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Tradições Religiosas

Aula 4: Da religião tribal ao politeísmo greco-romano

Apresentação
A partir desta aula, você estudará as grandes tradições religiosas. Nelas, você encontrará a base mitológica e ritualística
que explicam o ordenamento social e o comportamento humano no universo social africano, oriental e ocidental.

Abordaremos a matriz religiosa africana e o politeísmo greco-romano. Você perceberá que as duas matrizes religiosas,
apesar de parecerem totalmente diferentes, possuem vários pontos em comum e, em alguns momentos, como ressaltou
Homero, o lendário historiador grego, tocam-se e relacionam-se. 

No tribalismo africano e nas cidades-estados gregas e romanas, o princípio de pertencimento a uma comunidade ou a um
clã foi o fator aglutinador que deu origem à vida social. Esclareceremos como isso foi possível e quais as principais
tradições religiosas que nasceram nessas comunidades.

Bons estudos!

Objetivo
Analisar a religião tribal, suas diferenças e diversidade;

Discutir como a origem étnica e tribal forma a base histórica e constrói o ethos das comunidades africanas;

Descrever as religiões Grega e Romana e o politeísmo como base mitológica.

Primeiras palavras
Vamos começar esta aula com uma pergunta:

Você acha que a religião praticada pelos africanos é primitiva?

Se sua resposta foi afirmativa você está julgando a religião africana de forma etnocêntrica. Você se lembrou da forma como os
africanos expressam sua religiosidade, comparou com a ocidental e concluiu que os africanos são menos cultos. O nome disso
é etnocentrismo e é uma forma de preconceito.
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Essa forma de analisar a experiência religiosa e a


religiosidade africana é comum entre os ocidentais, que
partem da premissa de que a forma ocidental de
organização social é melhor e, por isso, julgam as outras
formas de organização social de modo pejorativo.

Homero, o historiador grego, autor de Ilíada e Odisseia, ao


escrever sobre os povos africanos que estavam sendo
escravizados pelos gregos, afirma que as artes, ciências e a
própria fala grega foi ensinada pelos africanos.


Bateristas togoleses | Fonte: Anton_Ivanov / Shutterstock

A África e a religião africana estavam ligadas à Grécia e às suas cidades-estados. Duas informações demonstram essa ligação:

De acordo com a mitologia grega, O mito de Perseu e Andrômeda —


todos os anos, os deuses viajavam No reino da Etiópia, Perseu encontra
para as terras da Etiópia para Andrômeda acorrentada e pronta
realizar a festa dos 12 dias. para ser sacrificada para salvar a
Poseidon é frequentemente cidade. Ao compreender a situação,
relacionado a essa região, e uma de Perseu salva Andrômeda e casa-se
suas filhas, Bentesicime, a deusa com ela.
das ondas profundas, morava na
Etiópia.
As duas informações constam nos livros sobre
mitologia grega, mas a relação entre a Grécia
Antiga e África é relatada também em outras
fontes. A África possui uma cultura própria 1 ,
que é totalmente diferente da ocidental e da
oriental.

Nesta aula, estudaremos as tradições religiosas


africanas e greco-romanas, por um prisma que
permita colocar a cosmogonia dessas duas
tradições em um mesmo patamar: o princípio
da comunidade.


Quadro Perseus e Andromeda pinto por Giorgio Vasari | Fonte: Wikiart


As religiões tribais africanas: o culto aos antepassados como
meio de ligação com o sobrenatural
No Ocidente cristão, as formas de expressões religiosas dos africanos são vistas com preconceito e sofrem discriminação
2
. No entanto, as religiões africanas são ricas em simbolismos e possuem significados que norteiam seus praticantes, pois
refere-se à ancestralidade.

Veja a seguir a estrutura das religiões africanas:


Clique nos botões para ver as informações.

Religiões africanas 

Dentro do clã, cada ancestral morto pode se tornar um objeto de culto e, se seus ensinamentos forem incorporados pela
comunidade, ele passa a ser visto como sagrado, deixa o nível humano e passa a viver em um plano diferente. Eles podem
até se transformar em divindades. Não como o santo católico, mas como uma divindade ancestral que é responsável pelo
bem-estar do indivíduo e da comunidade. 

Mesmo existindo divindades ancestrais, as religiões africanas possuem uma cosmologia como todas as outras. Há uma
divindade maior que deu ordem ao universo. O nome dessa divindade se altera de acordo com o clã. Em alguns ele é
chamado de Olorum, em outros de Onyankopon, Nzambi ou Mawu.  

Também a origem do mundo e do homem varia de acordo com o clã.

Bantos — Nzambi é o criador do mundo, o ser humano veio do seio da terra, e a família é o centro de todas as coisas.

Nagôs — Suas tradições religiosas deram origem às religiões afro-brasileiras — possuíam um mito que dizia que Olorum, o
ser supremo, a entidade maior e criadora dos orixás, entregou a Odudua, divindade primordial que representa a divinização
da terra, um saco com um punhado de terra, uma muda de dendê e uma galinha e fez uma corrente até os pântanos ou
águas primordiais.  

O mito diz que Odudua derramou a terra nas águas primordiais e depois colocou sobre a terra a galinha e a palmeira de
dendê. A galinha, assim que tocou na terra começou a ciscá-la e espalhá-la para todos os lados, expandindo o mundo e
criando espaços para a proliferação do homem.

Você percebeu algo comum aos dois mitos: a


comunidade e a ocupação do espaço. O lugar
ocupado por uma comunidade é uma das bases
da religiosidade africana. Uma outra é a própria
comunidade, por meio do culto aos ancestrais.

Como estudamos, os ancestrais são



Obra de Agnes Dosanto – 2004 A criação da Terra | Fonte: UFMG
reverenciados pelas comunidades e, se os
ensinamentos deixados por um ancestral forem
incorporados pela comunidade, o ancestral
passa a ser visto como uma divindade e é até
cultuado.
O local de origem da comunidade e a ancestralidade são marcadores
religiosos!

Saiba mais

Para saber mais sobre esse assunto, leia o texto “Oferendas e rituais A simbologia da religiosidade africana”.


Atividade
1 - Você sabe o que é Etnocentrismo? Ele é uma formar restrita de analisar a vida humana. Muitos cristãos que vivem no Brasil
veem a religião de origem africana de forma etnocêntrica. Dito isso, faça uma pesquisa sobre o assunto, analisando os motivos
que levam o cristão a achar que sua forma de expressão religiosa é superior à africana.

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2 - O mito Nagô e o mito Banto possuem em comum a base comunal e a ocupação do espaço. Explique com suas palavras
como os dois mitos, se assemelham pela importância que dão à família.


O politeísmo greco-romano e sua singularidade comunitária
A religião greco-romana 3 sempre despertou
a imaginação e a curiosidade dos ocidentais.
Imagine o mundo mitológico grego: Uma
montanha imensa onde moram, em palácios
feitos de ouro e marfim, deuses de uma beleza
indescritível e com poderes extraordinários.

Essa é a visão ocidental do século XXI, mas as


verdadeiras tradições religiosas gregas não
aparecem nesse panteão, elas aparecem nos
mistérios helênicos e na própria filosofia.


Apollo – mitologia greco-romana | Fonte: Croisy / Shutterstock

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Exemplo

A deusa Reia, também chamada de Deusa Mãe, foi incorporada e entrou para a mitologia grega como a mãe de Zeus.

Os indo-europeus não abriram mão de seus deuses e entidades mágicas ligadas à natureza que se materializavam em árvores,
animais e fontes. A religião sincrética que estava nascendo tinha sua base de sustentação no animismo e no culto a deuses
locais, que protegiam as comunidades.

Desse caldeirão sincrético surgiu o panteão de deuses gregos. Deuses universais por terem sua autoridade respeitada por
todos, mas também especializados quando se tratava de influenciar a vida cotidiana 4 .

A ausência de mistério tirou dos deuses a essência da experiência religiosa, que foi transferida para os mistérios,
principalmente para os dionisíacos, de Elêusis e Órficos. Veja a seguir.
Os mistérios dionisíacos Os mistérios de Elêusis Os mistérios órficos
O deus grego Dionísio é Os mistérios de Elêusis tratam da Os mistérios órficos
celebrado como o deus do vinho, busca de Deméter, deusa da representaram uma ruptura no
mas os mistérios dionisíacos são agricultura e das estações do culto tradicional grego. Inspirado
bem mais complexos que a ano, por sua filha Perséfone, no mito de Orfeu e Eurídice, mais
bebida. Para começar, os raptada por Hades e levada para precisamente no fato de Orfeu ter
mistérios dionisíacos não eram o mundo inferior. Os mistérios sido o único mortal a ter entrado
realizados nas cidades, e sim em simbolizavam a mudança das e saído do reino de Hades, os
grutas ou cavernas. estações e a fecundidade da mistérios órficos estavam
terra, mas mais que isso, eles ligados a necessidade de
Eles eram realizados à noite, e o levavam esperança ao crente. salvação e purificação da alma.
indivíduo que seria iniciado
passava por um período de
preparação antes se ser inserido
no grupo.

Os mistérios nas tradições religiosas gregas possuem uma


característica comum: seus rituais possuíam uma simbologia capaz de
criar um sentimento de solidariedade entre os iniciados, pois
acreditavam que faziam parte de um grupo de escolhidos, de eleitos.

Saiba mais

Para saber mais sobre esse assunto, leia o texto “Mistérios dionisíacos, de Elêusis e de Órficos”.
O politeísmo estatal romano e perpetuação da ancestralidade no seio familiar

É comum a associação da religião grega com a romana. Foi transmitida a ideia que a difusão do helenismo fez com que os
romanos absorvessem os deuses gregos e os cultuassem. Essa parte da história é verdade, entretanto, não é dito em nenhum
lugar que, na base religiosa romana, sempre estiveram os deuses cultuados dentro de casa, no seio familiar e que perpetuavam
a descendência. 

Na Roma antiga havia um culto oficial, entretanto, era o Estado que o controlava, a ponto de aceitar e incluir deuses
estrangeiros no seu panteão desde que “seus poderes” fossem usados para proteger Roma.

A experiência religiosa e a religiosidade romana aconteciam


normalmente no seio familiar e eram pautadas na ancestralidade.

 Larário | Fonte: Wikipedia

Quando um Imperador se tornava um deus, ele era reverenciado publicamente, mas as tradições religiosas romanas eram
pautadas no antepassado comum e nos deuses familiares. Era na intimidade familiar e na proteção do lar 5 que se realizava
a ligação com o sobrenatural. Esses deuses familiares, chamados de Penates e Lares, estavam representados nos altares
erguidos dentro das casas e nas libações realizadas pelo chefe da família.


Atividade
3 - Explique qual a diferença entre o culto cívico e os mistérios na tradição religiosa grega.
4 - Faça uma pesquisa sobre os Penates, os Lares e gênios familiares romanos, analisando a importância que esses deuses
possuíam na manutenção da identidade familiar.

Notas

Cultura própria 1

A base da organização social é tribal, ligada à ideia de comunidade, clã e família. A sociedade grega também tem essa mesma
estrutura na sua gênese.

No período Homérico (XX-VIII a.C.), surgiram pequenas comunidades chamadas de geno, normalmente governada por um basileu,
que possuía poderes para tomar decisões nas áreas militar, religiosa e da administração da justiça.

Nas comunidades, a terra era coletiva e cultivada por todos. A organização social do geno tinha uma base familiar. A dispersão
dos membros de um geno em busca de terras para o cultivo fez nascer vários genos. Um conjunto de genos formava uma fatria e
um conjunto fatria formava uma tribo. Como você pode perceber, o clã grego tem origem familiar e comunal.

O termo basileu “tem sua origem no grego, significa "Rei". É um título dado ao rei na Grécia do Segundo milênio a. C.
Primariamente, é como um senhor feudal”.

DICIONÁRIO INFORMAL. Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/basileu/

Discriminação 2

Boa parte do preconceito ocidental vem da incompreensão da sociedade tribal africana e da forma como é transmitida sua
cultura. Nas religiões africanas, com exceção da egípcia, a tradição oral ainda é a maior fonte de transmissão de conhecimento
dentro das comunidades. Somada a ela estão as práticas religiosas e culturais, vistas como rudimentares e primitivas pelos
ocidentais, educados para serem etnocêntricos.

Os ocidentais criaram um conceito de civilização que discrimina as outras culturas. A expressão da religiosidade concreta
africana possui rituais antigos, ligados à ancestralidade e à origem da comunidade. Essa característica está relacionada a um
conjunto de costumes, de condutas e de comportamentos, a partir dos quais o homem religioso africano exterioriza sua fé e nós,
ocidentais, não queremos ou não conseguimos compreender. Mas, é essa característica que faz nascer a unidade religiosa de
uma comunidade.

Religião greco-romana 3

A forma como a religião grega se formou é intrigante. Quando os indo-europeus invadiram a parte sul da península balcânica,
onde floresceria posteriormente o mundo grego, destruíram a civilização minoica, mas preservaram uma parte de sua cultura e
incorporaram uma parte da tradição religiosa.

Vida cotidiana 4
Você já deve ter visto em filmes ou lido em algum livro como Afrodite manipula os sentimentos amorosos, ou como Ares incita a
guerra entre povos. Os deuses gregos eram divinos, mas possuíam sentimentos mundanos: apaixonavam-se, eram violentos,
sentiam inveja, praticavam a vingança quando se sentiam desrespeitados.

Essas características não lhes tiravam a divindade, eles protegiam as cidades e nelas havia um culto cívico ao deus protetor que
devia ser praticado por todos os cidadãos.

Intimidade familiar e na proteção do lar 5

A tradição religiosa oficial de Roma era praticada e as oferendas eram feitas nos dias apropriados, mas a expressão religiosa, a
religiosidade e o contato com o sobrenatural aconteciam no interior das casas, em frente ao altar erigido aos Lares.

O politeísmo greco-romano que chegou até os dias atuais não representava a verdadeira tradição religiosa desses povos. Havia o
culto oficial e os deuses protetores das cidades que deviam ser reverenciados e cultuados, mas eram nos mistérios e por meio
dos Penates e dos Lares que a experiência religiosa e a religiosidade era sentida.

O contato com o sobrenatural ocorria a partir da escolha individual — do iniciado nos mistérios — ou pela sensação de
pertencimento a uma comunidade familiar que possuía deuses domésticos capazes de proteger o indivíduo e a família.

Referências

BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica. Trad. Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, p.124-558.

FERRETTI, S. F. Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Edusp; São Luís: FAPEMA, 1995.

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

KERÉNYI, K. Os deuses gregos. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 2000, p.193- 203.

LODY, R. O Povo do Santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e caboclos. Rio de Janeiro: Pallas, 1995.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Próxima aula

Experiência e religiosidade indianas;

As tradições religiosas indus;

A filosofia religiosa budista.

Explore mais

Assista ao filme Gladiador (2000). No filme, a todo momento, são feitas alusões aos deuses domésticos e também ao culto
cívico à figura do imperador. O filme foi dirigido por Ridley Scott e distribuído pela Columbia Pictures do Brasil.

Assista ao documentário O que é a Umbanda, produzido por Rogério Avelino. O filme aborda de forma bem didática a
Umbanda, seus orixás, fundamentos, dogmas.

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