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Temas de Religião I

2022.2

“Teofania: a manifestação do divino


na Grécia antiga a partir da obra de
Walter F. Otto”

Apresentação e Introdução:

Eusebéia

Aulas 1, 2 e 3
O Curso

“Tudo está cheio de deuses” Tales de Mileto

“Ali de pé repousa o edifício sobre o chão de rocha. Este


repousar da obra faz ressair do rochedo o obscuro do seu
suporte maciço e, todavia, não forçado a nada. Ali de pé, a obra
arquitetônica resiste à tempestade que se abate com toda
violência, sendo ela quem mostra a própria tempestade na sua
força. O brilho e a luz da sua pedra, que sobressaem graças
apenas a mercê do Sol, são o que põem em evidência a claridade
do dia, a imensidade do céu, a treva da noite. A
imperturbabilidade da obra contrasta com a ondulação das
ondas do mar e faz aparecer, a partir da quietude que é a sua,
como ele está bravo. A árvore, a erva, a águia, o touro, a
serpente e a cigarra adquirem uma saliência da sua forma, e
desse modo aparecem como o que são. Os gregos cedo
chamaram esse brotar e surgir em si e em todas as coisas como
Physis.

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução Maria


da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, 1990.
A quádrupla presença

- Os problemas que envolvem o estudo das espiritualidades/religiões gregas;


- “Amigo, os sábios dizem que o Céu e a Terra, os Deuses e os homens estão unidos pela comunidade (koinonia) e amizade
(philia), pela temperança (sophrosyne) e justiça (dike); e é por isso que eles chamam tudo aquilo que existe de
‘bela-ordem’ (kosmos), e não desordem ou intemperança”. Platão. Górgias, 508 a.
- Eusebéia: a religiosidade grega
- Politeísmo: o que é uma Deusa/um Deus? O nome, a imagem, o mito e o rito. A força, os domínio: diakosmeses
> Zeus e a alocação das moirai;
- A experiência teofânica: o habitar na proximidade delas: - A abertura e a convergência.
- Meditando poeticamente sobre o Sagrado: a canção mito-poética como horizonte alternativo à tecno-ciência, ao
abandono dos deuses, ao esquecimento: as Musas;
- Evocatio: anamnese, genealogia; Invocatio: chamando, nomeando as potências > Revelatio: O Afloramento > a
vascularização do sagrado: pan, hólos, kosmos, phúsis.
- A naturalização do divino e a divinização da Natura: fitomorfismo, teriomorfismo, antropomorfismo, elementos
abióticos: ar, água, fogo e terra; a interioridade humana.
- Hen kai panta: politeísmo politeista, a pluralidade de toda Potência; Theói e ananké, adrastéia, túche > os
fados.
Eusebeia: “Piedade” e Ritual: algumas considerações

O que é Eusebéia? As traduções problemáticas: “piedade” (pieguice ou misericórdia); “religião”, “fé/crença”,


“espiritualidade”;
- Eusebéia como ortopraxia, um “saber fazer” das práticas relativas ao sagrado (“o que agrada aos Deuses”,
“conhecimento acerca do sacrifício e da oração”. Platão, Eutífron 14c); as práticas costumeiras, demóticas ou
políades; as biói órficas, dionisíacas ou filosóficas;
- Caráter sobrenatural (adoração) e natural (celebração das “potências” divinas, organização social = instituição
coletiva);
- O rito ou ritual como sistema comunicativo não-verbal para organizar o real/ domesticar (dar previsibilidade ao
mundo) e superar as ansiedades, isto é, controlar as infinitas incertezas da realidade;
- O ritual como: a) marca de ação coletiva que forja identidade e solidariedade em um grupo (x “o outro”,
aqueles que não partilham ou participam do ritual);
- b) demarca uma “comunidade”: local (território) e espiritual (cultura); delimita “o espaco e o tempo sagrado” (x
espaço e tempo profano);
- c) ações “piedosas”: o sacrifício, rituais de purificação, libação, oferenda, votos, oração, meditação;
- d) manipulação da realidade (pedido) = magia;
- e) rito e mito como autorrevelação das potências infinitas (“deidades”), mediadas pelas Musas (Mousiké).
Rito e rituais

- O que é o rito?
- O mito transpõe o rito ou o rito fundamenta o mito? O que é mais duradouro, o rito ou o mito?
- Finalidades:
- Caráter sobrenatural (adoração) e natural (celebração dos “poderes”, organização social = instituição coletiva);
- O rito ou ritual como sistema comunicativo não-verbal para organizar o real/ domesticar (dar previsibilidade ao
mundo) e superar as ansiedades, isto é, controlar as infinitas incertezas da realidade;
- O ritual como:
- a) marca de ação coletiva que forja identidade e solidariedade em um grupo (x “o outro”, aqueles que não
partilham ou participam do ritual);
- b) demarca uma “comunidade”: local (território) e espiritual (cultura); delimita “o espaco e o tempo sagrado” (x
espaço e tempo profano);
- c) ações sacrificais: o sacrifício, rituais de purificação, libação, oferenda, votos, oração, meditação;
- d) manipulação da realidade (pedido) = magia;
- O que é o sacrifício? “Presentear os deuses”, Platão, Eutifron, 14c SACRIFÍCIO
- Teorias: “do ut des”: barganha, submissão (relação de poder),
domesticação do selvagem, civilização; demarcação de comunidade,
alimentação festiva divina e humana; a perda da experiência viva;
- Na Grécia: separação das esferas humanas e divinas (Hesíodo);
- O sacrifício na Grécia arcaica: o mito de Prometheus;
- O sacrifício animal: limitar a violência, transferência, expiar culpa;
- Ritual paleolítico > caçador, coletor x sedentarismo (agricultura).
- O sacrifício “puro” > dissidentes (órficos, pitagóricos).
Libação,Purificação,Oferenda, Votos

Epicteto, Enchiridion, 31: “Eusebeia: opinião correta acerca dos deuses, seres que existem
e que governam o universo de forma sábia e justa, e aceitar tudo que ocorre, e seguir
diligentemente os seus desígnios, como algo planejado pela mais perfeita inteligência ...
fazer libações, sacrifícios e primícias de acordo com suas posses e sempre de modo diligente”.
Libação: as primícias às Deusas e aos Deuses:
Spendein – vinho, “taça”; choe – para os mortos
> ritual, simpósio: rigidez (fórmulas fixas) e liberdade;
Oferenda / Votos (Euche = oração) : primícias da produção,
situações-limite: doença, viagem, guerra > oração em voz
alta seguida do voto;
Purificação (katharsis, de kathairein, “fumigar” : eliminar miasmas > morte, homicídio,
loucura, doença e culpa > fogo, água, ar, cebola-do-mar
o sacrifício

- A realização do sacrifício: ocasião festiva: procissão, aceitação, desmembramento, cozimento, queima das
gorduras, ossos e carnes;
τί θεός; “O que é um deus?”
Píndaro, fr. 140d Snell/Maehler

αὐτοϕυής, ἀδίδακτος, ἀμήτωϱ, ἀστυϕέλικτος, οὔνομα μὴ


χωϱῶν, πολυώνυμος, ἐν πυϱὶ ναίων, τοῦτο θεός· μικϱὰ
δὲ θεοῦ μέϱις ἄγγελοι ἡμεῖς.

“Surgida de si, não-ensinadx, sem mãe, inabalável, sem


nome, de muitos nomes, morando no fogo – eis o
divino.Mas nós somos somente uma pequena porção do
divino, seus mensgeiros”.

Oráculo de Apollo em Klaros


A. Busine, Paroles d’Apollon: Pratiques et traditions oraculaires dans
l’Antiquité tardive (IIe–VIe siècles), (Leiden: Brill, 2005), pp. 35–40,
447 no. 15, cf. 456 no. 85.
O que é uma Deusa / um Deus?

- os deuses e o mundo > Teofania (Theós + phanos [phainen]) – “o surgir do divino, a erupção do sagrado”;
- Qual é a relação entre os deuses e o cosmos?
- dar inteligibilidade ao real , i.e., os deuses dão sentido à realidade [caráter cognitivo], organizando-a [caráter ontológico]: diakosmésis;
- * Na Grécia, os deuses NÃO CRIAM O MUNDO (Kosmos), mas organizam a realidade através de diferentes “ordens de eventos”: emanação,
transformação, reprodução, luta, casamento;
- 2) mas o que é um/a Deus/a (“o Divino”) no ambiente espiritual politeísta grego? Politeísmo e Catenoteísmo; Monismo, Monoteísmo e
Panteismo;
- força, potência inconcebível que se manifesta de inúmeras formas: a totalidade da existência é partilhada e vascularizada pelo Divino;
- Físicas: vegetal (fitomorfismo), animal (teriomorfismo), humano (antropomorfismo) ou em seus “domínios” elementais ou abióticos (mar, ar,
terra, sol, raio);
- Culturais: lei, casamento, poesia, música, caça, guerra, técnicas, sacralidade do estrangeiro, o altar, o fogo sagrado doméstico;
- Anímicos-fisiológicos: ex. Afrodite Urânia/Pandêmia - amor, união, sexo e Ares - violência, agressividade, desunião: filha > Harmonia;
- Características:
- Aeviternidade (≠ eternidade e temporalidade) > nascem, mas não morrem (athanatói), com algumas pequenas excessões; a distância do
evento “morte”, mesmo quando o divino se afeiçoa a algum ser humano;
- Não esperam nem ordenam adoração, fé ou devoção, mas se ressentem da “asebéia” (“impiedade/irreverência”) ≠ “eusebéia”, i.e., o não
reconhecimento por parte dos humanos dos “lotes” (moira) dos seres divinos; o problema da “proximidade” com a humanidade
- Amoralidade completa: algumas de suas ações são inconcebíveis e inexplicáveis > Os deuses e a necessidade, o destino: a onsiciência.
Chaves para a leitura do mito

- O que é o mito (mithós) ? Narrativa de origem: Teogonia, Cosmogonia, Politogonia, Antropogonia > dar sentido
e inteligibilidade orgânica ao real ou a eventos relevantes para uma certa comunidade > O divino se
manifestando como Verbo;
- O que o mito quer nos dizer? O que ele nos conta? O que ele significa?
- 1) A linguagem poética (símile, etimologia, metáfora, polissenmia, analogia etc.) x Linguagem logoteórica –
tecno-ciência: racional, argumentativa;
- 2) A performance: poesia cantada ou declamada x o debate pautado pelas técnicas da argumentação
(identidade [A=A], não-contradição [A ≠ B] e terceiro excluído [A é X ou Y]. A importância do discurso mítico
como alternativa poético-meditativa ao discurso hegemônico da técnica;
- 3) A transmissão: oral (aedos, vates, profetas, sacerdotes – autoral, acervo comum ou autor desconhecido) ou
escrita (autoral ou atributiva);
- 4) O sentido – a questão hermenêutica: como interpretar o mito? a) literal, b) alegórica, c) naturalista, d)
metafísica, e) moral, f) soteriológica, g) filológica, h) histórica, i) psicológica;
- Os Mitos órficos: a convergência entre poesia, religião e filosofia > Orfeu e a poesia a ele atribuída (autoria e
atribuição): Píndaro, Eurípedes (no Hipólito), Platão (na República), Aristóteles, Neo-platônicos et al.:
referências esparsas a poemas teogônicos (Papiro de Derveni, Eudemo, Jerônimo e Helânico) e de vários
outros tipos: oráculos, magia, ritos, práticas etc.;
- O orfismo é apresentado, nos textos que lhes são tradicionalmente atribuídos, por um conjunto relativamente
coerente de mitos, ritos e práticas;
Tempo sagrado: procissão (pompe), canto e dança(mousike) e competição (agon)
Oração[Euche,Ara]:(invocatio[v.1-9],pars epica[v.2-16], precatio[v.17-9)

Hélios brilhante, Calíope, Musa nascida de Zeus

Canta-me, a quem Eurifáessa de olhos bovinos gerou


Para o rebento de Gaia e de Urano coberto de estrelas,
Sim, pois Hipérion glorioso casou-se com sua irmã,
Com Eurifáessa, que lhe gerou três crianças formosas:
Éos, a de braços rosados, Selene de belos cabelos,
E Hélios que nunca se cansa, semelho na forma aos eternos.
Ele fulgura pros homens e para os eternos divinos
Sobre seu carro, com olhos pungentes mirando através
Do elmo dourado e emitindo a partir de si próprio brilhantes
Raios que a todos deslumbram. Seus cachos fulgentes emoldam
Graciosamente os dois lados de um rosto que brilha de muito
Longe. Cintila por cima do corpo uma veste bonita,
Bem trabalhada, que voa no vento. Corcéis o carregam.
Logo detém seus cavalos e o carro de jugo dourado
E sobre o ponto mais alto do céu ele tem seu descanso,
Para em seguida descer pro Oceano de modo espantoso.
Salve, senhor! De bom grado concede o que alegra esta vida!

Tendo iniciado por ti, louvarei ora os semi-divinos,


Cujas façanhas as deusas mostraram pros homens mortais. Hino 31
Local Sagrado: Templo / Santuário/ Altar / Estátua

o Templo(Neos)
Altar – Bomos
Estátua / Ágalma: a “presença”.
Religião e Filosofia

- Os deuses dos gregos? Rito e mito numa ortopraxia – as tradições iniciáticas (Orfismo, Elêusis, Dioniso) e o impacto no
pensamento antigo;
- “Concepções pré-filosóficas” e filosofia: as “sabedorias apolíneas e dionisíacas”;
- Mania, as Musas e a filosofia: o Fedro;
- filosofia como projeto anamnético, terapêutico de busca da experiência de unicidade?
- Teologia: amphi théon legein. Xenófanes, DK 21 B 34;
- O escopo do projeto de reflexão:
- “Amigo, os sábios dizem que o Céu e a Terra, os Deuses e os homens estão unidos pela comunidade (koinonia) e amizade
(philia), pela temperança (sophrosyne) e justiça (dike); e é por isso que eles chamam tudo aquilo que existe de
‘bela-ordem’ (kosmos), e não desordem ou intemperança”. Platão. Górgias, 508 a.
- “A essência dos deuses, tal como apareceu para os gregos, é precisamente este aparecimento, entendido como um olhar a
tal ponto compenetrado no ordinário que, atravessando-o e perpassando-o, é o próprio extraordinário o que se expõe na
dimensão do ordinário.” Martin Heidegger, Heráclito, pp. 23-4.
• “o próprio deus deve, no modo em que é deus, corresponder ao ser, isto é, à essência da physis”. Heidegger, Heráclito. P. 187.

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