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DE ESTUDOS
BÍBLICOS
NO NOVO
TESTAMENTO
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá! Estamos iniciando mais uma disciplina do nosso curso de Bacharelado em Teologia
no UniCesumar. Seja bem-vindo ao nosso curso e, em especial, a esta disciplina de Mé-
todos de Estudos Bíblicos no Novo Testamento. Como você já sabe, sou o professor Júlio
Zabatiero e terei o prazer de estar com você nesta parte do seu percurso de aprendizado
teológico.
Para você que já estudou outras disciplinas bíblicas, especialmente Métodos e Interpre-
tação e Métodos de Estudos Bíblicos no Antigo Testamento, nesta disciplina você terá
a oportunidade de ampliar e aprofundar os seus conhecimentos e a sua visão crítica da
prática da exegese. Interpretar um texto bíblico é uma atividade espiritual e técnica.
Aqui, posso mostrar, a você, a parte técnica; mas, quanto à espiritual, só posso convidar
vocês a incorporar o estudo exegético à sua própria espiritualidade – assim como eu
tenho feito em meu dia a dia como cristão e ministro do Evangelho.
A metodologia que estamos aprendendo segue uma lógica metodológica assim estru-
turada: para interpretar bem um texto, iniciamos com a fase preparatória da exegese:
a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua segmentação
e estruturação. Depois, passamos a estudar a realidade, situação e contexto do texto
bíblico, dando destaque ao contexto conforme ele pode ser entendido e reconstruído a
partir do texto bíblico. Veremos que, dependendo do gênero textual do livro, sempre é
importante analisar o lugar da perícope estudada no conjunto do livro. Nesta disciplina,
você também encontrará novos conceitos teóricos da linguística, teoria literária e semi-
ótica – que o(a) ajudarão a praticar o método com mais senso crítico.
O segundo conjunto de procedimentos exegéticos é o que eu chamo de análise da di-
mensão espaço-temporal da ação: alistamos as pessoas, espaços e tempo na perícope;
depois analisamos a organização dessas características no texto e concluímos a análise
com uma síntese da significação que o texto nos proporciona a partir desse ponto de
vista. Algumas pessoas consideram esse passo algo dispensável. Espero, porém, que
você perceba o quão ele é importante para uma adequada interpretação do texto bí-
blico.
O terceiro conjunto de procedimentos é chamado de análise da dimensão teológica
da ação. É hora de verificar o arranjo temático da perícope, perceber a sua unidade e a
forma como cada um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos para crer
e viver. Esta é a dimensão mais praticada da exegese na tradição acadêmica cristã oci-
dental; entretanto, há muitas formas diferentes de fazer essa análise, de modo que, nos
diferentes exemplos, procurei mostrar algumas dessas alternativas.
O quarto conjunto metodológico é a análise da dimensão sociocultural da ação. Nesse
passo, retomamos o estudo do contexto e colocamos os conhecimentos, então adqui-
ridos, em diálogo com o texto, a fim de aprofundar nossa visão de como o texto produz
sentido para a vida social e cultural das pessoas.
APRESENTAÇÃO
UNIDADE I
15 Introdução
62 Considerações Finais
68 Referências
70 Gabarito
UNIDADE II
73 Introdução
112 Referências
113 Gabarito
UNIDADE III
117 Introdução
157 Referências
158 Gabarito
UNIDADE IV
161 Introdução
205 Referências
206 Gabarito
UNIDADE V
209 Introdução
243 Referências
244 Gabarito
245 CONCLUSÃO
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1
I
UNIDADE
CORÍNTIOS 1,18-31
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
missional da ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
15
INTRODUÇÃO
Introdução
16 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO
Cartas são textos “pela metade”, conhecemos o que o escritor da carta diz, mas
temos de reconstruir o que motivou à carta. As cartas paulinas se dirigiram a
várias igrejas em diferentes regiões do Império, o que demandaria uma discussão
muito abrangente para abarcar todo o ‘contexto’ paulino. Assim, focaremos na
realidade e contexto da cidade de Corinto como um exemplo do contexto da lite-
ratura paulina, que nos aponta as questões mais importantes a serem conhecidas.
A Cidade de Corinto
Na época de Paulo, Corinto era uma colônia romana, ou seja, uma cidade com
estatuto especial em sua relação com Roma. Após sua destruição no segundo
século a.C., a cidade voltou ao seu esplendor com a sua reconstrução e outorga
de estatuto de colônia romana por Julio Cesar, em cerca de 44 a.C. Como colônia
romana, foi colonizada por romanos (civis e militares) e construída conforme o
padrão das cidades romanas, de modo que tudo nela respirava o ar do Império
e comunicava aos seus moradores a grandeza romana – somente os romanos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
c) Em função de sua localização, beleza e eventos (era a sede dos jogos íst-
micos bienais e, também, dos jogos quadrienais imperiais – os quais
somente perdiam em prestígio para os Jogos Olímpicos), Corinto era,
também, um centro turístico que atraía visitantes de várias regiões do
Império, contribuindo para fazer da cidade um local cosmopolita e incli-
nado à chamada alta cultura;
d) Era um centro religioso importante, com seus templos de Afrodite, Apolo e
Asclépio (além de outros santuários menos famosos), que atraíam grandes
multidões e eram considerados locais sagrados de renome e importância
pessoal e pública. Destaca-se a importância da sexualidade no culto de
Afrodite, da cura no culto de Asclépio e da sabedoria no culto de Apolo
– temáticas que ressoam na correspondência paulina com as comunida-
des cristãs coríntias.
A vida das famílias livres girava ao redor da atividade econômica e de sua rela-
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ção com os nobres (patronos) romanos. O lugar econômico possuía menos valor
do que o lugar sociocultural e até mesmo pessoas ricas tinham de se submeter ao
seu patrono. Nessa estrutura social, os escravos ocupavam o lugar mais inferior
e eram considerados, geralmente, como não-pessoas e tratados com severidade
e crueldade – as exceções a isto confirmam a regra. Assim, em uma comuni-
dade cristã, encontraríamos pessoas de diferentes condições socioculturais e essa
estratificação está bem presente em 1 Coríntios, sendo a fonte de vários dos con-
flitos nas comunidades.
Por exemplo, a divisão das comunidades em relação a líderes pode, muito
bem, retratar o tipo de lealdade que existia entre clientes e patronos, lealdade
que não poderia ser quebrada sem sanções e que se manifestava, também, nas
relações hostis entre diferentes patronos e seus agregados. Seguir Paulo, Pedro,
Apolo etc. não seria, primariamente, uma questão doutrinária, mas sim de leal-
dade pessoal, e isso afetava profundamente a unidade dos cristãos – tema caro
para Paulo. O problema da participação simultânea nas celebrações eucarísticas
também é derivado da condição estratificada dos membros da comunidade, de
modo que trabalhadores livres e escravos somente poderiam participar das refei-
ções comunitárias dentro dos mesmos moldes das refeições sociais, mantendo
a hierarquia e a distinção social entre os participantes dos banquetes e festas.
Semelhantemente, a questão de comer as carnes sacrificadas tinha a ver com as
distinções sociais e não apenas com a adesão religiosa pessoal.
Além da divisão social baseada no status e na condição econômica, uma
cidade cosmopolita, como Corinto, também era marcada por preconceitos deri-
vados da condição étnica dos seus habitantes. Romanos e gregos possuíam maior
Paulo não especifica que sinais os judeus pedem, mas, à luz do uso da pala-
vra na LXX e nos Sinóticos (embora posteriores aos textos paulinos), bem como
à luz do que sabemos sobre a teologia dos fariseus, podemos supor que a questão,
aqui, está vinculada à libertação de Israel do domínio romano – e não a ‘milagres’.
Nesse sentido, embora Paulo contraponha o discurso judaico ao grego, o pensa-
mento judaico também é, como o grego, um pensamento da totalidade, da ordem
cósmica. Que Israel esteja sob dominação romana é prova de que a ordem divina
para o mundo não está presente. Somente quando Israel estiver em liberdade e,
de preferência, estiver governando sobre as nações, tudo então estará em ordem.
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Alain Badiou capta, de modo interessante, essa dimensão da forma judaica
de pensar nos tempos paulinos:
[...] que é o discurso judaico? A figura subjetiva constituída por ele é a
do profeta. Mas um profeta é alguém que se sustenta na requisição de
sinais, alguém que sinaliza, dando testemunho da transcendência, ao
expor o que é obscuro à sua decifração. Assim, o discurso judaico se
define como, acima de tudo, o discurso do sinal (BADIOU, 2003, p. 41).
Não é correto afirmar que o profeta judeu é o que decifra – essa descrição se aplica
ao oráculo grego, mas não ao profeta judeu, o qual denuncia, mais do que decifra;
que anuncia uma libertação, mais do que resolve um enigma. O discurso judaico
profético é discurso de um novo mundo (uma transcendência) que ocorre na
história, recolocando em ordem o que foi colocado em desordem. O sinal espe-
rado pelo profeta é a libertação do povo – Badiou interpreta essa expectativa
como uma exceção à totalidade grega, mas uma exceção que não sai do mundo
da totalidade, apenas propõe uma outra e nova totalidade.
Nisso ele tem razão, em outras palavras, o discurso judaico – como o grego e
o romano – é um discurso que totaliza a humanidade e a classifica em dois gru-
pos antagônicos: judeus e gregos (gentios), os primeiros eleitos e amados por
Deus; os demais, fora da eleição, da promessa e da justiça divina. Para Paulo,
no Messias, toda a humanidade é eleita e convidada a fazer parte da família e
do reino de YHWH. Não faz sentido, na pregação paulina da cruz, classificar a
humanidade em dois grupos opostos. Não faz sentido interpretar a afirmação
paulina da pecaminosidade universal humana como um critério classificatório
como o dos discursos a que ele se opõe.
A frase paulina que serve de título para esse trecho não é exclusiva do apóstolo.
Vejamos a descrição de Heródoto: “todos os gregos são zelosos por todo tipo de
sabedoria (pasan sophian)” (Hist. 4.77, on-line)2. Não devemos confundir a sabe-
doria com a filosofia. O termo sabedoria, nos tempos de Paulo, abrangia vários
referentes, não só a filosofia propriamente dita. Em um estudo recente, Alain
Badiou (2011) apresentou a seguinte hipótese de compreensão do discurso da
sabedoria, a partir de 1 Coríntios:
[...] a figura subjetiva constituída pelo discurso é o homem sábio. Mas a sa-
bedoria consiste na apropriação da ordem fixa do mundo, em fazer o casa-
mento entre palavra e ser. O discurso grego é cósmico, instalando o sujeito
dentro da razão de uma totalidade natural. O discurso grego é essencial-
mente o discurso da totalidade, na medida em que defende a sophia (sabe-
doria como um estado interno) de um conhecimento da phusis (natureza
como uma realização ordenada e completa do ser) (BADIOU, 2011, p. 41).
Como vimos na seção anterior, Badiou define o discurso judaico como um dis-
curso de exceção, um discurso profético que não sai do ambiente da totalidade
no discurso grego. Agora, em relação ao discurso grego, Badiou enfatiza a visão
metafísica subjacente ao pensamento filosófico grego, que permeia toda a cul-
tura helênica e o helenismo. Para os gregos, em geral, a sabedoria consiste em
conhecer a razão (palavra, logos) que dá sentido ao mundo como totalidade, o
que permite classificar e situar cada ser em seu lugar na grande ordem cósmica.
Seja no pensamento filosófico com pouco espaço para a ação dos deuses, seja nas
religiões e sua abertura para a presença ativa de deuses na vida humana, a “sal-
vação” para os gregos consistia em viver de acordo com o seu lugar no mundo.
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virtude. Porém [...] na tradição grega o saber, a sofia, é menos um saber teórico
e mais um saber viver, um saber fazer” (HADOT, 2004, p. 79).
O discurso messiânico paulino, inevitavelmente, entrou em conflito com o
discurso sapiencial grego, tanto do ponto de vista cósmico - pois para Paulo o
lugar das pessoas e de tudo o que existe, no cosmos, é determinado por Deus e
não pela razão - quanto no Messias - que não há uma hierarquia do ser, muito
menos da sociedade, pois todos são um no Messias e Deus é tudo e em todos.
A totalidade paulina é uma totalidade não metafísica que se opõe à totalidade
grega. Também do ponto de vista do saber viver, o discurso paulino se opõe ao
discurso grego, pois o que Paulo propõe é um viver no Messias, sustentado pelo
viver do Messias na pessoa e na comunidade cristã – discurso que subordina o
saber viver à razão ou aos deuses e legitima a não-unidade da humanidade, cin-
dida em gregos e bárbaros ou em romanos e conquistados.
Ademais, o discurso paulino se opõe ao discurso jurídico-militar romano,
na medida em que é discurso da graça e não da lei. Embora a discussão paulina
mais comum nas cartas seja com a Torá judaica, a mensagem da graça divina no
Messias também seria escândalo para o mundo greco-romano, especialmente
para a noção de justiça romana, fortemente vinculada com a lei do Império, sus-
tentada pela força do exército. A pax romana era imposta pela força militar e
continuada mediante o regime da lei – visão oposta à pax Christi – criada pela
morte do Messias e continuada mediante a solidariedade compassiva do Espírito
na comunidade messiânica. Assim, como os gregos e os judeus, os romanos tam-
bém dividiam a humanidade em dois grupos antagônicos: os romanos e os outros.
18
Ὁ λόγος γὰρ ὁ τοῦ σταυροῦ τοῖς μὲν ἀπολλυμένοις μωρία ἐστίν, τοῖς δὲ
σῳζομένοις ἡμῖν δύναμις θεοῦ ἐστιν. 19 γέγραπται γάρ, Ἀπολῶ τὴν σοφίαν τῶν
σοφῶν καὶ τὴν σύνεσιν τῶν συνετῶν ἀθετήσω. 20 ποῦ σοφός; ποῦ γραμματεύς; ποῦ
συζητητὴς τοῦ αἰῶνος τούτου; οὐχὶ ἐμώρανεν ὁ θεὸς τὴν σοφίαν τοῦ κόσμου[i];
21
ἐπειδὴ γὰρ ἐν τῇ σοφίᾳ τοῦ θεοῦ οὐκ ἔγνω ὁ κόσμος διὰ τῆς σοφίας τὸν θεόν,
εὐδόκησεν ὁ θεὸς διὰ τῆς μωρίας τοῦ κηρύγματος σῶσαι τοὺς πιστεύοντας·
22
ἐπειδὴ καὶ Ἰουδαῖοι σημεῖα αἰτοῦσιν καὶ Ἕλληνες σοφίαν ζητοῦσιν, 23 ἡμεῖς
δὲ κηρύσσομεν Χριστὸν ἐσταυρωμένον, Ἰουδαίοις μὲν σκάνδαλον, ἔθνεσιν[ii]
δὲ μωρίαν, 24 αὐτοῖς δὲ τοῖς κλητοῖς, Ἰουδαίοις τε καὶ Ἕλλησιν, Χριστὸν θεοῦ
δύναμιν καὶ θεοῦ σοφίαν· 25 ὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων
ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπων. 26 Βλέπετε γὰρ τὴν
κλῆσιν ὑμῶν, ἀδελφοί, ὅτι οὐ πολλοὶ σοφοὶ κατὰ σάρκα, οὐ πολλοὶ δυνατοί, οὐ
πολλοὶ εὐγενεῖς· 27 ἀλλὰ τὰ μωρὰ τοῦ κόσμου ἐξελέξατο ὁ θεός, ἵνα καταισχύνῃ
τοὺς σοφούς, καὶ τὰ ἀσθενῆ τοῦ κόσμου ἐξελέξατο ὁ θεός, ἵνα καταισχύνῃ τὰ
ἰσχυρά, 28 καὶ τὰ ἀγενῆ τοῦ κόσμου καὶ τὰ ἐξουθενημένα ἐξελέξατο ὁ θεός, τὰ
μὴ ὄντα[iii], ἵνα τὰ ὄντα καταργήσῃ, 29 ὅπως μὴ καυχήσηται πᾶσα σὰρξ ἐνώπιον
τοῦ θεοῦ. 30 ἐξ αὐτοῦ δὲ ὑμεῖς ἐστε ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ, ὃς ἐγενήθη σοφία ἡμῖν ἀπὸ
θεοῦ, δικαιοσύνη τε καὶ ἁγιασμὸς καὶ ἀπολύτρωσις, 31 ἵνα καθὼς γέγραπται, Ὁ
καυχώμενος ἐν κυρίῳ καυχάσθω (NESTLE & ALAND, s/d, in loco, on-line)3.
■■ Tradução:
(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para
nós, os que somos salvos, é potência[iv] de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a
sabedoria dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes.
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente[v]? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21
Ora, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela
sabedoria, Deus achou por bem salvar os fiéis através da pregação (que é lou-
cura[vi]) 22 uma vez que os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria;
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
23
nós, porém, anunciamos o Messias[vii] crucificado, que é escândalo para os
judeus e loucura para as nações. 24 Todavia, para os chamados, judeus ou gregos,
Messias, força de Deus e sabedoria de Deus[viii];
25
pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens, e a
fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana[ix].
(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre
vós que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam
nobres.
27
Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os
sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os for-
tes 28 e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que não
têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm[x],
29
para que nenhuma carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou, para nós,
da parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
(Tradução do autor)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO
(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós,
os que somos salvos, é potência de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a sabe-
doria dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes.
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21
Ora, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela
sabedoria, Deus achou por bem salvar os fiéis através da pregação (que é lou-
cura) 22 uma vez que os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria;
23
nós, porém, anunciamos o Messias crucificado, que é escândalo para os
judeus e loucura para as nações. 24 Todavia, para os chamados, judeus ou gregos,
29
para que nenhuma carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou para nós, da
parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
Como, a esta altura, você já está acostumado a alistar na sequência as pala-
vras que indicam pessoas (e caracterização), tempo e espaço, vou indicar esses
elementos por meio do seguinte recurso: negrito, para indicar pessoas e caracte-
rizações; itálico, para indicar o tempo; e sublinhado, para indicar espaço (palavras
que têm mais de uma sinalização pertencem a duas categorias). Lembre-se: neste
primeiro momento não interpretamos o sentido teológico ou sociocultural e psi-
cossocial do texto, apenas interpretamos as relações que se estabelecem entre as
pessoas agindo no tempo e no espaço.
Em relação às pessoas, as relações são construídas a partir de contrastes:
(a) Os que perecem x os que são salvos (18). O par de opostos, por sua vez,
é diferentemente caracterizado na perícope. Os que perecem: sábios, inteligen-
tes, debatedores, escribas, ‘do mundo’, mundo, judeus, gregos, nações, homens,
sábios, fortes, nobres, os que têm valor. Os que são salvos: fiéis, chamados (judeus
ou gregos), irmãos, coisas loucas, coisas fracas, plebeus, desprezados, os que não
tem valor, nós, vós; ‘sois dele’.
(b) Deus x mundo ou humanos (20, 25, 27, 28), em que o mundo corres-
ponde aos ‘que perecem’.
(c) Nós x judeus e gregos (23, 25). Nós: Paulo e seus colegas de missão; judeus
e gregos – não judeus ou gregos enquanto etnias, mas judeus ou gregos enquanto
portadores de discursos específicos (nesse caso, discursos classificatórios).
Esses contrastes têm a ver com os diferentes modos de classificar o valor das
pessoas – por um lado, a classificação feita por judeus e gregos (com base na
identidade étnico-religiosas por judeus; com base na identidade étnico-racio-
nal por gregos); por outro, a classificação feita por Deus, que inverte e subverte
as classificações humanas. Trataremos, então, dessa questão no tópico sobre a
dimensão sociocultural da ação.
Os contrastes, por sua vez, ressaltam as relações entre Deus, Paulo e seus
colegas de missão e os ‘fieis’/‘chamados’, incluindo as comunidades messiânicas
paulinas de Corinto. Nessas relações, ressalta a identidade e a função do Messias
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como aquele que concretiza a fidelidade e o chamado de Deus para libertar a
humanidade (especialmente nos versos finais da perícope). Essa temática será
discutida na análise da dimensão teológica da ação e da dimensão sociocultu-
ral da ação.
Espacialmente, temos um contraste entre os que estão no mundo e os que
estão no Messias ou no Senhor, que corresponde ao contraste classificatório já
mencionado. Por outro lado, todos os seres humanos estão diante do Senhor –
expressão espacial que também indica a questão classificatória. (Repare que a
dimensão espacial não é trabalhada com intensidade nessa perícope).
Do ponto de vista da temporalidade, porém, temos interessantes jogos de relações:
(a) Há uma série de verbos (de ligação) no presente do indicativo, apon-
tando para a condição da ‘mensagem da cruz’ e das ‘pessoas’ em suas diferentes
classificações (de valor no mundo, ou de valor diante de Deus ou no Messias);
(b) No início da perícope, temos verbos no futuro do indicativo que, por
serem uma citação, se referem ao futuro em relação ao texto bíblico citado, mas
ao presente dos leitores e leitoras de Paulo, em Corinto. Como Deus cumpriu o
anunciado por Isaías? Por meio da encarnação do Messias, sua vida, morte e res-
surreição em prol da humanidade e de toda a criação;
(c) O principal jogo de relações temporais se dá entre o presente da condição
humana neste mundo, especialmente ligada à atividade classificatória e expli-
cativa da vida (racionalidade) e a ação de Deus para transformar a realidade
classificatória, que é apresentada por verbos no pretérito perfeito (indicando
ação completa da parte de Deus no passado) ligados a verbos no infinitivo (indi-
cando os efeitos da ação de Deus, efeitos, estes que não são automáticos, mas
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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21 Ora, visto que, na
sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, Deus achou
por bem salvar os fiéis através da pregação (que é loucura) 22 uma vez que os
judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria; 23 nós, porém, anunciamos
o Messias crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para as nações.
24
Todavia, para os chamados, judeus ou gregos, Messias, força de Deus e sabe-
doria de Deus; 25 pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos
homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre
vós que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam
nobres. 27 Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar
os sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os
fortes 28 e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que
não têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm, 29 para que nenhuma
carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou para nós, da
parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
Do ponto de vista mais técnico da análise sêmio-discursiva, percebemos
nessa perícope os seguintes percursos:
(a) A validade da mensagem da cruz (presente nos dois primeiros segmen-
tos da perícope);
(b) A honra dos sem-honra (perpassa toda a perícope);
(c) A identidade da comunidade de Corinto (terceiro segmento);
(d) A messianidade de Jesus (presente no segundo e quarto segmentos).
A temática que outorga unidade à perícope pode ser assim descrita:
RACIONALIDADE IRRACIONALIDADE
NÃO-IRRACIONALIDADE NÃO-RACIONALIDADE
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do Evangelho (que é um problema derivado da discussão ampla na sociedade
imperial romana sobre a racionalidade do ser judeu) e a questão da honra das
pessoas em função de sua posição social. Nesse sentido, o texto é construído a
partir da alusão ao ‘discurso da honra’, que permeava as culturas mediterrâneas
em geral, tanto no Ocidente como no Oriente.
Estilisticamente falando, a perícope se assemelha às discussões filosóficas
(orais e escritas) do mundo helenístico, construídas a partir de perguntas retóri-
cas que criam um oponente discursivo imaginário e convidam leitoras e leitores
a imaginar a discussão ocorrendo entre o autor e seu oponente. Dessa forma,
são obrigadas a se identificar com uma das partes em discussão. Na estrutura
da carta, nossa perícope se situa na seção iniciada em 1,10 e encerrada em 4,21,
que discute as divisões dentro da comunidade ou comunidades de Corinto e o
valor do apostolado. Para Paulo, as divisões internas são sintomas da infideli-
dade a Deus e seus efeitos são como se o próprio Messias tivesse sido dividido.
A motivação para as divisões está na ‘cultura da honra’ e do patronato, que fazia
as pessoas se ‘filiarem’ a certos indivíduos como seus ‘patronos’ – Paulo, Apolo,
Cefas, Cristo. Na visão paulina, essa lógica social é completamente inadequada
para o povo de Deus, em que a hierarquia sociopolítica não faz sentido, pois
todos são iguais diante de Deus e há um único Senhor: o Messias Jesus.
Passo, a seguir, a apresentar a interpretação da dimensão teológica da ação,
sem seguir a sequência dos passos metodológicos, mas utilizando todos os pas-
sos do método.
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údos, mas fontes da sabedoria, fontes do saber viver bem. Repare que o texto
conclui com a afirmação de que o Messias é sabedoria.
Um contraste estabelecido no verso 18 é interessante, mas assimétrico: por-
que contrastar loucura com potência? Possivelmente, em função do sentido da
cruz na cultura greco-romana:
[...] o orador romano Cìcero chamou a crucificação de crudelissimum ta-
eterrimumque supplicium, ‘a mais cruel e terrível punição’ (In C. Verrem
2.5.65); e ‘indigna de um cidadão romano’ Pro Rabirio 5.16; cf. Hengel,
Crucifixion, 22–24; TDNT, 7:573–74) (FITZMYER, 2008, p. 154).
Falar da cruz como o evento da salvação seria considerado loucura, pois como
poderia a força, o poder e a dignidade se originarem em tal castigo indigno de
quem possui honra? Como a morte poderia significar a potência de viver? O
outro contraste é claramente inteligível: os que se perdem (ver, também, 2Co
2,15; 4,3; cf. 2Ts 2,10 – que indicam uma temática constante em Paulo) e os que
se salvam. Quem não reconhece a palavra da cruz a considera como loucura – só
não sabe que essa decisão o encaminha para a morte, para a destruição. Quem
a reconhece, porém, é encaminhado para a salvação, que é vida (a formulação,
aqui, se assemelha a Rm 1,16-17).
O uso de nós é um recurso argumentativo interessante, pois gera uma empa-
tia entre Paulo e seus leitores – unidos pela mesma condição: somos salvos, ou
seja, não há diferenças entre nós e nem deveriam divisões ser criadas, pois é a
palavra da cruz que nos une e não a sabedoria humana.
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se enfatiza no texto, entre as diversas formas de sabedoria mediante as quais o
ser humano busca transcender suas próprias limitações. O foco de Paulo recai
sobre os dois grandes universos discursivos estabelecidos na tradição judaica da
época: discurso judeu e discurso grego. De fato, a polêmica paulina na carta mos-
tra que os caminhos de salvação em questão são três: o caminho do Judaísmo
oficial; o caminho grego das filosofias e religiões, especialmente da primeira; e
o caminho romano da honra e vitória militar. A redução a dois discursos, em
oposição ao discurso messiânico, simplifica a questão e possibilita uma argu-
mentação mais concentrada e, esperava Paulo, mais convincente.
Sábio, escriba, debatedor – são termos genéricos, não deveriam ser entendi-
dos como referências ao filósofo grego, ao escriba judeu e ao debatedor romano na
arena política. Paulo estabelece o contraste entre as fontes da sabedoria – há uma
sabedoria deste tempo presente e do mundo que não conduz ao conhecimento de
Deus, nem à salvação. A linguagem lembra textos de Isaías – 19,12 e 33,18: “onde
estão agora os teus sábios? Anunciem-te agora ou informem-te do que YHWH
dos Exércitos determinou contra o Egito”; “O teu coração considerará o assom-
bro dizendo: Onde está o escriba? Onde está o que pesou o tributo? Onde está o
que conta as torres?” (note, aqui, o uso de três personagens, como em Coríntios).
Os termos se referem a funções a serviço do poder político – e me parece que
esta é a linha temática de Paulo: não só discute a temática do saber, mas, principal-
mente, a do poder – a sabedoria a serviço do poder. O poder deste mundo não leva
à vida, os poderosos deste mundo não podem salvar (esta é uma temática constante
na Bíblia Hebraica). Somente Deus pode salvar em sua sabedoria (lembre-se, por
exemplo, da atribuição de sabedoria aos reis israelitas, Salomão sendo o ícone deles).
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crucificado. Sabedoria que, além de loucura (relação polêmica com o discurso
grego), é fraqueza (relação polêmica com o discurso judaico dos sinais). Loucura
e fraqueza que revelam a verdadeira face da sabedoria e do poder: amar e ser-
vir a quem precisa.
A crucificação de Cristo e sua proclamação certamente teriam sido
loucura para a cultura dominante em sua compreensão de sabedoria e
poder. A crucificação era uma forma romana de tortura, uma execução
que levava a uma morte lenta e excruciantemente dolorosa. Como a
forma mais extrema da pena capital, ela era reservada para as classes
baixas, usualmente infligida sobre escravos e camponeses rebeldes em
províncias submetidas ao Império, como a Judéia. Como atos moder-
nos de terrorismo, a crucificação era feita primariamente em função
de seus efeitos visuais sobre os que a testemunhavam como morte tor-
turante. Uma forma de terrorismo patrocinado pelo Estado, ela visa-
va funcionar como um meio de controle social, para quebrar a força
de vontade dos povos conquistados que, após qualquer quebra da pax
romana (paz imposta por Roma), testemunhariam centenas, mesmo
milhares de tais ‘rebeldes’ expostos publicamente em sua execução na
cruz. Como diz Paulo em Gl 3:1: ‘foi diante dos vossos olhos que Jesus
Cristo foi publicamente exibido como crucificado’. Longe de se simpa-
tizar com os sujeitos a tal terror e execução, a cultura helenística domi-
nante se preocupava com a lei e a ordem e considerava os crucificados
como desprezíveis. Em um clima cultural dominado pelos tradicionais
valores aristocráticos gregos, a cruz seria, de fato, ‘loucura’ (1:23) por
proclamar e organizar a vida ao redor de um criminoso político cruci-
ficado como o seu símbolo central (HORSLEY, 1998, p. 50).
O próximo segmento mostra o outro lado desse contraste entre a fonte divina e
a humana de salvação.
O segundo par interno de contrastes traz o texto para o espaço local da comu-
nidade de Corinto. Não mais se trata de questões universais, mas de questões
particulares – que representam a universalidade da condição humana. Ao falar da
loucura e fraqueza de Deus reveladas no Messias, Paulo pede aos coríntios para
pensarem em si mesmos, em sua própria realidade. A maioria dos membros das
comunidades paulinas em Corinto pertencia às camadas inferiores da popula-
ção (“não há muitos entre vós...”). O argumento de Paulo é forte: vocês mesmos
são prova do que eu estou dizendo! Ao descer à terra coríntia, Paulo torna explí-
cita a isotopia sociopolítica do seu tema, apenas sugerida no segmento anterior.
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Ressalta, no texto, o uso do verbo escolher, com Deus como sujeito. No mundo faze-
mos escolhas e é sábio, racional, escolher o vencedor, o importante, o governante.
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Deus, porém, escolheu os fracos, os pobres, os loucos, os sem-valor. Em outros
textos, Paulo usa uma linguagem mais abstrata para falar dos objetos da eleição
de Deus, mas sempre o objeto da eleição de Deus são os que não a mereceriam,
e sempre a eleição é no Messias – com base no mérito do Messias, fiel a Deus, e
para ser como o Messias foi (e.g., Rm 9—11; Ef 1,3ss). Há, aqui, ecos de Dt 7,7-8:
YHWH não se afeiçoou a vós, nem vos escolheu porque fôsseis mais
numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os po-
vos, mas porque YHWH vos amava e, para guardar o juramento que
fizera a vossos pais, YHWH vos tirou com mão poderosa e vos resgatou
da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito.
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Salomão 7,22ss. A Sabedoria personifica o Deus criador, média entre Deus e a
criação, abençoa a criação com a vida de Deus. Justiça: não é comum, na men-
talidade ocidental, unir sabedoria e justiça; mas, para a mentalidade hebraica,
era indispensável tal união. Justiça não deve ser entendida no sentido forense
ou distributivo do termo, como é comum no mundo ocidental (esse seria um
sentido encontrado na palavra mishpat e não em tsedaqah), deve ser entendida
como justiça social (nosso termo ocidental que mais se aproxima do sentido
hebraico antigo). Justiça é a dádiva da vida plena, da vida sem dominação,
sem distinções classificatórias, sem divisões entre as pessoas. Para ser justo,
é preciso ser sábio. Para ser sábio, é preciso ser justo. Devemos ver um con-
ceito similar ao desenvolvido em Rm 1,18ss: por falta de prática da justiça, as
pessoas não conseguem conhecer a Deus, por não conhecerem a Deus, per-
manecem praticando a injustiça.
Santificação: termo não muito usado por Paulo (Rm 6,19.22; 1Co 1,30; 1Ts
4,3.4.7; 2Ts 2,13 [Pastorais: 1Tm 2,15]), quase sempre junto com justiça ou jus-
tificação, e sempre apontando para o modo de vida, para a ética/espiritualidade
dos seguidores do Messias, em contraste com as éticas deste mundo. Também é
dádiva, e a explanação em Romanos 6 me parece ser a mais clara em Paulo para
o sentido dessa palavra. Libertação: tradicionalmente as versões modernas usam
redenção, destacando o sentido básico da palavra, que é a compra do escravo
para libertá-lo. Como redenção se tornou um termo técnico da dogmática cristã,
é melhor traduzir por libertação – o efeito da redenção. A pessoa santificada é
livre. Só é possível ser livre sendo santo. Só é possível ser santo sendo livre. Não
há santidade com base no dever, apenas na dádiva.
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A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO
(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós, os
que somos salvos, é potência de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a sabedoria
dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes.
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21
Ora, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela
sabedoria, Deus achou por bem salvar os fiéis através da pregação (que é lou-
cura) 22 uma vez que os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria;
23
nós, porém, anunciamos o Messias crucificado, que é escândalo para os
judeus e loucura para as nações. 24 Todavia, para os chamados, judeus ou gre-
gos, Messias, força de Deus e sabedoria de Deus;
25
pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens, e a
fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana.
(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre vós
que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam nobres.
27
Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os
sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os fortes
28
e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que
não têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm,
29
para que nenhuma carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou para nós, da
parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
A análise da dimensão teológica da ação, em nossa perícope, já deve ter
mostrado a você que a divisão em dimensões, por mais útil que seja em termos
metodológicos e didáticos, não funciona de modo perfeito e exato na realidade
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Como era composta a elite de uma cidade como Corinto? Era composta por
governantes da cidade, os grandes proprietários de terras (que apoiavam os gover-
nantes ou eram governantes), comando militar, cidadãos (de Roma ou da própria
cidade de Corinto). Em suma, a elite social era composta primariamente das pessoas
com dinheiro e com ‘nobreza’ (ou seja, nascidas na família certa ou no lugar certo).
Essa elite também era a que sustentava a elite intelectual: sacerdotes, filó-
sofos, escribas etc. – daí os termos ‘sábio’, ‘escriba’, ‘debatedor’, que se referem,
principalmente, aos debates públicos nas assembleias da cidade, ou seja, não se
trata de debates intelectuais ‘abstratos’, mas debates que interferiam na vida da
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polis (cidade), que compunham o que hoje chamamos de esfera pública. Essa elite
dominava toda a vida da cidade (e, em termos gerais, dominava o Império) e
tinha sob seu controle o que chamamos de classe média – que, na época, eram
os militares, os intelectuais, os profissionais da religião, artesãos, comerciantes,
pequenos produtores rurais etc. A elite também possuía a maioria dos escravos,
os principais responsáveis pelo trabalho braçal no Império.
Do outro lado, temos o ‘povo’, ou os ‘oprimidos’. Começo com os escravos,
o estrato social mais injustiçado e oprimido da população do Império – sem
liberdade, sem direitos, sem possibilidades de mudança social, a não ser pela
benevolência de seus donos. Depois, todos os homens e mulheres ‘livres’, mas
sem riquezas e propriedades rurais, trabalhadores urbanos que dependiam da
elite, diretamente ou intermediariamente.
Nas cidades maiores, o ‘povo’ dependia pesadamente da elite, inclusive para a
alimentação, tendo em vista o controle do comércio de trigo pelo governo imperial.
A elite compunha o estrato dos patronos que controlavam a ‘classe média’, e mem-
bros dela poderiam ser diretamente patronos de ‘pobres’, mas a maioria dos ‘pobres’
tinha como patronos membros das camadas médias da população. À essa estrutura-
ção socioeconômica concreta correspondia a estruturação cultural-valorativa, a qual
girava ao redor do conceito de honra. Assim, vale a pena retomar a discussão sobre
o patronato e completá-la com a reflexão sobre a relação entre patronato e honra.
O patronato poderia ser dar em modos bastante informais ou em modos
mais organizados, conforme o exigisse a posição social do patrono. Quanto mais
elevada a posição social e política do patrono, mais estruturado era o relacio-
namento de patronato, de modo que a distribuição dos benefícios servisse para
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[...] a combinação destas características indica que o intercâmbio efetu-
ado nas relações patrão-cliente usualmente ocorria em diversos níveis;
que ele cria várias contradições paradoxais que constituem uma das
principais características do nexo patrão-cliente – das quais as mais
importantes são, primeiro, uma combinação bastante peculiar de de-
sigualdade e assimetria no poder, com a aparente solidariedade mútua
expressa em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigações
interpessoais; segundo, uma combinação entre coerção potencial e ex-
ploração com relações voluntárias e obrigações mútuas; terceiro, uma
combinação de ênfases sobre tais obrigações mútuas e solidariedade,
ou reciprocidade, entre patrões e clientes em combinação com o aspec-
to algo ilegal ou semi-legal dessas relações (EISENSTADT, 1984, p. 49).
exemplo, por que judeus eram mal vistos no mundo imperial romano e como,
semelhantemente, as comunidades de seguidores do Messias Jesus também tive-
ram de enfrentar o preconceito social em seu mundo. Dentre as diferentes fontes
para a aquisição e manutenção da honra, a religião era uma das mais importantes,
de modo que as diferenças radicais entre judeus e gentios em geral e, também,
entre ‘cristãos’ e a sociedade em geral (incluindo os judeus, na medida em que a
fé no Messias Jesus foi definida como heresia) eram um fator constante nos pro-
blemas enfrentados por essas ‘minorias’ no mundo imperial romano.
A prática do patronato-honra, consequentemente, determinava o modo
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tes e aqueles que os apoiam financeiramente.
No Império Romano, o poder estava diretamente ligado à riqueza e ao
poderio militar, assim, o exercício do poder era, concretamente, o exercício do
controle sobre os recursos econômicos (terra, dinheiro, comércio) e sobre a vida
cotidiana dos ‘clientes’. O poder era exercido de modo impositivo, dominador e
opressor, embora os romanos apresentassem a conquista militar como a forma
romana de levar a paz aos povos conquistados e, juntamente com a paz, levar a
lei romana para que a justiça fosse implantada. Guardadas as devidas propor-
ções, até hoje se acredita que exercer o poder é exercer controle.
Entretanto, Paulo contrapõe, a esse modelo de poder, a fraqueza de Deus.
Claramente o uso do termo fraqueza é irônico, na medida em que a fraqueza
de Deus é descrita como mais forte do que o poder dos humanos (e, paralela-
mente, a loucura de Deus é descrita como mais racional do que a racionalidade
humana). Trata-se, em linguagem da filosofia política, de um outro tipo de poder
– o poder emancipatório ou, em linguagem teológica, o poder libertador.
Como Paulo construiu sua noção de poder? Em que ele se fundamentava?
No conceito veterotestamentário de poder, que girava ao redor dos temas da
libertação, da aliança e do reinado de YHWH. O elemento comum a esses três
temas, a meu ver, é o do exercício divino do poder como meio de salvação inte-
gral e humanização da sociedade.
Vale a pena tomar um desvio de curso e apresentar os contornos gerais
desses três temas no pano de fundo do pensamento paulino. Começo com a
libertação que, no Antigo Testamento, possui sua forma concreta e fundante
no acontecimento do êxodo dos hebreus do Egito: o êxodo, ou libertação, é um
evento histórico, social, concreto e não pode ser espiritualizado nem reduzido
a uma função preparatória ou preliminar na história da salvação. Na libertação,
encontramos um conflito de poderes: o poder libertador de Javé versus o poder
opressor dos deuses do Egito. Dois tópicos merecem destaque aqui:
(a) Javé é o Deus dos hebreus. A palavra hebreu, originariamente, não indica
um grupo étnico, mas um grupo social, é aquele marginalizado pelo poder polí-
tico-econômico. Nos textos relativos aos períodos mais antigos da história de
Israel, o termo hebreu é usado quando se quer destacar a fragilidade, marginaliza-
ção ou sofrimento do povo (I Sm 4,6.9; 13,13.19; 14,11.21; 29,3; Gn 14,13; 39,14;
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nortear, também, o relacionamento entre os membros do povo, especialmente
as relações de poder no povo de Deus. Ao firmar aliança com Deus, os hebreus
não precisam se submeter às alianças com reis opressores, ou seja, assumem um
projeto político distinto daquele ao qual estavam acostumados a viver nos paí-
ses do Antigo Oriente.
Em Êx 19.3-6, a solidariedade de Deus concretizada na aliança, estabe-
lece a identidade político do povo de Javé, os hebreus são chamados de “reino
de sacerdotes e nação santa”, o que indica o projeto político da libertação, com
termos aparentemente inusitados: o povo da aliança é um reino de sacerdotes
e uma nação santa. Sacerdócio e santidade são valores políticos aqui! Ser reino
sacerdotal implica em construir uma estrutura de relações de poder baseada no
serviço ao Deus da libertação. Ser nação santa implica em construir uma estru-
tura de relações de poder radicalmente distinta daquela na qual os hebreus
haviam sofrido opressão.
O termo hebraico que explica como deve ser a relação de aliança é o termo
hesed, que pode ser traduzido como graça, bondade, benignidade, amor ou fide-
lidade. Como categoria política, a aliança de Javé é caracterizada não pelo poder
dominador, mas pelo poder emancipador e criador de laços de solidariedade e
comunhão. Termos políticos, aliança e hesed são, também, termos afetivos, na
medida em que servem para explicar a relação marido-mulher, pais-filhos. No
projeto político do Deus libertador, o povo se constitui como família, realidade
na qual as relações de poder são marcadas pela fraternidade e solidariedade,
pela fidelidade ao projeto comum, pelo amor entre pessoas que se complemen-
tam umas às outras. Assim, também, na esfera política: as relações de poder são
libertador e justo. É a partir de ideias como estas que Paulo construiu seu con-
ceito de poder libertador, o qual encontramos nessa perícope sob o signo da
fraqueza de Deus.
Por fim, uma breve reflexão sobre a paixão do orgulho – que na perícope é
textualizada como kauxaomai, no verso 31, aludindo a Jeremias. Do ponto de
vista social, kauxaomai denota a honra em sua hierarquia sociocultural. Do ponto
de vista pessoal, denota as paixões ligadas às noções e sensações de honra e ver-
gonha. Semioticamente falando, as paixões devem
[...] ser entendidas como efeitos de sentido de qualificações modais que
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modificam o sujeito do estado [...] A descrição das paixões se faz, quase
exclusivamente, em termos de sintaxe modal, ou seja, de relações modais
e de suas combinações sintagmáticas [...]. O sujeito do estado mantém
laços afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com
o objeto, a que está relacionado por conjunção ou por disjunção (BAR-
ROS, 1988, p. 61-62).
Vamos ‘traduzir’ esta definição para uma linguagem não técnica: (a) paixões
são vistas como ‘efeitos de sentido’, ou seja, não são vistas do ponto de vista da
psicologia que examina cada indivíduo, mas do ponto de vista do significado
atribuído às emoções humanas em uma dada cultura; (b) são efeitos de sentido
de ‘qualificações modais que modificam o sujeito do estado’ – o sujeito do estado
é a pessoa (personagem) do texto vista sob a perspectiva da estrutura narrativa
do discurso e designa a dimensão ‘emotiva’ da pessoa em sua significação. As
paixões são qualificações modais, ou seja, são como que adjuntos adverbiais do
sujeito do estado, são modos de qualificar e caracterizar o sujeito do ponto de
vista de sua passionalidade ou de suas emoções – a qualificação modal tem a
ver com o modo como o sujeito age ou deixa de agir; (c) a qualificação modal
do sujeito de estado ocorre a partir de duas relações: a do sujeito com o destina-
dor – que pode ser uma pessoa, um grupo social, a cultura, Deus etc. – que, no
texto, motiva o sujeito do estado a agir e o torna, assim, personagem ou pessoa
da ação e da relação com o objeto com que o sujeito está ligado (conjunção) ou,
ainda, não está ligado (disjunção).
Neste texto, encontramos duas formas de definir as paixões tematizadas
pelo verbo kauxaomai: (1) a glória, ou orgulho, ou vaidade derivada da honra
sociocultural; e (2) a glória, ou orgulho derivada do estar ‘no Messias’. O texto
Glória:
3 Sentimento de honra, de orgulho por feito heroico ou extraordiná-
rio: “A filha mais velha representava a glória da família: unira-se a um
ministro plenipotenciário; a outra, coitada, não casou mal, porém com
a morte do marido, e de um filhinho que lhe ficara, tornou-se muito
nervosa, histérica, e até meio pateta […]” (AA2).
Vanglória:
“Valorização excessiva e geralmente infundada das próprias qualidades;
bazófia, jactância” (MICHAELIS, 2016, on-line)7.
Vaidade:
1 Qualidade ou característica do que é vão.
2 Apreciação exagerada dos próprios méritos; jactância, pomada, presun-
ção: “A cada passo que dera na sua inútil existência, rasgara com o pé uma
página do livro das ilusões. Mas, a presença deste raciocínio, longe de afli-
gi-lo, dava-lhe à vaidade um certo prazer doentio e picante […]” (AA2).
3 Ostentação das próprias qualidades físicas ou intelectuais, para ter a
admiração de outras pessoas: A vaidade o induz a fazer qualquer sacri-
fício para manter um físico quase perfeito.
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4 Qualquer coisa que denote futilidade: A vaidade é o centro de sua
existência” (MICHAELIS, 2016, on-line)8.
Orgulho:
1 Sentimento de prazer ou satisfação que uma pessoa sente em rela-
ção a algo que ela própria ou alguém a ela relacionado realiza bem: “A
Pátria é a família amplificada, pensou, com orgulho por saber de cor
trechos e mais trechos de Ruy” (JU).
3 Atitude arrogante que faz com que a pessoa sinta-se melhor ou mais
importante que outra(s): “[…] o outro parecia o orgulho em pessoa,
não respondia a nada do que lhe era perguntado e os encarava com
um ódio altivo” (JU).
4 PEJ Amor-próprio exagerado: “Aquela indiferença afigurava-se-lhe uma
afronta ao seu amor-próprio, um atentado contra o seu orgulho” (AA2).
5 Aquilo ou aquele de que alguém pode orgulhar-se: “Essa menina […]
era todo o meu orgulho […] a menina que eduquei sob os maiores
sacrifícios” (AA2)” (MICHAELIS, 2016, on-line)9.
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A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO
[i] Veja o comentário de Metzger sobre as variantes textuais: “O Textus Receptus, seguindo testemunhas
tardias (ac C3 Dc F G L Y 6 104 326 623 1739c al), com as quais algumas versões antigas concordam (itd,
g, r vg syrp, h, pal copsa, bo goth armmss), acrescenta toutou. A influência da expressão precedente, tou/
aivw/noj tou,tou, torna a adição do demonstrativo quase que uma conclusão necessária; é notório que
muitos copistas resistiram à tentação de assimilar expressões (ko,smou apenas se encontra em î46 a* A
B C* Dgr* 33 181 206 314 429 917 1610 1758 1827 1836 1898 al)”. Concordo com a avaliação dele, não
aceitando a inclusão do pronome “deste”.
[ii] O Textus Receptus substitui nações por gregos, visando manter consistência com a terminologia usada
nos versos 20, 22 e 24. Não há, porém, testemunhos textuais antigos para corroborar a mudança.
[iii] Mais uma vez, o comentário de Metzger: “A presença de kai, antes de ta. mh. o;nta (ac B C3 Db P Y
81 614 Byz al) parece ser uma interpolação motivada pela série precedente de objetos, cada um unido
ao próximo por kai, (ver Blass-Debrunner-Funk, § 490). Ao adicionar a palavra, os escribas perderam a
força da expressão ta. mh. o;nta, que (conforme Zhan indica, in loc.) não é outro item da série, mas uma
caracterização abrangente e climática de todos os itens precedentes. A leitura mais curta é fortemente
suportada por B P46 a* A C* D* G 0129 33 1739 al.” Concordo com a avaliação de Zahn, seguida por
Metzger, pois no contraste feito no verso 28, apenas temos a expressão “as que são” para se contrapor as
três expressões que se referem ao polo social contrário dos “que são”.
[iv] Evito traduzir dunamis por poder, para evitar a confusão com o sentido político. A palavra grega indica
a força para ser, a energia ou a potência, na linguagem aristotélica.
[v] Evito traduzir aiwn por século, para evitar confusão com secular ou secularismo. O termo se refere a
uma era determinada de tempo com características comuns, sendo utilizada por Paulo a partir da visão
judaica apocalíptica do tempo.
[vi] Uso o parêntese indicando o aposto, para enfatizar o fato de que a própria pregação do Evangelho é
loucura.
[vii] Prefiro traduzir cristos como Messias, ao invés de transliterar como Cristo, para evitar a sua
interpretação como nome próprio, enfatizando o seu significado messiânico.
[viii] O estilo é pesado, mas é melhor manter a ênfase do texto grego do que suavizar o estilo, traduzindo
por “força e sabedoria de Deus”.
[ix] Não está correta a opção das versões de Almeida em comparar a loucura e a fraqueza de Deus,
simplesmente, com “os homens”.
[x] A tradução dos versos 27-28 evita usar termos ontológicos, seguindo o sentido mais adequado das
palavras em seu contexto, que se referiam às diferentes classes de habitantes do Império Romano. São
termos sociológicos e não metafísicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem! Você chegou ao fim desta unidade. Caminhamos juntos por dis-
tintas fases do método sêmio-discursivo e deixei, para você, a tarefa de fazer a
releitura da perícope.
A releitura é uma das atividades mais complexas do estudo exegético. Ela
envolve muitos conhecimentos em relação a diferentes aspectos da vida e do
saber. Exige, também, comprometimento pessoal e conhecimento prático da
vida cristã e ministerial.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
É, também, a parte mais criativa da interpretação, na qual a inventividade
de cada leitor aparece em maior grau. Por isso, pode ser também inadequada
- criar é bom, mas nem sempre sabemos criar como convém. Demanda cora-
gem e disciplina, mas é, também, o momento em que o ‘erro’ é mais facilmente
aceito e reformulado.
Nossa perícope tem a ver, principalmente, com a identidade do Messias e
como ela nos revela a identidade de Deus. Precisamos aprender a repensar nos-
sas concepções de Deus e do Messias a partir do texto bíblico.
Pense bem e medite intensamente: o que significa crer em um Deus louco
e fraco? O que significa crer em um Messias morto na cruz, executado como
rebelde contra o Império Romano? O poder transformador de Deus não pode
ser identificado com as concepções humanas de poder. O poder de Deus não
mata, o poder de Deus gera a vida, mediante o autosacrifício do Messias que
ressurge e vive para sempre.
Em um mundo no qual busca-se a plenitude, a posse de tudo o que for pos-
sível adquirir, o Messias nos convida ao esvaziamento, ao ‘empobrecimento’ da
entrega a Deus e ao próximo como servas e servos. A força do Evangelho é a
fraqueza da cruz, que é mais forte do que qualquer poder humano ou sobre-hu-
mano. Sabemos como viver na fraqueza?
Uma das características mais marcantes da Palavra é que ela nos surpreende
constantemente, ela nos desestabiliza e nos convida a crescer no serviço e no
conhecimento de Deus. Crescimento que não é ‘enchimento’, mas entrega, dis-
posição para viver para Deus e para o próximo - como o Messias.
ESCÂNDALO E LOUCURA
Consequentemente ó lógos tou staurou, o Evangelho do Crucificado, é escândalo para
os judeus e loucura (estupidez) para os gentios, segundo escreve Paulo na I Cor 1 e 2:
A linguagem da Cruz, com efeito, é loucura para aqueles que se perdem, mas para aque-
les que se salvam, para nós, é poder de Deus... Os judeus exigem milagres e os gregos
procuram sabedoria, mas nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os ju-
deus, loucura para os gentios; mas para os eleitos, judeus ou gregos, Ele é o Cristo, po-
der de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os
homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens» (I Cor 1,18.22-25).
Loucura, ou estupidez, porque para o homem civilizado e culto da megalópole cosmo-
polita dos dois mares, Corinto, a fonte da salvação está na sofia (sabedoria) e não na
figura ignominiosa de um crucificado, malfeitor, inimigo do povo e do império à luz da
infalível justiça romana. Aos olhos da sabedoria, da justiça, da estética e da ética gregas,
como pode a soteria (a salvação) plasmar-se num quadro tão infame, inestético, incon-
veniente e imoral? ‘O Evangelho da Cruz, contradiz radicalmente a sabedoria, ofende a
sensibilidade moral dos sábios e opõe-se à noção de justiça dos poderosos. O crucifica-
do é motivo de irrisão e de mofa. Em Roma, no Palatino, apareceu um grafito represen-
tando um cruci-ficado com cabeça de burro e com a seguinte inscrição: «Alexamenos
adora o seu Deus».
Escândalo para os judeus, porque inaudita blasfémia a identificação do Messias de Deus
com um suspenso do madeiro, condenado cm nome da Lei e amaldiçoado por Deus; ex-
pulso do meio do povo e excluído da aliança da vida; afastado do convívio com os vivos
e da comunhão com Deus, um proscrito do qual todo o homem justo e pio se manterá
zelosamente distante. Do ponto de vista judaico o logos tou staurou é, sem atenuantes,
uma blasfémia superlativamente sacrílega.
Para judeus e gentios, para o mundo, à luz da sofia tou kosmou (sabedoria do mundo),
a Cruz é, pura e simplesmente, sinal de ignomínia. A Cruz como sinal de salvação não
passa de um absurdo que ao longo da História não deixará de perturbar a própria cons-
ciência cristã. Bem cedo, algumas camadas cristãs deitam mão da gnose para suavizar
e superar a loucura e o escândalo da Cruz. As rosas. Traduz-se a Cruz nas categorias do
humanismo filosófico e conforma-se o logos tou staurou com a sensibilidade do mundo
helenista. A coroa de rosas à volta da Cruz, qual erva daninha, parasita, esvazia-a, re-
du-la a nada; transforma-a cm anti-sinal, em estandarte dos poderes mundanos e sinal
da mais obscura alienação religiosa. Karl Marx, referindo-se às rosas escreve: «A crítica
arrancou, uma a uma, todas as rosas ilusórias da cadeia, não para que o homem arraste
esta cadeia sem ilusões e na desolação, mas a fim de se libertar cortando rente as flores
que sobre ela vegetam» (Karl Marx, Frühschriften, 1953, 208).
64
Nos nossos dias, a crítica à religião quere-a assim nua e crua, despida das rosas que a
piedade e o humanismo cristãos entreteceram à sua volta, escândalo indisível por con-
tradizer «o humano e racional» (segundo Goethe); a idéia de justiça, de beleza e de mo-
ralidade. Para Feuerbach «um Deus crucificado é uma contradição ridícula e uma ideia
miseramente condenada»; para Nietzsche a fé na Cruz representa a mais inaudita e hor-
renda inversão de valores; a mais absurda c temerária manipulação dos factos, ao ponto
de o crucificado nada ter a ver com a «Religião da Cruz». «Em última análise — escreve
Nietzsche — existiu um só cristão e esse morreu na cruz» (Fr. Nietzsche, Werke VII, 265).”
Fonte: Ferreira (1984, on-line)10.
65
1. Para os não-cidadãos romanos, a chance de ter uma vida boa dependia da boa
relação com o patrono e, conforme a posição do patrono na escala social, da
relação do patrono com os que lhe eram superiores.
( ) FALSO ( ) VERDADEIRO
2. As cartas de Paulo aos coríntios mostra que havia conflitos e divisões nas comu-
nidades de seguidores de Jesus. Qual era a razão principal, a razão primária,
dessas divisões?
a) Prestígio pessoal de Pedro, Paulo ou Apolo.
b) Diferentes doutrinas a respeito do Messias.
c) Diferentes lealdades a diferentes patronos.
d) Localização das comunidades na cidade.
e) Nenhuma das anteriores.
3. Que termo caracteriza os discursos judaico e grego, segundo Badiou? Ape-
nas uma resposta correta, na ordem respectiva (judaico primeiro, depois grego):
a) Sinais e Milagres.
b) Sabedoria e Prestígio.
c) Sinais e Lealdade.
d) Honra e Prodígios.
e) Sinais e Sabedoria.
4. Leia os seguintes versículos de 1 Coríntios 1: “Ora, a mensagem da cruz é loucura
para os que perecem, mas para nós, os que somos salvos, é potência de Deus, pois
está escrito: destruirei a sabedoria dos sábios e anularei a inteligência dos inteli-
gentes.” Quais são os segmentos em que esse pequeno trecho está dividido?
66
A Mensagem de 1 Coríntios
David Prior
Editora: ABU
Sinopse: comentário homilético sobre a primeira carta aos coríntios.
Reflexão prática e atualizada sobre a vida de uma igreja local.
Material Complementar
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS ON-LINE
1
Em: <http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/home.html>.
Acesso em: 05 jun. 2017.
2
Em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/historiaherodoto.pdf>. Acesso
em: 05 jun. 2017.
3
Em: <http://www.nestle-aland.com/en/read-na28-online/>. Acesso em: 17 maio
2017.
4
Em: <https://research-repository.st-andrews.ac.uk/handle/10023/493>. Acesso
em: 18 maio 2017.
5
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=d39e>. Acesso em: 18 maio 2017.
6
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=gloria>. Acesso
em: 18 maio 2017.
7
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Vangl%-
C3%B3ria>. Acesso em: 18 maio 2017.
8
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=zanRM>. Acesso em: 18 maio 2017.
9
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Orgulho>. Acesso
em: 18 maio 2017.
Em: <http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/15106/1/V0140102-003-010.
10
1) FALSO.
2) C.
3) E.
4) SEGMENTO 1: Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que pe-
recem, mas para nós, os que somos salvos, é potência de Deus,
SEGMENTO 2: pois está escrito: destruirei a sabedoria dos sábios e anularei a
inteligência dos inteligentes.
5) Na avaliação dessa pergunta deve ser dada bastante liberdade ao estudante, o
avaliador deverá apenas verificar se o estudante consegue fazer uma relação en-
tre a sua releitura e o texto de 1 Coríntios.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
II
UNIDADE
FILIPENSES 2,5-11
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
teológica da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
psicossocial da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
missional da ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão psicossocial da ação
■■ A dimensão missional da ação
73
INTRODUÇÃO
Introdução
74 UNIDADE II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO
TEXTO E TRADUÇÃO
Tradução:
Tende em vós a mesma atitude e mentalidade que há também no Messias Jesus:
(a) O qual, mesmo existindo na condição de Deus,
não considerou como algo de que deveria tirar vantagem
o ser igual a Deus;
(b) antes, a si mesmo se esvaziou,
recebendo a condição de escravo,
tornando-se semelhante a ser humano;
(c) e, reconhecido como ser humano,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Humilhou-se a si mesmo,
tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.
(c’) Pelo que também Deus o exaltou acima de tudo
e lhe deu o nome
que está acima de todo nome,
(b’) para que ao nome de Jesus
se dobre todo joelho,
nos céus, na terra e debaixo da terra,
(a’) e toda língua confesse
que o Messias Jesus é Senhor (YHWH),
para glória de Deus Pai.
(tradução do autor)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
trata de “ser”, mas de mover-se, de relacionar-se de um determinado modo, de
constituir a divindade no próprio esvaziamento do ser divino e na transposição
das fronteiras que separam o divino do humano:
(a) Jesus, Deus que não considera usurpação ser igual a Deus versus (a’) Jesus,
confessado como Deus por toda a criação;
(b) O escravo sem valor que dobra os joelhos perante o seu senhor versus
(b’) o nome diante do qual se dobra todo joelho; e
(c) Jesus, o auto-humilhado versus (c’) Jesus, o exaltado pelo Pai.
O CONTEXTO DE FILIPENSES
sua relação com Roma, mediante o chamado ius italicum (direito italiano), que
podem ser percebidos na narrativa de Atos 16 sobre a estada de Paulo na cidade
(conflito com judeus e gentios na cidade, prisão e julgamento perante autoridades
‘romanas’). A mentalidade de uma cidade romana estava intensamente ligada à
legitimidade do Império e do poder do imperador, marcada, principalmente, pela
presença do culto ao imperador como salvador, de modo que não nos devemos
surpreender com o movimento teológico do hino que, como veremos na análise
exegética, se contrapõe ao movimento ideológico do Império com sua pregação
da pax romana (paz romana) como fruto da conquista militar. De acordo com
[...] o culto de Augusto, como o de seus filhos adotivos Gaio e Lúcio Cé-
sar, já existiam em Filipos quando Paulo chegou à cidade. O culto de
Lívia fora introduzido por Cláudio em 44 d.C., mas o apóstolo pode não
ter visto o monumento com as estátuas das sete sacerdotisas em frente ao
templo, porque provavelmente ainda não fora construída antes da segun-
da metade do século I d.C. (KOUKOULI-CHRYSANTAKI, 1998, p. 16).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Pessoas:
Vós (5) ‘tende em vós a mesma atitude...’
Messias Jesus (5) ‘que há também no Messias Jesus’; (6) ‘existindo na con-
dição de Deus’ ‘não considerou ...’ (7) ‘a si mesmo se esvaziou’ ‘recebendo ...’
‘tornando-se ...’ (8) ‘reconhecido como ser humano’ ‘humilhou-se a si mesmo’,
‘tornando-se obediente...’ (9) ‘Deus o exaltou ...’ (10) ‘para que ao nome de Jesus...’
morte (por eles e morte como escravo condenado como subversivo); (c) em rela-
ção a si mesmo, o Filho não considera vantajoso ser divino; (d) a exaltação do
Filho pelo Pai, que inverte a sua condição de escravo (o mais inferior de todos)
e o coloca com reputação superior (acima de todos); (e) na descida do Filho ele
é reconhecido como humano (pelos seres humanos? o texto deixa indefinido o
sujeito); (f) a partir de sua exaltação, ele poderá ser reconhecido e confessado
como Senhor por toda a criação. Essa situação relacional aponta claramente
para a questão da identidade social e pessoal que, em Filipos, estava diretamente
ligada à ideologia do Império Romano.
Espaço:
Esvaziou-se (7), humilhou-se (8) implicam descida
Exaltou acima de tudo (9), ‘nome acima de todo nome’ (9)
Céus, terra, debaixo da terra (10)
Do ponto de vista do espaço, temos um movimento de descida do Filho
(primeira parte do hino), seguido de um movimento de exaltação do Filho pelo
Pai (segunda metade), que tem como efeito o reconhecimento do senhorio do
Messias em todos os espaços criados (céu, terra, debaixo da terra). A espaciali-
dade cósmica presente no texto bíblico ecoa a espacialidade cósmica evocada
no culto ao imperador exaltado no céu, representado na terra por seus sucesso-
res e reconhecido como Senhor pelos súditos imperiais.
Tempo:
Tende (5) imperativo [imperativo presente]
Há (5) presente indicativo [sem verbo no grego]
Existindo (6) gerúndio [particípio presente]
Não considerou (6) pretérito perfeito [aoristo]
Deveria tirar vantagem (6) locução verbal futuro+infinitivo [sem verbo
no grego]
Ser igual a (6) infinitivo [infinitivo presente]
Esvaziou-se (7) pretérito perfeito [aoristo ativo]; recebendo (7) gerúndio
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[particípio aoristo]; tornando-se (7) gerúndio;
Reconhecido (8) particípio [particípio aoristo passivo]; humilhou-se (8) pre-
térito perfeito [aoristo ativo]; tornando-se [particípio aoristo médio] (8) gerúndio
Exaltou (9) pretérito perfeito [aoristo ativo]; deu o nome (9) pretérito per-
feito [aoristo ativo]; está (9) presente indicativo [sem verbo no grego]
Se dobre (10) presente [subjuntivo aoristo]
Confesse (11) presente [subjuntivo aoristo]
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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO
Esta é uma das passagens mais belas das cartas paulinas em sua descrição da
messianidade de Jesus. Não poderemos discutir todos os seus aspectos exegéti-
cos e teológicos, por isso focaremos na natureza da messianidade de Jesus e sua
identidade. Para iniciar, apresento algumas reflexões sobre as relações interdis-
cursivas de nossa perícope.
Explícita no texto, encontramos uma citação de Is 45,23 (mais adiante apre-
sento a perícope de que esse verso faz parte); já no verso 11 de Filipenses 2,
devemos ver, também, uma alusão a Zc 14,9 (YHWH será rei sobre toda a terra;
naquele dia, um só será YHWH, e um só será o seu nome).
Implícitas no texto, encontramos as seguintes relações interdiscursivas:
a. Predominantemente contratuais em relação a tradições da própria
Escritura: alusão à tradição da Sabedoria preexistente (Pv 8 e similares);
alusão à noção de imagem de Deus em Gênesis 1 e 5 (consequentemente,
alusão ao paralelo entre Adão e o Messias em Romanos 5); e alusão aos
poemas do escravo executado em Isaías 42; 49; 50 e 52,13-53,12;
Nesse campo das relações polêmicas com a ideologia imperial romana, pode-
mos citar Hellerman:
[...] Fp 2:6-11 constitui a resposta contracultural de Paulo à corrente
ideologia romana do cursus – os versos 6-8 representam um cursus ho-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
norum invertido [...] Uma analogia não rígida sugere que Paulo apre-
senta Jesus – o ‘honorando’ em Filipenses 2 – como o exemplum, par
excellance da virtude cristã, a fim de encorajar outros na comunidade
cristã a adotar a mesma atitude em relação ao poder e ao status social
em suas relações mútuas (HELLERMAN, 2005, p. 203).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mando-se) em semelhança de homem (homoiomati anthropou) e achado
em forma de homem (hos anthropos)”. O paralelismo com Rm 8,3 chama
muito a atenção. E o que quer que signifique precisamente, parece denotar
que Cristo na sua vida, antes da sua morte, foi considerado representante
da humanidade. Foi este fato que deu à sua morte o seu significado, como
a morte que derrotou o poder do pecado e da morte para a humanidade.
Fonte: Dunn (2003, p. 247).
desonras da humanidade (uma nova de-posição); que anuncia (e) a não imposi-
ção da soberania divina [em contraste com a imposição da soberania de César],
mas, soberania que possibilita sua (f) transposição de volta com Deus, a qual,
porém, não implica a (g) de-posição da humanidade, mas a re-com-posição da
humanidade e de toda a criação na reconciliação com Deus.
Encontramos dois verbos que explicam a ação do Deus-Filho com vistas a
sua atuação como o Messias Jesus: esvaziou-se e humilhou-se. Ambos os verbos
são usados na voz ativa, que destaca Jesus como agente e não como paciente des-
sas ações. Esses verbos, especialmente o primeiro, possuem uma longa história
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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A cruz é o cerne da teologia de Paulo. Ao incluir no hino essa frase (morte
de cruz), o apóstolo objetiva solidificar essa doutrina junto à comunidade
de Filipos, uma vez que os judaizantes percorriam as comunidades aprego-
ando heresias.
(Wander de Lara Proença)
[...] 18 Porque assim diz YHWH, que criou os céus, o Deus que formou
a terra, que a fez e a estabeleceu; que não a criou para ser um caos, mas
para ser habitada: Eu sou YHWH, e não há outro. 19 Não falei em segre-
do, nem em lugar algum de trevas da terra; não disse à descendência de
Jacó: Buscai-me em vão; eu, YHWH, falo a verdade e proclamo o que
é direito. 20 Congregai-vos e vinde; chegai-vos todos juntos, vós que
escapastes das nações; nada sabem os que carregam o lenho das suas
imagens de escultura e fazem súplicas a um deus que não pode sal-
var. 21 Declarai e apresentai as vossas razões. Que tomem conselho uns
com os outros. Quem fez ouvir isto desde a antiguidade? Quem desde
aquele tempo o anunciou? Porventura, não o fiz eu, YHWH? Pois não
há outro Deus, senão eu, Deus justo e Salvador não há além de mim. 22
Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu
sou Deus, e não há outro. 23 Por mim mesmo tenho jurado; da minha
boca saiu o que é justo, e a minha palavra não tornará atrás. Diante
de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua (BÍBLIA, Isaías
45,18-23).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Jesus Cristo é Senhor, é confissão que representa o ponto mais alto do dra-
ma da salvação, delineado nestes versículos poéticos. Agora, finalmente, a
soberania sobre o mundo, que fora exibida diante do Senhor pré-encarna-
do, como um prêmio a ser arrebatado, é livremente concedida a ele. Cristo
recebe o novo nome, que não é outro senão o próprio nome de Deus e, com
ele, o direito ao senhorio. Os crentes que entoam este hino pagam tributo a
quem governa suas vidas e suas comunidades (Rm 10,9; 1Co 8,5.6; 12,3; Cl
2,6) e relembram sua promessa no batismo, pelo qual foram introduzidos
numa nova era de cumprimento escatológico e num mundo novo de recon-
ciliação cósmica. Aqui está a grande importância do estudo de E. Käsemann,
que demonstra, seguindo Lohmeyer, que o clímax do hino não é a manifes-
tação de piedade pessoal, mas o sinal de que uma nova era iniciou-se na
Igreja e no mundo.
Fonte: adaptado de Martin (1998, p. 115).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
como algo de que deveria tirar vantagem o ser igual a Deus”; (2) “a si mesmo
se esvaziou”; (3) “assumindo a condição de escravo”; (4) “tornando-se seme-
lhante a ser humano”; e (5) “humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente
até à morte e morte de cruz”.
Se transformarmos esses verbos em modalizações do sujeito, o que encon-
tramos é algo absolutamente incomum nas diferentes descrições (semióticas e/
ou filosóficas) das paixões: a abnegação, uma paixão caracterizada pelo querer-
-não-ser, crer-ser, saber-poder-ser – uma paixão complexa enquanto combinação
de aflição, segurança e confiança (normalmente, em semiótica, se falará de pai-
xões que combinam aflição e insegurança, esperança e segurança, satisfação e
confiança).
A abnegação é uma paixão peculiar, na medida em que combina a aflição
sentida e sofrida pelo sujeito, causada pela disjunção em relação ao objeto-va-
lor, com a esperança segura de resolver a disjunção e a confiança da entrada em
conjunção com o objeto-valor. Nesse caso, porém, a morte é o modo concreto,
mediante o qual o Messias entra em conjunção com seu objeto-valor: a honra
(‘ser igual a Deus’) de toda a criação divina e, em especial, nessa perícope, a honra
de todas as pessoas desonradas pelo Império Romano ou por qualquer outro sis-
tema de classificação de pessoas, baseado em uma honra disponível apenas para
alguns (para uma elite).
A descrição das ‘ações’ do Messias mostra que a abnegação é um complexo
passional que inclui a generosidade, o desprendimento, o amor ao próximo, a
auto-humilhação e a renúncia radical de si e da identidade atribuída a si (por si
mesmo ou pelos outros), visando ao bem-estar pleno e radical de toda a criação
(c) 9 διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν
ὄνομα, ... ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων 11 καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς.
A abnegação do Messias corresponde à exaltação do Messias por Deus, ou seja,
a doação a ele de um nome acima de todo nome, de uma honra muito maior do
que qualquer honraria. Em outras palavras, o Messias Jesus desonrado passa a ser
o Messias Jesus hiper-honrado, reconhecido, agora, como Senhor, ou seja, como
YHWH (equivalente ao ‘ser igual a Deus’ de que o Messias renunciou e o oposto
do ‘reconhecido como ser humano’). A este complexo movimento sociocultural
e político do cursus pudorum (caminho da humilhação) para o cursus honorum
(caminho para a exaltação), o texto anexa uma ação duplamente textualizada:
‘todo joelho se dobrará’ e ‘toda língua confessará que o Messias Jesus é YHWH”.
Do ponto de vista passional, encontramos, então, na ação dos humanos em
resposta à exaltação do Messias, a paixão contrária à revolta, a saber: a concilia-
ção ou a tranquilidade. Pressupõe-se, assim, que a humanidade está em rebelião
contra Deus, submissa aos impérios humanos, submissão, porém, que conduz
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Filho mostrou radical abnegação, o Pai mostra não menos que radical despren-
dimento, pois sua honra não é sua própria, mas compartilhada com a do Filho.
Em última instância, encontramos uma plena identificação entre o Pai e o
Filho, tema que João desenvolve com extrema sensibilidade e beleza no capítulo
17 de seu Evangelho:
[...] tendo Jesus falado estas coisas, levantou os olhos ao céu e disse: Pai,
é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti,
assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que
ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta:
que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste. Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste
para fazer; e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que
eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo (BÍBLIA, João 17.1-5).
Temos, assim, nessa perícope, uma poderosa imbricação entre os valores polí-
ticos e socioculturais e as paixões individuais. Imbricação esta que encontra sua
textualização na exortação inicial de Paulo: “froneite”. Usando a terminologia do
dispositivo, o sistema de honra, no mundo paulino, orientava a vida das pessoas
a buscarem cada vez mais honra para si e menos para os demais, especialmente
os ‘abaixo’ da pessoa em busca de honra – um sistema classificatório altamente
hierárquico e elitista. Sob esse dispositivo, as paixões individuais elicitadas eram
mistas (revolta contra os ‘superiores’ e submissão ao ‘sistema’ que possibilitaria
a ascensão), mas certamente não derivadas do desprendimento, nem da gene-
rosidade e, muito menos, da abnegação.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
lismo como um modo de entender o mundo e a vida sem a necessidade da fé
ou de Deus. O racionalismo, enquanto sintoma do secularismo, é uma atitude
preconceituosa contra tudo o que não for passível de explicação naturalista, ou
seja, qualquer deus, ou ser ‘sobrenatural’, espiritual etc.
Algumas especificações são necessárias aqui. O ateísmo não é, necessariamente,
racionalismo – uma pessoa pode não crer em nenhum tipo de divindade a partir de
razões não preconceituosas. Da mesma forma, a ciência não é racionalismo. O método
científico não pode incorporar deus em sua atividade, mas isso não é preconceituoso.
Uma pessoa racionalista pode até crer em Deus, mas sempre tomará suas decisões
com base na experiência humana cotidiana, com base nas relações de causa-efeito
apenas, sem jamais levar em conta que Deus pode agir ou participar da vida humana.
(2) Individualismo. A pessoa individualista é aquela que organiza toda a sua
vida a partir de seus próprios interesses e propósitos. O individualismo é uma
forma egoísta, egocêntrica da pessoa entender e viver a sua individualidade.
A pessoa individualista, sempre que necessário (e mesmo quando não), usará
outras pessoas para atingir os seus próprios objetivos, sem se importar se a pes-
soa usada será beneficiada ou não.
No individualismo não somos capazes de nos ver como pessoas que preci-
sam de outras pessoas tão dignas de ter uma vida digna e bem-sucedida como
nós mesmos. A pessoa individualista trata as demais pessoas como meios e não
como fins em si mesmas. Ela não se preocupa com o bem-estar do próximo, não
se interessa pela vida de outras pessoas e, em casos extremos que, infelizmente,
não são pouco numerosos hoje em dia, ela sequer é capaz de viver em família,
de levar em consideração as necessidades de filhos, irmãs, esposa ou esposo etc.
injusto, ainda que eficiente como produtor de bens, mas também na base das dis-
torções profundas que fazem da democracia um arremedo do que ela deveria ser.
A pessoa individualista é, então, aquela que luta predominantemente para
acumular, cada vez mais, capital e poder político e, assim, dominar a sociedade.
Quantos projetos políticos emancipadores se tornaram, ao chegar ao poder, pro-
jetos opressores? Quantas desilusões os eleitores experimentam quando seus
candidatos efetivamente chegam ao poder? No campo político, o desejo de per-
manecer no poder é a forma mais concreta do individualismo.
(3) O outro lado da moeda do individualismo é o consumismo. Assim como
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o individualismo é a vivência pecaminosa da individualidade, o consumismo é
a prática pecaminosa do consumo. Consumir é uma atividade econômica indis-
pensável à vida; o consumismo, porém, não é indispensável, nem necessário.
Consumismo é o modo de vida caracterizado pelo desejo permanente e cres-
cente de consumo de objetos, experiências, bens, serviços e relações humanas,
em função do seu significado público, ou seja, em função da imagem pública
que a posse do que foi consumido atribui à pessoa consumista.
A pessoa consumista transforma todas as coisas em objetos de consumo, que
são, simultaneamente, objetos de desejo. Ao fazer isso, torna-se, ela mesma, em
um objeto, encontrando sua satisfação e sua identidade não mais em si mesma
e nas suas relações com outras pessoas, mas na posse dos objetos que deseja. A
pessoa consumista transforma todas as demais pessoas em objetos e se relaciona
com elas a partir do amor-próprio ou, em uma linguagem mais aberta da psi-
cologia, a partir do desejo.
De acordo com o sociólogo polonês Bauman:
[...] o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes,
associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades [...], mas a
um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por
sua vez, implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos des-
tinados a satisfazê-la (BAUMAN, 2008, p. 44).
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que manifestam os sinais externos da fé, mas não entregaram de fato suas vidas
a Deus e, ainda, vivem na carne. São aquelas pessoas que só ficam na igreja se
ganharem alguma coisa.
Cristãos carnais, ou egocêntricos, são aqueles que recebem o juízo de Jesus:
[...] em todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me diräo
naquele dia: Senhor, Senhor, näo profetizamos nós em teu nome? e em
teu nome näo expulsamos demónios? e em teu nome näo fizemos muitas
maravilhas? E entäo lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-
-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade (BÍBLIA, Mateus 7,21-23).
Diante dos desafios concretos de viver em um mundo secular sem nos tornar-
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a tese agora apresentada por Vattimo, por exemplo: “[...] secularização, como
uma vez afirmou o teólogo alemão Friedrich Gogarten, é a consequência legí-
tima do impacto da fé bíblica na história” (COX, 2013, p. 21).
No conjunto, porém, o livro de Cox se dedica mais à cultura urbana e não à secu-
larização e secularismo enquanto tais. Em várias de suas obras, mas especialmente
no livro Depois da Cristandade, Vattimo defende a tese de que a secularização não
deve ser interpretada contra o Cristianismo, mas sim, a partir do Cristianismo. Em
vários lugares desse livro, o autor defende a tese de que ‘o Ocidente é o Cristianismo
secularizado, e nada mais’ (tese que, de uma forma ou outra, tem sido reconhe-
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cida e adotada por vários autores que não seguem o conjunto do pensamento do
filósofo italiano). Assim, se queremos entender o mundo secular, não podemos
prescindir de entendê-lo a partir do Cristianismo, e não mais contra o Cristianismo.
Em que sentido Vattimo apresenta essa tese:
[...] se seguirmos teologias contemporâneas inspiradas por Barth e Bo-
nhoeffer, concebendo a secularização como o locus onde Deus é reve-
lado em sua transcendência radical, teremos de entender este processo
não tanto como um salto ou uma superação, mas como o cumprimento
da história da salvação, que é dirigida, desde a sua origem, pela morte
de Deus como a dissolução do sagrado – o evento que São Paulo chama
de kenosis (VATTIMO, 2002, p. 68).
Voltaremos a essa citação para discuti-la com mais detalhes. Agora, porém, chamo
sua atenção para a consequência desta afirmação para o conceito de secularização:
[...] deve ser acrescentado aqui que secularização não é um termo em
contraste com a essência da mensagem [cristã], mas, ao contrário, é
constitutivo dela. A encarnação de Jesus (a kenosis, a auto humilhação
de Deus), como um evento salvífico e hermenêutico, já é, de fato, uma
ocorrência arquetípica da secularização (VATTIMO, 2002, p. 67).
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conseguimos chegar perto de praticar o sacerdócio universal dos santos, também,
ainda, não chegamos perto de praticar o Reino como critério para viver na igreja.
Em terceiro lugar, consequentemente, o destino da história da salvação não
pode mais ser entendido como a edificação da Igreja como uma instituição pode-
rosa, que derrota ‘este mundo’ e impõe, ao ser humano, a vida ‘do outro mundo’,
enquanto espera a destruição ‘deste’. De fato, não devemos nos preocupar com o
destino da igreja, mas com sua destinerrância, para usar um neologismo inven-
tado por Jacques Derrida. Destino + errância, o destino da igreja é a errância
ou, se preferirmos, a peregrinação. Destinerrantes como o Messias Jesus inse-
rido radicalmente no mundo, vivendo como um ser humano, sofrendo tudo o
que um ser humano sofre, entregando-se radicalmente ao destino de todo o ser
humano: a morte (Cf. DERRIDA, 2007, in passim).
Auto entrega que destrói o poder da morte, não a anulando, mas revelando
o seu sentido radical: o caminho para a ressurreição (cf. 1Co 15). Traduzindo
para uma linguagem bem concreta: a missão da Igreja não é o seu próprio cres-
cimento e sua autopreservação, é, ao contrário, sua kenosis seguindo o caminho
trilhado pelo Messias. Usando um exemplo mais próximo de nossa visão limi-
tada, a missão da Igreja é similar à de João Batista: ‘convém que o Reino cresça
e eu diminua’! Como, porém, é difícil seguir a Jesus em seu auto esvaziamento!
Preferimos que a Igreja cresça e, quem sabe, faremos o reino crescer junto com
ela. Ainda somos os mesmos e vivemos sob o signo da Cristandade.
Em quarto lugar, a radical transcendência de Deus revelada no Messias Jesus
se manifesta, também, como a ‘dissolução do sagrado’, ou melhor, contradizendo
Vattimo, como a dissolução do profano. Nada há de profano neste mundo. Ele é
criação de Deus, perfeita, plena. Somente nossas ações pecaminosas é que pro-
fanam a criação divina. Não é essa definição uma interpretação legítima da visão
de Pedro em Atos 10? Não é a visão de Pedro, em Atos 10, uma interpretação
legítima da fala de Jesus de que só é impuro o que sai do ser humano e não o que
nele entra? Não estava certo Paulo ao afirmar que ‘para os puros tudo é puro? Se
interpretarmos a secularização, com essa chave teológica cristocêntrica, como
a dissolução do profano, então todo o mundo volta a ser colocado debaixo do
senhorio de Deus – tudo volta a ser sagrado, ou seja, consagrado a Deus.
Democracia, razão, ciência, tecnologia etc., não são o resultado do embate
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humano contra Deus, não são a profanação do caminho divino para o ser humano.
São, em forma imperfeita e ambígua, expressão humana do permanente e jamais
abalado senhorio divino em sua criação! Tudo o que há de bom neste mundo é
fruto da amorosa ação criadora e redentora de Deus. Se aceitarmos que política,
economia, ciência, mídia, arte etc. são realidades profanas, estaremos aceitando a
tese do secularismo. Se aceitarmos o dualismo sagrado-profano, negaremos que
o mundo foi criado por Deus e que o mal entrou nele mediante nossa própria
ação: ‘por um homem entrou o pecado no mundo’ afirmava Paulo. ‘Do Senhor
é a terra e tudo o que nela há’ é poderoso antídoto contra o secularismo. Só não
podemos incorrer no fundamentalismo e tratar o sagrado como o oposto do pro-
fano e tentarmos impor o modo de vida cristão a toda a sociedade.
Em quinto e último lugar, pelo menos nos limites desta fala, compreender
a kenosis do Messias como uma forma arquetípica da secularização nos ajuda a
repensar o nosso conceito de Deus, tão marcado pelo pensamento secularista.
Estamos acostumados a pensar em Deus como o todo-poderoso, capaz de destruir
todos os seus inimigos, de transformar todas as realidades ruins em realidades
boas para as pessoas que O amam. Em muitos casos, até reduzimos Deus a um
despachante-resolvedor de problemas. Esse é um conceito forte de Deus, um
conceito cheio. E se passarmos a pensar em Deus como um Deus fraco, como
um Deus quenótico? Se pensarmos e nos relacionarmos com Deus nos moldes
da radical descrição de Paulo em 1 Coríntios 1,21-24 (BÍBLIA):
Que tal pensar no poder de Deus como um poder “que se aperfeiçoa na fra-
queza” (2Co 12,9)? A radicalidade do poder de Deus está no fato de que, sendo
Deus, eterno e imortal, ele pode morrer por sua criação. Que tal pensar na sabe-
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doria de Deus como a sabedoria revelada na cruz do Messias? Se a kenosis for a
chave hermenêutica para a teologia cristã, retornaremos à centralidade da cruz
de Cristo na teologia cristã. Se retornarmos à centralidade da cruz de Cristo em
nossa teologia, poderemos interpretar toda a história humana e da criação inteira
como a manifestação do poder salvífico da morte do Filho de Deus.
A história toda, em sua ambiguidade, em sua revelação do pecado humano é,
também, a manifestação do poder de Deus, o poder da Cruz revelado na ressurrei-
ção de Jesus (Fp 2,5-11). Se passarmos a ver a história humana assim, poderemos
viver e praticar a fé cristã como radical expressão do amor de Deus que se con-
cretiza no ‘amor ao próximo como a nós mesmos’, cumprindo toda a Lei, como
Paulo afirmou aos gálatas. A secularidade, lida à luz da kenosis, é o palco em
que podemos amar as pessoas neste mundo, vivendo missionariamente como
o Messias, que nos envia ao mundo como o Pai o enviou ao mundo (Jo 20,21).
seguindo os passos do Messias Jesus. Talvez você se pergunte agora, ao final desta
fala: “mas, e a prática”? Cá entre nós, não há nada mais prático do que uma boa
‘teoria’ teológica do presente. Enfrentar o secularismo inicia com a reflexão sobre
o nosso tempo e se concretiza na prática da messianidade, da cristocentricidade
no dia a dia pessoal e eclesial. Teologia da secularidade: um desafio público para
enfrentar o racionalismo, o individualismo e o consumismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem! Chegamos ao final de mais uma jornada exegética e teológica! Espero
que você tenha prestado bastante atenção ao processo metodológico que tenho
seguido e tenha se motivado a fazer, você mesmo, a exegese de outros textos bíbli-
cos, usando criticamente a metodologia que está aprendendendo.
Tenho procurado mostrar diferentes ênfases e possibilidades de aplicação
do método, a fim de que você reconheça que um método não é uma ferramenta
exata e rígida, que só permite um uso e uma aplicação possível. Tenho mos-
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trado que há diferentes maneiras de usar as regras do método e que, no final
das contas, é a compreensão dos sentidos e possibilidades de sentido e ação que
o texto oferece que deve ser o objetivo final. O que importa é entender o texto,
o método é uma ferramenta.
Nesta unidade, mostrei como a análise da dimensão missional da ação pode
ser feita mediante uma reflexão teológica. Embora o resultado seja bem diferente
do de outros tipos de releitura, os passos são os mesmos: verificamos um dos
temas do texto, vemos como esse texto funcionava em sua época (que dimensões
da vida ele afetava) e procuramos uma dimensão da vida atual e uma temática
correspondentes.
Neste caso, optei por uma releitura a partir da dimensão sociocultural - o
texto lidava com essa dimensão na cultura greco-romana a partir do conceito
de honra e da relação da autoridade política com a honra. Escolhi o tema socio-
cultural da secularização para refletir sobre a releitura do texto e aproveitei uma
reflexão do filósofo Gianni Vattimo para fazer a minha própria releitura.
Note, também, que tenho procurado mostrar que, embora a fase final seja
didaticamente dividida em cinco ciclos, não somos obrigados a seguir rigida-
mente ciclo por ciclo, podemos ver, em cada ciclo, elementos dos demais. De
fato, você verá que, quando já estiver familiarizado com o método, é possível
seguir os procedimentos do método sem ficar preso à divisão em ciclos. Use o
método até que ele se torne SEU!!
Paz e bem!
O QUE É KÉNOSIS
“Kenose: Kénosis, kenótico, de kenoo, esvaziar, extenuar, reduzir a nada; estado de hu-
milhação [...]”. “A sua significação teológica está no fato de o Novo Testamento utilizá-la
para expressar a realidade de Jesus Cristo, Filho/Verbo de Deus que, sendo Deus, a Se-
gunda Pessoa da Trindade, aniquilou-se, humilhou-se e assumiu a condição humana”.
Sendo humano tornou-se servo.
A palavra kénosis é uma herança da Patrística Oriental que trata do movimento, da dina-
micidade de Deus que vem ao encontro do humano. Para os orientais, o conhecimento
só se dá no relacionamento. Portanto, Deus, para ser conhecido e conhecer o humano,
deve ir ao encontro desse humano, relacionar-se com ele, e se dar a relacionar. O termo
foi fundido a partir do hino de Filipenses 2, 6-11. Kénosis é o sair de si sem deixar de ser
o “si” mesmo. É um auto-esvaziamento. É se esvaziar para se encontrar no outro, sem
perder a própria identidade.
Entretanto, a kénosis de Deus não se dá somente na pessoa de Jesus, ela é trinitária. Há
dois momentos kenóticos: 1 – quando falamos de Trindade imanente, ad intra, no Deus
em si mesmo. Balthasar a chama de kénosis primordial (primeira kénosis ou original). É
uma ação dinâmica, teológica donde o amor não se contém; ele transborda. Ela se dá
nas relações internas entre as Pessoas da Trindade. Chamamos essa relação de pericore-
se (termo fortemente cristológico-trinitário). É o Pai que se esvazia de sua condição de
Pai para se encontrar no Filho, sem deixar de ser Pai; o Pai só é Pai em relação ao Filho,
e o Filho que se esvazia de sua condição de Filho para se encontrar no Pai, sem deixar
de ser Filho; o Filho só é Filho em relação ao Pai, e o Espírito Santo que é o próprio amor
kenótico e a relação; o Espírito se dissimula do seu ser pessoa para ser a relação de amor
entre o Pai e o Filho; ele é o movimento, a dinâmica, sem deixar de ser hipóstase (pes-
soa); é Pessoa-dom-que-se-dá. Fica abscôndito, como que dissimulado na relação e no
amor entre o Pai e o Filho. O Pai é o amor que se doa, é o AMANTE; o Filho é o amor que
recebe, o AMADO, e o Espírito é o próprio AMOR. 2 – Na Trindade econômica, no Deus
que se revela na história da salvação e na nossa história, é a kénosis na nossa história. É
o projeto de amor do Pai que se inicia na criação e na história do povo eleito, se plenifica
no Filho por meio do Espírito até nossos dias. Sobre isto, que iremos aprofundar.
A kénosis é um escândalo, fruto, somente, de um manikon eros. Este amor louco brota
da liberdade de Deus. Liberdade que busca o relacionamento na Trindade até o relacio-
namento histórico e permanente consigo e com o humano. Ela foi tratada na patrística,
referindo-se a pessoa de Jesus Cristo, segunda pessoa divina da Trindade. Com a te-
ologia moderna, surgiram várias teorias (luterana, calvinista, da escola de Giessen, da
escola de Tubingen) as quais, apesar das divergências, afirmavam que a Kénosis afeta
diretamente a humanidade. “Elas consideravam a exaltação e a humilhação de Cristo
tão somente segundo sua natureza humana e não uma humilhação do próprio Filho de
Deus. Dessa maneira, eles não tocam o ponto central da kénosis”.
108
1) B.
2) Verdadeira.
3) D.
4) Pode-se dar certa liberdade ao estudante, mas deve mostrar, principalmente,
que o esvaziamento significa que o Messias assumiu a desonra humana ao assu-
mir a condição de escravo e que, por isso, Deus o exaltou e lhe deu a Honra que
está acima de toda e qualquer outra honra.
5) Também podemos dar liberdade ao estudante, mas, de alguma forma a releitu-
ra, terá de abordar a atitude da humildade.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
III
UNIDADE
MARCOS 2,13-17
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
teológica da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
missional da ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
117
INTRODUÇÃO
Olá! Estamos iniciando a nossa terceira Unidade. O texto para interpretação será
Marcos 2,13-17 e nosso trabalho terá a seguinte estruturação:
No Tópico 1 exemplificarei a você os procedimentos da fase preparatória da
exegese: a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua
segmentação e estruturação. Depois, apresentarei, para nossa reflexão, alguns
dos principais aspectos do contexto do Evangelho de Marcos. Enfim, tendo em
vista o gênero textual do livro, discutiremos o lugar de Mc 2,13-17 no conjunto
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Introdução
118 UNIDADE III
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FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO
TEXTO E TRADUÇÃO
Καὶ ἐξῆλθεν πάλιν παρὰ τὴν θάλασσαν· καὶ πᾶς ὁ ὄχλος ἤρχετο πρὸς αὐτόν, καὶ
ἐδίδασκεν αὐτούς. 14 καὶ παράγων εἶδεν Λευὶν τὸν τοῦ Ἁλφαίου καθήμενον ἐπὶ
τὸ τελώνιον, καὶ λέγει αὐτῷ, Ἀκολούθει μοι. καὶ ἀναστὰς ἠκολούθησεν αὐτῷ.
15
Καὶ γίνεται κατακεῖσθαι αὐτὸν ἐν τῇ οἰκίᾳ αὐτοῦ, καὶ πολλοὶ τελῶναι καὶ
ἁμαρτωλοὶ συνανέκειντο τῷ Ἰησοῦ καὶ τοῖς μαθηταῖς αὐτοῦ· ἦσαν γὰρ πολλοὶ
καὶ ἠκολούθουν αὐτῷ. 16 καὶ οἱ γραμματεῖς τῶν Φαρισαίων ἰδόντες ὅτι ἐσθίει
μετὰ τῶν ἁμαρτωλῶν καὶ τελωνῶν ἔλεγον τοῖς μαθηταῖς αὐτοῦ, Ὅτι μετὰ τῶν
τελωνῶν καὶ ἁμαρτωλῶν ἐσθίει; 17 καὶ ἀκούσας ὁ Ἰησοῦς λέγει αὐτοῖς [ὅτι] Οὐ
χρείαν ἔχουσιν οἱ ἰσχύοντες ἰατροῦ ἀλλ᾽ οἱ κακῶς ἔχοντες· οὐκ ἦλθον καλέσαι
δικαίους ἀλλὰ ἁμαρτωλούς.
Tradução:
E ele foi novamente para a beira do mar e toda a multidão ia a seu encontro
e ele a ensinava. Enquanto caminhava, viu Levi, o filho de Alfeu, sentado na cole-
toria de impostos, e falou com ele: “Segue-me”. Ele levantou-se e o seguiu. Mais
tarde, Jesus estava jantando na casa dele e muitos publicanos e judeus pecado-
res jantavam com Jesus e seus discípulos, pois eram muitos dentre eles os que o
seguiam. Então os escribas dos fariseus, vendo que comia com judeus pecado-
res e publicanos, diziam aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos
e judeus pecadores?” Ora, ouvindo Jesus a pergunta, responde a eles: “as pessoas
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fortes não têm necessidade de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar jus-
tos, mas pecadores”.
Notas:
(1) Levi: poucos autores preferem ver aqui o termo ‘levita’ ao invés do nome
próprio Levi, mas se baseiam em um eventual texto original jamais descoberto.
Como, porém, um levita teria se tornado publicano é algo que enseja muita espe-
culação. Como veremos mais adiante, outra razão para questionar o nome, aqui,
é a confusão entre este nome e os de Mateus e Tiago.
(2) A expressão ‘judeus pecadores’ visa fornecer uma especificidade mais
adequada ao termo ‘hamartoloi’ usado na perícope, três vezes no sentido dado ao
termo pelos fariseus e uma vez em sentido genérico construído na fala de Jesus
– por isso, nessa quarta vez em que a palavra ocorre, não uso a palavra ‘judeus’
para especificar o sentido.
(3) Fortes, ao invés de ‘sãos’ como é costumeiro nas versões atuais. O termo
grego usado por Marcos é diferente do usado por Lucas (hygiainontes), que
significa, sim, ‘sãos’. O verbo usado por Marcos isxyontes significa ‘forte’, ‘pode-
roso’ e é da mesma raiz do adjetivo usado em Mc 3,27 para se referir a Satanás.
Como veremos na análise da dimensão teológica da ação, esse particípio verbal
é um desencadeador de isotopias, pois vincula o dito de Jesus (que usa linguagem
médica) ao âmbito político e ao religioso. ( tradução do autor).
Nossa perícope faz parte de uma seção de polêmicas entre Jesus e lideranças
judaicas, que vai de 2,1 a 3,6. A análise dos elementos que definem sobre a deli-
mitação de perícopes nos mostra que a seção é composta por cinco perícopes:
2,1-12.13-17.18-22.23-28 e 3,1-6. As principais marcas de demarcação das perí-
copes são espaciais, temáticas e de personagens.
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Que tal você mesmo verificar se a delimitação já apresentada é adequada?
Análise os elementos delimitadores no texto de Marcos e, caso você veja
uma divisão diferente, compartilhe conosco no ambiente virtual.
de matar a Jesus. Por sua vez, a seção tem um papel importante no Evangelho de
Marcos, ao estabelecer os termos do confronto entre Jesus e o Judaísmo Oficial,
antecipando prolepticamente a atitude das autoridades que decidem matar Jesus
e apontando para a atitude de Jesus diante da ameaça.
O CONTEXTO DE MARCOS
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a forma mais comum de situar o texto no contexto é a que parte da época do
livro propriamente dito. Por outro, é possível, porém, mediante uma reconstru-
ção histórico-crítica, tentar situar cada perícope na época do ministério de Jesus
(cerca de 40 anos antes da escrita do Evangelho). Seguirei o procedimento mais
comum e discutiremos o contexto do Evangelho de Marcos e não o contexto da
época de Jesus. Consequentemente, para uma visão geral da realidade da época,
devemos levar em consideração todo o livro e não apenas nossa perícope que ser-
virá, principalmente, de guia para a reconstrução do contexto propriamente dito.
Durante mais de um século, a pesquisa histórica sobre o Evangelho de Marcos
defendia, de modo praticamente unânime, a datação do Evangelho após o ano 70
d.C. (data da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos em resposta à
revolta judaica). Hoje em dia, ainda é a tese predominante, embora um número
maior de estudiosos defenda a possibilidade de uma data bem mais recuada. A
maioria coloca o Evangelho entre 65 e 75 d.C., mas alguns recuam até os anos 50
d.C., em função da descoberta de fragmentos de manuscritos que parecem con-
ter trechos do Evangelho. Podemos trabalhar seguramente com uma datação nas
décadas de 60-70 d.C. para entendermos o mundo (a realidade) externa ao livro.
Quanto às comunidades às quais Marcos endereçou seu Evangelho, não há
consenso. Poucos admitem a opinião do bispo Papias (HIERÁPOLIS, c. 120-130
d.C.) que, baseado em um testemunho de um presbítero chamado João, defen-
deu que Marcos escreveu seu evangelho em Roma como intérprete de Pedro.
O que João disse, porém, foi apenas que Marcos teria escrito o Evangelho em
Roma, não que o teria escrito para as igrejas de Roma. O estudo do Evangelho
não oferece material suficiente para alcançarmos um consenso seguro. Pode-se
afirmar, com razoável certeza, que Marcos foi escrito para comunidades cristãs
predominantemente gentílicas e, com boa probabilidade, de regiões ocidentais
do Império Romano.
Mais segura é a relação entre Marcos e os demais Evangelhos. É consenso,
praticamente unânime, de que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser escrito. É,
então, o inaugurador desse novo gênero textual que conhecemos como Evangelho.
Cabe, portanto, refletir sobre o gênero e verificar o que ele nos pode dizer sobre
o contexto da obra marcana. Porém, como analisaremos o gênero Evangelho na
análise do cronotopo em Marcos (veja, mais adiante), apenas indico, aqui, que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
14. Em sua própria obra, Papias transmite, ainda, outras interpretações das
palavras do Senhor recebidas de Aristion, mencionado anteriormente, as-
sim como também outras tradições de João, o Presbítero. A elas remetemos
a quantos queiram instruir-se. Agora nos vemos obrigados a acrescentar às
suas palavras, anteriormente citadas, uma tradição acerca de Marcos, o que
escreveu o Evangelho, que vem exposta nos termos seguintes:
15. E o presbítero dizia isto: Marcos, que foi intérprete de Pedro,
pôs por escrito, ainda que não com ordem, o quanto recordava do
que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o Se-
nhor nem o havia seguido, mas, como disse, a Pedro mais tarde, o
qual transmitia seus ensinamentos segundo as necessidades e não
como quem faz uma composição das palavras do Senhor, mas de
tal forma que Marcos em nada se enganou ao escrever algumas
coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma
só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enga-
nar-se nisto o mínimo (EUSÉBIO DE CESARÉIA, 2002, p. 74s.).
Vistas as coisas desta maneira, a realidade em que o Evangelho foi escrito só pode
ser reconstruída em termos genéricos, como: (a) dominação romana; (b) segunda
ou terceira geração de comunidades cristãs; (c) eventual perseguição contra essas
comunidades; (d) problemas na relação entre cristãos gentios e judeus em geral.
A situação que pode ter motivado a escrita do Evangelho, segundo o conteúdo
do livro, parece ter sido a de problemas com liderança (os discípulos de Jesus
são apresentados, predominantemente, como líderes que falham em entender e
obedecer a Jesus) e com a identidade da comunidade, que somente poderiam ser
resolvidos mediante uma nova apropriação teológica da identidade do Messias
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Jesus e de seus discípulos. Nada mais concreto pode ser afirmado com certeza.
Em relação ao contexto, portanto, podemos afirmar, seguramente, ape-
nas aspectos genéricos: (a) uma teologia narrativa como a de Marcos indica
ouvintes com baixo nível de educação formal – podemos pensar em comunida-
des compostas, predominantemente, por pessoas pobres; (b) se a comunidade
enfrentava problemas de identidade, a solução oferecida parece ser a da reafir-
mação de quem é Jesus, o que indica que, possivelmente, a população da qual
a(s) comunidade(s) marcana(s) fazia(m) parte não aceitava a fé dos membros
da comunidade e a questionava com alguma intensidade – seja por não acei-
tarem os deuses greco-romanos, seja por não serem judeus ortodoxos; (c) se
havia uma crise de liderança, poderia ter sido provocada pela incapacidade dos
líderes enfrentarem os problemas que atacavam a comunidade, ou por falta de
crescimento numérico da comunidade e de sua importância social – em qual-
quer desses casos, o Evangelho reafirma que quem segue a Jesus está sujeito à
perseguição e ao sofrimento, mas que pode contar com o socorro de Deus em
meio à dor, mesmo que o sofrimento não acabe. Em outras palavras, temos um
Evangelho escrito para conforto, encorajamento e capacitação da comunidade
a viver em um mundo hostil à fé cristã.
As conexões intratextuais
Vejamos alguns detalhes que Gnilka não explicitou: a expressão ‘de novo’ em
2,13 remonta a 1,16 “caminhando junto ao Mar da Galiléia” e sugere aos lei-
tores e leitoras que espere um chamado de discípulos na sequência (o que de
fato ocorre); a expressão ‘ia até ele’ retoma, com o mesmo verbo, o que é nar-
rado em 1,45 – a multidão que acorre até Jesus após a cura de um leproso - e
faz a conexão com 2,1-12 - que relata a cura de um paralítico . Em ambos os
casos, Jesus cura uma pessoa classificada como impura pelo Judaísmo Oficial).
O verbo ‘a ensinava’ remonta 1,21-22 e é usado várias vezes em Marcos para
caracterizar a atividade de Jesus (4,1.2; 6,2.6.30; a última vez em 14,49) em dife-
rentes lugares – a última vez quando da prisão de Jesus, em que Ele relembra a
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Crucifica-o! Mas Pilatos lhes disse: Que mal fez ele? E eles gritavam
cada vez mais: Crucifica-o! Então, Pilatos, querendo contentar a mul-
tidão, soltou-lhes Barrabás; e, após mandar açoitar a Jesus, entregou-o
para ser crucificado (BÍBLIA, Marcos, 15,11-15).
Chama a atenção, por outro lado, o fato de que ‘publicanos e judeus pecadores’
só apareçam aqui em todo o Evangelho. Entretanto, embora apareçam só aqui,
eles são parte do conjunto de pessoas impuras aos olhos do Judaísmo Oficial,
e as pessoas impuras são alvo privilegiado da compaixão de Jesus em todo o
Evangelho. De fato, os primeiros discípulos que ele chama (1,16ss) eram pes-
cadores no Mar da Galiléia (impuros); o primeiro ‘milagre’ público de Jesus é a
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de Deus, mas não são rejeitadas por Deus, pelo contrário, todas são alvo do amor
divino e foi por eles que Jesus veio como Messias.
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sentido, uma ferramenta interpretativa importante é o conceito bakhtiniano de
cronotopo (neologismo que junta cronos (tempo) + topos (lugar)). Vale a pena
uma longa citação, aqui, de texto que publiquei em obra coletiva:
[...] gostaria de destacar, nesta seção, as principais características do con-
ceito de cronotopo, trazendo ao máximo à luz as próprias descrições
bakhtinianas. Em primeiro lugar, o cronotopo é uma categoria simulta-
neamente conteudística e formal: “à interligação fundamental das rela-
ções temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, cha-
maremos cronotopo (que significa tempo-espaço). [...] nele é importante
a expressão de indissolubilidade de espaço e de tempo (tempo como a
quarta dimensão do espaço). Entendemos o cronotopo como uma cate-
goria conteudístico-formal da literatura (aqui não relacionamos o crono-
topo com outras esferas da cultura) (BAKHTIN, 1993, p. 211).
Podemos constatar que, embora essa fusão seja típica do texto literário ou artís-
tico, na língua cotidiana também se efetuam os cruzamentos e fusões entre tempo
e espaço, de modo que o cronotopo literário seja uma expressão mimética da rea-
lidade experimentada e significada pelos seres humanos por meio da linguagem.
Dois comentários são pertinentes aqui: (a) nem sempre o tempo é o princípio
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si uma quantidade ilimitada de pequenos cronotopos; pois cada tema
possui o seu próprio cronotopo, sobre o que já falamos. Nos limites
de uma única obra e da criação de um único autor, observamos uma
grande quantidade de cronotopos e as suas inter-relações complexas
e específicas da obra e do autor, sendo que um deles é frequentemen-
te englobante ou dominante. [...] Os cronotopos podem se incorporar
um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, opor-se
ou se encontrar nas inter-relações mais complexas. Estas inter-relações
entre os cronotopos já não podem surgir em nenhum dos cronotopos
isolados que se inter-relacionam. O seu caráter geral é dialógico (na
concepção ampla do termo) (BAKHTIN, 1993, p. 357).
Infelizmente, não temos ‘espaço’ para fazer a análise dos cronotopos do Evangelho
de Marcos como um todo. Ao longo dos diversos ciclos da Fase Final, retomare-
mos alguns desses aspectos metodológicos suscitados pelo cronotopo. Cabe, pelo
menos, apresentar uma hipótese preliminar sobre o gênero Evangelho e sobre a
identidade de Jesus em sua relação com os cronotopos marcanos.
Temporalmente, a atividade de Jesus é narrada sempre em um dinamismo
intenso (marcado, principalmente, pelo uso do advérbio ’eythys (imediatamente,
logo, rapidamente), desacelerando, porém, a partir da viagem final de Jesus a
Jerusalém (a partir de 8,27), com o clímax de desaceleração na parte final do
Evangelho, o qual narra a prisão, julgamento, execução e ressurreição de Jesus
(caps. 1—16). Espacialmente, a atividade de Jesus é narrada em diferentes luga-
res ao mesmo ritmo da temporalidade – mar, cidades, casas, deserto, campos
abertos, estrada etc. Há uma concentração espacial também na segunda parte
do Evangelho, iniciando com a jornada final a Jerusalém, (8-11), a atividade de
Jesus em Jerusalém antes da prisão (11-13) e a ‘paixão’ de Jesus (14-16). Podemos
notar uma similaridade com os poemas do Escravo de YHWH em Isaías 42; 49;
50 e 53, que também apresentam uma espécie de biografia do Escravo que se
concentra sobre sua rejeição, prisão e execução (52,13-53,12).
Do ponto de vista do gênero textual, podemos afirmar (e vários autores já o
fizeram) que o Evangelho é um gênero narrativo cujo foco é a ‘paixão’ do Messias,
precedida de uma ‘longa introdução’ (SCHREINER & DAUTZENBERG, 2008,
p. 242). Trata-se, primariamente, de uma narrativa teológica sobre a identidade
do Messias Jesus com finalidade edificante e evangelística (anunciar a boa-
-nova). O gênero mais próximo do de Marcos, na literatura da época, é o das
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Pessoas:
Ele (Jesus): ‘foi novamente para a beira do mar’, ‘toda a multidão ia a seu
encontro’, ‘a ensinava’, ‘enquanto caminhava viu Levi’, ‘falou com ele: Segue-me’,
‘mais tarde estava jantando na casa dele’ ‘muitos publicanos e judeus pecado-
res jantaram com Jesus e seus discípulos’, ‘pois eram muitos dentre eles os que
o seguiam’, (fariseus falam sobre ele) ‘porque ele come com publicanos e judeus
pecadores’, ‘ouvindo Jesus respondeu a eles: “as pessoas [...] pecadores’
disseram aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos e judeus pecado-
res?” Ora, ouvindo Jesus a pergunta, respondeu a eles: “as pessoas fortes não têm
necessidade de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar justos, mas pecadores”.
Relações pessoais: Jesus é o centro da perícope, em relação a ele:
(a) multidão e ‘muitos dentre publicanos e judeus pecadores’ ia a seu encon-
tro, o seguiam;
(b) Levi é chamado por Jesus e passa a segui-lo. Oferece-lhe um jantar em
sua casa e leva ao jantar seus amigos (publicanos e judeus pecadores);
(c) os discípulos de Jesus não agem, aparecem como personagens ‘passivos’:
estavam com Jesus no jantar, ouviram a pergunta dos fariseus;
(d) os escribas dos fariseus perseguem Jesus e o questionam a seus discípu-
los (não diretamente a ele);
(e) Jesus: ensinava a multidão, chamava discípulos, jantava com pessoas impu-
ras, argumentava com os escribas dos fariseus, ensinava quem ele era – sua missão.
Temos, em síntese, atração e repulsa em relação a Jesus. No campo da atra-
ção, temos seguidores distantes (multidão), próximos (discípulos e Levi) e mais
ou menos próximos (publicanos e judeus pecadores). No campo da repulsa estão
os escribas dos fariseus (a religião oficial). A perícope convida seus leitores e lei-
toras a se identificar com Jesus, estabelecendo um efeito intenso de subjetividade.
Espaço:
Beira do Mar (toda a multidão ia a seu encontro);
Enquanto caminhava, viu [...] sentado na coletoria de impostos;
Ele (Levi) se levantou e o seguiu;
Muitos dentre eles (publicanos e judeus pecadores) o seguiam;
Casa dele;
Eu não vim;
Relações espaciais: (1) Jesus viajava e caminhava ensinando e chamando
discípulos; (2) Jesus deixa as pessoas se aproximarem e se aproxima delas, vai
e é seguido, come com pessoas impuras na casa de um seguidor; (3) afirma sua
missão como movimento “Eu não vim [...]”; (4) há um movimento do regional
(mar) para o local (coletoria, casa) e para o universal (‘vim para [...]’), do espaço
público para o privado e novamente para o público; (5) no âmbito individual,
temos Levi sentado – levantando-se – seguindo Jesus.
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Em síntese: Jesus caminha por locais impuros (até que ponto o ‘mar’ evoca
impureza ou inimizade contra Deus é algo a ser definido mais adiante) e é seguido
por pessoas impuras, quebra as regras de pureza ao ter comunhão de mesa com
pessoas impuras e afirma que sua missão é exatamente em prol dessas pessoas.
Há um contraste entre o espaço público e o privado, mas nesses dois espaços,
Jesus é o mesmo e permanece realizando sua missão. A cena, como um todo,
aponta para a universalidade do chamado de Jesus, que não aceita as fronteiras
definidas pelos sistemas classificatórios humanos.
Tempo:
Foi (pretérito perfeito) novamente;
Ia [...] ele a ensinava (pretérito imperfeito);
Viu (levi), falou [...]levantou-se [...] o seguiu (pretérito perfeito);
Segue-me (imperativo);
Mais tarde;
Estava jantando (locução pretérito imperfeito mais gerúndio);
Jantavam com Jesus [...] eram [...] seguiam (pretérito imperfeito);
Vendo que comia (gerúndio mais pretérito imperfeito) [...] diziam (preté-
rito perfeito) [...] come (presente);
Ouvindo (gerúndio) [...] responde (presente do indicativo);
Fortes não tem (presente indicativo);
Vim (pretérito perfeito) chamar (infinitivo).
Relações:
(1) Ações no pretérito perfeito e aspecto completo são as que estabelecem
o cenário: foi para o mar [...] viu e chamou Levi – com a intercalação de um
A criação de novas pessoas que, por sua adesão a Jesus, se libertam de seu
passado e recebem a vida do Espírito, desemboca na formação de uma co-
munidade que é primícias da nova sociedade, ou Reino de Deus.
(Juan Mateos e Fernando Camacho).
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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO
impureza eram condições permanentes de certas pessoas; por outro, eram con-
dições transitórias, conforme a obediência ou não a rituais cerimoniais e outras
normas do judaísmo. Várias marcas definiam a pureza ou impureza de uma pessoa.
A primeira marca da pureza era a étnica: eram puras as pessoas em cuja
genealogia não se encontrasse mistura étnica com gentios; dentre estas, eram
mais puras as pessoas que pudessem indicar sua pertença a famílias sacerdotais
e a famílias dirigentes de Israel.
A segunda marca da pureza era a física/sanitária: eram puras as pessoas que
não sofressem de doenças consideradas impuras, como a hanseníase, por exem-
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Em uma linguagem não-formal, o tema dessa perícope é a inclusão das pessoas
que estão proibidas de fazer parte de um determinado grupo. O contrário da
inclusão é a exclusão (a proibição, o interdito), o que se opõe à exclusão é a con-
descendência, a qual não inclui, mas não interdita a pessoa ou grupo – ela pode
‘estar dentro’, mas ‘sem fazer parte’. O oposto da inclusão é a marginalização, a
aceitação de uma pessoa ou grupo, mas sua manutenção na fronteira ‘faz parte
de’, mas não está dentro, ocupa a margem. O movimento da perícope parte da
exclusão como polo disfórico e chega à inclusão como polo eufórico (positivo).
Paralelamente, ele entra em disjunção com os ‘escribas dos fariseus’ e sua rejei-
ção das pessoas impuras. Como nomear essa paixão que vincula o sujeito com
pessoas desprezadas e marginalizadas? Na língua portuguesa temos vários vocá-
bulos, conforme as definições do Dicionário Houaiss:
(a) compaixão: sentimento piedoso exclusivamente humano de simpa-
tia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de
minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um
impulso altruísta de ternura para com o sofredor;
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compaixão, miseração”; “solidariedade: 1 caráter, condição ou estado de
solidário; 2 jur compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às
outras e cada uma delas a todas; 3 laço ou ligação mútua entre duas ou
muitas coisas ou pessoas, dependentes umas das outras ‹a s. entre o vento
e o moinho› ‹a s. entre a corda e os montanhistas›; 4 sentimento de sim-
patia, ternura ou piedade pelos pobres, pelos desprotegidos, pelos que
sofrem, pelos injustiçados etc.; 5 manifestação desse sentimento, com o
intuito de confortar, consolar, oferecer ajuda etc. ‹levou sua s. aos sobre-
viventes da tragédia›; 6 cooperação ou assistência moral que se manifes-
ta ou testemunha a alguém, em quaisquer circunstâncias (boas ou más)
‹diante dos fatos, não hesitou em dar sua s. ao adversário›”; “solidário: 3
pronto a consolar, apoiar, auxiliar, defender ou acompanhar alguém em
alguma contingência ‹nas horas más, mostrava-se sempre s.›; 4 que sente
do mesmo modo, partilha dos mesmos interesses, opiniões, sentimentos
etc., concordando, dando apoio; irmanado ‹o sindicato dos metalúrgicos
estava s. com os grevistas› (HOUAISS, [2016], on-line)1.
circulou logo de início, este tipo de história era visto como precedente
para a conclamação e o ajuntamento dos gentios (os quais também eram
considerados pecadores/marginais por muitas autoridades religiosas ju-
daicas), e mostrou que Jesus foi pioneiro nas boas vindas às pessoas ina-
ceitáveis do ponto de vista religioso (HURTADO, 1995, p. 50s.).
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pelas autoridades da religião oficial, ‘contado com os transgressores’ (Is 53,12) e, por
isso, se torna alvo do ódio que conduzirá à sua execução pela autoridade imperial.
Essas relações serão retomadas na análise da dimensão sociocultural da ação,
a seguir. (Só para lembrar: relações polêmicas são relações de desacordo, total
ou parcial; relações contratuais são de acordo, parcial ou total).
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(a) multidão (’ochlos). No idioma grego, a palavra usada para o ‘povo’ de
um país, sem acepção valorativa, é laos. Marcos, porém, fala aqui – e em todo o
Evangelho – da multidão que segue a Jesus (como já vimos, também, anterior-
mente, e que pede a libertação de Barrabás ao invés de Jesus). Vejamos como
um teólogo coreano analisa o termo:
[...] em resumo, há vários pontos dignos de nota. Primeiro, Marcos usa
ochlos ao invés de laos a fim de se referir ao minjung, o povo que fora mar-
ginalizado e abandonado. Segundo, ochlos tem diferentes acepções de
sentido em relação a outros grupos. O pobre é ochlos em relação ao rico,
mas, ao mesmo tempo, o publicano é ochlos em relação ao nacionalista
judeu. Terceiro, o ochlos é temido pela classe dirigente, que é poderosa,
mas injusta. Quarto, Jesus assume o lado do ochlos, sem condições. Quin-
to, Jesus não faz dele uma força política leal a si mesmo. Portanto, ele o
trai diante de sua morte, embora o tenha seguido durante seu ministério.
Sexto, Jesus lhe proclama o advento do Reino de Deus. Ele é o Messias
que sofre com o minjung, seu povo, no advento de uma nova era. Sétimo,
Jesus proclama a vinda do Reino de Deus. [...] o Deus apresentado por
Jesus se coloca completa e incondicionalmente ao lado do minjung, e essa
é a vontade de Deus: a vontade de Deus é revelada no evento de Jesus se
solidarizar com o minjung, pois ele o ama (AHN, 2012, p. 103).
Na Carta aos Gálatas, Paulo menciona uma situação similar que teve de enfren-
tar, em que Pedro, quando da chegada de judeus de Jerusalém, deixou de fazer
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refeições com cristãos gentios (Gl 1,10ss). Em 1 Coríntios 11, Paulo discute o
problema da divisão da comunidade no horário da Ceia, por que os ricos podiam
comer antes dos escravos e dos pobres. Isto é, a questão do convívio à mesa era
fundamental, também, fora do ambiente dos fariseus e judeus em geral. A perí-
cope destaca, portanto, que no âmbito da convivência humana mais íntima, estar
na comunidade de Jesus significa poder participar da mais profunda amizade
com qualquer outro membro da comunidade. Em sua comunhão com publica-
nos e judeus pecadores, Jesus dá exemplo que seus seguidores devem replicar.
Vejamos uma longa citação de comentário de biblistas brasileiros:
[...] pois bem, Jesus não hesita em aproximar-se deles, como fizera com
o leproso e com o paralítico. Ao primeiro, tocara, ao segundo, chamara
de ‘filho’ de casa. A condição de marginalizados e alienados atrai seus
sentimentos de solidariedade e impele-o a romper a barreira entre ‘puro’
e ‘impuro’. Convida-os a segui-lo, Levi está ‘sentado’, na mesma posição
em que estão os escribas em 2:6. Ora, estes é que são os verdadeiros
paralíticos. Enquanto for semelhante a eles e estiver em sua área de in-
fluência, Levi também permanecerá paralisado. Jaz como o paralítico.
Levi é o paralítico e, ao escutar a voz de Jesus, levanta-se para segui-lo.
É sua ressurreição, o mesmo que acontecera à sogra de Simão. Expe-
rimenta o perdão do pecado. É digno de nota que na cena do paralíti-
co, mencionam-se quatro vezes ‘pecados’ e quatro vezes ‘pecadores’ (cf.
2:5.7.9.10.15.16.17). O paralítico (desdobrado nos quatro que o carre-
gam) é a imagem da humanidade pecadora; Levi e os publicanos no ban-
quete em casa são a concretização do que essa imagem prefigura. Levi
ergue-se de sua marginalização, é acolhido na Casa de Israel que se vai
fazendo agora ‘Casa’ de Jesus. Mas tem de romper com o Mar do sistema
no qual está imerso por sua profissão de cobrador de impostos. Lucas
escolha ‘soldados’ e ‘publicanos’ como duas categorias particularmente
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a colaboração com as forças de ocupação, já que os romanos tinham
concedido a Herodes Antipas a mesma isenção de impostos e autono-
mia financeira como a seu pai; sua base era unicamente moral, pois a
motivação deste negócio sujo era a ganância desenfreada, o pré-requi-
sito era uma insensibilidade repugnante que não se impressionava nem
com problemas de consciência nem com os preceitos de Deus. Disto
resultava o oposto exato do fariseu, o judeu rigoroso na Torá (cf. Lc
18.9-14). Levamos tudo isto em consideração quando lemos que Jesus
arriscou-se a receber a alcunha de “amigo dos publicanos” e que a lista
dos apóstolos inclui “Mateus, o publicano” (Mt 10.3). Ainda 150 anos
depois o filósofo romano Celso derramou sua zombaria sobre os cris-
tãos e seu Jesus: bandidos, cobradores de impostos e pescadores eram
seus discípulos. (POHL, 1998).
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a comunidade será estímulo e exemplo para o crescimento espiritual.
A compaixão/solidariedade como marca da identidade passional cristã.
Se olhamos para a nossa vida pessoal, individual, o que essa perícope nos con-
vida é, principalmente, manifestar a mesma compaixão e solidariedade de Jesus
em nossos relacionamentos cotidianos. Se, como Levi, aceitamos o convite para
seguir a Jesus, se aceitamos ser discípulas e discípulos do Mestre, assumimos o
compromisso de viver como Ele viveu. Nessa perícope, a atitude de Jesus que
nos chama à imitação é a da solidariedade com as pessoas ‘impuras’ e ‘pecadoras’.
Assim como a comunidade é chamada ao testemunho, individualmente somos
todos testemunhas do Senhor.
A hospitalidade. Uma última área de significação contemporânea que
essa perícope traz à mente é a da hospitalidade. Vivemos em um mundo hostil,
violento, em que as relações pessoais são cada vez mais rasas e distantes. Vivemos,
também, em um mundo de muita migração forçada. Muitas pessoas são obriga-
das a deixar sua própria terra natal e buscar alguma dignidade de vida em outros
países – no Brasil, também, acolhemos refugiados e outros tipos de migrantes
(externos e internos). Hospitalidade pessoal e hospitalidade social são desafios
da vida no século XXI.
Bem, outras áreas poderiam ser apresentadas. Essas cinco são um exemplo
das possibilidades de ação e sentido que o texto propõe. Deixo, então, para você,
a tarefa de escolher uma dessas áreas e redigir a sua própria releitura do texto.
Seja como sermão, estudo bíblico, meditação, reflexão teológica etc. Lembre-se:
o que eu escrevi é o ponto de partida para a releitura, você deve aprofundar e
tornar concreto o que o ponto de partida oferece.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem! Chegamos ao fim do estudo desta terceira Unidade da nossa disci-
plina. Estudamos Marcos 2,13-17, seguindo os seguintes passos:
No Tópico 1 exemplifiquei os procedimentos da fase preparatória da exe-
gese: a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua
segmentação e estruturação. Depois, apresentei alguns dos principais aspectos
do contexto do Evangelho de Marcos. Enfim, tendo em vista o gênero textual
do livro, discuti o lugar de Mc 2,13-17 no conjunto do Evangelho. Apresentei
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Considerações Finais
152
O profeta Elias é arrebatado de entre os vivos e é levado aos céus; privilégio único no
Primeiro Testamento, relatado em 2Rs 2,1.11:
[...] eis o que aconteceu quando Iahweh arrebatou Elias ao céu no
turbilhão: Elias e Eliseu partiram de Guilgal,[...] E aconteceu que, en-
quanto andavam e conversavam, eis que um carro de fogo e cavalos
de fogo os separaram um do outro, e Elias subiu ao céu no turbilhão
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 508).
O céu, como a terra, possui extremidade. Assim nos testifica um dos versículos do Se-
gundo Testamento, situado dentro do chamado apocalipse de Marcos: “[...] então ele
enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à
extremidade do céu” (Mc 13,27).
O próprio Evangelho de Marcos ainda nos fala do céu como a morada de Cristo ressus-
citado. Atesta que o Senhor Jesus “foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus”
(Mc 16,19) (BÍBLIA SAGRADA, Atos 3,21; Ef 1,20; Hb 8,1; 1Pd 3,22.)
Fora da perspectiva bíblica também encontramos a apresentação simbólica do céu:
[...] ouranos se acha no Gr de Homero em diante, com o significado de
“abóbada celeste”, “o firmamento”. Visto como tudo que aquilo abrange,
ouranos é divino. Em Platão, o “céu pode ser equacionado com o -> tudo,
o cosmos (-> Terra). Os céus estrelados, considerados como habitação
dos deuses, ficaram sendo o ponto da partida para a investigação da
existência e do conhecimento absoluto (BROWN, 2000. p. 341).
Leia Atentamente Marcos 2,13-17. Esse texto servirá de base para as cinco questões
a seguir.
Marcos 2,13-17
E ele foi novamente para a beira do mar e toda a multidão ia a seu encontro e ele
a ensinava. Enquanto caminhava, viu Levi, o filho de Alfeu, sentado na coletoria de
impostos, e falou com ele: “Segue-me”. Ele levantou-se e o seguiu. Mais tarde, Jesus
estava jantando na casa dele e muitos publicanos e judeus pecadores jantavam com
Jesus e seus discípulos, pois eram muitos dentre eles os que o seguiam. Então os
escribas dos fariseus, vendo que comia com judeus pecadores e publicanos, diziam
aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos e judeus pecadores?” Ora,
ouvindo Jesus a pergunta, responde a eles: “as pessoas fortes não têm necessidade
de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar justos, mas pecadores”.
1. Os seguintes termos se referem ao espaço:
a. ( ) Beira do mar, multidão, casa dele, caminhava.
b. ( ) Levi, multidão, casa dele, caminhava.
c. ( ) Beira do mar, seguiam, casa dele, caminhava.
d. ( ) Justos, pecadores, casa dele, caminhava.
e. ( ) Viu, multidão, casa dele, caminhava.
2. Os seguintes termos se referem às pessoas:
a. ( ) Multidão, coletoria de impostos, publicanos, escribas dos fariseus.
b. ( ) Multidão, caminhava, publicanos, escribas dos fariseus.
c. ( ) Multidão, casa dele, publicanos, escribas dos fariseus.
d. ( ) Multidão, coletoria de impostos, chamar, escribas dos fariseus.
e. ( ) Multidão, Jesus, publicanos, escribas dos fariseus.
3. “Ele foi novamente para a beira do mar”. O verbo ‘foi’ possui as seguintes carac-
terísticas:
a. ( ) Pretérito perfeito, aspecto pontual, modo indicativo.
b. ( ) Pretérito imperfeito, aspecto durativo, modo indicativo.
c. ( ) Pretérito perfeito, aspecto gnômico, modo indicativo.
d. ( ) Pretérito perfeito, aspecto pontual, modo subjuntivo.
e. ( ) Pretérito perfeito, aspecto perfectivo, modo indicativo.
155
Ben-Hur - 2016
Sinopse: biografia dramatizada de um judeu e seu irmão adotivo
que se torna centurião romano. Mostra as lutas dos judeus diante da
dominação imperial.
AHN, B. -U. Jesus and the Minjung in the Gospel of Mark. In: Journal of Korean
American Ministries & Theology. n. 5. Decatur: Columbia Theological Seminary,
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TEO-L%C3%ADdia%20Maria%20Carneiro%20de%20Resende.pdf>. Acesso em 23
maio 2017.
GABARITO
1) C.
2) E.
3) A.
4) Verdadeira.
5) B.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
IV
UNIDADE
JOÃO 1,1-18
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Descrever as principais características do contexto do Evangelho de
João.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
teológica da ação.
■■ Executar os procedimentos de análise da dimensão missional da
ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ O Contexto de João
■■ A dimensão teológica da ação (1)
■■ A dimensão teológica da ação (2)
■■ A dimensão missional da ação
161
INTRODUÇÃO
Olá! Estamos iniciando a nossa quarta Unidade. O texto para interpretação será
João 1,1-18 e nosso trabalho terá a seguinte estruturação:
No Tópico 1, exemplificarei a você os procedimentos da fase preparatória da
exegese: a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua
segmentação e estruturação. Como a estrutura do Prólogo de João oferece difi-
culdades interessantes para a análise, gastarei mais tempo com ela.
No segundo Tópico, apresentarei, para nossa reflexão, alguns dos principais
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Introdução
162 UNIDADE IV
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FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO
TEXTO E TRADUÇÃO
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2 οὗτος
ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο
οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5
καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6 Ἐγένετο
ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς
μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι᾽ αὐτοῦ.
8
οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 9 Ἦν τὸ φῶς
τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10 ἐν τῷ
κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. 11 εἰς
τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν
αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, 13
Tradução:
1 No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava diante de Deus e a Palavra
era Deus. 2 Ela estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas vieram a existir
por intermédio dela, e sem ela nada do que tem vindo à existência veio a existir.
4 Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens; 5 a luz resplandece nas tre-
vas, e as trevas não prevaleceram contra ela.
6 Surgiu um homem, um enviado de Deus, cujo nome era João. 7 Ele veio
como testemunha, a fim de dar testemunho da luz, para que todos cressem por
meio dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.
9 Ela era a luz verdadeira, a luz que ilumina todo ser humano e estava chegando
ao mundo. 10 Ela estava no mundo, e o mundo tornou-se existente por intermédio
dela, e mesmo assim o mundo não a reconheceu. 11 Ela veio para os seus, mas os
seus não a receberam. 12 Entretanto, a todos quantos a receberam deu-lhes o direito
de se tornarem filhos de Deus, aos que creem em seu nome; 13 os quais nasceram,
não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus.
14 E a Palavra se tornou carne, e peregrinou entre nós, e vimos a sua gló-
ria, glória idêntica à do unigênito do Pai: cheia de graça e de fidelidade. 15 João
testemunha sobre ela e tem pregado: Ela é aquela de quem eu disse: O que vem
depois de mim, passou adiante de mim; porque antes de mim ele já existia. 16
Ora, todos nós recebemos da sua plenitude, e graça sobre graça, 17 pois a lei foi
dada por meio de Moisés, mas a graça e a fidelidade vieram por meio do Messias
Jesus. 18 Ninguém jamais viu a Deus. O Deus unigênito, o que está diante do
próprio coração do Pai, esse o tornou visível em sua exegese.
(Tradução do autor)
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ção, de quatro segmentos: (1-5) cujo assunto é a Palavra na criação, (6-8) que
tem como centro João, (9-13) cujo assunto é a Palavra na salvação e (14-18) cujo
tema é a Palavra encarnada.
A estruturação oferece, ainda, mais dificuldades, como se pode constatar
na leitura dos principais comentários sobre o Evangelho joanino. A opinião de
Konings resume bem a situação da pesquisa: “não se consegue descobrir um
esquema claro no Prólogo” (KONINGS, 2000, p. 83). Raymond Brown, seguindo
a hipótese de que, originalmente, o Prólogo era um hino cristológico, oferece a
seguinte reconstrução do hino, com a divisão em estrofes:
Primeira Estrofe 1-2
Segunda Estrofe 3-5
(Primeira inserção narrativa) 6-9
Terceira Estrofe 10-13
Quarta Estrofe 14-16 com inserção narrativa (v. 15)
Conclusão joanina 17-18
(cf. BROWN, 1999, p. 193-194).
A palavra prólogo tem sua origem no teatro grego e servia para indicar a
apresentação da peça. Por extensão, na literatura, é o texto que precede
ou apresenta um livro ou uma obra. Convencionou-se chamar Jo 1,1-18 de
Prólogo do livro de João, entretanto, é possível questionar essa terminolo-
gia na medida em que a perícope pode ser vista como parte integrante da
narrativa do Evangelho. Não vejo, porém, porque não continuar usando o
termo Prólogo para indicar esta perícope.
Fonte: o autor.
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testemunhada por um ser humano, a sua manifestação é rejeitada; entretanto, a
rejeição não prevalece e o reconhecimento, também testemunhado por um ser
humano, acaba ocorrendo. João Batista possui um valor simbólico: ele representa
todas as testemunhas da Palavra-Deus-Manifesta – tanto as anteriores quanto as
posteriores à vinda do Messias.
Uma última consideração estrutural. Note o arranjo de paralelismos do
Prólogo quando retiramos as duas partes narrativas sobre João. Preste aten-
ção ao modo como as linhas de cada estrofe se articulam mediante um arranjo
simultâneo de progresso e repetição de termos e ideias, ora com arranjo quiás-
tico, ora não; ora em paralelismo sinonímico, ora em antitético, ora em climático:
1 No princípio existia a Palavra,
e a Palavra estava diante de Deus
e a Palavra era Deus.
2 Ela estava no princípio com Deus.
3 Todas as coisas vieram a existir por intermédio dela,
e sem ela nada do que tem vindo à existência veio a existir.
4 Nela estava a vida,
e a vida era a luz dos homens;
5 a luz resplandece nas trevas,
e as trevas não prevaleceram contra ela.
9 Ela era a luz verdadeira,
a luz que ilumina todo ser humano
e estava chegando ao mundo.
10 Ela estava no mundo,
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O CONTEXTO DE JOÃO
A REALIDADE
fecha com uma data no início do segundo século. Raymond Brown, um dos prin-
cipais estudiosos de João na segunda metade do século XX, concluiu que a data
do Evangelho deve girar ao redor do ano 100 (BROWN, 1999, p. 104 e p. 108)
– eu diria, alguns anos antes ou alguns anos depois, mais possivelmente antes.
O Contexto de João
170 UNIDADE IV
famosa pelo seu teatro, que comportava cerca de 25.000 espectadores. Embora, a
partir do III e IV séculos d.C., a cidade tenha se tornado um importante centro do
Cristianismo; no final do primeiro século d.C., as igrejas cristãs ainda eram abso-
luta minoria na cidade e enfrentavam tanto a polêmica teológico-religiosa como,
em distintas ocasiões, perseguição física. O enfrentamento contra o Império era
uma das características permanentes da realidade dos primeiros cristãos. Numa
cidade como Éfeso, capital de província, a presença física e simbólica do Império
era avassaladora, de modo que não podemos deixar de considerar como a teolo-
gia joanina responde a essa presença imperial dominadora.
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Não é possível, a partir dos dados do Evangelho de João, reconstruir uma
situação específica da realidade de seu tempo que tenha motivado a sua escrita.
O conteúdo do Evangelho sugere uma motivação genérica – a necessidade de
edificar as comunidades com uma compreensão mais profunda da pessoa e
do ministério do Senhor Jesus. Entretanto, as afirmações sobre a perseguição
e o sofrimento no capítulo 15, bem como o livro do Apocalipse, escrito algum
tempo depois do Evangelho, e a tradição das igrejas cristãs no segundo século
d.C. sugerem que algum tipo de perseguição ameaçava os cristãos da região da
Ásia Menor a quem os escritos de João foram dirigidos.
a. Gênero Textual.
O gênero de João é o Evangelho (para uma breve discussão, veja a unidade sobre
Marcos), embora João tenha uma série de diferenças formais em relação aos
Evangelhos Sinóticos. O gênero Evangelho era, predominantemente, um gênero
didático e apologético que desempenhava papel importante na formação da iden-
tidade das comunidades a que se dirigia. Nesse sentido, o contexto da escrita do
Evangelho é dominantemente polêmico e atende primariamente à necessidade
de edificação e fortalecimento da comunidade na fé. É digno de nota que Irineu
relata a presença de Cerinto, um herético, que criava problemas nas comunida-
des cristãs da cidade na época do Evangelho (Contra Heresias III, xi, 1). Quase
nada sabemos dos ensinos de Cerinto, mas o testemunho de Irineu nos ajuda a
firmar a hipótese de que parte da motivação para a escrita do Evangelho foram
polêmicas doutrinárias nas comunidades da Ásia Menor (o que também se pode
depreender das cartas do Apocalipse).
b. Interdiscursividade.
O Contexto de João
172 UNIDADE IV
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namente a fé, precisamos conhecer bem a Jesus, pois o Espírito (Paracleto) que
nos foi dado é o Espírito de Jesus, que nos faz viver como o Messias Jesus viveu.
A chave desse conhecimento é a prática do amor: quando amamos a Deus e ao
próximo, o próprio Deus habita em nós.
Agora nosso foco recairá sobre a análise da dimensão teológica da ação na perícope.
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Bultmann (1971), por exemplo, notou as semelhanças estilísticas entre o
Prólogo e algumas das Odes de Salomão, o que nos ajuda a situar o texto no fim
do primeiro século e início do segundo, em um ambiente em que as comuni-
dades cristãs não só tinham de lidar com as suas relações com o Judaísmo, mas
também com o gnosticismo que estava nascendo. Essas semelhanças também
nos sugerem que João, no Prólogo, usou ou o recurso da estilização e compôs o
Prólogo seguindo padrões de hinos litúrgicos, ou fez uso de citações de um ou
mais hinos cantados nas comunidades da Ásia Menor.
Do ponto de vista argumentativo, o uso de material litúrgico é um recurso
importante para captar a benevolência de ouvintes e leitores, que tendem a se
identificar com o texto na medida em que o texto se identifica com sua vida comu-
nitária. O uso desse ou desses hinos também nos ajudam a explicar porque alguns
termos teológicos importantes do Prólogo não são mais usados no Evangelho.
O arranjo estilístico, enfim, nos mostra parcialmente a lógica teológica do
Prólogo, iniciando com a ação criadora de Deus, passando pela encarnação do
Logos e culminando em seu ministério em nosso favor - com a segunda e a ter-
ceira partes da lógica entremeadas com o ministério de João Batista. A unidade
de Deus (Pai e Filho) e a unidade teológica de criação-salvação são realçadas
mediante à desunião do mundo e à conflitividade nele presente por causa do
pecado (trevas), conflitos tanto entre seres humanos e Deus, como entre os seres
humanos por causa de suas particularidades (o conflito entre Lei e Graça).
Fonte: o autor
Você já reparou que, nesta unidade, não temos um tópico específico para a aná-
lise da dimensão espaço-temporal da ação. Como já mencionado várias vezes ao
longo desta e de disciplinas anteriores, um método exegético não deve ser utili-
zado de forma rígida. No caso específico do método sêmio-discursivo, a sua lógica
é a de círculos concêntricos – crescendo do mais simples ao mais complexo – ou
a de diferentes pontos de vista sobre o texto. Os cinco ciclos da Fase Final são, de
fato, cinco modos diferentes ou cinco círculos distintos para chegar ao mesmo
ponto: a compreensão do texto. Por isso, ao propor o aprendizado do método,
também mostro que um ou mais ciclos podem ser trabalhados em conjunto.
Do ponto de vista temporal, temos uma série de arranjos e contrastes importantes:
a. O ‘tempo fora do tempo’ (no princípio, v. 1-2) se contrapõe ao ‘tempo no
tempo’ (todo o resto do Prólogo), servindo não só como modelo para o tempo,
mas, e principalmente, como contraste entre a existência divina e a existência
criada – a primeira, não definida pela temporalidade; a segunda, definida pela
temporalidade natural e histórica.
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pelos seres humanos – rejeição, porém, que não ‘prevalece’ sobre a luz.
d. No ‘tempo no tempo’, temos, também, o contraste entre o tempo do Batista
e o tempo de Jesus – o tempo do testemunho da luz e o tempo da presença da
luz entre nós. Embora o Batista anteceda historicamente o Messias, este é ante-
rior ao Batista – porque existia ‘fora do tempo’ (v. 15)
e. Enfim, no ‘tempo no tempo’, temos o jogo semântico do Logos como luz
criadora e vital e como luz encarnada e salvífica.
Do ponto de vista espacial, os contrastes existentes no texto provocam a sen-
sação dual de infinidade e de proximidade:
a. O Prólogo inicia em um ‘espaço fora do espaço’ – Logos e Deus diante um
do outro, em movimento de aproximação um do outro (o sentido da preposição
pros é o de aproximação, não meramente de proximidade).
b. A ação do Logos gera o ‘espaço no espaço’ que, embora não nomeado, é
reconhecido por leitoras e leitores como todo o mundo – tudo o que existe ou,
como diríamos hoje, o Universo infinito (v. 3-5; 9-10).
c. Esse espaço infinito, delimitado pelo não-espaço da esfera divina, é con-
trastado com o espaço próximo da chegada do Logos Encarnado, precedida pelo
testemunho de João. Estamos, então, no ambiente da Judéia.
d. O Logos é retratado como se movendo entre esses diferentes espaços –
‘estava no mundo’ vs. ‘estava chegando ao mundo’ vs. ‘peregrinou entre nós’ (v.
9; 10; 14). Da vastidão do Universo à proximidade da companhia cotidiana – da
invisibilidade no tempo-espaço da eternidade infinda à visibilidade no tempo-
-espaço da história humana.
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dos na continuação da análise.
A Unidade Temática
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Em dois momentos João Batista é inserido na narrativa do Logos: antes da
vinda do Logos em carne (6-8) e após a afirmação da encarnação do Logos (15).
Nos dois momentos, o tema que reveste as descrições do Batista é o da veridicção
– o adjetivo que qualifica João é μαρτυρία, e o verbo que, três vezes, descreve a
ação do Batista é da mesma raiz: marture,w.
No verso 7, o adjetivo e o verbo (no aoristo subjuntivo, duas vezes) declaram a
missão de João: dar testemunho. No verso 15, o conteúdo do testemunho é descrito.
O termo testemunha é quase que confinado aos escritos de João. Ele
ocorre no Quarto Evangelho, nas epístolas de João e também no li-
vro de Apocalipse. Ver as seguintes passagens: 1.7,19; 3.11,32,33;
5.31,32,34,36; 8.13,17; 19.35; 1 João 5.9,10; 3 João 12; Apocalipse 1.2,9;
6.9; 11.7; 12.11,17; 19.10; 20.4” (HENDRIKSEN, 2004, p. 108).
A descrição da vocação do Batista claramente alude a Ml 3,1: “[...] eis que envio
o meu mensageiro para preparar o caminho diante de mim; de repente, virá ao
seu templo o Senhor, a quem vós buscais, o Anjo da Aliança, a quem vós dese-
jais; eis que ele vem, diz YHWH dos Exércitos”. O adjetivo ‘enviado de Deus’
equivale à frase “envio meu mensageiro”, o verbo ‘surgiu’ equivale à expressão do
hebraico ‘de repente’. A diferença é que, em Malaquias, o mensageiro antecede o
próprio Deus, o que, em João, reafirma a divindade do Logos. Na tradição cristã
primitiva, a ‘preparação do caminho’ de Malaquias foi interpretada como o tes-
temunho de João Batista a respeito do Messias.
Comparando esse relato com os de Mt 3,1ss e Mc 1,2ss, notamos que, nos
Sinóticos, a tarefa de João é descrita com o verbo kerysso (anunciar, proclamar)
e não com martyreo (o verbo kekrago no v. 15 seria o equivalente ao kerysso). A
sentido aqui; (b) a aceitação de uma pessoa como membro da família: em Mateus,
por exemplo, se fala de José recebendo Maria como esposa mesmo sabendo que
estava grávida (Mt 1,20ss); e (c) a recepção de uma tradição como verdadeira
(especialmente em escritos paulinos, como 1 Co 11 e 15; Gl 2).
No Evangelho de João, é comum o uso de termos com mais de um sentido
e, provavelmente, aqui, os dois sentidos devem ser assumidos. Trata-se de reco-
nhecer a Palavra como a luz, no sentido de acolhê-la e torná-la parte da família;
e também de reconhecer a veracidade da Palavra manifesta. O verbo ginosko é
usado no campo semântico do conhecimento – intelectual e das relações de ami-
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zade. Assim, embora tenha mantido o tradicional verbo ‘receber’ na tradução,
o sentido dessa ação é mais adequadamente destacado pelo verbo reconhecer.
Dessa maneira, ao dizer veraz do testemunho e ao dizer veraz da própria Palavra
corresponde o reconhecimento humano – aceitação da veracidade da Palavra-
Manifesta e acolhida hospitaleira da Palavra-Messias.
A Palavra-Luz é rejeitada pelo mundo e pelos ‘seus’. Aqui temos o movimento
da universalidade para a particularidade – os ‘seus’ são os judeus, enquanto o
mundo é toda a humanidade, especialmente o Império Romano (o mundo conhe-
cido na época). Vejamos, por exemplo, a interpretação de McHugh:
[...] o Quarto Evangelho foi escrito para apresentar o ensino de Jesus
aos gregos e aos judeus (cf. Jo 12:20-23), e para interpretar o significado
da vida e morte de Jesus (12:24). Para tal propósito, o uso de ho cosmos
para denotar a terra habitada e, particularmente, o Império Romano,
foi uma nova ferramenta linguística disponível, pois a palavra designa-
va todas as pessoas que viviam nesse mundo (incluindo o Imperador e
seus oficiais), e o designava como o cenário espacial, histórico e exis-
tencial de suas vidas (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 38).
João diferencia, pelo verbo, a resposta dos diferentes sujeitos: o mundo não
(re)conheceu a Palavra (ginosko):
[...] o verbo é, com bastante probabilidade, usado no sentido semítico,
isto é, ‘conhecer e responder com um compromisso’, por causa do pa-
ralelo em 11:b. Para exemplos deste sentido semítico, ver Is 1:3: Jr 9:3;
22:15-16 e Os 4:1-6 (MCHUGH;STANTON, 2009, p. 40).
A escolha de João é logicamente consistente. Não seria viável falar de uma tra-
dição comum a todo o mundo, por isso, o genérico ‘conhecer/reconhecer’. Ao
apresentar a resposta dos ‘seus’, o verbo é o da tradição/hospitalidade, pois se
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A sabedoria faz o seu próprio elogio, ela se exalta no meio de seu povo.
2 Na assembleia do Altíssimo abre a boca, ela se exalta diante do Poder.
3 “Saí da boca do Altíssimo e como a neblina cobri a terra. 4 Armei a
minha tenda nas alturas e meu trono era uma coluna de nuvens. 5 Só
eu rodeei a abóbada celeste, eu percorri a profundeza dos abismos,6 as
ondas do mar, a terra inteira, reinei sobre todos os povos e nações. 7
Junto de todos estes procurei onde pousar e em qual herança pudesse
habitar. 8 Então o criador de todas as coisas deu-me uma ordem, aquele
que me criou armou a minha tenda e disse: ‘Instala-te em Jacó, em Israel
terás a tua herança.’ 9 Criou-me antes dos séculos, desde o princípio, e
para sempre não deixarei de existir. 10 Na Tenda santa, em sua presença,
oficiei deste modo, estabeleci-me em Sião 11 e na cidade amada encontrei
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
repouso, meu poder está em Jerusalém. 12 Enraizei-me num povo cheio
de glória, na porção do Senhor, no seu patrimônio. 13 Cresci como o
cedro do Líbano, como o cipreste no monte Hermon. 14 Cresci como a
palmeira em Engadi, como uma roseira em Jericó, como uma formosa
oliveira na planície, cresci como um plátano. 15 Como a canela e o
acanto aromático exalei perfume, como a mirra escolhida exalei bom
odor, com o gálbano, o ônix, o estoraque, como o vapor do incenso
na Tenda. 16 Estendi os meus ramos como o terebinto, meus ramos,
ramos de glória e graça. 17 Eu, como a videira, fiz germinar graciosos
sarmentos e minhas flores são frutos de glória e riqueza. 19 Vinde a
mim todos os que me desejais, fartai-vos de meus frutos. 20 Porque a
minha lembrança é mais doce do que o mel, minha herança mais doce
do que o favo de mel. 21 Os que me comem terão ainda fome, os que
me bebem terão ainda sede. 22 O que me obedece não se envergonhará,
os que fazem as minhas obras não pecarão”. 23 Tudo isto é o livro da
aliança do Deus Altíssimo, a Lei que Moisés promulgou, a herança para
as assembleias de Jacó. 25 Como o Fison, ela está cheia de sabedoria,
como o Tigre na estação dos frutos. 26 Como o Eufrates, ela está reple-
ta de inteligência, como o Jordão no tempo da ceifa. 27 Como o Nilo,
ela faz correr a disciplina, como o Geon no tempo da vindima. 28 o
primeiro não acabou de conhecê-la, nem mesmo o último a explorou
completamente. 29 Pois seus pensamentos são mais vastos do que o
mar e seus desígnios maiores do que o abismo. 30 Quanto a mim, eu
sou como um canal de um rio, como um aqueduto que vai ao paraíso.
31 Eu disse: “Irrigarei o meu jardim, regarei os meus canteiros.” Eis
que meu canal tornou-se um rio e o meu rio tornou-se um mar. 32
Ainda farei a disciplina resplandecer como a aurora e a farei brilhar
bem ao longe. 33 Ainda derramarei a instrução como uma profecia e
a transmitirei às gerações futuras. 34 Vede: não trabalhei só para mim,
mas para todos que a sabedoria procuram (BÍBLIA DE JERUSALÉM,
Eclesiástico, 24,1-34, 2017, on-line)1.
do varão, mas de Deus (οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ
θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν).
A construção gramatical é explicativa: todos os que são delimitados por duas
características: creem em seu nome; nasceram (não de...) de Deus. Temos, nesta
descrição, uma forte afirmação da igualdade entre os seres humanos, que se con-
trapõe, de modo radical, às noções judaicas e greco-romanas de classificação das
pessoas em dois grupos: ‘nossos’ versus ‘eles’.
Para a tradição judaica institucional (não necessariamente para a Bíblia dos
hebreus), o mundo é dividido entre judeus (salvos) e gentios (condenados); para
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os gregos, em ‘gregos’ e ‘bárbaros’; para os romanos, em ‘cidadãos (de Roma)’
e não-cidadãos (podem ser conquistados). Essa lógica classificatória é negada
por João. Na relação com Deus, nenhum privilégio de raça, poder, classe, credo,
conhecimento etc. é aceito. Só há um critério para pertencer a Deus ‘crer em seu
(Logos) nome’, que poderíamos entender mais adequadamente como ‘ser fiel à
Palavra enquanto pessoa e projeto de vida’. Nenhum outro critério é válido, por
isso a tríplice negação: não nasceram do sangue (raça, etnia, nacionalidade); não
nasceram da vontade da carne (do que é transitório e mortal, de modo que é
um nascimento que conduz à morte); nem nasceram da vontade do varão (con-
quista, propriedade, autoridade patriarcal), ao contrário, ‘nasceram de Deus’, ou
seja, foram gerados por Deus - tema que será retomado e ampliado no Capítulo
3 do Evangelho de João.
Passo, agora, a refletir mais sobre a frase τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτου. (1)
A frase, em aposição a αὐτοῖς, não é uma qualificação restritiva, mas
definidora: aceitar o Logos é crer e confiar em seu nome. Embora hou-
vesse Vida e Luz no Logos (1:3-4), o próprio Logos ainda não havia
recebido nenhum outro nome, em adição, muito menos um nome pes-
soal específico (αὐτοῦ). A frase quase idêntica, alterada parcialmente,
recorre, funcionando como um inclusio abrangente, em 20:31, como a
conclusão solene do Evangelho (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 46).
(2) o verbo pisteuw, normalmente traduzido por crer, tem como significado
primário o ato de confiar em alguém, que rege uma relação de fidelidade ou con-
fiança. Crer, então, não é mera questão de ‘concordar com o que é dito’, mas sim
um compromisso fiel e confiante; (3) a expressão ‘em seu nome’, segundo Brown,
[...] também é tipicamente joanina (2:23; 3:18; 1Jo 5:13). Crer no nome
de Jesus não é diferente de crer em Jesus, embora a primeira expressão
destaque mais a ideia de que, para crer em jesus, se requer aceitar que
ele carrega o nome divino que lhe foi outorgado por Deus (17:11-12)
(BROWN, 1999, p. 204).
Esta frase não se aplica a Jesus, ele é sempre chamado, em João e em outros
livros, de ὁ υἱὸς τοῦ θεοῦ. João, em especial, ainda chama Jesus de μονογενὴς
(1,14.18; 3,16.18; 1Jo 4,9) – ele é o único autor do NT a chamar Jesus de unigênito.
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e filhos; não só anunciam a Palavra, mas vivem como a Palavra encarnada. Vale
aqui uma citação:
[...] ele nunca usa, nem no Evangelho, nem nas Epístolas, o termo uioí
para referir-se aos crentes. A pessoa se torna um uios pela adoção; mas
um teknon pela regeneração e transformação. Paulo usa ambos os ter-
mos ao descrever os crentes como filhos de Deus. O substantivo que
João usa para esse propósito vem de tiktw - gerar. No entendimento
de João, a salvação é a concessão da vida, o nascer-se (sic) de Deus, de
modo que a pessoa se torna sua filha (1 Jo 2.29; 3.9). Mediante esse ato
de ser gerada por Deus, a pessoa é transformada à semelhança de Deus.
E, como Deus é amor, o ser que nasce de Deus se manifesta no amor
para com os irmãos (1 Jo 4.7, 8). João, portanto, enfatiza extensamente
o amor como a marca do cristão: o amor é luz, mas o ódio é escuridão, e
o que odeia caminha nas trevas (1 Jo 1.10, 11). O amor que se espera de
nós é do tipo auto-sacrificial (1 Jo 3.16) (HENDRIKSEN, 2001, p. 115).
Uma das características mais marcantes do Prólogo é que o seu termo central,
Logos, jamais volta a ser usado no Evangelho de João. Alguns autores usam este
dado para afirmar que o Prólogo não é de autoria joanina; outros, para afirmar
que teria sido um hino das comunidades apropriado por João. Não é possível
verificar a validade dessas especulações, na medida em que não temos nenhum
indício documental concreto da existência de 1,1-18 como um escrito indepen-
dente. No final das contas, trata-se apenas de uma questão de interpretação e,
aqui, elementos não-hermenêuticos acabam entrando em cena desnecessaria-
mente (subjetividade dos intérpretes, o ethos acadêmico e/ou eclesiástico).
Parece-me muito mais viável explicar a ausência da palavra logos, enquanto
‘título’ de Jesus no Evangelho, a partir da percepção de que a coerência não se
funda apenas no plano de expressão, nem no nível discursivo do plano de conte-
údo, mas também nos níveis narrativo e profundo. Se a palavra logos não reaparece
no Evangelho, o tema da manifestação é recorrente, bem como os temas da rejei-
ção e do reconhecimento da manifestação divina no logos encarnado.
Outro aspecto marcante da pesquisa sobre o Prólogo tem sido a discussão sobre o
pano de fundo a partir do qual João desenvolveu sua noção de Jesus como Logos
Theou. No período áureo da Religionsgeschichtliche Schule (Escola da Pesquisa
Histórico-Religiosa), que durou do início do século XX até meados dos anos
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1950, a conclusão mais comum era a de que esse pano de fundo era grego (ou a
filosofia estóica, ou o pensamento hermético, ou o gnosticismo). Após esse perí-
odo, e até hoje, a tendência da pesquisa histórico-crítica é afirmar que o pano de
fundo é judaico (Sabedoria [em Provérbios e no Eclesiástico, ou a memra=pa-
lavra nos Targuns [traduções da Bíblia para o aramaico], ou o logos nos escritos
de Filo de Alexandria).
Entendo que tal discussão, embora extremamente importante, propõe con-
clusões certas no que afirmam, mas erradas no que negam. Podemos vislumbrar
no Prólogo tanto um diálogo interdiscursivo com o mundo judaico – mono-
teísmo, criação pela palavra, criação pela sabedoria, chegada da sabedoria ao
mundo (seja nos escritos canônicos, na LXX, seja em Filo ou em Qumran etc.)
–, quanto um diálogo com o mundo helenístico – razão em sentido amplo, o
logos estoico em particular etc.
Certamente, não podemos afirmar que a fonte do conceito de logos é ape-
nas ‘grega’ ou apenas ‘judaica’. De fato, a questão hermenêutica mais importante
não é a da origem. A análise das relações interdiscursivas não se preocupa em
estabelecer origem ou fonte, mas sim entender como o texto produz significado
dentro de um universo discursivo complexo como o do evangelista João, tanto
em suas relações contratuais como em suas relações polêmicas.
Passemos, então, à análise da Palavra nos percursos do texto. Relembrando:
A Palavra-Deus-Manifestação Criacional (1-5);
B Palavra-Mundo-Manifestação-Rejeitada (6-11);
(Testemunho de João)
B’ Palavra-Mundo-Manifestação-Reconhecida (12-13);
(Testemunho de João)
A’ Palavra-Deus-Manifestação Encarnacional (14-18)/
(4) Percurso da Palavra-Deus-Manifestação Criacional (1-5)
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2
οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ
ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων·
5
καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν.
O primeiro percurso temático centrado na Palavra (versos 1-5) apresenta a
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manifestação da Palavra sob dois eixos conceituais: (a) Jesus=Logos é Deus, mas
é Deus-distinto de Deus; (b) Jesus=Logos é o Deus-agente-da-criação. Temos,
então, dois campos de significado para refletir.
(a) Jesus é Deus-distinto-de-Deus. Mais adiante, no próprio Prólogo, a dis-
tinção entre Logos-Deus e Deus será explicitada mediante o uso da metáfora
familiar Deus é Deus-Pai=Deus (usado sem qualificativos) e Deus-Filho=Logos
(usado com diferentes qualificativos, exceto nesses primeiros versos do Prólogo).
Como já vimos na discussão sobre contexto e interdiscursividade, o uso da
palavra grega λόγος como título de Jesus tira proveito das suas diferentes signi-
ficações no mundo joanino. Predominantemente, podemos afirmar que o λόγος
joanino é uma releitura da palavra-sabedoria-torá judaicas. Apresentar Jesus como
Deus-Logos é destacar o caráter de manifestação do Deus-Filho. Implícito nos
versos 1-3 está o conceito de testemunha: a testemunha mais adequada é aquela
que representa, efetiva e fielmente, a pessoa de quem ela dá testemunho. Jesus é
testemunha fiel porque no tempo-antes-do-tempo ele vivia em comunhão com
Deus-Pai, não como uma de suas criaturas, mas como Deus propriamente dito.
Em outras palavras, somente Deus pode manifestar Deus e, desde antes da cria-
ção do mundo, Deus é Deus que se manifesta a Si mesmo. A partir da criação
do mundo, Deus é Deus que se manifesta ao outro criado.
O quarto sentido, vétero-testamentário, é o sentido atribuído ao con-
ceito do Logos em todas as interpretações clássicas, e podemos ter por
certo que o evangelista intencionava incluir em seu uso todos os aspec-
tos do sentido dado no Antigo Testamento ao termo logos. Isto, porém,
não precisa nos impedir de afirmar, em acréscimo, que o sentido pri-
mário de Logos em João 1 é o quinto, a saber, que o termo Logos equi-
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Nos versos 1-2, portanto, o Deus-Manifestador é apresentado como Palavra
(Logos), em um arranjo de paralelismo que destaca a divindade do Logos - um
quiasmo de três linhas e uma quarta linha que resume o quiasmo:
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος,
καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν,
καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.
οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν.
Na tradição teológica, se costuma falar da existência do Logos, antes da criação
do mundo, como a pré-existência do Logos. A partir do verso 3, o Prólogo passa
a falar do Logos como agente da criação (v. 3) e presença de Deus-manifestação
na criação (v. 4-5), usando, para este último item, a metáfora da luz. É bem
provável que a escolha da metáfora da Luz tenha sido fruto da interpretação
(midraxe) de Gn 1,1-5, pois o primeiro ato criador da palavra de Deus foi a luz
(“Disse Deus: Haja luz; e houve luz” Gn 1,3). A tradição de Jesus como agente
da criação já está presente na literatura paulina (ver, principalmente, Cl 1,15-
18) e também em Hebreus (Hb 1,3). Já sabemos que na base dessa afirmação
está a noção da Sabedoria como agente divino na criação (como vimos, espe-
cialmente em Provérbios e Eclesiástico, que identifica a Sabedoria com a Torá).
A diferença é que, em João, Jesus é Deus, não só um agente de Deus. A Palavra
é Deus-Manifestação e, também, Deus-Agente-Criador.
A luz simboliza a vida. Não só a vida enquanto o viver das criaturas, mas tam-
bém a vida enquanto a vida-com-Deus que o ser humano poderia ter vivido, mas
que rejeitou mediante o pecado. Em Gn 2,7 e Sl 104,29-30 é o Espírito de Deus
que dá vida aos seres criados, temática que João incorpora, mas atribui ao Logos
vida em seu nome” (note que ‘nome’ equivale a Memra). Mesmo não usando
o termo Logos fora do Prólogo, o Evangelho de João é o Evangelho da Palavra
– Logos-manifestação-divina.
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τοῦ πληρώματος αὐτοῦ ἡμεῖς πάντες ἐλάβομεν καὶ χάριν ἀντὶ χάριτος· 17 ὅτι ὁ
νόμος διὰ Μωϋσέως ἐδόθη, ἡ χάρις καὶ ἡ ἀλήθεια διὰ Ἰησοῦ Χριστοῦ ἐγένετο. 18
θεὸν οὐδεὶς ἑώρακεν πώποτε· μονογενὴς θεὸς ὁ ὢν εἰς τὸν κόλπον τοῦ πατρὸς
ἐκεῖνος ἐξηγήσατο.
Enquanto o percurso anterior poderia ser lido dentro dos limites da tradi-
ção judaica, esse segundo percurso do Logos mostra que estamos em um mundo
que transcende os limites dessa tradição. De igual modo, mostra que estamos
em um mundo que explode os limites da visão grega da vida e da divindade. A
frase determinante e ‘escandalosa’ é a que dá início a esse segmento do Prólogo:
“Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο”. Que a Sabedoria e a Memra estavam presentes no
mundo, assim como o logos grego está presente no mundo, não se pode negar,
porém, João afirma algo muito mais complexo do que dizer que Logos-Deus está
no mundo. João afirma que Deus-Logos se fez carne, ou seja, assumiu o viver
transitório e efêmero da criatura. Nessa única sentença, João reafirma a declara-
ção paulina igualmente avassaladora: “antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo
a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em
figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz” (BÍBLIA, Filipenses 2,7-8).
Nesse Percurso, encontramos a forma mais intensa da polêmica joanina,
tanto em relação ao Judaísmo oficial, quanto em relação à visão greco-romana
da realidade e da divindade. Vejamos:
(a) Polêmica contra o dualismo greco-romano
O dualismo ontológico espírito-matéria tem suas origens no pensamento filo-
sófico grego, especialmente em sua vertente platônica. Ele identifica a maldade,
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Na tradução, optei pelo verbo ‘peregrinar’ para traduzir um verbo grego que,
literalmente, significa ‘morar em tendas’ ou ‘acampar’. Esse verbo é alusivo às
tradições litúrgicas de Israel, como nos lembram Mateos e Barreto: “O verbo
‘acampar’ deriva, em português, de ‘campo/acampamento’ e conota a ideia de
tenda de campanha, gr. Skené, substantivo do qual deriva o verbo aqui usado.
Aparece, assim, nesta frase, uma alusão à antiga Tenda do Encontro (ou Ten-
da da Congregação), morada de Deus entre os israelitas durante sua peregri-
nação pelo deserto, a primeira época de israel (Êx 33:7-10), substituída, mais
tarde, pelo santuário de Jerusalém (2Sm 7:1-13; 1Rs 5:15-19; 6:1ss.). Aquela
presença de Deus foi substituída por esta: a tenda de Deus, o lugar onde ele
habita entre os seres humanos, é um homem, uma ‘carne’. Aflora, aqui, o tema
do êxodo, que será desenvolvido no corpo do Evangelho a partir de 4:46b e
que era próprio da festa da Páscoa” (MATEOS; BARRETO, 1982, p. 68).
(Êx 33:18), Deus respondeu: ‘farei passar adiante de ti toda a minha gló-
ria, e pronunciarei diante de ti o nome YHWH ... meu rosto, porém, não
poderás ver, porque ninguém pode vê-lo e permanecer vivo ... quando
minha glória passar colocar-te-ei em uma fenda da rocha e te cobrirei
com a palma da mão até que eu tenha passado, e quando retirar minha
mão tu poderás ver as minhas costas, mas meu rosto não o verás’ (33:19-
23). O Senhor passou adiante dele proclamando: ‘YHWH, YHWH, Deus
compassivo e clemente, grande em graça e fidelidade (cheio de amor e
lealdade), etc.’ (34:6) (MATEOS; BARRETO, 1982, p. 71).
Quem segue fielmente a Jesus, porém, vê a glória de Deus e não morre, pelo
contrário, herda a vida eterna! Eis a incomparável novidade da mensagem joa-
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nina: tudo o que se esperava nas promessas de Deus ao antigo Israel agora se
cumpre em Jesus, e se cumpre de um modo muito mais glorioso e inesperado.
Não só para Israel, mas para ‘todos os que o reconheceram’. Todos que reconhe-
cem Jesus como o Messias, o Deus-Logos, Deus-Manifestação, Deus-Exegese,
são feitos, pelo próprio Deus, seus filhos e filhas, sem distinção de etnia, raça,
nacionalidade, classe, cor, credo etc., pois a luz verdadeira ilumina a todos os
seres humanos. Cabe a nós receber a Luz e andar nela.
Muito bem, agora cabe a você realizar esse passo da metodologia exegética. Esta
será a atividade que servirá de verificação da aprendizagem desta unidade da
nossa disciplina, por isso, capriche.
Como fazer? Minha sugestão é que você siga os seguintes passos metodológicos:
(1) Aliste as áreas da vida em que o texto pode ser aplicado – por exemplo:
liturgia, crítica social etc.;
(2) Verifique se há elementos teológicos do sentido do texto que devem ser
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe, agora, fazermos uma revisão do que foi estudado. Você ainda se lembra
do que leu e estudou nesta unidade? Tenho certeza que ainda consegue lembrar
de boa parte, mas não custa nada relembrar o que fizemos:
No Tópico 1, exemplifiquei os procedimentos da fase preparatória da exegese:
a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua segmen-
tação e estruturação. Como a estrutura do Prólogo de João oferece dificuldades
interessantes para a análise, gastei bastante tempo com ela.
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No segundo Tópico, apresentei alguns dos principais aspectos do contexto
do Evangelho de João. Mais uma vez, o espaço dedicado ao estudo do contexto
derivou da própria exigência da perícope de João, que reflete um amplo diá-
logo com o mundo de ideias e espiritualidades de seu tempo. João escreveu seu
Evangelho em amplo debate com as noções judaicas oficiais de Messias e de liber-
tação, além de entrar em diálogo crítico com o pensamento estoico sobre o logos
(a razão, a palavra que dá sentido ao mundo).
Nos Tópicos 3 e 4 estudamos a dimensão teológica da ação. Verificamos o
arranjo temático da perícope, percebemos a sua unidade e a forma como cada
um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos para crer e viver.
Jo 1,1-18 é uma perícope teologicamente muita densa. Procurei mostrar como
podemos ir além do olhar tradicional da leitura e enxergar melhor as riquezas
do texto. Por isso, gastei bastante tempo com a análise de sua teologia, em par-
ticular, o que hoje chamamos de cristologia do Prólogo do Evangelho de João.
Vimos, também, como o prólogo do Evangelho aponta para o sentido da salva-
ção que nos é dada pelo Messias.
Por fim, no último tópico, indiquei os passos necessários para se fazer a aná-
lise da dimensão missional da ação. Fica, mais uma vez, o convite para que você
mesmo faça exegese.
V. 1, “Ἐλ ἀξχῇ ἦλ ὁ ιόγνο, (No princípio era o Verbo) θαὶ ὁ ιόγνο ἦλ πξὸο ηὸλ ζεόλ, (e o
Verbo estava com Deus) θαὶ ζεὸο ἦλ ὁ ιόγνο (e o Verbo era Deus)”. O contexto em Gêne-
sis e aqui, mostra que o princípio é absoluto: o princípio de todas as coisas, o princípio
do universo. A palavra grega por trás de princípio (arché), com frequência transmite o
significado de origem, bem como pode haver ecos daquilo aqui, porque se mostra logo
que a Palavra que já estava no princípio é o agente de Deus na criação, o que podemos
chamar originador de todas as coisas (CARSON, 2007, p. 114). Por isso as palavras soam
como um eco de Gênesis 1,1, pois para explicar o Logos, o evangelista retrocedeu todo
o caminho até “o princípio”.
O versículo 2, em certo sentido, é uma repetição das duas primeiras orações do versí-
culo 1 e ressalta que “essa Palavra, que é Deus, é exatamente aquela que eu disse que
também era no princípio, e que ela estava com (pros) Deus” (CARSON, 2007, p. 118) .
Biblicamente, a obra da criação é atribuída à Trindade: ao Pai, como em Gn 1,1; Is 44,24;
45,12 e Sl 33,6; ao Filho, como em Jo 1,3.10 e Cl 1,16; e ao Espírito Santo, como em Gn 1,2
e Jó 26,13. As palavras de Hb 11,3, “o visível veio a existir das coisas que não aparecem”,
consideradas juntas com Gn 1,1, “No princípio criou Deus os céus e a terra.”, indicam que
os mundos não foram formados de qualquer material pré-existente, mas, antes, foram
formados do nada, pela Palavra Divina, no sentido que antes do fiat (do Latim: que se
faça) criativo Divino não havia qualquer outra espécie de existência ( XAVIER, 2010) .
Nos versículos 3 e 4 do Prólogo do Evangelho de João, o relacionamento entre Deus e
a Palavra no Prólogo é semelhante ao relacionamento entre o Pai e o Filho no restante
do evangelho. A Palavra que é o Filho compartilha da vida de Deus, mas tem existência
própria (Cf. CARSON, 2007, p. 119). Em João, essa Palavra denota a essencial Palavra de
Deus, Jesus Cristo, a sabedoria e o poder pessoal em união com Deus, seu ministro na
criação e governante do universo, a causa de toda vida do mundo, tanto física quanto
ética, a segunda pessoa da Trindade que se fez carne para proporcionar ao homem a sua
salvação (XAVIER, 2010) .
O versículo 5 é uma obra prima de ambiguidade planejada. Luz e trevas não são simples-
mente opostos. Trevas nada mais são que ausência de luz. Na primeira criação, “trevas
cobriam a face do abismo” (Gn 1,2) até que Deus disse: “Haja luz” (Gn 1,3). Em nenhuma
outra ocasião, a não ser a da criação, poderia ser mais apropriadamente dito: a luz brilha
nas trevas. Precisamente porque João está falando de criação e não está descrevendo
um universo dualístico, no qual luz e trevas, bem e mal, são opostos emparelhados; ele
pode descrever a vitória da luz: e as trevas não a derrotaram (como o verbo katelaben
pode ser traduzido) (CARSON, 2007, p. 119). Contudo, Luz (phos), metaforicamente, re-
fere-se à verdade e ao conhecimento de Deus, junto com a pureza espiritual associada a
eles; assim também como trevas (skotia), metaforicamente, refere-se à ignorância quan-
to às coisas divinas, quanto as suas abominações e a resultante miséria no inferno(XA-
VIER, 2010) [...].
Fonte: Santos; Xavier; Araujo ([2017], on-line)2.
202
1. “6 Surgiu um homem, um enviado de Deus, cujo nome era João. 7 Ele veio como
testemunha, a fim de dar testemunho da luz, para que todos cressem por meio
dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.” Os seguintes
termos se referem ao tempo:
a) ( ) Surgiu, cressem, era.
b) ( ) Surgiu, luz, era.
c) ( ) Testemunha, ele, era.
d) ( ) Ele, cressem, nome.
e) ( ) Deus, João, era.
2. “1 No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava diante de Deus e a Palavra era
Deus. 2 Ela estava no princípio com Deus.” Esses dois versos estão estruturados
na forma de um quiasmo A B B’ A’. Esta afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA
3. “1 No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava diante de Deus e a Palavra era
Deus. 2 Ela estava no princípio com Deus.” Nesses dois versos, os quatro verbos
possuem as seguintes características:
a) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto durativo, modo imperativo.
b) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto durativo, modo indicativo.
c) ( ) Pretérito perfeito, aspecto durativo, modo indicativo.
d) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto pontual, modo subjuntivo.
e) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto perfectivo, modo indicativo.
4. “1 No princípio existia a Palavra”. Nessa oração o sujeito é __________,
o núcleo do predicado é __________, e o adjunto adverbial de tempo é
_____________________. Escolha a alternativa que contém as respostas cor-
retas na ordem correta.
a) ( ) No princípio, existia, a palavra.
b) ( ) No princípio, a palavra, existia.
c) ( ) A palavra, existia, no princípio.
d) ( ) Existia, no princípio, a palavra.
e) ( ) Nenhuma das anteriores.
203
O Comentário de João
Donald A. Carson
Editora: Vida Nova
Sinopse: comentário exegético histórico-gramatical do Evangelho de
João, com ênfase na análise de palavras e temas teológicos.
Sócrates - 1971
Sinopse: a vida e o pensamento de um dos principais criadores da
racionalidade grega.
REFERÊNCIAS ON-LINE
1
Em: <http://bibliacatolicaonline.com/biblia-de-jerusalem/>. Acesso em 24 maio
2017.
2
Em: <periodicos.redebatista.edu.br/index.php/DP/article/download/78/61>.
Acesso em: 24 maio 2017.
GABARITO
1) A.
2) Verdadeira.
3) B.
4) D.
5) C.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
V
UNIDADE
GÁLATAS 2,15-21
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer os procedimentos da Fase Preliminar da Exegese
Sêmio-Discursiva.
■■ Descrever o contexto da Epístola aos Gálatas.
■■ Refletir sobre o sentido do primeiro segmento da perícope analisada.
■■ Refletir sobre o sentido do segundo segmento da perícope analisada.
■■ Refletir sobre o sentido do terceiro segmento da perícope analisada.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação,
■■ O contexto da epístola
■■ Análise Exegética (Primeiro Segmento)
■■ Análise Exegética (Segundo Segmento)
■■ Análise Exegética (Terceiro Segmento)
209
INTRODUÇÃO
a fim de que realmente nos tornemos capazes de ler a Bíblia com fidelidade, dis-
cernimento e criatividade. Por isso, mais do que aprender um método, precisamos
desenvolver um hábito de estudo e uma atitude de constante busca de conheci-
mento e espiritualidade por meio da leitura da Palavra.
Nesta última Unidade de nossa disciplina, adoto uma forma de apresenta-
ção do conteúdo diferente da que usei até agora. Ao invés de apresentar o passo
a passo da exegese, apresentarei o resultado final da minha própria exegese de
um texto paulino: Gálatas 2,15-21.
Como já temos visto, um texto sempre tem de ser lido em diálogo com o
seu contexto e em diálogo com a história de sua leitura nas Igrejas. No caso da
Epístola aos Gálatas, devido a sua importância no debate teológico e institucio-
nal católico-protestante, é fundamental que sejamos capazes de diferenciar os
problemas da doutrina eclesiástica dos problemas da comunidade paulina. Disto
depende a possibilidade de encontrarmos sempre novos desafios no texto bíblico,
sem nos restringirmos às leituras já consolidadas e que direcionam nosso olhar
a questões que, na maior parte das vezes, não têm mais relevância.
Sendo assim, desejo mostrar a você como o que já sabemos sempre interfere
em nossa interpretação do texto bíblico. Não podemos escapar disso. Podemos,
porém, usar esses conhecimentos a serviço de uma interpretação exegética que
ouça efetivamente o que o texto bíblico nos tem a dizer.
Introdução
210 UNIDADE V
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO, TEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO
Ἡμεῖς φύσει Ἰουδαῖοι καὶ οὐκ ἐξ ἐθνῶν ἁμαρτωλοί· εἰδότες [δὲ] ὅτι οὐ δικαιοῦται
ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου ἐὰν μὴ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡμεῖς εἰς Χριστὸν
Ἰησοῦν ἐπιστεύσαμεν, ἵνα δικαιωθῶμεν ἐκ πίστεως Χριστοῦ καὶ οὐκ ἐξ ἔργων νόμου,
ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ. εἰ δὲ ζητοῦντες δικαιωθῆναι
ἐν Χριστῷ εὑρέθημεν καὶ αὐτοὶ ἁμαρτωλοί, ἆρα Χριστὸς ἁμαρτίας διάκονος; μὴ
γένοιτο. εἰ γὰρ ἃ κατέλυσα ταῦτα πάλιν οἰκοδομῶ, παραβάτην ἐμαυτὸν συνιστάνω.
ἐγὼ γὰρ διὰ νόμου νόμῳ ἀπέθανον, ἵνα θεῷ ζήσω. Χριστῷ συνεσταύρωμαι· ζῶ δὲ
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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por não poderem estabelecer sua ascendência a Abraão.
3 A tradução da cláusula ean me por “mas”, ao invés de por “se não”, é a alter-
nativa gramaticalmente possível e faz mais sentido na perícope.
4 A tradução “fidelidade do Filho de Deus” vê o genitivo, aqui e em toda a
perícope, como subjetivo – a fé ou fidelidade que o Messias viveu. Uma justifi-
cativa adequada dessa escolha só pode ser feita na explicação exegética do texto.
5 Ninguém é tradução de passa sarx, literalmente, “toda carne”. Apesar de
perder a palavra carne, termo técnico importante em Paulo, a opção aqui feita
manifesta mais adequadamente o sentido quantitativo no texto.
Essa perícope é parte integrante da argumentação paulina em relação à unidade
da comunidade do Messias como o verdadeiro Israel de Deus. Segue, imediata-
mente, ao relato da polêmica entre Paulo e Pedro em Antioquia que, por sua vez,
exemplificava os problemas ainda enfrentados pelas comunidades cristãs, em fun-
ção da relação entre judeus e gentios (em termos contemporâneos, diríamos que
as igrejas enfrentavam uma crise de identidade – seguir nos passos da identidade
judaica ou das gentílicas? Paulo, aqui e em todas as suas cartas, opta por uma ter-
ceira possibilidade – a identidade messiânica, que transcende todas as demais
formas de identidade e identificação humanas), concluindo a seção da carta.
Essa perícope, por outro lado, serve como transição para a discussão mais
ampla sobre a relação entre Lei e Graça no processo de salvação nos capítulos 3 e
4. O tom da epístola, como um todo, é intenso, indicando que o problema enfren-
tado pelos gálatas era bem concreto, demandando um profundo envolvimento
pessoal de Paulo na questão. Em parte, a intensidade emocional pode dar conta
de algumas das dificuldades presentes na epístola e em sua linha argumentativa,
DESTINATÁRIOS
A quem foi dirigida a Epístola aos Gálatas? Essa é a questão que tem ocupado
a pesquisa exegética neotestamentária do último século, sem que um consenso
tenha sido efetivamente alcançado. O problema pode ser descrito da seguinte
forma: a Epístola foi dirigida a comunidades cristã no território original do reino
da Galácia (norte da Província romana) ou a comunidades cristãs na região sul
da província romana, a Galácia dos frígios e icôneos? Neste segundo caso, seriam
as comunidades fundadas por Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária
paulina (At 13-14). No primeiro, Paulo teria fundado as comunidades em sua
segunda viagem (At 16) e voltado para acompanhá-las em sua terceira viagem
(At 18), os gálatas seriam descendentes dos celtas que migraram para a região
no III século a.C. No segundo, seriam naturais da região. Neste ponto, porém,
a distinção cai para segundo plano, posto que os antigos celtas assimilaram cul-
tura e religião dos antigos moradores e, sob a dominação romana, incorporaram
o helenismo.
Do ponto de vista da compreensão da Epístola, a decisão sobre este tópico
é irrelevante. Quando consultamos comentários escritos por autores que defen-
dem distintas posições quanto aos destinatários, não encontramos diferenças
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significativas na interpretação. As principais diferenças têm a ver com a rela-
ção entre os elementos factuais em Gálatas e a narrativa sobre Paulo em Atos.
Nesse caso, os defensores da hipótese do Sul normalmente tendem a atribuir
maior facticidade histórica à narrativa lucana, enquanto os defensores da
hipótese Norte confiam menos no livro de Atos para reconstruir cronologi-
camente a vida de Paulo.
DATA DA CARTA
discussão sobre a Lei em Gálatas, por um lado, e em Romanos, por outro. Tal dife-
renciação sugere que a Epístola aos Gálatas tenha sido escrita mais cedo, ainda na
década de 40, período em que não havia, ainda, suficiente clareza teológica e orga-
nizacional para definir os modos próprios de pertença de gentios às comunidades
de seguidores de Jesus e suas obrigações no tocante à identidade judaica.
Não temos respostas definitivas e datas exatas, mas temos um quadro sufi-
cientemente bem delineado para entender a carta. Podemos situar Gálatas entre
os anos 48 e 56 d.C., no período entre o final da primeira viagem missionária
de Paulo e meados da terceira. Podemos, ainda, definir seus destinatários como
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O CONTEXTO DA EPÍSTOLA
Diante do tom da carta, não podemos esperar encontrar nela uma descrição
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objetiva da pregação dos oponentes de Paulo. Devemos contar, sim, com algum
exagero e alguma distorção do que de fato essas pessoas estavam ensinando.
Cautela, portanto, é indispensável para tentarmos redescrever o conteúdo do
ensino dos que estavam afastando os gálatas do Evangelho do Messias. Para
entender a polêmica, não é necessário tomarmos posição, não é preciso decidir
quem estava certo; é preciso, porém, tentar entender, da melhor maneira possí-
vel, as duas posições em debate. Neste tópico, usando apenas o recurso de que
dispomos - a própria carta - nosso foco será reconstruir a pregação desviante.
Quem eram esses oponentes de Paulo? Vejamos os indícios na Epístola: (a)
em 1,6ss, Paulo se refere a eles de modo indefinido “algumas pessoas”, o que pode
sugerir que não fossem das comunidades paulinas; (b) em 4,17, Paulo afirma que
eles não têm um interesse pelo bem-estar dos gálatas, mas apenas pelo cresci-
mento de sua própria comunidade; (c) em 5,7ss, ele se refere aos seus oponentes
como pessoas que perturbam os gálatas, que tiram a tranquilidade; e (d) em 6,12-
13, temos a mais clara descrição desses oponentes:
[...] estes que querem apresentar uma boa imagem na carne, eles é que
vos obrigam a circuncidar-vos, somente para eles mesmos não serem
perseguidos por causa da cruz do Messias. Porque nem ainda esses
mesmos que se circuncidam guardam a lei, mas querem que vos cir-
cuncideis, para se gloriarem na vossa carne (BÍBLIA, Gálatas 6,12-13).
O Contexto da Epístola
218 UNIDADE V
■■ não são honestos, apenas apresentam uma boa imagem, mas não vivem
de acordo com ela (é impossível não ver uma alusão ao comportamento
de Pedro criticado por Paulo em 2,11ss.);
■■ o foco deles é singular: querem obrigar os gálatas a se circuncidarem
(novamente, temos de ver a alusão ao comportamento de Tito que não
se deixou circuncidar, mesmo sendo gentio, cf. 2,3 – em que Paulo fala
de falsos irmãos);
■■ o motivo é egoísta: não querem ser perseguidos por causa do Evangelho –
perseguidos pelas autoridades judaicas, assim como Paulo, anteriormente,
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perseguira seguidores de Jesus e, ele mesmo, enfim, se tornou perseguido;
■■ são hipócritas: porque exigem a circuncisão dos gálatas, mas eles mes-
mos não guardam toda a lei – seu motivo é impuro: querem se gloriar
por terem conseguido convencer os gálatas à circuncisão.
O que ensinavam?
“Outro Evangelho, que não é outro”. Podemos dizer que ensinavam o oposto
da pregação paulina – sobre a circuncisão e a guarda da lei. Vejamos: (a) nos
caps. 1-2, eles claramente são acusados de contestar a legitimidade da pregação
de Paulo, acusando-o de não pregar o verdadeiro Evangelho e de não ter auto-
ridade da parte das comunidades cristãs de Jerusalém ou dos apóstolos de Jesus;
(b) acusam Paulo de ser hipócrita e motivado apenas por interesses egoístas (cf.
1,10); (c) ou eles, ou o próprio Paulo, descrevem duas correntes das comunida-
des cristãs da época: o evangelho da circuncisão e o evangelho da incircuncisão
– Paulo, ao que tudo indica, não opunha um ao outro, mas seus oponentes sim
e afirmavam que o evangelho da incircuncisão não era legítimo; e (d) a exigên-
cia da circuncisão era fundamental da parte deles (cf. o caso de Tito e a acusação
em 6,12s), mas a disputa exegética nos caps. 3-4 mostra que o problema era mais
amplo: tinha a ver com o estatuto da Lei na vida das comunidades gentílicas e
com o cumprimento de certas datas litúrgicas.
Todos esses indícios apontam para uma discussão relativa à identidade dos
seguidores do Messias. Os oponentes de Paulo faziam questão de que os gentios
também se obrigassem a seguir os elementos da Lei que delimitavam a identi-
dade judaica e distinguiam, radicalmente, os judeus dos gentios. Usando termos
da época, é provável que eles vissem os gentios das comunidades paulinas como
tementes a Deus e estivessem exigindo deles que se tornassem plenos prosélitos,
assumindo inteiramente a condição de judeus, renegando a sua condição anterior
como gentios. Os indícios sugerem que fossem judeus de Jerusalém, seguidores
de Jesus, e que viessem do partido dos fariseus - talvez até tenham sido previa-
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O Contexto da Epístola
220 UNIDADE V
O EVANGELHO DE PAULO
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o que vale é guardar as ordenanças de Deus. Cada um permaneça na
vocação em que foi chamado. Foste chamado, sendo escravo? Não te
preocupes com isso; mas, se ainda podes tornar-te livre, aproveita a
oportunidade. Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é
liberto do Senhor; semelhantemente, o que foi chamado, sendo livre, é
escravo do Messias. Por preço fostes comprados; não vos torneis escra-
vos de homens. Irmãos, cada um permaneça diante de Deus naquilo
em que foi chamado (BÍBLIA, 1Coríntios 7,17-24).
Diante desse texto, mais calmo e didático, podemos entender melhor a polêmica
em Gálatas. Note, por exemplo, a similaridade entre “a circuncisão, em si, não é
nada; a incircuncisão também nada é, mas o que vale é guardar os mandamentos
de Deus” e “pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o
participar da nova criação” (Gl 6,15). É claro que Paulo, em Gálatas, jamais pode-
ria afirmar que estar na nova criação é sinônimo de guardar os mandamentos de
Deus! O cerne da questão é a liberdade identitária (por assim dizer).
Para seguir o Messias, segundo Paulo, não é necessário deixar de ser o que a
pessoa é: judeu, grego, romano, escravo, homem, mulher, cita, livre etc. Podemos
dizer que, descontadas questões éticas, Paulo entende que para seguir o Messias
não é necessário trocar de identidade. A identidade messiânica não é uma nova
identidade que substitui a anterior, mas um novo modo de viver que se sobrepõe
ao anterior e lhe dá uma nova configuração existencial: viver amando o próximo.
Por isso, não gosto do termo judaizantes para descrever os oponentes de Paulo
– jamais Paulo recomendaria a um judeu que deixasse de ser judeu, assim como
jamais recomendaria a um gentio que deixasse de ser gentio.
No Messias somos livres de tudo aquilo que define a carne, ou seja, nossa
existência terrena finita: social, cultural, política, econômica. Por que?
Porque todos quantos fostes batizados no Messias do Messias vos re-
vestistes. Destarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um no Mes-
sias Jesus. E, uma vez que sois do Messias, também sois descendentes
de Abraão e herdeiros segundo a promessa (BÍBLIA, Gálatas 3,27-29).
EVANGELHO E LEI
O Contexto da Epístola
222 UNIDADE V
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tidade judaica no período do Segundo Templo. A noção de aliança afirma que
Israel é o parceiro privilegiado de YHWH, o povo eleito, receptor das promessas
e bênçãos divina, a verdadeira semente de Abraão, que o distingue radicalmente
de todos os demais povos. Dentro dessa perspectiva global, várias tendências
perpassam o Judaísmo do Segundo Templo, desde as mais radicalmente exclu-
dentes até as de tom universalizante da mensagem de YHWH (como em Isaías,
por exemplo, com seu discurso sobre a Torá sendo acolhida e obedecida por todas
as nações). A noção de aliança é determinante para todos os grupos judaicos do
período paulino, mas não pode ser vista como um bloco monolítico. Diversas
concepções – antagônicas entre si – da aliança entre Deus e Israel estão pre-
sentes no período neotestamentário e a pregação paulina claramente se insere
nessas concepções.
A Torá é a marca visível da aliança, é a revelação de Deus para o Seu povo.
Sem ela, Israel não tem sentido, não possui identidade. Novamente devemos
levar em conta que não há uma visão singular da Torá, mas diversas compre-
ensões da Torá no Judaísmo do Segundo Templo. Como no caso da aliança, há
concepções que usam a Torá como demarcador excludente de identidade, e há
concepções que interpretam a Torá como fonte de atração para as nações. A pala-
vra, em si, também é usada com diversos significados, mas o que nos interessa,
aqui, é o sentido plural da Torá enquanto: cânon, Palavra de Deus e Lei divina
que define a identidade de Israel.
Do ponto de vista da interpretação da Torá em relação à conduta cotidiana,
há, pelo menos, duas grandes correntes no Judaísmo do Segundo Templo: (a)
Quem não guarda toda a lei está debaixo de maldição, mas, pela graça de Deus, o
Messias assumiu essa maldição sobre si mesmo e libertou a humanidade. Dessa
forma, Paulo rompe com a tensão que marcava o Judaísmo do Segundo Templo
em sua compreensão da Torá e a apresenta em termos mais positivos. Podemos,
assim, supor que Paulo vivia em um ambiente no qual
[...] é como consequência de pertencer ao povo eleito de Javé que o
israelita se encontra, a priori, comprometido com a obediência à tôrâh.
Assim, ele via que era um imperativo conhecer a tôrâh, compreendê-la
corretamente, e ser lembrado dela regularmente, se é que ele iria per-
manecer como um membro do seu povo. Além disso, era sobre a since-
ridade e disposição de cada israelita individualmente que o bem-estar
da nação toda dependia (CLEMENTS, 1978, p. 109).
A TORÁ EM PAULO
A palavra torah (e sua tradução grega nomos) possui diferentes usos e signifi-
cados: (a) o Pentateuco como um todo; (b) as seções normativas do Pentateuco
– mandamentos, estatutos e preceitos conforme a terminologia bíblica; (c) ins-
trução sacerdotal ou geral; (d) norma – consuetudinária ou jurídica – a ser
vivenciada em sociedade; (e) exigência legal externa à pessoa (neste sentido, no
Antigo Testamento temos a crítica profética, em Jeremias 31 e Ezequiel 36, já se
mostra o limite da normatividade institucional da Torá); (f) Lei como caminho
de salvação, como meio de acesso ao Reino de Deus e, assim, marca primária da
identidade do povo judeu (conforme a tradição farisaica e o ensino sacerdotal
O Contexto da Epístola
224 UNIDADE V
oficial da época paulina); e (g) lei como princípio existencial, como em Rm 8,1ss
– “a lei do Espírito, que é lei da vida [...]”.
Como caminho de salvação e marca primordial de identidade, a torá é criticada
por Paulo, ele mostra os seus limites e a contrapõe ao Messias e sua fidelidade
ao Pai. Como vimos, para Paulo, é por meio da fidelidade e não da obediência
que se entra e permanece na aliança com Deus. É nesse sentido que entendo a
sentença “contra estas coisas não há lei”. Na perícope, ela se refere ao amor ao
próximo como oposto às discórdias entre irmãos. Contra o amor, a lei interna-
lizada, não há lei (mandamento ou princípio, ou cânon, ou norma). Fidelidade
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(e amor) é atitude humana anterior à lei, antecede à moralidade e a ética. Não é
possível obedecer ao mandamento de amar ou de ser fiel. Ser fiel e amar é ques-
tão, pura e simples, de ser, é apenas como caminho de salvação que a lei é abolida,
anulada. Ela não é anulada enquanto Palavra de Deus, nem enquanto instrução
normativa para seu povo.
Nos textos paulinos, encontramos afirmações positivas sobre a torah. (1)
Enquanto a seção canônica (Pentateuco), Paulo entende a Torá como palavra
de Deus normativa para o seu povo. Na própria Torá é que Paulo se baseia para
interpretar a vida do Messias Jesus e, voltando ao texto, interpretá-lo a partir
da atividade do Messias (e.g. Rm 7,12-14; 1Co 9,9); (2) enquanto palavra de
Deus, é ela quem nos revela sermos pecadores e, ao mesmo tempo, nos abre o
acesso à libertação do pecado e da lei (e.g. Gl 2,19); nesse mesmo aspecto, a Torá
(Pentateuco) mostra que judeus e gentios, igualmente, são pecadores e caren-
tes da graça de Deus; e (3) bem interpretada, a Lei revela a essência do projeto
moral do povo de Deus - nos Evangelhos temos essa discussão entre fariseus e
Jesus (cf. Mt 22,35ss e paralelos), que Paulo retoma em sua discussão sobre a
liberdade em 5,1ss.
Assim, como no caso da questão identitária, Paulo não se insurge contra a
torá, mas contra a interpretação excludente da Torá como demarcador de iden-
tidade e classificador da humanidade entre salvos e perdidos.
Ἡμεῖς φύσει Ἰουδαῖοι καὶ οὐκ ἐξ ἐθνῶν ἁμαρτωλοί· εἰδότες [δὲ] ὅτι οὐ δικαιοῦται
ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου ἐὰν μὴ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡμεῖς εἰς
Χριστὸν Ἰησοῦν ἐπιστεύσαμεν, ἵνα δικαιωθῶμεν ἐκ πίστεως Χριστοῦ καὶ οὐκ ἐξ
ἔργων νόμου, ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ.
Note o arranjo quiástico do segmento:
(a) Nós, mesmo sendo judeus por natureza, não pecadores dentre os gen-
tios, temos o conhecimento de que nenhum ser humano é justificado com base
nas obras da lei,
(b) mas mediante a fidelidade do Messias Jesus;
(c) por isso cremos no Messias,
(b’) a fim de sermos justificados com base na fidelidade do Messias
(a’) e não com base nas obras da lei, posto que com base nas obras da lei nin-
guém poderá ser justificado.
Costumeiramente se interpreta o nós inicial como um termo genérico: “nós,
judeus”, ou “nós-Paulo e seus companheiros de ministério”. É possível, ainda,
interpretá-lo como uma referência a Paulo e Pedro, dando continuidade ao relato
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a importância da identidade judaica na argumentação textual. Retoricamente,
Paulo apela à pregação do próprio Pedro como um dos pioneiros do anúncio da
salvação pelo Messias. Em outras palavras, Pedro (e o grupo que alegava seguir
a tendência petrina) não poderia deixar de concordar com a premissa funda-
mental do argumento de Paulo, pois, afinal de contas, essa premissa é judaica e
sustenta o seguimento de Jesus como o Messias pelos apóstolos e demais segui-
dores: nenhum ser humano é justificado com base nas obras da Lei, a justificação
tem sua base na ação do Messias e é por isso que creram no Messias e o seguem
até o presente.
A descrição dos gentios como pecadores é tradicional no Judaísmo da época e
não pressupõe que os judeus não pecassem. Simplesmente afirma que os gentios
estavam fora da aliança, não pertenciam ao povo de Deus; sendo pecadores, esta-
vam destinados à morte (cp. a argumentação em Rm 1—3, na qual Paulo inclui
os judeus na condição de pecadores, cujo salário é a morte). Como judeus, Paulo
e Pedro, bem como os demais judeus seguidores do Messias Jesus, sabiam que
ninguém alcança a justiça de Deus mediante a prática da Lei. A justiça é outor-
gada por Deus antes da Lei e isso é evidente na memória teológica do povo judeu
na Bíblia Hebraica (esta é, pelo menos, a interpretação paulina. Até que ponto
essa narrativa teológica era assumida pelos demais judeus cristãos na época, não
sabemos com certeza). Mais adiante, na carta, Paulo irá retornar a esse ponto e
argumentar em defesa da prioridade da promessa em relação à Lei. Aqui, a afir-
mação é genérica e pode ser conferida, por exemplo, no relato do Êxodo: a saída
do Egito antecede a outorga da Lei no Sinai.
Messias fez, sendo fiel ao Pai, em sua vida e morte e ressurreição. Por isso – por
que ninguém (há, aqui, uma alusão ao Sl 143,2 (142,2 na LXX): “[...] não entres
em juízo com o teu servo, porque ninguém pode ser justificado [usa o verbo
dikaioo no futuro, voz passiva] diante de ti”) pode alcançar a justiça mediante a
prática da Lei, mas apenas pela fidelidade do Messias, o qual abriu o caminho ao
cumprir a Lei e ser amaldiçoado por ela (tornando-a, assim, sem força, inope-
rante) – nós cremos no Messias Jesus para sermos justificados. Como Messias
fiel, Jesus é o verdadeiro Israel; ele é ‘o justo’ de Habacuque, que vive por sua
fidelidade a Deus. Assim, os que estão nele – justificados – se tornam o verda-
deiro Israel, tornam-se ‘justos’.
Essa interpretação, a meu ver, faz mais sentido e é mais coerente com o pen-
samento paulino sobre a justificação por graça (recebida) mediante a fé. A graça
de Deus, fundamento da justificação, se concretiza historicamente na fidelidade
do Messias Jesus (por exemplo, os relatos de tentação nos Sinóticos cumprem
função teológica similar: ao vencer a tentação e permanecer fiel ao envio e voca-
ção pelo Pai, Jesus traz ao mundo a nova forma de acesso à justiça de Deus).
A fidelidade do Messias não só fundamenta a resposta humana, mas também
serve como modelo para ela. Crer no Messias não se reduz à mera aceitação da
afirmação que Jesus é o Messias, significa ser fiel a Deus seguindo a fidelidade
do Messias. Fé e fidelidade, desta forma, devem ser entendidas como dimen-
sões da mesma relação que une o Messias a Deus, o crente ao Messias e o crente
a Deus. Assim, podemos superar o eventual reducionismo da fé à crença e ao
dualismo crença vs. prática.
Os dois tópicos que devem, ainda, ser esclarecidos, são: a que Paulo se refere,
de fato, com a frase “obras da Lei”, e em que consiste a “justificação”. Na histó-
ria da exegese dos textos paulinos, a visão de Lutero acerca da justificação por
graça mediante a fé tornou-se a interpretação padrão no Protestantismo e, até
mesmo, em parte das leituras católico-romanas do texto. O uso do tema da “jus-
tificação pela fé”, na polêmica eclesiástica, tem sido tão intenso que a diferença
radical entre a situação paulina e a situação eclesiástica cristã (moderna) pratica-
mente ficou perdida. Tentaremos, nesta discussão exegética, deixar mais evidente
as diferenças entre o problema que Paulo tenta resolver com a ‘justificação’ e o
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problema que Lutero e as Igrejas tentam resolver com a ‘justificação’, sem, com
isso, disputar a validade da doutrina da justificação pela fé.
Vejamos as ‘obras da lei’, expressão usada oito vezes em Paulo: Rm 3,20.28;
Gl 2,16[3x]; 3,2.5.10. Pelo menos quatro tendências existem na interpretação
das “obras da Lei”: (1) a frase se refere ao legalismo judaico da época de Paulo,
contra o qual ele expõe a sua noção da justificação pela fé; (2) a frase se refere à
fronteira étnica demarcada pela lei entre judeus e gentios: os judeus cumprem a
Lei, os gentios não (da mesma forma, demarcaria a fronteira entre judeus prati-
cantes da lei e os não-praticantes); (3) às práticas exigidas pela lei como um todo;
ou, enfim, (4) o cumprimento de algumas exigências da Lei que, em seu con-
junto, tornariam clara a distinção entre verdadeiros judeus e gentios, seguindo
uma interpretação possível da frase encontrada em manuscritos de Qumran.
Podemos descartar a tese do legalismo, pois ela mostra muito mais um viés
anti-judaico do que propriamente uma análise semântica ou exegética da expres-
são – em nenhum dos usos paulinos da expressão, o legalismo é implicado, mas
sempre o contraste com a fidelidade do Messias e a fé no Messias. A chamada nova
perspectiva sobre Paulo interpreta as obras da lei como uma referência primária à
identidade sociocultural judaica, de modo que a expressão se referiria à exigência
de que os convertidos gentios ao Messias deveriam, também, adotar a identidade
judaica como um todo. Alguns dos participantes da ‘nova perspectiva’ têm ado-
tado a quarta alternativa como um modo contextualmente mais bem situado para
explicar a questão da identidade. A terceira alternativa, mais antiga e tradicional,
afirma que a expressão simplesmente se refere às práticas que a Lei demanda (cp.
Gl 3,10 e a maldição sobre quem não cumpre tudo o que a Lei exige).
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ANÁLISE EXEGÉTICA (SEGUNDO SEGMENTO)
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διάκονος; μὴ γένοιτο. εἰ γὰρ ἃ κατέλυσα ταῦτα πάλιν οἰκοδομῶ, παραβάτην
ἐμαυτὸν συνιστάνω. ἐγὼ γὰρ διὰ νόμου νόμῳ ἀπέθανον, ἵνα θεῷ ζήσω.
O segundo segmento possui um arranjo simples, sequencial, iniciando com
uma pergunta retórica seguida de sua resposta e do fundamento teológico da
resposta:
(P) Ora, se nós que buscamos ser justificados no Messias somos considera-
dos pecadores, então o Messias também é servo do pecado?
(R) De modo nenhum! Pois se construo aquilo que eu mesmo destruí, então
sou constituído transgressor.
(FT) Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus.
Antes de entrarmos na discussão do segundo segmento, voltemos ao pri-
meiro para discutir o sentido da justificação, com base na fidelidade do Messias
e recebida pela fé-fidelidade no Messias. O verbo dikaioo é usado oito vezes em
Gálatas: 2,16[3 vezes].17; 3,8.11.24 e 5,4. A leitura desses textos é, em parte, mar-
cada pelo debate dogmático entre protestantes e católicos, estes tendem a priorizar
a interpretação do verbo como “tornar justo”, enquanto os primeiros tendem a
interpretá-lo como “declarar justo” (conceito forense). De fato, nos textos pauli-
nos, essa distinção não faz sentido. O verbo dikaioo é usado tanto no sentido de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
inocentar (ou declarar justo, judicialmente falando), como tornar justo no sen-
tido de fazer entrar no povo de Deus e viver na liberdade e na aliança com Ele.
Se levamos, primariamente, em consideração o contexto de Gálatas, este
aparente dilema fica resolvido no capítulo 3: ser justificado é entrar na linha-
gem abraâmica e participar de um novo povo messiânico, em que não há
grego nem judeu etc. Quem entra no povo da promessa é libertado de todo
e qualquer tipo de escravidão aos poderes que tornam a vida humana alie-
nada da vida divina – carne, pecado, Lei, mundo, principados – e de todos
os poderes que alienam o ser humano de si mesmo, de outros seres huma-
nos e da natureza - racismo, sexismo, egoísmo etc.
O resultado da justificação é a liberdade, conforme Gálatas 5,1 “Para a liber-
dade o Messias nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de
novo, a jugo de escravidão” e 5,13 “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liber-
dade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, escravos
uns dos outros, pelo amor”. Essa liberdade, por sua vez, é uma das concretiza-
ções da fidelidade a Deus (pelo Messias e pelo seu povo), visto que a ‘fidelidade
se concretiza no amor’ (Gl 5,6).
Mediante a justificação, a justiça de Deus (cf. especialmente a discussão em
Romanos) fica disponível, como dom, a toda humanidade e não apenas aos judeus.
Se a grande divisão entre judeus e gentios fica anulada pela própria promessa
de Deus a Abraão, da qual o Messias é o recipiente prototípico, todas as demais
divisões ficam, também, rompidas e anuladas. Assim interpreta Elsa Tamez:
[...] em síntese, o fato de que Deus os tenha arrancado do poder dos ído-
los ou deste ‘mundo perverso’ através do evento de Jesus Cristo foi um
ato de libertação da subjugação a todo tipo de escravidão, incluindo a es-
cravidão que pode advir da lei mosaica. Ser justificado pela fé e não pela
lei judaica torna participantes do povo de Deus a todos os que creem. O
direito concedido, por graça, a todos abre o espaço a novas manifestações
de convivência humana e supera as distinções de raça, classe e sexo. A
circuncisão e a incircuncisão são atitudes secundárias, porque a partir de
Cristo não há mérito que tenha valor para a justificação, pois o importan-
te nesta nova criação é o amor que brota da fé, ou, o que dá no mesmo, a
fé que atua pelo amor (Gl 5,6; cp. 6,15) (TAMEZ, 1991, p. 93).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O problema do segundo segmento, então, fica mais claro: os críticos judaizantes
de Paulo distorciam sua tese de que, no Messias, os gentios são inseridos no novo
e único povo de Deus, afirmando que, contrariamente ao ensinado por Paulo, a
inclusão pura e simples dos gentios tornaria o povo de Israel tão pecador quanto
aqueles e, assim, o Messias mesmo seria um servo do pecado e não um Libertador
do pecado. Assim, o veredito dos judaizantes contra Paulo seria o de que ele mesmo,
não cumprindo a Lei, tornara-se um pecador e, ao ensinar outros a fazer o mesmo,
fazia do próprio Messias um pecador. A solução para tal erro seria incluir os gen-
tios desde que eles ‘cumprissem as obras da Lei’, pois, dessa forma, o Messias (e
Paulo) não seria promotor da desobediência à Lei e, assim, do pecado.
A resposta de Paulo é mais emocional do que argumentativa: “De modo
nenhum! Pois se destruo aquilo que eu mesmo construí, então sou constituído trans-
gressor”, ou seja, se Paulo buscasse a justiça de Deus mediante a Lei, iria reconstruir
a sua vida sobre o fundamento que havia destruído (anulado legalmente) – a pró-
pria Lei, pela qual ninguém pode ser justificado. De modo contrário, Paulo morreu
para a Lei, a fim de poder viver para Deus (cf. a discussão em Rm 7).
Novamente, a explanação nos capítulos a seguir tornará claro o ponto feito aqui
sutilmente – a fidelidade do Messias torna inoperante (anula) a Lei como caminho
para a justiça de Deus, de modo que a única forma de viver para Deus é viver no
Messias. O Messias, e somente ele, cumpriu e plenificou a Lei, ou seja, estabele-
ceu a validade e o término histórico da validade da Lei. A partir do Messias, toda
a Lei se resume e se torna plena no amor ao próximo (Gl 3,15ss; cf. Rm 13,8-14).
Com isso, fazemos a ponte para o próximo texto, que analisará o terceiro
segmento desta perícope.
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Messias como conclusão do verso 19. Nas edições críticas do texto grego, a inter-
pretação da sentença como abertura do último segmento é preferida com o uso
do ponto e vírgula. Prefiro, aqui, esta segunda possibilidade. Assim, entendo o
início desse segmento como um período composto por subordinação, no qual
a sentença “tendo sido crucificado com o Messias” é uma oração condicional
ou circunstancial: somente posso deixar de viver em minha condição física se
tiver sido crucificado com o Messias – pela fé-fidelidade – de modo que, assim,
o Messias viverá em mim. A discussão sobre a realidade ou não da transforma-
ção da pessoa mediante a justificação perde, aqui, todo sentido: ao ser justificado,
não só passo a pertencer ao povo de Deus, perdoado e reconciliado, mas tam-
bém o Messias passa a viver em mim, logo, uma nova realidade se concretiza em
minha vida (cf. a noção de nova criação em 2Co 5,15ss).
O verso 19 mostra a solidariedade da pessoa que crê (é fiel a) no Messias com
o próprio Messias: “pela lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus”. A própria
Lei anunciará o seu próprio limite, a sua própria desativação. Assim, ‘pela lei’ –
em termos experienciais, quando morremos com o Messias para a Lei, somos
tornados solidários com o cumprimento da lei pelo Messias –, morri para a Lei:
ela não mais tem efeito, tornou-se inativa, inoperante.
Dessa forma, e somente dessa forma, posso viver para Deus. Seguindo a
tradição deuteronômica, também presente em Jeremias e Ezequiel, Paulo con-
cebe a relação com Deus como uma relação sem mediação. Lei, nacionalidade,
Templo, Rei etc. deixam de ter qualquer função de mediação entre a pessoa e
Deus. A pessoa justificada faz parte da família de Deus no Messias. “Ponto final”!
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povo, não tinha como função a implementação da justiça. Israel recebera a jus-
tiça de Deus antes da outorga da Lei, assim como, mais adiante, na própria carta
aos Gálatas, Paulo irá argumentar que a Lei foi dada séculos depois de Abraão
ter recebido a justiça de Deus e as suas promessas. Assim, a lei não anula as pro-
messas. Entre Lei e Justiça há um desnível, um abismo quase insuperável. A Lei
não proporciona justiça, pelo contrário, a Lei demonstra nossa escravidão ao
pecado e a ela mesma (cf. Gálatas 3-4 e a discussão em Romanos caps. 1-5). A
Lei, que tem o poder de matar (condenar à morte), não pode proporcionar jus-
tiça, pois esta é vida e só pode ser causada pela ação do próprio Messias que,
morrendo na cruz, possibilita à criação viver a vida de Deus. A justiça vem na
fidelidade do Messias, não no cumprimento da Lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem! Agora sim chegamos mesmo ao término desta disciplina de Métodos
de Estudos Bíblicos no Novo Testamento. Para mim, pessoalmente, participar com
você, neste estudo, tem sido uma experiência enriquecedora e desafiadora. Mesmo
depois de muitas décadas ensinando, nós nunca terminamos de aprender. Por
isso, ao me preparar para escrever esses textos e conversar com você na aula, pude
aprender muitas coisas novas e importantes para minha vida pessoal como cristão.
Bem, cabe agora fazer um pequeno balanço do estudo desta disciplina.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Nosso objetivo maior tem sido o de aprender a fazer exegese de textos do Novo
Testamento. A exegese, como você já sabe, é uma atividade complexa de leitura
e pesquisa, de imaginação e criatividade. Fazer exegese possui, portanto, uma
dimensão técnica – precisamos seguir uma metodologia, aplicá-la consistente-
mente e prestar muita, mas muita atenção ao que o próprio texto nos oferece
em termos de significados. O texto sempre tem de estar em primeiro lugar – o
método está a serviço do texto.
A exegese bíblica é diferente do que outras formas de leitura. Por quê? Porque
nosso objetivo não se restringe apenas a compreender o texto. Lemos porque
desejamos conhecer melhor a Deus e Sua vontade para a humanidade em nossos
próprios dias. A exegese bíblica, portanto, além da dimensão técnica, também
possui uma dimensão espiritual que é até mais importante do que a técnica. Na
linguagem de nosso método, a leitura da Bíblia tem como objetivo a dimensão
missional da ação – em nossa própria vida e ação.
Espero que você tenha sido enriquecida(o) por meio dos estudos desta dis-
ciplina. Acima de tudo, espero que você esteja disposto(a) a continuar estudando
e pesquisando para aperfeiçoar sua própria prática exegética, desenvolvendo sua
imaginação e criatividade interpretativas, na comunhão com Deus, para prati-
car uma exegese crítica, criativa e fiel à Palavra de Deus.
Considerações Finais
238
[...]
3. A COMPREENSÃO COMUM DA JUSTIFICAÇÃO
14. O ouvir comum da Boa Nova proclamada nas Sagradas Escrituras e, não por últi-
mo, os diálogos teológicos de anos recentes entre as Igrejas luteranas e a Igreja católica
romana levaram a uma concordância na compreensão da justificação. Ela abarca um
consenso nas verdades básicas; os desdobramentos distintos nas afirmações específicas
são compatíveis com ela.
15. É nossa fé comum que a justificação é obra do Deus triúno. O Pai enviou seu Filho ao
mundo para a salvação dos pecadores. A encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo
são fundamento e pressuposto da justificação. Por isso justificação significa que o pró-
prio Cristo é nossa justiça, da qual nos tornamos participantes por meio do Espírito San-
to segundo a vontade do Pai. Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra sal-
vífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o
Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para boas obras [11].
16. Todas as pessoas são chamadas por Deus para a salvação em Cristo. Somos justifica-
dos somente por Cristo ao recebermos essa salvação na fé. A própria fé, por sua vez, é
presente de Deus por meio do Espírito Santo, que atua na palavra e nos sacramentos na
comunhão dos crentes e que, ao mesmo tempo, conduz os crentes àquela renovação de
sua vida que Deus consuma na vida eterna.
17. Compartilhamos da convicção de que a mensagem da justificação nos remete de
forma especial ao centro de testemunho neotestamentário da ação salvífica de Deus
em Cristo: ela nos diz que como pecadores devemos nossa vida nova unicamente à mi-
sericórdia perdoadora e renovadora de Deus, misericórdia com a qual só podemos ser
presenteados e que só podemos receber na fé, mas que nunca - de qualquer forma que
seja - podemos fazer por merecer.
18. Por isso a doutrina da justificação, que assume e desdobra essa mensagem, não é
apenas um aspecto parcial da doutrina cristã. Ela se encontra numa relação essencial
com todas as verdades da fé, as quais devem ser vistas numa conexão interna entre si.
Ela é um critério indispensável que visa orientar toda a doutrina e prática da Igreja inces-
santemente para Cristo. Quando luteranos acentuam a importância singular desse crité-
rio, não negam a conexão e a importância de todas as verdades da fé. Quando católicos
se sentem comprometidos com vários critérios, não negam a função especial da men-
sagem da justificação. Luteranos e católicos compartilham o alvo comum de confessar
em tudo a Cristo, ao qual unicamente importa confiar, acima de todas as coisas, como
mediador uno (1 Tm 2, 5 s.) pelo qual Deus, no Espírito Santo, dá a si mesmo e derrama
seus dons renovadores.
[...].
Fonte: adaptado de Luteranos (1999, on-line)1.
239
5. Em Gálatas 2,21 “Paulo reafirma que a _______ não pode ser o veículo da jus-
tiça – pois se a _________ fosse portadora da justiça, o Messias teria morrido
inutilmente e a graça de Deus é que teria perdido o valor”. A alternativa que
completa a frase, nas duas lacunas, é:
a) Lei, graça.
b) Misericórdia, lei.
c) Graça, misericórdia.
d) Lei, lei.
e) Graça, graça.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Justificação
Russel P. Shedd
Editora: Vida Nova
Sinopse: apresentação da doutrina da justificação em
perspectiva exegética por um dos principais biblistas
evangélicos conservadores no Brasil.
REFERÊNCIAS ON-LINE
1
Em: <http://www.luteranos.com.br/conteudo/declaracao-conjunta-sobre-a-dou-
trina-da-justificacao-1999>. Acesso em: 25 maio 2017.
GABARITO
1) E.
2) Verdadeira.
3) C.
4) D.
5) D.
245
CONCLUSÃO
Muito bem! É uma alegria chegar ao término desta disciplina de nosso curso de Ba-
charelado em Teologia no UniCesumar. Você deu mais um passo importante rumo
à sua titulação como Bacharel em Teologia e, ademais, também participou de um
processo de estudo pessoal que certamente afetou a sua visão da fé e da vida cristã.
Nesta disciplina, você teve a oportunidade de ampliar e aprofundar os seus conhe-
cimentos e a sua visão crítica da prática da exegese. Você já sabia e confirmou que
interpretar um texto bíblico é uma atividade espiritual e técnica. Em um curso aca-
dêmico, podemos trabalhar a parte técnica, mas quanto à espiritual, só podemos
incorporar o estudo exegético à sua própria espiritualidade – assim como eu tenho
feito em meu dia a dia como cristão e ministro do Evangelho.
Vamos revisar o método que estudamos? Não custa nada repetir os passos que
nos dedicamos a estudar e aprender: (1) Fase Preparatória da exegese (texto, de-
limitação, estruturação, segmentação e contexto); e (2) Fase Final, com cinco ciclos
ou dimensões: espaço-temporal, teológica, sociocultural, psicossocial e missional.
Sempre gosto de lembrar que um método é um conjunto de perguntas que procura
estudar o objeto a partir de diferentes pontos de vista.
Jamais me canso de lembrar que a metodologia é útil e importante, mas não é ‘sa-
grada’. Métodos são desenvolvidos para que façamos melhor as atividades a que
nos dedicamos. Assim, você aprendeu um método, mas o que realmente importa é
compreender e praticar o que o texto bíblico nos ensina. Minha expectativa é que
você perceba a importância da exegese para a vida e para o ministério e assuma o
compromisso de se dedicar sempre ao estudo da Palavra, com técnica, mas, acima
de tudo, como um exercício espiritual de discernimento e crescimento na comunhão
com Deus e com o Seu povo.