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MÉTODOS

DE ESTUDOS
BÍBLICOS
NO NOVO
TESTAMENTO

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
Fabrício Lazilha
Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Direção de Mercado
Hilton Pereira
Direção de Polos Próprios
James Prestes
Direção de Desenvolvimento
Dayane Almeida
Direção de Relacionamento
Alessandra Baron
Head de Produção de Conteúdos
Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli
Gerência de Produção de Conteúdos
Gabriel Araújo
Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Supervisão de Projetos Especiais
Daniel F. Hey
Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Amanda Peçanha Dos Santos
Distância; ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares Mantovani.
Iconografia
Métodos de Estudos Bíblicos no Novo Testamento. Júlio Pau- Isabela Soares Silva
lo Tavares Mantovani Zabatiero.
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.
Projeto Gráfico
245 p. Jaime de Marchi Junior
“Graduação - EaD”. José Jhonny Coelho

Arte Capa
1. Métodos. 2. Estudos . 3. Bíblicos 4. EaD. I. Título.
André Morais de Freitas
CDD - 22 ed. 220 Editoração
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Luís Ricardo P. Almeida Prado de Oliveira
Qualidade Textual
Cíntia Prezoto Ferreira
Felipe Veiga da Fonseca
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Diretoria de
transformamos também a sociedade na qual estamos
Planejamento de Ensino
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria Operacional
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
de Ensino
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de
Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista
às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis-
so, lembre-se que existe uma equipe de professores
e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero


Doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (2000), mestrado em
Teologia pela Escola Superior de Teologia (1995) e graduação em Teologia pela
Faculdade Teológica Batista de São Paulo (1980). Dirige o ITHAVALE (Instituto
de Teologia Humanidades e Artes do Vale do Paraíba). Tem experiência na
área de Teologia e Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes
temas: exegese bíblica, judaísmo antigo, análise do discurso, teologia pública,
sociologia da religião.

Para conferir mais detalhes acesse:


<http://lattes.cnpq.br/6084107335994470>.
APRESENTAÇÃO

MÉTODOS DE ESTUDOS BÍBLICOS NO NOVO


TESTAMENTO

SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá! Estamos iniciando mais uma disciplina do nosso curso de Bacharelado em Teologia
no UniCesumar. Seja bem-vindo ao nosso curso e, em especial, a esta disciplina de Mé-
todos de Estudos Bíblicos no Novo Testamento. Como você já sabe, sou o professor Júlio
Zabatiero e terei o prazer de estar com você nesta parte do seu percurso de aprendizado
teológico.
Para você que já estudou outras disciplinas bíblicas, especialmente Métodos e Interpre-
tação e Métodos de Estudos Bíblicos no Antigo Testamento, nesta disciplina você terá
a oportunidade de ampliar e aprofundar os seus conhecimentos e a sua visão crítica da
prática da exegese. Interpretar um texto bíblico é uma atividade espiritual e técnica.
Aqui, posso mostrar, a você, a parte técnica; mas, quanto à espiritual, só posso convidar
vocês a incorporar o estudo exegético à sua própria espiritualidade – assim como eu
tenho feito em meu dia a dia como cristão e ministro do Evangelho.
A metodologia que estamos aprendendo segue uma lógica metodológica assim estru-
turada: para interpretar bem um texto, iniciamos com a fase preparatória da exegese:
a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua segmentação
e estruturação. Depois, passamos a estudar a realidade, situação e contexto do texto
bíblico, dando destaque ao contexto conforme ele pode ser entendido e reconstruído a
partir do texto bíblico. Veremos que, dependendo do gênero textual do livro, sempre é
importante analisar o lugar da perícope estudada no conjunto do livro. Nesta disciplina,
você também encontrará novos conceitos teóricos da linguística, teoria literária e semi-
ótica – que o(a) ajudarão a praticar o método com mais senso crítico.
O segundo conjunto de procedimentos exegéticos é o que eu chamo de análise da di-
mensão espaço-temporal da ação: alistamos as pessoas, espaços e tempo na perícope;
depois analisamos a organização dessas características no texto e concluímos a análise
com uma síntese da significação que o texto nos proporciona a partir desse ponto de
vista. Algumas pessoas consideram esse passo algo dispensável. Espero, porém, que
você perceba o quão ele é importante para uma adequada interpretação do texto bí-
blico.
O terceiro conjunto de procedimentos é chamado de análise da dimensão teológica
da ação. É hora de verificar o arranjo temático da perícope, perceber a sua unidade e a
forma como cada um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos para crer
e viver. Esta é a dimensão mais praticada da exegese na tradição acadêmica cristã oci-
dental; entretanto, há muitas formas diferentes de fazer essa análise, de modo que, nos
diferentes exemplos, procurei mostrar algumas dessas alternativas.
O quarto conjunto metodológico é a análise da dimensão sociocultural da ação. Nesse
passo, retomamos o estudo do contexto e colocamos os conhecimentos, então adqui-
ridos, em diálogo com o texto, a fim de aprofundar nossa visão de como o texto produz
sentido para a vida social e cultural das pessoas.
APRESENTAÇÃO

O quinto conjunto metodológico é a análise da dimensão psicossocial da ação. Nes-


se passo, retomamos os conteúdos aprendidos na análise da dimensão sociocultu-
ral da ação e os colocamos em diálogo com o texto – olhado do ponto de vista de
como as pessoas presentes no texto construíam a sua identidade em seu mundo
sociocultural.
Por fim, o último passo da exegese é a análise da dimensão missional da ação, quan-
do verificamos como entender o texto hoje e que possibilidades de sentido e de
ação ele nos proporciona diante da realidade humana e, em especial, diante da ação
de Deus que nos convoca a servi-Lo.
Minha expectativa é que você perceba a importância da exegese para a vida e para
o ministério, de modo que assuma o compromisso de se dedicar sempre ao estudo
da Palavra, não só com boa técnica, mas, acima de tudo, como um exercício espiri-
tual de discernimento e crescimento.
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31

15 Introdução

16 Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,


Segmentação

28 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

32 A Dimensão Teológica da Ação

46 A Dimensão Sociocultural da Ação

60 A Dimensão Missional da Ação

62 Considerações Finais

68 Referências

70 Gabarito

UNIDADE II

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11

73 Introdução

74 Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,


Segmentação

78 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

82 A Dimensão Teológica da Ação

89 A Dimensão Psicossocial da Ação

93 A Dimensão Missional da Ação


10
SUMÁRIO

106 Considerações Finais

112 Referências

113 Gabarito

UNIDADE III

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17

117 Introdução

118 Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,


Segmentação

132 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

136 A Dimensão Teológica da Ação

143 A Dimensão Sociocultural da Ação

149 A Dimensão Missional da Ação

151 Considerações Finais

157 Referências

158 Gabarito

UNIDADE IV

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18

161 Introdução

162 Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,


Segmentação
11
SUMÁRIO

168 O Contexto de João

173 A Dimensão Teológica da Ação (1)

189 A Dimensão Teológica Da Ação (2)

199 A Dimensão Missional da Ação

200 Considerações Finais

205 Referências

206 Gabarito

UNIDADE V

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21

209 Introdução

210 Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação,


Segmentação

216 O Contexto da Epístola

225 Análise Exegética (Primeiro Segmento)

230 Análise Exegética (Segundo Segmento)

233 Análise Exegética (Terceiro Segmento)

237 Considerações Finais

243 Referências

244 Gabarito

245 CONCLUSÃO
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1

I
UNIDADE
CORÍNTIOS 1,18-31

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
missional da ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
15

INTRODUÇÃO

Olá! Bem-vindo(a) à nossa disciplina de Métodos de Estudos Bíblicos no Novo


Testamento. Com esta disciplina, damos continuidade ao trabalho iniciado na
disciplina de Métodos e Interpretação Bíblica, em que estudamos os aspectos
fundamentais da história e da teoria da interpretação da Bíblia. Também damos
sequência aos trabalhos da disciplina Métodos de Estudos Bíblicos no Antigo
Testamento, em que aplicamos os estudos hermenêuticos na interpretação de
textos da Bíblia Hebraica.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nosso foco, nesta disciplina, é a interpretação exegética sêmio-discursiva de


textos do Novo Testamento. Na primeira Unidade, que agora iniciamos, estu-
daremos o texto de I Coríntios 1,18-31, um dos principais textos paulinos para
compreendermos quem é o Messias e como Ele salva a humanidade.
Damos sequência à prática do método sêmio-discursivo: começamos com
a análise do contexto e com a fase preparatória da exegese: delimitação, seg-
mentação e estruturação da perícope a ser interpretada. Lembre-se: o texto só
produz significado a partir do contexto em que está inserido, por isso, iniciamos
refletindo sobre o mundo do apóstolo Paulo, especificamente sobre a cidade de
Corinto no tempo do Império Romano.
Depois, passaremos à Fase Final do método, dedicando atenção às cinco
dimensões do significado ou da interpretação de um texto (os cinco ciclos da
fase final do método): analisaremos a dimensão espaço-temporal da ação na
perícope, depois a teológica, a sociocultural, a psicossocial e, enfim, a dimensão
missional. Procuro mostrar para você que a interpretação deve ser disciplinada,
mas que não é uma ciência ‘exata’, de modo que os diferentes ciclos da análise se
sobrepõem e se misturam o tempo todo.
Acima de tudo, não se esqueça: exegese só se aprende fazendo. Então, faça
exegese. Use o texto aqui como trampolim para a sua própria interpretação da
perícope. Esforce-se para ir além do que o curso oferece e você será recompen-
sado com muito mais do que notas ou diplomas.
A Palavra é nossa direção para a vida. Leve-a a sério. Estude-a com carinho.

Introdução
16 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Iniciaremos nosso estudo da Fase Preparatória mediante a exposição do con-


texto da Primeira Carta aos Coríntios.

CORÍNTIOS EM SEU CONTEXTO:

Cartas são textos “pela metade”, conhecemos o que o escritor da carta diz, mas
temos de reconstruir o que motivou à carta. As cartas paulinas se dirigiram a
várias igrejas em diferentes regiões do Império, o que demandaria uma discussão
muito abrangente para abarcar todo o ‘contexto’ paulino. Assim, focaremos na
realidade e contexto da cidade de Corinto como um exemplo do contexto da lite-
ratura paulina, que nos aponta as questões mais importantes a serem conhecidas.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


17

A Cidade de Corinto

Na época de Paulo, Corinto era uma colônia romana, ou seja, uma cidade com
estatuto especial em sua relação com Roma. Após sua destruição no segundo
século a.C., a cidade voltou ao seu esplendor com a sua reconstrução e outorga
de estatuto de colônia romana por Julio Cesar, em cerca de 44 a.C. Como colônia
romana, foi colonizada por romanos (civis e militares) e construída conforme o
padrão das cidades romanas, de modo que tudo nela respirava o ar do Império
e comunicava aos seus moradores a grandeza romana – somente os romanos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

poderiam ser cidadãos, e os antigos habitantes (gregos) possuíam um estatuto


político secundário e eram denominados incolae (estrangeiro residente). Nas
décadas de 40-50 d.C., a cidade estava prestes a se tornar a maior e mais rica
cidade da Grécia, suplantando a própria Atenas. De fato, Corinto era a capital
da Acaia – a província romana que abrangia a Grécia e, assim, respondia dire-
tamente ao senado romano.
Culturalmente falando, Corinto deixara de ser uma cidade grega e se tor-
nara uma cidade primariamente romana, de modo que a temática da honra
(versus a vergonha) ocupava lugar preeminente no modo de vida dos seus
habitantes. Em certo sentido, a cultura mediterrânea da honra se asseme-
lha à cultura do espetáculo no século XXI, pois a imagem da pessoa contava
até mais do que os fatos e a realidade de sua vida econômica, por exemplo.
O valor da pessoa no mundo romano era medido em função do reconheci-
mento público de suas realizações a favor da cidade, de modo que os prédios
urbanos eram repletos de inscrições patrocinadas, em sua maioria, pelas pró-
prias pessoas homenageadas.
Sua escolha como capital da província, porém, se deveu, principalmente, a
fatores estratégicos (do ponto de vista do Império), os quais fizeram da cidade
uma importante e cosmopolita urbe no Império.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


18 UNIDADE I

a) Sua localização litorânea estratégica fez dela o porto de ligação da Grécia


com o mundo romano, especialmente em termos do comércio. Estrabão, o
geógrafo, assim se refere à cidade: “corinto é chamada de rica por causa de
seu comércio, visto que está localizada no Istmo e é senhora de dois por-
tos, um dos quais leva diretamente à Ásia, e o outro à Itália” (ESTRABÃO,
s/d, Geography, 8.6.20, on-line)1;
b) Sua posição econômica era fortalecida devido ao fato dela ser um grande
centro de produção industrial (não uso o termo aqui em seu sentido
moderno do mesmo, é claro) – especialmente em trabalhos com bronze,
cerâmica e mármore;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
c) Em função de sua localização, beleza e eventos (era a sede dos jogos íst-
micos bienais e, também, dos jogos quadrienais imperiais – os quais
somente perdiam em prestígio para os Jogos Olímpicos), Corinto era,
também, um centro turístico que atraía visitantes de várias regiões do
Império, contribuindo para fazer da cidade um local cosmopolita e incli-
nado à chamada alta cultura;
d) Era um centro religioso importante, com seus templos de Afrodite, Apolo e
Asclépio (além de outros santuários menos famosos), que atraíam grandes
multidões e eram considerados locais sagrados de renome e importância
pessoal e pública. Destaca-se a importância da sexualidade no culto de
Afrodite, da cura no culto de Asclépio e da sabedoria no culto de Apolo
– temáticas que ressoam na correspondência paulina com as comunida-
des cristãs coríntias.

Conforme a síntese de Witherington III


Corinto era uma metrópole pulsante e próspera, de cerca de oitenta mil
habitantes nos dias de Paulo. Conforme Engels mostrou detalhadamente,
era primariamente uma cidade de serviços, uma cidade que derivava sua
riqueza dos bens e serviços que provia aos visitantes, incluindo os pere-
grinos religiosos, marinheiros, mercadores, soldados, traficantes de es-
cravos e os que iam a ela para os Jogos (WITHERINGTON, 2009, p. 34).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


19

O PATRONATO ROMANO E A HIERARQUIA SOCIAL

1 Coríntios 1,18-31 (entre outras perícopes da carta) destaca o conflito social


entre os membros das comunidades paulinas, derivado da condição social desses
membros na estrutura hierárquica da sociedade sob o Império Romano. Desde
os estudos de Gerd Theissen, nos anos 1970, até o presente, a questão da estru-
tura social do Império Romano nos tempos do nascimento do Cristianismo se
tornou um foco importante de pesquisa, e temos dados suficientes para formu-
lar hipóteses históricas e discursivas bastante sólidas para a interpretação mais
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adequada de muitos textos neotestamentários. Este é o caso dessa epístola, cuja


compreensão fica bem mais profunda quando percebemos que boa parte dos
problemas “espirituais” tratados por Paulo na sua correspondência com as comuni-
dades coríntias têm sua origem na estratificação social e sua significação cultural.
Mesmo uma leitura superficial de 1 Coríntios mostra a presença de diferen-
tes grupos sociais: nobres e ricos, “os que não são”, pobres, escravos e famílias. Os
termos usados, especialmente em 1,18ss, apontam a significação cultural e polí-
tica da condição social das pessoas no Império. Sendo uma colônia romana, a
cidadania era a posição social mais elevada em termos de prestígio na cultura da
honra. Nem sempre a cidadania era acompanhada de uma situação econômica
afluente ou de riqueza, conferia, porém, ao seu portador um status elevado, que
lhe dava condições de influir na vida política e ocupar a posição de patrono de
pessoas social e culturalmente inferiores ao cidadão romano.
O patrono romano mantinha uma relação de dominação sobre os inferiores
a ele, não somente em relação aos escravos que possuía. A relação de cliente-
lismo fazia com que os clientes do patrono dependessem dele para a condução
da vida cotidiana e eram subordinados, mesmo em assuntos que, hoje, consi-
deramos como privados, tais como casamento e religião, por exemplo. Para os
não-cidadãos romanos, a chance de ter uma vida boa dependia da boa relação
com o patrono e conforme a posição dele na escala social, da relação com os que
lhe eram superiores. Como colônia romana, muitos dos patronos em Corinto
eram ex-soldados que foram levados para lá para colonizar a cidade, como prê-
mio por sua contribuição ao Império – de modo que a arrogância, a crueldade
e a visão militarista da vida se tornaram bem presentes na cidade.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


20 UNIDADE I

A série televisiva Roma oferece exemplos bem concretos da vida cotidiana


no período. Você poderia assistir a todos os episódios ou a apenas um ou
dois deles para ter contato com os principais aspectos da vida cotidiana dos
romanos em sua capital. Verá exemplos de como funcionava o patronato,
o poder do imperador, os conflitos entre classes sociais, os problemas da
guerra etc.
Fonte: o autor.

A vida das famílias livres girava ao redor da atividade econômica e de sua rela-

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ção com os nobres (patronos) romanos. O lugar econômico possuía menos valor
do que o lugar sociocultural e até mesmo pessoas ricas tinham de se submeter ao
seu patrono. Nessa estrutura social, os escravos ocupavam o lugar mais inferior
e eram considerados, geralmente, como não-pessoas e tratados com severidade
e crueldade – as exceções a isto confirmam a regra. Assim, em uma comuni-
dade cristã, encontraríamos pessoas de diferentes condições socioculturais e essa
estratificação está bem presente em 1 Coríntios, sendo a fonte de vários dos con-
flitos nas comunidades.
Por exemplo, a divisão das comunidades em relação a líderes pode, muito
bem, retratar o tipo de lealdade que existia entre clientes e patronos, lealdade
que não poderia ser quebrada sem sanções e que se manifestava, também, nas
relações hostis entre diferentes patronos e seus agregados. Seguir Paulo, Pedro,
Apolo etc. não seria, primariamente, uma questão doutrinária, mas sim de leal-
dade pessoal, e isso afetava profundamente a unidade dos cristãos – tema caro
para Paulo. O problema da participação simultânea nas celebrações eucarísticas
também é derivado da condição estratificada dos membros da comunidade, de
modo que trabalhadores livres e escravos somente poderiam participar das refei-
ções comunitárias dentro dos mesmos moldes das refeições sociais, mantendo
a hierarquia e a distinção social entre os participantes dos banquetes e festas.
Semelhantemente, a questão de comer as carnes sacrificadas tinha a ver com as
distinções sociais e não apenas com a adesão religiosa pessoal.
Além da divisão social baseada no status e na condição econômica, uma
cidade cosmopolita, como Corinto, também era marcada por preconceitos deri-
vados da condição étnica dos seus habitantes. Romanos e gregos possuíam maior

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


21

prestígio étnico-cultural e todos os demais povos eram considerados inferiores


em diferentes graus e níveis. A condição dos judeus era sempre uma condição
ambígua, nos tempos paulinos no Império Romano. Embora fossem até admira-
dos por seu rigor religioso e por sua postura ética, eram comumente considerados
como segregacionistas, e seus hábitos e práticas religiosas eram frequentemente
considerados como contrários à boa religião e, em alguns casos, até ofensivos aos
costumes romanos. Nada disso, porém, evitava que, entre os judeus, se encon-
trasse o mesmo tipo de estratificação social presente no Império – havia judeus
cidadãos romanos, judeus ricos, trabalhadores de baixa condição econômica e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

escravos, de modo que os problemas sociais mais gerais se experimentavam nos


agrupamentos de judeus (cerca de dois terços dos judeus da época viviam fora
da terra de Israel). A isso devemos somar os problemas decorrentes da interpre-
tação que os judeus cristãos davam a Jesus como o Messias e das relações entre
gentios e judeus nas comunidades paulinas.

“OS JUDEUS PEDEM SINAIS”

Em 1Co 1,22, Paulo sintetiza a distinção entre a pregação da cruz e a expecta-


tiva judaica com a frase “os judeus pedem sinais (σημεῖα)”. Essa palavra grega
só é usada duas vezes por Paulo e ambas nas cartas aos coríntios: aqui e em 2Co
12,12 - “Pois as credenciais (σημεῖα) do apostolado foram apresentadas no meio
de vós, com toda a persistência, por sinais (σημείοις), prodígios e poderes mira-
culosos”. A palavra não deve ser lida como referência ao que, costumeiramente,
chamamos de milagres, apesar de que, na LXX, a frase terata kai semeia, “prodí-
gios e sinais”, ocorre com frequência (e.g. Ex 7,3; Dt 4,34; 28,46; 34,11; Sl 135,9; Is
8,18) e descreve os atos poderosos de Deus em favor de seu povo. Nos Sinóticos
se diz que os fariseus pediram sinal a Jesus: “[...] e, saindo os fariseus, puseram-
-se a discutir com ele; e, tentando-o, pediram-lhe um sinal do céu” (BÍBLIA,
Marcos 8,11) – provavelmente como um contraste entre a pregação de Jesus e a
expectativa libertária dos fariseus.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


22 UNIDADE I

Paulo não especifica que sinais os judeus pedem, mas, à luz do uso da pala-
vra na LXX e nos Sinóticos (embora posteriores aos textos paulinos), bem como
à luz do que sabemos sobre a teologia dos fariseus, podemos supor que a questão,
aqui, está vinculada à libertação de Israel do domínio romano – e não a ‘milagres’.
Nesse sentido, embora Paulo contraponha o discurso judaico ao grego, o pensa-
mento judaico também é, como o grego, um pensamento da totalidade, da ordem
cósmica. Que Israel esteja sob dominação romana é prova de que a ordem divina
para o mundo não está presente. Somente quando Israel estiver em liberdade e,
de preferência, estiver governando sobre as nações, tudo então estará em ordem.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Alain Badiou capta, de modo interessante, essa dimensão da forma judaica
de pensar nos tempos paulinos:
[...] que é o discurso judaico? A figura subjetiva constituída por ele é a
do profeta. Mas um profeta é alguém que se sustenta na requisição de
sinais, alguém que sinaliza, dando testemunho da transcendência, ao
expor o que é obscuro à sua decifração. Assim, o discurso judaico se
define como, acima de tudo, o discurso do sinal (BADIOU, 2003, p. 41).

Não é correto afirmar que o profeta judeu é o que decifra – essa descrição se aplica
ao oráculo grego, mas não ao profeta judeu, o qual denuncia, mais do que decifra;
que anuncia uma libertação, mais do que resolve um enigma. O discurso judaico
profético é discurso de um novo mundo (uma transcendência) que ocorre na
história, recolocando em ordem o que foi colocado em desordem. O sinal espe-
rado pelo profeta é a libertação do povo – Badiou interpreta essa expectativa
como uma exceção à totalidade grega, mas uma exceção que não sai do mundo
da totalidade, apenas propõe uma outra e nova totalidade.
Nisso ele tem razão, em outras palavras, o discurso judaico – como o grego e
o romano – é um discurso que totaliza a humanidade e a classifica em dois gru-
pos antagônicos: judeus e gregos (gentios), os primeiros eleitos e amados por
Deus; os demais, fora da eleição, da promessa e da justiça divina. Para Paulo,
no Messias, toda a humanidade é eleita e convidada a fazer parte da família e
do reino de YHWH. Não faz sentido, na pregação paulina da cruz, classificar a
humanidade em dois grupos opostos. Não faz sentido interpretar a afirmação
paulina da pecaminosidade universal humana como um critério classificatório
como o dos discursos a que ele se opõe.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


23

Na totalidade paulina, todos são igualmente pecadores, todos são igual-


mente amados por YHWH, que nos amou sendo nós ainda pecadores. Embora
o discurso judaico (oficial dos tempos paulinos) se apresente como uma visão
não-metafísica da totalidade, acaba funcionando como um discurso totalitário
e totalizador ao excluir a maioria da humanidade do acesso ao reino de Deus.
Diante de tal tipo de discurso, a pregação da cruz é escândalo.

“OS GREGOS BUSCAM SABEDORIA”


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A frase paulina que serve de título para esse trecho não é exclusiva do apóstolo.
Vejamos a descrição de Heródoto: “todos os gregos são zelosos por todo tipo de
sabedoria (pasan sophian)” (Hist. 4.77, on-line)2. Não devemos confundir a sabe-
doria com a filosofia. O termo sabedoria, nos tempos de Paulo, abrangia vários
referentes, não só a filosofia propriamente dita. Em um estudo recente, Alain
Badiou (2011) apresentou a seguinte hipótese de compreensão do discurso da
sabedoria, a partir de 1 Coríntios:
[...] a figura subjetiva constituída pelo discurso é o homem sábio. Mas a sa-
bedoria consiste na apropriação da ordem fixa do mundo, em fazer o casa-
mento entre palavra e ser. O discurso grego é cósmico, instalando o sujeito
dentro da razão de uma totalidade natural. O discurso grego é essencial-
mente o discurso da totalidade, na medida em que defende a sophia (sabe-
doria como um estado interno) de um conhecimento da phusis (natureza
como uma realização ordenada e completa do ser) (BADIOU, 2011, p. 41).

Como vimos na seção anterior, Badiou define o discurso judaico como um dis-
curso de exceção, um discurso profético que não sai do ambiente da totalidade
no discurso grego. Agora, em relação ao discurso grego, Badiou enfatiza a visão
metafísica subjacente ao pensamento filosófico grego, que permeia toda a cul-
tura helênica e o helenismo. Para os gregos, em geral, a sabedoria consiste em
conhecer a razão (palavra, logos) que dá sentido ao mundo como totalidade, o
que permite classificar e situar cada ser em seu lugar na grande ordem cósmica.
Seja no pensamento filosófico com pouco espaço para a ação dos deuses, seja nas
religiões e sua abertura para a presença ativa de deuses na vida humana, a “sal-
vação” para os gregos consistia em viver de acordo com o seu lugar no mundo.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


24 UNIDADE I

Neste sentido, a sabedoria andava de mãos dadas com a paideia – a educa-


ção, a formação dos jovens para a vida virtuosa e adequada no mundo da polis e
da natureza –, formação que não se restringia a “aulas”, mas incorporava a ginás-
tica, a música, a arte e o treinamento militar. Normalmente, essa educação não
era restrita apenas aos nobres, a pessoas livres e com capacidade econômica, mas
também poderia se estender a outros grupos populacionais, em escala mais sim-
ples. Podemos sintetizar a noção grega de sophia com a fala de Pierre Hadot, um
dos principais especialistas no pensamento grego antigo no século XX: “pode-
mos admitir que a sabedoria representa a perfeição do saber identificado com a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
virtude. Porém [...] na tradição grega o saber, a sofia, é menos um saber teórico
e mais um saber viver, um saber fazer” (HADOT, 2004, p. 79).
O discurso messiânico paulino, inevitavelmente, entrou em conflito com o
discurso sapiencial grego, tanto do ponto de vista cósmico - pois para Paulo o
lugar das pessoas e de tudo o que existe, no cosmos, é determinado por Deus e
não pela razão - quanto no Messias - que não há uma hierarquia do ser, muito
menos da sociedade, pois todos são um no Messias e Deus é tudo e em todos.
A totalidade paulina é uma totalidade não metafísica que se opõe à totalidade
grega. Também do ponto de vista do saber viver, o discurso paulino se opõe ao
discurso grego, pois o que Paulo propõe é um viver no Messias, sustentado pelo
viver do Messias na pessoa e na comunidade cristã – discurso que subordina o
saber viver à razão ou aos deuses e legitima a não-unidade da humanidade, cin-
dida em gregos e bárbaros ou em romanos e conquistados.
Ademais, o discurso paulino se opõe ao discurso jurídico-militar romano,
na medida em que é discurso da graça e não da lei. Embora a discussão paulina
mais comum nas cartas seja com a Torá judaica, a mensagem da graça divina no
Messias também seria escândalo para o mundo greco-romano, especialmente
para a noção de justiça romana, fortemente vinculada com a lei do Império, sus-
tentada pela força do exército. A pax romana era imposta pela força militar e
continuada mediante o regime da lei – visão oposta à pax Christi – criada pela
morte do Messias e continuada mediante a solidariedade compassiva do Espírito
na comunidade messiânica. Assim, como os gregos e os judeus, os romanos tam-
bém dividiam a humanidade em dois grupos antagônicos: os romanos e os outros.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


25

CO 1,18-31 – TEXTO, DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO,


SEGMENTAÇÃO

O início de uma exegese é a delimitação, a segmentação e a estruturação


do texto a ser interpretado. Em nosso caso, acrescentamos uma tradução para
que aqueles que não leem grego possam acompanhar a exegese. A interpretação
segue o texto grego e não a tradução.

■■ Texto Grego e Tradução


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

18
Ὁ λόγος γὰρ ὁ τοῦ σταυροῦ τοῖς μὲν ἀπολλυμένοις μωρία ἐστίν, τοῖς δὲ
σῳζομένοις ἡμῖν δύναμις θεοῦ ἐστιν. 19 γέγραπται γάρ, Ἀπολῶ τὴν σοφίαν τῶν
σοφῶν καὶ τὴν σύνεσιν τῶν συνετῶν ἀθετήσω. 20 ποῦ σοφός; ποῦ γραμματεύς; ποῦ
συζητητὴς τοῦ αἰῶνος τούτου; οὐχὶ ἐμώρανεν ὁ θεὸς τὴν σοφίαν τοῦ κόσμου[i];
21
ἐπειδὴ γὰρ ἐν τῇ σοφίᾳ τοῦ θεοῦ οὐκ ἔγνω ὁ κόσμος διὰ τῆς σοφίας τὸν θεόν,
εὐδόκησεν ὁ θεὸς διὰ τῆς μωρίας τοῦ κηρύγματος σῶσαι τοὺς πιστεύοντας·
22
ἐπειδὴ καὶ Ἰουδαῖοι σημεῖα αἰτοῦσιν καὶ Ἕλληνες σοφίαν ζητοῦσιν, 23 ἡμεῖς
δὲ κηρύσσομεν Χριστὸν ἐσταυρωμένον, Ἰουδαίοις μὲν σκάνδαλον, ἔθνεσιν[ii]
δὲ μωρίαν, 24 αὐτοῖς δὲ τοῖς κλητοῖς, Ἰουδαίοις τε καὶ Ἕλλησιν, Χριστὸν θεοῦ
δύναμιν καὶ θεοῦ σοφίαν· 25 ὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων
ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπων. 26 Βλέπετε γὰρ τὴν
κλῆσιν ὑμῶν, ἀδελφοί, ὅτι οὐ πολλοὶ σοφοὶ κατὰ σάρκα, οὐ πολλοὶ δυνατοί, οὐ
πολλοὶ εὐγενεῖς· 27 ἀλλὰ τὰ μωρὰ τοῦ κόσμου ἐξελέξατο ὁ θεός, ἵνα καταισχύνῃ
τοὺς σοφούς, καὶ τὰ ἀσθενῆ τοῦ κόσμου ἐξελέξατο ὁ θεός, ἵνα καταισχύνῃ τὰ
ἰσχυρά, 28 καὶ τὰ ἀγενῆ τοῦ κόσμου καὶ τὰ ἐξουθενημένα ἐξελέξατο ὁ θεός, τὰ
μὴ ὄντα[iii], ἵνα τὰ ὄντα καταργήσῃ, 29 ὅπως μὴ καυχήσηται πᾶσα σὰρξ ἐνώπιον
τοῦ θεοῦ. 30 ἐξ αὐτοῦ δὲ ὑμεῖς ἐστε ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ, ὃς ἐγενήθη σοφία ἡμῖν ἀπὸ
θεοῦ, δικαιοσύνη τε καὶ ἁγιασμὸς καὶ ἀπολύτρωσις, 31 ἵνα καθὼς γέγραπται, Ὁ
καυχώμενος ἐν κυρίῳ καυχάσθω (NESTLE & ALAND, s/d, in loco, on-line)3.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


26 UNIDADE I

■■ Tradução:

(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para
nós, os que somos salvos, é potência[iv] de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a
sabedoria dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes.
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente[v]? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21
Ora, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela
sabedoria, Deus achou por bem salvar os fiéis através da pregação (que é lou-
cura[vi]) 22 uma vez que os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
23
nós, porém, anunciamos o Messias[vii] crucificado, que é escândalo para os
judeus e loucura para as nações. 24 Todavia, para os chamados, judeus ou gregos,
Messias, força de Deus e sabedoria de Deus[viii];
25
pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens, e a
fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana[ix].
(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre
vós que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam
nobres.
27
Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os
sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os for-
tes 28 e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que não
têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm[x],
29
para que nenhuma carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou, para nós,
da parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
(Tradução do autor)

Delimitação, Segmentação e Estruturação

A delimitação é baseada na sequência argumentativa do capítulo. Após falar das


divisões na igreja de Corinto e demonstrar a sua isenção nessa situação com o
exemplo dos batismos por ele realizados (13-17), Paulo passa a justificar teologi-
camente a impropriedade das divisões. Em 2,1ss ele muda o argumento e passa

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


27

a usar novamente o seu próprio exemplo como argumento contrário às divisões.


É claro que há a ocorrência de termos dessa perícope logo a seguir, em 2,1-5
(sabedoria, por exemplo), mas a delimitação se sustenta em função das demais
mudanças de pessoa, tempo e espaço.
Vários comentaristas preferem fazer a delimitação desse trecho em duas
perícopes: 18-25 e 26-31, porém, não há justificativa adequada para tal escolha,
tendo em vista a continuidade temática, a continuidade das pessoas e da tem-
poralidade, bem como a estrutura quiástica da perícope, que ficaria perdida se
a dividíssemos em duas – com alteração radical do propósito e sentido do texto.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Que tal você ler o primeiro e o segundo capítulos de 1 Coríntios e verificar os


fatores que justificam a delimitação que apresentei aqui? Lembre-se: é pre-
ciso haver mudança na maioria dos indicadores de: pessoa, tempo, espaço,
vocabulário, assunto e/ou gênero textual.

O texto está assim segmentado:


18-19 Introdução ao tema e a base bíblica
20-25 O contraste entre judeus e gregos de um lado, cristãos de outro
26-29 O contraste exemplificado na igreja de Corinto
30-31 Conclusão do tema e nova base bíblica
A estruturação do texto segue a forma de um quiasmo simples (note que nas
seções internas B & B’ também temos estruturações quiástica):
A introdução
B primeiro contraste
B’ segundo contraste
A’ conclusão
A estrutura do texto ressalta a temática da honra ou glória (termo do texto),
pois o que está em discussão é quem tem valor na sociedade, com Paulo con-
trariando a forma romana de valorizar as pessoas em função de seu nascimento

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


28 UNIDADE I

e posses (não tendo valor os pobres, os não-cidadãos romanos e os escravos), a


forma grega de distinguir entre povos sábios e bárbaros (sem valor) e o modo
judaico de classificar os habitantes do mundo em judeus e gentios (sem valor).

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A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós,
os que somos salvos, é potência de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a sabe-
doria dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes.
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21
Ora, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela
sabedoria, Deus achou por bem salvar os fiéis através da pregação (que é lou-
cura) 22 uma vez que os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria;
23
nós, porém, anunciamos o Messias crucificado, que é escândalo para os
judeus e loucura para as nações. 24 Todavia, para os chamados, judeus ou gregos,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


29

Messias, força de Deus e sabedoria de Deus;


25
pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens, e a
fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana.
(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre vós
que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam nobres.
27
Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os
sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os for-
tes 28 e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que
não têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm,
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29
para que nenhuma carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou para nós, da
parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
Como, a esta altura, você já está acostumado a alistar na sequência as pala-
vras que indicam pessoas (e caracterização), tempo e espaço, vou indicar esses
elementos por meio do seguinte recurso: negrito, para indicar pessoas e caracte-
rizações; itálico, para indicar o tempo; e sublinhado, para indicar espaço (palavras
que têm mais de uma sinalização pertencem a duas categorias). Lembre-se: neste
primeiro momento não interpretamos o sentido teológico ou sociocultural e psi-
cossocial do texto, apenas interpretamos as relações que se estabelecem entre as
pessoas agindo no tempo e no espaço.
Em relação às pessoas, as relações são construídas a partir de contrastes:
(a) Os que perecem x os que são salvos (18). O par de opostos, por sua vez,
é diferentemente caracterizado na perícope. Os que perecem: sábios, inteligen-
tes, debatedores, escribas, ‘do mundo’, mundo, judeus, gregos, nações, homens,
sábios, fortes, nobres, os que têm valor. Os que são salvos: fiéis, chamados (judeus
ou gregos), irmãos, coisas loucas, coisas fracas, plebeus, desprezados, os que não
tem valor, nós, vós; ‘sois dele’.
(b) Deus x mundo ou humanos (20, 25, 27, 28), em que o mundo corres-
ponde aos ‘que perecem’.
(c) Nós x judeus e gregos (23, 25). Nós: Paulo e seus colegas de missão; judeus
e gregos – não judeus ou gregos enquanto etnias, mas judeus ou gregos enquanto
portadores de discursos específicos (nesse caso, discursos classificatórios).

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


30 UNIDADE I

Esses contrastes têm a ver com os diferentes modos de classificar o valor das
pessoas – por um lado, a classificação feita por judeus e gregos (com base na
identidade étnico-religiosas por judeus; com base na identidade étnico-racio-
nal por gregos); por outro, a classificação feita por Deus, que inverte e subverte
as classificações humanas. Trataremos, então, dessa questão no tópico sobre a
dimensão sociocultural da ação.
Os contrastes, por sua vez, ressaltam as relações entre Deus, Paulo e seus
colegas de missão e os ‘fieis’/‘chamados’, incluindo as comunidades messiânicas
paulinas de Corinto. Nessas relações, ressalta a identidade e a função do Messias

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como aquele que concretiza a fidelidade e o chamado de Deus para libertar a
humanidade (especialmente nos versos finais da perícope). Essa temática será
discutida na análise da dimensão teológica da ação e da dimensão sociocultu-
ral da ação.
Espacialmente, temos um contraste entre os que estão no mundo e os que
estão no Messias ou no Senhor, que corresponde ao contraste classificatório já
mencionado. Por outro lado, todos os seres humanos estão diante do Senhor –
expressão espacial que também indica a questão classificatória. (Repare que a
dimensão espacial não é trabalhada com intensidade nessa perícope).
Do ponto de vista da temporalidade, porém, temos interessantes jogos de relações:
(a) Há uma série de verbos (de ligação) no presente do indicativo, apon-
tando para a condição da ‘mensagem da cruz’ e das ‘pessoas’ em suas diferentes
classificações (de valor no mundo, ou de valor diante de Deus ou no Messias);
(b) No início da perícope, temos verbos no futuro do indicativo que, por
serem uma citação, se referem ao futuro em relação ao texto bíblico citado, mas
ao presente dos leitores e leitoras de Paulo, em Corinto. Como Deus cumpriu o
anunciado por Isaías? Por meio da encarnação do Messias, sua vida, morte e res-
surreição em prol da humanidade e de toda a criação;
(c) O principal jogo de relações temporais se dá entre o presente da condição
humana neste mundo, especialmente ligada à atividade classificatória e expli-
cativa da vida (racionalidade) e a ação de Deus para transformar a realidade
classificatória, que é apresentada por verbos no pretérito perfeito (indicando
ação completa da parte de Deus no passado) ligados a verbos no infinitivo (indi-
cando os efeitos da ação de Deus, efeitos, estes que não são automáticos, mas

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


31

demandam resposta humana – essa é uma das forças do uso do infinitivo). Em


relação aos sistemas classificatórios ‘racionais’ deste mundo, os efeitos da ação
de Deus são os de torná-los inoperantes na vida messiânica;
(d) O jogo das relações temporais da ação, explicitado na letra ©, se liga ao con-
junto de verbos no presente do indicativo, que se referem aos ‘fiéis’ (dentro e fora da
comunidade paulina, em Corinto), ou seja, apresentam a identidade dos que ‘são dele’;
(e) Finalmente, temos um subjuntivo com força de imperativo no último
verso da perícope, que define o critério da honra aos olhos de Deus – a honra
não é definida pelo lugar da pessoa na estrutura social do Império Romano (ou
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na estrutura sócio religiosa do Judaísmo), mas pelo lugar da pessoa diante de


Deus: no Messias ou fora dele.
Vemos, assim, que o jogo das relações temporais está intimamente ligado ao
tema da honra e seus sistemas classificatórios, que será tratado especialmente na
análise da dimensão sociocultural da ação. É importante notar, aqui, que a lei-
tura mais comum desta perícope, em registro ‘emocional’ ou ‘pessoal’ (a glória
como orgulho particular), não acerta em cheio o ‘alvo’ dessa perícope que trata
do sentimento coletivo da honra (glória, jactância ou orgulho). A questão psi-
cossocial da identidade da pessoa é, aqui, derivada da dimensão sociocultural.

Ao agregar o qualificativo ‘deste tempo presente’, o Apóstolo não fixa sua


crítica contra a sabedoria falsa do mundo. Originalmente, o vocábulo gre-
go ‘tempo’ (ou ‘era’), que se traduz por ‘idade’, conotava um período longo.
Depois, veio a significar a diferença entre ‘esta era e a vindoura’, ou seja, a
presente era maligna, distinguindo-a da bendita era messiânica que estava
chegando. Paulo usa ‘idade’ como sinônimo de ‘este mundo’. As duas expres-
sões comunicavam aos leitores a essência da malignidade. Paulo também
entendia as duas expressões em sentido histórico ou temporal, e não espa-
cial. Ou seja, ‘este mundo’ não é um lugar, mas reflete uma qualidade per-
versa da época. O Apóstolo declara expressamente que o poder de Deus,
manifestado na cruz, converteu em loucura a falsa sabedoria das pessoas
não-redimidas.
Fonte: Fricke (2003, p. 47s).

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


32 UNIDADE I

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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

Passo, agora, à análise da dimensão teológica da perícope, seguindo a sequência


dos segmentos da perícope e unificando em uma única redação as três perspec-
tivas dessa análise: a temática, a interdiscursiva e a estilístico-argumentativa.
(Faço isto para que você possa perceber que não é preciso seguir rigidamente
os passos metodológicos ao apresentar os resultados do trabalho exegético, ou
seja, uma coisa é o passo a passo da pesquisa exegética, outra é a apresentação
dos resultados dessa pesquisa. Ademais, devemos considerar que uma coisa é
o passo a passo do método enquanto exposto didaticamente – a aplicação do
método varia de pessoa para pessoa e varia de qualidade em função do talento
e da experiência de cada uma ou de cada um).
(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós,
os que somos salvos, é potência de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a sabedoria
dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes. [O verso 19 é citação de Is 29,14,
com alteração do verbo final. Na LXX: “ἀπολῶ τὴν σοφίαν τῶν σοφῶν καὶ τὴν
σύνεσιν τῶν συνετῶν κρύψω”. O verbo usado pela LXX como última palavra do
verso: “esconder”, é tradução adequada do hebraico. O verbo usado por Paulo, “anu-
lar”, é escolha dele, alteração proposital para combinar com a sua argumentação].

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


33

(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21 Ora, visto que, na
sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, Deus achou
por bem salvar os fiéis através da pregação (que é loucura) 22 uma vez que os
judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria; 23 nós, porém, anunciamos
o Messias crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para as nações.
24
Todavia, para os chamados, judeus ou gregos, Messias, força de Deus e sabe-
doria de Deus; 25 pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos
homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana.
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(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre
vós que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam
nobres. 27 Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar
os sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os
fortes 28 e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que
não têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm, 29 para que nenhuma
carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou para nós, da
parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
Do ponto de vista mais técnico da análise sêmio-discursiva, percebemos
nessa perícope os seguintes percursos:
(a) A validade da mensagem da cruz (presente nos dois primeiros segmen-
tos da perícope);
(b) A honra dos sem-honra (perpassa toda a perícope);
(c) A identidade da comunidade de Corinto (terceiro segmento);
(d) A messianidade de Jesus (presente no segundo e quarto segmentos).
A temática que outorga unidade à perícope pode ser assim descrita:
RACIONALIDADE IRRACIONALIDADE
NÃO-IRRACIONALIDADE NÃO-RACIONALIDADE

A Dimensão Teológica da Ação


34 UNIDADE I

Trata-se do contraste entre a racionalidade da cruz e a irracionalidade do poder.


O movimento semântico do texto é muito interessante, pois, embora o polo eufó-
rico seja o da racionalidade da ‘palavra da cruz’, o texto afirma a irracionalidade
do poder humano como consequência da pregação da crucificação e a conse-
quente formação de comunidades de ‘fiéis’ à palavra da cruz.
Do ponto de vista da interdiscursividade, a perícope está estruturada ao redor
de duas citações (tecnicamente a segunda é uma alusão) de textos proféticos
da Septuaginta (Isaías e Jeremias, respectivamente), que apontam para a dupla
temática do nível discursivo do texto: a questão da racionalidade da mensagem

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do Evangelho (que é um problema derivado da discussão ampla na sociedade
imperial romana sobre a racionalidade do ser judeu) e a questão da honra das
pessoas em função de sua posição social. Nesse sentido, o texto é construído a
partir da alusão ao ‘discurso da honra’, que permeava as culturas mediterrâneas
em geral, tanto no Ocidente como no Oriente.
Estilisticamente falando, a perícope se assemelha às discussões filosóficas
(orais e escritas) do mundo helenístico, construídas a partir de perguntas retóri-
cas que criam um oponente discursivo imaginário e convidam leitoras e leitores
a imaginar a discussão ocorrendo entre o autor e seu oponente. Dessa forma,
são obrigadas a se identificar com uma das partes em discussão. Na estrutura
da carta, nossa perícope se situa na seção iniciada em 1,10 e encerrada em 4,21,
que discute as divisões dentro da comunidade ou comunidades de Corinto e o
valor do apostolado. Para Paulo, as divisões internas são sintomas da infideli-
dade a Deus e seus efeitos são como se o próprio Messias tivesse sido dividido.
A motivação para as divisões está na ‘cultura da honra’ e do patronato, que fazia
as pessoas se ‘filiarem’ a certos indivíduos como seus ‘patronos’ – Paulo, Apolo,
Cefas, Cristo. Na visão paulina, essa lógica social é completamente inadequada
para o povo de Deus, em que a hierarquia sociopolítica não faz sentido, pois
todos são iguais diante de Deus e há um único Senhor: o Messias Jesus.
Passo, a seguir, a apresentar a interpretação da dimensão teológica da ação,
sem seguir a sequência dos passos metodológicos, mas utilizando todos os pas-
sos do método.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


35

A perícope se vincula à perícope anterior sobre as divisões na comunidade de


Corinto, mediante às palavras crucificar e sabedoria, bem como mediante a temá-
tica da honra, na medida em que as divisões na comunidade, muito provavelmente,
tenham tido a ver com a cultura do patronato romano (conforme discutido no
tópico sobre o contexto da Epístola, tema que voltaremos na análise da dimensão
sociocultural da ação). Repare como, na perícope posterior (2,1-5), Paulo volta a
questões da história da comunidade e mantém o uso do termo sabedoria.
A sabedoria deve ter sido um tema-chave nessas divisões, pois a sua posse
pode ter sido invocada pelos membros da comunidade que ocupavam posições
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mais elevadas na estrutura social da época. O vínculo com a estrutura social da


época é reforçado, ainda, pelo uso de termos relativos à glória e honra – temá-
tica importante no ambiente cultural greco-romano.
Que a ‘palavra da cruz’ (a mensagem sobre a cruz) seja irracional para os
que não são fiéis a Deus é a primeira tese da perícope. Interessantemente, aqui, o
que provoca a acusação de irracionalidade é a morte do Messias, enquanto que,
em Atenas (cf. Atos 17), é a ressurreição que gera a reação de irracionalidade.
Por que a pregação sobre a morte de Jesus na cruz é irracional? Por que ela
contradiz radicalmente a visão de Deus, tanto no Judaísmo como nas culturas
não-judaicas da época (e também de hoje em dia). Como pode Deus morrer?
Pior, como pode Deus morrer a morte desonrosa do criminoso político, do
subversivo contra o Império? Como pode morrer a morte de quem foi amaldi-
çoado pela Lei? Paulo mostra o círculo vicioso em que estão encerrados os que
não creem na palavra da cruz: não creem porque ‘estão perecendo’ e estão pere-
cendo porque ‘não creem’! A irracionalidade (moria = loucura) não tem a ver
com o formato do argumento paulino – ou seja, não se trata da irracionalidade
‘moderna’ – de uma conclusão não baseada em argumentação adequada. Trata-se
da irracionalidade existencial: para quem crê que Deus é poder e poder é des-
truir o inimigo, a morte do Messias na cruz mostra um Deus que é apresentado
como poderoso, mas que morre ao invés de matar o inimigo. Isso é ‘loucura’!
Quem quer um Deus mortal? Como um Deus que morre pode ‘resolver nossos
problemas’ e dar ‘sentido à vida’?

A Dimensão Teológica da Ação


36 UNIDADE I

A oposição que Paulo estabelece entre sabedoria humana e sabedoria divina


tem sido objeto de diferentes interpretações, afunilando a questão para a relação
entre fé e filosofia ou fé e conhecimento em geral. Uma leitura popularizada do
texto faz com que ele estabeleça um contraste entre o conhecimento científico e
filosófico (visto como negativo) e o conhecimento derivado da fé (positivo). Não
é este, porém, o confronto da perícope. A sabedoria, aqui, não pode ser equa-
cionada com o conhecimento em geral ou com alguma disciplina acadêmica em
particular (como a filosofia, por exemplo). A oposição não é entre saber ou não
saber, mas tem a ver com a origem da sabedoria. O que se opõe não são conte-

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údos, mas fontes da sabedoria, fontes do saber viver bem. Repare que o texto
conclui com a afirmação de que o Messias é sabedoria.
Um contraste estabelecido no verso 18 é interessante, mas assimétrico: por-
que contrastar loucura com potência? Possivelmente, em função do sentido da
cruz na cultura greco-romana:
[...] o orador romano Cìcero chamou a crucificação de crudelissimum ta-
eterrimumque supplicium, ‘a mais cruel e terrível punição’ (In C. Verrem
2.5.65); e ‘indigna de um cidadão romano’ Pro Rabirio 5.16; cf. Hengel,
Crucifixion, 22–24; TDNT, 7:573–74) (FITZMYER, 2008, p. 154).

Falar da cruz como o evento da salvação seria considerado loucura, pois como
poderia a força, o poder e a dignidade se originarem em tal castigo indigno de
quem possui honra? Como a morte poderia significar a potência de viver? O
outro contraste é claramente inteligível: os que se perdem (ver, também, 2Co
2,15; 4,3; cf. 2Ts 2,10 – que indicam uma temática constante em Paulo) e os que
se salvam. Quem não reconhece a palavra da cruz a considera como loucura – só
não sabe que essa decisão o encaminha para a morte, para a destruição. Quem
a reconhece, porém, é encaminhado para a salvação, que é vida (a formulação,
aqui, se assemelha a Rm 1,16-17).
O uso de nós é um recurso argumentativo interessante, pois gera uma empa-
tia entre Paulo e seus leitores – unidos pela mesma condição: somos salvos, ou
seja, não há diferenças entre nós e nem deveriam divisões ser criadas, pois é a
palavra da cruz que nos une e não a sabedoria humana.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


37

Essa palavra da cruz derruba subitamente toda a sabedoria - todo o pensa-


mento das pessoas sobre si mesmas, sobre o mundo e Deus. O ser huma-
no que tenta dominar todas as coisas com seu pensamento é seguro de si.
Acredita estar em ordem e por isso ser capaz de solucionar todos os pro-
blemas a partir de si mesmo, também a questão de Deus. Em lugar de toda
a sabedoria, a palavra da cruz, porém, lhe oferece redenção como a única
coisa necessária, dizendo-lhe com isso que ele é um perdido. O ser humano
não carece de sabedoria, nem de filosofia da religião, nem de pensamentos
profundos sobre Deus, nem da solução para seus problemas lógicos, mas
da redenção. Isso obviamente lança por terra todo o pensamento anterior,
sim, toda a existência anterior da pessoa. A ‘palavra da cruz’ representa para
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o ser humano o desafio extremo, porque o torna um pecador perdido que


precisa de salvação.
Fonte: De Boor (2004, p. 21).

Do ponto de vista da argumentação, a frase “pois está escrito” aponta para a


Escritura e outorga autoridade ao que Paulo está escrevendo. Os coríntios deve-
riam reconhecer a origem divina da proposta paulina, posto que ela se baseia na
Palavra de Deus e não em tradições humanas. A citação é de Is 29,14, copiada da
LXX (que traduz quase que literalmente o texto hebraico), mas com a troca do
último verbo (cf. nota 2, anterior), provavelmente inspirada pelo Sl 33,10 (32,10 na
LXX), que tem o mesmo verbo usado aqui por Paulo. Deus não somente esconde
a sabedoria humana, ele a distorce, modifica e, enfim, a aniquila.
Tanto em Isaías 29 quanto no Salmo 33, a questão não é simplesmente rela-
tiva a conhecimento, mas ao seu uso nas relações de poder. O tema relativamente
comum, no Antigo Oriente, era que o conhecimento e a sabedoria eram usa-
dos para dominar o mais fraco, e já está presente no modo como o capítulo 3 de
Gênesis descreve a origem do pecado humano. É bem provável que Paulo tenha
tido isto em mente para fazer essa citação, inclusive com sua modificação. Isto
também ajudaria a entender melhor o contraste entre loucura e força – os gover-
nantes tendem, em vários lugares e épocas, a considerar irracional, insana ou
louca, a resistência dos dominados. Tema similar se encontra em Is 5,21ss, em
que a sabedoria auto-proclamada de poderosos é justificativa para perverter os
julgamentos pelo suborno.

A Dimensão Teológica da Ação


38 UNIDADE I

Assim, o início da perícope já estabelece o escopo universal da sua discus-


são. O que Paulo está colocando em oposição não é apenas uma questão local,
de intrigas particulares, mas uma questão universal, cuja forma local é aprovei-
tada pelo apóstolo para estabelecer sua visão teológica sobre o modo como Deus
valoriza as pessoas: o critério de valor não é a posição social, mas a posição em
relação ao Messias crucificado! O sentido e o alcance da afirmação paulina do
Evangelho da cruz irão se desenvolver nos demais segmentos da perícope.
No segundo segmento, Paulo inicia o par de contrastes que forma a seção
interna da perícope. Aqui, o contraste é entre os caminhos de salvação ou, como

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se enfatiza no texto, entre as diversas formas de sabedoria mediante as quais o
ser humano busca transcender suas próprias limitações. O foco de Paulo recai
sobre os dois grandes universos discursivos estabelecidos na tradição judaica da
época: discurso judeu e discurso grego. De fato, a polêmica paulina na carta mos-
tra que os caminhos de salvação em questão são três: o caminho do Judaísmo
oficial; o caminho grego das filosofias e religiões, especialmente da primeira; e
o caminho romano da honra e vitória militar. A redução a dois discursos, em
oposição ao discurso messiânico, simplifica a questão e possibilita uma argu-
mentação mais concentrada e, esperava Paulo, mais convincente.
Sábio, escriba, debatedor – são termos genéricos, não deveriam ser entendi-
dos como referências ao filósofo grego, ao escriba judeu e ao debatedor romano na
arena política. Paulo estabelece o contraste entre as fontes da sabedoria – há uma
sabedoria deste tempo presente e do mundo que não conduz ao conhecimento de
Deus, nem à salvação. A linguagem lembra textos de Isaías – 19,12 e 33,18: “onde
estão agora os teus sábios? Anunciem-te agora ou informem-te do que YHWH
dos Exércitos determinou contra o Egito”; “O teu coração considerará o assom-
bro dizendo: Onde está o escriba? Onde está o que pesou o tributo? Onde está o
que conta as torres?” (note, aqui, o uso de três personagens, como em Coríntios).
Os termos se referem a funções a serviço do poder político – e me parece que
esta é a linha temática de Paulo: não só discute a temática do saber, mas, principal-
mente, a do poder – a sabedoria a serviço do poder. O poder deste mundo não leva
à vida, os poderosos deste mundo não podem salvar (esta é uma temática constante
na Bíblia Hebraica). Somente Deus pode salvar em sua sabedoria (lembre-se, por
exemplo, da atribuição de sabedoria aos reis israelitas, Salomão sendo o ícone deles).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


39

Quanto aos termos descritivos das pessoas na sociedade,


[...] a partir dos anos 1970 até o presente emergiu um reconhecimento
geral das amplas variações do status social. Gerd Theissen liderou esse
consenso com o ensaio ‘Social Stratification in the Corinthian Commu-
nity’ (The Social Setting of Pauline Christianity, pp. 69-144). Bem Withe-
rington endossa essa abordagem. Ele escreve: ‘o nível social dos cristãos
coríntios aparentemente variava dos muito pobres aos muito bem-de-
-vida ... uma ampla seção transversal da sociedade urbana’ (Conflict and
Community in Corinth, pp. 23-24). Em termos de apologética cristã, é
construtivo lembrar que os convertidos à fé cristã incluem todos os tipos,
todas as classes, todos os temperamentos, todas as condições sociais, ma-
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chos e fêmeas, jovens e idosos. Não há um tipo social ou psicológico es-


pecífico a quem o Evangelho apele. Ele tem relevância universal. Dentro
da igreja, porém, as tensões que podem caracterizar as diferenças sociais
apresentam um desafio pastoral permanente, assim como o faziam em
Corinto, especialmente em 8:1-11:34” (THISELTON, 2006, p. 47).

Essa dimensão política do sentido do texto também é vista em sua sequência: os


judeus pedem sinais (nos Evangelhos, os fariseus demandam de Jesus, para pro-
var que é o Messias, a realização de sinais, cf. Mc 8,11; Mt 12,38; Lc 11,16; cf. Mt
16,1-4; Jo 6,30). A palavra sinais é usada na Bíblia Hebraica, geralmente, em par
com maravilhas ou portentos (cf. Ex 7,3; Dt 4,34; 28,46; 34,11; Sl 135,9; Is 8,18)
e se refere aos atos libertadores de Deus em favor de Israel – provavelmente é
a esse tipo de sinais que Paulo se refere: o Judaísmo oficial quer a libertação da
nação enquanto estrutura política, Paulo espera a libertação das pessoas, do povo
judeu enquanto comunidade humana.
Os gregos, por outro lado, buscam sabedoria. Gregos, aqui, é uma metáfora
para todos os gentios. A busca de sabedoria como finalidade da vida é frequente
em autores gregos:
[...] Heródoto (Hist. 4.77.1) conhece o provérbio ‘todos os gregos estão
intensamente ocupados na busca de toda sabedoria’; Aristóteles (Ética
a Nicômaco 6.7.2): ‘é claro que a sabedoria é o mais precioso dos modos
de entendimento’; Aélio Aristides (1.330): “os atenienses são os líderes
em toda educação e sabedoria (FITZMYER, 2008, p. 159).

A Dimensão Teológica da Ação


40 UNIDADE I

Para a mentalidade helênica “nobre” (imitada pelos romanos nobres), a sabedo-


ria é o meio privilegiado de alcançar o conhecimento e a vida, o domínio de si
e a liberdade para governar – Platão desenha a utopia da cidade governada pelo
rei-filósofo: que seria a verdadeira política.
Essas formas de busca de salvação que, na perícope, representam todas as
demais, são feitas loucura por Deus, mediante a loucura da pregação do Messias
crucificado. Note a dupla inversão: a sabedoria deste mundo considera louca a
sabedoria de Deus que, por sua vez, torna louca a sabedoria deste mundo. Só há
um caminho de salvação, segundo Paulo: a sabedoria divina revelada no Messias

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crucificado. Sabedoria que, além de loucura (relação polêmica com o discurso
grego), é fraqueza (relação polêmica com o discurso judaico dos sinais). Loucura
e fraqueza que revelam a verdadeira face da sabedoria e do poder: amar e ser-
vir a quem precisa.
A crucificação de Cristo e sua proclamação certamente teriam sido
loucura para a cultura dominante em sua compreensão de sabedoria e
poder. A crucificação era uma forma romana de tortura, uma execução
que levava a uma morte lenta e excruciantemente dolorosa. Como a
forma mais extrema da pena capital, ela era reservada para as classes
baixas, usualmente infligida sobre escravos e camponeses rebeldes em
províncias submetidas ao Império, como a Judéia. Como atos moder-
nos de terrorismo, a crucificação era feita primariamente em função
de seus efeitos visuais sobre os que a testemunhavam como morte tor-
turante. Uma forma de terrorismo patrocinado pelo Estado, ela visa-
va funcionar como um meio de controle social, para quebrar a força
de vontade dos povos conquistados que, após qualquer quebra da pax
romana (paz imposta por Roma), testemunhariam centenas, mesmo
milhares de tais ‘rebeldes’ expostos publicamente em sua execução na
cruz. Como diz Paulo em Gl 3:1: ‘foi diante dos vossos olhos que Jesus
Cristo foi publicamente exibido como crucificado’. Longe de se simpa-
tizar com os sujeitos a tal terror e execução, a cultura helenística domi-
nante se preocupava com a lei e a ordem e considerava os crucificados
como desprezíveis. Em um clima cultural dominado pelos tradicionais
valores aristocráticos gregos, a cruz seria, de fato, ‘loucura’ (1:23) por
proclamar e organizar a vida ao redor de um criminoso político cruci-
ficado como o seu símbolo central (HORSLEY, 1998, p. 50).

O próximo segmento mostra o outro lado desse contraste entre a fonte divina e
a humana de salvação.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


41

O segundo par interno de contrastes traz o texto para o espaço local da comu-
nidade de Corinto. Não mais se trata de questões universais, mas de questões
particulares – que representam a universalidade da condição humana. Ao falar da
loucura e fraqueza de Deus reveladas no Messias, Paulo pede aos coríntios para
pensarem em si mesmos, em sua própria realidade. A maioria dos membros das
comunidades paulinas em Corinto pertencia às camadas inferiores da popula-
ção (“não há muitos entre vós...”). O argumento de Paulo é forte: vocês mesmos
são prova do que eu estou dizendo! Ao descer à terra coríntia, Paulo torna explí-
cita a isotopia sociopolítica do seu tema, apenas sugerida no segmento anterior.
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Note os contrastes. De um lado: sábios, fortes, nobres (a frase “segundo a carne”


se aplica a todos os três, embora na sequência textual esteja ligada aos sábios). De
outro: as coisas loucas, as coisas fracas, os plebeus e os desprezados (“do mundo”
que se aplica a todos, inclusive aos desprezados que, na sequência textual, não
é acompanhado da expressão). “Segundo a carne” e “do mundo” não têm, aqui,
conotação moral ou religiosa; simplesmente indicam que tais avaliações são esta-
belecidas apenas por padrões da sociedade, cultura, política etc. São “terrenos”, não
possuem valor fora dos limites deste século. No texto, há uma síntese desses con-
trastes: “os que têm valor” e “os que não têm valor” (a tradução costumeira é “os
que são” e “os que não são”. O uso do verbo ser poderia ser mantido; eu o evito, a
fim de ressaltar o caráter não ontológico, nem metafísico do texto. Devemos lem-
brar que o verbo ser (no grego ’eimi ou no hebraico hyh) também significa existir,
ou seja, indica dinamicidade e não apenas condição, estado).
Como vimos na análise do contexto da Epístola, esses termos todos se refe-
rem à condição social das pessoas no Império Romano. Nas comunidades de
Corinto, como na sociedade romana em geral, a maioria das pessoas era com-
posta de trabalhadores, pobres e de escravos – pessoas a quem os governantes,
ricos, empresários e militares não davam valor, pessoas que deveriam servir e
aceitar a sua condição sem questionar. Para Paulo, essas diferenças são fruto da
injustiça, do pecado humano. Para a sabedoria greco-romana, elas são fruto da
natureza das coisas. São assim e devem continuar assim. Paulo é irônico ao texto,
às distinções assim estabelecidas – é assim que o mundo avalia as coisas; Deus,
porém, avalia de modo totalmente peculiar.

A Dimensão Teológica da Ação


42 UNIDADE I

O texto termina com uma alusão a Jeremias 9,23s (22s no TM e na LXX),


que estabelece o contraste entre os ‘caminhos de Deus’ e os ‘caminhos humanos’:
[...] assim diz YHWH: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem o
forte, na sua força, nem o rico, nas suas riquezas; mas o que se gloriar,
glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou YHWH e faço mi-
sericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz
YHWH (Tradução do autor).

Ressalta, no texto, o uso do verbo escolher, com Deus como sujeito. No mundo faze-
mos escolhas e é sábio, racional, escolher o vencedor, o importante, o governante.

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Deus, porém, escolheu os fracos, os pobres, os loucos, os sem-valor. Em outros
textos, Paulo usa uma linguagem mais abstrata para falar dos objetos da eleição
de Deus, mas sempre o objeto da eleição de Deus são os que não a mereceriam,
e sempre a eleição é no Messias – com base no mérito do Messias, fiel a Deus, e
para ser como o Messias foi (e.g., Rm 9—11; Ef 1,3ss). Há, aqui, ecos de Dt 7,7-8:
YHWH não se afeiçoou a vós, nem vos escolheu porque fôsseis mais
numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os po-
vos, mas porque YHWH vos amava e, para guardar o juramento que
fizera a vossos pais, YHWH vos tirou com mão poderosa e vos resgatou
da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito.

A causa da eleição é o amor fiel de Deus pelos necessitados. Devemos entender


a ‘escolha’ de Deus em um sentido distinto de outros textos, nos quais a noção
se refere à ‘salvação’. Não se trata, nessa perícope, desse conceito de eleição pre-
sente em outros textos. O sentido, aqui, é mais restrito: do ponto de vista dos
sistemas classificatórios, Deus escolheu atribuir valor a quem a sociedade ‘peca-
minosa’ não atribui valor.
O motivo é tornar inoperantes os que têm valor – no mundo, na carne. Não é
impedir a salvação dos ricos, nobres e poderosos; mas evitar que eles continuem
a praticar a injustiça. Mudar a forma de valorizar as pessoas, a fim de mudar a
realidade das relações entre as pessoas – este é o sentido mais provável da expres-
são “a fim de tornar nulos todos os que têm (valor)”, usando o verbo katargew
(o verbo é bastante usado por Paulo: 1Co 2,6; 6,13; 13,8.10.11; 15,24.26; 2Co
3,7.11.13.14; Gl 3,17; 5,4.11; Ef 2,15; 2Ts 2,8). Este verbo indica que o efeito da
ação messiânica nas pessoas que a aceitam é o de tornar inoperante os modos

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


43

de funcionamento do ‘mundo’: agora é possível viver de outro modo, ou seja, na


potência de Deus, que nos permite optar por outro sistema classificatório - pelo
sistema ‘de Deus’ - e viver de tal modo que nosso testemunho concreto seja um
permanente aviso: ‘outra forma de viver é possível’!
A perícope se encerra de modo paralelo ao seu início: com uma citação
bíblica. O texto citado não só vincula o segmento ao primeiro da perícope, como
também ao terceiro, mediante o uso do verbo gloriar-se. Esse segmento é a con-
clusão de todo o argumento da perícope e apresenta a tese ética de Paulo, no
que toca às divisões da comunidade: o ser humano pode orgulhar-se, sim; mas
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não em suas realizações e características – mas naquilo que o Senhor é e faz. Na


cultura mediterrânea da honra, essa afirmação paulina representava uma com-
pleta inversão de valores e mentalidade ou usando termos relativos à temática
da identidade, representava a proposta de uma nova subjetividade, de uma nova
identidade: a subjetividade messiânica.
O contraste final é apresentado: vós sois dele – pertenceis a Deus e não ao
Império Romano. Vós sois dele no Messias Jesus – pertenceis a Deus não por
qualquer condição carnal ou terrena, mas por estarem incorporados no Messias
Jesus. O Messias Jesus é Israel em pessoa, ele é o novo (renovado) Israel, o Israel
de Deus (Gl 6,14) – o homem que viveu de modo fiel a Deus.
“No Messias Jesus” supera todas as identidades particulares ou universali-
zantes – boas ou más. Supera sem as destruir. Cria uma nova identidade que,
no tempo presente, é sempre crítica das injustiças e imperfeições que as diver-
sas identidades e suas estruturações políticas praticam e incorporam. Pertencer
a Deus, no Messias, significa que podemos viver o mesmo estilo de vida que
o Messias Jesus viveu – fiel ao Deus que é misericordioso e justo, libertador e
Senhor de toda a criação.
Para concluir o argumento desenvolvido nos segmentos internos da perí-
cope, Paulo passa a descrever o sentido do Messias para nós: sabedoria e justiça
e santificação e libertação. Um par paralelo de dois pares paralelos. Sabedoria,
que se concretiza na justiça; santificação, que se concretiza na libertação; justiça,
que se concretiza na sabedoria; e libertação, que se concretiza na santificação.

A Dimensão Teológica da Ação


44 UNIDADE I

Devemos entender esses termos em seu contexto paulino da discussão sobre


a honra e o lugar das pessoas diante de Deus, evitando impor sobre elas os sig-
nificados das diferentes doutrinas teológicas da salvação. A questão é simples:
Paulo entendia esses termos de modo diferente do que as Igrejas Cristãs, que,
ao longo da história, entenderam estes termos e lhe deram sentido teológico e
prático. Mero fato, sem juízo de valor embutido.
Sabedoria: saber viver em resposta ao viver de Deus. Sabedoria é dom,
dádiva divina. Busca humana, sim; mas dádiva divina que recompensa a busca.
Nesse termo, precisamos ver a alusão a Pv 8,22ss, bem como a Sabedoria de

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Salomão 7,22ss. A Sabedoria personifica o Deus criador, média entre Deus e a
criação, abençoa a criação com a vida de Deus. Justiça: não é comum, na men-
talidade ocidental, unir sabedoria e justiça; mas, para a mentalidade hebraica,
era indispensável tal união. Justiça não deve ser entendida no sentido forense
ou distributivo do termo, como é comum no mundo ocidental (esse seria um
sentido encontrado na palavra mishpat e não em tsedaqah), deve ser entendida
como justiça social (nosso termo ocidental que mais se aproxima do sentido
hebraico antigo). Justiça é a dádiva da vida plena, da vida sem dominação,
sem distinções classificatórias, sem divisões entre as pessoas. Para ser justo,
é preciso ser sábio. Para ser sábio, é preciso ser justo. Devemos ver um con-
ceito similar ao desenvolvido em Rm 1,18ss: por falta de prática da justiça, as
pessoas não conseguem conhecer a Deus, por não conhecerem a Deus, per-
manecem praticando a injustiça.
Santificação: termo não muito usado por Paulo (Rm 6,19.22; 1Co 1,30; 1Ts
4,3.4.7; 2Ts 2,13 [Pastorais: 1Tm 2,15]), quase sempre junto com justiça ou jus-
tificação, e sempre apontando para o modo de vida, para a ética/espiritualidade
dos seguidores do Messias, em contraste com as éticas deste mundo. Também é
dádiva, e a explanação em Romanos 6 me parece ser a mais clara em Paulo para
o sentido dessa palavra. Libertação: tradicionalmente as versões modernas usam
redenção, destacando o sentido básico da palavra, que é a compra do escravo
para libertá-lo. Como redenção se tornou um termo técnico da dogmática cristã,
é melhor traduzir por libertação – o efeito da redenção. A pessoa santificada é
livre. Só é possível ser livre sendo santo. Só é possível ser santo sendo livre. Não
há santidade com base no dever, apenas na dádiva.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


45

A conclusão da perícope é sintética e seu uso de Jeremias nos convida a ler


o texto aludido em sua forma plena:
[...] assim diz YHWH: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem o
forte, na sua força, nem o rico, nas suas riquezas; mas o que se gloriar,
glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou YHWH e realizo
fidelidade, justiça e direito na terra; porque destas coisas me agrado, diz
YHWH (BÍBLIA, Jeremias 9,23-24).

A honra, a glória, o prestígio e o esplendor pertencem apenas a Deus – porque


Ele realiza a fidelidade, a justiça e o direito. “O ato de gloriar-se nas coisas deste
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mundo simboliza a idolatria e a infidelidade pactual pois o indivíduo se esquece


do Senhor e adora coisas e não a Deus” (DONAHOE, 2008, p. 83, on-line)4.
Seguindo a linha aberta por Jeremias, Paulo afirma que homens e mulheres
podem se gloriar no Senhor quando praticam a fidelidade, a justiça e o direito.
Quando estamos no Messias, podemos abrir mão dos sistemas classificatórios
que transformam pessoas em ‘nobres’ ou em ‘desprezados’. E quando vivemos
em um novo sistema classificatório - includente e justo - não precisamos nos
orgulhar nem nos vangloriar.
Em termos da filosofia política atual, trata-se da questão do reconhecimento
mútuo da igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente de
suas condições sociais específicas. Praticamos o verdadeiro reconhecimento (em
suas diversas dimensões: pessoal, ética, política, econômica, social e jurídica) ‘no
Senhor’: praticando fidelidade, justiça e direito nas relações com outros seres
humanos e com toda a criação.

A Dimensão Teológica da Ação


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A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO

(a) 18 Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós, os
que somos salvos, é potência de Deus, 19 pois está escrito: destruirei a sabedoria
dos sábios e anularei a inteligência dos inteligentes.
(b) 20 Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o debatedor deste tempo
presente? Deus não tornou louca a sabedoria do mundo? 21
Ora, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela
sabedoria, Deus achou por bem salvar os fiéis através da pregação (que é lou-
cura) 22 uma vez que os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria;
23
nós, porém, anunciamos o Messias crucificado, que é escândalo para os
judeus e loucura para as nações. 24 Todavia, para os chamados, judeus ou gre-
gos, Messias, força de Deus e sabedoria de Deus;
25
pois a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens, e a
fraqueza de Deus é mais forte do que a força humana.
(b’) 26 Considerai, pois, irmãos, o vosso chamado – pois não há muitos entre vós
que sejam sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que sejam nobres.
27
Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os
sábios, e Deus escolheu as coisas fracas do mundo a fim de envergonhar os fortes

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


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28
e Deus escolheu os plebeus do mundo, e os desprezados – todos os que
não têm valor – a fim de tornar nulos todos os que têm,
29
para que nenhuma carne se glorie diante de Deus.
(a’) 30 Vós, porém, sois dele, no Messias Jesus, o qual se tornou para nós, da
parte de Deus, sabedoria e justiça e santificação e libertação. 31 A fim de que,
conforme está escrito: aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
A análise da dimensão teológica da ação, em nossa perícope, já deve ter
mostrado a você que a divisão em dimensões, por mais útil que seja em termos
metodológicos e didáticos, não funciona de modo perfeito e exato na realidade
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textual e social. As questões socioculturais estão presentes na dimensão teológica


(o que chamaríamos, hoje, de teologia pública), assim como as questões passio-
nais também estão presentes na dimensão sociocultural e na teológica. Contudo,
nesta seção de nosso estudo, o foco recairá sobre a dimensão sociocultural, mas
incluirá, também, elementos do que seria, tecnicamente, a dimensão passional
da ação. Enfim, lembro que a dimensão sociocultural não é isolada da teológica.
Em outras palavras, os ciclos da fase final da metodologia exegética, aqui ado-
tada, são, de fato, diferentes pontos de vista, a partir dos quais consideramos o
sentido dos textos que é uma unidade complexa multidimensional.
Comecemos com os elementos concretos da vida social. A perícope usa uma
série de termos que nos revelam parte da estrutura social de Corinto (que, em
linhas gerais, era a mesma de todo o Império Romano): sábio, escriba, o debate-
dor deste tempo presente, sábios segundo a carne, nem que sejam fortes, nem que
sejam nobres, as coisas loucas, as coisas fracas do mundo, os plebeus do mundo
e os desprezados – todos os que não têm valor –, a fim de tornar nulos todos os
que têm. Esses termos mostram uma estratificação social dual: de um lado, o que
hoje chamamos de elite (social, política, cultural e econômica): fortes, nobres, ‘os
que têm (valor)’ e algumas de suas atividades públicas – sábio, escriba, debate-
dor; de outro lado, o que chamamos, hoje, imprecisamente, de povo ou massa,
ou, em termos sociologicamente mais precisos, ‘oprimidos’: coisas loucas, coi-
sas fracas, plebeus, desprezados, ‘todos os que não têm valor’. Concretamente,
a estratificação social no Império Romano era mais sofisticada; contudo, Paulo
não está preocupado em fazer sociologia, mas em resolver o problema das divi-
sões dentro das comunidades de seguidores de Jesus em Corinto.

A Dimensão Sociocultural da Ação


48 UNIDADE I

Como era composta a elite de uma cidade como Corinto? Era composta por
governantes da cidade, os grandes proprietários de terras (que apoiavam os gover-
nantes ou eram governantes), comando militar, cidadãos (de Roma ou da própria
cidade de Corinto). Em suma, a elite social era composta primariamente das pessoas
com dinheiro e com ‘nobreza’ (ou seja, nascidas na família certa ou no lugar certo).
Essa elite também era a que sustentava a elite intelectual: sacerdotes, filó-
sofos, escribas etc. – daí os termos ‘sábio’, ‘escriba’, ‘debatedor’, que se referem,
principalmente, aos debates públicos nas assembleias da cidade, ou seja, não se
trata de debates intelectuais ‘abstratos’, mas debates que interferiam na vida da

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polis (cidade), que compunham o que hoje chamamos de esfera pública. Essa elite
dominava toda a vida da cidade (e, em termos gerais, dominava o Império) e
tinha sob seu controle o que chamamos de classe média – que, na época, eram
os militares, os intelectuais, os profissionais da religião, artesãos, comerciantes,
pequenos produtores rurais etc. A elite também possuía a maioria dos escravos,
os principais responsáveis pelo trabalho braçal no Império.
Do outro lado, temos o ‘povo’, ou os ‘oprimidos’. Começo com os escravos,
o estrato social mais injustiçado e oprimido da população do Império – sem
liberdade, sem direitos, sem possibilidades de mudança social, a não ser pela
benevolência de seus donos. Depois, todos os homens e mulheres ‘livres’, mas
sem riquezas e propriedades rurais, trabalhadores urbanos que dependiam da
elite, diretamente ou intermediariamente.
Nas cidades maiores, o ‘povo’ dependia pesadamente da elite, inclusive para a
alimentação, tendo em vista o controle do comércio de trigo pelo governo imperial.
A elite compunha o estrato dos patronos que controlavam a ‘classe média’, e mem-
bros dela poderiam ser diretamente patronos de ‘pobres’, mas a maioria dos ‘pobres’
tinha como patronos membros das camadas médias da população. À essa estrutura-
ção socioeconômica concreta correspondia a estruturação cultural-valorativa, a qual
girava ao redor do conceito de honra. Assim, vale a pena retomar a discussão sobre
o patronato e completá-la com a reflexão sobre a relação entre patronato e honra.
O patronato poderia ser dar em modos bastante informais ou em modos
mais organizados, conforme o exigisse a posição social do patrono. Quanto mais
elevada a posição social e política do patrono, mais estruturado era o relacio-
namento de patronato, de modo que a distribuição dos benefícios servisse para

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


49

atingir os objetivos de manutenção do poder e/ou influência do patrono sobre


seus inferiores. Neste sentido, a acumulação é um dos fatores centrais do patro-
nato, predominantemente mediante à acumulação de ‘devedores’ e ‘favores’.
O evergetismo é o termo que descreve a responsabilidade do patrono – seja
em relação a indivíduos, pequenos grupos ou a conjuntos mais amplos da popu-
lação de uma cidade, região ou do Império. A relação de patronato não só era
demarcadora das relações sociais em sentido lato, mas também era fundamental
na definição da identidade pessoal e social das partes envolvidas, estando inti-
mamente ligada à noção de honra no mundo antigo.
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Esse tipo de relacionamento, no mundo paulino, também estava presente


no lado oriental do Mediterrâneo e, em grande medida, fazia parte da vida coti-
diana dos israelitas na sua própria terra e na Diáspora, com a mesma junção
entre patronato e honra:
[...] a troca entre patrões e clientes é baseada na reciprocidade e o re-
lacionamento entre eles é idealizado como amizade e expresso em ter-
mos de parentesco. O patrão é um ‘pai’ para seus clientes, que o hon-
ram como ‘filhos’ e ‘servos’ fieis. As relações patrão-cliente são, acima
de tudo, laços pessoais em relação aos quais se desenvolve a identidade
pessoal e a honra (SIMKINS, 1990, p. 128).

No patronato, o patrão comumente exercia seu poder sobre vários clientes,


mediante uma troca permanente de recursos de vários tipos (econômicos, polí-
ticos, religiosos etc.). O patrono era uma pessoa com uma posição social mais
elevada do que a de seus clientes, o que lhe permitia atuar como uma espécie de
despachante destes, abrindo-lhes o acesso a trabalho, posições políticas, religio-
sas etc. O relacionamento era completamente dissimétrico; porém, a linguagem
usada para descrevê-lo era a linguagem da reciprocidade, solidariedade e leal-
dade. Nos termos de nossa descrição do mundo paulino, o relacionamento de
dívida era descrito como um relacionamento de dádiva. Uma característica adi-
cional do patronato que lhe permitia essa descrição em termos da dádiva era
a possibilidade de transgressão das leis e normas estabelecidas em função do
poder relativo do patrono.
Um efeito político das relações de patronato era a quebra da solidariedade
de ‘classe’ ou condição social, pois o cliente devia lealdade, primeiramente, a
seu patrono e não aos seus próprios pares. No ambiente discursivo da época, as

A Dimensão Sociocultural da Ação


50 UNIDADE I

relações de patronato-clientela eram descritas como relações voluntárias – de


fato, o relacionamento poderia ser rompido a qualquer momento, mas sempre
com o prejuízo do cliente (a não ser em casos nos quais o patrono perdia sua
capacidade de exercer o patronato, seja por perda econômica, política etc.). No
relacionamento patrão-cliente o fator dominante era o da manutenção da honra
das partes envolvidas, ou seja, que cada parte cumprisse adequadamente o seu
respectivo dever: o patrono oferecendo os benefícios e o cliente pagando por
esses benefícios com serviços ou favores.
Em síntese,

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[...] a combinação destas características indica que o intercâmbio efetu-
ado nas relações patrão-cliente usualmente ocorria em diversos níveis;
que ele cria várias contradições paradoxais que constituem uma das
principais características do nexo patrão-cliente – das quais as mais
importantes são, primeiro, uma combinação bastante peculiar de de-
sigualdade e assimetria no poder, com a aparente solidariedade mútua
expressa em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigações
interpessoais; segundo, uma combinação entre coerção potencial e ex-
ploração com relações voluntárias e obrigações mútuas; terceiro, uma
combinação de ênfases sobre tais obrigações mútuas e solidariedade,
ou reciprocidade, entre patrões e clientes em combinação com o aspec-
to algo ilegal ou semi-legal dessas relações (EISENSTADT, 1984, p. 49).

O conceito sócio-cultural de honra está, como vimos, intimamente ligado ao do patro-


nato. Uma das definições clássicas da honra no mundo mediterrâneo é a seguinte:
[...] honra é o valor de uma pessoa a seus próprios olhos, mas tam-
bém aos olhos da sociedade. É a estimativa de seu próprio valor,
sua reivindicação de dignidade, mas também a aceitação dessa rei-
vindicação, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito
ao orgulho pessoal (PITT-RIVERS, 1977, p. 1).

Um fator fundamental para a vida em sociedade era a aquisição e manutenção


da honra, sem a qual a pessoa ficaria excluída das relações sociais. Neste sentido,
a honra é, essencialmente, uma noção conflitiva e dissimétrica: para que alguém
adquira honra, é preciso que outro a perca ou a tenha diminuída, na medida em
que a honra não era um produto de valor fixo, mas variável.
Tendo em vista que a aquisição ou a manutenção da honra dependia do con-
junto de valores predominante na sociedade, podemos entender melhor, por

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


51

exemplo, por que judeus eram mal vistos no mundo imperial romano e como,
semelhantemente, as comunidades de seguidores do Messias Jesus também tive-
ram de enfrentar o preconceito social em seu mundo. Dentre as diferentes fontes
para a aquisição e manutenção da honra, a religião era uma das mais importantes,
de modo que as diferenças radicais entre judeus e gentios em geral e, também,
entre ‘cristãos’ e a sociedade em geral (incluindo os judeus, na medida em que a
fé no Messias Jesus foi definida como heresia) eram um fator constante nos pro-
blemas enfrentados por essas ‘minorias’ no mundo imperial romano.
A prática do patronato-honra, consequentemente, determinava o modo
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como as pessoas entendiam a totalidade das relações intersubjetivas. No exame


das cartas paulinas, podemos constatar a influência dessa prática na configura-
ção das comunidades locais – especialmente mediante a criação de partidos e
divisões internas.
A correspondência com as comunidades de Corinto oferece os exemplos mais
marcantes dos problemas derivados desse tipo de relacionamento. Não é de se
espantar, portanto, que as lideranças eclesiais fossem vistas como patronos aos
quais se deveria obediência e ‘lealdade’ pessoal. Semelhantemente, a noção de
honra era um fator interveniente na composição dos valores ‘cristãos’. O próprio
relacionamento de Paulo com as comunidades poderia facilmente ser confundido
com relações patrão-cliente e tal confusão seria estendida até mesmo no tocante
às relações da pessoa e comunidade com Deus, que era digno de ‘toda honra’.
Como já vimos, a proposta de Paulo rompia radicalmente com os fundamen-
tos do modelo social do patronato-honra: Deus não classifica os seres humanos
em função de seu status econômico ou político; logo, na comunidade messiâ-
nica, toda e qualquer hierarquia deve ser abolida ao aceitarmos o novo valor – a
nova honra – que Deus atribui a cada um de nós: o mesmo valor, somos todos
valorizados por estarmos no Messias.
É relativamente comum pensar que Paulo não tinha uma teologia ‘social’, pois
não encontramos, em suas cartas, exortações à mudança social concreta – fim
da escravidão, luta contra o Império etc. Entretanto, tal pensamento é inade-
quado na medida em que vemos, nas cartas de Paulo, e aqui temos um exemplo
importante, uma radical oposição aos fundamentos éticos, religiosos e culturais
da injustiça social estratificada no Império Romano. Podemos dizer que, para

A Dimensão Sociocultural da Ação


52 UNIDADE I

Paulo, as comunidades são um microcosmo social, são a corporificação da uto-


pia de uma sociedade justa e equitativa. Se Paulo não propõe concretamente o
rompimento com o Império é por razões realistas: como comunidades que não
representavam mais do que 0,01% da população do Império poderiam modifi-
car as estruturas imperiais sustentadas por um poderio militar espantoso?
Também em sintonia com a questão da estratificação social do Império,
temos, em nossa perícope, o contraste entre poder e fraqueza. Embora esses ter-
mos tenham uma ampla abrangência de sentido, não podemos deixar de refletir
sobre a suas dimensões políticas. Os que têm poder são, na prática, os governan-

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tes e aqueles que os apoiam financeiramente.
No Império Romano, o poder estava diretamente ligado à riqueza e ao
poderio militar, assim, o exercício do poder era, concretamente, o exercício do
controle sobre os recursos econômicos (terra, dinheiro, comércio) e sobre a vida
cotidiana dos ‘clientes’. O poder era exercido de modo impositivo, dominador e
opressor, embora os romanos apresentassem a conquista militar como a forma
romana de levar a paz aos povos conquistados e, juntamente com a paz, levar a
lei romana para que a justiça fosse implantada. Guardadas as devidas propor-
ções, até hoje se acredita que exercer o poder é exercer controle.
Entretanto, Paulo contrapõe, a esse modelo de poder, a fraqueza de Deus.
Claramente o uso do termo fraqueza é irônico, na medida em que a fraqueza
de Deus é descrita como mais forte do que o poder dos humanos (e, paralela-
mente, a loucura de Deus é descrita como mais racional do que a racionalidade
humana). Trata-se, em linguagem da filosofia política, de um outro tipo de poder
– o poder emancipatório ou, em linguagem teológica, o poder libertador.
Como Paulo construiu sua noção de poder? Em que ele se fundamentava?
No conceito veterotestamentário de poder, que girava ao redor dos temas da
libertação, da aliança e do reinado de YHWH. O elemento comum a esses três
temas, a meu ver, é o do exercício divino do poder como meio de salvação inte-
gral e humanização da sociedade.
Vale a pena tomar um desvio de curso e apresentar os contornos gerais
desses três temas no pano de fundo do pensamento paulino. Começo com a
libertação que, no Antigo Testamento, possui sua forma concreta e fundante
no acontecimento do êxodo dos hebreus do Egito: o êxodo, ou libertação, é um

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


53

evento histórico, social, concreto e não pode ser espiritualizado nem reduzido
a uma função preparatória ou preliminar na história da salvação. Na libertação,
encontramos um conflito de poderes: o poder libertador de Javé versus o poder
opressor dos deuses do Egito. Dois tópicos merecem destaque aqui:
(a) Javé é o Deus dos hebreus. A palavra hebreu, originariamente, não indica
um grupo étnico, mas um grupo social, é aquele marginalizado pelo poder polí-
tico-econômico. Nos textos relativos aos períodos mais antigos da história de
Israel, o termo hebreu é usado quando se quer destacar a fragilidade, marginaliza-
ção ou sofrimento do povo (I Sm 4,6.9; 13,13.19; 14,11.21; 29,3; Gn 14,13; 39,14;
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40,15; 43,32; Dt 15,12; Jr 34,9). Somente no livro do Êxodo, Javé é chamado de


Deus dos hebreus (3,18; 5,3; 7,16; 9,1.13; 10,3), ou seja, Deus das pessoas opri-
midas pelo faraó e pelos deuses do Egito.
Javé, não é o Deus de uma etnia, é o Deus de oprimidos, de marginalizados,
de escravos – sejam de que etnia forem. De Javé, no Êxodo, se afirma que viu o
sofrimento e ouviu o clamor dos hebreus (Êx 2,23s; 3,7.9; 6,5). No exercício do
poder sempre se esbarra em uma parcialidade. Há sempre que se optar por um
poder emancipatório ou por um poder opressor. Deus, sempre fiel a si mesmo,
exerce o seu poder de forma libertadora, emancipadora. Por ser parcial em seu
agir na história, é que Javé é um Deus universal. Uma ética política evangélica
não pode temer ser parcial, pois a realidade política é conflitiva e nela há de se
optar por injustiçados contra injustiçadores.
(b) O deus do êxodo é o deus que dá terra aos libertos. Ao libertar os hebreus,
Javé desencadeou um projeto histórico-político (Êx 3,8.17). A questão crucial
para os hebreus não era apenas a de sair do Egito, mas sair para deixar de ser
hebreu, sair para viver com liberdade e dignidade. Possuir terra seria uma con-
dição indispensável para o projeto de vida dos hebreus. Tendo a terra, teriam
onde viver com liberdade, onde produzir seu próprio alimento, conseguir seu
sustento, reproduzir a vida. Por isso, Javé promete conduzi-los a “uma terra boa,
terra que mana leite e mel”.
A vida em liberdade, porém, não é fácil. É vida em conflito. A terra prome-
tida era a terra dos cananeus, dos heteus, dos amorreus. Era uma terra dominada
por cidades-estado; opressoras, como o regime egípcio. Portanto, Javé estimula
os hebreus a um novo projeto missionário libertador. Não basta sair do Egito e

A Dimensão Sociocultural da Ação


54 UNIDADE I

resolver seu problema. Há que se ir a Canaã e solidarizar-se com os hebreus lá,


construir, na terra da opressão, um novo povo, que implantasse a Lei da liber-
dade, a Lei de Deus. Note, novamente, a parcialidade conflitiva. Parcialidade,
porém, que é a única forma de ser imparcialmente justo!
O segundo tema, diretamente ligado a este, é o da aliança. Aliança é o termo
que se costumava usar, no Antigo Oriente, para as relações entre o povo e o rei,
e entre um povo e outro. Javé, movido por solidariedade (compaixão, mise-
ricórdia), exerce seu poder libertador em favor dos hebreus e estabelece um
relacionamento político-social com eles – relacionamento de aliança, que deverá

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nortear, também, o relacionamento entre os membros do povo, especialmente
as relações de poder no povo de Deus. Ao firmar aliança com Deus, os hebreus
não precisam se submeter às alianças com reis opressores, ou seja, assumem um
projeto político distinto daquele ao qual estavam acostumados a viver nos paí-
ses do Antigo Oriente.
Em Êx 19.3-6, a solidariedade de Deus concretizada na aliança, estabe-
lece a identidade político do povo de Javé, os hebreus são chamados de “reino
de sacerdotes e nação santa”, o que indica o projeto político da libertação, com
termos aparentemente inusitados: o povo da aliança é um reino de sacerdotes
e uma nação santa. Sacerdócio e santidade são valores políticos aqui! Ser reino
sacerdotal implica em construir uma estrutura de relações de poder baseada no
serviço ao Deus da libertação. Ser nação santa implica em construir uma estru-
tura de relações de poder radicalmente distinta daquela na qual os hebreus
haviam sofrido opressão.
O termo hebraico que explica como deve ser a relação de aliança é o termo
hesed, que pode ser traduzido como graça, bondade, benignidade, amor ou fide-
lidade. Como categoria política, a aliança de Javé é caracterizada não pelo poder
dominador, mas pelo poder emancipador e criador de laços de solidariedade e
comunhão. Termos políticos, aliança e hesed são, também, termos afetivos, na
medida em que servem para explicar a relação marido-mulher, pais-filhos. No
projeto político do Deus libertador, o povo se constitui como família, realidade
na qual as relações de poder são marcadas pela fraternidade e solidariedade,
pela fidelidade ao projeto comum, pelo amor entre pessoas que se complemen-
tam umas às outras. Assim, também, na esfera política: as relações de poder são

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


55

humanizadoras, ou seja, criam laços de solidariedade, de fraternidade, de igual-


dade ética na diversidade de papéis e funções sociais.
O terceiro tema é o do reino de Deus que, em Êxodo 15, é ligado ao tema
da libertação. Da imensa riqueza deste tema, que ressalto dois aspectos princi-
pais que importam para uma ética política: (a) Deus reina libertando os povos
oprimidos de nações imperialistas: fez assim com os hebreus no Egito, com os
etíopes e arameus (Am 9,7), com os judeus na Babilônia (Is 40,9-11; 52,7ss.) e,
assim, promete também fazer a egípcios e assírios, se, deixando de ser imperialis-
tas, estiverem em condição de necessidade e clamarem ao Senhor (Is 19,16-25).
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É claro que nem todos os textos vétero-testamentários que falam da libertação


utilizam a linguagem do reinado de Deus, mas ambos os temas são mutuamente
complementares. O exercício do poder soberano de Deus não visa a dominação
dos povos, nem sua destruição, mas a sua emancipação, a libertação para uma
vida marcada por justiça e direito.
Diferentemente dos “reinos” vétero-orientais, que sustentavam pela domi-
nação do campesinato e de trabalhadores urbanos, bem como pela subjugação
de outros povos e nações – e faziam isso com o “aval” de seus deuses, também
conquistadores como seus adoradores – o reinado de Javé é definido por sua
ação libertadora. O êxodo dos hebreus, do Egito, é, então, exemplar para a nossa
compreensão do reinado de Deus e, nessa conexão, o cântico de Êx 15.1-18 é
emblemático: o triunfo de Javé sobre os deuses e exércitos egípcios é descrito
como salvação (v. 2), resgate amoroso (v. 13), aquisição do povo (v. 16), entrada
na terra e possessão da herança (v. 17). O braço poderoso e majestoso de Deus,
que derrota os inimigos do seu reinado de liberdade, é celebrado, enfim, como
soberania sem fim, “O Senhor reinará eternamente” (v. 18).
É digno de nota que comumente se encontram alusões à vitória, ao poder
destruidor de Javé sobre seus inimigos, ao terror que se implanta sobre os povos
vizinhos dos judeus nos hinos e cânticos atuais. Certamente, essa é uma temática
presente em textos vétero-testamentários, como em Êx 15, por exemplo. Contudo,
a derrota de inimigos só tem sentido teológico quando vista sob o enfoque do
reinado libertador de Deus. Inimigo derrotado é o inimigo que, injustamente,
oprime e exerce domínio sobre outras pessoas e povos. Não é qualquer poder
que Deus derruba, mas os poderes injustos, contrários ao seu próprio reinado

A Dimensão Sociocultural da Ação


56 UNIDADE I

libertador e justo. É a partir de ideias como estas que Paulo construiu seu con-
ceito de poder libertador, o qual encontramos nessa perícope sob o signo da
fraqueza de Deus.
Por fim, uma breve reflexão sobre a paixão do orgulho – que na perícope é
textualizada como kauxaomai, no verso 31, aludindo a Jeremias. Do ponto de
vista social, kauxaomai denota a honra em sua hierarquia sociocultural. Do ponto
de vista pessoal, denota as paixões ligadas às noções e sensações de honra e ver-
gonha. Semioticamente falando, as paixões devem
[...] ser entendidas como efeitos de sentido de qualificações modais que

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modificam o sujeito do estado [...] A descrição das paixões se faz, quase
exclusivamente, em termos de sintaxe modal, ou seja, de relações modais
e de suas combinações sintagmáticas [...]. O sujeito do estado mantém
laços afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com
o objeto, a que está relacionado por conjunção ou por disjunção (BAR-
ROS, 1988, p. 61-62).

Vamos ‘traduzir’ esta definição para uma linguagem não técnica: (a) paixões
são vistas como ‘efeitos de sentido’, ou seja, não são vistas do ponto de vista da
psicologia que examina cada indivíduo, mas do ponto de vista do significado
atribuído às emoções humanas em uma dada cultura; (b) são efeitos de sentido
de ‘qualificações modais que modificam o sujeito do estado’ – o sujeito do estado
é a pessoa (personagem) do texto vista sob a perspectiva da estrutura narrativa
do discurso e designa a dimensão ‘emotiva’ da pessoa em sua significação. As
paixões são qualificações modais, ou seja, são como que adjuntos adverbiais do
sujeito do estado, são modos de qualificar e caracterizar o sujeito do ponto de
vista de sua passionalidade ou de suas emoções – a qualificação modal tem a
ver com o modo como o sujeito age ou deixa de agir; (c) a qualificação modal
do sujeito de estado ocorre a partir de duas relações: a do sujeito com o destina-
dor – que pode ser uma pessoa, um grupo social, a cultura, Deus etc. – que, no
texto, motiva o sujeito do estado a agir e o torna, assim, personagem ou pessoa
da ação e da relação com o objeto com que o sujeito está ligado (conjunção) ou,
ainda, não está ligado (disjunção).
Neste texto, encontramos duas formas de definir as paixões tematizadas
pelo verbo kauxaomai: (1) a glória, ou orgulho, ou vaidade derivada da honra
sociocultural; e (2) a glória, ou orgulho derivada do estar ‘no Messias’. O texto

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


57

defende que o gloriar-se aceitável é o gloriar-se no Senhor, ou seja, o orgulho


ou glória pessoal derivado de termos sido recebidos por Deus em seu povo, de
termos sido libertados por Deus da escravidão ao pecado, de fazermos parte da
família de Deus como seguidores e seguidoras do Messias. Repare que a mesma
palavra pode indicar formas diferentes da paixão. Vejamos como, em um dicio-
nário, as palavras para a ‘glória’ são definidas:
Gloriar:
1 Cobrir(-se) de glória: O jovem gloriou toda a família ao formar-se
em medicina, apesar de tantas dificuldades. O povo da pequena cidade
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gloriou-se ao ver um dos seus filhos eleger-se presidente.


2 Mostrar orgulho de si mesmo; jactar-se, ufanar-se de: Acha que tem o di-
reito de gloriar-se, já que tudo o que possui foi obtido com esforço próprio.
3 Fazer consistir a sua glória ou o seu prazer em alguém ou em alguma
coisa: O pai gloriava-se na beleza da filha (MICHAELIS, 2016, on-line)5.

Glória:
3 Sentimento de honra, de orgulho por feito heroico ou extraordiná-
rio: “A filha mais velha representava a glória da família: unira-se a um
ministro plenipotenciário; a outra, coitada, não casou mal, porém com
a morte do marido, e de um filhinho que lhe ficara, tornou-se muito
nervosa, histérica, e até meio pateta […]” (AA2).

4 Grande esplendor e fausto; grandeza, magnificência: “É como essa


questão do povo, que estávamos tangenciando há pouco. Quem fez a
fama e a glória de Roma foram os Césares ou os escravos e a plebe?” (JU).

5 Motivo de satisfação e alegria; regozijo: Foi a glória para o rapaz con-


seguir marcar um encontro com a mulher mais cobiçada da festa.

6 Grande mérito; superioridade, valor: A glória do seu trabalho deve-se,


também, à seriedade com que o realiza (MICHAELIS, 2016, on-line)6.

Vanglória:
“Valorização excessiva e geralmente infundada das próprias qualidades;
bazófia, jactância” (MICHAELIS, 2016, on-line)7.

A Dimensão Sociocultural da Ação


58 UNIDADE I

Vaidade:
1 Qualidade ou característica do que é vão.
2 Apreciação exagerada dos próprios méritos; jactância, pomada, presun-
ção: “A cada passo que dera na sua inútil existência, rasgara com o pé uma
página do livro das ilusões. Mas, a presença deste raciocínio, longe de afli-
gi-lo, dava-lhe à vaidade um certo prazer doentio e picante […]” (AA2).
3 Ostentação das próprias qualidades físicas ou intelectuais, para ter a
admiração de outras pessoas: A vaidade o induz a fazer qualquer sacri-
fício para manter um físico quase perfeito.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
4 Qualquer coisa que denote futilidade: A vaidade é o centro de sua
existência” (MICHAELIS, 2016, on-line)8.

Orgulho:
1 Sentimento de prazer ou satisfação que uma pessoa sente em rela-
ção a algo que ela própria ou alguém a ela relacionado realiza bem: “A
Pátria é a família amplificada, pensou, com orgulho por saber de cor
trechos e mais trechos de Ruy” (JU).

2 Sentimento de respeito que alguém sente por si mesmo: Sinto orgu-


lho dos meus princípios morais e religiosos.

3 Atitude arrogante que faz com que a pessoa sinta-se melhor ou mais
importante que outra(s): “[…] o outro parecia o orgulho em pessoa,
não respondia a nada do que lhe era perguntado e os encarava com
um ódio altivo” (JU).
4 PEJ Amor-próprio exagerado: “Aquela indiferença afigurava-se-lhe uma
afronta ao seu amor-próprio, um atentado contra o seu orgulho” (AA2).
5 Aquilo ou aquele de que alguém pode orgulhar-se: “Essa menina […]
era todo o meu orgulho […] a menina que eduquei sob os maiores
sacrifícios” (AA2)” (MICHAELIS, 2016, on-line)9.

Como em relação às demais paixões humanas, a ‘glória’ é, de fato, um espectro


de paixões que vão de uma valorização positiva (sentimento de prazer ou de
realização) a uma valorização negativa (vanglória ou vaidade). Temos, então, na
perícope, a afirmação da paixão ‘orgulho’ ou ‘glória’ em sua concretização ‘posi-
tiva’, como a autossatisfação da pessoa (o amor-próprio que faz parte do amor
ao próximo e do amor a Deus), e a consequente negação da paixão ‘glória’ em
sua forma de arrogância, vanglória ou vaidade.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


59

Quem define o valor positivo ou negativo de uma paixão? Essa definição se


dá socialmente e a semiótica nomeia esse tipo de valoração como contrato de
veridicção, ou seja, o acordo existente em um dado grupo social com relação ao
sentido e ao valor de alguma coisa. Temos, então, dois contratos de veridicção em
confronto na carta aos coríntios: o ‘contrato de veridicção’ baseado na fraqueza
e na sabedoria de Deus, e o baseado no poder e na sabedoria humana. Paulo
exorta os coríntios a não construírem sua imagem pessoal, sua identidade parti-
cular, a partir do contrato de veridicção do Império Romano (patronato-honra),
mas do contrato messiânico de veridicção: todos somos iguais diante de Deus!
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A Dimensão Sociocultural da Ação


60 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Que possibilidades de sentido e ação esta perícope nos possibilita? Ao invés de


apresentar a minha ‘releitura’ da perícope, deixo para você a responsabilidade de
fazer sua própria releitura. Sugiro que você reflita sobre os seguintes itens (pode
refletir sobre todos, escolher alguns etc.):
(1) Que tipo de ‘orgulho’ ou ‘gloriar-se’ é válido para o cristão? Em nossos
dias, encontramos nas igrejas cristãs formas inadequadas de ‘orgulho’? Se encon-
tramos, como lidar com elas?
(2) Como as pessoas são classificadas socialmente hoje em dia? Esse tipo de
classificação é compatível com o cristianismo? Como a fé cristã nos leva a clas-
sificar as pessoas de modo messiânico hoje? (Concretamente: existe algum tipo
de pessoa ou grupo social que as igrejas desprezam, não toleram ou não respei-
tam? Como lidar com isso?).
(3) Como, em sua vida pessoal, você pode viver de acordo com a potência
messiânica que torna inoperante o poder ‘humano’ de nos fazer viver de modo
escravo ao pecado?
(4) Como o poder deve ser exercido na comunidade cristã? E na família?
Diante de uma realidade distinta da de Paulo, como nós cristãos devemos nos
posicionar diante da necessidade de mudanças sociais?

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


61

A análise da dimensão missional da ação é uma atividade eminentemente


pessoal! Não se preocupe em buscar citações ou fontes para sua própria aplica-
ção do texto à vida. Arrisque-se e verá como é possível desenvolver a capacidade
de ler sabiamente a Escritura.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

[i] Veja o comentário de Metzger sobre as variantes textuais: “O Textus Receptus, seguindo testemunhas
tardias (ac C3 Dc F G L Y 6 104 326 623 1739c al), com as quais algumas versões antigas concordam (itd,
g, r vg syrp, h, pal copsa, bo goth armmss), acrescenta toutou. A influência da expressão precedente, tou/
aivw/noj tou,tou, torna a adição do demonstrativo quase que uma conclusão necessária; é notório que
muitos copistas resistiram à tentação de assimilar expressões (ko,smou apenas se encontra em î46 a* A
B C* Dgr* 33 181 206 314 429 917 1610 1758 1827 1836 1898 al)”. Concordo com a avaliação dele, não
aceitando a inclusão do pronome “deste”.
[ii] O Textus Receptus substitui nações por gregos, visando manter consistência com a terminologia usada
nos versos 20, 22 e 24. Não há, porém, testemunhos textuais antigos para corroborar a mudança.
[iii] Mais uma vez, o comentário de Metzger: “A presença de kai, antes de ta. mh. o;nta (ac B C3 Db P Y
81 614 Byz al) parece ser uma interpolação motivada pela série precedente de objetos, cada um unido
ao próximo por kai, (ver Blass-Debrunner-Funk, § 490). Ao adicionar a palavra, os escribas perderam a
força da expressão ta. mh. o;nta, que (conforme Zhan indica, in loc.) não é outro item da série, mas uma
caracterização abrangente e climática de todos os itens precedentes. A leitura mais curta é fortemente
suportada por B P46 a* A C* D* G 0129 33 1739 al.” Concordo com a avaliação de Zahn, seguida por
Metzger, pois no contraste feito no verso 28, apenas temos a expressão “as que são” para se contrapor as
três expressões que se referem ao polo social contrário dos “que são”.
[iv] Evito traduzir dunamis por poder, para evitar a confusão com o sentido político. A palavra grega indica
a força para ser, a energia ou a potência, na linguagem aristotélica.
[v] Evito traduzir aiwn por século, para evitar confusão com secular ou secularismo. O termo se refere a
uma era determinada de tempo com características comuns, sendo utilizada por Paulo a partir da visão
judaica apocalíptica do tempo.
[vi] Uso o parêntese indicando o aposto, para enfatizar o fato de que a própria pregação do Evangelho é
loucura.
[vii] Prefiro traduzir cristos como Messias, ao invés de transliterar como Cristo, para evitar a sua
interpretação como nome próprio, enfatizando o seu significado messiânico.
[viii] O estilo é pesado, mas é melhor manter a ênfase do texto grego do que suavizar o estilo, traduzindo
por “força e sabedoria de Deus”.
[ix] Não está correta a opção das versões de Almeida em comparar a loucura e a fraqueza de Deus,
simplesmente, com “os homens”.
[x] A tradução dos versos 27-28 evita usar termos ontológicos, seguindo o sentido mais adequado das
palavras em seu contexto, que se referiam às diferentes classes de habitantes do Império Romano. São
termos sociológicos e não metafísicos.

A Dimensão Missional da Ação


62 UNIDADE I

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem! Você chegou ao fim desta unidade. Caminhamos juntos por dis-
tintas fases do método sêmio-discursivo e deixei, para você, a tarefa de fazer a
releitura da perícope.
A releitura é uma das atividades mais complexas do estudo exegético. Ela
envolve muitos conhecimentos em relação a diferentes aspectos da vida e do
saber. Exige, também, comprometimento pessoal e conhecimento prático da
vida cristã e ministerial.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
É, também, a parte mais criativa da interpretação, na qual a inventividade
de cada leitor aparece em maior grau. Por isso, pode ser também inadequada
- criar é bom, mas nem sempre sabemos criar como convém. Demanda cora-
gem e disciplina, mas é, também, o momento em que o ‘erro’ é mais facilmente
aceito e reformulado.
Nossa perícope tem a ver, principalmente, com a identidade do Messias e
como ela nos revela a identidade de Deus. Precisamos aprender a repensar nos-
sas concepções de Deus e do Messias a partir do texto bíblico.
Pense bem e medite intensamente: o que significa crer em um Deus louco
e fraco? O que significa crer em um Messias morto na cruz, executado como
rebelde contra o Império Romano? O poder transformador de Deus não pode
ser identificado com as concepções humanas de poder. O poder de Deus não
mata, o poder de Deus gera a vida, mediante o autosacrifício do Messias que
ressurge e vive para sempre.
Em um mundo no qual busca-se a plenitude, a posse de tudo o que for pos-
sível adquirir, o Messias nos convida ao esvaziamento, ao ‘empobrecimento’ da
entrega a Deus e ao próximo como servas e servos. A força do Evangelho é a
fraqueza da cruz, que é mais forte do que qualquer poder humano ou sobre-hu-
mano. Sabemos como viver na fraqueza?
Uma das características mais marcantes da Palavra é que ela nos surpreende
constantemente, ela nos desestabiliza e nos convida a crescer no serviço e no
conhecimento de Deus. Crescimento que não é ‘enchimento’, mas entrega, dis-
posição para viver para Deus e para o próximo - como o Messias.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1 CORÍNTIOS 1,18-31


63

ESCÂNDALO E LOUCURA
Consequentemente ó lógos tou staurou, o Evangelho do Crucificado, é escândalo para
os judeus e loucura (estupidez) para os gentios, segundo escreve Paulo na I Cor 1 e 2:
A linguagem da Cruz, com efeito, é loucura para aqueles que se perdem, mas para aque-
les que se salvam, para nós, é poder de Deus... Os judeus exigem milagres e os gregos
procuram sabedoria, mas nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os ju-
deus, loucura para os gentios; mas para os eleitos, judeus ou gregos, Ele é o Cristo, po-
der de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os
homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens» (I Cor 1,18.22-25).
Loucura, ou estupidez, porque para o homem civilizado e culto da megalópole cosmo-
polita dos dois mares, Corinto, a fonte da salvação está na sofia (sabedoria) e não na
figura ignominiosa de um crucificado, malfeitor, inimigo do povo e do império à luz da
infalível justiça romana. Aos olhos da sabedoria, da justiça, da estética e da ética gregas,
como pode a soteria (a salvação) plasmar-se num quadro tão infame, inestético, incon-
veniente e imoral? ‘O Evangelho da Cruz, contradiz radicalmente a sabedoria, ofende a
sensibilidade moral dos sábios e opõe-se à noção de justiça dos poderosos. O crucifica-
do é motivo de irrisão e de mofa. Em Roma, no Palatino, apareceu um grafito represen-
tando um cruci-ficado com cabeça de burro e com a seguinte inscrição: «Alexamenos
adora o seu Deus».
Escândalo para os judeus, porque inaudita blasfémia a identificação do Messias de Deus
com um suspenso do madeiro, condenado cm nome da Lei e amaldiçoado por Deus; ex-
pulso do meio do povo e excluído da aliança da vida; afastado do convívio com os vivos
e da comunhão com Deus, um proscrito do qual todo o homem justo e pio se manterá
zelosamente distante. Do ponto de vista judaico o logos tou staurou é, sem atenuantes,
uma blasfémia superlativamente sacrílega.
Para judeus e gentios, para o mundo, à luz da sofia tou kosmou (sabedoria do mundo),
a Cruz é, pura e simplesmente, sinal de ignomínia. A Cruz como sinal de salvação não
passa de um absurdo que ao longo da História não deixará de perturbar a própria cons-
ciência cristã. Bem cedo, algumas camadas cristãs deitam mão da gnose para suavizar
e superar a loucura e o escândalo da Cruz. As rosas. Traduz-se a Cruz nas categorias do
humanismo filosófico e conforma-se o logos tou staurou com a sensibilidade do mundo
helenista. A coroa de rosas à volta da Cruz, qual erva daninha, parasita, esvazia-a, re-
du-la a nada; transforma-a cm anti-sinal, em estandarte dos poderes mundanos e sinal
da mais obscura alienação religiosa. Karl Marx, referindo-se às rosas escreve: «A crítica
arrancou, uma a uma, todas as rosas ilusórias da cadeia, não para que o homem arraste
esta cadeia sem ilusões e na desolação, mas a fim de se libertar cortando rente as flores
que sobre ela vegetam» (Karl Marx, Frühschriften, 1953, 208).
64

Nos nossos dias, a crítica à religião quere-a assim nua e crua, despida das rosas que a
piedade e o humanismo cristãos entreteceram à sua volta, escândalo indisível por con-
tradizer «o humano e racional» (segundo Goethe); a idéia de justiça, de beleza e de mo-
ralidade. Para Feuerbach «um Deus crucificado é uma contradição ridícula e uma ideia
miseramente condenada»; para Nietzsche a fé na Cruz representa a mais inaudita e hor-
renda inversão de valores; a mais absurda c temerária manipulação dos factos, ao ponto
de o crucificado nada ter a ver com a «Religião da Cruz». «Em última análise — escreve
Nietzsche — existiu um só cristão e esse morreu na cruz» (Fr. Nietzsche, Werke VII, 265).”
Fonte: Ferreira (1984, on-line)10.
65

1. Para os não-cidadãos romanos, a chance de ter uma vida boa dependia da boa
relação com o patrono e, conforme a posição do patrono na escala social, da
relação do patrono com os que lhe eram superiores.
( ) FALSO ( ) VERDADEIRO
2. As cartas de Paulo aos coríntios mostra que havia conflitos e divisões nas comu-
nidades de seguidores de Jesus. Qual era a razão principal, a razão primária,
dessas divisões?
a) Prestígio pessoal de Pedro, Paulo ou Apolo.
b) Diferentes doutrinas a respeito do Messias.
c) Diferentes lealdades a diferentes patronos.
d) Localização das comunidades na cidade.
e) Nenhuma das anteriores.
3. Que termo caracteriza os discursos judaico e grego, segundo Badiou? Ape-
nas uma resposta correta, na ordem respectiva (judaico primeiro, depois grego):
a) Sinais e Milagres.
b) Sabedoria e Prestígio.
c) Sinais e Lealdade.
d) Honra e Prodígios.
e) Sinais e Sabedoria.
4. Leia os seguintes versículos de 1 Coríntios 1: “Ora, a mensagem da cruz é loucura
para os que perecem, mas para nós, os que somos salvos, é potência de Deus, pois
está escrito: destruirei a sabedoria dos sábios e anularei a inteligência dos inteli-
gentes.” Quais são os segmentos em que esse pequeno trecho está dividido?
66

5. Escreva dois ou três parágrafos, apresentando sua releitura do texto de 1 Corín-


tios 1,18-31. Escolha um dos temas abaixo e faça o seu próprio texto:
(1) Que tipo de ‘orgulho’ ou ‘gloriar-se’ é válido para o cristão? Em nossos dias, en-
contramos nas igrejas cristãs formas inadequadas de ‘orgulho’? Se encontramos,
como lidar com elas?
(2) Como as pessoas são classificadas socialmente hoje em dia? Esse tipo de clas-
sificação é compatível com o cristianismo? Como a fé cristã nos leva a classificar
as pessoas de modo messiânico hoje? (Concretamente: existe algum tipo de pes-
soa ou grupo social que as igrejas desprezam, não toleram ou não respeitam?
Como lidar com isso?)
(3) Como, em sua vida pessoal, você pode viver de acordo com a potência messi-
ânica que torna inoperante o poder ‘humano’ de nos fazer viver de modo escravo
ao pecado?
(4) Como o poder deve ser exercido na comunidade cristã? E na família? Diante
de uma realidade distinta da de Paulo, como nós cristãos devemos nos posicio-
nar diante da necessidade de mudanças sociais?
MATERIAL COMPLEMENTAR

A Mensagem de 1 Coríntios
David Prior
Editora: ABU
Sinopse: comentário homilético sobre a primeira carta aos coríntios.
Reflexão prática e atualizada sobre a vida de uma igreja local.

Nise: o coração da loucura - 2015


Sinopse: relato biográfico-profissional da psiquiatra Nise da Silveira,
que revolucionou o tratamento de doentes mentais no Brasil.
Oferece uma visão alternativa sobre a ‘loucura’ em relação à visão
‘oficial’ e a do ‘senso comum’.

A COMPOSIÇÃO SOCIAL DOS CRISTÃOS EM 1 CORÍNTIOS


Artigo sobre a composição social da cidade de Corinto e como a mesma influência em nossa
leitura e interpretação da carta paulina.
Disponível em: <http://www.revistajesushistorico.ifcs.ufrj.br/arquivos6/Artigo%20Cintya%20
Santos.pdf>. Acesso em: 18 maio 2015.
Artigo sobre a polêmica de Paulo com os chamados ‘espirituais’ em Corinto. Interpretação
reformada sobre um tema polêmico da epístola.
Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_
III__1998__1/paulo_e_os....pdf>. Acesso em: 18 maio 2015.
Dissertação de Mestrado em História sobre a composição social da cidade de Corinto e as
questões relativas ao poder na Igreja Primitiva.
Disponível em: <http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_4768_.pdf>. Acesso em: 18 maio
2015.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BADIOU, A. Saint Paul, the founder of universalism. Stanford: Stanford University


Press, 2003. (Edição em português: São Paulo: fundador do universalismo, Editora
Boitempo, 2011.).
BARROS, D. L. P. de. Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual,
1988.
DE BOOR, W. Cartas aos Coríntios. 1 Coríntios. Curitiba: Editora Evangélica Espe-
rança, 2004.
EISENSTADT, S. N.; RONIGER, L. Patrons, clientes and friends. Interpersonal rela-
tions and the structure of trust in society. Cambridge: Cambridge University Press,
1984.
FITZMYER, J. A. First Corinthians. Translation and Commentary. New Haven: Yale
University Press, 2008.
FRICKE, R. et al. 1 y 2 Corintios. El Paso: Editorial Mundo Hispano, 2003.
HADOT, P. O Véu de Ísis. Ensaio sobre a história da ideia de natureza. Tradução Ma-
riana Sérvulo. São Paulo: Loyola, 2004.
HORSLEY, R. A. 1 Corinthians. Nashville: Abingdon Press, 1998.
PITT-RIVERS, J. The Fate of Shechem, or the Politics of Sex: Essays in the Anthropo-
logy of the Mediterranean. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
SIMKINS, R. A. “Patronage and the Political Economy of Monarchic Israel”. In: Semeia
87. Atlanta: SBL, 1990.
THISELTON, A. C. 1 Corinthians. A shorter exegetico-theological commentary.
Grand Rapids: Eerdmans, 2006.
WITHERINGTON, B. Conflict and community in Corinth: a socio-rhetorical com-
mentary on 1 and 2 Corinthians. Grand Rapids: Eerdmans, 2009.
69
REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS ON-LINE

1
Em: <http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/home.html>.
Acesso em: 05 jun. 2017.
2
Em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/historiaherodoto.pdf>. Acesso
em: 05 jun. 2017.
3
Em: <http://www.nestle-aland.com/en/read-na28-online/>. Acesso em: 17 maio
2017.
4
Em: <https://research-repository.st-andrews.ac.uk/handle/10023/493>. Acesso
em: 18 maio 2017.
5
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=d39e>. Acesso em: 18 maio 2017.
6
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=gloria>. Acesso
em: 18 maio 2017.
7
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Vangl%-
C3%B3ria>. Acesso em: 18 maio 2017.
8
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=zanRM>. Acesso em: 18 maio 2017.
9
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Orgulho>. Acesso
em: 18 maio 2017.
Em: <http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/15106/1/V0140102-003-010.
10

pdf>. Acesso em: 18 maio 2017.


GABARITO

1) FALSO.
2) C.
3) E.
4) SEGMENTO 1: Ora, a mensagem da cruz é loucura para os que pe-
recem, mas para nós, os que somos salvos, é potência de Deus,
SEGMENTO 2: pois está escrito: destruirei a sabedoria dos sábios e anularei a
inteligência dos inteligentes.
5) Na avaliação dessa pergunta deve ser dada bastante liberdade ao estudante, o
avaliador deverá apenas verificar se o estudante consegue fazer uma relação en-
tre a sua releitura e o texto de 1 Coríntios.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

II
UNIDADE
FILIPENSES 2,5-11

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
teológica da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
psicossocial da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
missional da ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão psicossocial da ação
■■ A dimensão missional da ação
73

INTRODUÇÃO

Olá! Bem-vindo(a) à nossa Unidade II de Métodos de Estudos Bíblicos no Novo


Testamento. Você já caminhou bastante em sua leitura e reflexão sobre como
fazer exegese bíblica seguindo uma metodologia específica e vamos continuar
juntos refletindo sobre isso. Lembre-se: eu ofereço os exemplos e mostro como
são aplicadas as regras do método, cabe a você reconhecer esses passos metodo-
lógicos e tentar fazer por sua própria conta, com outros textos bíblicos.
Nesta unidade, continuaremos trabalhando com o gênero textual carta. A
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

carta é interessante porque fornece um lado de uma conversa. Temos de tentar


deduzir o outro lado pelo conteúdo, ou seja, temos de tentar perceber quais são as
perguntas e os problemas que a carta tenta responder aos seus leitores e leitoras.
Nossa perícope é Filipenses 2,5-11, conhecida como ‘hino cristológico da quenosis’.
Quenosis é a forma aportuguesada da palavra grega κένωσις, que significa
‘esvaziamento’, ‘rebaixamento’, ‘deposição’. Do ponto de vista contextual, na época
da escrita da carta, o foco semântico e prático dessa palavra recaía sobre as rela-
ções de honra e desonra na sociedade. Nesse sentido, o hino apresenta os dois
caminhos do Filho de Deus: assume a desonra humana e nos liberta; recebe a
honra divina e retoma o Senhorio sobre toda a criação. Ao apresentar o Messias
Jesus como o Filho de Deus que assume nossa desonra, o hino apresenta uma
rica exposição da nossa salvação. Mas não só isso, ele também nos mostra como
valorizar as pessoas na sociedade à luz da vontade de Deus e, neste aspecto, é
uma continuação da reflexão de 1 Coríntios 1,18-31 que estudamos na Unidade I.
Entretanto, ao longo da história das Igrejas, o hino também foi usado para
refletir sobre Jesus enquanto segunda pessoa da Trindade. A pergunta “em que
sentido o esvaziamento do Filho afeta a essência da Trindade?” tem sido feita e
múltiplas e contraditórias respostas têm sido ofertadas.
Aproveite a aventura de ler um texto tão rico e complexo!

Introdução
74 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Iniciamos com o texto bíblico e sua tradução.

TEXTO E TRADUÇÃO

5 τοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ, 6 ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων


οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ, 7 ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν
δούλου λαβών, ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος· καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς
ἄνθρωπος 8 ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου, θανάτου
δὲ σταυροῦ. 9 διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα
τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα, 10 ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων
καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων 11 καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος
Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


75

Tradução:
Tende em vós a mesma atitude e mentalidade que há também no Messias Jesus:
(a) O qual, mesmo existindo na condição de Deus,
não considerou como algo de que deveria tirar vantagem
o ser igual a Deus;
(b) antes, a si mesmo se esvaziou,
recebendo a condição de escravo,
tornando-se semelhante a ser humano;
(c) e, reconhecido como ser humano,
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Humilhou-se a si mesmo,
tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.
(c’) Pelo que também Deus o exaltou acima de tudo
e lhe deu o nome
que está acima de todo nome,
(b’) para que ao nome de Jesus
se dobre todo joelho,
nos céus, na terra e debaixo da terra,
(a’) e toda língua confesse
que o Messias Jesus é Senhor (YHWH),
para glória de Deus Pai.
(tradução do autor)

DELIMITAÇÃO, SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO

A introdução à perícope, no início do verso 5, oferece uma clara transição da


perícope anterior para a atual. O gênero textual, por sua vez, destaca a perícope
do seu co-texto e é um dos principais argumentos para a delimitação aqui ado-
tada. Embora haja amplas discordâncias na pesquisa quanto ao gênero próprio
dessa perícope, há um consenso no tocante à sua natureza peculiar – seja como
hino, seja como prosa poética (FEWSTER, 2015, p. 191-206). Diante do histórico

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


76 UNIDADE II

da pesquisa, considero que o gênero da perícope é o da exortação em forma de


poema. Há, contudo, amplas alterações de pessoas, tempo e espaço em relação
ao que vem antes e depois da perícope para justificar a delimitação, que é aceita
amplamente na pesquisa exegética.
O poema é constituído de seis segmentos, cada um com três linhas. A estru-
tura, em paralelismo quiástico, é constituída por contrastes e se sustenta sobre o
duplo movimento de descida e subida – o primeiro tendo como sujeito o próprio
Messias e o segundo tendo como sujeito Deus-Pai. Em todo o texto, a divindade
de Jesus é destacada em sua condição de mobilidade e transformação; não se

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trata de “ser”, mas de mover-se, de relacionar-se de um determinado modo, de
constituir a divindade no próprio esvaziamento do ser divino e na transposição
das fronteiras que separam o divino do humano:
(a) Jesus, Deus que não considera usurpação ser igual a Deus versus (a’) Jesus,
confessado como Deus por toda a criação;
(b) O escravo sem valor que dobra os joelhos perante o seu senhor versus
(b’) o nome diante do qual se dobra todo joelho; e
(c) Jesus, o auto-humilhado versus (c’) Jesus, o exaltado pelo Pai.

O CONTEXTO DE FILIPENSES

A partir do gênero textual da perícope (exortação em forma de poema), podemos


inferir que a comunidade em Filipos enfrentava problemas internos de divisão,
provavelmente relacionados com a liderança, conforme também se pode dedu-
zir da discussão presente nos capítulos 3 e 4 da carta. O conteúdo do poema, por
sua vez, aponta para as questões de relacionamento intersubjetivo demarcadas
pela temática da honra (a exortação à humildade, a demonstração da auto-humi-
lhação do Filho de Deus que se identifica com o ser humano e, especificamente,
com o escravo condenado, a nova honra que o Filho recebe de Deus que provoca
a possibilidade de uma nova reputação do Filho por parte da criação).
Essa temática da honra está intimamente ligada à temática da identidade
pessoal e coletiva. O poema sugere, apoiado pelo capítulo 3, que a comunidade
enfrentava problemas referentes à sua própria identidade no âmbito da cidade de

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


77

Filipos. Quando ligamos esses elementos à realidade socio-histórica da cidade, a


hipótese aqui levantada é reforçada, visto que a cidade foi refundada em home-
nagem a Filipe II, da Macedônia, que a tomara dos trácios em cerca de 360 a. C.
Tornou-se uma colônia romana em 167 a. C. (nomeada Colonia Julia Augusta
Philippensis) e, possivelmente, tenha sido a cidade capital do distrito imperial
da Macedônia, embora, em importância econômica, fosse inferior a Anfípolis,
sede do porto de Neápolis.
Como cidade romana, não somente era guarnição de soldados na ativa e habi-
tada por soldados aposentados, mas também possuía direitos e privilégios em
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sua relação com Roma, mediante o chamado ius italicum (direito italiano), que
podem ser percebidos na narrativa de Atos 16 sobre a estada de Paulo na cidade
(conflito com judeus e gentios na cidade, prisão e julgamento perante autoridades
‘romanas’). A mentalidade de uma cidade romana estava intensamente ligada à
legitimidade do Império e do poder do imperador, marcada, principalmente, pela
presença do culto ao imperador como salvador, de modo que não nos devemos
surpreender com o movimento teológico do hino que, como veremos na análise
exegética, se contrapõe ao movimento ideológico do Império com sua pregação
da pax romana (paz romana) como fruto da conquista militar. De acordo com
[...] o culto de Augusto, como o de seus filhos adotivos Gaio e Lúcio Cé-
sar, já existiam em Filipos quando Paulo chegou à cidade. O culto de
Lívia fora introduzido por Cláudio em 44 d.C., mas o apóstolo pode não
ter visto o monumento com as estátuas das sete sacerdotisas em frente ao
templo, porque provavelmente ainda não fora construída antes da segun-
da metade do século I d.C. (KOUKOULI-CHRYSANTAKI, 1998, p. 16).

O culto ao imperador, especialmente em uma colônia romana, não era apenas


uma questão de ‘religião’ ou de honra ao imperador, mas tinha a ver, principal-
mente, com a apresentação pública e legitimação do domínio imperial romano
e sua mentalidade jurídico-militar de governo. Celebrado em pomposos festi-
vais públicos, o culto ao imperador era o principal meio simbólico de construção
da identidade romana e difusão de sua cosmovisão e ideologia. Desempenhava,
assim, importante papel na manutenção da unidade do Império Romano e as
colônias romanas eram os principais centros de manutenção e propagação dessa
unidade, ao longo dos territórios conquistados.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


78 UNIDADE II

Em síntese, três são os principais aspectos do contexto de Filipenses 2,5-11:


(a) divisões internas na comunidade e problemas com a liderança; (b) pro-
blemas de identidade e relação com a sociedade em geral; e (c) problemas na
relação com os representantes do Império e a exigência de culto ao imperador.
Consequentemente, a comunidade enfrentava forte tensão relativa à sua própria
identidade como grupo minoritário em uma colônia romana de crucial impor-
tância para a legitimidade do domínio imperial na região.

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A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

Pessoas:
Vós (5) ‘tende em vós a mesma atitude...’
Messias Jesus (5) ‘que há também no Messias Jesus’; (6) ‘existindo na con-
dição de Deus’ ‘não considerou ...’ (7) ‘a si mesmo se esvaziou’ ‘recebendo ...’
‘tornando-se ...’ (8) ‘reconhecido como ser humano’ ‘humilhou-se a si mesmo’,
‘tornando-se obediente...’ (9) ‘Deus o exaltou ...’ (10) ‘para que ao nome de Jesus...’

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


79

(11) ‘toda língua confesse que o Messias Jesus é Senhor (YHWH)’


Deus (6) ‘na condição de Deus’ ‘ser igual a Deus’ (9) ‘Deus o exaltou...’ ‘lhe
deu o nome’ (11) ‘para glória de Deus pai’
Indefinido (8) ‘reconhecido como ser humano’
Todo joelho (10) ‘todo joelho nos céus, na terra e debaixo da terra’
Toda língua (11) ‘confesse’
Do ponto de vista das pessoas, temos as seguintes relações: (a) a atitude de
Jesus como base da atitude dos cristãos filipenses; (b) o Filho que se esvazia e se
humilha, tornando-se totalmente semelhante aos seres humanos e sofrendo a
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morte (por eles e morte como escravo condenado como subversivo); (c) em rela-
ção a si mesmo, o Filho não considera vantajoso ser divino; (d) a exaltação do
Filho pelo Pai, que inverte a sua condição de escravo (o mais inferior de todos)
e o coloca com reputação superior (acima de todos); (e) na descida do Filho ele
é reconhecido como humano (pelos seres humanos? o texto deixa indefinido o
sujeito); (f) a partir de sua exaltação, ele poderá ser reconhecido e confessado
como Senhor por toda a criação. Essa situação relacional aponta claramente
para a questão da identidade social e pessoal que, em Filipos, estava diretamente
ligada à ideologia do Império Romano.

Espaço:
Esvaziou-se (7), humilhou-se (8) implicam descida
Exaltou acima de tudo (9), ‘nome acima de todo nome’ (9)
Céus, terra, debaixo da terra (10)
Do ponto de vista do espaço, temos um movimento de descida do Filho
(primeira parte do hino), seguido de um movimento de exaltação do Filho pelo
Pai (segunda metade), que tem como efeito o reconhecimento do senhorio do
Messias em todos os espaços criados (céu, terra, debaixo da terra). A espaciali-
dade cósmica presente no texto bíblico ecoa a espacialidade cósmica evocada
no culto ao imperador exaltado no céu, representado na terra por seus sucesso-
res e reconhecido como Senhor pelos súditos imperiais.

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


80 UNIDADE II

Tempo:
Tende (5) imperativo [imperativo presente]
Há (5) presente indicativo [sem verbo no grego]
Existindo (6) gerúndio [particípio presente]
Não considerou (6) pretérito perfeito [aoristo]
Deveria tirar vantagem (6) locução verbal futuro+infinitivo [sem verbo
no grego]
Ser igual a (6) infinitivo [infinitivo presente]
Esvaziou-se (7) pretérito perfeito [aoristo ativo]; recebendo (7) gerúndio

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[particípio aoristo]; tornando-se (7) gerúndio;
Reconhecido (8) particípio [particípio aoristo passivo]; humilhou-se (8) pre-
térito perfeito [aoristo ativo]; tornando-se [particípio aoristo médio] (8) gerúndio
Exaltou (9) pretérito perfeito [aoristo ativo]; deu o nome (9) pretérito per-
feito [aoristo ativo]; está (9) presente indicativo [sem verbo no grego]
Se dobre (10) presente [subjuntivo aoristo]
Confesse (11) presente [subjuntivo aoristo]

Do ponto de vista da temporalidade, encontramos:


(a) Um imperativo (presente) colocado em concomitância com a atitude do
Messias Jesus (aspecto durativo em ambos os verbos); (b) uma série de aoristos
em concomitância com um gerúndio (presente) e com uma série de particípios
aoristos, referentes à condição do Filho (aspecto gnômico em todos os particípios
e aspecto pontual em todas as formas verbais propriamente ditas) em contraste
com uma locução infinitivo-futuro; (c) outra série de aoristos referentes à ação
do Pai pelo Filho, seguidos por dois aoristos subjuntivos, indicando consequên-
cia da exaltação do Filho pelo Pai (aspecto gnômico).
Encontramos, assim, o presente da enunciação (imperativo em concomitân-
cia com o presente) determinado pelo passado da encarnação e pelo futuro da
exaltação. O passado da encarnação, por sua vez, está em concomitância com
um gerúndio (presente), e os aoristos da encarnação em concomitância com
outro gerúndio, indicando dois ‘estados’ do Filho – um anterior (divindade) e
outro posterior (escravo). Essa série é colocada em paralelo com uma nova série
de aoristos em concomitância com o estado presente do Filho (escravo), que

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


81

reverte esse estado e cria a possibilidade de uma resposta universal no tempo e


espaço ao Filho já exaltado e com nova honra (nome) acima de toda e qualquer
outra honra ou reputação.
Teologicamente falando, a temporalidade messiânica engloba e dá novo sen-
tido à temporalidade humana enquanto tal e situa o texto em contraste com a
temporalidade do Império Romano. O tempo em que ‘agora’ vivemos não é mais
apenas o tempo ‘secular’, o tempo da dominação imperial, mas o tempo messiânico,
uma temporalidade em que a eficácia dos modos ‘seculares’ de temporalização
é tornada inoperante pela eficácia (potência) do modo messiânico de estrutu-
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rar a vida ao longo do cronos. O presente da vida humana é ‘determinado’ pelo


evento messiânico, tanto em sua futuridade (reconhecimento universal de seu
senhorio) quanto em sua preteridade (encarnação até a morte) e não pela con-
quista romana no passado e pela esperança de maior glória romana no futuro.

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


82 UNIDADE II

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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

Esta é uma das passagens mais belas das cartas paulinas em sua descrição da
messianidade de Jesus. Não poderemos discutir todos os seus aspectos exegéti-
cos e teológicos, por isso focaremos na natureza da messianidade de Jesus e sua
identidade. Para iniciar, apresento algumas reflexões sobre as relações interdis-
cursivas de nossa perícope.
Explícita no texto, encontramos uma citação de Is 45,23 (mais adiante apre-
sento a perícope de que esse verso faz parte); já no verso 11 de Filipenses 2,
devemos ver, também, uma alusão a Zc 14,9 (YHWH será rei sobre toda a terra;
naquele dia, um só será YHWH, e um só será o seu nome).
Implícitas no texto, encontramos as seguintes relações interdiscursivas:
a. Predominantemente contratuais em relação a tradições da própria
Escritura: alusão à tradição da Sabedoria preexistente (Pv 8 e similares);
alusão à noção de imagem de Deus em Gênesis 1 e 5 (consequentemente,
alusão ao paralelo entre Adão e o Messias em Romanos 5); e alusão aos
poemas do escravo executado em Isaías 42; 49; 50 e 52,13-53,12;

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


83

b. Inserção no universo discursivo do monoteísmo judaico; especialmente


em sua formulação a partir de Isaías 40—55;
c. Relações polêmicas com o universo discursivo da ideologia imperial
romana – discursos do patronato, da honra, da escravidão e do culto ao
imperador e sua soteriologia implícita.

Nesse campo das relações polêmicas com a ideologia imperial romana, pode-
mos citar Hellerman:
[...] Fp 2:6-11 constitui a resposta contracultural de Paulo à corrente
ideologia romana do cursus – os versos 6-8 representam um cursus ho-
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norum invertido [...] Uma analogia não rígida sugere que Paulo apre-
senta Jesus – o ‘honorando’ em Filipenses 2 – como o exemplum, par
excellance da virtude cristã, a fim de encorajar outros na comunidade
cristã a adotar a mesma atitude em relação ao poder e ao status social
em suas relações mútuas (HELLERMAN, 2005, p. 203).

Cursus honorum é o caminho para ser honrado na sociedade e a inversão desse


caminho, por Jesus, mostra que a honra dada por Deus é oposta à honra dada
pelos poderes deste século.
d. Enfim, é possível que o poema faça alusões à tradição judaico-helenista
do logos e do homem celestial, encontrada, principalmente, em Filo de
Alexandria (TOBIN, 2006, p. 91-104) e, eventualmente, presente em tex-
tos neotestamentários, como João 1,1-18; Cl 1,15-20 e Hb 1,1-4 (todos
posteriores a Filipenses).

Ainda preliminarmente, é preciso destacar uma das controvérsias fundamentais


em relação à interpretação desta perícope na pesquisa exegética contemporânea.
James Dunn (1998) apresentou uma hipótese que contradiz a maioria dos intér-
pretes desta passagem. Segundo ele, o poema não se refere a uma preexistência
divina de Jesus, em relação à qual teria se esvaziado e se tornado humano, mas
sim, ao paralelo entre Adão e Jesus, mediante o qual Adão representa a atitude
errada diante de Deus (pecado) e Jesus representa a atitude correta (humildade
e fidelidade) – o que ele chama de cristologia adâmica. O próprio Dunn (1998)
reconhece que sua hipótese é contestável e depende de como interpretamos cer-
tas alusões do texto à Gênesis. Embora haja alguma força em sua argumentação,
prefiro continuar interpretando essa perícope como uma descrição do tríplice
movimento cósmico do Filho de Deus. Essa interpretação, porém, não invalida

A Dimensão Teológica da Ação


84 UNIDADE II

o aspecto da ‘cristologia adâmica’ de Dunn, segundo a qual Jesus é o verdadeiro


representante da humanidade, não só diante de Deus, mas diante da própria
humanidade e de toda a criação.

O hino de Filipenses (2,6-11) parece impregnado de cristologia adâmica.


Podemos aqui limitar-nos a notar a segunda parte de 2,7: “sendo (ou to-

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mando-se) em semelhança de homem (homoiomati anthropou) e achado
em forma de homem (hos anthropos)”. O paralelismo com Rm 8,3 chama
muito a atenção. E o que quer que signifique precisamente, parece denotar
que Cristo na sua vida, antes da sua morte, foi considerado representante
da humanidade. Foi este fato que deu à sua morte o seu significado, como
a morte que derrotou o poder do pecado e da morte para a humanidade.
Fonte: Dunn (2003, p. 247).

O poema se desenvolve mediante contrastes relativos à posição do Messias Jesus em


um cursus honorum invertido. Primeiramente, Jesus possuía uma honra elevada, a
honra divina; depois, se destituiu dessa honra e assumiu a desonra do escravo con-
denado para, enfim, ser recolocado em uma posição de honra, uma hiper-honra
para a glória de Deus. Vejamos o primeiro movimento: “antes, a si mesmo se esva-
ziou, assumindo a forma de escravo, tornando-se em semelhança de homens; e,
reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente
até à morte, e morte de cruz” (BÍBLIA, Filipenses 2,7-8). Está pressuposto, aqui,
conforme o verso anterior, que Jesus existia, antes da encarnação, como Deus – é
claro que ainda não temos, aqui, uma expressão conceitual clara da “trindade”, mas
podemos perceber claramente a pluralidade interna do modo de ser de YHWH.
Brincando com as palavras, poderíamos descrever o movimento libertador
do Messias Jesus, como: (a) em sua composição com Deus, na qual (b) encon-
tramos a exposição do sentido misterioso da divindade; passando para (c) a sua
auto de-posição da condição de Deus, mediante a qual ele se situa em (d) com-
-posição com a humanidade e, especialmente, em uma infra-posição com as

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


85

desonras da humanidade (uma nova de-posição); que anuncia (e) a não imposi-
ção da soberania divina [em contraste com a imposição da soberania de César],
mas, soberania que possibilita sua (f) transposição de volta com Deus, a qual,
porém, não implica a (g) de-posição da humanidade, mas a re-com-posição da
humanidade e de toda a criação na reconciliação com Deus.
Encontramos dois verbos que explicam a ação do Deus-Filho com vistas a
sua atuação como o Messias Jesus: esvaziou-se e humilhou-se. Ambos os verbos
são usados na voz ativa, que destaca Jesus como agente e não como paciente des-
sas ações. Esses verbos, especialmente o primeiro, possuem uma longa história
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na teologia cristã, servindo como base da reflexão sobre a kenosis do Filho – o


esvaziamento ou auto-humilhação. Não cabe, na pesquisa exegética, especular
(no bom sentido) sobre a natureza específica do que se refere o verbo esvaziar-
-se (da natureza divina, da glória divina, do poder divino); especulação que a
teologia tem realizado ao longo da história das Igrejas Cristãs.
Na exegese, encontramos a fonte para tais especulações: o texto do hino aponta
para o esvaziamento da morphe theou, correlata à assunção da schemati anthro-
pos e da morphe doulou. Normalmente se interpreta o verbo como referência à
encarnação (cp. Jo 1,14ss); mas, no contexto do hino, certamente se refere a todo
o evento-Messias: sua encarnação, vida, morte, ressurreição e ascensão – uma
alusão ao percurso do Escravo Executado de Isaías 52,13-53,12. O Deus-Filho
se fez humano, plenamente humano! E não só humano, mas escravo, assumindo
radical e integralmente a desonra da humanidade escravizada.
Três orações subordinadas adverbiais (participais) completam o sentido do
esvaziamento e humilhação do Messias: assumindo a forma de escravo, tornando-
-se em semelhança de homens e tornando-se obediente até à morte e morte de cruz
– e são seguidas por uma quarta oração, cujo sujeito é indefinido, que aponta o
reconhecimento dessa nova condição humana do Messias.
O esvaziamento-humilhação do Filho de Deus foi tão completo que ele assu-
miu, não só a condição humana (pecador), mas, dentro da condição humana,
a posição de escravo, ou seja, a condição de nada (podemos pensar no escravo
como o ser humano esvaziado de todos os seus direitos e identidade), de um
‘joão-ninguém’. Como humano-escravo, foi obediente a Deus, a ponto de morrer
na cruz. A deposição foi completa e, assim, se encerra a primeira parte do hino.

A Dimensão Teológica da Ação


86 UNIDADE II

Para cumprir suas promessas a Abraão, em prol de toda a humanidade,


Deus se torna em ser humano e morre para libertar a humanidade da escravi-
dão ao pecado. O destaque à expressão “morte de cruz” aponta para a condição
dessa morte como uma execução (pelo Império) e como fruto de uma maldição
(pela Lei). Do ponto de vista da identidade social, o Filho é desvestido de toda
e qualquer honra, pois o escravo executado é maldito aos olhos dos romanos e,
do ponto de vista do Judaísmo, não se esperava um Messias crucificado (mal-
dito perante a Lei, conforme Paulo destaca em Gálatas).

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A cruz é o cerne da teologia de Paulo. Ao incluir no hino essa frase (morte
de cruz), o apóstolo objetiva solidificar essa doutrina junto à comunidade
de Filipos, uma vez que os judaizantes percorriam as comunidades aprego-
ando heresias.
(Wander de Lara Proença)

Celebrando a fé! Na segunda parte do hino, temos a reversão, em termos de


valoração, da condição rebaixada do Messias (vemos, aqui, o mesmo movi-
mento de Rm 1,3-4, contrastando as condições terrena e pós-terrena do Messias
Jesus). Como consequência de sua obediência, ele foi exaltado pelo Pai e rece-
beu nome acima de todo nome (para o escravo-nada, sem nome próprio, essa é
a forma mais elevada possível de recompensa), de modo que reassume sua con-
dição como Senhor de toda a criação – um Senhor diferente dos senhores deste
mundo: um Senhor libertador (cp. Ef 1,20-23; Hb 1,1ss). A semelhança com a
deificação de imperadores romanos é, aqui, perceptível, com uma radical dife-
rença: o imperador romano era deificado após sua morte em função de suas
vitórias e conquistas; o imperador-Jesus é reconhecido como Senhor em função
de sua vida como humano-escravo e sua morte como solidário com os escravos-
-nada. Para uma interpretação similar:

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


87

[...] é a tese deste ensaio que a combinação de visões do Jesus ressurreto


(um fator interno) e o culto imperial romano (um fator no ambiente
cultural) conduziu à adoração de Jesus. Assim, o culto imperial foi um
catalisador na origem da adoração de Jesus (COLLINS, 1999, p. 251).

A confissão de que Jesus é Senhor, no verso 11, é formulada a partir da citação


de Is 45,23, mas devemos ver, também, uma alusão a Zc 14:9 (“E YHWH será
rei sobre toda a terra; naquele dia um será YHWH, e um será o seu nome”).
Como era costume, na exegese antiga, citar somente parte do texto, mas evo-
car o conjunto do texto para dar sentido, vale a pena lermos o trecho de Isaías
a que a citação pertence:
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[...] 18 Porque assim diz YHWH, que criou os céus, o Deus que formou
a terra, que a fez e a estabeleceu; que não a criou para ser um caos, mas
para ser habitada: Eu sou YHWH, e não há outro. 19 Não falei em segre-
do, nem em lugar algum de trevas da terra; não disse à descendência de
Jacó: Buscai-me em vão; eu, YHWH, falo a verdade e proclamo o que
é direito. 20 Congregai-vos e vinde; chegai-vos todos juntos, vós que
escapastes das nações; nada sabem os que carregam o lenho das suas
imagens de escultura e fazem súplicas a um deus que não pode sal-
var. 21 Declarai e apresentai as vossas razões. Que tomem conselho uns
com os outros. Quem fez ouvir isto desde a antiguidade? Quem desde
aquele tempo o anunciou? Porventura, não o fiz eu, YHWH? Pois não
há outro Deus, senão eu, Deus justo e Salvador não há além de mim. 22
Olhai para mim e sede salvos, vós, todos os limites da terra; porque eu
sou Deus, e não há outro. 23 Por mim mesmo tenho jurado; da minha
boca saiu o que é justo, e a minha palavra não tornará atrás. Diante
de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua (BÍBLIA, Isaías
45,18-23).

A singularidade de YHWH como Deus criador e Senhor de todos os povos é


“transferida” para o Filho, Messias singular, Senhor de todos os poderes, nos céus
e na terra. Jesus é um Messias único, não é à toa que muitos, em seu tempo, não
o reconheceram como tal – como ver no escravo-nada o Messias-Senhor? Como
ver no homem-morto o Deus-vivo?
Temos, assim, um único percurso temático que opera mediante dois movi-
mentos contrastantes:
HONRA DESONRA
EXALTAÇÃO HUMILHAÇÃO

A Dimensão Teológica da Ação


88 UNIDADE II

No primeiro movimento, o Messias Jesus, cujo estado inicial era o de honra


divina, se humilha e, sequencialmente, assume a desonra humana da escra-
vidão e é reconhecido como tal. No segundo, o Pai, reconhecida a condição
desonrosa do Filho, a reverte e o exalta à honra hiperexcelente, acima de toda
e qualquer reputação que possa ser criada pelo ser humano, status que possi-
bilita o reconhecimento universal de sua identidade como o próprio YHWH,
o Libertador de Israel.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Jesus Cristo é Senhor, é confissão que representa o ponto mais alto do dra-
ma da salvação, delineado nestes versículos poéticos. Agora, finalmente, a
soberania sobre o mundo, que fora exibida diante do Senhor pré-encarna-
do, como um prêmio a ser arrebatado, é livremente concedida a ele. Cristo
recebe o novo nome, que não é outro senão o próprio nome de Deus e, com
ele, o direito ao senhorio. Os crentes que entoam este hino pagam tributo a
quem governa suas vidas e suas comunidades (Rm 10,9; 1Co 8,5.6; 12,3; Cl
2,6) e relembram sua promessa no batismo, pelo qual foram introduzidos
numa nova era de cumprimento escatológico e num mundo novo de recon-
ciliação cósmica. Aqui está a grande importância do estudo de E. Käsemann,
que demonstra, seguindo Lohmeyer, que o clímax do hino não é a manifes-
tação de piedade pessoal, mas o sinal de que uma nova era iniciou-se na
Igreja e no mundo.
Fonte: adaptado de Martin (1998, p. 115).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A DIMENSÃO PSICOSSOCIAL DA AÇÃO

Na Unidade I, estudamos a dimensão sociocultural da ação na perícope de 1


Co 1,18ss e mostramos como a divisão em ciclos é útil didaticamente, mas não
pode ser usada com rigidez. Agora, a partir da análise da dimensão psicosso-
cial da ação em Fp 2,5-11, discutiremos, também, aspectos relativos à dimensão
sociocultural e à teológica.
(a) τοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ O verbo froneo não indica,
propriamente, uma paixão, mas uma competência para ser e para agir, ou, na lin-
guagem semiótica, uma modalização do sujeito de estado e do sujeito da ação:
saber-ser e saber-fazer. Exatamente em seu hibridismo semântico, o verbo froneo
é especialmente apto nessa perícope. Ele indica tanto um saber prático (equiva-
lente à sabedoria, sofia) quanto um saber existencial ou intelectual (entendimento,
synesis) e, igualmente, uma disposição para agir, uma atitude.
O que no mundo moderno foi radicalmente separado – paixão, intelecto e
vontade – está indissoluvelmente unido neste verbo, que indica o modo de pen-
sar, sentir e agir da pessoa. Como a modalização do sujeito para ser e agir passa
pela relação do sujeito com o objeto-valor, a exortação paulina liga o sujeito
do verbo froneo com um objeto-valor que, no nível discursivo, não está textu-
alizado explicitamente (ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ), e devemos suprir o termo que

A Dimensão Psicossocial da Ação


90 UNIDADE II

falta, provavelmente fronema (o objeto direto cognato do verbo froneo). Assim,


temos uma exortação que tem a ver com a atitude global da pessoa ou sua dis-
posição – o modo como se posiciona no mundo para viver.
Que disposição é essa? A resposta é dada na sequência do poema.
(b) 6 ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ,
7 ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου ... 8 ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος
ὑπήκοος μέχρι θανάτου, θανάτου δὲ σταυροῦ.
A disposição a que Paulo exorta no verso 5 é, agora, explicitada na forma
de uma breve lista de verbos com o Messias como sujeito: (1) “não considerou

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como algo de que deveria tirar vantagem o ser igual a Deus”; (2) “a si mesmo
se esvaziou”; (3) “assumindo a condição de escravo”; (4) “tornando-se seme-
lhante a ser humano”; e (5) “humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente
até à morte e morte de cruz”.
Se transformarmos esses verbos em modalizações do sujeito, o que encon-
tramos é algo absolutamente incomum nas diferentes descrições (semióticas e/
ou filosóficas) das paixões: a abnegação, uma paixão caracterizada pelo querer-
-não-ser, crer-ser, saber-poder-ser – uma paixão complexa enquanto combinação
de aflição, segurança e confiança (normalmente, em semiótica, se falará de pai-
xões que combinam aflição e insegurança, esperança e segurança, satisfação e
confiança).
A abnegação é uma paixão peculiar, na medida em que combina a aflição
sentida e sofrida pelo sujeito, causada pela disjunção em relação ao objeto-va-
lor, com a esperança segura de resolver a disjunção e a confiança da entrada em
conjunção com o objeto-valor. Nesse caso, porém, a morte é o modo concreto,
mediante o qual o Messias entra em conjunção com seu objeto-valor: a honra
(‘ser igual a Deus’) de toda a criação divina e, em especial, nessa perícope, a honra
de todas as pessoas desonradas pelo Império Romano ou por qualquer outro sis-
tema de classificação de pessoas, baseado em uma honra disponível apenas para
alguns (para uma elite).
A descrição das ‘ações’ do Messias mostra que a abnegação é um complexo
passional que inclui a generosidade, o desprendimento, o amor ao próximo, a
auto-humilhação e a renúncia radical de si e da identidade atribuída a si (por si
mesmo ou pelos outros), visando ao bem-estar pleno e radical de toda a criação

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


91

divina. Usando uma terminologia mais propriamente filosófica (derivada dos


escritos de autores, como Foucault e Agamben), diríamos que a abnegação é um
dispositivo (um conjunto de elementos que orienta o viver das pessoas), nesse
caso, um dispositivo passional. Conforme Agamben:
[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de
algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, intercep-
tar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e
os discursos dos seres viventes (AGAMBEN, 2009, p. 40).
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Abnegação é um ato de auto-negação intensa. É sinônimo de altruísmo, ge-


nerosidade ou dedicação radical.

(c) 9 διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν
ὄνομα, ... ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων 11 καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς.
A abnegação do Messias corresponde à exaltação do Messias por Deus, ou seja,
a doação a ele de um nome acima de todo nome, de uma honra muito maior do
que qualquer honraria. Em outras palavras, o Messias Jesus desonrado passa a ser
o Messias Jesus hiper-honrado, reconhecido, agora, como Senhor, ou seja, como
YHWH (equivalente ao ‘ser igual a Deus’ de que o Messias renunciou e o oposto
do ‘reconhecido como ser humano’). A este complexo movimento sociocultural
e político do cursus pudorum (caminho da humilhação) para o cursus honorum
(caminho para a exaltação), o texto anexa uma ação duplamente textualizada:
‘todo joelho se dobrará’ e ‘toda língua confessará que o Messias Jesus é YHWH”.
Do ponto de vista passional, encontramos, então, na ação dos humanos em
resposta à exaltação do Messias, a paixão contrária à revolta, a saber: a concilia-
ção ou a tranquilidade. Pressupõe-se, assim, que a humanidade está em rebelião
contra Deus, submissa aos impérios humanos, submissão, porém, que conduz

A Dimensão Psicossocial da Ação


92 UNIDADE II

à escravidão (consequentemente, à paixão do desassossego). Eliminada a rebe-


lião, o sentimento de revolta é transformado em sentimento de conciliação e o
desassossego se transforma em tranquilidade (ou paz).
A exaltação de Jesus por Deus pressupõe a paixão divina da alegria, de uma
plena satisfação com o fronema do Messias e confiança em relação àquele que
dispôs sua própria vida na cruz em benefício da criação divina, em identificação
com os desonrados. A consequência final do cursus pudorum do Messias é a gló-
ria de Deus Pai (εἰς δόξαν θεοῦ πατρός): a honra do Pai é definida pela honra do
Filho, na medida em que um não age sem o outro, um não é sem o outro. Se o

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Filho mostrou radical abnegação, o Pai mostra não menos que radical despren-
dimento, pois sua honra não é sua própria, mas compartilhada com a do Filho.
Em última instância, encontramos uma plena identificação entre o Pai e o
Filho, tema que João desenvolve com extrema sensibilidade e beleza no capítulo
17 de seu Evangelho:
[...] tendo Jesus falado estas coisas, levantou os olhos ao céu e disse: Pai,
é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti,
assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que
ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta:
que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste. Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste
para fazer; e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que
eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo (BÍBLIA, João 17.1-5).

Temos, assim, nessa perícope, uma poderosa imbricação entre os valores polí-
ticos e socioculturais e as paixões individuais. Imbricação esta que encontra sua
textualização na exortação inicial de Paulo: “froneite”. Usando a terminologia do
dispositivo, o sistema de honra, no mundo paulino, orientava a vida das pessoas
a buscarem cada vez mais honra para si e menos para os demais, especialmente
os ‘abaixo’ da pessoa em busca de honra – um sistema classificatório altamente
hierárquico e elitista. Sob esse dispositivo, as paixões individuais elicitadas eram
mistas (revolta contra os ‘superiores’ e submissão ao ‘sistema’ que possibilitaria
a ascensão), mas certamente não derivadas do desprendimento, nem da gene-
rosidade e, muito menos, da abnegação.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


93

O fronema messiânico gera um sistema classificatório não-hierárquico e


nem-elitista, de modo que as paixões individuais desencadeadas serão pre-
dominantemente as da generosidade e da confiança, com as paixões ligadas à
indignação, surgindo na medida em que a generosidade mútua fosse rompida
pelo egoísmo de alguém.
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Como dar testemunho da glória de Deus a partir do cursus pudorum do Mes-


sias e não a partir do cursus honorum do consumismo e da luta pelo poder?

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Para apresentar a dimensão missional da ação a partir de Fp 2,5-11, optei por


uma reflexão ao estilo da Teologia Pública. Lembre-se: há diversos modos de
apresentar a ‘releitura’ de um texto bíblico: sermões, devocionais, artigos, ensaios
etc. Aqui, apresento um breve ensaio teológico sobre o tema da secularização
como expressão da kenosis do Messias. Na primeira seção discuto os sintomas
do secularismo (a atitude que adota a secularização como padrão de leitura da
realidade) e, em seguida, discutirei o tema da secularização a partir da kenosis.

A Dimensão Missional da Ação


94 UNIDADE II

PRINCIPAIS SINTOMAS DO SECULARISMO

Há diferentes modos de diagnosticar a presença do secularismo. Como nosso tempo


é curto, opto por um caminho pragmático, refletindo sobre os comportamentos e
modos de relacionamento que manifestam uma visão secularista da vida. Meu foco
recairá sobre três sintomas do secularismo que afetam diretamente nosso modo
de ver o mundo e de viver a fé cristã: racionalismo, individualismo e consumismo.
(1) Racionalismo. Uso o termo racionalismo de um modo bem específico.
Não me refiro à corrente filosófica com o mesmo nome. Entendo o raciona-

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lismo como um modo de entender o mundo e a vida sem a necessidade da fé
ou de Deus. O racionalismo, enquanto sintoma do secularismo, é uma atitude
preconceituosa contra tudo o que não for passível de explicação naturalista, ou
seja, qualquer deus, ou ser ‘sobrenatural’, espiritual etc.
Algumas especificações são necessárias aqui. O ateísmo não é, necessariamente,
racionalismo – uma pessoa pode não crer em nenhum tipo de divindade a partir de
razões não preconceituosas. Da mesma forma, a ciência não é racionalismo. O método
científico não pode incorporar deus em sua atividade, mas isso não é preconceituoso.
Uma pessoa racionalista pode até crer em Deus, mas sempre tomará suas decisões
com base na experiência humana cotidiana, com base nas relações de causa-efeito
apenas, sem jamais levar em conta que Deus pode agir ou participar da vida humana.
(2) Individualismo. A pessoa individualista é aquela que organiza toda a sua
vida a partir de seus próprios interesses e propósitos. O individualismo é uma
forma egoísta, egocêntrica da pessoa entender e viver a sua individualidade.
A pessoa individualista, sempre que necessário (e mesmo quando não), usará
outras pessoas para atingir os seus próprios objetivos, sem se importar se a pes-
soa usada será beneficiada ou não.
No individualismo não somos capazes de nos ver como pessoas que preci-
sam de outras pessoas tão dignas de ter uma vida digna e bem-sucedida como
nós mesmos. A pessoa individualista trata as demais pessoas como meios e não
como fins em si mesmas. Ela não se preocupa com o bem-estar do próximo, não
se interessa pela vida de outras pessoas e, em casos extremos que, infelizmente,
não são pouco numerosos hoje em dia, ela sequer é capaz de viver em família,
de levar em consideração as necessidades de filhos, irmãs, esposa ou esposo etc.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


95

Em última instância, a origem do individualismo está na condição pecami-


nosa do ser humano; entretanto, em cada época da história humana, as causas
e modos de ser do individualismo variam. Em nosso tempo, o individualismo
é moldado pelo sistema econômico e passa a moldar a vida política. O sistema
econômico capitalista é, por sua própria natureza, individualista, na medida em
que é um sistema econômico baseado na acumulação de bens e capital mediante
a vitória sobre os demais membros da sociedade.
E como o individualismo afeta o sistema político? O individualismo é a visão
e prática distorcidas da democracia. Na democracia, o interesse comum, de toda
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a sociedade, é que fundamenta as relações sociais. O indivíduo, portador de direi-


tos e de dignidade inalienáveis é cidadão, ou seja, responsável pela dignidade de
todos os membros da sociedade e não só por sua própria. Democracia não pode
ser vista apenas como uma forma de governo, deve ser vista como uma forma
cultural, é o regime em que o Estado, composto de representantes eleitos pela
maioria, governa preservando os direitos das minorias, ou seja, os direitos e res-
ponsabilidades de todos os cidadãos.
O individualismo reduz a cidadania apenas à busca de direitos particula-
res e não à construção de uma sociedade com direitos iguais para todos. Se, no
campo econômico, o individualismo é a expressão prática da espiritualidade de
Mamom; no político o individualismo é a expressão prática da espiritualidade
satânica – a indiferença pelo bem do próximo. Se o sistema capitalista é egoísta
por sua própria definição e funcionamento, a democracia é altruísta por sua pró-
pria definição e funcionamento.
No mundo ambíguo, pecaminoso, do ser humano, capitalismo e democracia
deveriam funcionar como controles externos um do outro. Mediante o altruísmo
democrático, o amor-próprio do capitalismo seria regulado de tal modo que a
sociedade não fosse caracterizada pela injustiça. Mediante o interesse econômico,
a democracia seria protegida da preguiça ou acomodamento de indivíduos que
vivem esperando ‘receber seus direitos’.
Infelizmente, o individualismo contemporâneo é o modo cultural hegemô-
nico, de modo que a maioria dos membros das sociedades atuais pensam nos
seus próprios direitos e não nos direitos de todos, especialmente das minorias. O
individualismo, então, não só está na base de um sistema econômico opressor e

A Dimensão Missional da Ação


96 UNIDADE II

injusto, ainda que eficiente como produtor de bens, mas também na base das dis-
torções profundas que fazem da democracia um arremedo do que ela deveria ser.
A pessoa individualista é, então, aquela que luta predominantemente para
acumular, cada vez mais, capital e poder político e, assim, dominar a sociedade.
Quantos projetos políticos emancipadores se tornaram, ao chegar ao poder, pro-
jetos opressores? Quantas desilusões os eleitores experimentam quando seus
candidatos efetivamente chegam ao poder? No campo político, o desejo de per-
manecer no poder é a forma mais concreta do individualismo.
(3) O outro lado da moeda do individualismo é o consumismo. Assim como

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o individualismo é a vivência pecaminosa da individualidade, o consumismo é
a prática pecaminosa do consumo. Consumir é uma atividade econômica indis-
pensável à vida; o consumismo, porém, não é indispensável, nem necessário.
Consumismo é o modo de vida caracterizado pelo desejo permanente e cres-
cente de consumo de objetos, experiências, bens, serviços e relações humanas,
em função do seu significado público, ou seja, em função da imagem pública
que a posse do que foi consumido atribui à pessoa consumista.
A pessoa consumista transforma todas as coisas em objetos de consumo, que
são, simultaneamente, objetos de desejo. Ao fazer isso, torna-se, ela mesma, em
um objeto, encontrando sua satisfação e sua identidade não mais em si mesma
e nas suas relações com outras pessoas, mas na posse dos objetos que deseja. A
pessoa consumista transforma todas as demais pessoas em objetos e se relaciona
com elas a partir do amor-próprio ou, em uma linguagem mais aberta da psi-
cologia, a partir do desejo.
De acordo com o sociólogo polonês Bauman:
[...] o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes,
associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades [...], mas a
um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por
sua vez, implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos des-
tinados a satisfazê-la (BAUMAN, 2008, p. 44).

Se quisermos usar um vocábulo bíblico para compreender a condição pecami-


nosa do consumismo, podemos recorrer ao Decálogo, em sua última palavra:
‘não cobiçarás’. Consumista não é apenas a pessoa que compra muito, mas a pes-
soa que – individualisticamente e egoisticamente – vive em função apenas da

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


97

satisfação de seus ‘desejos sempre crescentes’, desconsiderando as necessidades


e projetos de vida de outras pessoas. Isto é, uma pessoa pode ser consumista,
mesmo se não tiver capacidade financeira para consumir os bens que deseja.
(4) Quais são os principais sinais do secularismo nas igrejas e na vida cristã?
(a) O fundamentalismo, que corresponde ao racionalismo. Por fundamenta-
lismo não me refiro a um conjunto específico de doutrinas, mas a uma atitude.
Uma atitude que vê, na crença pessoal ou institucional, a única verdade possí-
vel e que todas as pessoas deveriam ter a mesma crença. O fundamentalismo
é um modo de viver a fé cristã que coloca os conceitos doutrinários acima do
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amor a Deus e ao próximo. A pessoa fundamentalista é ‘dona da verdade’ e não


admite que qualquer verdade possa ser construída fora dos limites de sua pró-
pria crença. Assim, o fundamentalista julga todos os tipos de conhecimento a
partir de sua própria crença e tenta enquadrar todas as ciências e modos de saber
ao seu próprio conhecimento.
(b) O institucionalismo, que corresponde ao individualismo. Uma igreja ou
organização cristã institucionalista é aquela que vive em função de acumular
membros, recursos e bens, concentrando poder e prestígio nas mãos de poucas
pessoas que dominam sobre a maioria. Em linguagem mais abstrata, igreja ins-
titucionalista é aquela em que as regras da instituição são superiores às normas
da vida comunitária ou em que o poder controla o carisma.
Na linguagem da teologia evangelical latino-americana do final do século
passado, é institucionalista a igreja que vive em função de si mesma e não em
função do Reino de Deus ou, em outras palavras, a igreja que vive em função de
sua própria perpetuação e não em função da missão integral como manifesta-
ção da missio Dei na história humana. São institucionalistas pastores, pastoras,
apóstolos e demais lideranças eclesiais ou eclesiásticas que acumulam bens,
prestígio ou poder e se assenhoreiam de seu rebanho, ao invés de apascentar o
rebanho para Deus.
(c) A carnalidade, que corresponde ao consumismo. Igrejas e cristãos carnais
são aqueles que comercializam o Evangelho e suas bênçãos. A teologia da pros-
peridade é o exemplo mais completo do egocentrismo consumista no campo das
Igrejas Cristãs; mas não só ela, também são consumistas as igrejas e pessoas que,
ao invés de adorar a Deus, centralizam o culto em suas próprias necessidades e

A Dimensão Missional da Ação


98 UNIDADE II

desejos – a música é uma das expressões mais evidentes do consumismo litúrgico:


letras centradas no eu ou no ser humano (antropocêntricas), melodias baseadas
na capacidade de entreter e de vender no mercado gospel.
São carnais as pessoas que, considerando-se cristãs, se conformam com o
mundo e levam o consumismo para dentro da vida cristã: consomem Deus, con-
somem bênçãos, consomem serviços religiosos etc. São consumistas os cristãos
que não servem a Deus mediante o serviço aos irmãos, irmãs e ao mundo que
Deus ama e quer salvar. Em outras palavras, trazidas de uma outra época não
muito distante, são as pessoas convencidas, mas não convertidas. São as pessoas

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que manifestam os sinais externos da fé, mas não entregaram de fato suas vidas
a Deus e, ainda, vivem na carne. São aquelas pessoas que só ficam na igreja se
ganharem alguma coisa.
Cristãos carnais, ou egocêntricos, são aqueles que recebem o juízo de Jesus:
[...] em todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me diräo
naquele dia: Senhor, Senhor, näo profetizamos nós em teu nome? e em
teu nome näo expulsamos demónios? e em teu nome näo fizemos muitas
maravilhas? E entäo lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-
-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade (BÍBLIA, Mateus 7,21-23).

Cristãos egocêntricos, ou carnais, são aqueles que recebem a exortação de Paulo:


[...] porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis
da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos ou-
tros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis
e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos.
Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência
da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a
carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porven-
tura, seja do vosso querer. Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais
sob a lei. Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, im-
pureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras,
discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas
semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, ou-
trora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas
praticam. Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. Contra
estas coisas não há lei (BÍBLIA, Gálatas 5,13-23).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


99

Apresentei uma descrição muito simples e breve do secularismo contemporâneo.


Mantendo a mesma brevidade, passo a refletir sobre como viver cristocentri-
camente na secularidade. Conversemos sobre os principais aspectos de uma
teologia da secularidade.

RUMO A UMA TEOLOGIA CRISTOCÊNTRICA DA SECULARIDADE

Diante dos desafios concretos de viver em um mundo secular sem nos tornar-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mos secularistas, precisamos nos esforçar para responder teologicamente a duas


grandes questões abstratas que se desdobrarão em um grande número de ques-
tões bem concretas: (a) qual é a relação do Cristianismo com (a secularização e)
a secularidade? e (b) Como viver cotidianamente a fé cristã em uma sociedade
secular (não secularista, nem fundamentalista)? Note a grandiosidade do tema.
O tempo não me permite uma apresentação detalhada de uma teologia
pública da secularidade. Aqui, poderei apresentar, à discussão, apenas uma das
respostas possíveis a primeira pergunta e, como a resposta terá de ser inevita-
velmente conceitual e abstrata, apenas apontarei algumas das consequências
concretas e práticas de uma nova forma de interpretar a história do Ocidente e
do Cristianismo nos tempos modernos.
Embora o secularismo tenha sido amplamente desafiado no mundo acadê-
mico e o fundamentalismo na academia teológica, estamos apenas começando
a perceber as implicações radicais dessa dupla rejeição. As condições do século
XXI nos devem fazer enxergar que, como defende Jean-Luc Nancy:
[...] nosso tempo é, assim, o tempo em que é urgente que o Ocidente – ou
o que resta dele – analise o seu próprio devir, volte a examinar sua proveni-
ência e sua trajetória, e se questione a si mesmo no tocante ao processo de
decomposição do sentido a que ele deu surgimento (NANCY, 2008, p. 30).

Se seguirmos esse conselho, como poderemos descrever e conceituar a secula-


ridade em uma perspectiva teológica cristã?
Um caminho interessante e fecundo tem sido aberto pela reflexão de Gianni
Vattimo, um filósofo italiano, cristão, católico-romano, que retoma as teses da
teologia da secularização dos anos 1960-70. Harvey Cox já defendia, em 1965,

A Dimensão Missional da Ação


100 UNIDADE II

a tese agora apresentada por Vattimo, por exemplo: “[...] secularização, como
uma vez afirmou o teólogo alemão Friedrich Gogarten, é a consequência legí-
tima do impacto da fé bíblica na história” (COX, 2013, p. 21).
No conjunto, porém, o livro de Cox se dedica mais à cultura urbana e não à secu-
larização e secularismo enquanto tais. Em várias de suas obras, mas especialmente
no livro Depois da Cristandade, Vattimo defende a tese de que a secularização não
deve ser interpretada contra o Cristianismo, mas sim, a partir do Cristianismo. Em
vários lugares desse livro, o autor defende a tese de que ‘o Ocidente é o Cristianismo
secularizado, e nada mais’ (tese que, de uma forma ou outra, tem sido reconhe-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
cida e adotada por vários autores que não seguem o conjunto do pensamento do
filósofo italiano). Assim, se queremos entender o mundo secular, não podemos
prescindir de entendê-lo a partir do Cristianismo, e não mais contra o Cristianismo.
Em que sentido Vattimo apresenta essa tese:
[...] se seguirmos teologias contemporâneas inspiradas por Barth e Bo-
nhoeffer, concebendo a secularização como o locus onde Deus é reve-
lado em sua transcendência radical, teremos de entender este processo
não tanto como um salto ou uma superação, mas como o cumprimento
da história da salvação, que é dirigida, desde a sua origem, pela morte
de Deus como a dissolução do sagrado – o evento que São Paulo chama
de kenosis (VATTIMO, 2002, p. 68).

Voltaremos a essa citação para discuti-la com mais detalhes. Agora, porém, chamo
sua atenção para a consequência desta afirmação para o conceito de secularização:
[...] deve ser acrescentado aqui que secularização não é um termo em
contraste com a essência da mensagem [cristã], mas, ao contrário, é
constitutivo dela. A encarnação de Jesus (a kenosis, a auto humilhação
de Deus), como um evento salvífico e hermenêutico, já é, de fato, uma
ocorrência arquetípica da secularização (VATTIMO, 2002, p. 67).

Conseguiu captar a essência da tese de Vattimo? Para ele, a secularização não é


um processo ‘profano’, cujo resultado final é o fim da religião. A secularização é
um processo derivado da própria ação de Deus ao encarnar-se em Jesus Cristo.
A kenosis do Filho de Deus é a origem, a proveniência da secularização. Claro, a
encarnação e o esvaziamento do Filho são bem mais do que isto. Mas, segundo
Vattimo, não se pode entender a secularização senão como o desdobramento
histórico da ação salvífica de Deus – o cumprimento da história da salvação.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


101

Dialoguemos com as citações de Vattimo para descrevermos mais detalha-


damente e, em diferentes pontos, ampliarmos essa compreensão teológica da
secularização (e da secularidade).
Em primeiro lugar, a tese de Vattimo é baseada em uma descrição teoló-
gica da secularidade, que o filósofo aceita como radicalmente filosófica, ou seja,
não é necessário fazer, como Hegel e outros filósofos fizeram, o desmanche do
conceito cristão e sua transformação em um conceito ‘secular’. O fato de o con-
ceito ser ‘cristão’ não o torna, por si só, inadequado ou irracional. Se o conceito
é ‘bom’, pode ser adotado integralmente pela filosofia. Menciono isto, principal-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mente, porque muitos sistemas teológicos modernos se subjugaram aos sistemas


filosóficos com o qual dialogaram, a fim de encontrar legitimidade acadêmica.
Não precisamos subordinar a teologia à filosofia para que ela seja racionalmente
legítima. Dessa forma, podemos continuar sendo racionais, sem sermos racio-
nalistas nem fundamentalistas – não precisamos negar a fé, nem precisamos
atribuir privilégios à fé no debate racional.
Em segundo lugar, como um conceito teológico, a secularização nos ajuda a
entender melhor o próprio Deus. Nas palavras de Vattimo, ela é o locus da revela-
ção da radical transcendência de Deus. Que significa isto? Estamos acostumados
a pensar na transcendência de Deus como um transcender ‘este mundo’. Deus
é transcendente porque está fora deste mundo e é independente dele. Vemos,
tradicionalmente, a transcendência como um conceito que explica a radical e
absoluta diferenciação entre Deus e sua criação (o mundo). Isto dá legitimidade
a uma visão dualista da salvação: somos salvos do mundo para viver em ‘outro
mundo’. Legitima, ainda, uma visão dualista da espiritualidade: vivemos em
um mundo mau, por isso precisamos ser ‘bons’, fugindo do mundo e nos refu-
giando no sobrenatural (na prática, reduzido ao emocional). Enfim, torna crível
uma visão alienada da missão da Igreja: nada temos de fazer com relação a ‘este
mundo’ que perece, temos de cuidar da salvação das almas que sobreviverão a
este mundo e viverão, ressurretas, no ‘mundo vindouro’.
Que é, então, a transcendência radical de Deus? É o fato de que Deus assume
o mundo que criou. Ele não está ‘fora’, mas absolutamente ‘dentro’ deste mundo.
A transcendência não é um movimento de saída deste mundo, mas de entrada
nele. Deus é transcendente exatamente porque é Criador. A criação é o ‘primeiro

A Dimensão Missional da Ação


102 UNIDADE II

ato’ da transcendência divina. A kenosis é o ‘ato climático’ da transcendência


divina: Deus vem ao mundo criado e vive nele como uma criatura deste mundo,
a ponto de morrer e ressuscitar (Fp 2,5-11).
Voltando à linguagem de Barth e Bonhoeffer, na medida em que deixamos de
ser religiosos é que nos aproximamos da radicalidade do ser cristão. Traduzindo
em termos mais concretos: na medida em que transcendemos os limites religiosos
das Igrejas é que vivemos como cristãos. Ou, na linguagem preferida pela mis-
são integral: a Igreja está a serviço do Reino, e não vice-versa. Você é capaz de
perceber a radicalidade dessa afirmação? Eu penso que, assim como ainda não

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
conseguimos chegar perto de praticar o sacerdócio universal dos santos, também,
ainda, não chegamos perto de praticar o Reino como critério para viver na igreja.
Em terceiro lugar, consequentemente, o destino da história da salvação não
pode mais ser entendido como a edificação da Igreja como uma instituição pode-
rosa, que derrota ‘este mundo’ e impõe, ao ser humano, a vida ‘do outro mundo’,
enquanto espera a destruição ‘deste’. De fato, não devemos nos preocupar com o
destino da igreja, mas com sua destinerrância, para usar um neologismo inven-
tado por Jacques Derrida. Destino + errância, o destino da igreja é a errância
ou, se preferirmos, a peregrinação. Destinerrantes como o Messias Jesus inse-
rido radicalmente no mundo, vivendo como um ser humano, sofrendo tudo o
que um ser humano sofre, entregando-se radicalmente ao destino de todo o ser
humano: a morte (Cf. DERRIDA, 2007, in passim).
Auto entrega que destrói o poder da morte, não a anulando, mas revelando
o seu sentido radical: o caminho para a ressurreição (cf. 1Co 15). Traduzindo
para uma linguagem bem concreta: a missão da Igreja não é o seu próprio cres-
cimento e sua autopreservação, é, ao contrário, sua kenosis seguindo o caminho
trilhado pelo Messias. Usando um exemplo mais próximo de nossa visão limi-
tada, a missão da Igreja é similar à de João Batista: ‘convém que o Reino cresça
e eu diminua’! Como, porém, é difícil seguir a Jesus em seu auto esvaziamento!
Preferimos que a Igreja cresça e, quem sabe, faremos o reino crescer junto com
ela. Ainda somos os mesmos e vivemos sob o signo da Cristandade.
Em quarto lugar, a radical transcendência de Deus revelada no Messias Jesus
se manifesta, também, como a ‘dissolução do sagrado’, ou melhor, contradizendo
Vattimo, como a dissolução do profano. Nada há de profano neste mundo. Ele é

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


103

criação de Deus, perfeita, plena. Somente nossas ações pecaminosas é que pro-
fanam a criação divina. Não é essa definição uma interpretação legítima da visão
de Pedro em Atos 10? Não é a visão de Pedro, em Atos 10, uma interpretação
legítima da fala de Jesus de que só é impuro o que sai do ser humano e não o que
nele entra? Não estava certo Paulo ao afirmar que ‘para os puros tudo é puro? Se
interpretarmos a secularização, com essa chave teológica cristocêntrica, como
a dissolução do profano, então todo o mundo volta a ser colocado debaixo do
senhorio de Deus – tudo volta a ser sagrado, ou seja, consagrado a Deus.
Democracia, razão, ciência, tecnologia etc., não são o resultado do embate
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

humano contra Deus, não são a profanação do caminho divino para o ser humano.
São, em forma imperfeita e ambígua, expressão humana do permanente e jamais
abalado senhorio divino em sua criação! Tudo o que há de bom neste mundo é
fruto da amorosa ação criadora e redentora de Deus. Se aceitarmos que política,
economia, ciência, mídia, arte etc. são realidades profanas, estaremos aceitando a
tese do secularismo. Se aceitarmos o dualismo sagrado-profano, negaremos que
o mundo foi criado por Deus e que o mal entrou nele mediante nossa própria
ação: ‘por um homem entrou o pecado no mundo’ afirmava Paulo. ‘Do Senhor
é a terra e tudo o que nela há’ é poderoso antídoto contra o secularismo. Só não
podemos incorrer no fundamentalismo e tratar o sagrado como o oposto do pro-
fano e tentarmos impor o modo de vida cristão a toda a sociedade.
Em quinto e último lugar, pelo menos nos limites desta fala, compreender
a kenosis do Messias como uma forma arquetípica da secularização nos ajuda a
repensar o nosso conceito de Deus, tão marcado pelo pensamento secularista.
Estamos acostumados a pensar em Deus como o todo-poderoso, capaz de destruir
todos os seus inimigos, de transformar todas as realidades ruins em realidades
boas para as pessoas que O amam. Em muitos casos, até reduzimos Deus a um
despachante-resolvedor de problemas. Esse é um conceito forte de Deus, um
conceito cheio. E se passarmos a pensar em Deus como um Deus fraco, como
um Deus quenótico? Se pensarmos e nos relacionarmos com Deus nos moldes
da radical descrição de Paulo em 1 Coríntios 1,21-24 (BÍBLIA):

A Dimensão Missional da Ação


104 UNIDADE II

[...] visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por


sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura
da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos bus-
cam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para
os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados,
tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedo-
ria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens;
e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

Que tal pensar no poder de Deus como um poder “que se aperfeiçoa na fra-
queza” (2Co 12,9)? A radicalidade do poder de Deus está no fato de que, sendo
Deus, eterno e imortal, ele pode morrer por sua criação. Que tal pensar na sabe-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
doria de Deus como a sabedoria revelada na cruz do Messias? Se a kenosis for a
chave hermenêutica para a teologia cristã, retornaremos à centralidade da cruz
de Cristo na teologia cristã. Se retornarmos à centralidade da cruz de Cristo em
nossa teologia, poderemos interpretar toda a história humana e da criação inteira
como a manifestação do poder salvífico da morte do Filho de Deus.
A história toda, em sua ambiguidade, em sua revelação do pecado humano é,
também, a manifestação do poder de Deus, o poder da Cruz revelado na ressurrei-
ção de Jesus (Fp 2,5-11). Se passarmos a ver a história humana assim, poderemos
viver e praticar a fé cristã como radical expressão do amor de Deus que se con-
cretiza no ‘amor ao próximo como a nós mesmos’, cumprindo toda a Lei, como
Paulo afirmou aos gálatas. A secularidade, lida à luz da kenosis, é o palco em
que podemos amar as pessoas neste mundo, vivendo missionariamente como
o Messias, que nos envia ao mundo como o Pai o enviou ao mundo (Jo 20,21).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


105

Apenas iniciei uma conversa sobre uma teologia pública da secularidade. O


tema é exigente e abrangente, nada menos do que a exigência de discernir o nosso
tempo. A exigência de fidelidade a Deus, sem incorrermos no secularismo nem no
fundamentalismo. Em certo sentido, esse é o desafio permanente da teologia em
sua integralidade. Uma teologia íntegra e integral não pode fugir de sua responsa-
bilidade de compreender o tempo presente à luz da Palavra de Deus, sem se deixar
dominar por ‘filosofias e vãs sutilezas’: uma teologia plenamente cristocêntrica.
Se não discernirmos teologicamente o tempo, não saberemos realizar a mis-
são, nem conseguiremos edificar nossas comunidades em fidelidade a Deus,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

seguindo os passos do Messias Jesus. Talvez você se pergunte agora, ao final desta
fala: “mas, e a prática”? Cá entre nós, não há nada mais prático do que uma boa
‘teoria’ teológica do presente. Enfrentar o secularismo inicia com a reflexão sobre
o nosso tempo e se concretiza na prática da messianidade, da cristocentricidade
no dia a dia pessoal e eclesial. Teologia da secularidade: um desafio público para
enfrentar o racionalismo, o individualismo e o consumismo.

A Dimensão Missional da Ação


106 UNIDADE II

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem! Chegamos ao final de mais uma jornada exegética e teológica! Espero
que você tenha prestado bastante atenção ao processo metodológico que tenho
seguido e tenha se motivado a fazer, você mesmo, a exegese de outros textos bíbli-
cos, usando criticamente a metodologia que está aprendendendo.
Tenho procurado mostrar diferentes ênfases e possibilidades de aplicação
do método, a fim de que você reconheça que um método não é uma ferramenta
exata e rígida, que só permite um uso e uma aplicação possível. Tenho mos-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
trado que há diferentes maneiras de usar as regras do método e que, no final
das contas, é a compreensão dos sentidos e possibilidades de sentido e ação que
o texto oferece que deve ser o objetivo final. O que importa é entender o texto,
o método é uma ferramenta.
Nesta unidade, mostrei como a análise da dimensão missional da ação pode
ser feita mediante uma reflexão teológica. Embora o resultado seja bem diferente
do de outros tipos de releitura, os passos são os mesmos: verificamos um dos
temas do texto, vemos como esse texto funcionava em sua época (que dimensões
da vida ele afetava) e procuramos uma dimensão da vida atual e uma temática
correspondentes.
Neste caso, optei por uma releitura a partir da dimensão sociocultural - o
texto lidava com essa dimensão na cultura greco-romana a partir do conceito
de honra e da relação da autoridade política com a honra. Escolhi o tema socio-
cultural da secularização para refletir sobre a releitura do texto e aproveitei uma
reflexão do filósofo Gianni Vattimo para fazer a minha própria releitura.
Note, também, que tenho procurado mostrar que, embora a fase final seja
didaticamente dividida em cinco ciclos, não somos obrigados a seguir rigida-
mente ciclo por ciclo, podemos ver, em cada ciclo, elementos dos demais. De
fato, você verá que, quando já estiver familiarizado com o método, é possível
seguir os procedimentos do método sem ficar preso à divisão em ciclos. Use o
método até que ele se torne SEU!!
Paz e bem!

ANÁLISE EXEGÉTICA DE FILIPENSES 2,5-11


107

O QUE É KÉNOSIS
“Kenose: Kénosis, kenótico, de kenoo, esvaziar, extenuar, reduzir a nada; estado de hu-
milhação [...]”. “A sua significação teológica está no fato de o Novo Testamento utilizá-la
para expressar a realidade de Jesus Cristo, Filho/Verbo de Deus que, sendo Deus, a Se-
gunda Pessoa da Trindade, aniquilou-se, humilhou-se e assumiu a condição humana”.
Sendo humano tornou-se servo.
A palavra kénosis é uma herança da Patrística Oriental que trata do movimento, da dina-
micidade de Deus que vem ao encontro do humano. Para os orientais, o conhecimento
só se dá no relacionamento. Portanto, Deus, para ser conhecido e conhecer o humano,
deve ir ao encontro desse humano, relacionar-se com ele, e se dar a relacionar. O termo
foi fundido a partir do hino de Filipenses 2, 6-11. Kénosis é o sair de si sem deixar de ser
o “si” mesmo. É um auto-esvaziamento. É se esvaziar para se encontrar no outro, sem
perder a própria identidade.
Entretanto, a kénosis de Deus não se dá somente na pessoa de Jesus, ela é trinitária. Há
dois momentos kenóticos: 1 – quando falamos de Trindade imanente, ad intra, no Deus
em si mesmo. Balthasar a chama de kénosis primordial (primeira kénosis ou original). É
uma ação dinâmica, teológica donde o amor não se contém; ele transborda. Ela se dá
nas relações internas entre as Pessoas da Trindade. Chamamos essa relação de pericore-
se (termo fortemente cristológico-trinitário). É o Pai que se esvazia de sua condição de
Pai para se encontrar no Filho, sem deixar de ser Pai; o Pai só é Pai em relação ao Filho,
e o Filho que se esvazia de sua condição de Filho para se encontrar no Pai, sem deixar
de ser Filho; o Filho só é Filho em relação ao Pai, e o Espírito Santo que é o próprio amor
kenótico e a relação; o Espírito se dissimula do seu ser pessoa para ser a relação de amor
entre o Pai e o Filho; ele é o movimento, a dinâmica, sem deixar de ser hipóstase (pes-
soa); é Pessoa-dom-que-se-dá. Fica abscôndito, como que dissimulado na relação e no
amor entre o Pai e o Filho. O Pai é o amor que se doa, é o AMANTE; o Filho é o amor que
recebe, o AMADO, e o Espírito é o próprio AMOR. 2 – Na Trindade econômica, no Deus
que se revela na história da salvação e na nossa história, é a kénosis na nossa história. É
o projeto de amor do Pai que se inicia na criação e na história do povo eleito, se plenifica
no Filho por meio do Espírito até nossos dias. Sobre isto, que iremos aprofundar.
A kénosis é um escândalo, fruto, somente, de um manikon eros. Este amor louco brota
da liberdade de Deus. Liberdade que busca o relacionamento na Trindade até o relacio-
namento histórico e permanente consigo e com o humano. Ela foi tratada na patrística,
referindo-se a pessoa de Jesus Cristo, segunda pessoa divina da Trindade. Com a te-
ologia moderna, surgiram várias teorias (luterana, calvinista, da escola de Giessen, da
escola de Tubingen) as quais, apesar das divergências, afirmavam que a Kénosis afeta
diretamente a humanidade. “Elas consideravam a exaltação e a humilhação de Cristo
tão somente segundo sua natureza humana e não uma humilhação do próprio Filho de
Deus. Dessa maneira, eles não tocam o ponto central da kénosis”.
108

Na Teologia contemporânea, Kénosis “[...] significa a pessoa despojarse, por amor, do


que lhe é próprio, dar-se totalmente para fazer-se um com os outros, para viver o outro,
para permitir que o outro se realize e, desse modo, colocar as condições para ser plena-
mente ele próprio”.
O Deus se despoja de toda a sua divindade para se relacionar com o humano e chega
a despojar-se totalmente para ser servo. A kénosis é ação de um Deus totalmente en-
tregue ao outro para se relacionar e se encontrar no outro; um Deus que testemunha e
chama a seguir seus exemplos. O humano, em Deus, é chamado a ser kenótico, a entrar
em relacionamento com Deus e com o outro. É chamado a se esvaziar para se encontrar
no outro.
O despojamento de Cristo e o esvaziamento têm o princípio da própria natureza do Pai,
porque se originam da vontade do Pai e, sem isso, se tornam acidentais e sem funda-
mento. O fundamento Cristo kenótico – da descida de Jesus aos homens, na encarna-
ção, assim como da natureza humana kenótica – do humano que é chamado, em Deus e
por Deus, a descer ao outro; é o Pai kenótico – o Pai que desceu na criação e na história
de seu povo; desceu para estar presente, atuante, em suas vidas, pois o Pai é fonte ines-
gotável, ágape kenótico do amor que se esvazia para descer e se encontrar no outro”.

Fonte: Santos; Xavier (2008).


109

1. Do ponto de vista das pessoas no texto, encontramos as seguintes relações: (a) a


atitude de Jesus como base da atitude dos cristãos filipenses; (b) o Filho que se
esvazia e se humilha, tornando-se totalmente semelhante aos seres humanos e
sofrendo a morte (por eles e morte como escravo condenado como subversivo);
(c) em relação a si mesmo, o Filho não considera vantajoso ser divino; (d) a exal-
tação do Filho pelo Pai, que inverte a sua condição de escravo (o mais inferior
de todos) e o coloca com reputação superior (acima de todos); (e) na descida do
Filho ele é reconhecido como humano (pelos seres humanos? - O texto deixa
indefinido o sujeito); (f ) a partir de sua exaltação, ele poderá ser reconhecido e
confessado como Senhor por toda a criação. Qual é o tema abstrato que dá
unidade a essas relações?
a. O poder político.
b. A identidade pessoal e social.
c. A cristologia.
d. O Messianismo.
e. Soberania Romana.
2. Do ponto de vista da identidade social, o Filho é aqui desvestido de toda e qual-
quer honra, pois o escravo executado é maldito aos olhos dos romanos e, do
ponto de vista do Judaísmo, não se esperava um Messias crucificado (maldito
perante a Lei, conforme Paulo destaca em Gálatas).
Esta afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA
3. De acordo com Proença, qual é o centro da teologia de Paulo?
a. Ressurreição de Jesus.
b. Salvação.
c. Poder.
d. Cruz.
e. Pecado.
4. Explique, com suas próprias palavras, o significado do esvaziamento de Cristo
(no máximo 15 linhas).
5. Faça uma releitura desse texto na forma de uma aplicação prática na vida coti-
diana, destacando que atitude o cristão deve ter em seu dia a dia (no máximo 15
linhas).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Cruz e ressurreição. A identidade de Jesus para nossos


dias
Wander de lara Proença
Editora: Descoberta
Sinopse: exegese e reflexão teológica sobre Fp 2,5-11, por professor
presbiteriano.
Comentário: publicação de monografia de conclusão de curso de
Bacharelado em Teologia. Mostra como o estudante de graduação, que
busca excelência, pode elaborar reflexão exegético-teológica de qualidade, digna de publicação.

O Diabo veste Prada - 2006


Sinopse: o contraste entre as atitudes de uma poderosa executiva e as
de uma de suas assistentes. Mostra duas formas de alcançar o sucesso,
uma de modo humilde; outra, de modo arrogante.

Instituto Humanitas da Unisinos


Vídeo de uma conferência no Instituto Humanitas da Unisinos (Universidade do Vale do Rio
dos Sinos), um dos principais centros de elaboração de Teologia Pública no Brasil, dirigido
por teólogos jesuítas. O tema é o conceito de dispositivo em Foucault e em Agamben - e a
conferência é em língua espanhola.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uGmVI7otgvc>
Artigo de Giorgio Agamben Que é um dispositivo, disponibilizado gratuitamente pela
Universidade Federal de São Carlos.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/download/12576/11743>
Artigo de estudante de teologia e professor da revista teológica da PUC-SP sobre a kenosis da
Trindade.
Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/viewFile/15629/11658>
Reflexão de um pastor batista da cidade de São Paulo sobre a kenosis de Jesus.
Disponível em: <http://outraespiritualidade.blogspot.com.br/2007/06/kenosis.html>
111
REFERÊNCIAS

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ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 25-51.
BAUMAN, Z. Vida para o consumo. A transformação das pessoas em mercadoria.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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pers from the St. Andrews Conference on the Historical Origins of the Worship of
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COX, H. The Secular City. Secularization and Urbanization in theological Perspecti-
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DERRIDA, J. Cartão Postal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
DUNN, J. D. G. “Christ, Adam, and Preexistence”. In: MARTIN, R. P.; DODD, B. J. (eds.).
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rents in Biblical Research. v. 13, n. 2, p. 191-206. DOI: 10.1177/1476993X13504167.
Acesso em 11.08.2016.
GUERRA, D. D. “O culto ao imperador romano: coesões e contraposições na esfera
dos cristianismos originários no século I”. In: Vox Faifae: Revista de Teologia da Fa-
culdade FAIFA. v. 6, n. 2, 2013, p. 1-16. www.faifa.edu.br/revista/index.php/voxfai-
fae/article/download/91/102. Acesso em 11.11.2016.
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Cursus Pudorum. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
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BAKIRTZIS, C. (eds.). Philippi at the Time of Paul and after His Death. Harrisburg:
Trinity Press, 1998, p. 5-35.
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revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/viewFile/15629/11658>. Acesso em:
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112
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Greco-Roman Context. Studies in Honor of David E. Aune. Leiden: E. J., Brill, 2006,
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VATTIMO, G. After Christianity. New York: Columbia University Press, 2002. (Edição
brasileira: Depois da Cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004).
113
REFERÊNCIAS
GABARITO

1) B.
2) Verdadeira.
3) D.
4) Pode-se dar certa liberdade ao estudante, mas deve mostrar, principalmente,
que o esvaziamento significa que o Messias assumiu a desonra humana ao assu-
mir a condição de escravo e que, por isso, Deus o exaltou e lhe deu a Honra que
está acima de toda e qualquer outra honra.
5) Também podemos dar liberdade ao estudante, mas, de alguma forma a releitu-
ra, terá de abordar a atitude da humildade.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

III
UNIDADE
MARCOS 2,13-17

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
teológica da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
missional da ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
117

INTRODUÇÃO

Olá! Estamos iniciando a nossa terceira Unidade. O texto para interpretação será
Marcos 2,13-17 e nosso trabalho terá a seguinte estruturação:
No Tópico 1 exemplificarei a você os procedimentos da fase preparatória da
exegese: a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua
segmentação e estruturação. Depois, apresentarei, para nossa reflexão, alguns
dos principais aspectos do contexto do Evangelho de Marcos. Enfim, tendo em
vista o gênero textual do livro, discutiremos o lugar de Mc 2,13-17 no conjunto
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do Evangelho. Apresentarei um conceito novo para você: cronotopo. Este é um


conceito originalmente criado pelo linguista e filósofo russo Bakhtin, mas que
tem sido ampliado e aperfeiçoado por vários autores nas áreas da linguística,
teoria literária e semiótica.
No segundo Tópico, passamos à análise da dimensão espaço-temporal da
ação, seguindo os passos metodológicos em forma bem didática: alistando as pes-
soas, espaços e tempo; depois, analisando a organização dessas características no
texto e terminando com uma síntese da significação que o texto nos proporciona
a partir desse ponto de vista. Para você aprender a fazer exegese não basta só ler,
você precisa ‘refazer’ criticamente o que está lendo nos textos desta disciplina.
No Tópico 3, voltamos a atenção à dimensão teológica da ação. É hora de
verificar o arranjo temático da perícope, perceber a sua unidade e a forma como
cada um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos para crer e viver.
No Tópico 4, estudaremos a dimensão sociocultural da ação. O conteúdo
de nossa perícope oferece bastante material para reflexão sobre essa dimensão,
por isso dediquei atenção especial, bem como forneci a você algumas informa-
ções históricas necessárias.
Por fim, no último tópico exemplifiquei como fazer a análise da dimensão
missional da ação, para estimular você a sempre pensar em sua própria forma
de reler o texto bíblico.

Introdução
118 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Iniciamos com o texto original e sua tradução.

TEXTO E TRADUÇÃO

Καὶ ἐξῆλθεν πάλιν παρὰ τὴν θάλασσαν· καὶ πᾶς ὁ ὄχλος ἤρχετο πρὸς αὐτόν, καὶ
ἐδίδασκεν αὐτούς. 14 καὶ παράγων εἶδεν Λευὶν τὸν τοῦ Ἁλφαίου καθήμενον ἐπὶ
τὸ τελώνιον, καὶ λέγει αὐτῷ, Ἀκολούθει μοι. καὶ ἀναστὰς ἠκολούθησεν αὐτῷ.
15
Καὶ γίνεται κατακεῖσθαι αὐτὸν ἐν τῇ οἰκίᾳ αὐτοῦ, καὶ πολλοὶ τελῶναι καὶ
ἁμαρτωλοὶ συνανέκειντο τῷ Ἰησοῦ καὶ τοῖς μαθηταῖς αὐτοῦ· ἦσαν γὰρ πολλοὶ
καὶ ἠκολούθουν αὐτῷ. 16 καὶ οἱ γραμματεῖς τῶν Φαρισαίων ἰδόντες ὅτι ἐσθίει
μετὰ τῶν ἁμαρτωλῶν καὶ τελωνῶν ἔλεγον τοῖς μαθηταῖς αὐτοῦ, Ὅτι μετὰ τῶν
τελωνῶν καὶ ἁμαρτωλῶν ἐσθίει; 17 καὶ ἀκούσας ὁ Ἰησοῦς λέγει αὐτοῖς [ὅτι] Οὐ
χρείαν ἔχουσιν οἱ ἰσχύοντες ἰατροῦ ἀλλ᾽ οἱ κακῶς ἔχοντες· οὐκ ἦλθον καλέσαι
δικαίους ἀλλὰ ἁμαρτωλούς.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


119

Tradução:
E ele foi novamente para a beira do mar e toda a multidão ia a seu encontro
e ele a ensinava. Enquanto caminhava, viu Levi, o filho de Alfeu, sentado na cole-
toria de impostos, e falou com ele: “Segue-me”. Ele levantou-se e o seguiu. Mais
tarde, Jesus estava jantando na casa dele e muitos publicanos e judeus pecado-
res jantavam com Jesus e seus discípulos, pois eram muitos dentre eles os que o
seguiam. Então os escribas dos fariseus, vendo que comia com judeus pecado-
res e publicanos, diziam aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos
e judeus pecadores?” Ora, ouvindo Jesus a pergunta, responde a eles: “as pessoas
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fortes não têm necessidade de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar jus-
tos, mas pecadores”.
Notas:
(1) Levi: poucos autores preferem ver aqui o termo ‘levita’ ao invés do nome
próprio Levi, mas se baseiam em um eventual texto original jamais descoberto.
Como, porém, um levita teria se tornado publicano é algo que enseja muita espe-
culação. Como veremos mais adiante, outra razão para questionar o nome, aqui,
é a confusão entre este nome e os de Mateus e Tiago.
(2) A expressão ‘judeus pecadores’ visa fornecer uma especificidade mais
adequada ao termo ‘hamartoloi’ usado na perícope, três vezes no sentido dado ao
termo pelos fariseus e uma vez em sentido genérico construído na fala de Jesus
– por isso, nessa quarta vez em que a palavra ocorre, não uso a palavra ‘judeus’
para especificar o sentido.
(3) Fortes, ao invés de ‘sãos’ como é costumeiro nas versões atuais. O termo
grego usado por Marcos é diferente do usado por Lucas (hygiainontes), que
significa, sim, ‘sãos’. O verbo usado por Marcos isxyontes significa ‘forte’, ‘pode-
roso’ e é da mesma raiz do adjetivo usado em Mc 3,27 para se referir a Satanás.
Como veremos na análise da dimensão teológica da ação, esse particípio verbal
é um desencadeador de isotopias, pois vincula o dito de Jesus (que usa linguagem
médica) ao âmbito político e ao religioso. ( tradução do autor).

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


120 UNIDADE III

DELIMITAÇÃO, SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO

Nossa perícope faz parte de uma seção de polêmicas entre Jesus e lideranças
judaicas, que vai de 2,1 a 3,6. A análise dos elementos que definem sobre a deli-
mitação de perícopes nos mostra que a seção é composta por cinco perícopes:
2,1-12.13-17.18-22.23-28 e 3,1-6. As principais marcas de demarcação das perí-
copes são espaciais, temáticas e de personagens.

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Que tal você mesmo verificar se a delimitação já apresentada é adequada?
Análise os elementos delimitadores no texto de Marcos e, caso você veja
uma divisão diferente, compartilhe conosco no ambiente virtual.

Em termos de segmentação e estruturação, temos quatro segmentos estrutura-


dos em forma quiástica não-concêntrica:
(A) E ele foi novamente para a beira do mar e toda a multidão ia a seu encon-
tro e ele a ensinava.
(B) Enquanto caminhava, viu Levi, o filho de Alfeu, sentado na coletoria de
impostos, e falou com ele: “Segue-me”. Ele se levantou e o seguiu. Mais tarde,
Jesus estava jantando na casa dele e muitos publicanos e judeus pecadores janta-
vam com Jesus e seus discípulos, pois eram muitos dentre eles os que o seguiam.
(B’) Então os escribas dos fariseus, vendo que comia com judeus pecado-
res e publicanos, diziam aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos
e judeus pecadores?”
(A’) Ora, ouvindo Jesus a pergunta, responde a eles: “as pessoas fortes não têm
necessidade de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar justos, mas pecadores”.
Os segmentos externos estão unidos em torno do ensino, mas de forma
antitética: em (A), a multidão ia ao encontro de Jesus para aprender Dele e Ele
a ensinava; em (A’), Jesus responde à objeção dos fariseus e os ensina, embora
eles não quisessem aprender. Os segmentos internos também são formulados

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


121

em um paralelismo antitético ao redor do tema dos publicanos e pecadores: em


(B), Jesus chama um publicano para ser seu discípulo e ele O segue, de modo
que Jesus janta com Levi e outros publicanos que também O seguem; em (B’),
os escribas dos fariseus questionam a legitimidade de um pretendente a Messias
participar da comunhão à mesa com publicanos e pecadores que eram conside-
rados impuros em alto grau.
No conjunto da perícope, temos uma polêmica que gira ao redor da identi-
dade de Jesus e dos demais personagens do texto: (a) a multidão, personagem que
aprende de Jesus, mas não é caracterizada como seguidora de Jesus; (b) Levi e os
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discípulos de Jesus, que O seguiam em resposta ao seu chamado (convocação);


(c) publicanos e pecadores que seguiam a Jesus, mas não haviam sido chamados
por ele; (d) os escribas dos fariseus que são caracterizados como adversários de
Jesus; e (e) Jesus, que ensina indistintamente a todos os grupos sociais em Israel,
mas convoca um grupo específico de discípulos e não rejeita seguidores que não
foram diretamente chamados por Ele.
Quando situamos essa perícope na seção de que ela faz parte, encontramos
a seguinte situação:
* A seção é estruturada de modo quiástico concêntrico:
(A) 2,1-12: o perdão e a cura do paralítico;
(B) 2,13-17: a refeição com ‘doentes’;
(C) 2,18-22: vinhos e odres;
(B’) 2,23-28: Jesus e os discípulos colhem espigas no sábado;
(A’) 3,1-6: a cura de um deficiente físico na sinagoga.
* Todas as perícopes pertencem ao gênero textual da polêmica, que os críti-
cos da forma costumam chamar de apotegmas (palavra lapidar, aforismo) – um
debate que se encerra com uma afirmação que resolve a discussão. Nos segmentos
externos, temos relatos de cura (em uma casa, em uma sinagoga) de pessoas con-
sideradas impuras pelo Judaísmo Oficial; nos segmentos internos, temos relatos
de Jesus e seus discípulos praticando atos impuros (comer com pessoas impuras,
trabalhar no sábado), enquanto na seção central, temos uma explicação teológica
das ações de Jesus. Por um lado, a seção central é a chave para entender a iden-
tidade messiânica de Jesus; por outro, a sequência das polêmicas promove um
crescimento da rejeição de Jesus pelo Judaísmo Oficial, que culmina na decisão

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


122 UNIDADE III

de matar a Jesus. Por sua vez, a seção tem um papel importante no Evangelho de
Marcos, ao estabelecer os termos do confronto entre Jesus e o Judaísmo Oficial,
antecipando prolepticamente a atitude das autoridades que decidem matar Jesus
e apontando para a atitude de Jesus diante da ameaça.

O CONTEXTO DE MARCOS

Quando estudamos os Evangelhos, a questão do contexto é dual. Por um lado,

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a forma mais comum de situar o texto no contexto é a que parte da época do
livro propriamente dito. Por outro, é possível, porém, mediante uma reconstru-
ção histórico-crítica, tentar situar cada perícope na época do ministério de Jesus
(cerca de 40 anos antes da escrita do Evangelho). Seguirei o procedimento mais
comum e discutiremos o contexto do Evangelho de Marcos e não o contexto da
época de Jesus. Consequentemente, para uma visão geral da realidade da época,
devemos levar em consideração todo o livro e não apenas nossa perícope que ser-
virá, principalmente, de guia para a reconstrução do contexto propriamente dito.
Durante mais de um século, a pesquisa histórica sobre o Evangelho de Marcos
defendia, de modo praticamente unânime, a datação do Evangelho após o ano 70
d.C. (data da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos em resposta à
revolta judaica). Hoje em dia, ainda é a tese predominante, embora um número
maior de estudiosos defenda a possibilidade de uma data bem mais recuada. A
maioria coloca o Evangelho entre 65 e 75 d.C., mas alguns recuam até os anos 50
d.C., em função da descoberta de fragmentos de manuscritos que parecem con-
ter trechos do Evangelho. Podemos trabalhar seguramente com uma datação nas
décadas de 60-70 d.C. para entendermos o mundo (a realidade) externa ao livro.
Quanto às comunidades às quais Marcos endereçou seu Evangelho, não há
consenso. Poucos admitem a opinião do bispo Papias (HIERÁPOLIS, c. 120-130
d.C.) que, baseado em um testemunho de um presbítero chamado João, defen-
deu que Marcos escreveu seu evangelho em Roma como intérprete de Pedro.
O que João disse, porém, foi apenas que Marcos teria escrito o Evangelho em
Roma, não que o teria escrito para as igrejas de Roma. O estudo do Evangelho
não oferece material suficiente para alcançarmos um consenso seguro. Pode-se

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


123

afirmar, com razoável certeza, que Marcos foi escrito para comunidades cristãs
predominantemente gentílicas e, com boa probabilidade, de regiões ocidentais
do Império Romano.
Mais segura é a relação entre Marcos e os demais Evangelhos. É consenso,
praticamente unânime, de que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser escrito. É,
então, o inaugurador desse novo gênero textual que conhecemos como Evangelho.
Cabe, portanto, refletir sobre o gênero e verificar o que ele nos pode dizer sobre
o contexto da obra marcana. Porém, como analisaremos o gênero Evangelho na
análise do cronotopo em Marcos (veja, mais adiante), apenas indico, aqui, que
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o gênero Evangelho funciona, predominantemente, de modo didático, de modo


que faz destacar a comunidade de discípulos de Jesus como o objeto primário
da atenção do texto. Assim, para entender o Evangelho de Marcos (e os demais),
precisamos focar no contexto da comunidade que o recebe e tentar entender a
situação que motivou a sua escrita.

14. Em sua própria obra, Papias transmite, ainda, outras interpretações das
palavras do Senhor recebidas de Aristion, mencionado anteriormente, as-
sim como também outras tradições de João, o Presbítero. A elas remetemos
a quantos queiram instruir-se. Agora nos vemos obrigados a acrescentar às
suas palavras, anteriormente citadas, uma tradição acerca de Marcos, o que
escreveu o Evangelho, que vem exposta nos termos seguintes:
15. E o presbítero dizia isto: Marcos, que foi intérprete de Pedro,
pôs por escrito, ainda que não com ordem, o quanto recordava do
que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o Se-
nhor nem o havia seguido, mas, como disse, a Pedro mais tarde, o
qual transmitia seus ensinamentos segundo as necessidades e não
como quem faz uma composição das palavras do Senhor, mas de
tal forma que Marcos em nada se enganou ao escrever algumas
coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma
só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enga-
nar-se nisto o mínimo (EUSÉBIO DE CESARÉIA, 2002, p. 74s.).

Fonte: Eusébio de Cesaréia (2002).

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


124 UNIDADE III

Vistas as coisas desta maneira, a realidade em que o Evangelho foi escrito só pode
ser reconstruída em termos genéricos, como: (a) dominação romana; (b) segunda
ou terceira geração de comunidades cristãs; (c) eventual perseguição contra essas
comunidades; (d) problemas na relação entre cristãos gentios e judeus em geral.
A situação que pode ter motivado a escrita do Evangelho, segundo o conteúdo
do livro, parece ter sido a de problemas com liderança (os discípulos de Jesus
são apresentados, predominantemente, como líderes que falham em entender e
obedecer a Jesus) e com a identidade da comunidade, que somente poderiam ser
resolvidos mediante uma nova apropriação teológica da identidade do Messias

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Jesus e de seus discípulos. Nada mais concreto pode ser afirmado com certeza.
Em relação ao contexto, portanto, podemos afirmar, seguramente, ape-
nas aspectos genéricos: (a) uma teologia narrativa como a de Marcos indica
ouvintes com baixo nível de educação formal – podemos pensar em comunida-
des compostas, predominantemente, por pessoas pobres; (b) se a comunidade
enfrentava problemas de identidade, a solução oferecida parece ser a da reafir-
mação de quem é Jesus, o que indica que, possivelmente, a população da qual
a(s) comunidade(s) marcana(s) fazia(m) parte não aceitava a fé dos membros
da comunidade e a questionava com alguma intensidade – seja por não acei-
tarem os deuses greco-romanos, seja por não serem judeus ortodoxos; (c) se
havia uma crise de liderança, poderia ter sido provocada pela incapacidade dos
líderes enfrentarem os problemas que atacavam a comunidade, ou por falta de
crescimento numérico da comunidade e de sua importância social – em qual-
quer desses casos, o Evangelho reafirma que quem segue a Jesus está sujeito à
perseguição e ao sofrimento, mas que pode contar com o socorro de Deus em
meio à dor, mesmo que o sofrimento não acabe. Em outras palavras, temos um
Evangelho escrito para conforto, encorajamento e capacitação da comunidade
a viver em um mundo hostil à fé cristã.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


125

A PERÍCOPE NO EVANGELHO DE MARCOS

Passemos ao estudo do lugar da perícope no Evangelho.

As conexões intratextuais

Embora devamos aplicar esse princípio a todos os livros bíblicos, o Evangelho de


Marcos, em especial, demanda que cada perícope seja lida à luz de seu lugar no
conjunto da obra. Não é possível compreender nenhuma perícope isoladamente
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e há várias conexões em cada perícope que a relacionam com outras partes do


Evangelho. Vejamos, por exemplo, o olhar de Gnilka à nossa perícope:
[...] Marcos, preocupado em estabelecer uma relação harmônica com
o que virá na sequência, faz com que Jesus saia da casa de Cafarnaum.
Como nos primeiros relatos de chamado (1:16), Jesus caminha às mar-
gens do Mar da Galiléia. Porém, agora, a multidão se aglutina ao seu
redor, já famoso, para ouvir seu ensino. De novo, o ensino não se apre-
senta de modo explícito. A cena do ensino na margem do mar se repete
novamente em 4:1. Podemos questionar se a pregação no mar foi uma
peculiaridade de Jesus. Porém, podemos afirmar que a região em torno
do mar foi seu espaço preferido de atuação. O chamado, agora men-
cionado de Levi, dá a impressão de ter acontecido no caminho do mar
até Cafarnaum. Observa-se o esquema dos relatos de vocação: o olhar
eletivo de Jesus recai sobre Levi, que abandona sua profissão. Atende
imediatamente ao chamado para seguir Jesus (GNILKA, 1999, p. 108).

Vejamos alguns detalhes que Gnilka não explicitou: a expressão ‘de novo’ em
2,13 remonta a 1,16 “caminhando junto ao Mar da Galiléia” e sugere aos lei-
tores e leitoras que espere um chamado de discípulos na sequência (o que de
fato ocorre); a expressão ‘ia até ele’ retoma, com o mesmo verbo, o que é nar-
rado em 1,45 – a multidão que acorre até Jesus após a cura de um leproso - e
faz a conexão com 2,1-12 - que relata a cura de um paralítico . Em ambos os
casos, Jesus cura uma pessoa classificada como impura pelo Judaísmo Oficial).
O verbo ‘a ensinava’ remonta 1,21-22 e é usado várias vezes em Marcos para
caracterizar a atividade de Jesus (4,1.2; 6,2.6.30; a última vez em 14,49) em dife-
rentes lugares – a última vez quando da prisão de Jesus, em que Ele relembra a

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


126 UNIDADE III

seus captores que ensinava constantemente no Templo: “[...] todos os dias eu


estava convosco no templo, ensinando, e não me prendestes; contudo, é para
que se cumpram as Escrituras […]” (14,49).
A ‘multidão’ é um personagem importante no Evangelho: apareceu pela pri-
meira vez em 2,4 e a última vez no capítulo 15, quando participa do julgamento
de Jesus, pedindo a Pilatos que soltasse Barrabás ao invés de Jesus:
[...] mas os sacerdotes incitaram a multidão no sentido de que lhes sol-
tasse, de preferência, Barrabás. Mas Pilatos lhes perguntou: Que farei,
então, deste a quem chamais o rei dos judeus? Eles, porém, clamavam:

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Crucifica-o! Mas Pilatos lhes disse: Que mal fez ele? E eles gritavam
cada vez mais: Crucifica-o! Então, Pilatos, querendo contentar a mul-
tidão, soltou-lhes Barrabás; e, após mandar açoitar a Jesus, entregou-o
para ser crucificado (BÍBLIA, Marcos, 15,11-15).

Nota-se a ambiguidade da popularidade de Jesus: em 2,4 quase não pode fazer


seu trabalho porque a multidão se aglomera ao redor da casa em que está; aqui,
em 2,13, vai ao seu encontro e ele a ensina (padrão que se repete ao longo do
livro); finalmente, quando tem de optar entre a messianidade de Jesus (amor e
compaixão), prefere a messianidade de Barrabás (violência e guerra), se aliando
às autoridades judaicas que a oprimem.
O verbo ‘viu (Levi)’ ocorre mais 4 vezes na mesma forma (eiden – aoristo
indicativo ativo, 3ª pessoa do singular): em 1,10, Jesus viu os céus se abrirem e
o Espírito descer sobre ele (consciência de sua própria vocação por Deus); em
1,16.19, também caminhando à beira-mar, Jesus viu Simão e André, Tiago e seu
irmão e os chamou; em 6,34, ao desembarcar na margem do mar, viu a multi-
dão e se compadeceu dela ‘porque eram como ovelhas que não têm pastor’. O
que Gnilka chama de ‘olhar eletivo’ de Jesus é, ainda, mais do que ‘eletivo’, é o
olhar compassivo e solidário (voltaremos a isto na análise da dimensão teoló-
gica da ação).
A primeira vez que Jesus vai à casa de discípulos é narrada em 1,29 que, ao
sair da sinagoga, ele vai com Tiago e João à casa de Simão e André. Mais quatro
vezes se narra que Jesus esteve em casa, sempre com os discípulos: 7,24; 9,33;
10,10; 14,3. Na última vez, Jesus é ‘preparado’ prolepticamente (antecipada-
mente) para seu enterro.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


127

[...] estando ele em Betânia, reclinado à mesa, em casa de Simão, o le-


proso, veio uma mulher trazendo um vaso de alabastro com preciosís-
simo perfume de nardo puro; e, quebrando o alabastro, derramou o
bálsamo sobre a cabeça de Jesus (BÍBLIA, Marcos, 14,3).

Chama a atenção, por outro lado, o fato de que ‘publicanos e judeus pecadores’
só apareçam aqui em todo o Evangelho. Entretanto, embora apareçam só aqui,
eles são parte do conjunto de pessoas impuras aos olhos do Judaísmo Oficial,
e as pessoas impuras são alvo privilegiado da compaixão de Jesus em todo o
Evangelho. De fato, os primeiros discípulos que ele chama (1,16ss) eram pes-
cadores no Mar da Galiléia (impuros); o primeiro ‘milagre’ público de Jesus é a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

expulsão de um demônio em uma sinagoga; depois, a sogra de Simão, e a cura


de um leproso (1,21-45) – relatos separados pelo resumo: “e ele curou muitos
doentes de toda sorte de enfermidades; também expeliu muitos demônios, não
lhes permitindo que falassem, porque sabiam quem ele era” (1,34).
Os ‘escribas dos fariseus’ personagens constantes do Evangelho, sempre em
confronto com Jesus. Aparecem 21 vezes no Evangelho e desempenham papel
crucial nos anúncios de Jesus sobre sua própria crucificação:
[...] então, começou ele a ensinar-lhes que era necessário que o Filho
do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos
principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que, depois de três
dias, ressuscitasse (BÍBLIA, Marcos, 8,31).

Eles representam o confronto entre a mensagem de Jesus e a teologia da Torá,


assim como os sacerdotes e o Sinédrio representam a mesma teologia da Torá
sob outro ponto de vista. O confronto constante de Jesus com o Judaísmo Oficial
é uma das marcas de sua identidade messiânica.
Finalmente, a palavra ‘pecadores’, sozinha, em 2,17 só é usada mais duas
vezes no Evangelho: uma Jesus se refere à geração de seu tempo como uma gera-
ção ‘pecadora’ (8,38); na outra, ele informa aos discípulos que será entregue às
mãos dos ‘pecadores’ (14,1). Quando vinculamos 2,17 com 14,1, percebemos
a profunda ironia do dito de Jesus aos escribas “não vim chamar justos, mas
pecadores” – os escribas que se consideravam justos pertencem, de fato, aos
‘pecadores’, assim como toda a geração da época de Jesus. É claro que, na men-
sagem de Jesus, o termo ‘pecador’ recebe outro significado do que na pregação
dos fariseus e saduceus. Pecadores são todas as pessoas que estão fora do Reino

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


128 UNIDADE III

de Deus, mas não são rejeitadas por Deus, pelo contrário, todas são alvo do amor
divino e foi por eles que Jesus veio como Messias.

Cronotopo no Evangelho de Marcos

Um segundo detalhe a que devemos prestar atenção na leitura do Evangelho


de Marcos se refere aos lugares e tempos da ação. De fato, esta é uma dimen-
são fundamental em todos os textos narrativos. Nesse Evangelho, mais do que
em qualquer outro, a espacialidade é uma chave de leitura indispensável. Nesse

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sentido, uma ferramenta interpretativa importante é o conceito bakhtiniano de
cronotopo (neologismo que junta cronos (tempo) + topos (lugar)). Vale a pena
uma longa citação, aqui, de texto que publiquei em obra coletiva:
[...] gostaria de destacar, nesta seção, as principais características do con-
ceito de cronotopo, trazendo ao máximo à luz as próprias descrições
bakhtinianas. Em primeiro lugar, o cronotopo é uma categoria simulta-
neamente conteudística e formal: “à interligação fundamental das rela-
ções temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, cha-
maremos cronotopo (que significa tempo-espaço). [...] nele é importante
a expressão de indissolubilidade de espaço e de tempo (tempo como a
quarta dimensão do espaço). Entendemos o cronotopo como uma cate-
goria conteudístico-formal da literatura (aqui não relacionamos o crono-
topo com outras esferas da cultura) (BAKHTIN, 1993, p. 211).

O cronotopo é uma categoria que visa explicar a hibridização, ou melhor, a sin-


cretização de tempo e espaço na literatura:
[...] no cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais
e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo conden-
sa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço in-
tensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história.
Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de
sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão
de sinais caracterizam o cronotopo artístico (BAKHTIN, 1993, p. 128).

Podemos constatar que, embora essa fusão seja típica do texto literário ou artís-
tico, na língua cotidiana também se efetuam os cruzamentos e fusões entre tempo
e espaço, de modo que o cronotopo literário seja uma expressão mimética da rea-
lidade experimentada e significada pelos seres humanos por meio da linguagem.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


129

Uma das principais funções literárias do cronotopo é a gestação do gênero,


sua especificação e distinção dos demais gêneros:
[...] o cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros na
literatura. Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de
gênero são determinadas justamente pelo cronotopo, sendo que em li-
teratura o princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo
como categoria conteudístico-formal determina (em medida significa-
tiva) também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sem-
pre é fundamentalmente cronotópica (BAKHTIN, 1993, p. 212).

Dois comentários são pertinentes aqui: (a) nem sempre o tempo é o princípio
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

condutor do cronotopo, há exceções à regra, não só na literatura antiga. Por


exemplo, no livro de Isaías (Bíblia Hebraica) e no Evangelho de Marcos, o prin-
cípio organizador do cronotopo é o espaço; (b) embora não traga a personagem
para o conceito do cronotopo, Bakhtin percebe o papel do cronotopo na cons-
tituição das personagens, a quem ele nomeia indivíduo na citação anterior, cuja
imagem é sempre cronotópica.
Além de gestar o gênero e estabelecer as suas diferenciações, o cronotopo,
segundo Bakhtin, possui uma função semântica fundamental na literatura: ele é
o eixo organizador dos sentidos oferecidos pela obra aos seus leitores.
Em que reside o significado dos cronotopos analisados por nós? Em
primeiro lugar, é evidente seu significado temático. Eles são os cen-
tros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do ro-
mance. É no cronotopo que os nós do enredo são feitos e desfeitos.
Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado principal
gerador do enredo (BAKHTIN, 1993, p. 355).

Aqui, encontramos mais um ponto em comum entre o conceito de cronotopo e a


descrição greimasiana do texto figurativo. Na linguagem da semiótica, as figuras reco-
brem os temas; os percursos figurativos nos textos concretos ocultam e revelam, ao
mesmo tempo, os temas ou significados ofertados ao leitor. Na descrição bakhtiniana:
[...] ao mesmo tempo salta aos olhos o significado figurativo dos crono-
topos. Neles o tempo adquire caráter sensivelmente concreto; no cro-
notopo os acontecimentos do enredo se concretizam, ganham corpo e
enchem-se de sangue. [...] Isso graças à condensação e concretização
espaciais dos índices do tempo – tempo da vida humana, tempo histó-
rico – em regiões definidas do espaço. [...] Desta forma, o cronotopo,
como materialização privilegiada do tempo no espaço, é o centro da

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


130 UNIDADE III

concretização figurativa, da encarnação do romance inteiro. Todos os


elementos abstratos do romance – as generalizações filosóficas e so-
ciais, as ideias, as análises das causas e dos efeitos, etc. – gravitam ao
redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne e de sangue,
se iniciam no caráter imagístico da arte literária. Este é o significado
figurativo do cronotopo (BAKHTIN, 1993, p. 355s.).

Quando se trata da análise dos cronotopos de obras específicas, Bakhtin privi-


legia a descrição dos mega-cronotopos, por assim dizer:
[...] aqui nós só falamos dos cronotopos grandes, fundamentais, que
englobam tudo. Porém, cada um destes cronotopos pode incluir em

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
si uma quantidade ilimitada de pequenos cronotopos; pois cada tema
possui o seu próprio cronotopo, sobre o que já falamos. Nos limites
de uma única obra e da criação de um único autor, observamos uma
grande quantidade de cronotopos e as suas inter-relações complexas
e específicas da obra e do autor, sendo que um deles é frequentemen-
te englobante ou dominante. [...] Os cronotopos podem se incorporar
um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, opor-se
ou se encontrar nas inter-relações mais complexas. Estas inter-relações
entre os cronotopos já não podem surgir em nenhum dos cronotopos
isolados que se inter-relacionam. O seu caráter geral é dialógico (na
concepção ampla do termo) (BAKHTIN, 1993, p. 357).

Esse caráter dialógico é mais bem descrito a seguir:


[...] a obra e o mundo nela representado penetram no mundo real enri-
quecendo-o, e o mundo real penetra na obra e no mundo representado,
tanto no processo da sua criação como no processo subsequente da
vida, numa constante renovação da obra e numa percepção criativa dos
ouvintes-leitores. Esse processo de troca é sem dúvida cronotópico por
si só: ele se realiza principalmente num mundo social que se desenvol-
ve historicamente, mas também sem se separar do espaço histórico em
mutação. Pode-se mesmo falar de um cronotopo criativo particular, no
qual ocorre essa troca da obra com a vida e se realiza a vida particular
de uma obra (BAKHTIN, 1993, p. 358s.).

Na terminologia semiótica greimasiana, essa característica do cronotopo é atribuída


ao contrato fiduciário (GREIMAS & COURTÈS, 2008) (ZABATIERO, 2014, p. 48-49).
Do ponto de vista metodológico, os seguintes passos podem ser configura-
dos a partir do conceito de cronotopo:
1. Buscar a fusão entre tempo e espaço no texto;

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


131

2. Notar os cronotopos do texto como um todo e suas inter-relações;


3. Verificar a contribuição do cronotopo para a construção do gênero;
4. Verificar como o cronotopo determina a imagem do indivíduo;
5. Verificar como o enredo é constituído a partir do cronotopo;
6. Verificar como, a partir do cronotopo, as temáticas do texto são constituídas;

7. Verificar, enfim, como, a partir do cronotopo, chegamos ao contrato de


veridicção.
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Infelizmente, não temos ‘espaço’ para fazer a análise dos cronotopos do Evangelho
de Marcos como um todo. Ao longo dos diversos ciclos da Fase Final, retomare-
mos alguns desses aspectos metodológicos suscitados pelo cronotopo. Cabe, pelo
menos, apresentar uma hipótese preliminar sobre o gênero Evangelho e sobre a
identidade de Jesus em sua relação com os cronotopos marcanos.
Temporalmente, a atividade de Jesus é narrada sempre em um dinamismo
intenso (marcado, principalmente, pelo uso do advérbio ’eythys (imediatamente,
logo, rapidamente), desacelerando, porém, a partir da viagem final de Jesus a
Jerusalém (a partir de 8,27), com o clímax de desaceleração na parte final do
Evangelho, o qual narra a prisão, julgamento, execução e ressurreição de Jesus
(caps. 1—16). Espacialmente, a atividade de Jesus é narrada em diferentes luga-
res ao mesmo ritmo da temporalidade – mar, cidades, casas, deserto, campos
abertos, estrada etc. Há uma concentração espacial também na segunda parte
do Evangelho, iniciando com a jornada final a Jerusalém, (8-11), a atividade de
Jesus em Jerusalém antes da prisão (11-13) e a ‘paixão’ de Jesus (14-16). Podemos
notar uma similaridade com os poemas do Escravo de YHWH em Isaías 42; 49;
50 e 53, que também apresentam uma espécie de biografia do Escravo que se
concentra sobre sua rejeição, prisão e execução (52,13-53,12).
Do ponto de vista do gênero textual, podemos afirmar (e vários autores já o
fizeram) que o Evangelho é um gênero narrativo cujo foco é a ‘paixão’ do Messias,
precedida de uma ‘longa introdução’ (SCHREINER & DAUTZENBERG, 2008,
p. 242). Trata-se, primariamente, de uma narrativa teológica sobre a identidade
do Messias Jesus com finalidade edificante e evangelística (anunciar a boa-
-nova). O gênero mais próximo do de Marcos, na literatura da época, é o das

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


132 UNIDADE III

Vidas – presente tanto no mundo gentílico como no judaico (Vida de Moisés, de


Filo; Vidas dos Profetas, anônimo), que aproxima o Evangelho das Bioi, mas as
diferenças são significativas, especialmente no que tange à concentração sobre a
paixão. Podemos notar a influência dos poemas do Escravo de YHWH (Is 42; 59;
50; 53) na construção da identidade de Jesus e na própria construção do enredo
do Evangelho. Assim, poderíamos dizer que o gênero ‘evangelho’ é uma biogra-
fia ao reverso – focada na morte e não na ‘vida’ por assim dizer.

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A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

Pessoas:
Ele (Jesus): ‘foi novamente para a beira do mar’, ‘toda a multidão ia a seu
encontro’, ‘a ensinava’, ‘enquanto caminhava viu Levi’, ‘falou com ele: Segue-me’,
‘mais tarde estava jantando na casa dele’ ‘muitos publicanos e judeus pecado-
res jantaram com Jesus e seus discípulos’, ‘pois eram muitos dentre eles os que
o seguiam’, (fariseus falam sobre ele) ‘porque ele come com publicanos e judeus
pecadores’, ‘ouvindo Jesus respondeu a eles: “as pessoas [...] pecadores’

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


133

Multidão: ‘ia a seu encontro’ e ‘ele a ensinava’;


Levi: o filho de Alfeu, sentado na coletoria, ‘jesus falou com ele [...]’ ‘levan-
tou-se e o seguiu’, ‘mais tarde Jesus estava jantando na casa dele’;
Publicanos e judeus pecadores: ‘muitos jantaram com Jesus e seus discípu-
los’ ‘eram muitos dentre eles os que o seguiam’ (Então os escribas dos fariseus
vendo que comia com judeus pecadores e publicanos [...]);
Discípulos de Jesus: ‘jantavam com Jesus e seus discípulos’, ‘os escribas dos
fariseus [...] disseram aos seus discípulos’;
Escribas dos fariseus: vendo que comia com judeus pecadores e publicanos,
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disseram aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos e judeus pecado-
res?” Ora, ouvindo Jesus a pergunta, respondeu a eles: “as pessoas fortes não têm
necessidade de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar justos, mas pecadores”.
Relações pessoais: Jesus é o centro da perícope, em relação a ele:
(a) multidão e ‘muitos dentre publicanos e judeus pecadores’ ia a seu encon-
tro, o seguiam;
(b) Levi é chamado por Jesus e passa a segui-lo. Oferece-lhe um jantar em
sua casa e leva ao jantar seus amigos (publicanos e judeus pecadores);
(c) os discípulos de Jesus não agem, aparecem como personagens ‘passivos’:
estavam com Jesus no jantar, ouviram a pergunta dos fariseus;
(d) os escribas dos fariseus perseguem Jesus e o questionam a seus discípu-
los (não diretamente a ele);
(e) Jesus: ensinava a multidão, chamava discípulos, jantava com pessoas impu-
ras, argumentava com os escribas dos fariseus, ensinava quem ele era – sua missão.
Temos, em síntese, atração e repulsa em relação a Jesus. No campo da atra-
ção, temos seguidores distantes (multidão), próximos (discípulos e Levi) e mais
ou menos próximos (publicanos e judeus pecadores). No campo da repulsa estão
os escribas dos fariseus (a religião oficial). A perícope convida seus leitores e lei-
toras a se identificar com Jesus, estabelecendo um efeito intenso de subjetividade.
Espaço:
Beira do Mar (toda a multidão ia a seu encontro);
Enquanto caminhava, viu [...] sentado na coletoria de impostos;
Ele (Levi) se levantou e o seguiu;
Muitos dentre eles (publicanos e judeus pecadores) o seguiam;

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


134 UNIDADE III

Casa dele;
Eu não vim;
Relações espaciais: (1) Jesus viajava e caminhava ensinando e chamando
discípulos; (2) Jesus deixa as pessoas se aproximarem e se aproxima delas, vai
e é seguido, come com pessoas impuras na casa de um seguidor; (3) afirma sua
missão como movimento “Eu não vim [...]”; (4) há um movimento do regional
(mar) para o local (coletoria, casa) e para o universal (‘vim para [...]’), do espaço
público para o privado e novamente para o público; (5) no âmbito individual,
temos Levi sentado – levantando-se – seguindo Jesus.

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Em síntese: Jesus caminha por locais impuros (até que ponto o ‘mar’ evoca
impureza ou inimizade contra Deus é algo a ser definido mais adiante) e é seguido
por pessoas impuras, quebra as regras de pureza ao ter comunhão de mesa com
pessoas impuras e afirma que sua missão é exatamente em prol dessas pessoas.
Há um contraste entre o espaço público e o privado, mas nesses dois espaços,
Jesus é o mesmo e permanece realizando sua missão. A cena, como um todo,
aponta para a universalidade do chamado de Jesus, que não aceita as fronteiras
definidas pelos sistemas classificatórios humanos.
Tempo:
Foi (pretérito perfeito) novamente;
Ia [...] ele a ensinava (pretérito imperfeito);
Viu (levi), falou [...]levantou-se [...] o seguiu (pretérito perfeito);
Segue-me (imperativo);
Mais tarde;
Estava jantando (locução pretérito imperfeito mais gerúndio);
Jantavam com Jesus [...] eram [...] seguiam (pretérito imperfeito);
Vendo que comia (gerúndio mais pretérito imperfeito) [...] diziam (preté-
rito perfeito) [...] come (presente);
Ouvindo (gerúndio) [...] responde (presente do indicativo);
Fortes não tem (presente indicativo);
Vim (pretérito perfeito) chamar (infinitivo).
Relações:
(1) Ações no pretérito perfeito e aspecto completo são as que estabelecem
o cenário: foi para o mar [...] viu e chamou Levi – com a intercalação de um

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


135

imperativo que é obedecido imediatamente. Além destas, somente Levi é sujeito


de verbos com aspecto pontual ‘terminativo’: levantou-se e o seguiu, o que indica
a radicalidade de sua resposta ao chamado de Jesus. Representa o que chama-
mos de conversão – uma radical mudança no projeto de vida da pessoa: Levi
deixa de ser ‘pecador’ e passa a ser ‘seguidor de Jesus’.
(2) Toda a ação é descrita em aspecto durativo, com pretéritos imperfeitos e
presentes (poucos gerúndios), indicando o caráter dinâmico da narrativa, a ati-
vidade constante de Jesus.
(3) Um último verbo no pretérito perfeito (aoristo no grego) se refere à mis-
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são de Jesus: “vim”.


Síntese: o dinamismo da ação de Jesus é ressaltado pela frequência de verbos
no aspecto durativo (mesmo onde caberiam aoristos ou pretéritos perfeitos). Os
verbos em aspecto pontual estabelecem o cenário para a ação de Jesus e marcam
a sua identidade como enviado de Deus (vim). Há uma demarcação de tempo-
ralidade da atividade e outra do descanso (jantar), mas mesmo no ‘descanso’, a
narrativa é profusa nos aspectos durativos.
Como uma síntese geral, encontramos a identidade de Jesus definida pelo
dinamismo de suas ações e seu comprometimento com as pessoas impuras que O
seguem ou buscam aprender com Ele. O chamado de Levi (um publicano) ressalta
como evidência climática desse compromisso de Jesus com as pessoas margina-
lizadas pela religião oficial de sua época. Ao assumir a ‘comunhão de mesa’ com
‘publicanos e judeus pecadores’ Jesus enfatiza seu compromisso e o amor de Deus
pelos rejeitados da religião oficial. Sua missão provoca a reação negativa do Judaísmo
Oficial, mas Jesus não se intimida e se mostra como hábil debatedor.

A criação de novas pessoas que, por sua adesão a Jesus, se libertam de seu
passado e recebem a vida do Espírito, desemboca na formação de uma co-
munidade que é primícias da nova sociedade, ou Reino de Deus.
(Juan Mateos e Fernando Camacho).

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


136 UNIDADE III

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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

Do ponto de vista da organização em percursos, temos, na perícope, duas confi-


gurações figurativas superficiais: as pessoas impuras (multidão, Levi, ‘publicanos
e judeus pecadores’) e as pessoas puras (representadas pelos escribas dos fari-
seus), que gravitam ao redor de Jesus, O buscam, mantêm comunhão com Ele
ou O confrontam. Cabe, então, buscar o conceito abstrato que dá unidade a essas
três configurações, que é a atividade messiânica de Jesus, de modo que temos um
único percurso temático: o da identidade messiânica de Jesus – se configura aqui
como solidariedade com as pessoas impuras e pecadoras e rejeição do sistema clas-
sificatório do Judaísmo Oficial. Para nos situarmos no percurso, cabe uma breve
explicação sobre o sistema classificatório do Judaísmo Oficial (pureza/impureza).
Fundamental para a compreensão do judaísmo oficial e sua rejeição de Jesus,
bem como a sua rejeição por Jesus, é a sua concepção de pureza, presente tanto
entre fariseus como entre saduceus e essênios. A ideia da pureza configurava um
sistema classificatório das coisas e pessoas, e determinava a pertença e a identi-
dade das pessoas ao povo judeu – povo de YHWH. Por um lado, a pureza e a

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


137

impureza eram condições permanentes de certas pessoas; por outro, eram con-
dições transitórias, conforme a obediência ou não a rituais cerimoniais e outras
normas do judaísmo. Várias marcas definiam a pureza ou impureza de uma pessoa.
A primeira marca da pureza era a étnica: eram puras as pessoas em cuja
genealogia não se encontrasse mistura étnica com gentios; dentre estas, eram
mais puras as pessoas que pudessem indicar sua pertença a famílias sacerdotais
e a famílias dirigentes de Israel.
A segunda marca da pureza era a física/sanitária: eram puras as pessoas que
não sofressem de doenças consideradas impuras, como a hanseníase, por exem-
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plo, ou que não tivessem qualquer tipo de deficiência física ou mental.


A terceira marca da pureza era a ritual: eram puras as pessoas que seguiam
adequadamente os diversos rituais cerimoniais da religião judaica centrada no
Templo.
A quarta marca da pureza era a ética: eram puras as pessoas que obedeciam
à Lei de Deus, conforme interpretada pela religião oficial.
A quinta marca da pureza era a econômica: eram puras as pessoas que não
tivessem de viver de profissões consideradas impuras, como pastores de ove-
lhas, publicanos etc.
Tanto para fariseus como para saduceus e essênios, a maioria da população
judaica de seu tempo não conseguia preencher as condições da pureza plena e era
chamada pejorativamente de o povo da terra. Em nossa perícope, certamente, os
publicanos e judeus pecadores correspondem às pessoas impuras no Judaísmo
Oficial, assim como, em tese, a própria multidão. O que mais chama a atenção,
é o nome Levi = levita. Primeiro, não faz sentido um levita exercer a função de
cobrador de impostos; segundo, não se imaginava de um levita a impureza per-
manente de uma profissão impura; terceiro, ressalta sua resposta imediata ao
chamado de Jesus. Nesse sentido, essa perícope é similar à do exorcismo de Jesus
na sinagoga (1,21ss), que joga com a presença da impureza nos espaços de pureza
do Judaísmo oficial – aqui, uma pessoa ‘pura’ pertence à classe das impuras.
A objeção dos escribas dos fariseus representa a objeção do Judaísmo oficial
à messianidade de Jesus: nenhum Messias poderia ser amigo de pessoas impuras
e pecadoras, posto que era exatamente a impureza e o pecado que levaram Israel
ao exílio e à necessidade de um Messias para restaurar a pureza e a obediência. A

A Dimensão Teológica da Ação


138 UNIDADE III

solidariedade (compaixão) de Jesus pelos desprezados do Judaísmo Oficial revela


a verdadeira identidade messiânica: o Messias não vem em socorro dos ‘justos’,
mas dos ‘pecadores’, a fim de que se tornem justos a partir da fidelidade do pró-
prio Messias (tema teológico que Paulo desenvolveu com maestria). Evidente,
aqui, a ligação da identidade de Jesus com o Escravo dos poemas de Isaías.
Qual é a temática profunda que dá unidade a esssa perícope? A representa-
ção na forma do quadrado semiótico seria:
INCLUSÃO EXCLUSÃO
CONDESCENDÊNCIA MARGINALIZAÇÃO

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Em uma linguagem não-formal, o tema dessa perícope é a inclusão das pessoas
que estão proibidas de fazer parte de um determinado grupo. O contrário da
inclusão é a exclusão (a proibição, o interdito), o que se opõe à exclusão é a con-
descendência, a qual não inclui, mas não interdita a pessoa ou grupo – ela pode
‘estar dentro’, mas ‘sem fazer parte’. O oposto da inclusão é a marginalização, a
aceitação de uma pessoa ou grupo, mas sua manutenção na fronteira ‘faz parte
de’, mas não está dentro, ocupa a margem. O movimento da perícope parte da
exclusão como polo disfórico e chega à inclusão como polo eufórico (positivo).

Veja a seguinte descrição:


Sua casa/lar (possessivo ambíguo: de Jesus e de Levi) é figura da nova co-
munidade do Reino (banquete messiânico), composta de dois grupos: o dos
discípulos (é a primeira vez que se usa esta denominação), a quem perten-
cem os primeiros chamados (1:16-21ª), que procediam do Judaísmo (cf. Is
54:13) e o grupo dos outros seguidores, muito numeroso, que não proce-
dem dele (excluídos de Israel). A postura dos comensais (estar recostado,
reclinar-se) é própria dos homens livres.
Fonte: Mateos & Camacho (1974, p. 91).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


139

Do ponto de vista estilístico-argumentativo, podemos assim analisar a dimen-


são teológica da ação:
[...] em sua forma atual, 2:13-17 constitui um pequeno drama em qua-
tro cenas. 1) Jesus ensina a multidão à margem do mar; 2) ele chama
um publicano para ser seu discípulo; 3) come na casa de Levi com um
grupo de publicanos e outros pecadores; 4) Jesus responde à objeção
dos escribas sobre a comunhão à mesa. As cenas estão vinculadas entre
si pelas palavras ‘publicanos’ (arrecadadores de impostos) e ‘pecadores’,
que formam um esquema (como as pétalas de uma margarida):

2:14 sentado na coletoria (de impostos) A


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2:15 publicanos e pecadores reclinados com Jesus AB

2:16a vendo que jesus comia com pecadores e publicanos BA

2:16b Por que come com publicanos e pecadores? AB

2:17 não vim chamar justos, mas pecadores B

O esquema oferece uma linda combinação de repetição e movimento,


e a visão se amplia da perspectiva de um único indivíduo (Levi em sua
coletoria), para a de um grande grupo (os publicanos e pecadores que se
juntam a Jesus para a refeição), até chegar a uma perspectiva universal
(Jesus se abre a todos os pecadores) (MARCUS, 2010, p. 254-55).

O gênero específico dessa perícope é o do apotegma – uma discussão que se


encerra com um dito que estabelece a vitória de um dos contendores no debate,
neste caso, Jesus. Como já vimos, na descrição de Marcus, a sua construção é
bem elaborada e, no conjunto, aponta para uma das peculiaridades da identidade
messiânica de Jesus: sua missão não se dirige aos ‘justos’ (no sentido farisaico
do termo = judeus que cumprem a Torá), mas aos pecadores, tanto no sentido
farisaico (ou dos saduceus): os judeus que não cumprem a Torá ou são impuros;
como no sentido jesuânico: todas as pessoas a quem Deus ama radicalmente.
Com essa nota sobre o amor de Deus, podemos aproveitar e refletir sobre
a dimensão psicossocial da ação, focando na modalização passional de Jesus.
Que paixão de Jesus é expressa nessa perícope? A descrição anterior já aponta o
campo da solidariedade, é preciso confirmar mediante a análise semiótico-nar-
rativa. Temos o sujeito Jesus que entra em conjunção com os objetos ‘multidão’
(ensinando), ‘Levi’ (chamando) e ‘publicanos e judeus pecadores’ (ceando).

A Dimensão Teológica da Ação


140 UNIDADE III

Paralelamente, ele entra em disjunção com os ‘escribas dos fariseus’ e sua rejei-
ção das pessoas impuras. Como nomear essa paixão que vincula o sujeito com
pessoas desprezadas e marginalizadas? Na língua portuguesa temos vários vocá-
bulos, conforme as definições do Dicionário Houaiss:
(a) compaixão: sentimento piedoso exclusivamente humano de simpa-
tia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de
minorá-la; participação espiritual na infelicidade alheia que suscita um
impulso altruísta de ternura para com o sofredor;

(b) comiseração: sentimento de piedade pela infelicidade de outrem;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
compaixão, miseração”; “solidariedade: 1 caráter, condição ou estado de
solidário; 2 jur compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às
outras e cada uma delas a todas; 3 laço ou ligação mútua entre duas ou
muitas coisas ou pessoas, dependentes umas das outras ‹a s. entre o vento
e o moinho› ‹a s. entre a corda e os montanhistas›; 4 sentimento de sim-
patia, ternura ou piedade pelos pobres, pelos desprotegidos, pelos que
sofrem, pelos injustiçados etc.; 5 manifestação desse sentimento, com o
intuito de confortar, consolar, oferecer ajuda etc. ‹levou sua s. aos sobre-
viventes da tragédia›; 6 cooperação ou assistência moral que se manifes-
ta ou testemunha a alguém, em quaisquer circunstâncias (boas ou más)
‹diante dos fatos, não hesitou em dar sua s. ao adversário›”; “solidário: 3
pronto a consolar, apoiar, auxiliar, defender ou acompanhar alguém em
alguma contingência ‹nas horas más, mostrava-se sempre s.›; 4 que sente
do mesmo modo, partilha dos mesmos interesses, opiniões, sentimentos
etc., concordando, dando apoio; irmanado ‹o sindicato dos metalúrgicos
estava s. com os grevistas› (HOUAISS, [2016], on-line)1.

Minha preferência pessoal é pela palavra ‘solidariedade’, que engloba a dimen-


são política de forma mais explícita, mas ‘compaixão’ e ‘comiseração’ também
são boas escolhas para textualizar a paixão de Jesus presente nessa perícope. Isto
sem mencionar a possibilidade de usar ‘amor’. Vale a pena destacar que, mesmo
rejeitando a religião oficial dos fariseus, Jesus não rejeita os ‘fariseus’, nem qual-
quer outro grupo do Judaísmo. Ao definir sua missão como dirigida a ‘pecadores’,
engloba todas as pessoas em sua solidariedade amorosa.
Outra paixão que se pode depreender aqui tem a ver com a missão de Jesus
e está implícita na expressão “eu não vim para [...]”. Implícita, porque o ‘vir’ de
Jesus se deu em resposta ao “enviar” do Pai (não explícito aqui, mas no conjunto
do Evangelho de Marcos). Ora, se Jesus entra em conjunção com o objeto ‘pecado-
res’ em resposta ao mandado do Pai, essa atitude expressa a paixão da fidelidade.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


141

1 característica, atributo do que é fiel, do que demonstra zelo, respeito


quase venerável por alguém ou algo; lealdade ‹f. ao rei› ‹f. à pátria›;
2 constância nos compromissos assumidos com outrem ‹f. partidária›
‹f. a um clube de futebol›; 2.1 compromisso que pressupõe dedicação
amorosa à pessoa com quem se estabeleceu um vínculo afetivo de al-
guma natureza ‹f. conjugal›; 3 p.met. (da acp. 1) característica de um
sentimento que não esmorece com o decorrer do tempo; 4 constância
de hábitos, de atitudes ‹f. da clientela a um estabelecimento comercial›
(HOUAISS, [2016], on-line)1.

No contexto da escrita do Evangelho:


[...] não há dúvida de que nas igrejas gentílicas, entre as quais Marcos
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circulou logo de início, este tipo de história era visto como precedente
para a conclamação e o ajuntamento dos gentios (os quais também eram
considerados pecadores/marginais por muitas autoridades religiosas ju-
daicas), e mostrou que Jesus foi pioneiro nas boas vindas às pessoas ina-
ceitáveis do ponto de vista religioso (HURTADO, 1995, p. 50s.).

Veja como um autor europeu analisa o texto:


[...] o ponto principal, expresso nas palavras de Jesus no verso 17, não
tem uma relação muito estreita com a situação descrita. Certamente,
a sentença foi transmitida originalmente em forma isolada e os versos
15-16 são uma cena criada, pelo que ressalta a aparição, completamen-
te impossível, dos ‘escribas dos fariseus’ e pelo fato de que a pergunta
se faz aos discípulos e seja Jesus quem a responda. A cena do convite
parecia uma situação apropriada, porque o chamado de Jesus se en-
tendia como uma alusão ao convite para se sentar à mesa, e porque o
sentar-se à mesa simboliza a comunhão em geral. Uma sensibilidade
primitiva não captaria o fato de que não era o lugar adequado para o
dito do verso 17. É marca da história da tradição o empenho do copista,
e também de Mateus e Lucas, em apresentar de modo mais compreen-
sível a situação inimaginável dos versos 15-16 de Marcos e, igualmente,
o fato de que Mateus utiliza neste ponto a citação da Escritura que ele
também insere no texto de Marcos em 12:7 (BULTMANN, 2000, p. 78).

Note a mescla de interpretação e análise do texto com o juízo ‘crítico’ sobre a


historicidade do que é narrado. Esse é o raciocínio típico da exegese históri-
co-crítica, o que provoca reações legítimas de praticantes de outros métodos,
pois não são claros os critérios que o crítico usa para definir o que seria ‘possí-
vel’ ou ‘impossível’. Por que seria impossível escribas saberem de um jantar de
Jesus com publicanos? Por que seria impossível que eles falassem com os discí-
pulos e não diretamente com Jesus? Podemos aprender muito com os exegetas

A Dimensão Teológica da Ação


142 UNIDADE III

histórico-críticos, mas é necessário que sejamos críticos, também, em relação


aos modos como a crítica literária e histórica é feita.
Do ponto de vista das relações interdiscursivas, temos, evidentemente, o diá-
logo polêmico com o discurso da pureza/impureza e, de modo mais sutil, (a) o
diálogo polêmico com o discurso do banquete messiânico encontrado em escri-
tos de Qumrã, por exemplo, que aponta para a multiplicação dos pães e para a
Última Ceia no próprio Evangelho de Marcos e (b) o diálogo contratual com os
poemas do Escravo de YHWH em Isaías - diálogo que é mais plenamente perce-
bido no conjunto destas perícopes de confronto (Mc 2,1-3,6) -, nas quais Jesus é,

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pelas autoridades da religião oficial, ‘contado com os transgressores’ (Is 53,12) e, por
isso, se torna alvo do ódio que conduzirá à sua execução pela autoridade imperial.
Essas relações serão retomadas na análise da dimensão sociocultural da ação,
a seguir. (Só para lembrar: relações polêmicas são relações de desacordo, total
ou parcial; relações contratuais são de acordo, parcial ou total).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


143
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A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO

O foco principal do nosso texto recai sobre o que chamamos de a dimensão


sociocultural da ação. Lembro que esta distinção é metodológica, pois na prática
social e no processo de significação, todas as dimensões estão interligadas umas
às outras. Em outras palavras, tratar da dimensão sociocultural da ação não sig-
nifica que abandonamos a dimensão teológica, a espaço-temporal, a psicossocial
ou a missional. Significa que dedicamos maior atenção a essa dimensão da vida
humana, a fim de perceber como o texto dá sentido a ela.
Na estrutura discursiva do texto, a dimensão sociocultural é textualizada
com os dados do sistema pureza/impureza, típico do Judaísmo da época neo-
testamentária. E, aqui, precisamos tomar mais cuidado na interpretação, a
fim de não confundir o contexto do Evangelho com o contexto da atividade
de Jesus. Isto é, embora o texto narre um confronto entre Jesus e os fariseus
por causa de uma refeição com publicanos, se estamos lendo o Evangelho no
contexto da sua escrita, então devemos verificar como, na época da redação
do Evangelho, a temática da pureza nos revela o seu contexto social, ou seja,
trabalharemos essa dimensão em dois níveis complementares: (a) entender o
sistema de pureza no mundo judaico; e (b) entender o papel desse sistema e
dessa perícope no contexto do Evangelho.

A Dimensão Sociocultural da Ação


144 UNIDADE III

Iniciamos com o mundo judaico. Já apresentei os aspectos básicos do dis-


curso da pureza na seção anterior. Cabe, agora, focar no funcionamento social
desse discurso e suas práticas.
Para entender a perícope no contexto marcano, precisamos abstrair do sis-
tema de pureza a sua função sociocultural para entender como, em outro mundo
social, funções e significados similares são construídos. O caminho não é difícil:
sistemas de pureza servem como formas concretas de sistemas de classificação.
Vejamos como, no texto marcano, as práticas sociais da pureza/impureza estão
textualizadas:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(a) multidão (’ochlos). No idioma grego, a palavra usada para o ‘povo’ de
um país, sem acepção valorativa, é laos. Marcos, porém, fala aqui – e em todo o
Evangelho – da multidão que segue a Jesus (como já vimos, também, anterior-
mente, e que pede a libertação de Barrabás ao invés de Jesus). Vejamos como
um teólogo coreano analisa o termo:
[...] em resumo, há vários pontos dignos de nota. Primeiro, Marcos usa
ochlos ao invés de laos a fim de se referir ao minjung, o povo que fora mar-
ginalizado e abandonado. Segundo, ochlos tem diferentes acepções de
sentido em relação a outros grupos. O pobre é ochlos em relação ao rico,
mas, ao mesmo tempo, o publicano é ochlos em relação ao nacionalista
judeu. Terceiro, o ochlos é temido pela classe dirigente, que é poderosa,
mas injusta. Quarto, Jesus assume o lado do ochlos, sem condições. Quin-
to, Jesus não faz dele uma força política leal a si mesmo. Portanto, ele o
trai diante de sua morte, embora o tenha seguido durante seu ministério.
Sexto, Jesus lhe proclama o advento do Reino de Deus. Ele é o Messias
que sofre com o minjung, seu povo, no advento de uma nova era. Sétimo,
Jesus proclama a vinda do Reino de Deus. [...] o Deus apresentado por
Jesus se coloca completa e incondicionalmente ao lado do minjung, e essa
é a vontade de Deus: a vontade de Deus é revelada no evento de Jesus se
solidarizar com o minjung, pois ele o ama (AHN, 2012, p. 103).

Na linguagem dos fariseus, o ’ochlos equivale ao ‘am-ha’aretz (povo da terra, lite-


ralmente), ou seja, aquelas pessoas que não cumprem a Torá (de acordo com o
ensinamento oficial) e, por isso, estão fora do Reino de Deus. Em nossos dias,
usamos a palavra ‘massa’ para indicar a parte do povo de um país que não tem um
projeto político claro e não consegue viver uma vida digna em termos genéricos,
pois é vítima da injustiça social. Ched Myers, exegeta evangélico, norte-ameri-
cano, utiliza o pensamento do teólogo coreano em sua interpretação de Marcos:

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


145

[...] se Byung-mu está certo na identificação que faz do ochlos com o


‘am-ha’aretz da Palestina, então merece particular atenção o fato de os
rabinos ensinarem que os judeus não deviam participar de refeições nem
viajar junto com os ‘am ha’aretz. Não obstante, Marcos apresenta Jesus
fazendo ambas as coisas com o ochlos (ibidem: 150), o que está bem ilus-
trado no chamado do coletor de impostos Levi (MYERS, 1992, p. 199).

No mundo marcano, além dessa forma de classificação tipicamente judaica,


encontramos, também, os sistemas de classificação greco-romanos, baseados
primariamente na etnia, na força militar e no conceito de honra. Para os gregos,
o mundo é dividido em gregos e bárbaros; para os romanos, em cidadãos e não-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

-cidadãos. Em ambos os casos, o ’ochlos equivale ao polo sem valor no sistema


de classificação. Também para a comunidade marcana, a perícope mostra Jesus
como o Messias que se identifica com os sem-valor, com os sem-honra aos olhos
da sociedade em geral e dos governantes em particular. Em outras palavras, o
ministério de Jesus torna inválidos os sistemas classificatórios que nós, pecado-
res, construímos para nos fazer melhores do que outros grupos de pessoas. Se
aplicamos, ao campo religioso, a perícope, também nos informa que o sistema
classificatório, baseado na religião, não tem valor diante de Deus.
Ressalta, ainda, o fato de que Jesus não mobiliza a multidão para agir poli-
ticamente em seu benefício. Nesse sentido, a pregação de Jesus não tinha fins
políticos, ou seja, não visava a tomada do poder político na nação. Por quê?
Porque Jesus visava uma transformação muito mais radical do que a da mudança
de poder nas estruturas políticas. Visava a eliminação dos sistemas classificatórios
que legitimam e perpetuam as injustiças sociais, os preconceitos e as intolerâncias.
Jesus anuncia um novo e único sistema classificatório válido: todos os seres
humanos são pecadores, e Ele veio em benefício de todos os pecadores. Diante
de Deus, a única classificação legítima é: todos os seres humanos são amados
por Deus e, mesmo sendo pecadores, são objeto de sua ação libertadora e sal-
vífica. Sobre as implicações políticas dessa mensagem na atualidade, falaremos
na análise da dimensão missional da ação.
(b) A comunhão. Outro elemento importante da dimensão sociocultural da
perícope é o jantar ou banquete à casa de Levi. Do ponto de vista do judaísmo da
época de Jesus, a refeição de Jesus com os publicanos foi uma afronta, especial-
mente, aos fariseus, por isso escribas fariseus interpelam os discípulos. Segundo

A Dimensão Sociocultural da Ação


146 UNIDADE III

James Wilde, citado por Myers,


[...] [Os fariseus] antes da destruição do Templo constituíam primor-
dialmente uma sociedade para o ensino e o convívio à mesa. A dieta,
o ritual e a orientação legal focalizavam grandemente esse convívio à
mesa, que era o ponto alto de sua vida como grupo. As Casas de Hillel,
Shammai e outros discutiam, às vezes com amargor, as leis do convívio
à mesa, e os respectivos abrandamentos ou rigorismo de vários mestres
despertavam grande interesse (MYERS, 1992, p. 201).

Na Carta aos Gálatas, Paulo menciona uma situação similar que teve de enfren-
tar, em que Pedro, quando da chegada de judeus de Jerusalém, deixou de fazer

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refeições com cristãos gentios (Gl 1,10ss). Em 1 Coríntios 11, Paulo discute o
problema da divisão da comunidade no horário da Ceia, por que os ricos podiam
comer antes dos escravos e dos pobres. Isto é, a questão do convívio à mesa era
fundamental, também, fora do ambiente dos fariseus e judeus em geral. A perí-
cope destaca, portanto, que no âmbito da convivência humana mais íntima, estar
na comunidade de Jesus significa poder participar da mais profunda amizade
com qualquer outro membro da comunidade. Em sua comunhão com publica-
nos e judeus pecadores, Jesus dá exemplo que seus seguidores devem replicar.
Vejamos uma longa citação de comentário de biblistas brasileiros:
[...] pois bem, Jesus não hesita em aproximar-se deles, como fizera com
o leproso e com o paralítico. Ao primeiro, tocara, ao segundo, chamara
de ‘filho’ de casa. A condição de marginalizados e alienados atrai seus
sentimentos de solidariedade e impele-o a romper a barreira entre ‘puro’
e ‘impuro’. Convida-os a segui-lo, Levi está ‘sentado’, na mesma posição
em que estão os escribas em 2:6. Ora, estes é que são os verdadeiros
paralíticos. Enquanto for semelhante a eles e estiver em sua área de in-
fluência, Levi também permanecerá paralisado. Jaz como o paralítico.
Levi é o paralítico e, ao escutar a voz de Jesus, levanta-se para segui-lo.
É sua ressurreição, o mesmo que acontecera à sogra de Simão. Expe-
rimenta o perdão do pecado. É digno de nota que na cena do paralíti-
co, mencionam-se quatro vezes ‘pecados’ e quatro vezes ‘pecadores’ (cf.
2:5.7.9.10.15.16.17). O paralítico (desdobrado nos quatro que o carre-
gam) é a imagem da humanidade pecadora; Levi e os publicanos no ban-
quete em casa são a concretização do que essa imagem prefigura. Levi
ergue-se de sua marginalização, é acolhido na Casa de Israel que se vai
fazendo agora ‘Casa’ de Jesus. Mas tem de romper com o Mar do sistema
no qual está imerso por sua profissão de cobrador de impostos. Lucas
escolha ‘soldados’ e ‘publicanos’ como duas categorias particularmente

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


147

expressivas da condição alienada: são gente do povo, mas funcionam


como sustemtáculo do poder político enquanto seu braço armado e seu
braço financeiro. O anúncio da Boa-Nova os chama a uma ruptura ime-
diata (cf. Lc 3:1-14.19-20) (SOARES & CORREIA JR., 2002, p. 123).

Em outras palavras, além de romper com o sistema classificatório que legitima


a injustiça e a opressão, Jesus rompe, também, com as práticas de convivên-
cia fundados nos sistemas classificatórios. A comunidade marcana foi levada a
aprender, com o exemplo de Jesus, que sua própria vida comunitária deve ser um
protótipo do Reino de Deus, sendo comunidade plenamente aberta e inclusiva,
fiel à mensagem e ao exemplo de Jesus. Esta era a forma política das primei-
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ras comunidades cristãs, não podiam enfrentar militarmente os romanos e não


havia possibilidades de ação política legítima para mudar o governo. Mudam,
então, o seu próprio modo de viver – vivem de tal modo que denunciam, com
sua acolhida a todas as pessoas, a injustiça corporificada nas relações pessoais
do cotidiano. Não se trata, então, de ação macro-política, mas de micro-polí-
tica: subverter as relações de poder vividas no cotidiano, a fim de desestabilizar
e deslegitimar as relações de poder estruturadas no país e na nação.
Vamos fazer uma pausa e refletir sobre o sentido da profissão dos publicanos:
“3. Publicanos. Uma fonte importante de recursos do pequeno reino da
Galiléia eram os postos de alfândega, que cobravam impostos não só nas
fronteiras, mas também na entrada e saída de povoados, nas encruzilha-
das e nas pontes. Para isto era usado o sistema de locação, muito gene-
ralizado na Antiguidade: um nativo arrematava um ou mais postos de
cobrança leiloados, e se comprometia com o pagamento regular de uma
quantia fixa. Para garantir a aquisição deste valor dentro do prazo, além
de um lucro pessoal e um bom pagamento aos empregados nesta ativi-
dade altamente impopular, cobrava-se dos transeuntes sempre mais que
o normalmente estipulado. Estes, então, com razão se sentiam logrados.

Os viajantes tinham de entregar todos os objetos que levavam consigo.


Se o cobrador suspeitava que algo lhe fora oculto, ele tinha o direito de
revistar as cargas e as pessoas. Nem cartas e outros objetos de cunho
pessoal estavam a salvo. Produtos não declarados podiam ser confis-
cados e possivelmente ficavam para o cobrador. Um terceiro que dava
indicações sobre objetos escondidos podia obter uma recompensa. Não
é preciso ter muita fantasia para imaginar o estado de ânimo em uma
coletoria: desconfiança, ódio, brigas, mentiras dos dois lados.

A Dimensão Sociocultural da Ação


148 UNIDADE III

Em torno do grupo de coletores ergueu-se um muro geral de ódio e


desprezo. Todos preferiam ver um coletor pelas costas. Nenhuma pes-
soa decente empregava-se com eles. O escritor pagão Júlio Pollux re-
lacionou 35 termos injuriosos contra locatários de alfândega. Os co-
bradores eram considerados ladrões e assaltantes por definição. Era
permitido enganá-los e perjurar perante eles. Doações de caridade da
parte deles eram recusadas. Eles não podiam comparecer no tribunal
como testemunhas, cargos importantes lhes eram vedados. Suas famí-
lias, que participavam da riqueza roubada, também eram marginaliza-
das. Um fariseu que se tornasse coletor era expulso, e sua esposa podia
divorciar-se dele.
O motivo do desprezo dos cobradores, pelo menos na Galiléia, não era

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a colaboração com as forças de ocupação, já que os romanos tinham
concedido a Herodes Antipas a mesma isenção de impostos e autono-
mia financeira como a seu pai; sua base era unicamente moral, pois a
motivação deste negócio sujo era a ganância desenfreada, o pré-requi-
sito era uma insensibilidade repugnante que não se impressionava nem
com problemas de consciência nem com os preceitos de Deus. Disto
resultava o oposto exato do fariseu, o judeu rigoroso na Torá (cf. Lc
18.9-14). Levamos tudo isto em consideração quando lemos que Jesus
arriscou-se a receber a alcunha de “amigo dos publicanos” e que a lista
dos apóstolos inclui “Mateus, o publicano” (Mt 10.3). Ainda 150 anos
depois o filósofo romano Celso derramou sua zombaria sobre os cris-
tãos e seu Jesus: bandidos, cobradores de impostos e pescadores eram
seus discípulos. (POHL, 1998).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


149

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Se partirmos do tema da inclusão para pensarmos a releitura desta perícope,


podemos perceber diferentes dimensões da ação inclusiva: a micro-política e a
macro-política; a dimensão pessoal; a dimensão teológica ou religiosa. Vejamos
algumas possibilidades de sentido e ação na atualidade a partir da nossa perícope:
Tolerância enquanto respeito. Uma das características da sociedade brasileira
atual é o pluralismo religioso e ético, como é comum nas sociedades contempo-
râneas. A pluralidade acarreta dificuldades de relacionamento, pois diferentes
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estilos de vida, diferentes éticas particulares e diferentes modos religiosos de


ver a vida entram em contato cotidianamente e podem ocorrer confrontos. Em
nossos dias, um fenômeno social tem crescido – o da prática da intolerância reli-
giosa, cometida, primariamente, por ‘evangélicos’ contra pessoas e instituições
de religiões de matriz africana. A atitude de Jesus nos convida a ver as pessoas
de outras religiões ou éticas com um olhar compassivo e solidário. A compaixão
e a solidariedade não combinam com a intolerância e o desrespeito às
crenças e modos de viver de outras pessoas (mesmo quando erra-
das). A atitude de Jesus nos convoca a dar testemunho do Reino
de Deus a todas as pessoas e não a persegui-las, zombar delas ou
atacá-las fisicamente.
A busca por justiça social mediante a ação político-
-democrática. Uma segunda área de sentido e ação que a
perícope nos convida a refletir é a da política. Vimos que
os termos usados por Marcos na perícope possuem uma
dimensão política e vimos que, no mundo marcano, as comu-
nidades messiânicas eram extrema minoria e nada podiam
fazer em termos macro-políticos. Já não é assim conosco.
Cristãos não são minoria no Brasil. Evangélicos representam
quase 30% da população e em uma sociedade democrá-
tica, este é um número muito significativo em termos de
ação política pública.

A Dimensão Missional da Ação


150 UNIDADE III

A igreja enquanto comunidade de inclusão. Outra área de ação que o texto


nos desafia é a da vida da igreja local. Assim como a comunidade de Marcos
foi exortada a ser inclusiva, também nossas igrejas locais são chamadas a serem
comunidades de inclusão, de aceitação de todos os tipos de pecadores, sem acep-
ção de pessoas, sem distinção. Por meio das igrejas locais que testemunham, as
pessoas têm acesso ao Reino de Deus e o Reino de Deus está aberto a todos os
tipos de pecadores. Não cabe a nós criar barreiras para este ou aquele tipo de
pessoas, aceitamos todas as pessoas que se aproximam de Deus; após sua conver-
são, cada um buscará a santificação e a vida de acordo com a vontade de Deus e

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a comunidade será estímulo e exemplo para o crescimento espiritual.
A compaixão/solidariedade como marca da identidade passional cristã.
Se olhamos para a nossa vida pessoal, individual, o que essa perícope nos con-
vida é, principalmente, manifestar a mesma compaixão e solidariedade de Jesus
em nossos relacionamentos cotidianos. Se, como Levi, aceitamos o convite para
seguir a Jesus, se aceitamos ser discípulas e discípulos do Mestre, assumimos o
compromisso de viver como Ele viveu. Nessa perícope, a atitude de Jesus que
nos chama à imitação é a da solidariedade com as pessoas ‘impuras’ e ‘pecadoras’.
Assim como a comunidade é chamada ao testemunho, individualmente somos
todos testemunhas do Senhor.
A hospitalidade. Uma última área de significação contemporânea que
essa perícope traz à mente é a da hospitalidade. Vivemos em um mundo hostil,
violento, em que as relações pessoais são cada vez mais rasas e distantes. Vivemos,
também, em um mundo de muita migração forçada. Muitas pessoas são obriga-
das a deixar sua própria terra natal e buscar alguma dignidade de vida em outros
países – no Brasil, também, acolhemos refugiados e outros tipos de migrantes
(externos e internos). Hospitalidade pessoal e hospitalidade social são desafios
da vida no século XXI.
Bem, outras áreas poderiam ser apresentadas. Essas cinco são um exemplo
das possibilidades de ação e sentido que o texto propõe. Deixo, então, para você,
a tarefa de escolher uma dessas áreas e redigir a sua própria releitura do texto.
Seja como sermão, estudo bíblico, meditação, reflexão teológica etc. Lembre-se:
o que eu escrevi é o ponto de partida para a releitura, você deve aprofundar e
tornar concreto o que o ponto de partida oferece.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 2,13-17


151

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem! Chegamos ao fim do estudo desta terceira Unidade da nossa disci-
plina. Estudamos Marcos 2,13-17, seguindo os seguintes passos:
No Tópico 1 exemplifiquei os procedimentos da fase preparatória da exe-
gese: a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua
segmentação e estruturação. Depois, apresentei alguns dos principais aspectos
do contexto do Evangelho de Marcos. Enfim, tendo em vista o gênero textual
do livro, discuti o lugar de Mc 2,13-17 no conjunto do Evangelho. Apresentei
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um conceito novo, o de cronotopo. Mostrei os passos para você analisar o cro-


notopo de textos narrativos.
No segundo Tópico, realizei a análise da dimensão espaço-temporal da ação,
seguindo os passos metodológicos em forma bem didática: alistando as pessoas,
espaços e tempo; depois, analisando a organização dessas características no texto
e terminando com uma síntese da significação que o texto nos proporciona a
partir desse ponto de vista. Espero que você tenha lido criticamente o que está
no livro e feito a sua própria análise, encontrando algo que eu não consegui ver.
No Tópico 3 voltamos a atenção à dimensão teológica da ação. Verifiquei o
arranjo temático da perícope, a fim de perceber a sua unidade e a forma como
cada um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos para crer e viver.
Foi o momento de refletir teologicamente a partir do texto, procurando ser fiel.
No Tópico 4, mostrei a você a análise da dimensão sociocultural da ação.
Como Mc 2,13-17 oferece bastante material para reflexão sobre sociedade e cul-
tura, do ponto de vista da fé, a qual dediquei atenção especial, bem como forneci
algumas informações históricas necessárias.
Por fim, no último tópico exemplifiquei como fazer a análise da dimensão
missional da ação, para te estimular a sempre pensar em sua própria forma de
reler o texto bíblico.
Obrigado por sua atenção e bom trabalho!

Considerações Finais
152

ELEMENTOS SIMBÓLICOS DE MC 1,10 E 15,38


Sem dúvida nosso trabalho sobre o simbolismo em Mc 1,10 e 15,38, dá-se, sobretudo,
a partir do verbo “rasgar” (σχίζω). No entanto, convém tratar também dos outros dois
principais símbolos a que o verbo se refere nas duas citações: o céu e o véu do templo.
O céu
Símbolo reflexo de uma experiência humana universal e necessária: Deus se revela ao
homem por meio da sua “criação toda”. A Bíblia distingue perfeitamente o céu físico – da
mesma natureza que a terra – e o céu de Deus. Em outras palavras, o céu como fenôme-
no natural e como fato teológico.
A origem e o significado são incertos no hebraico (‘sãmayim). Na LXX encontra-se, ge-
ralmente, no plural; e no Segundo Testamento, tanto no singular como no plural e pode
significar: o céu das estrelas e das nuvens.
Da mesma forma que para nós, para o hebreu o céu é uma parte do universo, em con-
tato com a terra, embora diferente dela. No livro do Gênesis (1,1) e em Mt 24,35, fala-se
do “céu e a terra”.
Há no israelita uma sensibilidade ao esplendor do céu; anda em busca de sua luz e admi-
ra profundamente sua transparência (Ex 24,10). É, para ele, impressionante o firmamen-
to ser sólido e inabalável (Gn 1,18). Parece ser constituído como a terra, com fundamen-
tos, colunas que o sustentam firmemente (cf. Jó 26,11 e 2Sm 22,8).
Fala-se das janelas dos céus, por meio das quais cai a chuva (Gn 7,11; 2Rs 7,2.19). É dos
céus que YHWH manda os ventos, a neve e o granizo, quando necessários. Vários textos
falam dos céus como a morada de Deus. Alguns ressaltam que há uma profunda ligação
entre o céu e os santuários da terra. A fé do povo hebreu é que Deus escuta do céu a
oração que seus filhos fazem na terra:
[...] que teus olhos estejam abertos dia e noite sobre esta casa, sobre este
lugar do qual disseste: ‘Meu nome estará lá’. Ouve a prece que teu ser-
vo fará neste lugar. Escuta as súplicas de teu servo e de teu povo Israel,
quando orarem neste lugar. Escuta do lugar onde resides, no céu, escuta
e perdoa (1Rs 8, 29-30).

O céu é um símbolo universal; representa universalmente os poderes superiores. O fato


de situar-se tem equivalência a ser poderoso. É o trono do Rei, de Deus. É símbolo direto
da transcendência (CHEVALIER, 2009, p. 227).
153

O profeta Elias é arrebatado de entre os vivos e é levado aos céus; privilégio único no
Primeiro Testamento, relatado em 2Rs 2,1.11:
[...] eis o que aconteceu quando Iahweh arrebatou Elias ao céu no
turbilhão: Elias e Eliseu partiram de Guilgal,[...] E aconteceu que, en-
quanto andavam e conversavam, eis que um carro de fogo e cavalos
de fogo os separaram um do outro, e Elias subiu ao céu no turbilhão
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 508).

O céu, como a terra, possui extremidade. Assim nos testifica um dos versículos do Se-
gundo Testamento, situado dentro do chamado apocalipse de Marcos: “[...] então ele
enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à
extremidade do céu” (Mc 13,27).
O próprio Evangelho de Marcos ainda nos fala do céu como a morada de Cristo ressus-
citado. Atesta que o Senhor Jesus “foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus”
(Mc 16,19) (BÍBLIA SAGRADA, Atos 3,21; Ef 1,20; Hb 8,1; 1Pd 3,22.)
Fora da perspectiva bíblica também encontramos a apresentação simbólica do céu:
[...] ouranos se acha no Gr de Homero em diante, com o significado de
“abóbada celeste”, “o firmamento”. Visto como tudo que aquilo abrange,
ouranos é divino. Em Platão, o “céu pode ser equacionado com o -> tudo,
o cosmos (-> Terra). Os céus estrelados, considerados como habitação
dos deuses, ficaram sendo o ponto da partida para a investigação da
existência e do conhecimento absoluto (BROWN, 2000. p. 341).

Fonte: adaptada de Resende ([2017], on-line)2.


154

Leia Atentamente Marcos 2,13-17. Esse texto servirá de base para as cinco questões
a seguir.
Marcos 2,13-17
E ele foi novamente para a beira do mar e toda a multidão ia a seu encontro e ele
a ensinava. Enquanto caminhava, viu Levi, o filho de Alfeu, sentado na coletoria de
impostos, e falou com ele: “Segue-me”. Ele levantou-se e o seguiu. Mais tarde, Jesus
estava jantando na casa dele e muitos publicanos e judeus pecadores jantavam com
Jesus e seus discípulos, pois eram muitos dentre eles os que o seguiam. Então os
escribas dos fariseus, vendo que comia com judeus pecadores e publicanos, diziam
aos seus discípulos: “Por que ele come com publicanos e judeus pecadores?” Ora,
ouvindo Jesus a pergunta, responde a eles: “as pessoas fortes não têm necessidade
de médico, e sim as doentes, eu não vim chamar justos, mas pecadores”.
1. Os seguintes termos se referem ao espaço:
a. ( ) Beira do mar, multidão, casa dele, caminhava.
b. ( ) Levi, multidão, casa dele, caminhava.
c. ( ) Beira do mar, seguiam, casa dele, caminhava.
d. ( ) Justos, pecadores, casa dele, caminhava.
e. ( ) Viu, multidão, casa dele, caminhava.
2. Os seguintes termos se referem às pessoas:
a. ( ) Multidão, coletoria de impostos, publicanos, escribas dos fariseus.
b. ( ) Multidão, caminhava, publicanos, escribas dos fariseus.
c. ( ) Multidão, casa dele, publicanos, escribas dos fariseus.
d. ( ) Multidão, coletoria de impostos, chamar, escribas dos fariseus.
e. ( ) Multidão, Jesus, publicanos, escribas dos fariseus.
3. “Ele foi novamente para a beira do mar”. O verbo ‘foi’ possui as seguintes carac-
terísticas:
a. ( ) Pretérito perfeito, aspecto pontual, modo indicativo.
b. ( ) Pretérito imperfeito, aspecto durativo, modo indicativo.
c. ( ) Pretérito perfeito, aspecto gnômico, modo indicativo.
d. ( ) Pretérito perfeito, aspecto pontual, modo subjuntivo.
e. ( ) Pretérito perfeito, aspecto perfectivo, modo indicativo.
155

4. “Em termos de segmentação e estruturação, temos quatro segmentos estrutura-


dos em forma quiástica não-concêntrica”. Essa afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA
5. Um publicano era um profissional que:
a. Trabalhava coletando impostos para o Império Romano.
b. Era reconhecido publicamente como um bom judeu.
c. Desempenhava uma profissão impura.
d. Pertencia ao partido dos fariseus.
e. Seguia rigidamente as normas rituais dos saduceus.
As duas alternativas corretas são:
a. ( ) a & b.
b. ( ) a & c.
c. ( ) b & d.
d. ( ) e & c.
e. ( ) a & e.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Comentário de Mateus e Marcos


A. T. Robertson
Editora: CPAD
Sinopse: um comentário clássico por estudioso da língua grega.
Evangélico especializado na história da língua grega, oferece uma
análise filológica dos dois primeiros Evangelhos.

Ben-Hur - 2016
Sinopse: biografia dramatizada de um judeu e seu irmão adotivo
que se torna centurião romano. Mostra as lutas dos judeus diante da
dominação imperial.

A Cura do Paralítico em Cafarnaum (MC 2.1-12). Uma Exegese


Gottfried Brakemeier “A Cura do Paralítico em Cafarnaum (MC 2.1-12). Uma Exegese”
Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/
viewFile/1282/1236>
Lídia Resende e Geraldo Vieira “O MOVIMENTO (SIMBOLISMO) “RASGAR” NO EVANGELHO DE
MARCOS (1,10; 15,38)”
Disponível em: <http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2012/relatorios_pdf/ctch/TEO/
TEO-L%C3%ADdia%20Maria%20Carneiro%20de%20Resende.pdf>
Artigos acadêmicos sobre perícopes do Evangelho de Marcos, em perspectiva da exegese
histórica.
157
REFERÊNCIAS

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American Ministries & Theology. n. 5. Decatur: Columbia Theological Seminary,
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TEO-L%C3%ADdia%20Maria%20Carneiro%20de%20Resende.pdf>. Acesso em 23
maio 2017.
GABARITO

1) C.
2) E.
3) A.
4) Verdadeira.
5) B.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

IV
UNIDADE
JOÃO 1,1-18

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e executar os procedimentos interpretativos da fase
preparatória.
■■ Descrever as principais características do contexto do Evangelho de
João.
■■ Reconhecer e executar os procedimentos de análise da dimensão
teológica da ação.
■■ Executar os procedimentos de análise da dimensão missional da
ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ O Contexto de João
■■ A dimensão teológica da ação (1)
■■ A dimensão teológica da ação (2)
■■ A dimensão missional da ação
161

INTRODUÇÃO

Olá! Estamos iniciando a nossa quarta Unidade. O texto para interpretação será
João 1,1-18 e nosso trabalho terá a seguinte estruturação:
No Tópico 1, exemplificarei a você os procedimentos da fase preparatória da
exegese: a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua
segmentação e estruturação. Como a estrutura do Prólogo de João oferece difi-
culdades interessantes para a análise, gastarei mais tempo com ela.
No segundo Tópico, apresentarei, para nossa reflexão, alguns dos principais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

aspectos do contexto do Evangelho de João. Mais uma vez, o espaço dedicado ao


estudo do contexto derivou da própria exigência da perícope de João, que reflete
um amplo diálogo com o mundo de ideias e espiritualidades de seu tempo. João
escreveu seu Evangelho em amplo debate com as noções judaicas oficiais de
Messias e de libertação, além de entrar em diálogo crítico com o pensamento
estoico sobre o logos (a razão, a palavra que dá sentido ao mundo).
Nos Tópicos 3 e 4, voltaremos a atenção à dimensão teológica da ação. É
hora de verificar o arranjo temático da perícope, perceber a sua unidade e a
forma como cada um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos
para crer e viver. Jo 1,1-18 é uma perícope muita densa do ponto de vista teoló-
gico. Procurarei mostrar como podemos ir além do olhar tradicional da leitura e
enxergar melhor as riquezas do texto. Por isso, gastaremos bastante tempo com
a análise de sua teologia, em particular, o que hoje chamamos de cristologia do
Prólogo do Evangelho de João. Veremos, também, como o prólogo do Evangelho
aponta para o sentido da salvação que nos é dada pelo Messias.
Por fim, no último tópico, indicarei os passos necessários para se fazer a aná-
lise da dimensão missional da ação. Espero que você siga esses passos e faça a
sua própria releitura desse importante texto bíblico.

Introdução
162 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Iniciamos com o texto grego e sua tradução.

TEXTO E TRADUÇÃO

Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2 οὗτος
ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο
οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων· 5
καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν. 6 Ἐγένετο
ἄνθρωπος, ἀπεσταλμένος παρὰ θεοῦ, ὄνομα αὐτῷ Ἰωάννης· 7 οὗτος ἦλθεν εἰς
μαρτυρίαν ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός, ἵνα πάντες πιστεύσωσιν δι᾽ αὐτοῦ.
8
οὐκ ἦν ἐκεῖνος τὸ φῶς, ἀλλ᾽ ἵνα μαρτυρήσῃ περὶ τοῦ φωτός. 9 Ἦν τὸ φῶς
τὸ ἀληθινόν, ὃ φωτίζει πάντα ἄνθρωπον, ἐρχόμενον εἰς τὸν κόσμον. 10 ἐν τῷ
κόσμῳ ἦν, καὶ ὁ κόσμος δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω. 11 εἰς
τὰ ἴδια ἦλθεν, καὶ οἱ ἴδιοι αὐτὸν οὐ παρέλαβον. 12 ὅσοι δὲ ἔλαβον αὐτόν, ἔδωκεν
αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ γενέσθαι, τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτοῦ, 13

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


163

οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ᾽


ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν. 14 Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ
ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος
καὶ ἀληθείας. 15 Ἰωάννης μαρτυρεῖ περὶ αὐτοῦ καὶ κέκραγεν λέγων, Οὗτος ἦν
ὃν εἶπον, Ὁ ὀπίσω μου ἐρχόμενος ἔμπροσθέν μου γέγονεν, ὅτι πρῶτός μου ἦν.
16
ὅτι ἐκ τοῦ πληρώματος αὐτοῦ ἡμεῖς πάντες ἐλάβομεν καὶ χάριν ἀντὶ χάριτος·
17
ὅτι ὁ νόμος διὰ Μωϋσέως ἐδόθη, ἡ χάρις καὶ ἡ ἀλήθεια διὰ Ἰησοῦ Χριστοῦ
ἐγένετο. 18 θεὸν οὐδεὶς ἑώρακεν πώποτε· μονογενὴς θεὸς ὁ ὢν εἰς τὸν κόλπον
τοῦ πατρὸς ἐκεῖνος ἐξηγήσατο.
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Tradução:
1 No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava diante de Deus e a Palavra
era Deus. 2 Ela estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas vieram a existir
por intermédio dela, e sem ela nada do que tem vindo à existência veio a existir.
4 Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens; 5 a luz resplandece nas tre-
vas, e as trevas não prevaleceram contra ela.
6 Surgiu um homem, um enviado de Deus, cujo nome era João. 7 Ele veio
como testemunha, a fim de dar testemunho da luz, para que todos cressem por
meio dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.
9 Ela era a luz verdadeira, a luz que ilumina todo ser humano e estava chegando
ao mundo. 10 Ela estava no mundo, e o mundo tornou-se existente por intermédio
dela, e mesmo assim o mundo não a reconheceu. 11 Ela veio para os seus, mas os
seus não a receberam. 12 Entretanto, a todos quantos a receberam deu-lhes o direito
de se tornarem filhos de Deus, aos que creem em seu nome; 13 os quais nasceram,
não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus.
14 E a Palavra se tornou carne, e peregrinou entre nós, e vimos a sua gló-
ria, glória idêntica à do unigênito do Pai: cheia de graça e de fidelidade. 15 João
testemunha sobre ela e tem pregado: Ela é aquela de quem eu disse: O que vem
depois de mim, passou adiante de mim; porque antes de mim ele já existia. 16
Ora, todos nós recebemos da sua plenitude, e graça sobre graça, 17 pois a lei foi
dada por meio de Moisés, mas a graça e a fidelidade vieram por meio do Messias
Jesus. 18 Ninguém jamais viu a Deus. O Deus unigênito, o que está diante do
próprio coração do Pai, esse o tornou visível em sua exegese.
(Tradução do autor)

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


164 UNIDADE IV

DELIMITAÇÃO, SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO

Em relação à delimitação, obviamente o início da perícope é o verso 1, que é


também o início do livro de João. A partir do verso 19, temos novos persona-
gens (judeus e autoridades de Jerusalém v. 19), um novo gênero textual (diálogo)
e uma nova temática (o papel de João Batista). É uma nova perícope que serve
como transição da perícope inicial (1:1-18) para a descrição das atividades de
Jesus (a partir do v. 29). A nossa perícope oferece algumas dificuldades para a
sua segmentação, mas podemos trabalhar com a hipótese, já indicada na tradu-

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ção, de quatro segmentos: (1-5) cujo assunto é a Palavra na criação, (6-8) que
tem como centro João, (9-13) cujo assunto é a Palavra na salvação e (14-18) cujo
tema é a Palavra encarnada.
A estruturação oferece, ainda, mais dificuldades, como se pode constatar
na leitura dos principais comentários sobre o Evangelho joanino. A opinião de
Konings resume bem a situação da pesquisa: “não se consegue descobrir um
esquema claro no Prólogo” (KONINGS, 2000, p. 83). Raymond Brown, seguindo
a hipótese de que, originalmente, o Prólogo era um hino cristológico, oferece a
seguinte reconstrução do hino, com a divisão em estrofes:
Primeira Estrofe 1-2
Segunda Estrofe 3-5
(Primeira inserção narrativa) 6-9
Terceira Estrofe 10-13
Quarta Estrofe 14-16 com inserção narrativa (v. 15)
Conclusão joanina 17-18
(cf. BROWN, 1999, p. 193-194).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


165

A palavra prólogo tem sua origem no teatro grego e servia para indicar a
apresentação da peça. Por extensão, na literatura, é o texto que precede
ou apresenta um livro ou uma obra. Convencionou-se chamar Jo 1,1-18 de
Prólogo do livro de João, entretanto, é possível questionar essa terminolo-
gia na medida em que a perícope pode ser vista como parte integrante da
narrativa do Evangelho. Não vejo, porém, porque não continuar usando o
termo Prólogo para indicar esta perícope.

Fonte: o autor.
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Um olhar alternativo revelaria a seguinte estrutura: (a) a perícope é dividido em


duas seções – 1-13 e 14-18; (b) a seção inicial é estruturada como um quiasmo:
A 1-5 Palavra diante de Deus é luz;
B 6-8 João dá testemunho da luz;
A’ 9-13 Palavra diante dos humanos é luz rejeitada e/ou aceita;
(c) a seção final retoma a primeira e também é estruturada quiasticamente:
A 14 A Palavra Encarnada;
B 15 A Palavra Testemunhada;
A’ 16-18 A Palavra Interpretada.

Mateos e Barreto encontram uma estrutura quiástica no Prólogo:


1:1-2 Introdução;
1:3-10 A Palavra Antes da Chegada Histórica;
1:11-13 A Chegada Histórica da Palavra;
1:14-17 A Palavra Depois da Chegada Histórica;
1:18 Colofão;
Considero que essa dificuldade representa os limites de uma leitura do texto
que pensa na estruturação apenas em função da temática de superfície (nível
discursivo) ou em função do arranjo do plano de expressão. Se abordamos a
estruturação do Prólogo a partir da estrutura profunda (oposição semântica
que dá unidade ao texto e é manifesta pelo quadrado semiótico – que veremos
adiante), então encontramos um arranjo do tipo ABBA:

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


166 UNIDADE IV

A Palavra-Deus-Manifestação Criacional (1-5);


B Palavra-Mundo-Manifestação-Rejeitada (6-11);
(Testemunho de João)
B’ Palavra-Mundo-Manifestação-Reconhecida (12-13);
(Testemunho de João)
A’ Palavra-Deus-Manifestação Encarnacional (14-18).
Essa descrição da estrutura não só da conta do movimento semântico e lógico
do texto, como também dá conta das aparentes glosas relativas ao testemunho
de João. Deus-Palavra se manifesta na criação e na encarnação, mas apesar de

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testemunhada por um ser humano, a sua manifestação é rejeitada; entretanto, a
rejeição não prevalece e o reconhecimento, também testemunhado por um ser
humano, acaba ocorrendo. João Batista possui um valor simbólico: ele representa
todas as testemunhas da Palavra-Deus-Manifesta – tanto as anteriores quanto as
posteriores à vinda do Messias.
Uma última consideração estrutural. Note o arranjo de paralelismos do
Prólogo quando retiramos as duas partes narrativas sobre João. Preste aten-
ção ao modo como as linhas de cada estrofe se articulam mediante um arranjo
simultâneo de progresso e repetição de termos e ideias, ora com arranjo quiás-
tico, ora não; ora em paralelismo sinonímico, ora em antitético, ora em climático:
1 No princípio existia a Palavra,
e a Palavra estava diante de Deus
e a Palavra era Deus.
2 Ela estava no princípio com Deus.
3 Todas as coisas vieram a existir por intermédio dela,
e sem ela nada do que tem vindo à existência veio a existir.
4 Nela estava a vida,
e a vida era a luz dos homens;
5 a luz resplandece nas trevas,
e as trevas não prevaleceram contra ela.
9 Ela era a luz verdadeira,
a luz que ilumina todo ser humano
e estava chegando ao mundo.
10 Ela estava no mundo,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


167

e o mundo tornou-se existente por intermédio dela,


e mesmo assim o mundo não a reconheceu.
11 Ela veio para os seus,
mas os seus não a receberam.
12 Entretanto, a todos quantos a receberam
deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus,
aos que creem em seu nome;
13 os quais nasceram,
não do sangue,
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nem da vontade da carne,


nem da vontade do varão,
mas de Deus.
14 E a Palavra se tornou carne,
e peregrinou entre nós,
e vimos a sua glória,
glória idêntica à do unigênito do Pai:
cheia de graça e de fidelidade.
16 Ora, todos nós recebemos da sua plenitude,
e graça sobre graça,
17 pois a lei foi dada por meio de Moisés,
mas a graça e a fidelidade vieram por meio do Messias Jesus.
18 Ninguém jamais viu a Deus.
O Deus unigênito,
o que está diante do próprio coração do Pai,
este o tornou visível em sua exegese.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


168 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONTEXTO DE JOÃO

Passemos à análise do Contexto do Evangelho, iniciando com a realidade da


comunidade joanina.

A REALIDADE

A maioria dos estudiosos data o Evangelho de João nas primeiras décadas do


segundo século d.C. A principal razão para não datar o Evangelho mais tarde é a
existência de manuscritos do Evangelho de João, encontrados no Egito, que datam
em 130 ou 135 d.C. As datas mais recuadas a partir das quais o Evangelho pode-
ria ter sido escrito não podem anteceder o ano 70 d. C., mas não há evidências
físicas para fundamentar uma decisão, a qual, nesse caso, depende inteiramente
da interpretação de dados fornecidos pelo próprio Evangelho, que sugerem não
só a destruição do Templo de Jerusalém, mas também a distinção institucional
entre judeus e cristãos. Sendo assim, como já vimos, a maioria dos estudiosos

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


169

fecha com uma data no início do segundo século. Raymond Brown, um dos prin-
cipais estudiosos de João na segunda metade do século XX, concluiu que a data
do Evangelho deve girar ao redor do ano 100 (BROWN, 1999, p. 104 e p. 108)
– eu diria, alguns anos antes ou alguns anos depois, mais possivelmente antes.

Embora haja um consenso amplo em relação à datação do Evangelho, ainda


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se discute a sua autoria. A maioria dos estudiosos, seguindo um testemunho


antigo de Eusébio, descreve o autor como João, um presbítero que vivia em
Éfeso, mas não o discípulo de Jesus. Uma significativa minoria, porém, ainda
considera e defende que o João do Evangelho é o discípulo amado de Jesus.
Para os argumentos e a discussão, pode-se consultar HENDRIKSEN, 2004, p.
13-48 e BRUCE, 1987, p. 11ss.
Fonte: o autor.

Independentemente da decisão sobre o autor do Evangelho, há um consenso


entre os estudiosos de que o Evangelho foi escrito na região da Ásia Menor,
para comunidades cristãs da cidade de Éfeso. Essa cidade era uma das maiores
do Império Romano (alguns estimam que era a quinta maior), um importante
porto e centro de comércio, com uma população estimada em cerca de 400.000
a 500.000 pessoas (para a época do Império Romano, seria o equivalente a uma
cidade como o Rio de Janeiro ou Porto Alegre). Graças à sua localização estraté-
gica, cedo se tornou objeto da ação de missionários cristãos – a carta de Paulo aos
Efésios se dirige a comunidades dessa cidade e de sua região; assim como uma
das sete cartas do Apocalipse. A religião oficial da cidade era o culto a Ártemis,
a deusa grega da caça, e relatos do livro de Atos falam a respeito dos problemas
da chegada do Evangelho à cidade (At 18,18ss).
A cidade era rica em função do comércio e também porque os romanos a esco-
lheram como capital da província da Ásia Menor, de modo que grande volume
de dinheiro passava pela cidade. Além da grande população, da prosperidade
econômica e do culto a Ártemis (Diana, no panteão romano), Éfeso também era

O Contexto de João
170 UNIDADE IV

famosa pelo seu teatro, que comportava cerca de 25.000 espectadores. Embora, a
partir do III e IV séculos d.C., a cidade tenha se tornado um importante centro do
Cristianismo; no final do primeiro século d.C., as igrejas cristãs ainda eram abso-
luta minoria na cidade e enfrentavam tanto a polêmica teológico-religiosa como,
em distintas ocasiões, perseguição física. O enfrentamento contra o Império era
uma das características permanentes da realidade dos primeiros cristãos. Numa
cidade como Éfeso, capital de província, a presença física e simbólica do Império
era avassaladora, de modo que não podemos deixar de considerar como a teolo-
gia joanina responde a essa presença imperial dominadora.

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Não é possível, a partir dos dados do Evangelho de João, reconstruir uma
situação específica da realidade de seu tempo que tenha motivado a sua escrita.
O conteúdo do Evangelho sugere uma motivação genérica – a necessidade de
edificar as comunidades com uma compreensão mais profunda da pessoa e
do ministério do Senhor Jesus. Entretanto, as afirmações sobre a perseguição
e o sofrimento no capítulo 15, bem como o livro do Apocalipse, escrito algum
tempo depois do Evangelho, e a tradição das igrejas cristãs no segundo século
d.C. sugerem que algum tipo de perseguição ameaçava os cristãos da região da
Ásia Menor a quem os escritos de João foram dirigidos.

O CONTEXTO PROPRIAMENTE DITO

a. Gênero Textual.

O gênero de João é o Evangelho (para uma breve discussão, veja a unidade sobre
Marcos), embora João tenha uma série de diferenças formais em relação aos
Evangelhos Sinóticos. O gênero Evangelho era, predominantemente, um gênero
didático e apologético que desempenhava papel importante na formação da iden-
tidade das comunidades a que se dirigia. Nesse sentido, o contexto da escrita do
Evangelho é dominantemente polêmico e atende primariamente à necessidade
de edificação e fortalecimento da comunidade na fé. É digno de nota que Irineu
relata a presença de Cerinto, um herético, que criava problemas nas comunida-
des cristãs da cidade na época do Evangelho (Contra Heresias III, xi, 1). Quase

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


171

nada sabemos dos ensinos de Cerinto, mas o testemunho de Irineu nos ajuda a
firmar a hipótese de que parte da motivação para a escrita do Evangelho foram
polêmicas doutrinárias nas comunidades da Ásia Menor (o que também se pode
depreender das cartas do Apocalipse).
b. Interdiscursividade.

Durante boa parte do século XX, estudiosos importantes situaram o Evangelho


de João no ambiente das religiões helenísticas de sua época, seja o gnosticismo,
seja a religiosidade salvífica helenística em geral. Outros autores buscaram situar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o Evangelho no ambiente filosófico helenístico, seja entre os estóicos, seja entre


os herméticos. Ao final do século XX, as pesquisas têm deixado evidente que
a presença helenística no Evangelho não é tão importante quanto parecera aos
estudiosos anteriores. Elementos presentes na filosofia grega e helenística ou nas
religiões helenísticas não são em maior número e importância do que as presen-
tes na cultura da Ásia Menor em geral.
As pesquisas de Charles Barrett (1978, p. 27ss.) Raymond Brown (1999, p.
64ss.) e de Juan Mateos & Juan Barreto (1982, p. 21ss.) têm consolidado a tese
de que o ambiente interdiscursivo do Evangelho de João é, predominantemente,
o Judaísmo e suas controvérsias com o Evangelho, o que não impede que haja,
em segundo plano, a presença de elementos discursivos helenísticos. Tendo em
vista que o volume de relações intertextuais e interdiscursivas do Evangelho com
o Judaísmo de sua época e com a Bíblia Hebraica, em particular, é muito grande,
recomendamos a consulta aos comentários de Brown e Mateos & Barreto para
uma visão geral.
Para efeitos de construção do contexto do Evangelho, basta apontar o pano
de fundo fundamental – o debate com o Judaísmo (e, em segundo plano, com o
pensamento helenístico) em relação à identidade de Jesus e, consequentemente,
em relação à identidade das comunidades de seguidores do Messias. Embora
Brown não dê tanta importância ao fator apologético, sua descrição da motiva-
ção do Evangelho é digna de citação: “[...] intenção principal do Evangelho, por
conseguinte, é fazer com que o crente compreenda existencialmente, o que este
Jesus, em quem ele crê, significa para a vida” (BROWN, 1999, p. 99). No estudo
do Prólogo, propriamente dito, voltaremos à questão das relações interdiscursivas

O Contexto de João
172 UNIDADE IV

e intertextuais – obviamente centradas nessa perícope do Evangelho – o que nos


oferecerá um vislumbre da riqueza dialogal deste Evangelho em seu ambiente
discursivo.
c. Conteúdo.

Finalmente, em termos metodológicos, o conteúdo do Evangelho sugere um con-


texto de edificação e defesa da fé, confirmando a hipótese presente nas análises
anteriores. A questão fundamental do seu contexto era: quem é Jesus e o que Ele
significa para nós? A leitura do Evangelho de João nos mostra que, para viver ple-

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namente a fé, precisamos conhecer bem a Jesus, pois o Espírito (Paracleto) que
nos foi dado é o Espírito de Jesus, que nos faz viver como o Messias Jesus viveu.
A chave desse conhecimento é a prática do amor: quando amamos a Deus e ao
próximo, o próprio Deus habita em nós.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


173
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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO (1)

Agora nosso foco recairá sobre a análise da dimensão teológica da ação na perícope.

ASPECTOS ESTILÍSTICOS DO PRÓLOGO

Como vimos brevemente no tópico anterior, há uma ampla discussão sobre o


gênero do Prólogo. Em primeiro lugar, há poucos autores que questionam a
validade de considerar Jo 1,1-18 como Prólogo do Evangelho. Entretanto, a sua
argumentação é inconsistente, na medida em que o argumento mais forte é o de
que a perícope é parte integrante do Evangelho, enquanto um Prólogo seria algo
aparte. Esse Prólogo, porém, não é uma unidade autônoma e isolada do livro, mas
parte integrante do mesmo. Assim, embora não apresente, aqui, a argumenta-
ção necessária (que você pode checar nos Comentários listados nas Referências
Bibliográficas deste tópico), aceito a hipótese predominante na pesquisa aca-
dêmica: João 1,1-18 é o Prólogo ao Evangelho de João. Enquanto Prólogo, ele
cumpre duas funções fundamentais: apresentar a obra enquanto tal (as perso-
nagens e os temas principais) e oferecer uma sua síntese.

A Dimensão Teológica da Ação (1)


174 UNIDADE IV

A consulta aos comentários acadêmicos listados nas Referências Bibliográficas


mostra que a discussão sobre o estilo do Prólogo é intensa. Não podemos repri-
sar essa discussão – você pode, se quiser, ler os comentários para conhecê-la
detalhadamente. Apresento apenas os resultados de minha própria interação
com a bibliografia.
O Prólogo possui um arranjo peculiar de prosa poética e prosa narrativa.
Na seção sobre delimitação e estruturação, mostrei as diferentes possibilidades
de compreensão da articulação do texto, incluindo uma estruturação em linhas
poéticas com a exclusão das linhas narrativas sobre João Batista.

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Bultmann (1971), por exemplo, notou as semelhanças estilísticas entre o
Prólogo e algumas das Odes de Salomão, o que nos ajuda a situar o texto no fim
do primeiro século e início do segundo, em um ambiente em que as comuni-
dades cristãs não só tinham de lidar com as suas relações com o Judaísmo, mas
também com o gnosticismo que estava nascendo. Essas semelhanças também
nos sugerem que João, no Prólogo, usou ou o recurso da estilização e compôs o
Prólogo seguindo padrões de hinos litúrgicos, ou fez uso de citações de um ou
mais hinos cantados nas comunidades da Ásia Menor.
Do ponto de vista argumentativo, o uso de material litúrgico é um recurso
importante para captar a benevolência de ouvintes e leitores, que tendem a se
identificar com o texto na medida em que o texto se identifica com sua vida comu-
nitária. O uso desse ou desses hinos também nos ajudam a explicar porque alguns
termos teológicos importantes do Prólogo não são mais usados no Evangelho.
O arranjo estilístico, enfim, nos mostra parcialmente a lógica teológica do
Prólogo, iniciando com a ação criadora de Deus, passando pela encarnação do
Logos e culminando em seu ministério em nosso favor - com a segunda e a ter-
ceira partes da lógica entremeadas com o ministério de João Batista. A unidade
de Deus (Pai e Filho) e a unidade teológica de criação-salvação são realçadas
mediante à desunião do mundo e à conflitividade nele presente por causa do
pecado (trevas), conflitos tanto entre seres humanos e Deus, como entre os seres
humanos por causa de suas particularidades (o conflito entre Lei e Graça).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


175

Ode é o nome grego, transliterado, de poemas líricos destinados ao canto


coral.
As Odes de Salomão são uma antiga obra, possivelmente cristã, do segundo
século d.C. que reúne 42 odes, das quais nem todas estão preservadas. Os
hinos dessa obra mesclam textos predominantemente cristãos ortodoxos,
textos judaicos e textos com sinais de pensamento gnóstico. Após sua des-
coberta e publicação no final do século passado e uma tradução no início
deste século, algumas das odes têm sido usadas em cultos de Igrejas Cristãs
no hemisfério norte.
A tradução completa acadêmica é: CHARLESWORTH, James H. The Earliest
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Christian Hymnbook. The Odes of Solomon. Cambridge: James Clarke and


Co. & The Lutterworth Press. 2009. Infelizmente não há traduções acadêmi-
cas para o português.

Fonte: o autor

TEOLOGIA NO TEMPO - ESPAÇO

Você já reparou que, nesta unidade, não temos um tópico específico para a aná-
lise da dimensão espaço-temporal da ação. Como já mencionado várias vezes ao
longo desta e de disciplinas anteriores, um método exegético não deve ser utili-
zado de forma rígida. No caso específico do método sêmio-discursivo, a sua lógica
é a de círculos concêntricos – crescendo do mais simples ao mais complexo – ou
a de diferentes pontos de vista sobre o texto. Os cinco ciclos da Fase Final são, de
fato, cinco modos diferentes ou cinco círculos distintos para chegar ao mesmo
ponto: a compreensão do texto. Por isso, ao propor o aprendizado do método,
também mostro que um ou mais ciclos podem ser trabalhados em conjunto.
Do ponto de vista temporal, temos uma série de arranjos e contrastes importantes:
a. O ‘tempo fora do tempo’ (no princípio, v. 1-2) se contrapõe ao ‘tempo no
tempo’ (todo o resto do Prólogo), servindo não só como modelo para o tempo,
mas, e principalmente, como contraste entre a existência divina e a existência
criada – a primeira, não definida pela temporalidade; a segunda, definida pela
temporalidade natural e histórica.

A Dimensão Teológica da Ação (1)


176 UNIDADE IV

b. Esse primeiro contraste é estabelecido textualmente mediante o uso dos


verbos no imperfeito (aspecto durativo no passado) para apresentar o ‘tempo fora
do tempo’ e o uso de verbos no aoristo (aspecto pontual, o tempo verbal grego
usado para a narração histórica) para indicar o ‘tempo no tempo’. Ressalte-se que
os verbos que indicam o agir do Logos Encarnado estão predominantemente no
presente (aspecto durativo, com uma sensação de atemporalidade).
c. No ‘tempo no tempo’ encontramos, também, um contraste entre a presença
divina e a resposta humana. O ‘tempo no tempo’ é caracterizado pela vida=luz,
ou seja, a presença de Deus, mas, ao mesmo tempo, pela rejeição da luz=vida

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pelos seres humanos – rejeição, porém, que não ‘prevalece’ sobre a luz.
d. No ‘tempo no tempo’, temos, também, o contraste entre o tempo do Batista
e o tempo de Jesus – o tempo do testemunho da luz e o tempo da presença da
luz entre nós. Embora o Batista anteceda historicamente o Messias, este é ante-
rior ao Batista – porque existia ‘fora do tempo’ (v. 15)
e. Enfim, no ‘tempo no tempo’, temos o jogo semântico do Logos como luz
criadora e vital e como luz encarnada e salvífica.
Do ponto de vista espacial, os contrastes existentes no texto provocam a sen-
sação dual de infinidade e de proximidade:
a. O Prólogo inicia em um ‘espaço fora do espaço’ – Logos e Deus diante um
do outro, em movimento de aproximação um do outro (o sentido da preposição
pros é o de aproximação, não meramente de proximidade).
b. A ação do Logos gera o ‘espaço no espaço’ que, embora não nomeado, é
reconhecido por leitoras e leitores como todo o mundo – tudo o que existe ou,
como diríamos hoje, o Universo infinito (v. 3-5; 9-10).
c. Esse espaço infinito, delimitado pelo não-espaço da esfera divina, é con-
trastado com o espaço próximo da chegada do Logos Encarnado, precedida pelo
testemunho de João. Estamos, então, no ambiente da Judéia.
d. O Logos é retratado como se movendo entre esses diferentes espaços –
‘estava no mundo’ vs. ‘estava chegando ao mundo’ vs. ‘peregrinou entre nós’ (v.
9; 10; 14). Da vastidão do Universo à proximidade da companhia cotidiana – da
invisibilidade no tempo-espaço da eternidade infinda à visibilidade no tempo-
-espaço da história humana.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


177

Do ponto de vista actorial (dos atores, personagens ou pessoas), o Prólogo


gira ao redor da Palavra:
a. O Prólogo inicia com a Palavra em sua relação de comunhão e aproxima-
ção com Deus (v. 1-2), indicando não só sua divindade, mas também seu papel
como agente da criação do mundo (v. 3-5) - em um espaço-tempo invisível e
inatingível para nós.
b. A Palavra em sua relação ministerial com João Batista: ele dá testemu-
nho da Palavra (v. 6-8), logo a precede temporal e espacialmente, mas o próprio
Batista se antecipa e explica: ela é a luz e, embora tenha aparecido depois de
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mim, já existia antes de eu existir – reafirmando a divindade da Palavra agora


encarnada (v. 15).
c. A relação da Palavra com o mundo e com os seus – tanto o mundo como
‘os seus’ não a receberam como Palavra da Vida (v. 9-11).
d. Em contraste com os que a rejeitam, a Palavra se relaciona salvificamente
com ‘os que a receberam’ (v. 12-13), a quem a Palavra unigênita concede a graça
de se tornarem nascidos (gênitos) de Deus – assim, o Unigênito não é mais
Único, embora não perca sua singularidade em relação aos outros e outras nas-
cidas de Deus (v. 12-13; 14-18).
e. O contraste entre a Palavra=Messias e a Lei de Moisés – a Lei (instrução)
que deveria ensinar o povo a conhecer a Deus não foi capaz de cumprir sua
tarefa, de modo que somente o próprio Deus, o Unigênito do Pai, é que pode
apresentar Deus (o texto grego usa o verbo exegeomai = literalmente ‘exegetar’)
e torná-lo compreensível (v. 14-18). Na sua peregrinação entre nós (a Palavra
Divina-Humana), recebemos a plenitude, paradoxalmente é o Deus encarnado
– e não o Deus-Eterno – quem plenifica o ser humano e a criação.
f. O Prólogo encerra com o contraste entre a invisibilidade eterna de Deus e
a sua visibilidade na Palavra-Encarnada=Messias Jesus (v. 18).
g. A presença de seções na primeira pessoa e de seções na terceira pessoa
provoca, nos leitores, efeitos de subjetividade e objetividade, ou seja, como acre-
ditar em algo tão majestoso, infinito e ‘fora do tempo’? Porque essa realidade (o
Logos) está presente ‘no tempo’ e não só está presente, mas também foi anun-
ciada, testemunhada de antemão ‘no tempo’.

A Dimensão Teológica da Ação (1)


178 UNIDADE IV

Em síntese, a dimensão espaço-temporal da ação nos ajuda a perceber os jogos


semânticos entre visibilidade e invisibilidade, presença e ausência, objetividade e
subjetividade, grandiosidade e proximidade, graciosidade e obrigatoriedade. Já
podemos vislumbrar polêmicas discursivas importantes: a messianidade de Jesus
centrada na fidelidade e graça versus a messianidade centrada na obediência à
Lei; a soberania de Jesus criador versus a soberania do imperador destruidor; a
divindade plena e peculiar do Logos versus a divinização da Sabedoria e da Lei
(na tradição judaica); o estilo de vida não-messiânico (rejeição) versus o estilo
de vida messiânico (aceitação de Jesus). Todos esses tópicos serão aprofunda-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dos na continuação da análise.

A UNIDADE TEMÁTICA E OS PERCURSOS

Como você já está acostumado, o conteúdo teológico é analisado a partir do


percurso temático que dá unidade aos demais percursos temáticos da perícope.

A Unidade Temática

O texto do Prólogo é repleto de símbolos e noções bastante abstratas e complexas:


Deus, Vida, Luz, Carne, Revelação, Salvação, Testemunho etc. Em um primeiro
olhar, a oposição semântica entre vida e morte se oferece como o candidato mais
provável para a estrutura profunda do texto, na medida em que parece ser o tema
mais abstrato que engloba os demais. Entretanto, precisamos levar em considera-
ção que a unidade discursiva do Prólogo gira ao redor da Palavra. Temos a Palavra
iluminadora – que é Deus Unigênito e interpreta Deus para nós em sua Encarnação
– e temos outras palavras: a palavra-testemunho de João; a palavra-ocultadora
da “Lei de Moisés”; a palavra-ocultadora do Logos grego (implícita na superfície
discursiva do texto). Duas palavras que iluminam e duas palavras que obscure-
cem. Um par de palavras que gera vida e outro par de palavras que gera morte.
À Palavra-Vida de Jesus corresponde a Palavra-Testemunho de João; à Palavra-
Morte da Rejeição do Messias correspondem as Palavras-Falsificadoras da Lei de
Moisés e da ‘Razão’ greco-romana (filosofia, religião e Império simultaneamente).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


179

Em um primeiro olhar analítico, pareceria que o conflito semântico que dá


unidade ao texto seria o da oposição entre vida e morte:
PALAVRA-VIDA PALAVRA-MORTE
PALAVRA-VERDADE PALAVRA-MENTIRA

A esse quadrado corresponderia o seguinte movimento semântico do texto: da


afirmação da palavra-vida, passando pela palavra-morte da rejeição, pela pala-
vra-verdade do testemunho de João, com um desvio pela palavra-mentira da
Lei e da ‘Razão’, reafirmando a palavra-vida como palavra luz e testemunho na
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

‘exegese’ do Pai pelo Filho. Evidentemente o polo eufórico é o da palavra-vida.


Entretanto, esse conflito semântico não é o mais abstrato possível. Ele é
adequado para a descrição de um dos percursos temáticos da perícope, o qual
podemos chamar de percurso do Logos (ou da Palavra). Um exame mais acurado
encontrará a seguinte oposição semântica ainda mais abstrata, que dá unidade
ao conjunto dos temas da perícope:
MANIFESTAÇÃO OCULTAMENTO
VERIDICÇÃO FALSIFICAÇÃO

Consequentemente, o movimento semântico do texto será: da manifestação da


Palavra-divino=vida, passando pelo conflito entre veridicção (falar verdadeiro: o
testemunho do batista) e falsificação (o falar não-verdadeiro: as diversas formas
de rejeição da Palavra nas palavras humanas), e a reafirmação da manifestação
da Palavra-divino=vida – Jesus enquanto exegese de Deus. (O genitivo da em
‘da Palavra-divino=vida’ deve ser lido tanto como subjetivo - a Palavra como
sujeito da manifestação -, quanto como objetivo - a Palavra enquanto o próprio
conteúdo da manifestação). Evidentemente o polo eufórico é o da manifestação.

OS PERCURSOS E SEU DETALHAMENTO

A análise dos percursos continuará no próximo tópico. Iniciarei, aqui, a


apresentação dos percursos semanticamente menos complexos, incluindo
as relações interdiscursivas.

A Dimensão Teológica da Ação (1)


180 UNIDADE IV

(1) Percurso da Veridicção


O Percurso da Veridicção é composto por dois conjuntos temáticos: o pri-
meiro se refere ao testemunho do Batista acerca da luz, enquanto o segundo à
resposta dos seres humanos à chegada da luz. Iniciemos com o Batista:
6 Surgiu um homem, um enviado de Deus, cujo nome era João. 7 Ele veio
como testemunha, a fim de dar testemunho da luz, para que todos cressem por
meio dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.
15 João testemunha sobre ela e tem pregado: Ela é aquela de quem eu disse: O
que vem depois de mim, passou adiante de mim; porque antes de mim ele já existia.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Em dois momentos João Batista é inserido na narrativa do Logos: antes da
vinda do Logos em carne (6-8) e após a afirmação da encarnação do Logos (15).
Nos dois momentos, o tema que reveste as descrições do Batista é o da veridicção
– o adjetivo que qualifica João é μαρτυρία, e o verbo que, três vezes, descreve a
ação do Batista é da mesma raiz: marture,w.
No verso 7, o adjetivo e o verbo (no aoristo subjuntivo, duas vezes) declaram a
missão de João: dar testemunho. No verso 15, o conteúdo do testemunho é descrito.
O termo testemunha é quase que confinado aos escritos de João. Ele
ocorre no Quarto Evangelho, nas epístolas de João e também no li-
vro de Apocalipse. Ver as seguintes passagens: 1.7,19; 3.11,32,33;
5.31,32,34,36; 8.13,17; 19.35; 1 João 5.9,10; 3 João 12; Apocalipse 1.2,9;
6.9; 11.7; 12.11,17; 19.10; 20.4” (HENDRIKSEN, 2004, p. 108).

A descrição da vocação do Batista claramente alude a Ml 3,1: “[...] eis que envio
o meu mensageiro para preparar o caminho diante de mim; de repente, virá ao
seu templo o Senhor, a quem vós buscais, o Anjo da Aliança, a quem vós dese-
jais; eis que ele vem, diz YHWH dos Exércitos”. O adjetivo ‘enviado de Deus’
equivale à frase “envio meu mensageiro”, o verbo ‘surgiu’ equivale à expressão do
hebraico ‘de repente’. A diferença é que, em Malaquias, o mensageiro antecede o
próprio Deus, o que, em João, reafirma a divindade do Logos. Na tradição cristã
primitiva, a ‘preparação do caminho’ de Malaquias foi interpretada como o tes-
temunho de João Batista a respeito do Messias.
Comparando esse relato com os de Mt 3,1ss e Mc 1,2ss, notamos que, nos
Sinóticos, a tarefa de João é descrita com o verbo kerysso (anunciar, proclamar)
e não com martyreo (o verbo kekrago no v. 15 seria o equivalente ao kerysso). A

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


181

diferença principal reside na veracidade da fala de João: a testemunha é válida


na medida em que seu falar é verdadeiro, o foco do verbo usado em João recai
sobre a pessoa fiel no testemunho, enquanto o foco do verbo nos Sinóticos recai
sobre o conteúdo da pregação. Enquanto os Sinóticos falam do Batista como
pregador do arrependimento, João fala do Batista como anunciador do Messias,
enquanto aquele que ‘existia antes de mim’. Em João se destaca que o Batista não
é a luz, ele veio como testemunha da luz, mas não é a luz. O seu falar verda-
deiro (veridictório) tem como finalidade convencer as pessoas a serem fiéis ao
Messias. O batista é representante do falar veraz – tanto anterior quanto poste-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

riormente à vinda do Messias.


No conjunto do Prólogo, o Batista contrasta com os que rejeitam o Logos.
Tematicamente, ele cumpre o papel da veridicção – o testemunho aponta para
a veracidade da manifestação do Logos. O surgimento inesperado do Batista
prepara o surgimento inesperado do Logos na carne humana. A luz criadora
se faz história, se manifesta como luz salvífica e libertadora. Dessa luz, o Batista
dá testemunho, antecipando a sua veracidade. Implícito é o conflito com outros
pretendentes messiânicos que, não tendo uma testemunha veraz, não podem
ser considerados autênticos.
(2) Percurso da Rejeição
Podemos, agora, tratar sobre a manifestação rejeitada. Nos versos 9-13
encontramos as seções do Prólogo que se agrupam sob a temática da resposta à
manifestação:
9 Ela era a luz verdadeira, a luz que ilumina todo ser humano e estava che-
gando ao mundo. 10 Ela estava no mundo, e o mundo tornou-se existente por
intermédio dela, e mesmo assim o mundo não a recebeu. 11 Ela veio para os
seus, mas os seus não a receberam. 12 Entretanto, a todos quantos a receberam
deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus, aos que creem em seu nome;
13 os quais nasceram, não do sangue, nem da vontade da carne, nem da von-
tade do varão, mas de Deus.
Os verbos traduzidos por ‘receber’ são: ginosko, paralambano (v. 10) e lambano
(v. 12) . Não devemos ver qualquer diferença de sentido entre os dois verbos da
raiz lamb. Os verbos da raiz lamb são usados em três distintos contextos semân-
ticos: (a) o geográfico: levar alguém a algum lugar que, evidentemente, não é o

A Dimensão Teológica da Ação (1)


182 UNIDADE IV

sentido aqui; (b) a aceitação de uma pessoa como membro da família: em Mateus,
por exemplo, se fala de José recebendo Maria como esposa mesmo sabendo que
estava grávida (Mt 1,20ss); e (c) a recepção de uma tradição como verdadeira
(especialmente em escritos paulinos, como 1 Co 11 e 15; Gl 2).
No Evangelho de João, é comum o uso de termos com mais de um sentido
e, provavelmente, aqui, os dois sentidos devem ser assumidos. Trata-se de reco-
nhecer a Palavra como a luz, no sentido de acolhê-la e torná-la parte da família;
e também de reconhecer a veracidade da Palavra manifesta. O verbo ginosko é
usado no campo semântico do conhecimento – intelectual e das relações de ami-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
zade. Assim, embora tenha mantido o tradicional verbo ‘receber’ na tradução,
o sentido dessa ação é mais adequadamente destacado pelo verbo reconhecer.
Dessa maneira, ao dizer veraz do testemunho e ao dizer veraz da própria Palavra
corresponde o reconhecimento humano – aceitação da veracidade da Palavra-
Manifesta e acolhida hospitaleira da Palavra-Messias.
A Palavra-Luz é rejeitada pelo mundo e pelos ‘seus’. Aqui temos o movimento
da universalidade para a particularidade – os ‘seus’ são os judeus, enquanto o
mundo é toda a humanidade, especialmente o Império Romano (o mundo conhe-
cido na época). Vejamos, por exemplo, a interpretação de McHugh:
[...] o Quarto Evangelho foi escrito para apresentar o ensino de Jesus
aos gregos e aos judeus (cf. Jo 12:20-23), e para interpretar o significado
da vida e morte de Jesus (12:24). Para tal propósito, o uso de ho cosmos
para denotar a terra habitada e, particularmente, o Império Romano,
foi uma nova ferramenta linguística disponível, pois a palavra designa-
va todas as pessoas que viviam nesse mundo (incluindo o Imperador e
seus oficiais), e o designava como o cenário espacial, histórico e exis-
tencial de suas vidas (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 38).

É notável como João praticamente funde a manifestação da Luz-Palavra na cria-


ção e na salvação nos versos 9-11. Jesus é a luz do mundo enquanto agente da
criação e vivificador dos habitantes deste mundo (cf. Jo 1,3-5), e é a Luz-Logos-
Manifesta enquanto aquele que vem ao mundo e peregrina nele. Não reconhecida
na criação, nem na salvação, a Palavra permanece como a luz da criação, mas
não reconhecida como salvadora, a humanidade vive, mas vive uma vida efê-
mera e transitória – podemos ver, na palavra cosmos, um significado similar ao
da palavra sarx: mortalidade, finitude, transitoriedade.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


183

João diferencia, pelo verbo, a resposta dos diferentes sujeitos: o mundo não
(re)conheceu a Palavra (ginosko):
[...] o verbo é, com bastante probabilidade, usado no sentido semítico,
isto é, ‘conhecer e responder com um compromisso’, por causa do pa-
ralelo em 11:b. Para exemplos deste sentido semítico, ver Is 1:3: Jr 9:3;
22:15-16 e Os 4:1-6 (MCHUGH;STANTON, 2009, p. 40).

A escolha de João é logicamente consistente. Não seria viável falar de uma tra-
dição comum a todo o mundo, por isso, o genérico ‘conhecer/reconhecer’. Ao
apresentar a resposta dos ‘seus’, o verbo é o da tradição/hospitalidade, pois se
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pode evocar a tradição judaica em sua inteireza e a Bíblia em particular.


A que tradição João está se referindo? Dois temas traditivos estão presentes
aqui: (a) o tema da rejeição de YHWH pelo seu povo, presente, por exemplo, em Jr
3,25; 7,28; 9,12; 32,23; 40,3; 42,21; 44,23; e (b) o tema da vinda da Sabedoria/Torá e
sua aceitação pelo povo de Deus (Pv 8,1ss e Eclesiástico 14,20-15,10; 24,1ss). Como
o livro do Eclesiástico pertence ao cânon da LXX e não ao da Bíblia Hebraica, não
consta nas traduções usadas em Igrejas Protestantes. Assim, para facilitar a com-
preensão, cito os dois textos mencionados, na tradução da Bíblia de Jerusalém:
[...] feliz o homem que se ocupa da sabedoria e que raciocina com in-
teligência, 21 que reflete, em seu coração, nos caminhos da sabedoria
e medita em seus segredos. 22 Sai atrás dela como um caçador, põe-se
à espreita nos seus caminhos. 23 Inclina-se para olhar por suas janelas,
escuta às suas portas. 24 Detém-se junto à sua casa, fixa o prego nas
suas paredes. 25 Coloca a sua tenda junto a ela, acampará num lugar
de felicidade. 26 Porá seus filhos sob a sua proteção, será abrigado por
seus ramos. 27 Por ela será protegido do calor e acampará em sua glória
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, Eclesiástico, 14,20-27, 2017, on-line)1.
O que teme ao Senhor assim faz, o que se torna senhor da lei conseguirá a
sabedoria. 2 Sairá ao seu encontro como uma mãe, como uma esposa vir-
gem ela o acolherá. 3 Nutri-lo-á com o pão da prudência e o saciará com a
água da sabedoria. 4 Apoiar-se-á sobre ela e não cambaleará, confiará nela
e não se envergonhará. 5 Ela o elevará acima de seus companheiros e na
assembleia lhe abrirá a boca. 6 Encontrará alegria e uma coroa de júbilo e
herdará um renome eterno. 7 Os insensatos não a conseguirão, os homens
pecadores jamais a verão. 8 Ela está longe do orgulhoso e os mentirosos
nem se lembram dela. 9 O louvor não é belo na boca do pecador, pois não
lhe foi concedido pelo Senhor. 10 Porque é na sabedoria que se exprime o
louvor, e é o Senhor quem o guia (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Eclesiástico,
15,1-10, 2017, on-line)1.

A Dimensão Teológica da Ação (1)


184 UNIDADE IV

A sabedoria faz o seu próprio elogio, ela se exalta no meio de seu povo.
2 Na assembleia do Altíssimo abre a boca, ela se exalta diante do Poder.
3 “Saí da boca do Altíssimo e como a neblina cobri a terra. 4 Armei a
minha tenda nas alturas e meu trono era uma coluna de nuvens. 5 Só
eu rodeei a abóbada celeste, eu percorri a profundeza dos abismos,6 as
ondas do mar, a terra inteira, reinei sobre todos os povos e nações. 7
Junto de todos estes procurei onde pousar e em qual herança pudesse
habitar. 8 Então o criador de todas as coisas deu-me uma ordem, aquele
que me criou armou a minha tenda e disse: ‘Instala-te em Jacó, em Israel
terás a tua herança.’ 9 Criou-me antes dos séculos, desde o princípio, e
para sempre não deixarei de existir. 10 Na Tenda santa, em sua presença,
oficiei deste modo, estabeleci-me em Sião 11 e na cidade amada encontrei

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
repouso, meu poder está em Jerusalém. 12 Enraizei-me num povo cheio
de glória, na porção do Senhor, no seu patrimônio. 13 Cresci como o
cedro do Líbano, como o cipreste no monte Hermon. 14 Cresci como a
palmeira em Engadi, como uma roseira em Jericó, como uma formosa
oliveira na planície, cresci como um plátano. 15 Como a canela e o
acanto aromático exalei perfume, como a mirra escolhida exalei bom
odor, com o gálbano, o ônix, o estoraque, como o vapor do incenso
na Tenda. 16 Estendi os meus ramos como o terebinto, meus ramos,
ramos de glória e graça. 17 Eu, como a videira, fiz germinar graciosos
sarmentos e minhas flores são frutos de glória e riqueza. 19 Vinde a
mim todos os que me desejais, fartai-vos de meus frutos. 20 Porque a
minha lembrança é mais doce do que o mel, minha herança mais doce
do que o favo de mel. 21 Os que me comem terão ainda fome, os que
me bebem terão ainda sede. 22 O que me obedece não se envergonhará,
os que fazem as minhas obras não pecarão”. 23 Tudo isto é o livro da
aliança do Deus Altíssimo, a Lei que Moisés promulgou, a herança para
as assembleias de Jacó. 25 Como o Fison, ela está cheia de sabedoria,
como o Tigre na estação dos frutos. 26 Como o Eufrates, ela está reple-
ta de inteligência, como o Jordão no tempo da ceifa. 27 Como o Nilo,
ela faz correr a disciplina, como o Geon no tempo da vindima. 28 o
primeiro não acabou de conhecê-la, nem mesmo o último a explorou
completamente. 29 Pois seus pensamentos são mais vastos do que o
mar e seus desígnios maiores do que o abismo. 30 Quanto a mim, eu
sou como um canal de um rio, como um aqueduto que vai ao paraíso.
31 Eu disse: “Irrigarei o meu jardim, regarei os meus canteiros.” Eis
que meu canal tornou-se um rio e o meu rio tornou-se um mar. 32
Ainda farei a disciplina resplandecer como a aurora e a farei brilhar
bem ao longe. 33 Ainda derramarei a instrução como uma profecia e
a transmitirei às gerações futuras. 34 Vede: não trabalhei só para mim,
mas para todos que a sabedoria procuram (BÍBLIA DE JERUSALÉM,
Eclesiástico, 24,1-34, 2017, on-line)1.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


185

A tradição da Sabedoria como agente da criação já se inicia em Pv 8, como


uma releitura da noção da criação pela palavra de Deus. A Sabedoria é
personificada e descrita como a primeira obra de Deus, anterior à criação
do mundo. O livro de Eclesiástico, já no período da dominação grega so-
bre Judá, amplia essa tradição inicial e apresenta a Sabedoria não só como
agente da criação, mas também a identifica com a Torá e a apresenta como
libertadora de Israel e, em certa medida, disponível a toda a humanidade.
Em alguns ambientes judaicos até se falava da Sabedoria como um segundo
deus ou um deus secundário.
Fonte: o autor.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Quero destacar a afirmação de que a Sabedoria veio a Jerusalém e nela encon-


trou seu lugar, enraizou-se e cresceu, ou seja, em sua identificação com a Torá, a
Sabedoria foi reconhecida por Jerusalém (pelo povo de Deus). Poderíamos dizer
“veio para o que era seu e os seus a reconheceram”.
João adota a tradição judaica da Sabedoria como um elo para tornar mais
compreensível a noção da divindade de Jesus, sem incorrer em um diteísmo.
Assim, o escândalo da afirmação de que o Messias é Deus fica atenuado pela tra-
dição judaica da Sabedoria (Torá). O contraste é que, enquanto Israel recebeu a
Torá, não recebeu o Messias de quem a Torá e a Sabedoria dão testemunho. Em
certo sentido, poderíamos dizer que a Sabedoria seria o equivalente traditivo
de João Batista. Note-se, também, que, em contraste com o testemunho de João
Batista, que levaria à fidelidade ao Messias, a Lei de Moisés (Jo 1,17), embora
veraz, não levou à fidelidade, mas à rejeição do Messias.
Desta forma, João argumenta que a Palavra-Luz-Vida-Messias-Manifesta
foi rejeitada por toda a humanidade e, também, pelo seu próprio povo eleito.
Entretanto, na medida em que ‘as trevas não prevaleceram contra ela’, existem
aqueles que a reconheceram. Passemos, então, a refletir sobre o reconhecimento
(recebimento) da Palavra (1,12-13).
(3) Percurso do Reconhecimento
Inicio com a descrição de quem recebe a Palavra: (a) todos os que (ὅσοι
δὲ); (b) aos que creem em seu nome ( τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτου); (c)
os quais nasceram, não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade

A Dimensão Teológica da Ação (1)


186 UNIDADE IV

do varão, mas de Deus (οἳ οὐκ ἐξ αἱμάτων οὐδὲ ἐκ θελήματος σαρκὸς οὐδὲ ἐκ
θελήματος ἀνδρὸς ἀλλ᾽ ἐκ θεοῦ ἐγεννήθησαν).
A construção gramatical é explicativa: todos os que são delimitados por duas
características: creem em seu nome; nasceram (não de...) de Deus. Temos, nesta
descrição, uma forte afirmação da igualdade entre os seres humanos, que se con-
trapõe, de modo radical, às noções judaicas e greco-romanas de classificação das
pessoas em dois grupos: ‘nossos’ versus ‘eles’.
Para a tradição judaica institucional (não necessariamente para a Bíblia dos
hebreus), o mundo é dividido entre judeus (salvos) e gentios (condenados); para

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os gregos, em ‘gregos’ e ‘bárbaros’; para os romanos, em ‘cidadãos (de Roma)’
e não-cidadãos (podem ser conquistados). Essa lógica classificatória é negada
por João. Na relação com Deus, nenhum privilégio de raça, poder, classe, credo,
conhecimento etc. é aceito. Só há um critério para pertencer a Deus ‘crer em seu
(Logos) nome’, que poderíamos entender mais adequadamente como ‘ser fiel à
Palavra enquanto pessoa e projeto de vida’. Nenhum outro critério é válido, por
isso a tríplice negação: não nasceram do sangue (raça, etnia, nacionalidade); não
nasceram da vontade da carne (do que é transitório e mortal, de modo que é
um nascimento que conduz à morte); nem nasceram da vontade do varão (con-
quista, propriedade, autoridade patriarcal), ao contrário, ‘nasceram de Deus’, ou
seja, foram gerados por Deus - tema que será retomado e ampliado no Capítulo
3 do Evangelho de João.
Passo, agora, a refletir mais sobre a frase τοῖς πιστεύουσιν εἰς τὸ ὄνομα αὐτου. (1)
A frase, em aposição a αὐτοῖς, não é uma qualificação restritiva, mas
definidora: aceitar o Logos é crer e confiar em seu nome. Embora hou-
vesse Vida e Luz no Logos (1:3-4), o próprio Logos ainda não havia
recebido nenhum outro nome, em adição, muito menos um nome pes-
soal específico (αὐτοῦ). A frase quase idêntica, alterada parcialmente,
recorre, funcionando como um inclusio abrangente, em 20:31, como a
conclusão solene do Evangelho (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 46).

(2) o verbo pisteuw, normalmente traduzido por crer, tem como significado
primário o ato de confiar em alguém, que rege uma relação de fidelidade ou con-
fiança. Crer, então, não é mera questão de ‘concordar com o que é dito’, mas sim
um compromisso fiel e confiante; (3) a expressão ‘em seu nome’, segundo Brown,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


187

[...] também é tipicamente joanina (2:23; 3:18; 1Jo 5:13). Crer no nome
de Jesus não é diferente de crer em Jesus, embora a primeira expressão
destaque mais a ideia de que, para crer em jesus, se requer aceitar que
ele carrega o nome divino que lhe foi outorgado por Deus (17:11-12)
(BROWN, 1999, p. 204).

Devemos destacar que a noção de ‘nome’, no pensamento judaico, incluía não só


o caráter da pessoa, mas, e especialmente, o projeto de vida dessa pessoa, sendo
assim, ‘orar em nome de Jesus’ significa ‘orar de acordo com a vontade de Jesus’.
Consequentemente, crer no nome de Jesus significa ser fiel ao projeto libertador
do Logos, o que implica em uma universalização da vocação do Batista: todas as
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pessoas que creem no nome de Jesus são suas testemunhas!


O efeito dessa fidelidade é descrito, também, de modo radical: (a) deu-lhes
o direito de se tornarem filhos de Deus ( ἔδωκεν αὐτοῖς ἐξουσίαν τέκνα θεοῦ
γενέσθαι); (b) nasceram (ἐγεννήθησαν) [...] de Deus. A palavra ἐξουσία é usada
em diferentes campos semânticos: no campo do poder político (autoridade),
no campo das habilidades humanas (capacidade) e no campo jurídico (direito).
Entendo que o sentido mais provável, aqui, seja o que vincula o político com o
jurídico, em analogia com a legislação romana da adoção. Mediante a adoção por
um cidadão romano (nobre ou não), a pessoa adotada (geralmente um pobre ou
um escravo) recebia o nome do pai e se tornava membro integrante de sua famí-
lia e participante de todos os seus direitos, poderes e bens. O que João vê, aqui
- a adoção e muito mais - se percebe pelo uso do verbo gennaw, também usado
ao se falar de Jesus como o unigênito. O verbo significa gerar, quando o sujeito
é o pai; e conceber, quando o sujeito é a mãe.
Se os que creem em Jesus também são gerados por Deus, que diferença há
entre eles e Jesus? Vejamos:
[...] a frase τέκνα θεοῦ não é encontrada nos Sinóticos, e somente duas
vezes em João (aqui e em 11:52; mais 1Jo 3:1.2.10; 5:2). Em outros lugares
no NT, ocorre somente em Rm 8:16.17.21; 9:8; Ef 5:1 (τέκνα ἀγαπητὰ) e
Fp 2:15. Efésios 5:1 é de inspiração judaica e Fp 2:15 é uma citação parcial
de Dt 32:5, na LXX, de modo que nenhuma das duas utilizações é distin-
tivamente cristã em sua origem (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 45).

Esta frase não se aplica a Jesus, ele é sempre chamado, em João e em outros
livros, de ὁ υἱὸς τοῦ θεοῦ. João, em especial, ainda chama Jesus de μονογενὴς
(1,14.18; 3,16.18; 1Jo 4,9) – ele é o único autor do NT a chamar Jesus de unigênito.

A Dimensão Teológica da Ação (1)


188 UNIDADE IV

A diferença é temporal e ontológica: Jesus é filho ontologicamente e, por isso,


gerado ‘fora do tempo’, uma geração que, simultaneamente, o constitui como
Filho e constitui o Pai como Pai. Os que creem em seu nome são gerados histo-
ricamente e não participam da divindade no sentido ontológico.
Somos crianças de Deus, ou seja, membros da família de Deus e irmãs e
irmãos do Unigênito. Recebemos – o verbo grego que tem Deus como sujeito
significa presentear – o presente de nos tornarmos membros da família de Deus,
com todos os direitos relativos a essa pertença. Se, por um lado, os que creem em
seu nome são, como o Batista, testemunhas; por outro, são, como Jesus, filhas

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e filhos; não só anunciam a Palavra, mas vivem como a Palavra encarnada. Vale
aqui uma citação:
[...] ele nunca usa, nem no Evangelho, nem nas Epístolas, o termo uioí
para referir-se aos crentes. A pessoa se torna um uios pela adoção; mas
um teknon pela regeneração e transformação. Paulo usa ambos os ter-
mos ao descrever os crentes como filhos de Deus. O substantivo que
João usa para esse propósito vem de tiktw - gerar. No entendimento
de João, a salvação é a concessão da vida, o nascer-se (sic) de Deus, de
modo que a pessoa se torna sua filha (1 Jo 2.29; 3.9). Mediante esse ato
de ser gerada por Deus, a pessoa é transformada à semelhança de Deus.
E, como Deus é amor, o ser que nasce de Deus se manifesta no amor
para com os irmãos (1 Jo 4.7, 8). João, portanto, enfatiza extensamente
o amor como a marca do cristão: o amor é luz, mas o ódio é escuridão, e
o que odeia caminha nas trevas (1 Jo 1.10, 11). O amor que se espera de
nós é do tipo auto-sacrificial (1 Jo 3.16) (HENDRIKSEN, 2001, p. 115).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


189
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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO (2)

Uma das características mais marcantes do Prólogo é que o seu termo central,
Logos, jamais volta a ser usado no Evangelho de João. Alguns autores usam este
dado para afirmar que o Prólogo não é de autoria joanina; outros, para afirmar
que teria sido um hino das comunidades apropriado por João. Não é possível
verificar a validade dessas especulações, na medida em que não temos nenhum
indício documental concreto da existência de 1,1-18 como um escrito indepen-
dente. No final das contas, trata-se apenas de uma questão de interpretação e,
aqui, elementos não-hermenêuticos acabam entrando em cena desnecessaria-
mente (subjetividade dos intérpretes, o ethos acadêmico e/ou eclesiástico).
Parece-me muito mais viável explicar a ausência da palavra logos, enquanto
‘título’ de Jesus no Evangelho, a partir da percepção de que a coerência não se
funda apenas no plano de expressão, nem no nível discursivo do plano de conte-
údo, mas também nos níveis narrativo e profundo. Se a palavra logos não reaparece
no Evangelho, o tema da manifestação é recorrente, bem como os temas da rejei-
ção e do reconhecimento da manifestação divina no logos encarnado.

A Dimensão Teológica Da Ação (2)


190 UNIDADE IV

Fatores subjetivos influem muito fortemente na interpretação de tex-


tos se não tomarmos os devidos cuidados. Atenção a seus próprios in-
teresses hermenêuticos!

Outro aspecto marcante da pesquisa sobre o Prólogo tem sido a discussão sobre o
pano de fundo a partir do qual João desenvolveu sua noção de Jesus como Logos
Theou. No período áureo da Religionsgeschichtliche Schule (Escola da Pesquisa
Histórico-Religiosa), que durou do início do século XX até meados dos anos

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1950, a conclusão mais comum era a de que esse pano de fundo era grego (ou a
filosofia estóica, ou o pensamento hermético, ou o gnosticismo). Após esse perí-
odo, e até hoje, a tendência da pesquisa histórico-crítica é afirmar que o pano de
fundo é judaico (Sabedoria [em Provérbios e no Eclesiástico, ou a memra=pa-
lavra nos Targuns [traduções da Bíblia para o aramaico], ou o logos nos escritos
de Filo de Alexandria).
Entendo que tal discussão, embora extremamente importante, propõe con-
clusões certas no que afirmam, mas erradas no que negam. Podemos vislumbrar
no Prólogo tanto um diálogo interdiscursivo com o mundo judaico – mono-
teísmo, criação pela palavra, criação pela sabedoria, chegada da sabedoria ao
mundo (seja nos escritos canônicos, na LXX, seja em Filo ou em Qumran etc.)
–, quanto um diálogo com o mundo helenístico – razão em sentido amplo, o
logos estoico em particular etc.
Certamente, não podemos afirmar que a fonte do conceito de logos é ape-
nas ‘grega’ ou apenas ‘judaica’. De fato, a questão hermenêutica mais importante
não é a da origem. A análise das relações interdiscursivas não se preocupa em
estabelecer origem ou fonte, mas sim entender como o texto produz significado
dentro de um universo discursivo complexo como o do evangelista João, tanto
em suas relações contratuais como em suas relações polêmicas.
Passemos, então, à análise da Palavra nos percursos do texto. Relembrando:
A Palavra-Deus-Manifestação Criacional (1-5);
B Palavra-Mundo-Manifestação-Rejeitada (6-11);
(Testemunho de João)

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


191

B’ Palavra-Mundo-Manifestação-Reconhecida (12-13);
(Testemunho de João)
A’ Palavra-Deus-Manifestação Encarnacional (14-18)/
(4) Percurso da Palavra-Deus-Manifestação Criacional (1-5)
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος. 2
οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3 πάντα δι᾽ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ
ἐγένετο οὐδὲ ἕν. ὃ γέγονεν 4 ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν, καὶ ἡ ζωὴ ἦν τὸ φῶς τῶν ἀνθρώπων·
5
καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνει, καὶ ἡ σκοτία αὐτὸ οὐ κατέλαβεν.
O primeiro percurso temático centrado na Palavra (versos 1-5) apresenta a
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manifestação da Palavra sob dois eixos conceituais: (a) Jesus=Logos é Deus, mas
é Deus-distinto de Deus; (b) Jesus=Logos é o Deus-agente-da-criação. Temos,
então, dois campos de significado para refletir.
(a) Jesus é Deus-distinto-de-Deus. Mais adiante, no próprio Prólogo, a dis-
tinção entre Logos-Deus e Deus será explicitada mediante o uso da metáfora
familiar Deus é Deus-Pai=Deus (usado sem qualificativos) e Deus-Filho=Logos
(usado com diferentes qualificativos, exceto nesses primeiros versos do Prólogo).
Como já vimos na discussão sobre contexto e interdiscursividade, o uso da
palavra grega λόγος como título de Jesus tira proveito das suas diferentes signi-
ficações no mundo joanino. Predominantemente, podemos afirmar que o λόγος
joanino é uma releitura da palavra-sabedoria-torá judaicas. Apresentar Jesus como
Deus-Logos é destacar o caráter de manifestação do Deus-Filho. Implícito nos
versos 1-3 está o conceito de testemunha: a testemunha mais adequada é aquela
que representa, efetiva e fielmente, a pessoa de quem ela dá testemunho. Jesus é
testemunha fiel porque no tempo-antes-do-tempo ele vivia em comunhão com
Deus-Pai, não como uma de suas criaturas, mas como Deus propriamente dito.
Em outras palavras, somente Deus pode manifestar Deus e, desde antes da cria-
ção do mundo, Deus é Deus que se manifesta a Si mesmo. A partir da criação
do mundo, Deus é Deus que se manifesta ao outro criado.
O quarto sentido, vétero-testamentário, é o sentido atribuído ao con-
ceito do Logos em todas as interpretações clássicas, e podemos ter por
certo que o evangelista intencionava incluir em seu uso todos os aspec-
tos do sentido dado no Antigo Testamento ao termo logos. Isto, porém,
não precisa nos impedir de afirmar, em acréscimo, que o sentido pri-
mário de Logos em João 1 é o quinto, a saber, que o termo Logos equi-

A Dimensão Teológica Da Ação (2)


192 UNIDADE IV

vale ao aramaico memra (Palavra), considerada como o Nome Santo e


Inefável de Deus. Ou seja, usar Logos-Memra é referir-se à divindade
revelada na frase ‘Eu sou o que Sou’ de Êxodo 3:14; e o sentido desta
frase é que o Deus de Moisés não apenas existe – em sentido ontológico
(Sein = Ser), mas também está sempre presente ao lado de suas criatu-
ras, sempre pronto para exercer misericórdia e oferecer qualquer tipo
de auxílio que elas precisem em qualquer situação (Dasein = Estar aí).
[...] O sentido de João 1:1a, portanto, é: ‘no princípio, antes do mundo
material ter sido criado, existia a Palavra de Deus, o Misericordioso, o
Compassivo’. Esta paráfrase está em pleno acordo com o Targum Pa-
lestinense de Gn 1:1: ‘um espírito de amor, de diante da face de Deus,
soprava sobre a face das águas’ (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 8-9).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Nos versos 1-2, portanto, o Deus-Manifestador é apresentado como Palavra
(Logos), em um arranjo de paralelismo que destaca a divindade do Logos - um
quiasmo de três linhas e uma quarta linha que resume o quiasmo:
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος,
καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν,
καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.
οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν.
Na tradição teológica, se costuma falar da existência do Logos, antes da criação
do mundo, como a pré-existência do Logos. A partir do verso 3, o Prólogo passa
a falar do Logos como agente da criação (v. 3) e presença de Deus-manifestação
na criação (v. 4-5), usando, para este último item, a metáfora da luz. É bem
provável que a escolha da metáfora da Luz tenha sido fruto da interpretação
(midraxe) de Gn 1,1-5, pois o primeiro ato criador da palavra de Deus foi a luz
(“Disse Deus: Haja luz; e houve luz” Gn 1,3). A tradição de Jesus como agente
da criação já está presente na literatura paulina (ver, principalmente, Cl 1,15-
18) e também em Hebreus (Hb 1,3). Já sabemos que na base dessa afirmação
está a noção da Sabedoria como agente divino na criação (como vimos, espe-
cialmente em Provérbios e Eclesiástico, que identifica a Sabedoria com a Torá).
A diferença é que, em João, Jesus é Deus, não só um agente de Deus. A Palavra
é Deus-Manifestação e, também, Deus-Agente-Criador.
A luz simboliza a vida. Não só a vida enquanto o viver das criaturas, mas tam-
bém a vida enquanto a vida-com-Deus que o ser humano poderia ter vivido, mas
que rejeitou mediante o pecado. Em Gn 2,7 e Sl 104,29-30 é o Espírito de Deus
que dá vida aos seres criados, temática que João incorpora, mas atribui ao Logos

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


193

(mais adiante em seu Evangelho, João chamará o Espírito de outro Consolador, ou


seja, o Espírito representará Jesus na história humana, assim como Jesus repre-
sentou o Espírito na outorga da vida ao ser humano).
Em 1,3-5, João apresenta, condensadamente, uma profunda visão da vida=luz:
(a) o viver das criaturas não é um viver autônomo: a vida está em Jesus (Deus-
Palavra); (b) o viver das criaturas é ameaçado pela infidelidade do ser humano
(trevas); (c) as trevas, porém, não prevalecem sobre a luz – o viver divino no ser
humano, que foi ameaçado pela infidelidade, não foi derrotado. Em seu amor
infinito (cf. Jo 3,16), Deus não permite que as trevas superem a Luz da Vida; a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

condenação não é a última palavra de Deus, de fato, a condenação é fruto da


própria ação humana, enquanto a ação divina é a de outorgar vida (cf. João 3).
Que as trevas não prevalecem contra a luz é manifestado historicamente
mediante o testemunho, ou seja, mediante a presença da Palavra de Deus nas
palavras e ações humanas. Como já vimos, João Batista simboliza, no Prólogo,
todas as testemunhas de Deus na história humana (equivalente à abertura de
hebreus, v. 1-2: “Tendo Deus outrora falado muitas vezes e de muitas maneiras
... hoje em seu Filho falou”).
Assim, é mais sábio entender 1:9 como dizendo, primeiro, que o Lo-
gos era a luz verdadeira e, em segundo lugar, que a luz estava para vir
ao mundo. Este Evangelho jamais nega que tenha havido uma relação
entre a luz da Palavra de Deus e a humanidade desde o princípio (1:4);
mas 1:9 afirma que, em um momento particular no tempo, esta luz
estava, presumivelmente em um sentido totalmente novo, entrando no
mundo (cf. Gl 4:4; Hb 1:1 etc.) (MCHUGH; STANTON, 2009, p. 34).

Qual é a novidade da chegada de Jesus à história humana? Que a luz da vida,


outorgada à criatura, agora está presente na ‘criatura’, ou seja, no Deus-Palavra
que se torna vivente historicamente, em carne. Em Jesus, a luz divina não só bri-
lha no mundo, ela se torna parte do mundo criado e, no mundo, transcende e
derrota o mundo (enquanto infidelidade a Deus).
O caráter do Logos como Deus-manifestador-de-Deus não só está presente
nesses versos iniciais, mas também está presente no encerramento do Prólogo,
que qualifica Jesus como ‘exegese’ do Pai, e está igualmente presente ao final
do Evangelho, na declaração de propósito: [...] estes, porém, foram registrados
para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais

A Dimensão Teológica Da Ação (2)


194 UNIDADE IV

vida em seu nome” (note que ‘nome’ equivale a Memra). Mesmo não usando
o termo Logos fora do Prólogo, o Evangelho de João é o Evangelho da Palavra
– Logos-manifestação-divina.

(5) Percurso da Palavra-Deus-Manifestação Encarnacional (14-18)


14
Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, καὶ ἐθεασάμεθα τὴν
δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός, πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας.
15
Ἰωάννης μαρτυρεῖ περὶ αὐτοῦ καὶ κέκραγεν λέγων, Οὗτος ἦν ὃν εἶπον, Ὁ
ὀπίσω μου ἐρχόμενος ἔμπροσθέν μου γέγονεν, ὅτι πρῶτός μου ἦν. 16 ὅτι ἐκ

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
τοῦ πληρώματος αὐτοῦ ἡμεῖς πάντες ἐλάβομεν καὶ χάριν ἀντὶ χάριτος· 17 ὅτι ὁ
νόμος διὰ Μωϋσέως ἐδόθη, ἡ χάρις καὶ ἡ ἀλήθεια διὰ Ἰησοῦ Χριστοῦ ἐγένετο. 18
θεὸν οὐδεὶς ἑώρακεν πώποτε· μονογενὴς θεὸς ὁ ὢν εἰς τὸν κόλπον τοῦ πατρὸς
ἐκεῖνος ἐξηγήσατο.
Enquanto o percurso anterior poderia ser lido dentro dos limites da tradi-
ção judaica, esse segundo percurso do Logos mostra que estamos em um mundo
que transcende os limites dessa tradição. De igual modo, mostra que estamos
em um mundo que explode os limites da visão grega da vida e da divindade. A
frase determinante e ‘escandalosa’ é a que dá início a esse segmento do Prólogo:
“Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο”. Que a Sabedoria e a Memra estavam presentes no
mundo, assim como o logos grego está presente no mundo, não se pode negar,
porém, João afirma algo muito mais complexo do que dizer que Logos-Deus está
no mundo. João afirma que Deus-Logos se fez carne, ou seja, assumiu o viver
transitório e efêmero da criatura. Nessa única sentença, João reafirma a declara-
ção paulina igualmente avassaladora: “antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo
a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em
figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz” (BÍBLIA, Filipenses 2,7-8).
Nesse Percurso, encontramos a forma mais intensa da polêmica joanina,
tanto em relação ao Judaísmo oficial, quanto em relação à visão greco-romana
da realidade e da divindade. Vejamos:
(a) Polêmica contra o dualismo greco-romano
O dualismo ontológico espírito-matéria tem suas origens no pensamento filo-
sófico grego, especialmente em sua vertente platônica. Ele identifica a maldade,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


195

a transitoriedade e a morte com o material. Em contraste, o bem, a eternidade


e a vida são identificados com o espiritual que, nesse caso, é equiparado com o
imaterial e, especialmente, com o mundo das ideias, com os conceitos.
De forma bem distinta, encontramos, no Novo Testamento, uma dualidade
de Espírito-carne, na qual o espírito é o Espírito de Deus (não as “ideias”, ou o
“imaterial impessoal”, nem mesmo o espírito “humano”). Nessa dualidade, carne
não é a matéria, nem o corpo, mas uma estrutura de vida, uma tendência de vida
que desconsidera a graça e a soberania divina e faz do próprio ser humano, a
fonte e o árbitro dos valores e da vida. Nada poderia ser mais contrário à cos-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

movisão dualista grega.


A essa cosmovisão dualista também pertencem outras características impor-
tantes para a teologia, uma delas é a do dualismo entre natureza e cultura, ou
seja, a afirmação de que a natureza (plantas, animais e minerais) é inferior ao
ser humano, pois não possui a substância imaterial; enquanto a cultura – que é
fruto da ação humana – é a dimensão espiritual da realidade e, portanto, supe-
rior à natureza (a falta de consciência ecológica é fruto desse tipo de dualismo).
No dualismo desse tipo, o ser humano também é dividido em duas substân-
cias: corpo (material) e alma (ou espírito, imaterial). Logicamente, a alma é vista
como eterna e verdadeira, enquanto o corpo é perecível e ilusório, uma “prisão
da alma”, por assim dizer (daqui derivam as ideias de que o prazer corporal é
ruim). Outra característica é de cunho ético - o dualismo de bem e mal: o mal
é uma propriedade dos corpos, pois o mal é material, logo, o bem é algo imate-
rial, incorpóreo, são virtudes abstratas e ideais.
Como consequência desse dualismo, surgem diversos problemas ético-mo-
rais. Por exemplo, a identificação do corpo com a maldade faz com que tenhamos
uma ética distorcida da sexualidade, ao mesmo tempo em que não somos capazes
de lidar suficientemente bem com as questões ligadas à saúde (obesidade, seden-
tarismo, alimentação inadequada) ou, por outro lado, caiamos presos do culto
pós-moderno ao corpo (beleza, musculação etc.). Um segundo exemplo tem a
ver com as questões ecológicas – se a matéria é má, por que cuidar das plantas,
rios, ar e animais? Quando enxergamos a natureza como oposta ao espírito, não
nos preocupamos com ela e deixamos de cuidá-la e, assim, descumprimos a voca-
ção divina da humanidade (dominar a terra e cuidar dela, Gn 1 e 2).

A Dimensão Teológica Da Ação (2)


196 UNIDADE IV

O Prólogo contradiz radicalmente o dualismo grego ao afirmar que o Logos


se fez carne! Deus-Logos assumiu a transitoriedade humana para salvar a sua
criação da infidelidade do próprio ser humano. A salvação não é uma liberta-
ção da ‘alma’ da ‘prisão do corpo’, a salvação é a libertação da infidelidade para
uma vida de fidelidade a Deus. Não podemos usar a metáfora da peregrinação
do Logos para diminuir o impacto do sentido da encarnação. Devemos enten-
der essa metáfora da peregrinação em conjunção com o que João fala sobre o
Espírito, que é ‘outro Consolador’, ou seja, é Deus-Espírito permanentemente
presente neste mundo, entre nós e em nós, que somos fiéis a Deus.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Na tradução, optei pelo verbo ‘peregrinar’ para traduzir um verbo grego que,
literalmente, significa ‘morar em tendas’ ou ‘acampar’. Esse verbo é alusivo às
tradições litúrgicas de Israel, como nos lembram Mateos e Barreto: “O verbo
‘acampar’ deriva, em português, de ‘campo/acampamento’ e conota a ideia de
tenda de campanha, gr. Skené, substantivo do qual deriva o verbo aqui usado.
Aparece, assim, nesta frase, uma alusão à antiga Tenda do Encontro (ou Ten-
da da Congregação), morada de Deus entre os israelitas durante sua peregri-
nação pelo deserto, a primeira época de israel (Êx 33:7-10), substituída, mais
tarde, pelo santuário de Jerusalém (2Sm 7:1-13; 1Rs 5:15-19; 6:1ss.). Aquela
presença de Deus foi substituída por esta: a tenda de Deus, o lugar onde ele
habita entre os seres humanos, é um homem, uma ‘carne’. Aflora, aqui, o tema
do êxodo, que será desenvolvido no corpo do Evangelho a partir de 4:46b e
que era próprio da festa da Páscoa” (MATEOS; BARRETO, 1982, p. 68).

(b) A polêmica com o Judaísmo Oficial


A polêmica com o Judaísmo Oficial é intensa, mas não se trata de uma polê-
mica do tipo ‘cristãos versus judeus’, mas sim uma polêmica que, em boa medida,
era interna ao próprio Judaísmo – diríamos que entre um Judaísmo Oficial e
uma forma popular de Judaísmo. Enquanto João rejeita totalmente o dualismo
greco-romano, ele aceita a validade das tradições da Sabedoria, da Memra e da
Torá, ele apenas dá um novo significado a elas a partir de sua nova percepção

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


197

da divindade de Jesus, o Messias de Israel, Deus-Manifestação. O caminho tra-


ditivo, mediante o qual João constrói sua nova teologia messiânica, passa por
Jeremias 31,27-34; Ezequiel 18 e 36, bem como por Deuteronômio 10 e 30. Nesses
textos, a aliança entre YHWH e Israel, bem como o papel da Torá na aliança, é
revisada e se afirma uma ‘nova aliança’. A novidade joanina é a interpretação da
nova aliança a partir de Jesus – o Messias Deus-Filho.
Vamos, mais uma vez, dialogar com Mateos e Barreto, em seu comentário
a Jo 1,17:
[...] a Lei mosaica se contrapõe ao amor e à lealdade, assim como o exter-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

no e caduco se contrapõe ao que é constitutivo e permanente. Diante da


nova realidade do ser humano, o código externo perde sua validade e sua
razão de ser. A nova Lei será uma inclinação interior do próprio ser hu-
mano, fruto do Espírito que recebe. É conhecida a passagem de Ez 36:25-
28, inspirada na de Jr 31:31-34 (MATEOS; BARRETO, 1982, p. 77).

É preciso, porém, dar maior precisão à palavra dos comentaristas. O problema


não é com a Lei de Moisés enquanto tal, mas com a sua incapacidade de mudar
o ser humano. A Lei é uma das testemunhas da Palavra (assim como João), mas
a infidelidade de Israel distorceu o significado desse testemunho e o Judaísmo
Oficial reduziu a Lei a uma simples questão de obediência a uma lista de regras.
João, ao invés disso, vê a Lei como testemunha de Jesus – a luz verdadeira!
A Lei é uma ‘lâmpada’ que ilumina fracamente o caminho, comparada com o
esplendor da glória da Luz verdadeira: Deus-Manifestação. Jesus, enquanto a
verdadeira plenitude da Lei e da Sabedoria, torna manifesta a glória de YHWH.
Glória que era a sua presença no Tabernáculo e no Templo (Êx 40,34-38; 1Rs
8,10ss etc.), mas que abandonou o Templo quando da sua profanação pela infi-
delidade de Israel, que aprendemos na pregação de Ezequiel. A glória divina, o
seu esplendor e majestade, agora se manifestou de modo pleno na encarnação
do Logos! Não se trata de uma glória fugaz, como a dos imperadores huma-
nos, mas de uma glória permanente, cuja forma mais esplêndida é o clamor do
Messias na cruz!
A glória de Deus, manifesta em Jesus, é constituída por graça e fidelidade:
[...] esta frase é retirada de Êx 34:6). Moisés, antes de receber o segun-
do decálogo, apresentou vários pedidos a Deus, que lhos concedeu (Êx
33:12-17). Entretanto, ao expor o último pedido ‘mostra-me tua glória’

A Dimensão Teológica Da Ação (2)


198 UNIDADE IV

(Êx 33:18), Deus respondeu: ‘farei passar adiante de ti toda a minha gló-
ria, e pronunciarei diante de ti o nome YHWH ... meu rosto, porém, não
poderás ver, porque ninguém pode vê-lo e permanecer vivo ... quando
minha glória passar colocar-te-ei em uma fenda da rocha e te cobrirei
com a palma da mão até que eu tenha passado, e quando retirar minha
mão tu poderás ver as minhas costas, mas meu rosto não o verás’ (33:19-
23). O Senhor passou adiante dele proclamando: ‘YHWH, YHWH, Deus
compassivo e clemente, grande em graça e fidelidade (cheio de amor e
lealdade), etc.’ (34:6) (MATEOS; BARRETO, 1982, p. 71).

Quem segue fielmente a Jesus, porém, vê a glória de Deus e não morre, pelo
contrário, herda a vida eterna! Eis a incomparável novidade da mensagem joa-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
nina: tudo o que se esperava nas promessas de Deus ao antigo Israel agora se
cumpre em Jesus, e se cumpre de um modo muito mais glorioso e inesperado.
Não só para Israel, mas para ‘todos os que o reconheceram’. Todos que reconhe-
cem Jesus como o Messias, o Deus-Logos, Deus-Manifestação, Deus-Exegese,
são feitos, pelo próprio Deus, seus filhos e filhas, sem distinção de etnia, raça,
nacionalidade, classe, cor, credo etc., pois a luz verdadeira ilumina a todos os
seres humanos. Cabe a nós receber a Luz e andar nela.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


199

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Muito bem, agora cabe a você realizar esse passo da metodologia exegética. Esta
será a atividade que servirá de verificação da aprendizagem desta unidade da
nossa disciplina, por isso, capriche.
Como fazer? Minha sugestão é que você siga os seguintes passos metodológicos:
(1) Aliste as áreas da vida em que o texto pode ser aplicado – por exemplo:
liturgia, crítica social etc.;
(2) Verifique se há elementos teológicos do sentido do texto que devem ser
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

revistos à luz do Novo


Testamento e faça tal
revisão;
(3) Analise os pro-
blemas atuais (de nosso
tempo) nas áreas da vida
em que o texto pode ser
aplicado e os explique;
(4) Faça a aplicação
propriamente dita.
Uma sugestão: como
o Prólogo possui bastante
assuntos e é complexo
e profundo, você pode
escolher apenas um dos
temas discutidos e pro-
por a sua releitura do
mesmo.

A Dimensão Missional da Ação


200 UNIDADE IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe, agora, fazermos uma revisão do que foi estudado. Você ainda se lembra
do que leu e estudou nesta unidade? Tenho certeza que ainda consegue lembrar
de boa parte, mas não custa nada relembrar o que fizemos:
No Tópico 1, exemplifiquei os procedimentos da fase preparatória da exegese:
a tradução do texto grego, a delimitação da perícope e a análise de sua segmen-
tação e estruturação. Como a estrutura do Prólogo de João oferece dificuldades
interessantes para a análise, gastei bastante tempo com ela.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
No segundo Tópico, apresentei alguns dos principais aspectos do contexto
do Evangelho de João. Mais uma vez, o espaço dedicado ao estudo do contexto
derivou da própria exigência da perícope de João, que reflete um amplo diá-
logo com o mundo de ideias e espiritualidades de seu tempo. João escreveu seu
Evangelho em amplo debate com as noções judaicas oficiais de Messias e de liber-
tação, além de entrar em diálogo crítico com o pensamento estoico sobre o logos
(a razão, a palavra que dá sentido ao mundo).
Nos Tópicos 3 e 4 estudamos a dimensão teológica da ação. Verificamos o
arranjo temático da perícope, percebemos a sua unidade e a forma como cada
um dos seus percursos temáticos nos proporciona sentidos para crer e viver.
Jo 1,1-18 é uma perícope teologicamente muita densa. Procurei mostrar como
podemos ir além do olhar tradicional da leitura e enxergar melhor as riquezas
do texto. Por isso, gastei bastante tempo com a análise de sua teologia, em par-
ticular, o que hoje chamamos de cristologia do Prólogo do Evangelho de João.
Vimos, também, como o prólogo do Evangelho aponta para o sentido da salva-
ção que nos é dada pelo Messias.
Por fim, no último tópico, indiquei os passos necessários para se fazer a aná-
lise da dimensão missional da ação. Fica, mais uma vez, o convite para que você
mesmo faça exegese.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 1,1-18


201

V. 1, “Ἐλ ἀξχῇ ἦλ ὁ ιόγνο, (No princípio era o Verbo) θαὶ ὁ ιόγνο ἦλ πξὸο ηὸλ ζεόλ, (e o
Verbo estava com Deus) θαὶ ζεὸο ἦλ ὁ ιόγνο (e o Verbo era Deus)”. O contexto em Gêne-
sis e aqui, mostra que o princípio é absoluto: o princípio de todas as coisas, o princípio
do universo. A palavra grega por trás de princípio (arché), com frequência transmite o
significado de origem, bem como pode haver ecos daquilo aqui, porque se mostra logo
que a Palavra que já estava no princípio é o agente de Deus na criação, o que podemos
chamar originador de todas as coisas (CARSON, 2007, p. 114). Por isso as palavras soam
como um eco de Gênesis 1,1, pois para explicar o Logos, o evangelista retrocedeu todo
o caminho até “o princípio”.
O versículo 2, em certo sentido, é uma repetição das duas primeiras orações do versí-
culo 1 e ressalta que “essa Palavra, que é Deus, é exatamente aquela que eu disse que
também era no princípio, e que ela estava com (pros) Deus” (CARSON, 2007, p. 118) .
Biblicamente, a obra da criação é atribuída à Trindade: ao Pai, como em Gn 1,1; Is 44,24;
45,12 e Sl 33,6; ao Filho, como em Jo 1,3.10 e Cl 1,16; e ao Espírito Santo, como em Gn 1,2
e Jó 26,13. As palavras de Hb 11,3, “o visível veio a existir das coisas que não aparecem”,
consideradas juntas com Gn 1,1, “No princípio criou Deus os céus e a terra.”, indicam que
os mundos não foram formados de qualquer material pré-existente, mas, antes, foram
formados do nada, pela Palavra Divina, no sentido que antes do fiat (do Latim: que se
faça) criativo Divino não havia qualquer outra espécie de existência ( XAVIER, 2010) .
Nos versículos 3 e 4 do Prólogo do Evangelho de João, o relacionamento entre Deus e
a Palavra no Prólogo é semelhante ao relacionamento entre o Pai e o Filho no restante
do evangelho. A Palavra que é o Filho compartilha da vida de Deus, mas tem existência
própria (Cf. CARSON, 2007, p. 119). Em João, essa Palavra denota a essencial Palavra de
Deus, Jesus Cristo, a sabedoria e o poder pessoal em união com Deus, seu ministro na
criação e governante do universo, a causa de toda vida do mundo, tanto física quanto
ética, a segunda pessoa da Trindade que se fez carne para proporcionar ao homem a sua
salvação (XAVIER, 2010) .
O versículo 5 é uma obra prima de ambiguidade planejada. Luz e trevas não são simples-
mente opostos. Trevas nada mais são que ausência de luz. Na primeira criação, “trevas
cobriam a face do abismo” (Gn 1,2) até que Deus disse: “Haja luz” (Gn 1,3). Em nenhuma
outra ocasião, a não ser a da criação, poderia ser mais apropriadamente dito: a luz brilha
nas trevas. Precisamente porque João está falando de criação e não está descrevendo
um universo dualístico, no qual luz e trevas, bem e mal, são opostos emparelhados; ele
pode descrever a vitória da luz: e as trevas não a derrotaram (como o verbo katelaben
pode ser traduzido) (CARSON, 2007, p. 119). Contudo, Luz (phos), metaforicamente, re-
fere-se à verdade e ao conhecimento de Deus, junto com a pureza espiritual associada a
eles; assim também como trevas (skotia), metaforicamente, refere-se à ignorância quan-
to às coisas divinas, quanto as suas abominações e a resultante miséria no inferno(XA-
VIER, 2010) [...].
Fonte: Santos; Xavier; Araujo ([2017], on-line)2.
202

1. “6 Surgiu um homem, um enviado de Deus, cujo nome era João. 7 Ele veio como
testemunha, a fim de dar testemunho da luz, para que todos cressem por meio
dele. 8 Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz.” Os seguintes
termos se referem ao tempo:
a) ( ) Surgiu, cressem, era.
b) ( ) Surgiu, luz, era.
c) ( ) Testemunha, ele, era.
d) ( ) Ele, cressem, nome.
e) ( ) Deus, João, era.
2. “1 No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava diante de Deus e a Palavra era
Deus. 2 Ela estava no princípio com Deus.” Esses dois versos estão estruturados
na forma de um quiasmo A B B’ A’. Esta afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA
3. “1 No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava diante de Deus e a Palavra era
Deus. 2 Ela estava no princípio com Deus.” Nesses dois versos, os quatro verbos
possuem as seguintes características:
a) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto durativo, modo imperativo.
b) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto durativo, modo indicativo.
c) ( ) Pretérito perfeito, aspecto durativo, modo indicativo.
d) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto pontual, modo subjuntivo.
e) ( ) Pretérito imperfeito, aspecto perfectivo, modo indicativo.
4. “1 No princípio existia a Palavra”. Nessa oração o sujeito é __________,
o núcleo do predicado é __________, e o adjunto adverbial de tempo é
_____________________. Escolha a alternativa que contém as respostas cor-
retas na ordem correta.
a) ( ) No princípio, existia, a palavra.
b) ( ) No princípio, a palavra, existia.
c) ( ) A palavra, existia, no princípio.
d) ( ) Existia, no princípio, a palavra.
e) ( ) Nenhuma das anteriores.
203

5. “No período áureo da _____________________________, que durou do início


do século XX até meados dos anos 1950, a conclusão mais comum era a de que
esse pano de fundo era grego (ou a filosofia estoica, ou o pensamento herméti-
co, ou o gnosticismo)”. A alternativa que completa a frase é:
a) Escola da Pesquisa Histórico-Crítica.
b) Escola da Pesquisa Histórico-Mítica.
c) Escola da Pesquisa Histórico-Religiosa.
d) Escola da Pesquisa Histórico-Literária.
e) Escola da Pesquisa Histórico-Gramatical.
MATERIAL COMPLEMENTAR

O Comentário de João
Donald A. Carson
Editora: Vida Nova
Sinopse: comentário exegético histórico-gramatical do Evangelho de
João, com ênfase na análise de palavras e temas teológicos.

Sócrates - 1971
Sinopse: a vida e o pensamento de um dos principais criadores da
racionalidade grega.

O Prólogo de João. Atributos conferidos ao logos


Antonio Wardison: “O Prólogo de João. Atributos conferidos ao logos”
Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/viewFile/15341/11457>
Disponível em: Walyson Santos e outros “Análise Exegética do Prólogo de João”
<sistemabatista.edu.br/SEER/index.php/DP/article/download/78/61>
205
REFERÊNCIAS

BARRETT, C. K. The Gospel according to St. John. 2. ed. Philadelphia: Westminster


Press, 1978.
BROWN, R. El evangelio según Juan I-XII. Introducción, Traducción y Notas. Madri:
Ediciones Cristandad, 1999.
BRUCE, F. F. João. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova & Mundo Cristão,
1987.
BULTMANN, R. The Gospel of John. A Commentary. Philadelphia: Westminster
Press, 1971.
HENDRIKSEN, W. O Evangelho de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
IRINEU. Contra heresias. São Paulo: Paulus, 2001.
KONINGS, J. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes & São
Leopoldo: Sinodal, 2000.
MATEOS, J.; BARRETO, J. El Evangelio de Juan. Análisis linguístico y comentário exe-
gético. 2. ed. Madrid: Ediciones Cristandad, 1982. [Edição em português: O Evange-
lho de São João. São Paulo: Paulus, 2015, 4ª. reimpressão].
MCHUGH, J. F.; STANTON, G. N. A Critical and Exegetical Commentary on John
1-4. Londres: T & T Clark, 2009.

REFERÊNCIAS ON-LINE

1
Em: <http://bibliacatolicaonline.com/biblia-de-jerusalem/>. Acesso em 24 maio
2017.
2
Em: <periodicos.redebatista.edu.br/index.php/DP/article/download/78/61>.
Acesso em: 24 maio 2017.
GABARITO

1) A.
2) Verdadeira.
3) B.
4) D.
5) C.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

V
UNIDADE
GÁLATAS 2,15-21

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer os procedimentos da Fase Preliminar da Exegese
Sêmio-Discursiva.
■■ Descrever o contexto da Epístola aos Gálatas.
■■ Refletir sobre o sentido do primeiro segmento da perícope analisada.
■■ Refletir sobre o sentido do segundo segmento da perícope analisada.
■■ Refletir sobre o sentido do terceiro segmento da perícope analisada.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação,
■■ O contexto da epístola
■■ Análise Exegética (Primeiro Segmento)
■■ Análise Exegética (Segundo Segmento)
■■ Análise Exegética (Terceiro Segmento)
209

INTRODUÇÃO

Olá! Chegamos ao fim de nosso estudo da disciplina de Métodos de Estudos


Bíblicos no Novo Testamento. Espero que os textos e propostas de reflexão aqui
apresentados tenham sido úteis para você e, acima de tudo, que tenham te esti-
mulado a se dedicar à exegese bíblica.
Para aprender a fazer exegese precisamos praticar. Além disso, precisamos
de tempo e experiência. Assim, no curso do Bacharelado em Teologia, damos os
primeiros passos no aprendizado. Precisamos continuar estudando e praticando,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a fim de que realmente nos tornemos capazes de ler a Bíblia com fidelidade, dis-
cernimento e criatividade. Por isso, mais do que aprender um método, precisamos
desenvolver um hábito de estudo e uma atitude de constante busca de conheci-
mento e espiritualidade por meio da leitura da Palavra.
Nesta última Unidade de nossa disciplina, adoto uma forma de apresenta-
ção do conteúdo diferente da que usei até agora. Ao invés de apresentar o passo
a passo da exegese, apresentarei o resultado final da minha própria exegese de
um texto paulino: Gálatas 2,15-21.
Como já temos visto, um texto sempre tem de ser lido em diálogo com o
seu contexto e em diálogo com a história de sua leitura nas Igrejas. No caso da
Epístola aos Gálatas, devido a sua importância no debate teológico e institucio-
nal católico-protestante, é fundamental que sejamos capazes de diferenciar os
problemas da doutrina eclesiástica dos problemas da comunidade paulina. Disto
depende a possibilidade de encontrarmos sempre novos desafios no texto bíblico,
sem nos restringirmos às leituras já consolidadas e que direcionam nosso olhar
a questões que, na maior parte das vezes, não têm mais relevância.
Sendo assim, desejo mostrar a você como o que já sabemos sempre interfere
em nossa interpretação do texto bíblico. Não podemos escapar disso. Podemos,
porém, usar esses conhecimentos a serviço de uma interpretação exegética que
ouça efetivamente o que o texto bíblico nos tem a dizer.

Introdução
210 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO, TEXTO,
DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Nesta última Unidade de nossa disciplina, adoto uma forma de apresentação do


conteúdo diferente da que usei até agora. Ao invés de apresentar o passo a passo da
exegese, apresentarei o resultado final da exegese de um texto paulino: Gálatas 2,15-21.
Como já temos visto, algum conhecimento básico sobre a época e o local do
escrito e seus destinatários é indispensável para situar o texto em seu contexto e nos
permitir diferenciar as questões da época do texto de questões da história da recep-
ção do texto. No caso da Epístola aos Gálatas, devido a sua importância no debate
teológico e institucional católico-protestante, é fundamental que sejamos capazes
de diferenciar os problemas da doutrina eclesiástica dos problemas da comunidade
paulina. Isto depende da possibilidade de encontrarmos, sempre, novos desafios
no texto bíblico, sem nos restringirmos às leituras já consolidadas e que direcio-
nam nosso olhar a questões que, na maior parte das vezes, não têm mais relevância.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


211

TEXTO GREGO, TRADUÇÃO, ESTRUTURAÇÃO

Ἡμεῖς φύσει Ἰουδαῖοι καὶ οὐκ ἐξ ἐθνῶν ἁμαρτωλοί· εἰδότες [δὲ] ὅτι οὐ δικαιοῦται
ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου ἐὰν μὴ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡμεῖς εἰς Χριστὸν
Ἰησοῦν ἐπιστεύσαμεν, ἵνα δικαιωθῶμεν ἐκ πίστεως Χριστοῦ καὶ οὐκ ἐξ ἔργων νόμου,
ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ. εἰ δὲ ζητοῦντες δικαιωθῆναι
ἐν Χριστῷ εὑρέθημεν καὶ αὐτοὶ ἁμαρτωλοί, ἆρα Χριστὸς ἁμαρτίας διάκονος; μὴ
γένοιτο. εἰ γὰρ ἃ κατέλυσα ταῦτα πάλιν οἰκοδομῶ, παραβάτην ἐμαυτὸν συνιστάνω.
ἐγὼ γὰρ διὰ νόμου νόμῳ ἀπέθανον, ἵνα θεῷ ζήσω. Χριστῷ συνεσταύρωμαι· ζῶ δὲ
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

οὐκέτι ἐγώ, ζῇ δὲ ἐν ἐμοὶ Χριστός· ὃ δὲ νῦν ζῶ ἐν σαρκί, ἐν πίστει ζῶ τῇ τοῦ υἱοῦ


τοῦ θεοῦ1 τοῦ ἀγαπήσαντός με καὶ παραδόντος ἑαυτὸν ὑπὲρ ἐμοῦ. οὐκ ἀθετῶ
τὴν χάριν τοῦ θεοῦ· εἰ γὰρ διὰ νόμου δικαιοσύνη, ἄρα Χριστὸς δωρεὰν ἀπέθανεν.
Tradução:
(a) Nós, mesmo sendo judeus por natureza, não pecadores dentre os gen-
tios , temos o conhecimento de que nenhum ser humano é justificado com base
2

nas obras da lei,


(b) mas3 mediante a fidelidade do Messias Jesus4;
(b’) por isso cremos no Messias, a fim de sermos justificados com base na
fidelidade do Messias
(a’) e não com base nas obras da lei, posto que com base nas obras da lei nin-
guém5 poderá ser justificado.
Ora, se nós que buscamos ser justificados no Messias somos considerados
pecadores, então o Messias também é servo do pecado?
De modo nenhum! Pois se construo aquilo que eu mesmo destruí, então
sou constituído transgressor. Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de
viver para Deus.
Tendo sido crucificado com o Messias, já não vivo mais eu mesmo, mas o
Messias vive em mim, e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fidelidade do
Filho de Deus que me amou e se entregou a si mesmo em meu favor. Não inva-
lido a graça de Deus, pois se a fonte da justiça for a lei, então o Messias terá
morrido em vão.
(Tradução do Autor)

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


212 UNIDADE V

Notas do Texto e Tradução

[1] Em vários importantes manuscritos (mss.) encontramos theou kai xristou


(de Deus e do Messias): P46 B D* G itd,g Marius Victorinus Pelagius, a expressão
Filho de Deus deve ser a mais antiga, pois em nenhum outro lugar fala de Deus
como objeto da fé ou como sujeito da fidelidade messiânica.
2 A expressão pode ser interpretada como uma referência aos prosélitos (e
tementes a Deus?) que se associavam às sinagogas judaicas, tornando-se, para
efeitos religiosos, judeus, mas não podiam ser considerados judeus por natureza,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
por não poderem estabelecer sua ascendência a Abraão.
3 A tradução da cláusula ean me por “mas”, ao invés de por “se não”, é a alter-
nativa gramaticalmente possível e faz mais sentido na perícope.
4 A tradução “fidelidade do Filho de Deus” vê o genitivo, aqui e em toda a
perícope, como subjetivo – a fé ou fidelidade que o Messias viveu. Uma justifi-
cativa adequada dessa escolha só pode ser feita na explicação exegética do texto.
5 Ninguém é tradução de passa sarx, literalmente, “toda carne”. Apesar de
perder a palavra carne, termo técnico importante em Paulo, a opção aqui feita
manifesta mais adequadamente o sentido quantitativo no texto.
Essa perícope é parte integrante da argumentação paulina em relação à unidade
da comunidade do Messias como o verdadeiro Israel de Deus. Segue, imediata-
mente, ao relato da polêmica entre Paulo e Pedro em Antioquia que, por sua vez,
exemplificava os problemas ainda enfrentados pelas comunidades cristãs, em fun-
ção da relação entre judeus e gentios (em termos contemporâneos, diríamos que
as igrejas enfrentavam uma crise de identidade – seguir nos passos da identidade
judaica ou das gentílicas? Paulo, aqui e em todas as suas cartas, opta por uma ter-
ceira possibilidade – a identidade messiânica, que transcende todas as demais
formas de identidade e identificação humanas), concluindo a seção da carta.
Essa perícope, por outro lado, serve como transição para a discussão mais
ampla sobre a relação entre Lei e Graça no processo de salvação nos capítulos 3 e
4. O tom da epístola, como um todo, é intenso, indicando que o problema enfren-
tado pelos gálatas era bem concreto, demandando um profundo envolvimento
pessoal de Paulo na questão. Em parte, a intensidade emocional pode dar conta
de algumas das dificuldades presentes na epístola e em sua linha argumentativa,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


213

com aparentes contradições e incoerências.


Do ponto de vista estrutural, a perícope está dividida em três segmentos:
(a) A resposta paulina aos dilemas derivados da convivência entre judeus e
gentios na mesma comunidade de fé, do ponto de vista da atitude judaica para
com pessoas provenientes do mundo gentílico (15-16);
(b) Uma possível crítica dos judaizantes ao modo de ação de Paulo e suas
comunidades, bem como a implicação teológica dessa crítica sobre a pessoa do
Messias Jesus; e
(c) A afirmação paulina da vida no Messias como plena expressão da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

vida justificada, uma forma adequada de identidade judaica que transcende


o próprio Judaísmo como religião e como etnia, sem negar a sua história e
memória teológica.
Evidencio, assim, minha hipótese interpretativa da perícope (e do conjunto da
carta): o problema enfrentado por Paulo é o da identidade na convivência entre
judeus e gentios na mesma comunidade. Um segmento de judeus seguidores do
Messias considerava que os gentios convertidos deveriam assumir plenamente
a identidade judaica, enquanto Paulo defendia que eles poderiam manter a sua
identidade étnica anterior, posto que religião e etnia estavam subordinadas à
identidade messiânica, e não o contrário. Para os opositores de Paulo, a atitude
do apóstolo era vista como traição da memória judaica, de modo que Paulo se
esforça por provar a legitimidade judaica de sua visão da vida messiânica.

DESTINATÁRIOS

A quem foi dirigida a Epístola aos Gálatas? Essa é a questão que tem ocupado
a pesquisa exegética neotestamentária do último século, sem que um consenso
tenha sido efetivamente alcançado. O problema pode ser descrito da seguinte
forma: a Epístola foi dirigida a comunidades cristã no território original do reino
da Galácia (norte da Província romana) ou a comunidades cristãs na região sul
da província romana, a Galácia dos frígios e icôneos? Neste segundo caso, seriam
as comunidades fundadas por Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária
paulina (At 13-14). No primeiro, Paulo teria fundado as comunidades em sua

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


214 UNIDADE V

segunda viagem (At 16) e voltado para acompanhá-las em sua terceira viagem
(At 18), os gálatas seriam descendentes dos celtas que migraram para a região
no III século a.C. No segundo, seriam naturais da região. Neste ponto, porém,
a distinção cai para segundo plano, posto que os antigos celtas assimilaram cul-
tura e religião dos antigos moradores e, sob a dominação romana, incorporaram
o helenismo.
Do ponto de vista da compreensão da Epístola, a decisão sobre este tópico
é irrelevante. Quando consultamos comentários escritos por autores que defen-
dem distintas posições quanto aos destinatários, não encontramos diferenças

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significativas na interpretação. As principais diferenças têm a ver com a rela-
ção entre os elementos factuais em Gálatas e a narrativa sobre Paulo em Atos.
Nesse caso, os defensores da hipótese do Sul normalmente tendem a atribuir
maior facticidade histórica à narrativa lucana, enquanto os defensores da
hipótese Norte confiam menos no livro de Atos para reconstruir cronologi-
camente a vida de Paulo.

DATA DA CARTA

A discussão anterior delimita outro tópico relativo ao contexto da epístola: sua


data. Caso adotemos a hipótese da Galácia do Sul, a data da epístola seria mais
recuada, na década de 40. Se a do Norte, a epístola seria datada na década de 50.
A diferença entre as datas adotadas pelos diferentes intérpretes, que variam de 46
a 54 d.C., não nos deixam com problemas para situar o contexto discursivo da
epístola. A primeira diferença mais significativa teria a ver com o grau de matu-
ridade da argumentação e da teologia de Paulo – aspecto que é muito difícil de
definir dado o caráter circular da argumentação necessária para tomar tal decisão.
A segunda diferença, mais importante para a interpretação da Epístola, tem a
ver com a relação entre judeus e gentios nas comunidades cristãs fora do territó-
rio israelita. Podemos supor que quanto mais tarde, na história das comunidades,
mais clareza da resolução da questão (seja qual fosse tal resolução). Quanto mais
cedo, maiores seriam as dificuldades na argumentação em defesa desta ou daquela
posição. Isto pode ser visto, por exemplo, na diferença radical de tom emocional da

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


215

discussão sobre a Lei em Gálatas, por um lado, e em Romanos, por outro. Tal dife-
renciação sugere que a Epístola aos Gálatas tenha sido escrita mais cedo, ainda na
década de 40, período em que não havia, ainda, suficiente clareza teológica e orga-
nizacional para definir os modos próprios de pertença de gentios às comunidades
de seguidores de Jesus e suas obrigações no tocante à identidade judaica.
Não temos respostas definitivas e datas exatas, mas temos um quadro sufi-
cientemente bem delineado para entender a carta. Podemos situar Gálatas entre
os anos 48 e 56 d.C., no período entre o final da primeira viagem missionária
de Paulo e meados da terceira. Podemos, ainda, definir seus destinatários como
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comunidades cristãs predominantemente gentílicas na região da Galácia, as quais


foram fundadas por Paulo conforme ele mesmo declara na epístola. Podemos,
enfim, situar a carta após o chamado Concílio de Jerusalém (Atos 15), que nos
ajuda a perceber o tipo de problema que a epístola visa resolver – a convivência
entre judeus e gentios na mesma comunidade de fé.
O elemento mais importante e crucial desta breve discussão não é exatamente
a data nem o local exato dos destinatários. O ponto a não ser negligenciado é:
não estamos tratando com uma discussão entre Cristianismo e Judaísmo. Paulo
não foi o fundador de uma nova religião, e suas comunidades não eram cristãs
no sentido que o termo possui hoje (uma religião autônoma, com diferentes for-
mas de institucionalização, doutrina, ritual, práticas e teologia). Não se trata de
uma discussão sobre a diferença entre ser cristão e ser judeu, mas sim de uma
discussão sobre como ser seguidor do Messias Jesus sem que tal seguimento exi-
gisse a renúncia a uma identidade étnica ou religiosa específica. O problema,
para Paulo, era mais simples: um gentio pode ser fiel ao Evangelho sem se tornar
judeu, assim como um judeu pode ser fiel ao Evangelho sem deixar de ser judeu.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


216 UNIDADE V

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O CONTEXTO DA EPÍSTOLA

Como já mencionado, o fundamental para entender a carta aos gálatas é uma


adequada compreensão da ocasião que motivou a sua escrita. Vimos, também,
que essa ocasião foi descrita por Paulo, em 1,6-10, como uma espécie de apos-
tasia dos gálatas do Evangelho do Messias, fascinados pelo ensino de algumas
pessoas que, pretextando anunciar o Evangelho, anunciavam, sim, uma péssima
notícia. É claro que essa descrição é feita do ponto de vista de Paulo; com certeza,
os seus oponentes fariam uma descrição contrária. O que importa, porém, para a
exegese, não é decidir se Paulo ou os seus oponentes tinham de fato razão (aliás,
nem temos critérios para tentar formular esse tipo de juízo). Importa, sim, situar
a polêmica em seu contexto cultural e discursivo. Usando um termo relevante
em nossos dias, a polêmica estava inserida no âmbito da questão da identidade
– como a fidelidade ao Messias Jesus afeta a identidade prévia do seu seguidor?
Entendo que é melhor delinear a temática assim, do que nos restringirmos
a uma questão de verdade doutrinária ou teológica. O problema não é prima-
riamente doutrinário ou conceitual (é mais provável que, em Colossenses, o
problema tenha sido dessa natureza e, naquela carta, o tom da discussão não é
emocionalmente intenso). O problema é a possibilidade dos gálatas abandonarem

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


217

o Evangelho do Messias e, assim, se colocarem fora da justiça de Deus e de seu


Reino. É uma questão de vida ou morte, literalmente! O que faz com que Paulo,
como já mencionado, utilize todos os recursos argumentativos de que dispõe
para persuadir os gálatas a permanecerem fiéis ao Evangelho que ele lhes pregara.

O OUTRO EVANGELHO, QUE NÃO É EVANGELHO

Diante do tom da carta, não podemos esperar encontrar nela uma descrição
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objetiva da pregação dos oponentes de Paulo. Devemos contar, sim, com algum
exagero e alguma distorção do que de fato essas pessoas estavam ensinando.
Cautela, portanto, é indispensável para tentarmos redescrever o conteúdo do
ensino dos que estavam afastando os gálatas do Evangelho do Messias. Para
entender a polêmica, não é necessário tomarmos posição, não é preciso decidir
quem estava certo; é preciso, porém, tentar entender, da melhor maneira possí-
vel, as duas posições em debate. Neste tópico, usando apenas o recurso de que
dispomos - a própria carta - nosso foco será reconstruir a pregação desviante.
Quem eram esses oponentes de Paulo? Vejamos os indícios na Epístola: (a)
em 1,6ss, Paulo se refere a eles de modo indefinido “algumas pessoas”, o que pode
sugerir que não fossem das comunidades paulinas; (b) em 4,17, Paulo afirma que
eles não têm um interesse pelo bem-estar dos gálatas, mas apenas pelo cresci-
mento de sua própria comunidade; (c) em 5,7ss, ele se refere aos seus oponentes
como pessoas que perturbam os gálatas, que tiram a tranquilidade; e (d) em 6,12-
13, temos a mais clara descrição desses oponentes:
[...] estes que querem apresentar uma boa imagem na carne, eles é que
vos obrigam a circuncidar-vos, somente para eles mesmos não serem
perseguidos por causa da cruz do Messias. Porque nem ainda esses
mesmos que se circuncidam guardam a lei, mas querem que vos cir-
cuncideis, para se gloriarem na vossa carne (BÍBLIA, Gálatas 6,12-13).

Não há nomes, não há referências institucionais, há apenas uma descrição das


ações e motivos dos oponentes:

O Contexto da Epístola
218 UNIDADE V

■■ não são honestos, apenas apresentam uma boa imagem, mas não vivem
de acordo com ela (é impossível não ver uma alusão ao comportamento
de Pedro criticado por Paulo em 2,11ss.);
■■ o foco deles é singular: querem obrigar os gálatas a se circuncidarem
(novamente, temos de ver a alusão ao comportamento de Tito que não
se deixou circuncidar, mesmo sendo gentio, cf. 2,3 – em que Paulo fala
de falsos irmãos);
■■ o motivo é egoísta: não querem ser perseguidos por causa do Evangelho –
perseguidos pelas autoridades judaicas, assim como Paulo, anteriormente,

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perseguira seguidores de Jesus e, ele mesmo, enfim, se tornou perseguido;
■■ são hipócritas: porque exigem a circuncisão dos gálatas, mas eles mes-
mos não guardam toda a lei – seu motivo é impuro: querem se gloriar
por terem conseguido convencer os gálatas à circuncisão.

O que ensinavam?
“Outro Evangelho, que não é outro”. Podemos dizer que ensinavam o oposto
da pregação paulina – sobre a circuncisão e a guarda da lei. Vejamos: (a) nos
caps. 1-2, eles claramente são acusados de contestar a legitimidade da pregação
de Paulo, acusando-o de não pregar o verdadeiro Evangelho e de não ter auto-
ridade da parte das comunidades cristãs de Jerusalém ou dos apóstolos de Jesus;
(b) acusam Paulo de ser hipócrita e motivado apenas por interesses egoístas (cf.
1,10); (c) ou eles, ou o próprio Paulo, descrevem duas correntes das comunida-
des cristãs da época: o evangelho da circuncisão e o evangelho da incircuncisão
– Paulo, ao que tudo indica, não opunha um ao outro, mas seus oponentes sim
e afirmavam que o evangelho da incircuncisão não era legítimo; e (d) a exigên-
cia da circuncisão era fundamental da parte deles (cf. o caso de Tito e a acusação
em 6,12s), mas a disputa exegética nos caps. 3-4 mostra que o problema era mais
amplo: tinha a ver com o estatuto da Lei na vida das comunidades gentílicas e
com o cumprimento de certas datas litúrgicas.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


219

Todos esses indícios apontam para uma discussão relativa à identidade dos
seguidores do Messias. Os oponentes de Paulo faziam questão de que os gentios
também se obrigassem a seguir os elementos da Lei que delimitavam a identi-
dade judaica e distinguiam, radicalmente, os judeus dos gentios. Usando termos
da época, é provável que eles vissem os gentios das comunidades paulinas como
tementes a Deus e estivessem exigindo deles que se tornassem plenos prosélitos,
assumindo inteiramente a condição de judeus, renegando a sua condição anterior
como gentios. Os indícios sugerem que fossem judeus de Jerusalém, seguidores
de Jesus, e que viessem do partido dos fariseus - talvez até tenham sido previa-
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mente amigos de Paulo e consideravam-se como pessoas que iriam corrigir os


excessos da liberdade paulina.

Alguns autores mais recentes têm enfatizado o papel do culto imperial na


polêmica gálata. É importante não desconsiderar o contexto político da
época, mas, no conjunto da carta, não me parece haver evidências de que a
discussão paulina focasse no culto imperial, mas sim na demanda da obedi-
ência à Lei nos moldes “farisaicos”. Em Colossenses, por exemplo, o discurso
imperial, sim, está claramente na berlinda!
Fonte: o autor.

O Contexto da Epístola
220 UNIDADE V

O EVANGELHO DE PAULO

O conteúdo do ensino de Paulo será tratado na exegese da carta propriamente dita.


Aqui, basta indicar em que a pregação paulina era oposta ao ensino dos seus opo-
nentes. Para tal, penso que a forma mais sintética e clara é citar o seguinte texto:
[...] ande cada um segundo o Senhor lhe tem distribuído, cada um con-
forme Deus o tem chamado. É assim que ordeno em todas as igrejas.
Foi alguém chamado, estando circunciso? Não desfaça a circuncisão.
Foi alguém chamado, estando incircunciso? Não se faça circuncidar.
A circuncisão, em si, não é nada; a incircuncisão também nada é, mas

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o que vale é guardar as ordenanças de Deus. Cada um permaneça na
vocação em que foi chamado. Foste chamado, sendo escravo? Não te
preocupes com isso; mas, se ainda podes tornar-te livre, aproveita a
oportunidade. Porque o que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é
liberto do Senhor; semelhantemente, o que foi chamado, sendo livre, é
escravo do Messias. Por preço fostes comprados; não vos torneis escra-
vos de homens. Irmãos, cada um permaneça diante de Deus naquilo
em que foi chamado (BÍBLIA, 1Coríntios 7,17-24).

Diante desse texto, mais calmo e didático, podemos entender melhor a polêmica
em Gálatas. Note, por exemplo, a similaridade entre “a circuncisão, em si, não é
nada; a incircuncisão também nada é, mas o que vale é guardar os mandamentos
de Deus” e “pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o
participar da nova criação” (Gl 6,15). É claro que Paulo, em Gálatas, jamais pode-
ria afirmar que estar na nova criação é sinônimo de guardar os mandamentos de
Deus! O cerne da questão é a liberdade identitária (por assim dizer).
Para seguir o Messias, segundo Paulo, não é necessário deixar de ser o que a
pessoa é: judeu, grego, romano, escravo, homem, mulher, cita, livre etc. Podemos
dizer que, descontadas questões éticas, Paulo entende que para seguir o Messias
não é necessário trocar de identidade. A identidade messiânica não é uma nova
identidade que substitui a anterior, mas um novo modo de viver que se sobrepõe
ao anterior e lhe dá uma nova configuração existencial: viver amando o próximo.
Por isso, não gosto do termo judaizantes para descrever os oponentes de Paulo
– jamais Paulo recomendaria a um judeu que deixasse de ser judeu, assim como
jamais recomendaria a um gentio que deixasse de ser gentio.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


221

No Messias somos livres de tudo aquilo que define a carne, ou seja, nossa
existência terrena finita: social, cultural, política, econômica. Por que?
Porque todos quantos fostes batizados no Messias do Messias vos re-
vestistes. Destarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um no Mes-
sias Jesus. E, uma vez que sois do Messias, também sois descendentes
de Abraão e herdeiros segundo a promessa (BÍBLIA, Gálatas 3,27-29).

Considero que, a partir desse tipo de redescrição da polêmica em Gálatas, temos


a oportunidade de renovar o valor dessa carta para nossos tempos. Assim como
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em outras épocas, ela serviu para reencontrar elementos negligenciados da fé


cristã, também agora ela pode nos ajudar a viver melhor a vida de seguidores
do Messias Jesus.

EVANGELHO E LEI

O problema da Lei tem sido determinante na exegese de Gálatas desde os tem-


pos de Lutero, pelo menos, em função de sua revisão da doutrina da justificação
por graça mediante a fé. O foco dessa apresentação não recairá sobre a doutrina
da justificação, mas sobre a compreensão da Lei e de sua relação com a prega-
ção do Evangelho por Paulo. Não estará em discussão, portanto, qual é a melhor
maneira de apresentar o conceito de justificação (forense, ontológico, cósmico
etc.), apenas tentaremos entender o que se passava na época paulina e como ele
compreendia o papel da Torá na salvação.

O JUDAÍSMO PACTUAL DA TORÁ

A Torá, no período do Segundo Templo, desempenhou papel fundamental na


definição da identidade judaica, como já podemos ver nos livros de Esdras e
Neemias e, enfim, na redação e canonização do Pentateuco (Torá em hebraico)
como a seção mais fundamental da Bíblia Hebraica. Nesse sentido, torá equi-
vale à própria Palavra de Deus, ensino e orientação de Deus para o seu povo.

O Contexto da Epístola
222 UNIDADE V

Do ponto de vista da identidade judaica, um bom lugar para iniciar o estudo


do sentido da torá para os judeus do período paulino é a seguinte citação de
von Rad:
[...] o certo é que, por trás da lei, ainda que seja um memorial da aliança,
jaz sempre uma possível maldição. O Deus de Israel, cuja atitude graciosa
está na origem da fé veterotestamentária, é, ao mesmo tempo, inexorável
em sua vontade, sem que um aspecto elimine o outro. O antigo Israel vive
da tensão entre estes dois aspectos (VON RAD, 1980, p. 24).

Lei e Aliança formam o par indissolúvel de conceitos que fundamentam a iden-

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tidade judaica no período do Segundo Templo. A noção de aliança afirma que
Israel é o parceiro privilegiado de YHWH, o povo eleito, receptor das promessas
e bênçãos divina, a verdadeira semente de Abraão, que o distingue radicalmente
de todos os demais povos. Dentro dessa perspectiva global, várias tendências
perpassam o Judaísmo do Segundo Templo, desde as mais radicalmente exclu-
dentes até as de tom universalizante da mensagem de YHWH (como em Isaías,
por exemplo, com seu discurso sobre a Torá sendo acolhida e obedecida por todas
as nações). A noção de aliança é determinante para todos os grupos judaicos do
período paulino, mas não pode ser vista como um bloco monolítico. Diversas
concepções – antagônicas entre si – da aliança entre Deus e Israel estão pre-
sentes no período neotestamentário e a pregação paulina claramente se insere
nessas concepções.
A Torá é a marca visível da aliança, é a revelação de Deus para o Seu povo.
Sem ela, Israel não tem sentido, não possui identidade. Novamente devemos
levar em conta que não há uma visão singular da Torá, mas diversas compre-
ensões da Torá no Judaísmo do Segundo Templo. Como no caso da aliança, há
concepções que usam a Torá como demarcador excludente de identidade, e há
concepções que interpretam a Torá como fonte de atração para as nações. A pala-
vra, em si, também é usada com diversos significados, mas o que nos interessa,
aqui, é o sentido plural da Torá enquanto: cânon, Palavra de Deus e Lei divina
que define a identidade de Israel.
Do ponto de vista da interpretação da Torá em relação à conduta cotidiana,
há, pelo menos, duas grandes correntes no Judaísmo do Segundo Templo: (a)

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


223

[...] a atomização das instruções individuais da torá iniciada em Salmos


e Crônicas, que leva à casuística rabínica”; e (b) “a visão, desenvolvida
em Os, Is e, especialmente em Dt, da unidade da ‘lei’, que leva à desig-
nação do Pentateuco, mas também de todo o cânon como torá ... na
sabedoria ... e no assim-chamado apocalipsismo (LIEDKE, G.; PETER-
SEN, C. 1992, p. 1762).

Um aspecto dessa polêmica está presente em Gálatas na discussão de Paulo sobre


a necessidade de guardar toda a Torá e não apenas alguns de seus mandamentos.
Em Gálatas, a presença da maldição decorrente da Lei é um tema determi-
nante e que mostra o caráter judaico – por assim dizer – da argumentação paulina.
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Quem não guarda toda a lei está debaixo de maldição, mas, pela graça de Deus, o
Messias assumiu essa maldição sobre si mesmo e libertou a humanidade. Dessa
forma, Paulo rompe com a tensão que marcava o Judaísmo do Segundo Templo
em sua compreensão da Torá e a apresenta em termos mais positivos. Podemos,
assim, supor que Paulo vivia em um ambiente no qual
[...] é como consequência de pertencer ao povo eleito de Javé que o
israelita se encontra, a priori, comprometido com a obediência à tôrâh.
Assim, ele via que era um imperativo conhecer a tôrâh, compreendê-la
corretamente, e ser lembrado dela regularmente, se é que ele iria per-
manecer como um membro do seu povo. Além disso, era sobre a since-
ridade e disposição de cada israelita individualmente que o bem-estar
da nação toda dependia (CLEMENTS, 1978, p. 109).

A TORÁ EM PAULO

A palavra torah (e sua tradução grega nomos) possui diferentes usos e signifi-
cados: (a) o Pentateuco como um todo; (b) as seções normativas do Pentateuco
– mandamentos, estatutos e preceitos conforme a terminologia bíblica; (c) ins-
trução sacerdotal ou geral; (d) norma – consuetudinária ou jurídica – a ser
vivenciada em sociedade; (e) exigência legal externa à pessoa (neste sentido, no
Antigo Testamento temos a crítica profética, em Jeremias 31 e Ezequiel 36, já se
mostra o limite da normatividade institucional da Torá); (f) Lei como caminho
de salvação, como meio de acesso ao Reino de Deus e, assim, marca primária da
identidade do povo judeu (conforme a tradição farisaica e o ensino sacerdotal

O Contexto da Epístola
224 UNIDADE V

oficial da época paulina); e (g) lei como princípio existencial, como em Rm 8,1ss
– “a lei do Espírito, que é lei da vida [...]”.
Como caminho de salvação e marca primordial de identidade, a torá é criticada
por Paulo, ele mostra os seus limites e a contrapõe ao Messias e sua fidelidade
ao Pai. Como vimos, para Paulo, é por meio da fidelidade e não da obediência
que se entra e permanece na aliança com Deus. É nesse sentido que entendo a
sentença “contra estas coisas não há lei”. Na perícope, ela se refere ao amor ao
próximo como oposto às discórdias entre irmãos. Contra o amor, a lei interna-
lizada, não há lei (mandamento ou princípio, ou cânon, ou norma). Fidelidade

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(e amor) é atitude humana anterior à lei, antecede à moralidade e a ética. Não é
possível obedecer ao mandamento de amar ou de ser fiel. Ser fiel e amar é ques-
tão, pura e simples, de ser, é apenas como caminho de salvação que a lei é abolida,
anulada. Ela não é anulada enquanto Palavra de Deus, nem enquanto instrução
normativa para seu povo.
Nos textos paulinos, encontramos afirmações positivas sobre a torah. (1)
Enquanto a seção canônica (Pentateuco), Paulo entende a Torá como palavra
de Deus normativa para o seu povo. Na própria Torá é que Paulo se baseia para
interpretar a vida do Messias Jesus e, voltando ao texto, interpretá-lo a partir
da atividade do Messias (e.g. Rm 7,12-14; 1Co 9,9); (2) enquanto palavra de
Deus, é ela quem nos revela sermos pecadores e, ao mesmo tempo, nos abre o
acesso à libertação do pecado e da lei (e.g. Gl 2,19); nesse mesmo aspecto, a Torá
(Pentateuco) mostra que judeus e gentios, igualmente, são pecadores e caren-
tes da graça de Deus; e (3) bem interpretada, a Lei revela a essência do projeto
moral do povo de Deus - nos Evangelhos temos essa discussão entre fariseus e
Jesus (cf. Mt 22,35ss e paralelos), que Paulo retoma em sua discussão sobre a
liberdade em 5,1ss.
Assim, como no caso da questão identitária, Paulo não se insurge contra a
torá, mas contra a interpretação excludente da Torá como demarcador de iden-
tidade e classificador da humanidade entre salvos e perdidos.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


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ANÁLISE EXEGÉTICA (PRIMEIRO SEGMENTO)

Ἡμεῖς φύσει Ἰουδαῖοι καὶ οὐκ ἐξ ἐθνῶν ἁμαρτωλοί· εἰδότες [δὲ] ὅτι οὐ δικαιοῦται
ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου ἐὰν μὴ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡμεῖς εἰς
Χριστὸν Ἰησοῦν ἐπιστεύσαμεν, ἵνα δικαιωθῶμεν ἐκ πίστεως Χριστοῦ καὶ οὐκ ἐξ
ἔργων νόμου, ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ.
Note o arranjo quiástico do segmento:
(a) Nós, mesmo sendo judeus por natureza, não pecadores dentre os gen-
tios, temos o conhecimento de que nenhum ser humano é justificado com base
nas obras da lei,
(b) mas mediante a fidelidade do Messias Jesus;
(c) por isso cremos no Messias,
(b’) a fim de sermos justificados com base na fidelidade do Messias
(a’) e não com base nas obras da lei, posto que com base nas obras da lei nin-
guém poderá ser justificado.
Costumeiramente se interpreta o nós inicial como um termo genérico: “nós,
judeus”, ou “nós-Paulo e seus companheiros de ministério”. É possível, ainda,
interpretá-lo como uma referência a Paulo e Pedro, dando continuidade ao relato

Análise Exegética (Primeiro Segmento)


226 UNIDADE V

da polêmica em 2,11-14 (essa é a posição de Thomas Schreiner (2010) em seu


comentário a Gálatas). Embora seja, de fato, possível interpretar o pronome ‘nós’
como referência a Pedro e Paulo, não vejo como interpretar os versos 15-16 como
a continuação da fala de Paulo a Pedro no verso 14. É preferível seguir a maio-
ria dos comentadores e ver no v. 15 o início de uma nova seção da carta, uma
seção transicional, podemos dizer, mas uma nova seção.
A sintaxe do texto grego constrói o parágrafo por subordinação, com a ora-
ção inicial sendo uma subordinada concessiva e a oração principal a que afirma
o conhecimento. A colocação da subordinada no início do parágrafo ressalta

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a importância da identidade judaica na argumentação textual. Retoricamente,
Paulo apela à pregação do próprio Pedro como um dos pioneiros do anúncio da
salvação pelo Messias. Em outras palavras, Pedro (e o grupo que alegava seguir
a tendência petrina) não poderia deixar de concordar com a premissa funda-
mental do argumento de Paulo, pois, afinal de contas, essa premissa é judaica e
sustenta o seguimento de Jesus como o Messias pelos apóstolos e demais segui-
dores: nenhum ser humano é justificado com base nas obras da Lei, a justificação
tem sua base na ação do Messias e é por isso que creram no Messias e o seguem
até o presente.
A descrição dos gentios como pecadores é tradicional no Judaísmo da época e
não pressupõe que os judeus não pecassem. Simplesmente afirma que os gentios
estavam fora da aliança, não pertenciam ao povo de Deus; sendo pecadores, esta-
vam destinados à morte (cp. a argumentação em Rm 1—3, na qual Paulo inclui
os judeus na condição de pecadores, cujo salário é a morte). Como judeus, Paulo
e Pedro, bem como os demais judeus seguidores do Messias Jesus, sabiam que
ninguém alcança a justiça de Deus mediante a prática da Lei. A justiça é outor-
gada por Deus antes da Lei e isso é evidente na memória teológica do povo judeu
na Bíblia Hebraica (esta é, pelo menos, a interpretação paulina. Até que ponto
essa narrativa teológica era assumida pelos demais judeus cristãos na época, não
sabemos com certeza). Mais adiante, na carta, Paulo irá retornar a esse ponto e
argumentar em defesa da prioridade da promessa em relação à Lei. Aqui, a afir-
mação é genérica e pode ser conferida, por exemplo, no relato do Êxodo: a saída
do Egito antecede a outorga da Lei no Sinai.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


227

O ponto mais polêmico, tanto na tradução como na interpretação desse seg-


mento, vem a seguir. Tradicionalmente se interpreta a sentença: “mas mediante
a fé em Cristo Jesus” tomando o genitivo do grego como um genitivo objetivo.
Não é possível tecer todos os detalhes argumentativos, mas o paralelismo com
as obras da Lei e a tautologia que ocorre quando se traduz assim (repete-se des-
necessariamente a frase mediante a fé em), juntamente com o fato de que para
falar da fé em, Paulo sempre usa a preposição eis com o dativo, sugerem que é
melhor traduzir como proposto aqui: com base na fidelidade (fé) do Messias.
Em outras palavras: a base da justificação é a fidelidade do Messias, o que o
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Messias fez, sendo fiel ao Pai, em sua vida e morte e ressurreição. Por isso – por
que ninguém (há, aqui, uma alusão ao Sl 143,2 (142,2 na LXX): “[...] não entres
em juízo com o teu servo, porque ninguém pode ser justificado [usa o verbo
dikaioo no futuro, voz passiva] diante de ti”) pode alcançar a justiça mediante a
prática da Lei, mas apenas pela fidelidade do Messias, o qual abriu o caminho ao
cumprir a Lei e ser amaldiçoado por ela (tornando-a, assim, sem força, inope-
rante) – nós cremos no Messias Jesus para sermos justificados. Como Messias
fiel, Jesus é o verdadeiro Israel; ele é ‘o justo’ de Habacuque, que vive por sua
fidelidade a Deus. Assim, os que estão nele – justificados – se tornam o verda-
deiro Israel, tornam-se ‘justos’.
Essa interpretação, a meu ver, faz mais sentido e é mais coerente com o pen-
samento paulino sobre a justificação por graça (recebida) mediante a fé. A graça
de Deus, fundamento da justificação, se concretiza historicamente na fidelidade
do Messias Jesus (por exemplo, os relatos de tentação nos Sinóticos cumprem
função teológica similar: ao vencer a tentação e permanecer fiel ao envio e voca-
ção pelo Pai, Jesus traz ao mundo a nova forma de acesso à justiça de Deus).
A fidelidade do Messias não só fundamenta a resposta humana, mas também
serve como modelo para ela. Crer no Messias não se reduz à mera aceitação da
afirmação que Jesus é o Messias, significa ser fiel a Deus seguindo a fidelidade
do Messias. Fé e fidelidade, desta forma, devem ser entendidas como dimen-
sões da mesma relação que une o Messias a Deus, o crente ao Messias e o crente
a Deus. Assim, podemos superar o eventual reducionismo da fé à crença e ao
dualismo crença vs. prática.

Análise Exegética (Primeiro Segmento)


228 UNIDADE V

Os dois tópicos que devem, ainda, ser esclarecidos, são: a que Paulo se refere,
de fato, com a frase “obras da Lei”, e em que consiste a “justificação”. Na histó-
ria da exegese dos textos paulinos, a visão de Lutero acerca da justificação por
graça mediante a fé tornou-se a interpretação padrão no Protestantismo e, até
mesmo, em parte das leituras católico-romanas do texto. O uso do tema da “jus-
tificação pela fé”, na polêmica eclesiástica, tem sido tão intenso que a diferença
radical entre a situação paulina e a situação eclesiástica cristã (moderna) pratica-
mente ficou perdida. Tentaremos, nesta discussão exegética, deixar mais evidente
as diferenças entre o problema que Paulo tenta resolver com a ‘justificação’ e o

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problema que Lutero e as Igrejas tentam resolver com a ‘justificação’, sem, com
isso, disputar a validade da doutrina da justificação pela fé.
Vejamos as ‘obras da lei’, expressão usada oito vezes em Paulo: Rm 3,20.28;
Gl 2,16[3x]; 3,2.5.10. Pelo menos quatro tendências existem na interpretação
das “obras da Lei”: (1) a frase se refere ao legalismo judaico da época de Paulo,
contra o qual ele expõe a sua noção da justificação pela fé; (2) a frase se refere à
fronteira étnica demarcada pela lei entre judeus e gentios: os judeus cumprem a
Lei, os gentios não (da mesma forma, demarcaria a fronteira entre judeus prati-
cantes da lei e os não-praticantes); (3) às práticas exigidas pela lei como um todo;
ou, enfim, (4) o cumprimento de algumas exigências da Lei que, em seu con-
junto, tornariam clara a distinção entre verdadeiros judeus e gentios, seguindo
uma interpretação possível da frase encontrada em manuscritos de Qumran.
Podemos descartar a tese do legalismo, pois ela mostra muito mais um viés
anti-judaico do que propriamente uma análise semântica ou exegética da expres-
são – em nenhum dos usos paulinos da expressão, o legalismo é implicado, mas
sempre o contraste com a fidelidade do Messias e a fé no Messias. A chamada nova
perspectiva sobre Paulo interpreta as obras da lei como uma referência primária à
identidade sociocultural judaica, de modo que a expressão se referiria à exigência
de que os convertidos gentios ao Messias deveriam, também, adotar a identidade
judaica como um todo. Alguns dos participantes da ‘nova perspectiva’ têm ado-
tado a quarta alternativa como um modo contextualmente mais bem situado para
explicar a questão da identidade. A terceira alternativa, mais antiga e tradicional,
afirma que a expressão simplesmente se refere às práticas que a Lei demanda (cp.
Gl 3,10 e a maldição sobre quem não cumpre tudo o que a Lei exige).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


229

De fato, não é preciso opor a segunda à terceira e quarta alternativas. O cum-


primento de tudo o que a Lei pede era, no tempo paulino, a marca distintiva da
identidade judaica. É claro que o tudo aqui descrito não é necessariamente um
cumprimento perfeito da Lei, mas um cumprimento rigoroso que marcaria a
distinção entre judeus e gentios com bastante clareza. Assim, a polêmica faria
sentido: contra a tese dos judaizantes (que Pedro parece ter defendido com sua
atitude ambivalente) de que os gentios deveriam se conduzir como judeus naque-
les aspectos que fazem a distinção identitária, Paulo apresenta e defende a tese
de que, mediante a ação do Messias, nenhuma diferenciação humana (mesmo a
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eleição e a aliança dos judeus) deveria ser levada em consideração na compre-


ensão da outorga da justiça por Deus.
Para receber a justiça divina não é preciso mudar de identidade (cp. a afir-
mação em 1Co de que “cada um permaneça na vocação em que foi chamado”).
Na perícope, isso é reforçado pelo uso da expressão judeus por natureza – não é
a physis que define a pertença ao povo de Deus, mas a fé-fidelidade do Messias
e no Messias – que constitui o Israel de Deus (cp. Gl 6,14-16).

A fidelidade é uma atitude existencial, anterior à decisão humana, fundada


no amor e no compromisso com o projeto de vida da pessoa amada. Ela
transcende e torna inoperante a obediência à lei e às regras.

Análise Exegética (Primeiro Segmento)


230 UNIDADE V

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ANÁLISE EXEGÉTICA (SEGUNDO SEGMENTO)

Ἡμεῖς φύσει Ἰουδαῖοι καὶ οὐκ ἐξ ἐθνῶν ἁμαρτωλοί· εἰδότες [δὲ] ὅτι οὐ δικαιοῦται
ἄνθρωπος ἐξ ἔργων νόμου ἐὰν μὴ διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, καὶ ἡμεῖς εἰς
Χριστὸν Ἰησοῦν ἐπιστεύσαμεν, ἵνα δικαιωθῶμεν ἐκ πίστεως Χριστοῦ καὶ οὐκ ἐξ
ἔργων νόμου, ὅτι ἐξ ἔργων νόμου οὐ δικαιωθήσεται πᾶσα σάρξ. εἰ δὲ ζητοῦντες
δικαιωθῆναι ἐν Χριστῷ εὑρέθημεν καὶ αὐτοὶ ἁμαρτωλοί, ἆρα Χριστὸς ἁμαρτίας
διάκονος; μὴ γένοιτο. εἰ γὰρ ἃ κατέλυσα ταῦτα πάλιν οἰκοδομῶ, παραβάτην
ἐμαυτὸν συνιστάνω. ἐγὼ γὰρ διὰ νόμου νόμῳ ἀπέθανον, ἵνα θεῷ ζήσω.
O segundo segmento possui um arranjo simples, sequencial, iniciando com
uma pergunta retórica seguida de sua resposta e do fundamento teológico da
resposta:
(P) Ora, se nós que buscamos ser justificados no Messias somos considera-
dos pecadores, então o Messias também é servo do pecado?
(R) De modo nenhum! Pois se construo aquilo que eu mesmo destruí, então
sou constituído transgressor.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


231

(FT) Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus.
Antes de entrarmos na discussão do segundo segmento, voltemos ao pri-
meiro para discutir o sentido da justificação, com base na fidelidade do Messias
e recebida pela fé-fidelidade no Messias. O verbo dikaioo é usado oito vezes em
Gálatas: 2,16[3 vezes].17; 3,8.11.24 e 5,4. A leitura desses textos é, em parte, mar-
cada pelo debate dogmático entre protestantes e católicos, estes tendem a priorizar
a interpretação do verbo como “tornar justo”, enquanto os primeiros tendem a
interpretá-lo como “declarar justo” (conceito forense). De fato, nos textos pauli-
nos, essa distinção não faz sentido. O verbo dikaioo é usado tanto no sentido de
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inocentar (ou declarar justo, judicialmente falando), como tornar justo no sen-
tido de fazer entrar no povo de Deus e viver na liberdade e na aliança com Ele.
Se levamos, primariamente, em consideração o contexto de Gálatas, este
aparente dilema fica resolvido no capítulo 3: ser justificado é entrar na linha-
gem abraâmica e participar de um novo povo messiânico, em que não há
grego nem judeu etc. Quem entra no povo da promessa é libertado de todo
e qualquer tipo de escravidão aos poderes que tornam a vida humana alie-
nada da vida divina – carne, pecado, Lei, mundo, principados – e de todos
os poderes que alienam o ser humano de si mesmo, de outros seres huma-
nos e da natureza - racismo, sexismo, egoísmo etc.
O resultado da justificação é a liberdade, conforme Gálatas 5,1 “Para a liber-
dade o Messias nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de
novo, a jugo de escravidão” e 5,13 “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liber-
dade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, escravos
uns dos outros, pelo amor”. Essa liberdade, por sua vez, é uma das concretiza-
ções da fidelidade a Deus (pelo Messias e pelo seu povo), visto que a ‘fidelidade
se concretiza no amor’ (Gl 5,6).
Mediante a justificação, a justiça de Deus (cf. especialmente a discussão em
Romanos) fica disponível, como dom, a toda humanidade e não apenas aos judeus.
Se a grande divisão entre judeus e gentios fica anulada pela própria promessa
de Deus a Abraão, da qual o Messias é o recipiente prototípico, todas as demais
divisões ficam, também, rompidas e anuladas. Assim interpreta Elsa Tamez:

Análise Exegética (Segundo Segmento)


232 UNIDADE V

[...] em síntese, o fato de que Deus os tenha arrancado do poder dos ído-
los ou deste ‘mundo perverso’ através do evento de Jesus Cristo foi um
ato de libertação da subjugação a todo tipo de escravidão, incluindo a es-
cravidão que pode advir da lei mosaica. Ser justificado pela fé e não pela
lei judaica torna participantes do povo de Deus a todos os que creem. O
direito concedido, por graça, a todos abre o espaço a novas manifestações
de convivência humana e supera as distinções de raça, classe e sexo. A
circuncisão e a incircuncisão são atitudes secundárias, porque a partir de
Cristo não há mérito que tenha valor para a justificação, pois o importan-
te nesta nova criação é o amor que brota da fé, ou, o que dá no mesmo, a
fé que atua pelo amor (Gl 5,6; cp. 6,15) (TAMEZ, 1991, p. 93).

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O problema do segundo segmento, então, fica mais claro: os críticos judaizantes
de Paulo distorciam sua tese de que, no Messias, os gentios são inseridos no novo
e único povo de Deus, afirmando que, contrariamente ao ensinado por Paulo, a
inclusão pura e simples dos gentios tornaria o povo de Israel tão pecador quanto
aqueles e, assim, o Messias mesmo seria um servo do pecado e não um Libertador
do pecado. Assim, o veredito dos judaizantes contra Paulo seria o de que ele mesmo,
não cumprindo a Lei, tornara-se um pecador e, ao ensinar outros a fazer o mesmo,
fazia do próprio Messias um pecador. A solução para tal erro seria incluir os gen-
tios desde que eles ‘cumprissem as obras da Lei’, pois, dessa forma, o Messias (e
Paulo) não seria promotor da desobediência à Lei e, assim, do pecado.
A resposta de Paulo é mais emocional do que argumentativa: “De modo
nenhum! Pois se destruo aquilo que eu mesmo construí, então sou constituído trans-
gressor”, ou seja, se Paulo buscasse a justiça de Deus mediante a Lei, iria reconstruir
a sua vida sobre o fundamento que havia destruído (anulado legalmente) – a pró-
pria Lei, pela qual ninguém pode ser justificado. De modo contrário, Paulo morreu
para a Lei, a fim de poder viver para Deus (cf. a discussão em Rm 7).
Novamente, a explanação nos capítulos a seguir tornará claro o ponto feito aqui
sutilmente – a fidelidade do Messias torna inoperante (anula) a Lei como caminho
para a justiça de Deus, de modo que a única forma de viver para Deus é viver no
Messias. O Messias, e somente ele, cumpriu e plenificou a Lei, ou seja, estabele-
ceu a validade e o término histórico da validade da Lei. A partir do Messias, toda
a Lei se resume e se torna plena no amor ao próximo (Gl 3,15ss; cf. Rm 13,8-14).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


233

Em outras palavras, a lei deslegitima e desfundamenta a si mesma. Como


escapar do domínio da lei? A própria lei, ao ser cumprida, cumpre o papel de
colocar um fim à sua própria validade, à sua própria força. Mas como a lei rea-
liza esta auto-deslegitimação? Mediante a condenação do Messias à morte. Em
Romanos 7,1ss, seguindo uma forma rabínica tradicional de entender a validade
da lei, Paulo afirma que a morte torna a pessoa livre da força da lei. Aqui, o mesmo
ponto é destacado, com um elemento peculiar: é a própria lei que nos faz mor-
rer para a lei. Ora, tendo eu sido crucificado com o Messias, fui tornado morto
para a lei, pela própria lei que condenou o Messias à morte e o tornou maldição.
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Com isso, fazemos a ponte para o próximo texto, que analisará o terceiro
segmento desta perícope.

ANÁLISE EXEGÉTICA (TERCEIRO SEGMENTO)

Χριστῷ συνεσταύρωμαι· ζῶ δὲ οὐκέτι ἐγώ, ζῇ δὲ ἐν ἐμοὶ Χριστός· ὃ δὲ


νῦν ζῶ ἐν σαρκί, ἐν πίστει ζῶ τῇ τοῦ υἱοῦ τοῦ θεοῦ τοῦ ἀγαπήσαντός
με καὶ παραδόντος ἑαυτὸν ὑπὲρ ἐμοῦ. οὐκ ἀθετῶ τὴν χάριν τοῦ
θεοῦ· εἰ γὰρ διὰ νόμου δικαιοσύνη, ἄρα Χριστὸς
δωρεὰν ἀπέθανεν.
Tradução:
O arranjo estrutural é concêntrico:
Tendo sido crucificado com o Messias, já não vivo
mais eu mesmo, mas o Messias vive em mim,
e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fideli-
dade do Filho de Deus que me amou e se entregou a
si mesmo em meu favor.
Não invalido a graça de Deus, pois se a fonte da justiça
for a lei, então o Messias terá morrido em vão.
(traduzido pelo autor)

Análise Exegética (Terceiro Segmento)


234 UNIDADE V

No último segmento de Gl 2,15-21, encontramos uma radical mudança de


pessoa verbal. Paulo passa a falar na primeira pessoa do singular – duas vezes
usa o pronome “eu” e três vezes usa formas oblíquas desse mesmo pronome.
Além dessas cinco ocorrências, Paulo usa mais cinco vezes o verbo na primeira
pessoa do singular, sem o pronome pessoal. Ao todo, então, em três versos, a
primeira pessoa do singular ocorre dez vezes! Fica evidente que o foco temático
passou a recair sobre o sujeito – Paulo está propondo uma nova subjetividade.
A divisão dos versículos 19-20 é marcada pela ambiguidade – os traduto-
res geralmente optam pela manutenção da sentença sobre a crucificação com o

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Messias como conclusão do verso 19. Nas edições críticas do texto grego, a inter-
pretação da sentença como abertura do último segmento é preferida com o uso
do ponto e vírgula. Prefiro, aqui, esta segunda possibilidade. Assim, entendo o
início desse segmento como um período composto por subordinação, no qual
a sentença “tendo sido crucificado com o Messias” é uma oração condicional
ou circunstancial: somente posso deixar de viver em minha condição física se
tiver sido crucificado com o Messias – pela fé-fidelidade – de modo que, assim,
o Messias viverá em mim. A discussão sobre a realidade ou não da transforma-
ção da pessoa mediante a justificação perde, aqui, todo sentido: ao ser justificado,
não só passo a pertencer ao povo de Deus, perdoado e reconciliado, mas tam-
bém o Messias passa a viver em mim, logo, uma nova realidade se concretiza em
minha vida (cf. a noção de nova criação em 2Co 5,15ss).
O verso 19 mostra a solidariedade da pessoa que crê (é fiel a) no Messias com
o próprio Messias: “pela lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus”. A própria
Lei anunciará o seu próprio limite, a sua própria desativação. Assim, ‘pela lei’ –
em termos experienciais, quando morremos com o Messias para a Lei, somos
tornados solidários com o cumprimento da lei pelo Messias –, morri para a Lei:
ela não mais tem efeito, tornou-se inativa, inoperante.
Dessa forma, e somente dessa forma, posso viver para Deus. Seguindo a
tradição deuteronômica, também presente em Jeremias e Ezequiel, Paulo con-
cebe a relação com Deus como uma relação sem mediação. Lei, nacionalidade,
Templo, Rei etc. deixam de ter qualquer função de mediação entre a pessoa e
Deus. A pessoa justificada faz parte da família de Deus no Messias. “Ponto final”!

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


235

No verso 20, encontramos a descrição paulina positiva da subjetividade


messiânica. Uma série de declarações em tensão destacam os contornos da nova
subjetividade: (a) “não sou mais eu quem vive, é o Messias que vive em mim”.
O novo sujeito messiânico é um sujeito esvaziadamente cheio. Esvaziado de si
mesmo, o novo sujeito é anfitrião do Messias que nele habita e o plenifica. O
Messias oferece não só o padrão, mas também a energia para a nova subjetivi-
dade; (b) “mas a vida que eu agora vivo na carne” está em tensão com “já não
mais vivo eu”. A vida que vivo na carne é a vida vivida no tempo escatológico
– que sofre com a plena interatividade da vida messiânica e da vida pré-messiâ-
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nica no mesmo tempo-espaço-pessoa. Encontramos, aqui, uma impossibilidade:


viver a nova vida na velha vida; (c) “vivo na fidelidade do Messias (designado
como Filho de Deus)”. Ora, a fidelidade do Messias foi a base da justificação e
da revelação da justiça de Deus. Agora, Paulo passa a afirmar que a fidelidade
do Messias é a esfera, o ambiente no qual a justiça de Deus é vivida na nova sub-
jetividade messiânica.
A vida terrena do Messias Jesus é, assim, o padrão para a vida “na carne”
dos novos sujeitos participantes da justiça de Deus. Diante dos projetos de sub-
jetividade que o “tempo presente” nos oferece, temos a possibilidade, na graça,
de participar em um novo projeto de vida – uma vida completamente vivida
em fidelidade a Deus e seu projeto de justiça para toda a criação. Uma possibili-
dade que, como todo verdadeiro dom, é, de fato, a impossibilidade que constitui
o novo sujeito diante de Deus e do próximo. O Messias não oferece apenas o
padrão, oferece a energia – energia vital cujo nome paulino é fidelidade; oferece
o ambiente, o espaço vital em que se pode viver para Deus e com Deus: o novo
povo messiânico, uma nova criação!
No verso 21, Paulo reafirma que a lei não pode ser o veículo da justiça,
pois se a lei fosse portadora da justiça, o Messias teria morrido inutilmente
e a graça de Deus é que teria perdido o valor. Ora, a morte do Messias teria
sido inútil se não fosse, ela mesma, a portadora da justiça de Deus. A morte
do Messias teria sido inútil se, como condenação e maldição pela lei, não anu-
lasse a própria lei, a fim de fazer vigorar a graça de Deus em seu lugar (cf. a
discussão no capítulo 3 de Gálatas).

Análise Exegética (Terceiro Segmento)


236 UNIDADE V

O argumento chega ao seu término. O texto encerra de modo paradoxal:


“[...] não anulo a graça de Deus [...]”. Ora, seguindo a interpretação eclesiástica
tradicional de Paulo, esta negativa paulina não faz sentido. De que maneira a
negação da força da Lei poderia anular a graça de Deus? Não temos nos acos-
tumado a ler Gálatas a partir do conflito entre Lei e Graça? Entretanto, parece
que Paulo não via as coisas bem assim. Para ele, a anulação da Lei poderia ser
interpretado como anulação da graça de Deus – mas, não foi a Torá uma ben-
ção de YHWH para seu povo eleito, libertado e colocado em relação de aliança?
Para Paulo, a dádiva da Lei, embora parte da graça de YHWH para com seu

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povo, não tinha como função a implementação da justiça. Israel recebera a jus-
tiça de Deus antes da outorga da Lei, assim como, mais adiante, na própria carta
aos Gálatas, Paulo irá argumentar que a Lei foi dada séculos depois de Abraão
ter recebido a justiça de Deus e as suas promessas. Assim, a lei não anula as pro-
messas. Entre Lei e Justiça há um desnível, um abismo quase insuperável. A Lei
não proporciona justiça, pelo contrário, a Lei demonstra nossa escravidão ao
pecado e a ela mesma (cf. Gálatas 3-4 e a discussão em Romanos caps. 1-5). A
Lei, que tem o poder de matar (condenar à morte), não pode proporcionar jus-
tiça, pois esta é vida e só pode ser causada pela ação do próprio Messias que,
morrendo na cruz, possibilita à criação viver a vida de Deus. A justiça vem na
fidelidade do Messias, não no cumprimento da Lei.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÁLATAS 2,15-21


237

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem! Agora sim chegamos mesmo ao término desta disciplina de Métodos
de Estudos Bíblicos no Novo Testamento. Para mim, pessoalmente, participar com
você, neste estudo, tem sido uma experiência enriquecedora e desafiadora. Mesmo
depois de muitas décadas ensinando, nós nunca terminamos de aprender. Por
isso, ao me preparar para escrever esses textos e conversar com você na aula, pude
aprender muitas coisas novas e importantes para minha vida pessoal como cristão.
Bem, cabe agora fazer um pequeno balanço do estudo desta disciplina.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nosso objetivo maior tem sido o de aprender a fazer exegese de textos do Novo
Testamento. A exegese, como você já sabe, é uma atividade complexa de leitura
e pesquisa, de imaginação e criatividade. Fazer exegese possui, portanto, uma
dimensão técnica – precisamos seguir uma metodologia, aplicá-la consistente-
mente e prestar muita, mas muita atenção ao que o próprio texto nos oferece
em termos de significados. O texto sempre tem de estar em primeiro lugar – o
método está a serviço do texto.
A exegese bíblica é diferente do que outras formas de leitura. Por quê? Porque
nosso objetivo não se restringe apenas a compreender o texto. Lemos porque
desejamos conhecer melhor a Deus e Sua vontade para a humanidade em nossos
próprios dias. A exegese bíblica, portanto, além da dimensão técnica, também
possui uma dimensão espiritual que é até mais importante do que a técnica. Na
linguagem de nosso método, a leitura da Bíblia tem como objetivo a dimensão
missional da ação – em nossa própria vida e ação.
Espero que você tenha sido enriquecida(o) por meio dos estudos desta dis-
ciplina. Acima de tudo, espero que você esteja disposto(a) a continuar estudando
e pesquisando para aperfeiçoar sua própria prática exegética, desenvolvendo sua
imaginação e criatividade interpretativas, na comunhão com Deus, para prati-
car uma exegese crítica, criativa e fiel à Palavra de Deus.

Considerações Finais
238

[...]
3. A COMPREENSÃO COMUM DA JUSTIFICAÇÃO
14. O ouvir comum da Boa Nova proclamada nas Sagradas Escrituras e, não por últi-
mo, os diálogos teológicos de anos recentes entre as Igrejas luteranas e a Igreja católica
romana levaram a uma concordância na compreensão da justificação. Ela abarca um
consenso nas verdades básicas; os desdobramentos distintos nas afirmações específicas
são compatíveis com ela.
15. É nossa fé comum que a justificação é obra do Deus triúno. O Pai enviou seu Filho ao
mundo para a salvação dos pecadores. A encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo
são fundamento e pressuposto da justificação. Por isso justificação significa que o pró-
prio Cristo é nossa justiça, da qual nos tornamos participantes por meio do Espírito San-
to segundo a vontade do Pai. Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra sal-
vífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o
Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para boas obras [11].
16. Todas as pessoas são chamadas por Deus para a salvação em Cristo. Somos justifica-
dos somente por Cristo ao recebermos essa salvação na fé. A própria fé, por sua vez, é
presente de Deus por meio do Espírito Santo, que atua na palavra e nos sacramentos na
comunhão dos crentes e que, ao mesmo tempo, conduz os crentes àquela renovação de
sua vida que Deus consuma na vida eterna.
17. Compartilhamos da convicção de que a mensagem da justificação nos remete de
forma especial ao centro de testemunho neotestamentário da ação salvífica de Deus
em Cristo: ela nos diz que como pecadores devemos nossa vida nova unicamente à mi-
sericórdia perdoadora e renovadora de Deus, misericórdia com a qual só podemos ser
presenteados e que só podemos receber na fé, mas que nunca - de qualquer forma que
seja - podemos fazer por merecer.
18. Por isso a doutrina da justificação, que assume e desdobra essa mensagem, não é
apenas um aspecto parcial da doutrina cristã. Ela se encontra numa relação essencial
com todas as verdades da fé, as quais devem ser vistas numa conexão interna entre si.
Ela é um critério indispensável que visa orientar toda a doutrina e prática da Igreja inces-
santemente para Cristo. Quando luteranos acentuam a importância singular desse crité-
rio, não negam a conexão e a importância de todas as verdades da fé. Quando católicos
se sentem comprometidos com vários critérios, não negam a função especial da men-
sagem da justificação. Luteranos e católicos compartilham o alvo comum de confessar
em tudo a Cristo, ao qual unicamente importa confiar, acima de todas as coisas, como
mediador uno (1 Tm 2, 5 s.) pelo qual Deus, no Espírito Santo, dá a si mesmo e derrama
seus dons renovadores.
[...].
Fonte: adaptado de Luteranos (1999, on-line)1.
239

1. A perícope de Gálatas 2,15-21 está estruturada em três segmentos, cujos conte-


údos são descritos a seguir.
I. A resposta paulina aos dilemas derivados da convivência entre judeus e gen-
tios na mesma comunidade de fé, do ponto de vista da atitude judaica para
com pessoas provenientes do mundo gentílico (15-16).
II. Uma possível crítica dos helenizantes ao modo de ação de Paulo e suas co-
munidades, bem como a implicação teológica dessa crítica sobre a pessoa do
Messias Jesus.
III. Uma possível crítica dos judaizantes ao modo de ação de Paulo e suas comuni-
dades, bem como a implicação teológica dessa crítica sobre a pessoa do Mes-
sias Jesus.
IV. A afirmação paulina da vida no Messias como plena expressão da vida justifi-
cada, uma forma adequada de identidade judaica que transcende o próprio
Judaísmo como religião e como etnia, sem negar a sua história e memória te-
ológica.
V. A afirmação paulina da vida no Messias como plena expressão da vida justifica-
da, uma forma de rejeição do Judaísmo como religião e como etnia.
Assinale a alternativa correta:
a) As afirmações II, III e IV estão corretas.
b) As afirmações III, IV e V estão corretas.
c) As afirmações II, IV e V estão corretas.
d) As afirmações I, II e IV estão corretas.
e) As afirmações I, III e IV estão corretas.
2. A tradução tradicional da sentença grega “ἐκ πίστεως Χριστοῦ” é “mediante a fé
em Cristo”, mas a tradução preferida pelo autor do texto é “com base na fidelida-
de do Messias”. Essa afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA
240

3. A expressão ‘obras da lei’ tem sido interpretada de várias maneiras. Qual é a


única interpretação das quatro seguintes que o texto do livro considera
inadequada?
(1) A frase se refere ao legalismo judaico da época de Paulo, contra o qual ele
expõe a sua noção da justificação pela fé.
(2) A frase se refere à fronteira étnica demarcada pela lei entre judeus e gentios:
os judeus cumprem a Lei, os gentios não (da mesma forma, demarcaria a frontei-
ra entre judeus praticantes da lei e os não-praticantes).
(3) Às práticas exigidas pela lei como um todo.
(4) O cumprimento de algumas exigências da Lei que, em seu conjunto, torna-
riam clara a distinção entre verdadeiros judeus e gentios, seguindo uma inter-
pretação possível da frase encontrada em manuscritos de Qumran.
a) ( ) Afirmativa 4.
b) ( ) Afirmativa 3.
c) ( ) Afirmativa 1.
d) ( ) Afirmativa 2.
e) ( ) Nenhuma das anteriores.
4. “Há apenas uma descrição das ações e motivos dos oponentes: * não são
______________, apenas apresentam uma boa imagem, mas não vivem de acor-
do com ela (é impossível não ver uma alusão ao comportamento de Pedro criti-
cado por Paulo em 2,11ss.); * o foco deles é singular: querem obrigar os gálatas
a se ________________ (novamente, temos de ver a alusão ao comportamento
de Tito que não se deixou circuncidar, mesmo sendo gentio, cf. 2,3 – em que
Paulo fala de falsos irmãos.); * o motivo é ____________: não querem ser perse-
guidos por causa do Evangelho – perseguidos pelas autoridades judaicas, assim
como Paulo anteriormente perseguira seguidores de Jesus e, ele mesmo, enfim,
se tornou perseguido; * são hipócritas, porque exigem a circuncisão dos gálatas,
mas eles mesmos não guardam toda a ______ * seu motivo é impuro: querem
se gloriar por terem conseguido convencer os gálatas à circuncisão”. Escolha a
alternativa que contém as respectivas respostas corretas.
a) ( ) Honestos; circuncidarem; egoísta; lei.
b) ( ) Lei; circuncidarem; egoísta; honestos.
c) ( ) Egoísta; lei; honestos; circuncidarem.
d) ( ) Circuncidarem; honestos; egoísta; lei.
e) ( ) Nenhuma das anteriores.
241

5. Em Gálatas 2,21 “Paulo reafirma que a _______ não pode ser o veículo da jus-
tiça – pois se a _________ fosse portadora da justiça, o Messias teria morrido
inutilmente e a graça de Deus é que teria perdido o valor”. A alternativa que
completa a frase, nas duas lacunas, é:
a) Lei, graça.
b) Misericórdia, lei.
c) Graça, misericórdia.
d) Lei, lei.
e) Graça, graça.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Justificação
Russel P. Shedd
Editora: Vida Nova
Sinopse: apresentação da doutrina da justificação em
perspectiva exegética por um dos principais biblistas
evangélicos conservadores no Brasil.

Justiça para Todos - 1979


Sinopse: o filme retrata as lutas em busca de justiça no sistema
judiciário nos Estados Unidos da América. Sua importância é nos
ajudar a refletir sobre os limites da lei na busca da justiça.

Justificação - o ponto de partida da Reforma


Um sermão de interessante leitura.
Disponível em: <http://ultimato.com.br/sites/estudos-biblicos/assunto/igreja/
justificacao-o-ponto-de-partida-da-reforma/>
Justificação: o ponto de partida da Reforma. Sermão baseado em Romanos 5,1-10 em perspectiva
evangélica.
O próximo link traz a Declaração Conjunta sobre a doutrina da Justificação: Luteranos e Católicos.
Documento Oficial da Comissão para Diálogo entre católicos e luteranos. Oferece uma síntese da
doutrina da justificação pela fé em dupla perspectiva.
Disponível em: <http://www.luteranos.com.br/conteudo/
declaracao-conjunta-sobre-a-doutrina-da-justificacao-1999>.
243
REFERÊNCIAS

CLEMENTS, R. E. Old Testament Theology. A Fresh Approach. Londres: Marshall,


Morgan & Scott, 1978.
HARDIN, J. K. Galatians and the Imperial Cult: A Critical Analysis of the First-Cen-
tury Social Context of Paul’s Letter. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008.
HAYS, R. B. The Faith of Jesus Christ. An Investigation of the Narrative Substructure
of Galatians 3,1-4,11. Grand Rapids: Eerdmans, 2002.
LIEDKE, G.; PETERSEN, C. “yrh, hi. to instruct”. In: JENNI, E.; WESTERMANN, C. (eds.).
Theological Lexicon of the Old Testament. Peabody: Hendrickson, 1992.
SCHREINER, T. Galatians. Grand Rapids: Zondervan, 2010.
TAMEZ, E. Contra toda condena. La justificacion por la fe desde los excluídos. San
Jose: DEI, 1991.
VON RAD, G. Estudios sobre el Antiguo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1980.

REFERÊNCIAS ON-LINE

1
Em: <http://www.luteranos.com.br/conteudo/declaracao-conjunta-sobre-a-dou-
trina-da-justificacao-1999>. Acesso em: 25 maio 2017.
GABARITO

1) E.
2) Verdadeira.
3) C.
4) D.
5) D.
245
CONCLUSÃO

Muito bem! É uma alegria chegar ao término desta disciplina de nosso curso de Ba-
charelado em Teologia no UniCesumar. Você deu mais um passo importante rumo
à sua titulação como Bacharel em Teologia e, ademais, também participou de um
processo de estudo pessoal que certamente afetou a sua visão da fé e da vida cristã.
Nesta disciplina, você teve a oportunidade de ampliar e aprofundar os seus conhe-
cimentos e a sua visão crítica da prática da exegese. Você já sabia e confirmou que
interpretar um texto bíblico é uma atividade espiritual e técnica. Em um curso aca-
dêmico, podemos trabalhar a parte técnica, mas quanto à espiritual, só podemos
incorporar o estudo exegético à sua própria espiritualidade – assim como eu tenho
feito em meu dia a dia como cristão e ministro do Evangelho.
Vamos revisar o método que estudamos? Não custa nada repetir os passos que
nos dedicamos a estudar e aprender: (1) Fase Preparatória da exegese (texto, de-
limitação, estruturação, segmentação e contexto); e (2) Fase Final, com cinco ciclos
ou dimensões: espaço-temporal, teológica, sociocultural, psicossocial e missional.
Sempre gosto de lembrar que um método é um conjunto de perguntas que procura
estudar o objeto a partir de diferentes pontos de vista.
Jamais me canso de lembrar que a metodologia é útil e importante, mas não é ‘sa-
grada’. Métodos são desenvolvidos para que façamos melhor as atividades a que
nos dedicamos. Assim, você aprendeu um método, mas o que realmente importa é
compreender e praticar o que o texto bíblico nos ensina. Minha expectativa é que
você perceba a importância da exegese para a vida e para o ministério e assuma o
compromisso de se dedicar sempre ao estudo da Palavra, com técnica, mas, acima
de tudo, como um exercício espiritual de discernimento e crescimento na comunhão
com Deus e com o Seu povo.

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