem ser nomeado Haliácmon Dioniso atravessa conduzindo as dançarinas loucas.

O terceiro episódio (vv. 604-861) é precedido por um

kómmós (vv. 576-603),


1.e. por um diálogo, em metros líricos, entre mulheres do coro, tomadas de pavor
e desânimo com a prisão de seu'guia, e a voz do Deus que, ainda invisível,
interpela-as fazendo-as passar do sentimento de derrelição ao de maravilhamento
e de veneração, quando identi- ficam pela voz a presença do Deus. A voz ordena
ao divino Sismo sacudir o chão e à chama do raio incendiar o palácio de Penteu.
O coro, maravilhado, descreve as conseqùiências dessas ordens divinas: escombros
e incêndio no palácio de Penteu. Vimos antes que a Baquéia, o furor e a festa
báqùicos, empolga não só homens e feras mas tam- bém as forças telùiricas;
assim, Dioniso, enquanto Brômio, o Fremente, convoca e provoca também
terremotos. Já o poder de Dioniso sobre o fogo do raio advém de sua filiação e
natividade: nasceu ao golpe do raio, quando o pai Zeus manifestou-se em seu
esplendor à mãe Sê- mele.

A primeira cena (vv. 604-41)


mostra no proscênio Dioniso sereno e jovial, levemente divertido com o
aturdimento e pavor das mulheres do coro deitadas no chão. Quando o vêem, causa-
lhes jùbilo, infunde-lhes coragem e narra-lhes os mesmos aconteci- mentos
percebidos pelo coro fora do palácio como observados no interior do palácio. Por
apresentar-se sob forma de um mortal, descre- ve as suas ações divinas na
terceira pessoa, vistas desde a aparência e como opinião de observador. - A
ilusão de Penteu ao confundir com o seu prisioneiro um touro no estábulo; o
terremoto que reduz a escombros o palácio do rei; a elevação da chama que ardia
no recinto consagrado a Sêmele; o azáfama de Penteu e dos servos ao tentarem
apagar o suposto incêndio; a nova ilusão de Penteu ao atacar ilusório facho de
luz criado pelo Deus; a tranqùiila retirada de Baco deixando a prisão, enquanto
Penteu se entretinha no combate contra visões fan- tasmagóricas. O touro figura
entre as epifanias de Dioniso na forma animal, e o jogo imaginoso das
metamorfoses e das visões espetacula- res é um traço característico das
teofanias dionisíacas.

Segunda cena (vv. 642-59):


Penteu lamenta a evasão do prisioneiro agrilhoado e, ao vê-lo diante do palácio,
espanta-se com tão insólito comportamento do foragido despreocupado de esconder-
se. Ante o insólito e o inexplicável, o espanto não muda a atitude de Penteu,
que ordena aos servos fechem todas as portas da cidade, como se assim pudesse
impedir uma segunda libertação de seu suposto prisioneiro.
Ao ouvir esta ordem, este ironiza: "Por quê? Os Deuses não atravessam até
muros?" Dioniso anuncia a chegada do mensageiro e recomen- da a Penteu que ouça
e aprenda com o relato, evidenciando assim tanto o seu prévio conhecimento da
mensagem quanto sua expectativa de mudança na atitude de Penteu.
Terceira cena (vv. 660-777).
Ciente das medidas repressivas e persecutórias de Penteu contra as Bacas, o
mensageiro inicianiente mostra humildade e cautela, indagando o rei se devia
falar com franqueza ou calar-se, já que elas "fazem proezas maiores que
milagres". Penteu o tranqùiiliza com a garantia de que sua cólera não se voltará
contra o mensageiro imparcial ("justos", dikaíois, v. 673), mas tanto mais se
voltará contra o "furtivo introdutor de artes entre as mulheres" (vv. 675s.)
quanto mais "proezas" se contarem das Bacas. Uma ambigüidade perdurará em toda
esta cena: "proezas" (deiná, v. 667) para o mensageiro, homem do povo, têm
sentido laudatório e constituem objeto de admiração e reverência; para Penteu
("mais proezas", deinótera, v. 674) têm sentido pejorativo e constituem causa de
opróbrio e motivo de condenação.
O relato do mensageiro descreve as Bacas em três momentos diversos.

Primeiro momento(vv. 680-713),


ao apascentar seus rebanhos na montanha, o pastor é surpreendido pela
descclberta das Bacas, adormecidas sem sentinela que as velasse; o abandono e a
inocência desta visão levam o mensageiro a ressaltar a castidade e sobriedade
das Bacas, contrariamente à suspeita de Penteu que as acusava de embriagaremse
de vinho e caçarem Afrodite na floresta. Ao despertar, os três tíasos, regidos
pelas tias e mãe do rei Penteu, erguem-se "em admirável harmonia", recompõem os
paramentos, e os milagres principiam: Bacas servem-se de "serpentes
lingùiejantes" como de cintos; as mulheres recém-paridas levam ao seio ainda
cheio cabritos e filhotes de lobo; fazem jorrar água da pedra e vinho e leite do
chão, e pingar mel dos tirsos. A beatitude báquica é contemporânea da Idade de
Ouro, quando a terra espontânea e copiosa produzia tudo de que os mortais
necessitassem (cf. Hesíodo, Trabaihos, vv. 109-26). O pastor mensageiro ressalta
que lá presente Penteu honraria o Deus com preces.

Segundo momento (vv. 714-47),


um ~.vadio da cidade, peri.to em palavras, persuade os vaqueiros e pastores a
atacar e prender as Bacas. À hora ritual, quando tudo junto se fez Baco:
mulheris, montanha e feras, nada havia imóvel na corrida, - atacam. Conseguem,
fugindo, evitar a laceração das Bacas, pois elas deparam com um rebanho, e com
mãos nuas laceram novilhas e touros.

No terceiro momento (vv. 748-68),


furiosas com a profanação de seus mistérios, as Bacas voam pela _ pÌanície e
como inimigas assaltam cidades no sopé do Citéron, pilham, r°Ubam crianças,
carregam objetos miraculosamente presos aos ombr°S, carregam fogo na cabeça sem
se queimarem. Os habitantes se defendem e revela-se a participação das Bacas em
Ares: os dardos dos homens mostram-se inócuos, os tirscls das mulheres ferem e
põem os guerreiros em debandada. Vitoriosas, regressam às fontes que o Deus ihes
abrira e reintegram p harmonia báquica entre os viventes.
O mensageiro conclui reiterando á divindade e magnificiência de Dioniso, com a
sùiplica de que o rei o receba no país, - e nisto é secundado pelo coro, que,
como é freqùiente nos coros trágicos, identifica-se com os sentimentos e opinião
do homem do povo, contr~postos aos do rei ou do herói.

Quarta cena (vv. 778-846).


Penteu entende o relato como uma aineaça à cidade, comparável ao fogo, que se
deve.desde logo combater até extinguir, antes que escape ao controle e tudo
destrua. Diz do comportamento das Bacas "transgressão" (h jbrisma, v. 779), o
mesmo que do seu comportamento relativo às Bacas Dioniso dizia (hybrismáton, v.
516) e o coro das Bacas repisava (h)brin, v. 375; h )brin v. 555). Tal como o
saber, em sua duplicidade de "sapiência" (tò sophón) e de "sabedoria" (sophía,
v. 395), e tal como a loucura, em seu duplo caráter benéfico e maléfico, assim
também a "transgressão" (hjbrisina, h)bris) é afetada de ambigùidade na
referência de Dioniso, pois nesta referência a transgressão numinosa das Loucas
(Mainádes) pertence à sabedoria (sophía), e a transgressão heróica de Penteu
pertence à sapiência (tò sophón, v. 395) e constitui os "modos próprios de
loucos" (Mainoménon hoíde trópoi, v. 400).
Cuidoso da ordem e da salvação da cidade, Penteu ordena que todas as forças
armadas compareçam à porta de Electra, a que se abre para o Citéron, reduto das
Bacas. O que, para Penteu, traz oprobrioso vexame ante os gregos e sobretudo
passa dos limites (h yperbáiiei, v. 785) é ser derrotado por mulheres. Dioniso
tenta demovê-lo de erguer armas contra Deus; suas palavras a Penteu, por uma
notável coincidência (?), lembram as de Jesus a Paulo no caminho de Damasco:

"Sacrifício sim, mas não coices furiosos


"contra aguilhão, eu, mortal, daria a Deus."
(Bacas, vv. 794s)

"Saul, Saul, por que me persegues? É duro


"para ti escoicear contra aguilhão."
(Atos, 26,14)

Diferente de Paulo, entretanto, Penteu responde áspero:

"Sacrificarei sangue sim fêmeo qual merecem,


"e muita convulsão nas dobras do Citéron."
(vv. 796s)

Dada a atitiude recalcitrante de Penteu, irredutível ante os sinais numinosos


(relatados pelos mensageiros e anteriores) e ante os argumentos persuasivos,
Dioniso, tentando evitar guerra envolvendo as Bacas, propõe a Penteu trazê-las
ao palácio sem armas. Este vê nisto maquinação ardilosa e replica-lhe mandando-o
calar-se e trazerem-lhe as armas. A esta ordem ao Deus, de que se cale, segue,
da parte de Dioniso, o extraordinário verso composto da interjeição â! e de
silêncio (v. 810), que assinala a mudança na atitude de Dioniso relativa a
Penteu: calados os sinais numinosos, cessadas as tentativas de persuasão, o Deus
fere o rei cllm loucura e assim o condena ao riso de seus sùditos e então à
morte. - Dioniso induz um Penteu delirante a vestirse como as Bacas para ir ao
Citéron espioná-las, o que o exporia ao ridículo e à inorte.

Quinta cena (vv. 848-61).


Tendo-se retirado Penteu ao interior do palácio, Dioniso a sós primeiro se
dirige às Bacas, anunciando-lhes a iminência da punição impusta a Penteu;
depois, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, já que por ora se apresenta
sob o aspecto de mortal, dirige-se a Dioniso instando-o a executar a sentença de
Penteu, condenado ao riso dcls tebanos e à morte em mãos da própria mãe.
Esta execução visa a fazer o condenado (re-)conhecer o filho de Zeus Dioniso
manifesto com perfeição Deus - o mais cruel para os homens e o mais doce. Porque
Penteu recusou-se de modo irredutível a aceitar a mais doce face do Deus, quando
este o assediava multiplicando ao seu redor os sinais nLtininosos, prodígios e
milagres, agora se defrontará com a niais cruel face do Deus, sem poder evitar
contemplá-la.
Terceiro estásiino, (vv. 862-911)
também como o segundo tem uma estrutura triádica, com estrofe, antístrofe e
epodo; no entanto, desta vez intervém um refrão, que segue éi estrofe e a
antístrofe.

Na estrofe (vv. 862-76),


o coro manifesta, sob fornia interrogativa, sua esperança de libertar-se da
perseguição que Penteu lhe move, comparando-se à corça que consegue ludibriar
caçadores e pavorosa matilha, e assim rejubila longe dos homens, por entre
folhas da floresta frondosa.

O refrão (vv. 877-81)


coloca três questões, das quais a segunda ("Que privilégio/dos Deuses entre
mortais é mais belo?") constitui uma explicitação da primeira ("Que é
sapiência?"), e a terceira oferece um encaminhamento de resposta, condizente com
opiniões de certas elites políticas e intelectuais da época do imperialismo
ateniense ("É descer supremo o braçolacima dos cimos de inimigos?"). Para essas
elites, estribadas em sua "sapiência", "a justiça é auxiliar os amigos e
prejudicar os inimigos" (cf. Platão, Rep., 334b8), opinião esta que torna a
terceira questão uma boa resposta à prinieira. - Entretanto, o refrão se fecha
com um verso que nega esse encaminhamento da resposta e contraria o espírito
mesmo da arrogante e supostamente auto-suficiente "sapiência". "O que é belo é
amigo sempre". - Há nos grandes poetas do século V, como Eurípides, muitos
traços que prenunciam certos aspectos da filosofia socrático-platônica e entre
esses traços certamente está o sentido deste verso que fecha o refrão: o
insolúvel nexo da sabedoria, do beni, do belo e da amizade.
O fecho do refrão corrobora a esperança manifesta pelo coro na estrofe: afastado
Penteu, que se fiava no exercício do poder e no uso da violência, afastados os
caçadores e sua matilha, prevalece o que é belo, na forma do que é aniigo
sempre, a saber, a presença divina e nossa humana participação nela.

A antístrofe (vv. 882-96)


mostra a vacuidade da arrogante "sapiên~ cia", equipando-a à "ignorância" e à
"louca opinião", que desatendem o culto dos Deuses e dão-lhe as costas; pois o
poder divino se move lento, mas confiável, pune quem dele descuida e
diversamente agarra os que não o temem nem veneram. Assim, o saber e fazer
humanos constitutivos dessa humana sapiência não se podem sobrepor às soências
(nómoi) ancestrais, coetâneas do tempo (cf. v. 201) e partícipes dos Deuses.
Para a piedade do coro, a força (iskhjn) do Numinoso (tò daimónion) é a mesma
força das soências (tò t'en khrónoi makrôi nóminon aeí: "o que sói em largo
tempo /sempre"). No entanto, contrariamente à opinião do relativismo sofístico,
tão em voga no século V ateniense, a realidade destas soências não se restringe
apenas à das convenções, mas além de serem convenções estas soências têm ainda a
realidade do que é por seu próprio ser, do que nasceu por sua própria natureza
(ph)sei te pephykós).

O epodo (vv. 902-11)


fala da felicidade humana: sua essência consiste no vigente destino manifesto
como imperiosa presença do Nume (eudaíinofi) e confina com a precariedade, com a
vicissitude e com o infortùnio. A primeira imagem que esclarece a essência da
felicidade ilumina também a nova situação em que as Bacas se encon~ tram com a
eliminação de quem as perseguia: "tem bom Nume quem escapa / do temporal no mar
e vem ao porto". Tal é a essência da felicidade humana que se há de considerar
feliz "quem vive a cada dia" deste modo: "com bom Nume";- pois, enquanto
convivemos com a precariedade, com a vicissitude e com o infortùinio, é-nos
dado, a cada dia, vivermos este destino: o do presente Nurne e de sua imperiosa
presença.

O quarto episódio (vv. 912-76)


principia com Dioniso saindo do palácio e chamando para fora Penteu. Ao chamá-
lo, ressalta os traços que o marcam de modo ambíguo e excepcional: primeiro o
ardor por ver o que não deve (no duplo sentido de que verá a cerimônia secreta
das Bacas e, nesta cerimônia, a sua própria morte) e o cuidado pelos maiores
descuidos (todo o seu empenho em uma transgressão que lhe custaria a vida, ao
profanar os ritos báquicos); depois, o travesti "com paramentos de mulher, de
Louca, de Baca", com os quais Penteu surge "em forma de uma filha de Cadmo"; e
ainda a sua intenção designada, com terrível duplicidade, katáskopos, o que em
sentido ativo diz o espião que observa e em sentido passivo o alvo que se tem em
mira: "mirado espião". Respondendo ao chamado, Penteu declara que vê dois sóis e
duas Tebas, e que o forasteiro Baco lhe parece um touro à frente a guiá-lo.
Dioniso explica essa duplicação e transfiguração visionáriasf~ela presença do
Deus que antes não era benévolo, mas fez-se aliado e agora dá a ver o que deve
ser visto. A teofania tauromórfica mostra não só o aspecto selvagem e terrível
do Deus como fera (thér, v. 922), mas sobretudo o aspecto de guia, de condutor,
pois este é um dos significados míticos da figura bovina. Conta a lenda que uma
vaca conduziu Cadmo ao lugar destinado à fundação de Tebas.
Penteu pergi,mta sobre sua própria aparência e o diálogo incide sobre pormenores
da indumentária feminina com que se disfarça de Baca. Depois o diáìogo se volta
para fantasias titânicas de Penteu, que quer trazer nos ombros o monte Citéron
com as Bacas mesmas; Dioniso o acalma. Ressurgem as preocupações de Penteu com
as mulheres: vencê-las mediante disfarce; surpreendê-las quando se entregam a
amantes; as palavras de Dioniso em resposta a isso são ominosas: "ocultarás a
ocultação que deves ocultar"; "talvez as pegues se não te pegam antes." O
delírio de Penteu não o deixa aperceber-se dessas ressonâncias agourentas, mas
empolga-o de modo a fazê-lo perder o temor do ridículo e querer expor-se:

"Conduz-me através do país dos tebanos,


"que deles sou homem ùmico a ousar isso."
(vv. 961s.)

O travestimento e a espionagem das Bacas lhe parecem uma façanha gloriosa e


ùnica. Dioniso retonia e repete esse "ùnico" em outro sentido: o "ùnico" a
expiar com a própria vida a blasfêmia do país que negava a divindade do Deus. As
palavras de Dioniso correspondem ao ponto de vista divino e à divina verdade dos
acontecimentos; Penteu, imbuído de sei.is valores heróicos, ouve-as de um ponto
de vista heróico e assim as entende:

D. "Único por este país tu penas, único:


"aguardam-te combates que deviam aguardar.
"Segue-me, o guia sou eu, sou o salvador,
"de lá um outro te conduzirá.
P. "A mãe.
D. "Sinal serás para todos.
P. "Por isso vou.
D. "Trazido virás...
P. "Dizes-me delícias.
D. "...nas mãos da mãe.
P. "A mimos nie obrigas.
D. "Tais mimos sini.
P. "Méritos me tocam."
Os "combates" que aguardam Penteu, na fala de Dioniso, são o sacrifício cuja
vítima é o rei mesmo; mas Penteu entende tratar-se da ocasião em que seu valor
guerreiro e político o consagrará à glória.
Quando chegar a esses combates aos quais Dioniso o conduz, salvando assim Tebas
de ser destruída por ignorar a divindade do Deus e pela ira divina, um outro
guia de lá o conduzirà: Hermes Ps ykhopoinpós, condutor da aInia do morto aos
ínferos. É talvez em Hermes que Dioniso pensa ao falar em "uni outro" guia;
Penteu supõe que resga~ tará sua mãe da loucura báquica e assim se reconduzirá
com ela. no retorno a Tebas. Entende taiiibém que por isso será insigne, um
"sinal... para todos" (epísemofi... pãsin), já que o move a aspiração à glória
heróica ("por isso vou", v. 967); no entanto, será um "sinal... para todos" no
sentido da punição excmplar, cuja lembrança será instrução e correção de tod.os
a respeito da divindade do Deus.
"Trazido virás" (pheróiuenos héxeis) diz Dioniso; Penteu crê que após seu ato de
bravura será conduzido triunfalmente como os vencedores dos jogos pan-helênicos,
o que lhe parece "delícias" (habrótet'), e ainda com o beneplácito da mãe que
ele supostamente recuperaria com essa ida ao reduto das Loucas, e tal
beneplácito lhe parece "mimos" (trj/phás) como os que as mães fazem aos filhos.
Entretanto, nestes hemistlhia que por ansiedade e delírio Penteu completa,
Dioniso lhe diz que como sinal para a instruçào de todos a mãe de Penteu carre~
gará nas próprias mãos o crânio decapitado de seu. filho. - Na ironia terrível
dessa ambigùidade não percebida por Penteu, "tais mimos" (tr ypliás ge toiásd')
correspondem aos "méritos" de i?enteu? - O irrestrito sim a tão terrível justiça
divina aparentemente é dado por Penteu na sua £iltim¿i fala em cena, quando diz
que tal merecimento lhe cabe: "méritos me tocam" (axíon mèn háptomai, v. 970).
'A ambigùiidacie destas falas se deve à dupli.cidade de pontos de vista, o da
verdade divina e o da verdade heróica. Ainbas as verdades se distinguem no que
s~ refere à felicidade ou infelicidaci.e da atitude heróica e de suas
conseqüências: o herói esperava um feliz desenlace, o Deus lhe (pré-)dizia o
infeliz acontecimento que se verifica. Ambas as verdades coincidem, porém, no
que se refere ao caráter glorioso do acontecimento: o herói aspirava à glória e
por ela esperava, o Deus a reconhece e proclama com estas palavras:

"Terrível tu terrível vais a terrível dor


"de mocio que descobrirás glòria a tocar o céu."
(vv. 971s.)

A glória de ter vivido a proximidade e na proximidade dos Deuses imortais


perdura entre os homens mortais como um sinal cuja referên~ cia serve de
orientação para o pensamento e conduta dos mortais, e cujo marco lhes figura um
liniite inultrapassàvel e configurador da condiçào humana.

O quarto estásimo (vv. 977-1023),


- que, como o terceiro, compõe~ se triadicamente de Pstrofe-e-refrão,
antístrofe-e-refrão e epodo, prolonga e Lieseiivolve as anteriores palavras (vv.
973-6), com que Dioniso interpela Agave e as "consenieadas filhas de Cadmo",
anunciando-lhes que conduz I?enteu "ao grande combate", cujo vencedor será
Brômio.

Na estrofe (vv. 977-90),


o coro convoca as "àgeis cadelas de F£iria" a aguilhoar as filh.as de Cadinø
contra o "furioso espião" na montanha. Exercendo a arte divinatória peculiar ao
Báquico e ao Louco (cf. vv. 299ss.), as Bacas do coro antevêein o cenário e a
cena do monl_ento imediatamente anterior à morte por dilaceração de Penteu: a
mãe primeiro o vê no escoiiderijo e incita o tíaso contra esse que à espreita na
emboscada profana os ritos secretos. As filhas de Cadmo aguilhoadas pelas
"cadelas de Fùria" l'L)ssas k jnes) e o "furioso espião" (iyssòde katáskopon)
identiiicam-se.iia possessào pela Fúria ÍLjssa), a loucura raivosa e destrutiva
com que Dioniso lhes pune a recusa da divindade do Deus; as mulheres do coro
lídias são tambéni "Lllucas" (Main.ádes), mas a loucura destas é bênção do Deus
que assim as privilegia com dons salutares e beatíficos, porque o reconheceram e
cultuam. A mãe de Penteu, na ante,fisão profética do coro, iiiz que "ele não
nasceu do sangue'/ de mulheres, mas de uma leoa, / ou é rebento de Górgonai,
libias", assinalando-lhe uma natureza excepcional e nionstruosa, natLi reza afim
com seu destino e com sua negação da divindade do Deus.

O refrão (vv. 991-6)


invoca a Justiça divina, em seu caráter fenomênico, visível na decapitação do
rei cujos crimes contra o culto báquico se enun,ciam nos epítetos que lhe são
daLios ("sem Deus nem soência injusto") e que culminani na sua filiação
terrestre: "rebento de Equíoon', o guerreiro nascido da terra. Tal filiação e
natureza mesnia o contrapõem a Dioniso, filho de Zeus e da linhagem do Céu.

A antístrofe (vv. 997-1010)


num prinieiro momento reitera as acusações contra Penteu; num segundo nmoinento,
contrapõe aos crimes de que se acusa Penteu e que se resumem no sentido
pejorativo da "sapiência", - contrapõe a tal "sapiência" a alegria de buscar
outras grandezas: a vida santificada, a ;veneração ~ honra dos Deuses, a repulsa
a costumes contrários à justiça ("injustas soências").

O epodo (vv. 1017-23)


invoca o Deus mesmo, tanto em suas teofanias teriomórficas: "touro", "multifária
serpente", "flamejante leão", quanto em seu aspecto sereno de Baco "com
sorridente rosto", para que enrede o caçador de Bacas de modo a ser morto pelo
rebanho de Loucas.

Quinto episódio (vv. 1024-152).


Um servo, que ácompanhav;i Penteu quando este seguia Dioniso ao reduto das Bacas
no Citéron, inter pela o palácio real lamentando-lhe a sorte. As Bacas do coro,
lídias, o interrogam sobre as Bacas do Citéron, tebanas, e ao ser-lhe anunciada
a morte de Penteu, aclamam o rei Brômio como grande Deus. Esta aclamação causa
espécie ao servo, solidário com seus amos no infort£inio, mas as Bacas se
declarani sob o divino poder de Dioniso filho de Zeus e não sob o humano poder
de Tebas; isto infunde reverência ao servo que, solicitado, narra as
circunstâncias da morte de Penteu.
Chegando Penteu, o servo e o forasteiro sil~nciosamente a um vale do Citéron,
onde as Loucas se entretinham num plácido momento de repouso, Penteu diz ao
forasteiro que donde estava não podia avistar as torpezas das Loucas, torpezas
que avistaria sobre um alcantil ou um abeto.
Prodígio sobre-humano: o forasteiro pega no alto do céu um galho de abeto,
curva-o até o chão, põe Penteu a cavaleiro no ramo e sem movimentos bruscos
reconduz o ramo ele,fando Penteu. Quando este
não ainda se via sentado lá em cima e o forasteiro de sùbito não mais era
visto, reboou uma voz no céu (ao que parece, Dioniso) dizendo: "ó donzelas, /
conduzo queni de vós e de meus trabalhos / zombava com riso; eia, castigai-ol" e
ao mesmo ternpo um facho de luz expandia para o céu e para a terra.
O silêncio segue-se ao grito, silenciosas as folhagens do vale frondoso,
silenciosas as feras. As Bacas se erguem atentas à escuta. Novo clamor as
conclama e elas reconhecem clara a voz do Deus, saltam e
correm como a voar e vêem Penteu nó alto do abeto.
Primeiro atiram seixos, galhos e tirsos. Com altura superior à força dos
arremessos, Penteu séntado estava entregue ao impasse. Não havia como descer nem
como escapar.
Depois as Bacas cclmo um raio arrebentani ramos de carvalho, fazem alavancas e
téntam desenraizar o abeto. Incentivadas por Agave, mil mãos circundam e
arrancam do chão c1 abeto. Penteu precipita-se do alto, cai por terra com
gemidos e próximo à morte aprendia.
Agave, como sacerdotisa, principia o sacrifício e ataca-o lançandose sobre ele,
escumando sali,m, girando as pupilas, possessa de Baco.
Penteu tira a mitra da cabeleira, toca-lhe a face e diz-lhe: "Sou eu, mãe, sou o
teu filho, /. Penteu, pariste-me no palácio de Equíon, / tem~me piedade, ó mãe,
e pelos meus / desacertos, não massacres o teu filho!" - Note-se que Penteu ao
reconhecer seus "desacertos" (hamartíaisi, v. l121) recobra a lucidez e lùicido
reconhece a divindade do Deus.
Agave, possessa de Baco, não o oii,fia, nem se persuadia. A descri çào do
sparagiuós ("dilaceração"), cuja vítima é o rei, revela todo o desgraçoso horror
suscitado pela relação infeliz com o divino. Horror na violência da morte,
horror na alegria lùdica das Bacas que jogavam bola com a carne de Penteu,
horror na inconsciência da mãe que corre aiegre transportando a cabeça do filho
na ponta do tirso como a de pm leão.
Ao concluir a narração, o servo implicitamente remete à pergunta posta pelo coro
no refrão do terceiro estásimo ("Que é sapiência? Que privilégio / dos Deuses
entre mortais é mais belo?", vv. 877s. ), dandoihe a resposta que se depreende
destes acontecimentos: "A prudência e a veneração dos Deuses / é o maii belo e,
creio, o mais sábio / modo de ser dos mortais que assim são." (vv. lls0ss.).

O quinto estásimo (vv. l153-64)


é o canto triunfal em que se exalta a vitória de Baco como a vitória da Justiça
divina, e em que se exalta a sorte de Penteu como um destino paradigmático, cujo
infortúnio ilumina para os homens os limïtes existenciais que lhes são próprios
e assim lhes serve de instrução e orientação. Este canto triunfal por fim se
volta para as filhas de Cadmo, prenunciando a passagem da loucura e das ilusões
à lucidez e à realidade.

No êxodo (vv. l165-392),


podem-se distinguir cinco cenas.

Na primeira cena (vv. l165-215),


o coro anuncia a chegada de Agave, a mãe de Penteu, "com os olhos revirados",
sinal de possessão e de loucura. O diálogo lírico entre as Bacas lídias do coro
e Agave ainda possessa de Baco confronta lucidez e loucura, ilusão e realidade,
contrastando a lucidez de autênticas cultoras e a loucura com que o Deus coage
ímpios a cultuá-lo. Na orquestra, o coro e Agave dançam juntos e dialogam
reforçando tal contraste nas evoluções da estrofe e da antístrofe.

Na estrofe (vv. l168-83),


o relato do sacrifício cruento, para júbilo e jactância de Agave delirante, e
para horror e repulsa contidos das Bacas lídias.

Na antístrofe (vv. 1184-99),


o convite para o festim horrendo, a celebração de Báquio como "caçador sábio" e
o ambíguo louvor da "'visível autora desta caçada", dado qúe Agave declara
"venturosa caçada" (makáriofi thérani', v. l171) a sua desgraçada vítima e induz
o coro compadecido e horrorizado a declará-la "venturosa" (mákair'Agaúe, v.
l180), título distintivo dos Deuses. Durante estas evoluções, com a cabeça do
filho nas mãos, Agave primeiro se refere a ela como "cacho recém-cortado"
(héiika neótomon, v. l170), expressão em que se confundem o sentido de ramos de
heras e o de cabelos anelados; depois, como "filhote de leão agreste" (v: l174)
e ainda como "novilho" (v. l185), "esta fera" (vv. l190s.) e "caça leonina" (v.
1195), - correspondendo estas variações não só a um estado de desvairio mas
também a diversas manifestações epifânicas de Dioniso: hera, leão, touro. -
Nestas evoluções, o horror e a comiseração fazem o coro ecoar as palavras de
Agave e assim ressaltar a acerba ironia contida na ambigùiidade delas. Por fim,
o coro remete Agave aos seus concidadãos: "Mostra, ó mísera, aos concidadãos /
tua vitoriosa caça que trouxeste" (vv. 1200s.).
Agave convida os tebanos a admirarem "esta caça feroz" jactandose de tê-la
caçado seni "instrumentos de caça vãos", pergunta por seu pai e por seu filho,
para que eles se reúnam nessa admiração de sua façanha de caçadora. A ironia
então se configura no contraste entre a fala vangloriosa e o fato horrendo: ela
exibe coino gloriosa caça nas mãos a cabeça degolada do filho por quem pergunta.

Na segunda cena (vv. 1216-300),


Cadmo e os servos carregadores do corpo destroçado de Penteu contrapõem a
funesta realidade ao entusiasmo delirante de Agave. Ao deparar-se com ela, Cadmo
lamenta o luto que atinge o seu palácio, manifestando todavia conformação com a
justiça divina. Esse lamento não passa despercebido a Agave, que assim dá breve
mostra de recobramento da lucidez. Cadmo, aproveitando~se dessa nesga de
lucidez, pede-lhe que contemple o fulgor do céu, e interrogando-a sobre a
aparência do céu, sobre o estado de espírito dela, sobre as núpcias e o nome do
filho dela, prepara-a assim para esta questão fulminante: "tens nos braços esse
rosto: de quem?" Agave ainda se refugia nas sombras do delírio: "de leão, assim
diziam as caçadoras"; mas Cadmo insiste: "olha direito, custa pouco observar".
Ao recorLhecimento da cabeça de Penteu por Agave segue uma mudança na
interlocução: Agive passa a interrogar Cadmo a respeito das circunstâncias da
morte de Penteu. Afastada a possessão, recobrada a lucidez, Agave não tem mais
lembrança do que fez quando possessa, e informa-se junto a Cadmo até atingir
plena consciência: "Dioniso nos destruiu, já compreendo".

A terceira cena (vv. 1301-29)


consiste no pranto pela morte de Penteu. Cadmo, doravante sem o apoio de
descendentes viris, está
sem condição de manter-se no palácio real, só e desassistido deve suportar o
banimento e exílio. Relembra comovido as palavras carinhosas do neto que o
impunha ao respeito de todos. Aceita o castigo divino como justo e exemplar,
aceita a morte de Penteu como um destino paradigmático: "Se há quem pense estar
acima dos Numes / veja a morte deste e considere os Deuses".

Na quarta cena (vv. 1330-69),


Dioniso reaparece no tfieoiogeiofi, tal como no prólogo, falando do ponto de
vista divino e mostrando a verdade divina. Prediz a transformação de Cadmo e de
sua esposa Harmonia, filha de Ares, em serpentes; prediz que ambos guiarão
"incontável exército" bárbaro contra cidades gregas, sendo derrotado no ataque
ao santuário de Lóxias (Apolo); e, terceira predição, o dom de Ares que os
instalará na terra dos Venturosos (inakáron t'es aîan, v. 1339).'
A figura da serpente tem um sentido ctônico quç a vincula ao culto de heróis e à
vida post-mortem. Nos santuários oraculares, os heróis muitas vezes apareciam
aos que os consultavam sob a forma de serpente. É nessa condição sobre-humana de
heróis que Cadmo e Harmonia presidirão o exército bárbaro invasor de cidades
gregas. A instalação na terra dos Venturosos implica uma promessa de beatitude e
de imortalidade. - No entanto, anunciada num momento de luto e de infortúnio,
essa promessa parece soar como parte da punição: Cadmo lastima a sua sorte,
deplorando cada uma das três predições de Dioniso (vv. 1355ss.).

Na quinta cena (vv. 1368-92),


acrescentam-se à lamentação os adeuses. A família real abandona Tebas para o
exílio; Cadmo e sua esposa Harmonia têm destino diverso do das filhas, os
adeuses se dão à cidade, mas também se dão entre pais e filhas. A palavra grega
de despedida, a mesma de saudação, khaire, significa "alegra-te"; a
incongruência entre essa palavra khaire e a situação em que a dizem é assinalada
por Cadmo, quando lhe diz Agave: "adeus, pai" (literalmente: "alegra~te, pai") e
ele responde: "adeus, ó aflita / filha. Árduo adeus!" (literalmente: "alegra-te,
ó aflita filha. Dificilniente chegarias a este alegrar-te.").

As palavras finais do coro


encerram tanibém outras tragédias de Eurípides, a saber, Aiceste, Medéia,
Andrômaca e Heiena. Estas palavras servem de fecho tanto a Bacas quanto a estas
outras tragédias, por descreverem a natureza da relação dos Deuses com os homens
e os limites do conhecimento humano a respeito dos Deuses, - o que constitui a
matéria-prima de toda tragédia.

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