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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, S ão Paulo, Suplem ento 12: 51-55, 2011.

Asclépio, o deus-herói da cura: seu culto e seus templos

Scheila Rotondaro Koch *

K O C H , S.R. Asclépio, o deus-herói da cura: seu culto e seus templos. Revista do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 12: 51-55, 2011.

R e su m o : O presente artigo pretende discorrer sobre o surgim ento do mito


de A sclépio na G récia e sua expansão na antiguidade. Foi a partir desse mito
que se desenvolveram os santuários de cura e a m edicina grega, posteriorm ente
adotad a pelos rom anos (sob o epíteto de Esculápio).

Palavras-chave: A sclépio - San tu ário de A sclépio - Escola de m edicina.

O
m ito de A sclépio é ain da bastante eternam ente jovem a abandon asse na velhice, já
desconhecido da m aioria, m esm o grávida, a ninfa uniu-se a Isquis, que foi m orto
levando-se em conta que os efeitos de sua exis­ por A poio. C orôn is, por sua vez, foi m orta
tência nos alcançam até hoje. A m edicina oci­ a flechadas por A rtem is a pedido de A poio.
dental, tal qual a conhecem os, está diretam ente C o n tu d o , com o aconteceu a D ioniso, a criança,
ligada ao m ito desse deus-herói que n os remete através de um a cesariana um bilical, foi retirada
ao século X III a.C . on de A sclépio, de m aneira do ventre de C orôn is por A poio, e recebeu o
geral, perm anece afastado dos ciclos lendários. nom e de A sclépio. C on h ecid o entre os gregos
A o contrário de outros deuses com suas perso­ com o “o bom , o sim ples, o filan tropíssim o”
nalidades com plexas, A sclépio deve seu estatuto a origem do seu nom e, contudo, perm anece
e sua p opu larid ade a um a única função particu­ desconhecida.
larm ente im portante para os hom ens: a cura de A sclépio foi então entregue aos cuidados
doenças (todo o relato, salvo outra indicação, d o C en tau ro Q uíron, que o criou e educou no
baseia-se em B ran dão 1987: 90-93; Batista 2003: m onte Pélion, tido com o um local aprazível e
207-210; e Burkert 1992: 75-79 e 1993: 371417). regenerador, onde fez inúm eros progressos che­
Procurando seguir pela vertente m ais gando m esm o a ressuscitar os m ortos. Tem endo
conhecida do m ito, que tem variantes, A sclépio pela alteração da ordem d o m undo, a pedido
(ou Esculápio, em latim ) era filho do deus Apo- de Plutão, Zeus fulm inou-o com um raio; mas,
lo e de um a m ortal, a n in fa C orôn is, filha de com o Héracles, A sclépio foi divinizado. Em
Flégias, o rei dos Lápidas. Tem endo que o deus princípio eram-lhe atribuídos dois filhos, Podalí-
rio e M acaón, m édicos com o A sclépio, m en­
cionados na llíada. D e sua u nião com Epíone,
nasceram pelo m enos quatro filhas: A ceso (“a
(*) M useu de A rqueologia e Etnologia da Universidade de que cuida d e”), laso (“a cu ra”), Panacéia (“a que
S ão Paulo; pesquisadora vinculada ao Labeca - Laboratório
socorre a to d o s”) e H igia (“a saú d e”).
de estudos sobre a cidade antiga - M A E /U S P . M estranda
em A rqueologia C lássica. Bolsista do C N P q. A origem do m ito do deus-herói A sclépio
scheilarkoch@ yahoo.com .br é m uito antiga, originária de Trica, na Tessália,

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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 12: 51-55, 2011.

bem anterior ao século X III a .C ., p ortan to pro­ que vinha tendo sucesso desde o século VIII
vavelm ente anterior a A p o lo (que n ão é atestado a.C .
em época m icênica). E m u m a das versões do A instabilidade social se m ostrava um
m ito, A sclépio fixou-se em E p idauro on de Apo- fator insistente e generalizado; neste quadro, o
lo (que tam bém era tido com o deus da cura) recurso ao pan teão grego e às suas divindades
im perava com seu culto, desenvolvendo ali um a tradicionais dim in uía constantem ente. O inte­
verdadeira escola de m edicina, cujos m étodos resse, p or outro lado, crescia particularm ente
eram predom inan tem ente m ágicos, m as cujo pelas filosofias e religiões de retiro, que propu­
desenvolvim ento (em alguns ângulos, espan toso nham um a espécie de salvação individual e paz
para a época) preparou o cam inho para um a de espírito.
m edicina bem m ais científica nas m ãos dos cha­ A sclépio era o p ortad or da saúde e da sal­
m ados “A sclepíades” . descendentes de A sclépio, vação pessoais nesse m u n d o e sua veneração em
cuja figura m ais célebre foi o grande H ipócrates, toda a G récia estava diretam ente ligada a A poio.
da escola de C ós. A s insígnias usuais de A sclépio eram a serpente
C o m o herói que foi deificado, A sclépio ao redor de u m bastão, a pinha, a coroa de lou­
participa da natureza h um an a e da natureza reiro, a cabra, o cão e o galo. A im portância do
divina, sim bolizando a unidade indissolúvel que espaço dos san tuários de A sclépio não se restrin­
existe entre am bas, assim com o o cam inho que gia unicam ente à questão m édica, m as abrangia
conduz de um a para outra. outros aspectos im portantes da sociedade a
Tanto em época histórica qu anto anterior­ partir desse p eríodo de m etam orfose tam bém
m ente a ela, a natureza do deus se manteve am ­ no âm bito religioso, político, social e cultural.
bivalente entre herói e deus: assim , as oferendas A o longo de sua expansão, o culto a
eram feitas a ele com o deus e os enauguísmata A sclépio, em m uitos dos san tuários nascentes,
(sacrifícios), ofertados a ele com o herói. tom ou o lugar do culto a um deus ou um herói
Profundam ente ligado ao do m ín io ctônico, já existente sem , contu do, controlar totalm ente
A sclépio transcende-o, sen d o tido com o ser du­ os locais de peregrinação. E m outros santuários,
plo ctônico-olím pico. S en d o filho de um deus com partilhou espaço com outras divindades,
(A poio) e de u m a m ortal, ele teve filhos e m or­ com o é o caso de A polo. Em C orin to, por
reu, sendo atribuída a ele a condição de herói. exem plo, o culto a A sclépio foi articulado com
O culto aos heróis é m uito p róxim o d o culto um culto de A poio, m ais antigo.
aos m ortos (ctônico), que é o pólo op osto da N o san tuário de A sclépio, as oferendas
veneração aos deuses (culto olím pico). A pesar feitas a ele em sua condição de deidade tinham
de seu túm ulo n ão ser venerado, com o no caso seu lugar n o tem plo, e os enauguísmata, ou sacri­
d o culto ctônico aos heróis, Píndaro o den om i­ fícios, eram feitos em um culto secreto ao herói
na herós. O culto aos m ortos, associado ao culto A sclépio, dentro do thólos (edifício abobadado,
de m istérios, era de origem neolítica (anterior rotunda), que continha um labirinto em que
a 3 0 0 0 a.C .), ligan do A sclépio à fertilidade da provavelm ente era guardada a serpente. Este
terra. réptil, que era um anim al ctônico, tinha entre
O culto ao deus-herói A sclépio atingiu seus principais atributos, para os antigos, o dom
u m a en orm e popu larid ade no m u n d o grego, da adivinhação, sim bolizando o renascim ento e
principalm ente a partir do século V a.C ., com a renovação ininterrupta d a vida.
a G u erra d o Peloponeso, qu an d o a sociedade N a constituição espacial d o San tu ário de
grega veio a sofrer m udan ças dram áticas, que Epidauro, o tem plo para o deus e o thólos para o
alteraram definitivam ente seu antigo estilo de herói ficavam lado a lado. Tam bém em Ep idau ­
vida e conceitos. A instalação de epidem ias, fru­ ro, na entrada do recinto sagrado d o antigo hié-
to das constan tes m igrações d o s m oradores das ron, havia um arco sobre du as fileiras de colunas
áreas rurais para as cidades, fugin do d o ataque de m árm ore em que estava gravada a síntese das
inim igo (com o no caso de A tenas), anunciavam grandes curas da m edicina de A sclépio: “ Puro
o declínio da pólis grega, m odelo organizacional deve ser aquele que entra no Templo perfumado. E a

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pureza significa ter pensamentos sadios” (B randão Epidauro era um dos m ais im portantes
1987: 91). Estava aí um a das bases sobre as quais centros de cura entre o século V e IV a.C .,
se m inistravam os tratam entos: a nooterapia ocup an d o a posição de grande centro espiritual
(cura da mente); a metanóia (transform ação dos e cultural. Tendo-se em vista que a causa das
sentim entos). M uitos autores concluem que doenças era m ental, o m étodo terapêutico era
os Sacerdotes de A sclépio acreditavam que as espiritual, daí a im portância da nooterapia no
harmatíai (as faltas, os erros, o não com edim ento) tratam ento que provocava a higienização e refor­
provocassem no ser hum ano problem as que leva­ ma do ser hum an o com o um todo. H avia assim
vam a idéias fixas e sua instalação e perm anência um a busca incessante através do “conhece-te a
na mente gerasse as doenças. ti m esm o” , de sorte que o hom em despertasse
A im portância da atividade m édica era para a realidade de sua essência.
largam ente reconhecida pelos helenos, princi­ Levando-se em conta as inscrições encontra­
palm ente levando-se em conta o fato de estarem das em esteias no M useu de Epidauro, datadas
constantem ente sujeitos à guerra e seus efeitos. em fins do século IV a.C ., as curas realizadas
Esses “ m édicos” , os A sclepíades, vinham de n ão eram atribuídas a m edicam entos, m as sim a
diferentes escolas. D entre as m ais conhecidas, metanóia, ao juízo e a intervenção divina. A ssim
podem os citar a Escola de C irene (no norte os Sacerdotes de A sclépio, m uito m ais pensa­
da África), a de Pérgam o, a de A tenas, a de dores profun dos do que m édicos, prom oviam
Epidauro, a de C n id o s e o culto m ais ortodoxo um grande progresso relacionado à psicossom á-
a A sclépio que se dava em C ó s, terra de H ipó­ tica e à nooterapia, partindo, ao que parece, do
crates, que mereceu um papel de destaque na princípio de que a harm onia e a ordem divina
m edicina ocidental nascente a partir do século exercem influência decisiva sobre a saúde física
V a.C . Tam bém havia Escolas de M edicina na e psíquica do ser hum ano. R ecom endavam aos
M agna Grécia, com o a Escola de V élia, vincu­ doentes que “pensassem san tam en te” , estando,
lada ao San tu ário de C ó s (G reco 2002: 19). por isso, convencidos de que, q u an d o a nossa
D iferentem ente da Escola de Epidauro, a Escola consciência se m antém em estado de pureza
de C ó s seguiu por outras vertentes com relação e harm onia, o físico torna-se, necessariam en­
à cura, que se constituíram sob a orientação de te, são e equilibrado. E o que pode ser visto
H ipócrates no cham ado m étodo indutivo, ou tam bém em Platão, no Banquete (186 d.), pelas
observação clínica, em inentem ente em pírico. palavras do médico-filósofo Erixím aco.
Esta m etodologia baseava-se na observação das A im portância dos sonhos dos pacientes,
inform ações e queixas trazidas pelos enferm os para os Sacerdotes, possivelm ente partia daí: a
associadas a fatores externos com o clima e cham ada Enkoímesis, ação de deitar-se, de dor­
possíveis antecedentes. Têm-se o que hoje se mir, no Ábaton (Santuário). O deus vinha visitar
denom ina anamnese ou exam e clínico. os pacientes e as descrições dos sonh os pelos en­
Entre os autores, é praticam ente unânim e ferm os eram interpretadas pelos Sacerdotes que,
a ideia de que o Corpus Hippocraticum, form ado em seguida, passavam a receita. Era o que se
por cerca de sessenta tratados, tenha sido escrito pode cham ar de m ântica por incubação. C o m a
por várias m ãos baseadas nas orientações do experiência adquirida e o decorrer do tem po, as
mestre de C ó s. O s tratados abordam , de m anei­ curas por m eio de ervas e as cirurgias trouxeram
ra geral, em briologia, fisiología, patologia gerai, suas contribuições, porém a cura integral era
patologia de condições particulares, ginecologia, fruto da metanóia.
diagnóstico, prognóstico, tratam ento, preven­ O s santuários de A sclépio, com destaque
ção e aspectos éticos. H ipócrates definia com o para Epidauro, eram tam bém os centros cul­
p on to de partida da arte m édica, em sua form a turais e de lazer. N o san tuário dessa divindade
m ais prim itiva, o socorro ao organism o hum a­ em Epidauro havia um O déon , um pequ en o
no, vítim a de um a dieta tosca, on de a m edicina teatro fechado onde se ouviam poetas e m úsica;
teria um papel fun dam en tal na descoberta de um Estádio para as com petições esportivas, que
um sistem a saudável de alim entação. se realizavam de quatro em quatro anos; um

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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 12: 51-55, 2011.

G in ásio para exercícios físicos; um Teatro, o mais que se deve pedir é que haja um a m ente sã num
bem conservado d o m u n d o grego, construído no co rpo sã o ”) (Sat. X , 356).
século IV a.C . pelo grande arquiteto Policleto, o O escritor H enry M iller, em seu livro The
Jovem ; u m a Biblioteca e num erosas obras de arte. Colossus of Maroussi, apresenta suas conclusões
H avia, em gran des san tuários com o o de com relação à p roposta nooterdpica exercida
E p id au ro, u m a metúsia, u m a communio, um pelos A sclepíades de E pidauro: “A m eu ver, não
consortium, que representavam o elo entre as há m istérios nas curas que se realizaram aqui,
cerim ôn ias culturais e cultuais, as doxologias neste grande C en tro Terapêutico da antigüida­
(h in os laud atórios) com que os Sacerdotes refor­ de. A qu i o m édico era o prim eiro a ser curado,
çavam o sentim ento religioso dos peregrinos e a o que constituía o grande progresso de um a arte
h arm on ia da m úsica, d a poesia e da dança por que n ão é m édica, m as religiosa” (M iller 1941
seu valor terapêutico e tranqüilizante. A tragé­ [s/pl apud B ran dão 1987: 93).
dia, a com édia, a p oesia épica e lírica contribuí­ N o intuito de com preender m elhor a im­
am para aum en tar a espiritualidade e purificar a p ortância dessa divindade no m undo grego e as
alm a de certas paixões desastrosas. particularidades de seu culto e dos procedim en­
A ginástica e as dispu tas atléticas disciplina­ tos de cura em regiões diferentes, n ossa pesquisa
vam os m ovim entos e o ritm o interior do corpo, de m estrado concentra-se no estudo dos aspec­
m u ltiplican do as p ossibilidades físicas e psíqui­ tos físicos do espaço dedicado a A sclépio nas
cas d o ser hu m an o. A contem plação artística diferentes regiões, os santuários, os seus usos, a
das obras de arte que ornam entavam o ábatos distribuição das funções da cura em seu interior
propiciava a elevação e a espiritualização do pen­ e as vias de circulação dos peregrinos. E verem os
sam ento. O conhecido verso d o poeta latino do com o, de O cidente a O riente do M u n d o grego,
século I-II d .C ., D écim o Jú n io Juvenal, parece A sclépio recebeu tratam entos diferenciados
ser um a extensão dessa linha de pensam ento: m antendo sem pre, entretanto, algum as caracte­
Orandum estut sit mens sana in corpore sano (“O rísticas com uns.

K O C H , S.R. Asclepius, the god-hero o f healing: his cult and temples. Revista do Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplem ento 12: 51-55, 2011.

A b stract: T h is article aim s to discuss the em ergence o f the myth o f A scle­


pius in G reece and its expansion in Antiquity. It was this myth that developed
the G reek H ealing Sanctuaries and G reek m edicine, later adopted by the
R om an s under the epithet o f A esculapius.

Keywords: Asclepius - Sanctuary o f Asclepius - Healing school.

R eferên cias bib liográficas

BATISTA, R.S. BR A N D Ã O , J.S.


2003 Deuses e Homens: mito, filosofia e medicina na 1987 Mitologia Grega. Petrópolis : Vozes,
Grécia antiga. São Paulo: Landy Editora. volum e II.

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BU RKERT, W. G R E C C O , G.
1992 The Orientalizing Revolution. Near Eastern 2002 Velia. La Visita alla Città. N aus Editora:
Influence in Greek Culture in Early Archaic Ministero per i Beni e Le Attività C ul­
Age. Cam bridge: Harvard University Press. turali.
1993 Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. M ILLER, H.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian. 1941 The Colossus of Maroussi.

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