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DE ESTUDOS
BÍBLICOS
NO ANTIGO
TESTAMENTO
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
SEJA BEM-VINDO(A)!
Estamos iniciando nossos estudos de interpretação do Antigo Testamento. A exegese
do texto bíblico tem uma longa história, iniciada nos próprios livros da Bíblia que já
apresentam um trabalho de leitura e interpretação de outros textos bíblicos mais anti-
gos. Posteriormente, a interpretação da Bíblia continuou a ser praticada de modo cons-
tante, tanto pelas Igrejas Cristãs, quanto pelo Judaísmo rabínico – e isso até os nossos
dias. Na disciplina de Métodos e Interpretação da Bíblia estudamos parte dessa história
e, principalmente, os diferentes métodos que podem ser usados para fazer a exegese da
Escritura. Portanto, nesta disciplina colocaremos em prática e aprofundaremos conteú-
dos que já foram estudados naquela disciplina. Então, se você não se lembrar de algo,
basta consultar novamente o livro da disciplina (e a sua memória) a fim de reavivar o
que foi aprendido.
Esta disciplina é, portanto, uma disciplina prática. Você irá aprender a fazer exegese. Para
aprender a fazer algo normalmente seguimos a seguinte estratégia: (a) uma pessoa que
sabe fazer explica como fazer e mostra como se faz – você já teve disciplinas assim em
seus anos de escola e, se assiste programas de culinária na TV, por exemplo, sabe que
sempre se começa assim: explicação e exemplo; e (b) você mesmo precisa praticar, e
várias vezes, o que está sendo explicado e exemplificado até aprender a fazer. Então veja
bem: nessa disciplina o conteúdo do livro e das aulas é feito de explicação e exemplifica-
ção de como se faz exegese de textos do Antigo Testamento.
Só para relembrar os aspectos fundamentais da interpretação bíblica (exegese):
1. Os textos do Antigo Testamento foram escritos em uma língua diferente da nossa
(hebraico, com algumas seções em aramaico). Foram escritos em uma realidade muito
diferente da nossa – forma de governo diferente, economia diferente, cultura diferente,
geografia diferente, tecnología diferente etc. Consequentemente, precisamos conhecer
o máximo possível dessa realidade e língua, a fim de entendermos bem os textos. Logo,
a boa prática da exegese demanda alguns anos de aprendizado e estudo da realidade
em que a Bíblia foi escrita. Assim, durante o curso de Bacharelado, nós começamos a
aprender e, depois, temos a vida inteira pela frente para aperfeiçoar nosso conhecimen-
to. Para facilitar um pouco a sua vida, a primeira Unidade desta disciplina é dedicada a
uma apresentação dos aspectos fundamentais da realidade em que o Antigo Testamen-
to foi escrito. Então, estude bem a primeira Unidade e, quando estivermos estudando
a exegese propriamente dita dos textos nas demais Unidades, não deixe de rever os
conteúdos da Primeira Unidade sempre que for necessário.
2. Conhecer a realidade do mundo bíblico, então, é uma primeira exigência para fazer
uma boa exegese. Mas é só o começo. A história da interpretação da Bíblia nos ensina
que para entender um texto é preciso lê-lo em seu contexto. Ora, o contexto não é a re-
alidade, mas a maneira como o próprio texto interpreta a sua realidade. Então, uma de
nossas primeiras atividades práticas da exegese é reconstruir o contexto do texto bíblico
a partir das informações que o próprio texto nos dá – e usando essas informações à luz
do que sabemos sobre a realidade da época em que o texto foi escrito. Dessa forma,
APRESENTAÇÃO
nas quatro Unidades em que estudaremos textos bíblicos, sempre mostrarei a vocês
como se reconstrói o contexto do texto bíblico. São três as técnicas metodológicas
para reconstruir o contexto: (a) estudar o gênero textual, pois o gênero é uma reali-
dade social e literária que nos ajuda a situar um texto em seu contexto; (b) estudar
o conteúdo do texto naquilo que ele nos fala sobre o seu mundo; e (c) estudar as
relações intertextuais e interdiscursivas do texto, pois elas nos mostram o lugar que
o nosso texto ocupa em seu contexto.
3. Após o estudo do contexto, voltamos novamente ao nosso texto para continuar
a exegese, com a finalidade de entender o texto. Vários passos ou técnicas são ne-
cessários:
(a) no método que utilizamos, há a fase preparatória da exegese, na qual, além de
estudar o contexto, nós definimos qual é o texto a ser interpretado. É parte da tra-
dição exegética nas Igrejas e na academia teológica, que a exegese de um livro da
Bíblia comece com a exegese de pequenos trechos, que chamamos de perícopes.
Assim, nosso primeiro passo na exegese será o de delimitar, segmentar e estruturar
a perícope;
(b) definido o texto que será interpretado, passamos a interpretar o seu conteúdo
propriamente dito (nos passos anteriores estudamos a sua realidade, o seu contexto
e a sua forma). O conteúdo de um texto bíblico é muito amplo e, para simplificar
nosso aprendizado, dividi as atividades metodológicas em cinco ciclos ou dimen-
sões. Entramos, assim, no que chamo de a fase final da exegese.
* o primeiro ciclo é uma análise da dimensão espaço temporal da ação no texto.
Estudamos as personagens do texto, suas ações e relações, e o sentido dado a elas
no texto;
* o segundo ciclo é a análise da dimensão teológica da ação. Nosso foco recai na
compreensão das noções teológicas presentes no texto;
* o terceiro ciclo é a análise da dimensão sociocultural da ação. Aqui retomamos em
parte o estudo do contexto, mas nosso foco recairá sobre o significado que o texto
atribui às diferentes áreas da vida sociocultural;
* no quarto ciclo, enfocamos a dimensão psicossocial da ação. Estudamos como o
texto constrói a identidade das pessoas e instituições a respeito de que ele fala;
* finalmente, no quinto ciclo analisamos a dimensão missional da ação. Queremos,
neste último ciclo, saber como o texto bíblico é importante para nós hoje, o que ele
nos propõe crer e fazer como expressão da fé em Deus ou da busca de uma vida
mais justa, espiritual e humana.
Fica aqui o convite para você participar ativamente deste processo de aprendiza-
do. Espero que estes conhecimentos sejam úteis para você e ajudem você a crescer
como pessoa e como seguidor(a) de Deus.
09
SUMÁRIO
UNIDADE I
15 Introdução
51 Considerações Finais
58 Referências
59 Gabarito
UNIDADE II
63 Introdução
99 Considerações Finais
105 Referências
107 Gabarito
10
SUMÁRIO
UNIDADE III
111 Introdução
157 Referências
159 Gabarito
UNIDADE IV
163 Introdução
211 Referências
212 Gabarito
11
SUMÁRIO
UNIDADE V
215 Introdução
253 Referências
254 Gabarito
255 CONCLUSÃO
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
I
UNIDADE
EM SEU CONTEXTO
Objetivos de Aprendizagem
■■ Descrever os principais elementos da hermenêutica bíblica.
■■ Recapitular os passos metodológicos da Exegese Sêmio-Discursiva.
■■ Definir contexto e sua importância para a interpretação do texto
bíblico.
■■ Descrever as principais características socioculturais do Antigo
Oriente.
■■ Próximo enquanto contexto do AT.
■■ Descrever as principais características socioculturais do povo e da
nação de Israel enquanto contexto do AT.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Breve revisão da teoria hermenêutica
■■ Breve revisão da metodologia sêmio-discursiva
■■ Contexto: definição e discussão de termos
■■ O Antigo Oriente Próximo como contexto do AT
■■ História de Israel como contexto do AT
15
INTRODUÇÃO
Introdução
16 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
BREVE REVISÃO DA TEORIA HERMENÊUTICA
Essas pessoas já não conseguem mais ficar atraídas por um sermão à moda
antiga, sua capacidade de atenção é diferenciada, mais diversificada, mais ner-
vosa; em outras palavras, aquele velho tipo de sermão já não funciona mais.
Nós que vivemos em uma sociedade em que a leitura de textos cada vez
mais é substituída pelo assistir às imagens da TV, cinema e internet, precisamos
rever a nossa maneira de ler a Bíblia, a Palavra de Deus. A fé cristã foi chamada,
durante muito tempo, de a religião do livro, tendo a Bíblia sido o guia inspira-
dor da vida da Igreja, suas reformas, suas renovações, seu aperfeiçoamento. Hoje
em dia, porém, cada vez menos impacto o livro realiza sobre as pessoas de fé.
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Cada vez mais esse impacto é substituído pela força das imagens, dos tes-
temunhos, dos discursos emotivos, das canções e rituais cúlticos. Nos próprios
sermões, a Bíblia parece estar se tornando apenas um ícone, um símbolo que é
evocado para dar legitimidade ao conteúdo da pregação, mas que tem pouco a
ver com esse conteúdo.
Diante desses desafios, o conselho de Eugene Peterson é relevante:
“Para os cristãos, a leitura e o estudo das Sagradas Escrituras como nos-
sa autoridade, em todas as questões da fé e da prática, é uma atividade
fundamental e essencial, e não um acréscimo opcional. Mas no nosso
mundo contemporâneo, com sua moda proliferante de “espiritualida-
de”, cada vez mais pessoas estão escolhendo outras autoridades e guias
para a salvação. Por mais atualizadas e atraentes que muitas dessas op-
ções pareçam, nós, os cristãos, as rejeitamos. (PETERSON, 2001, p. 7)
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Cada lado dessa disputa estabeleceu seus próprios critérios de validade, recu-
sando ao outro lado a possibilidade de provar a sua própria verdade. Pelo que
se pode chamar este modelo de leitura de pesquisa agônica (você se lembra das
aulas de grego no Seminário? Agon é uma palavra grega que significa luta, con-
flito, esforço árduo, etc.).
Permitam-me descrever com mais detalhes esse modelo que é o predomi-
nante no mundo evangélico.
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um tom progressista, e assim por diante.
Leitura histórico-gramatical
Predomina, ainda, a hermenêutica histórico-gramatical. A leitura histórico-
-gramatical se constituiu a partir da polêmica contra a leitura histórico-crítica
que, diz-se, nega o caráter inspirado da Escritura, por ter se rendido à visão
racionalista de mundo, negando os milagres de Deus na criação e na histó-
ria. Conquanto guarde muito das características das leituras fundamentalista e
Escritura, mediante a qual os sentidos históricos dos textos vão sendo nivelados e
harmonizados a partir do conjunto de doutrinas reconhecidas como verdadeiras,
e que encontram nos escritos paulinos, principalmente, a sua fonte primordial.
HERMENÊUTICA CONTEXTUAL
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objetivos e as estratégias da leitura bíblica no modelo dialogal.
Ler a Bíblia visa, neste modelo, a construir consensos, ou seja, acordos frater-
nos sobre a vontade de Deus na atualidade. Consenso não significa que todas as
pessoas envolvidas concordam com tudo que se diz, ou se escreve. Um consenso
é a conclusão de uma discussão baseada em argumentos, fundada na partici-
pação inteligente das pessoas envolvidas, e deve direcionar a ação coletiva das
pessoas. Bons consensos, baseados no estudo dialogal da Bíblia, deveriam ser:
(a) eticamente válidos, pois nem todos os meios são justificados pelos fins – ou,
nem tudo que funciona, ou que dá prazer, é justo, é bom, é santo – ou seja,
a Bíblia deveria nos ajudar a estabelecer os critérios mediante os quais deci-
dir qual projeto de ministério assumir, como enfrentar a concorrência etc.;
(b) cognitivamente verdadeiros, pois nem todas as experiências, doutrinas e
conceitos que defendemos passam pelo crivo da Sagrada Escritura – ou
seja, mediante o estudo deveríamos ajudar a comunidade cristã a crescer
em conhecimento teológico sadio e relevante;
(c) pessoalmente verídicos, pois muitas vezes ocultamos a verdade pessoal e
institucional atrás das máscaras do poder, do dinheiro, do prestígio ou do
saber – ou seja, a leitura da Bíblia deveria nos ajudar a sermos pessoas mais
transparentes umas às outras, nos ajudar a superar a tentação de “desem-
penhar papéis” na igreja, ao invés de sermos nós mesmos;
(d) missionariamente relevantes, pois a Escritura é a biblioteca de Deus que
prepara o povo de Deus para a missão – ou seja, a leitura da Bíblia deveria
resultar em práticas ministeriais cada vez mais dignas do Reino de Deus,
cada vez mais relevantes para a nossa sociedade, cada vez mais transfor-
madoras de nossa comunidade.
fé possa falar, se expor, apresentar aos demais a sua visão da fé, da vida,
da missão, da vontade de Deus conforme ele ou ela a vê na Escritura;
(c) responsavelmente partilhadas, ou seja, que não se fale apenas por falar,
que não se fale apenas a partir do achômetro de cada um, mas que cada
participante do diálogo com a Bíblia e a partir da Bíblia, seja responsável
em sua contribuição – tendo examinado bem o que leu e o que quer dizer
– como os antigos judeus de Beréia que, ao ouvir a explanação da Bíblia
pelos missionários cristãos, foram examinar cuidadosamente o valor e
a validade da nova forma de ler a Bíblia que a fé cristã estava trazendo.
Não posso oferecer receitas prontas e rápidas para você aplicar no seu ministério,
mas gostaria de compartilhar com você algumas possibilidades de ações que nos
ajudará a tornar a leitura da Bíblia uma atividade ministerial rica e transformadora.
(1) Precisamos recuperar o valor da Escritura como palavra de Deus para a
humanidade, como obra literária de qualidade, como fonte inesgotável de sabe-
doria – recuperar o caráter inovador e desafiador da Bíblia, que sempre fala a
nós, mas também contra nós. Para fazer isto, precisamos orar, buscar a Deus, e
voltar para a Bíblia – e lê-la com mais freqüência e assiduidade. Precisamos ler
a Bíblia não para procurar ensinamentos e sermões, mas simplesmente para ter-
mos o prazer de ouvir o que Deus disse à humanidade.
Uma nova leitura da Bíblia só será possível se ler a Bíblia for uma fonte de
prazer e não só um hábito profissional. Novos hábitos só acontecem se novos
valores forem adotados – novos que podem ser muito antigos, como este dos
primeiros apóstolos: “e quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministé-
rio da palavra.” (BÍBLIA, Atos, 6, 4).
(2) Paralelamente, precisamos cuidar do hábito de ler “perícopes” homiletica-
mente (ou seja, lemos pequenos trechos pensando no próximo sermão, ou lemos
pequenos trechos e os interpretamos dentro dos limites da igreja e do ministério
pastoral) – cuidar, sem abandonar. Precisamos nos habituar a ler livros inteiros
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da Bíblia, tentando entender o conjunto da mensagem de cada um desses livros;
precisamos retomar o hábito de ler a Bíblia toda em curtos períodos de tempo
(um ou dois anos), mas não só para “ler”, e, sim, para notar (e anotar) as recor-
rências temáticas que passam pela Bíblia toda, pois essas repetições temáticas
são uma importante pista para entendermos o que é relevante para o Reino de
Deus (hoje em dia temos também a ajuda de bíblias em cd-rom e online, que
facilitam a busca por repetições temáticas – mas não confunda isto com repe-
tição de palavras). Em linguagem paulina, você precisa permitir que a Bíblia
“habite” ricamente em sua mente (Cl 3,16), isto é, que ela “faça a sua cabeça”;
precisamos reaprender a ler devocionalmente a Bíblia, sem compromisso ser-
monário ou profissional.
(3) Uma nova leitura precisa de novas perguntas. Habituamo-nos a fazer as
mesmas perguntas para a Bíblia, perguntas de tipo doutrinário, perguntas sobre
como fazer melhor o nosso ministério, perguntas sobre o comportamento das
pessoas da igreja, etc. Sem abandonar esse tipo de perguntas, mas colocando-o
em segundo plano, precisamos nos habituar a fazer perguntas que sejam rele-
vantes para o nosso tempo e para a missão da igreja hoje. Por exemplo, questões
de gênero, raça, identidade, saúde, corporeidade, realização profissional, lazer,
globalização, diálogo inter-religioso, prosperidade com justiça, solidariedade,
participação política, evangelização da cultura etc.
(4) Precisamos, na prática, ler a Bíblia em grupos na igreja e fora da igreja
(movimentos populares, lares, escolas, etc.). Não quero dizer que devamos aban-
donar a leitura individual da Bíblia, é claro. Mas precisamos dar mais valor e
ênfase à leitura da Bíblia em pequenos grupos. Um dos primeiros avivamentos
(6) Um hábito que além de agradável ajuda muito a pregar melhor é o de acom-
panhar a leitura da Bíblia com a leitura de obras culturais de nosso tempo:
literatura, poesia, cinema, música, etc. Ser capaz de temperar os sermões com
citações literárias, poéticas, ou do cinema, é uma boa prática, que atrai a atenção,
que comunica melhor, que ajuda a entender melhor a realidade, que aumenta
nosso vocabulário, nossa capacidade de criar e inovar, etc.
Os melhores pregadores contemporâneos que eu tenho ouvido, e de quem
tenho aprendido, são ávidos leitores de boa literatura. Aliás, ler boas obras literá-
rias deveria ser um hábito permanente de quem se dedica ao ministério, pois além
de muitos outros benefícios, a literatura de qualidade é uma das principais vias de
aprendizado da cultura contemporânea, e dos estilos de ser pessoa no mundo atual
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– melhor até do que muitas obras técnicas de psicologia, sociologia, filosofia, etc.
Novos tempos demandam novas práticas. Nas duas últimas décadas temos
visto intensas mudanças na liturgia e na estruturação de igrejas locais, bem como
importantes alterações nos hábitos pastorais. Algumas dessas mudanças não são
tão boas quanto gostaríamos, mas é necessário tentar, mesmo que erramos – pois
sempre se pode consertar o que está errado.
Vejo com muito prazer novos hábitos devocionais e de liderança que muitos
ministros e ministras têm adotado, na busca de serem exemplos de fato para seus
rebanhos. Vejo com bons olhos que muitas pastoras e pastores têm incorporado
algumas características de comunicação derivadas da televisão – sermões mais nar-
rativos, maior movimentação, alguma interatividade com o auditório. Não tenho
visto, porém, mudanças significativas nos hábitos de leitura da Bíblia – pelo menos
a partir do que se pode perceber pelo conteúdo de sermões.
Por menos prático que possa parecer, porém, renovar nosso jeito de ler a Bíblia
é fundamental para um ministério criativo, inovador e eficaz. É bom nos lembrar-
mos que a Palavra de Deus é o principal meio pelo qual Deus age, ela é a espada do
Espírito, é luz para nossos passos, é inspiração divina para o nosso viver. O poder
da Palavra supera todas as estratégias, planejamentos, estruturações e modelos de
igreja e ministério. A Palavra nos ensina a discernir, a decidir, a fazer as coisas cer-
tas nas horas certas.
E hoje em dia, diante de tantas alternativas à nossa disposição, saber escolher a
melhor é um imperativo urgente. Por isso, insisto com você na importância de buscar
novos hábitos de leitura da Bíblia. Insisto e reafirmo: uma das dimensões fundamen-
tais do ministério é a acadêmica – você precisa também ser um estudioso e estudiosa
Estudamos a Bíblia porque: (1) queremos conhecer melhor a Deus; (b) queremos
servir melhor a Deus; (c) queremos crescer espiritualmente; (d) queremos discernir
a vontade de Deus para a nossa vida e nosso ministério. Porque a Bíblia é a Palavra
de Deus, nós levamos muito a sério o seu estudo. Não queremos ler na Bíblia a
“nossa” teologia, precisamos encontrar na Bíblia, a instrução de Deus para nós.
A hermenêutica tem como objetivo primário e fundamental a compreen-
são dos textos bíblicos em seu contexto e a sua aplicação para o nosso contexto.
Temos usado a palavra hermenêutica nesta disciplina como a teoria da interpre-
tação. Toda teoria precisa ser complementada por uma metodologia. Damos à
metodologia de interpretação da Bíblia o nome de exegese.
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seguir. Note bem: nós percorremos um caminho – ou seja, só se aprende a fazer
exegese, fazendo! Só se chega ao fim do caminho, caminhando! O meu papel,
como professor, é apontar o caminho, andar com você os primeiros passos, e
apoiar você quando estiver caminhando sozinha ou sozinho. Não sou eu quem
fará a exegese do texto bíblico. Seremos você e eu.
A metodologia que utilizaremos está dividida em três fases, que vão se tor-
nando mais complexas e abrangentes. Cada fase tem seus objetivos, e consiste
em uma série de perguntas que fazemos ao texto, a fim de, aos poucos, construir-
mos a exegese. A fase final é a mais importante e complexa, e está estruturada
em cinco ciclos, ou seja, você irá estudar o texto a partir de cinco diferentes pon-
tos de vista, todos eles baseados na teoria sêmio-discursiva.
FASE PRELIMINAR
Como fazer:
1) ler o texto bíblico até ficar amplamente familiarizado com ele;
2) anotar as suas primeiras impressões e dúvidas sobre o texto (revisá-las
a cada ciclo da leitura);
3) ler o livro, ou seção do livro, ao qual o texto pertence, notando suas prin-
cipais inter-relações (vocabulário, pessoas, lugares, assuntos);
FASE PREPARATÓRIA
Como fazer:
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(1) Qual é o texto a ser interpretado (do ponto de vista da crítica textual e
genética); (2) como o texto está delimitado, segmentado e estruturado; e
(3) que elementos do plano de expressão contribuem mais intensamente
para a produção do sentido?
FASE FINAL
Como Fazer:
Respondendo às perguntas de cada ciclo, que correspondem às diversas
dimensões de significado de um texto, conforme apresentado a seguir.
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Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação
sob os pontos de vista da (1) sociedade; (2) cultura; e (3) religião?
A sociedade, a cultura e a religião são realidades complexas, fruto da ação
e da interação organizada e conflitiva de pessoas e instituições.
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Voltando à terminologia greimasiana, o contexto não é uma realidade extra
semiótica, o contexto é semiótico. De fato, todas as coisas existentes existem
também semioticamente. Por isso, na tradição greimasiana se pode falar, por
exemplo da ‘semiótica do mundo natural’ – na medida em que nosso acesso à
‘natureza’ é semioticamente mediado: pela semiótica natural propriamente dita,
pelos indícios de significação e sentido que a própria natureza nos oferece, e pela
semiótica discursiva – pelas descrições, explicações, articulações semânticas que
nós damos ao mundo natural mediante nossas várias atividades de produção de
sentido (entre elas, a ‘ciência’).
O contexto de um texto (bíblico, ou não) é, dessa forma, uma realidade semi-
ótica, e não uma realidade extralinguística ou extrasemiótica. Nosso acesso ao
contexto é semioticamente mediado – e a própria descrição histórica do contexto
não passa de uma reconstrução semiótica do mundo em que o texto foi elabo-
rado. Essa reconstrução dialoga, é claro, com as diversas semióticas desse mundo:
a natural (quando utilizamos fontes da ‘natureza’), a arquitetônica (quando utili-
zamos fontes arqueológicas ‘monumentais’), a discursiva (quando nos utilizamos
de fontes escritas da época), etc. Dessa forma, a reconstrução do contexto de um
texto deve ser repensada como parte da interpretação do próprio texto, como
uma pesquisa sobre o contexto no texto, sobre o contexto que ‘atravessa’ o texto
com sua frágil presença, por assim, dizer, nas entrelinhas do texto.
Assim repensada a noção de contexto, podemos perceber mais uma razão porque
jamais duas interpretações de um texto serão idênticas – não só as habilidades
analíticas de texto diferem, mas também – e principalmente – o lugar das pes-
soas no contexto é sempre diferente: jamais duas pessoas veem e vivenciam seu
contexto de forma idêntica. Assim também, na interpretação de um texto bíblico,
jamais se poderá reconstruir o contexto do texto de forma idêntica – seja à vivên-
cia do contexto pelo autor ou autora do texto, seja à reconstrução do contexto
por intérpretes do texto.
Aliás, levando em conta essas diferenças inevitáveis, podemos também com-
preender o dito hermenêutico de que um intérprete chega a compreender o texto
melhor do que seu autor ou autora. Poderíamos evitar mal-entendidos deixando
de usar o advérbio ‘melhor’ e usando o advérbio diferentemente, que englobaria
a capacidade de intérpretes em captar sentidos que sequer teriam sido intencio-
nados por autoras e autores.
Ao rever a noção de contexto, precisamos de uma nova terminologia para
diferenciar as dimensões do que chamamos de contexto, um termo que tem sido
usado de modo bastante impreciso e plural.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
chamar de contexto, e (d) co-texto para as relações internas da perícope estu-
dada com o ‘texto’ (livro ou seção de livro ou do cânon bíblico) da qual ela faz
parte. Em certo sentido, assim como no caso dos termos anteriores, o co-texto
depende da decisão hermenêutica em relação ao texto a ser interpretado.
Dessa forma, não é necessário pensar no contexto como ‘fora’ do texto, mas
como dimensão integrante do texto: o contexto está no texto e, em certo sentido,
ler um texto em seu contexto é simplesmente ler o texto (é impossível ler um texto
‘fora do contexto’, a não ser na medida em que usemos essa frase para nos refe-
rirmos a uma interpretação que situe erradamente o texto em seus contextos).
(a) A leitura deve partir da premissa de que toda reconstrução do contexto pelo
intérprete se diferencia da percepção do contexto pelo autor do texto, de tal
modo que se faz necessário, mediante a análise interna do texto, tentar recons-
truir como o próprio texto se situa em seu contexto (ou o reconstrói).
(b) A leitura deve exercer em relação ao texto uma postura crítica, na medida
em que precisa analisar as pretensões de validade utilizadas pelo texto, expli-
cando porque o texto se apresenta como tal e não de outra forma.
(c) A leitura, enfim, deve saber discernir os problemas que o texto encontrou
e tentou resolver em seu contexto para, a partir deles e das respostas textuais,
construir os próprios problemas que a interpretação visa resolver em seu pró-
prio contexto, a fim de que a interpretação não seja mera reprodução textual,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
apropria não literalmente de partes ou do todo de outro(s); e estilização, quando
um texto imita o estilo de outros. Tanto na interdiscursividade quanto na inter-
textualidade, o uso dos outros textos e/ou discursos pode ser de forma contratual
(quando há um acordo de ideias ou práticas), ou polêmica (quando os outros
textos e/ou discursos são usados sem concordância).
Nem sempre as relações interdiscursivas estão explicitadas no texto, de modo
que o estudo dos ‘implícitos’ (pressupostos e subentendidos) é indispensável para
a análise. Quando as relações estão explicitadas, há várias maneiras de marcar no
texto essas relações. Pode-se afirmar claramente que se está citando um outro texto
ou discurso; pode-se indicar essas relações mediante o uso de aspas, travessões ou
outras formas de pontuação; pode-se usar de recursos estilísticos como a ironia
e a paródia; pode-se usar a negação; pode-se usar glosas; podem-se usar tam-
bém diferentes formas de
inclusão de outras vozes:
discurso direto (a fala da
“voz” é citada), e discurso
indireto (a fala da “voz”
é marcada por um verbo
de dizer e uma oração
subordinada substantiva
objetiva direta).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“O palco da história do povo de Israel é a parte meridional do corredor
siro-palestinense entre as antigas civilizações e potências situadas junto
ao Nilo, na Mesopotâmia e na Ásia Menor. Em virtude de sua situa-
ção geográfica, esse corredor foi ao longo dos milênios um cadinho
de influências políticas e culturais que, provindo de todas as direções,
ali se encontravam e eram processadas. Estava destinada a transmitir
ao Ocidente, pela via dos gregos, a herança do Oriente. Além dessa
missão histórico-cultural, não produziu formações políticas autôno-
mas em maior estilo. O corredor era e permaneceu uma região de in-
teresses e objeto da política imperialista dos impérios. Só nas fases de
enfraquecimento das potências externas conseguia, sempre passagei-
ramente, ganhar um peso político próprio. [...] a história de Israel em
época alguma poderá e deverá ser considerada isoladamente. Ela está
entrelaçada na história do Oriente Antigo, sendo em todos os sentidos
parte inseparável da mesma.” (DONNER, 1997, p. 33)
A essa região também se costuma dar o nome de Crescente Fértil, em função de sua
semelhança com a lua crescente e sua capacidade produtiva (agrícola e pastoril),
estando entre duas grandes regiões dominadas por grandes rios (Nilo, no Egito; Tigre
e Eufrates, na Mesopotâmia). Na segunda
metade do segundo milênio, há um equi-
líbrio de forças entre as grandes potências
do Antigo Oriente: Egito (junto ao Nilo),
Mitanni, Assíria, Babilônia (os três na
Mesopotâmia) e Hititas (Ásia Menor)
– todas as quais tentavam se configu-
rar como impérios, dominando toda a
região, mas sem o conseguir.
O Egito também sofreu a perda de seu domínio na Palestina e Ásia Menor, redu-
zindo-se à região africana.
Esse desenvolvimento naturalmente não deixou de ter conseqüências para o
corredor. Com o caso do reino hitita e com a extinção da hegemonia egípcia sur-
gira aí, por assim dizer, um espaço vazio em termos de poder político. A partir do
momento do término do equilíbrio de forças no Oriente Próximo, os territórios
situados entre os blocos de poder tornaram-se historicamente relevantes e capazes
de produzir formações políticas próprias – por certo não de imediato, mas poten-
cial e tendencialmente. Tal possibilidade foi promovida pelo afluxo e surgimento
de novos elementos populacionais, e por fim efetivada pelos filisteus e arameus.
De qualquer maneira, aos arameus pertenciam os amonitas, moabitas e
edomitas da Transjordânia – e aquelas tribos que sob o nome de Israel
posteriormente se estabeleceram e se tornaram sedentárias sobretudo
na Cisjordânia. Na região montanhosa, toparam com os filisteus, e os
filisteus com eles: um conflito da mais alta relevância histórica, que,
por fim, levou à formação do Estado israelita” (DONNER, 1997, p. 49).
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grupos semi-nômades veio boa parte da população do futuro povo de Israel, aos
quais dedicaremos atenção em um tempo posterior.
Deve ficar claro para quem estuda a história de Israel que este povo, que se cons-
titui tardiamente na região (o início de sua história não se deve datar antes de 1.230
a.C), foi constituído como um amálgama de formações sociais, culturais, religiosas,
políticas e econômicas. A noção de uma população racialmente definida, etnica-
mente bem delineada, religiosamente separada de seus vizinhos não se aplica, de
forma alguma, ao nascente Israel – que era uma população sincrética do ponto de
vista cultural e religioso. Quatro foram as grandes influências que marcaram esse
sincretismo: a negra-africana (Egito e Etiópia/Cuxe); a siro-mesopotâmica; a dos
povos do mar (especialmente filisteus) e a das populações marginais ao sistema.
Destaco: (a) o politeísmo e a longa tradição religiosa oficial dos Estados, bem como
os conflitos entre as religiões oficiais dos impérios e das cidades-estado e as religiões
populares; (b) a organização tributária dos Estados, mediante a qual a corte (e seu
exército) e o sistema religioso oficial (Templos e sacerdócio) eram sustentados pelos
tributos recolhidos junto aos camponeses (agricultores e/ou pastores), pelos espó-
lios de guerra, e pelo trabalho gratuito prestado pelas populações camponesas e pelos
escravos de guerra ao Estado (corvéia); (c) uma relativa miscigenação étnica-racial,
provocada pelos constantes contatos interpopulacionais, não só de natureza comer-
cial e pacífica – imagina-se, por exemplo, os efeitos de uma invasão militar com seus
inevitáveis estupros, deslocamentos populacionais e mortalidade de homens jovens.
Passo ao estudo da cosmologia vétero-oriental, tema que destaca as diferen-
ças principais entre o modo dos antigos verem o mundo e o modo atual como nós
mesmos vemos o mundo.
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da criação e a extensão do mundo criado – que pode ser apenas a região onde
habitam os seguidores da divindade criadora (em textos mais antigos), ou pode
ser “toda a terra”, ou seja, todas as regiões que, de uma forma ou de outra, estão
presente na vida dos seguidores da divindade – nunca, porém, o “planeta” terra.
Vejamos, como exemplo, o caso da Bíblia Hebraica.
Nos dois relatos da criação em Gn 1,1-24ª e Gn 2,4b-17 não há nenhuma indi-
cação de que “céu e terra” (Gn 1,1 & 2,4b) seja o que nós chamamos de universo
(cosmos), ou de que a terra seja o “planeta” terra. No capítulo 2 encontramos
uma descrição geográfica compatível com o que hoje chamamos de Crescente
Fértil, ou seja – um arco que vai do Egito à Mesopotâmia ao longo do litoral do
Mediterrâneo (cf. os quatro “rios” [cf. o delta do Nilo] que saem do rio primor-
dial do Éden em 2,10-14).
Do ponto de vista hermenêutico, os fatores mais importantes dessa descrição
são: (a) a ausência de uma descrição metafísica; (b) crença nos deuses como seres
poderosos agentes na vida sobre a terra; (c) crença na capacidade destruidora dos
deuses – a ameaça de “fim do mundo” é base para a maior parte das liturgias de
Ano Novo na região; (d) crença em uma ordem da vida no nível intermediário,
regida diretamente por um ou mais deuses – fonte da sabedoria vétero-oriental e
precursora do que chamamos hoje em dia de ciência (note-se, por exemplo, que
na sabedoria israelita não é necessária uma “revelação” da divindade para se obter
conhecimento. Esse é obtido mediante a observação dos acontecimentos naturais e
humanos. O “temor a Deus” é o fundamento existencial para a sabedoria, mas não
exerce, poderíamos dizer, papel epistêmico; e (e) a contextualidade das descrições do
mundo e da ação dos deuses, com variações significativas entre as regiões do oriente.
COSMOLOGIAS OCIDENTAIS
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no nível inferior: (a) em o nível intermediário os anjos são assistentes de Deus,
enquanto os demônios são alvo do juízo divino prévio (não podem ser salvos)
– mas não se fala a respeito de ação de Deus nesse nível; (b) em o nível inferior,
“primariamente” os humanos são objetos da ação divina: (1) objetos do amor/
ira de Deus, conforme sua resposta à oferta de salvação; (2) objetos da provi-
dência divina, “comum” a salvos e não-salvos; (3) objetos do cuidado especial
de Deus – apenas os “salvos” – cuidado também descrito como ação miraculosa.
Em comparação à cosmovisão judaico-cristã antiga, as principais diferen-
ças têm a ver com: (a) comunicação entre os seres dos níveis intermediário e
inferior – na visão pré-moderna, os seres do nível intermediário interagem cons-
tantemente com os do inferior; na moderna, essa interação é menos constante;
e (b) comunicação entre humanos mortos e vivos – na visão pré-moderna essa
comunicação inexiste; na moderna essa comunicação é diferenciada: (1) no
Catolicismo algumas pessoas mortas podem se tornar santas e, como que do
nível intermediário, agir no mundo; (2) no Espiritismo os espíritos dos mortos
interagem constantemente com os vivos; (3) no Protestantismo não se postula
tal tipo de comunicação.
Em relação ao Gênesis, essa cosmologia gera dificuldades exegéticas de
monta – se a identificarmos com o relato bíblico. Como vimos acima, na cos-
mologia judaica antiga não há a noção de separação entre as esferas, nem há
uma concepção dualista do mundo e da realidade. Dessa forma, independen-
temente da validade da cosmologia teísta cristã, do ponto de vista filosófico ou
teológico; do ponto de vista exegético ela não deve servir de base para a leitura
do texto bíblico.
Cosmovisão Pós-Mecanicista
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O teísmo cristão ocidental clássico postula Deus como um Ser eterno, imortal, trans-
cendente, etc., que é a causa última de tudo o que ocorre no mundo, reconhecendo,
porém, a existência de causas intermediárias que podem ser estudadas e explicadas
cientificamente. O agir de Deus, propriamente dito, não é passível de explicação
científica, mas deve ser pressuposto pelas ciências como meio de dar sentido à tota-
lidade do Universo – o conceito de Deus serve, assim, como fundamento metafísico
para o exercício da razão (filosófica e científica). Embora outorgue certa credibi-
lidade filosófica à fé cristã, esse conceito teísta não é suficiente para solucionar os
problemas da visão mecanicista do universo, de modo que, nesse caso, as relações
entre fé e ciência se dão de modo antagônico.
A pergunta nova a se fazer é: sob o paradigma da complexidade, como justificar
filosófica e cientificamente o teísmo? Este nasceu em resposta à cosmovisão mecani-
cista, sendo incapaz, porém, de dar conta dos novos desafios e possibilidades abertos
pela cosmovisão complexa. Sob o paradigma da complexidade é possível revisar
o conceito filosófico de Deus em diálogo com as ciências explicativas do universo.
Do ponto de vista hermenêutico, as questões mais interessantes são: (a) como
fazer dialogar as cosmovisões marcadas pela visão mecanicista do mundo – inclu-
sive o teísmo – com o texto bíblico elaborado em uma cosmovisão vétero-oriental
não-teísta, nem mecanicista? (b) como fazer dialogar a cosmovisão da complexi-
dade com o texto bíblico, na medida em que estamos tão acostumados a ler a Bíblia
a partir das cosmovisões construídas sob o signo do mecanicismo? (c) que papel
pode desempenhar a Bíblia na avaliação de e na construção de uma cosmologia
pós-mecanicista na atualidade?
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sua história determinada, em grande medida, pela fúria conquistadora de Egito,
Assíria, Babilônia e Pérsia que, na maior parte do período vétero-testamentário
fitavam os olhos cobiçosos sobre a importante faixa de terra ocupada por israelitas.
Se você tem interesse em ver como textos do Antigo Testamento descrevem
a relação entre Estado monárquico e povo, pode ler I Samuel 8,11-17; I Reis
cap. 12 (sem contar os profetas Isaías, Miquéias, Amós e Oséias), que retratam
a dura relação entre rei e povo, centrada na tributação e no trabalho forçado.
Um texto muito interessante, voltado para a restrição dos poderes dos reis, é o
de Dt 17,14-20, que também merece ser lido para entender um pouco melhor
as lutas políticas internas de Israel.
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Testamento demanda um esforço maior de análise textual. A pesquisa arqueo-
lógica é, nesse sentido, de importância fundamental para compreendermos de
forma mais ampla a religião popular em Judá e Israel.
Caro(a) aluno(a), apesar de muita informação resumida, certamente você
está com muitas perguntas e dúvidas em sua mente. Não se preocupe. Esses
conhecimentos gerais são necessários para você se situar melhor no estudo da
história e da cultura dos antigos judeus. É claro que, se você deseja conhecer
bem mais aprofundadamente essa história, é preciso consultar os livros espe-
cialmente dedicados a esse tema.
O pouco que vimos até agora, porém, já serve de alerta: se desejamos conhe-
cer a história de Israel, precisaremos ler o Antigo Testamento com muito mais
atenção do que costumamos fazer, bem como precisamos prestar atenção a deta-
lhes que normalmente ficam ocultos em leitura de ênfase mais devocional ou
teológica. Semelhantemente, precisaremos prestar atenção aos confrontos teoló-
gicos dentro dos próprios livros do Antigo Testamento, que revelam as posições
de diferentes grupos sociais ao longo da história israelita.
O hábito de uniformizar os textos bíblicos para construir doutrinas não nos
ajudará a estudar a história de Israel. Não se trata de mudar doutrinas, mas de
mudar hábitos. Não se trata de depreciar o Antigo Testamento enquanto Palavra
de Deus, mas de enxergar aspectos que não costumávamos enxergar no teste-
munho bíblico. Se formos insistentes, disciplinados e curiosos, esta disciplina,
com todas as dificuldades que pode criar para nossos conhecimentos, servirá
também como fonte de crescimento espiritual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
52
3. Toda teoria precisa ser complementada por uma metodologia. Damos à meto-
dologia de interpretação da Bíblia o nome de:
a. pesquisa.
b. exegese.
c. eisegese.
d. estudo bíblico.
e. nenhuma das alternativas.
(Assinale apenas uma alternativa).
O paradigma libertador da interpretação da Bíblia pelos pobres nas CEBs está em re-
lação antipodal com o paradigma da dominação ainda em voga na prática de muitos
biblistas. A. PARRA formalizou a contraposição entre ambos. O paradigma libertador
busca passar “da história do passado ao presente”, pois importa interpretar o presente e
não simplesmente conhecer o passado, visando transformar a história,
optando “por uma hermenêutica que favoreça os processos de libertação social, polí-
tico-econômica e cultural”. A isto se contrapõe o “historicismo dogmático”, para o qual
o passado prevalece sobre o presente. Origina-se daí um tipo de leitura bíblica que se
contenta em recuperar a história de Israel, conhecer os dados étnico-culturais do povo
bíblico, adentrar-se pelo emaranhado de tradições que perpassam o texto bíblico,
servindo-se para tanto de sofisticados métodos exegéticos, sem preocupar-se com a
incidência do resultado de seu esforço, por exemplo, em termos sócio-eclesiais. Uma
segunda contraposição: o paradigma libertador passa “do dogmatismo do texto à her-
menêutica textual situada e situacional”, enquanto o paradigma da dominação fixa-se
no “dogmatismo textual”. “Uma hermenêutica libertadora postula necessariamente uma
nova prática na hermenêutica textual, que não sirva para repetir com simplismo o pas-
sado, mas que colabore para a interpretação transformadora do presente”64, sem fixar-
-se na pura análise filológica, semântico-gramatical, estrutural etc.do texto bíblico, para
não redundar num puro repertório de informações culturais, históricas, arqueológicas
etc. sem interesse para a história vivida pelo intérprete e seus contemporâneos. Pois, “o
eu que interpreta não é um ser abstrato, asséptico, que possa prescindir de si mesmo
no momento de interpretar, para buscar um sentido textual ‘em si’. O eu que interpreta
interroga os textos desde a sua mesmidade, ou seja, desde sua situação e sua historici-
dade. O eu que interpreta é parte constitutiva da própria interpretação. O intérprete é
elemento interno da interpretação”. Já o fruto do dogmatismo textual seria “obter dos
textos alguns arquétipos de comportamento (doutrinas), válidos hoje como ontem,
dando por suposta a identidade do ser humano. Então, a preocupação dominante da
racionalidade exegética é a de desentranhar por todo meio possível o que o autor ou os
autores quiseram expressar. Dessa forma, o texto se divorcia da vida presente
e se aprisiona em seu próprio passado, sem possibilidade alguma de ser renovado her-
meneuticamente.
Fonte: VITÓRIO (1999, on-line)1.
MATERIAL COMPLEMENTAR
O Carteiro e o Poeta
Ano: 1994
Sinopse: filme poético sobre a extremidade da poesia. Mario (Massimo Troisi)
é um carteiro que, ao fazer amizade com o grande poeta Pablo Neruda (então
exilado político), vira seu carteiro particular e acredita que ele pode se tornar
seu cúmplice para conquistar o coração de uma donzela. Descobre, assim, a
poesia que sempre existiu em si, assemelhando-se às descobertas de verdade
pelos meios dialéticos de Sócrates-Platão. O filme se passa em uma ilha na
costa italiana. Massimo Troisi, que morreu aos 41 anos, horas após o término
das filmagens, não pôde ver o enorme reconhecimento mundial que o filme
teve, com as 5 indicações para o Oscar, incluindo Melhor Filme, Diretor e Ator,
em 1995.
Comentário: Vale a pena prestar atenção à importância da palavra poética e da
imaginação para a vida.
Material Complementar
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIA ON-LINE
1
Em: <faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/668>. Acesso em:
09 jan. 2017.
59
GABARITO
1. V, V, F, V.
2. C.
3. B.
4. C.
5. D.
6. A.
8. Deve incluir pelo menos: governo monárquico, religião ligada ao rei, cobrança
de tributo, divisão entre cidade e campo.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
II
UNIDADE
GÊNESIS 12,1-8
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da fase preparatória
da interpretação do texto bíblico.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão sociocultural da ação.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
63
INTRODUÇÃO
Introdução
64 UNIDADE II
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FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO
O gênero textual da perícope é típico das narrativas das famílias de pais e mães de
Israel, encontramos paralelos a esta perícope em 26,1-6 (Isaque) e 46,1-7 (Jacó).
Nas três perícopes temos chamado de YHWH a uma pessoa para ir (ou não ir)
com sua família a um determinado lugar e a reafirmação da promessa a Abrão.
Igualmente, o lugar para onde se deveria ir é caracterizado como ameaçador,
ambiente não exatamente propício para o cumprimento da promessa divina. Se
levarmos em conta que Gênesis é um livro de origens (começos), a perícope que
analisamos demarca a origem do povo israelita como um povo rural (campe-
sino), resistente ao domínio das cidades-estado.
Ainda do ponto de vista das relações intradiscursivas, o fato de que YHWH
é quem dará um nome a Abrão está em contraste com a busca autônoma de
um nome pelos construtores da torre de Babel (Gn 11,1ss) e mais uma vez
sugere um contexto de resistência contra a monarquia tributária. Nas meto-
dologias históricas, o contexto é entendido como a realidade em que o texto foi
escrito e se define mediante a busca de autor e primeiros leitores, bem como
pela reconstrução do período em que o texto foi escrito (autoria e data). Do
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Partilhada e notar que o gênero confirma a hipótese contextual definida a partir
do conteúdo: temos uma perícope de resistência contra o governo monárqui-
co-tributário, a partir da valorização da vida rural. (Vendo o contexto dessa
forma, evitamos o problema técnico de estabelecer a data original da perícope:
se no período dos patriarcas, se no período de Moisés, ou se no período de Israel
assentado na terra, ou, ainda, se nos períodos exílico ou pós-exílico. Em qual-
quer dessas datas a atitude de resistência contra as cidades-estado e a valorização
do campesinato pode ser situada.)
DELIMITAÇÃO
pois, Abrão, como lho ordenara o SENHOR, e Ló foi com ele. Tinha
Abrão setenta e cinco anos quando saiu de Harã. 5 Levou Abrão consigo
a Sarai, sua mulher, e a Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam
adquirido, e as pessoas que lhes acresceram em Harã. Partiram para a
terra de Canaã; e lá chegaram. 6 Atravessou Abrão a terra até Siquém, até
ao carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra. 7
Apareceu o SENHOR a Abrão e lhe disse: Darei à tua descendência esta
terra. Ali edificou Abrão um altar ao SENHOR, que lhe aparecera. 8 Pas-
sando dali para o monte ao oriente de Betel, armou a sua tenda, ficando
Betel ao ocidente e Ai ao oriente; ali edificou um altar ao SENHOR e
invocou o nome do SENHOR. 9 Depois, seguiu Abrão dali, indo sempre
para o Neguebe. 10 Havia fome naquela terra; desceu, pois, Abrão ao
Egito, para aí ficar, porquanto era grande a fome na terra. 11 Quando
se aproximava do Egito, quase ao entrar, disse a Sarai, sua mulher: Ora,
bem sei que és mulher de formosa aparência; 12 os egípcios, quando te
virem, vão dizer: É a mulher dele e me matarão, deixando-te com vida.
13 Dize, pois, que és minha irmã, para que me considerem por amor de
ti e, por tua causa, me conservem a vida. (SBB, [2017], on-line)¹
SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO
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ocupando o centro estrutural:
A Disse YHWH a Abrão
B Deixa a tua terra...
C Farei de ti ...
B’ Partiu pois Abrão
A’ Como lhe ordenara YHWH
מִ ּקֶ דֶ ם ְלבֵית־אֵ ל וַּיֵט ָאהֳ ֹלה ּבֵית־אֵ ל מִ ּיָם ו ְהָ עַ י מִ ּקֶ דֶ ם וַּיִבֶן־ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה וַּיִקְ ָרא
ּבְׁשֵ ם י ְהו ָה
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, [2017], on-line)²
Tradução:
1
Então YHWH disse a Abrão: Deixa tua terra, tua terra natal e a casa de teu pai
em direção à terra que te mostrarei. 2 Consequentemente, farei de ti um grande
povo e te abençoarei e honrarei o teu nome. Torna-te bênção! 3 Abençoarei os
que te abençoarem e amaldiçoarei o que te desonrar; em ti serão benditos todos
os clãs agrários. 4 Então, partiu Abrão conforme lhe dissera YHWH – com ele
seguiu Ló. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. 5 Abrão levou
Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão, todos os bens que haviam adquirido,
bem como os servos que adquiriu em Harã. E começaram a jornada para a terra
de Canaã. E chegaram à terra de Canaã. 6 Abrão atravessou a terra até a região
de Siquém, até ao carvalho de Moré. Naquela época os cananeus habitavam na
terra. 7 YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: à tua descendência darei esta terra.
Ali edificou um altar a YHWH, pois a ele aparecera. 8 Partiu dali para a monta-
nha a leste de Betel e armou sua tenda, com Betel a oeste e Ai ao leste. Edificou
um altar a YHWH e lá invocou o nome de YHWH (Traduzido pelo autor)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Podemos notar a conexão imediata da saga abraâmica aos capítulos ante-
riores de Gênesis por meio da genealogia de Sem em 11,10ss de quem descende
Abrão. A genealogia de Sem, por sua vez, é conectada ao texto anterior mediante
seu vínculo com o relato da torre de Babel e com a genealogia em Gn 10. Esta,
por sua vez, se vincula com o que lhe antecede mediante a inversão da situação
relativa ao dilúvio (Gn 6-9) com a quase extinção da vida animal no planeta. O
dilúvio, por sua vez, retrata a intensificação da infidelidade humana a Deus, ini-
ciada com Adão e Eva no capítulo 3 e ampliada por Caim e seus descendentes.
Por fim, a narrativa de Adão e Eva situa a criação do ser humano sob a criação
de tudo o que existe (Gn 1) e seu acento sobre a bênção aos seres humanos (Gn
1,26ss) que inclui a multiplicação e o cuidado do planeta.
Gn 12,1ss situa Abrão no movimento entre a bênção e a maldição que per-
passa todo o livro do Gênesis, especialmente em sua primeira seção nos caps.
1-11. A bênção divina é sempre ameaçada pela infidelidade humana – pode-
mos dizer pela desonra de Deus causada pela infidelidade humana (por isso a
advertência no caso da desonra a Abrão) – mas jamais impedida, pois Deus per-
manece fiel ao seu modo de ser-agir como Criador e Abençoador. Abrão, como
Noé antes dele, representa a continuidade da bênção divina cuja abrangência é
toda a humanidade (‘todos os clãs agrários’). A sequência da narrativa mostra
o mesmo padrão de ameaça ao cumprimento da bênção divina, especialmente
nas narrativas de rivalidade familiar (entre esposas, e entre irmãos).
O capítulo 22 possui uma relação peculiar com esse, na medida em que vocá-
bulos dessa perícope são retomados no comando de Deus a Abraão para sacrificar
Isaque (a ameaça mais perigosa ao cumprimento de promessa divina), como
teste da fidelidade de Abraão. A saga de Abrão vai até 25,18 sendo sequenciada
pelas sagas de Jacó e José (com um breve interlúdio referente a Isaque, pai de
Esaú e Jacó). O livro encerra com o sepultamento de Jacó (Israel) e o retorno de
José e seus irmãos para o Egito. José é fiel para com seu pai e seus irmãos, repre-
sentando a fidelidade divina que possibilita à humanidade viver sob o signo da
bênção, mas o último versículo narra a morte e o sepultamento de José, fazendo
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O fato de Abrão jamais, efetivamente, tomar posse da terra (a não ser no caso
de sua tumba), mostra o caráter liminar da vida entre a fidelidade a Deus e a
infidelidade praticada pelos seres humanos. Benção (Promessa) versus Ameaça
(Maldição); Particularidade versus Universalidade são os temas abstratos de
fundo da narrativa abraâmica em seu lugar no enredo do Gênesis.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Israel. Javé está na origem da história de Abraão.
Sobre Gênesis 12-25: A unidade total da narrativa pode ser entendida como
uma Saga familiar. A saga apresenta a história de uma família de tal maneira
que os princípios qualificadores da família aparecem de forma mais aguda no
pano-de-fundo. Aqui temos as tradições que contam sobre a família que ela
apresenta como a de Abraão. Tais tradições se distinguem da escrita da história
em virtude de sua preocupação em narrar, não apenas a sequência de eventos
ditada pela relação de causa-efeito no passado, mas, sim, o núcleo central do
passado, que engloba cada geração sucessivamente. Ela é uma representação
mais simbólica do que objetiva: é uma forma de arte, não um trabalho cien-
tificamente objetivo. E embora o símbolo emerja como uma forma de arte, o
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Pessoas: Gênesis 12
YHWH (v. 1: disse a Abrão [...] à terra que te mostrarei); (v. 2 [...] ‘disse’ farei
de ti um grande povo, te abençoarei, honrarei teu nome. Sê uma bênção)
(v. 3 [...] ‘disse’ abençoarei [...] amaldiçoarei [...]) (v. 4 conforme lhe dissera
YHWH); (v. 7 apareceu a Abrão, lhe disse: ‘à tua [...]’; edificou um altar a
YHWH, pois a ele aparecera); (v. 8 edificou um altar a YHWH, lá invocou
o nome de YHWH)
Abrão (v. 1 YHWH disse a Abrão: ‘Deixa [...]’ [até verso 3]) (v. 4 Então par-
tiu Abrão, conforme lhe dissera YHWH; com ele seguiu Ló. Tinha 75 anos
quando saiu de Harã); (v. 5 levou Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão,
todos os bens que haviam adquirido, bem como os servos que adquiriu em
Harã. E começaram a jornada para a terra de Canaã. E chegaram à terra de
Canaã.) (v. 6 Abrão atravessou a terra até a região de Siquém, até ao carvalho
de Moré.) (v. 7 YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: à tua descendência darei
esta terra. Ali edificou um altar a YHWH, pois a ele aparecerá) (v. 8 Partiu
dali para a montanha a leste de Betel e armou sua tenda, com Betel a oeste
e Ai ao leste. Edificou um altar a YHWH e lá invocou o nome de YHWH)
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Sarai (v. 5 Sarai, sua mulher)
Servos (v. 5 que se juntaram a ele)
Espaço:
Tua terra (v. 1 Deixa [...])
Tua terra natal (v. 1 deixa)
Terra (v. 1 em direção à [...] que te mostrarei) (v. 6 cananeus habitavam na
terra) (v. 7 esta terra)
Partiu (v. 4)
Seguiu Ló (v. 4)
Saiu (v. 4 de Harã)
Harã (v. 4 quando saiu de) (v. 5 a ele se juntaram em Harã)
Começaram a jornada (v. 50
Terra de Canaã (v. 5 começaram ... chegaram à terra de ) = terra (v. 1.6)
Atravessou a terra (v. 6)
Até a região de Siquém (6)
Até o carvalho de Moré (v. 6) Ali (v. 7)
Partiu dali (v. 8 [...])
Montanha a leste de Betel (v. 8 partiu [...] com Betel a oeste e Ai a leste)
Lá (v. 8)
Tempo[xii]:
Então (v. 1)
Pretérito perfeito (v. 1 disse) (v. 4 partiu; seguiu; saiu) (v. 5 levou; juntaram;
começaram; chegaram) (v. 6 atravessou) (v. 7 apareceu; disse; edificou) (v. 8
partiu; armou; edificou; invocou)
Imperativo (v. 1 deixa) (v. 2 sê)
Futuro (v. 1 mostrarei) (v. 2 farei; te abençoarei; honrarei) (v. 3 abençoarei,
amaldiçoarei, serão benditos) (v. 7 darei)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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ênfase nas relações entre YHWH e Abrão, o texto destaca o caráter de seu relacio-
namento como uma berit (aliança, parceria). Na perícope, ambos os parceiros são
fiéis – YHWH se manifestando a Abrão e este atendendo a e adorando a YHWH. Do
lado de Abrão há um peso sobre a insegurança causada pelo movimento incessante,
equilibrado pela relação de Abrão com YHWH, que oferece base para a segurança
de Abrão em cada lugar no qual se instala provisoriamente.
Sobre a condição de viajante, vale ler um poema de Mia Couto:
Viajaste
sob árvore sem sombra.
Pisaste
a carne da pedra,
rasgaste
o fio da água.
E aprendeste:
o teu gesto
não é destinado a ter dimensão.
Agora, sabes:
teus braços foram feitos
para abraçar horizontes.
וַּי ֵָרא י ְהו ָה אֶ ל־ַאב ְָרם ו ַּי ֹאמֶ ר ְלז ְַרעֲ ָך7 ָָארץֶ מֹורה ו ְהַ ְּכנַעֲ נִי ָאז ּב
ֶ מְ קֹום ׁשְ כֶם עַ ד אֵ לֹון
וַּיַעְ ֵּתק מִ ּׁשָ ם הָ הָ ָרה8 ָארץ הַ ּז ֹאת וַּיִבֶן ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה הַ ּנ ְִראֶ ה אֵ לָיו ֶ ָאֶ ֵּתן אֶ ת־ה
מִ ּקֶ דֶ ם ְלבֵית־אֵ ל וַּיֵט ָאהֳ ֹלה ּבֵית־אֵ ל מִ ּיָם ו ְהָ עַ י מִ ּקֶ דֶ ם וַּיִבֶן־ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה וַּיִקְ ָרא
ּבְׁשֵ ם י ְהו ָה
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia. [2017], on-line)²
Tradução:
1
Então YHWH disse a Abrão: Deixa tua terra, tua terra natal e a casa de teu pai
em direção à terra que te mostrarei. 2 Consequentemente, farei de ti um grande
povo e te abençoarei e honrarei o teu nome. Torna-te bênção! 3 Abençoarei
os que te abençoarem e amaldiçoarei o que te desonrar; em ti serão bendi-
tos todos os clãs agrários. 4 Então, partiu Abrão conforme lhe dissera YHWH
– com ele seguiu Ló. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã.
5
Abrão levou Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão, todos os bens que
haviam adquirido, bem como os servos que adquiriu em Harã. E começaram
a jornada para a terra de Canaã. E chegaram à terra de Canaã. 6 Abrão atra-
vessou a terra até a região de Siquém, até ao carvalho de Moré. Naquela época
os cananeus habitavam na terra. 7 YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: à tua
descendência darei esta terra. Ali edificou um altar a YHWH, pois a ele apa-
recera. 8 Partiu dali para a montanha a leste de Betel e armou sua tenda, com
Betel a oeste e Ai ao leste. Edificou um altar a YHWH e lá invocou o nome de
YHWH. (Traduzido pelo autor)
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nosso país, o trabalho que fazemos no Segundo Ciclo é discutido em dois capí-
tulos, com os títulos “Análise de Conteúdo” e “Análise Teológica” (WEGNER,
1998, p. 248ss.). No Manual de Hermenêutica de Henry Virkler (perspectiva his-
tórico-gramatical), este trabalho é descrito também em dois capítulos: “Análise
Léxico-Sintática” e “Análise Teológica” (VIRKLER, 1987, p. 105ss.). No manual
do presbiteriano Louis Berkhof (histórico-gramatical), a análise correspondente
ao II Ciclo é discutida e apresentada em duas seções: “Intepretação Gramatical”
e “Interpretação Teológica” (BERKHOF, 2000, p. 53-86 e 101-126).
Essa dimensão da análise é a que, do ponto de vista teórico-metodológico, é
mais afetada (positivamente falando) pelo desenvolvimento da Linguística e das
diversas disciplinas que, a partir da Linguística, se dedicam a explicar os proces-
sos de significação e interpretação (Semióticas, Análises do Discurso, Semiologia,
Filosofia da Linguagem, Hermenêutica Filosófica).
A estruturação dos procedimentos analíticos que proponho é baseada nos resul-
tados e questionamentos mais significativos dessas diversas disciplinas científicas.
Em parte, está presente a correção de alguns dos problemas teóricos e analíticos
dos métodos que não se apropriaram dessas ciências; mais importante, porém, é a
estruturação dos procedimentos de um modo que, embora mais complexo, é mais
eficaz na compreensão do texto na medida em que se baseia em uma teoria mais
adequada do sentido e dos processos de textualização e comunicação do sentido.
A estrutura triádica dos procedimentos nesse Ciclo procura dar conta da
complexidade dos processos de produção, difusão e recepção do sentido. Em
primeiro lugar, por partir da totalidade para as partes – tanto do ponto de vista
da produção do sentido (por isso a interdiscursividade vem em primeiro lugar,
para situar o texto em seu contexto), quanto do ponto de vista do sentido no texto
propriamente dito (o sentido das palavras e das orações depende do sentido do
texto todo). Depois, por levar em conta como integrante da produção do sentido
os elementos de estilo e argumentação, ou não eram considerados nos méto-
dos anteriores ou eram alocados a diferentes momentos da análise, bem como
por trazer, para dentro do texto (por assim dizer) as perguntas da Pragmática da
comunicação. Por fim, ao tratar da dimensão ‘temática’ (ou semântica) do texto
juntamente com sua estruturação sintática discursiva, momento em que se reto-
mam os aspectos relevantes da análise do plano de expressão.
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(v. 1: disse a Abrão [...] à terra que te mostrarei); (v. 2 [...] ‘disse’ farei de ti um
grande povo, te abençoarei, honrarei teu nome. Sê uma bênção) (v. 3 [...] ‘disse’
abençoarei […] amaldiçoarei [...]) (v. 4 conforme lhe dissera YHWH); (v. 7 apa-
receu a Abrão, lhe disse: ‘à tua descendência darei esta terra’; edificou um altar
a YHWH, pois a ele aparecera); (v. 8 edificou um altar a YHWH, lá invocou o
nome de YHWH). Três características de YHWH são aparentes à vista: ele fala
(e sua fala é convocação, promessa e bênção), ele aparece (para falar) e ele é ado-
rado (invocado em sua ‘ausência’, ou seja, em sua não-aparição).
A perícope começa de modo abrupto, com a fala de YHWH a Abrão
(lembremo-nos de que YHWH não aparece na perícope anterior que trata
da família de Abrão): “Então YHWH disse a Abrão: Deixa [...]” (ו ַּי ֹאמֶ ר י ְהו ָה
)אֶ ל־ַאב ְָרם לְֶך־לְָך. A forma da sentença com lekha unido ao verbo imperativo
lekhe pode ser interpretada de duas maneiras: (a) seguindo Whitley, como
uma forma enfática: Deixa, ‘mas deixa mesmo’; (b) seguindo Muraoka (1985),
como um dativo ético ou centrípeto, cujo “efeito é criar um pequeno e autocon-
tido mundo, um efeito de focalização no sujeito” (MURAOKA, 1985, p. 122).
Se, por um lado, a preposição l indica que o ato de deixar sua terra é bené-
fico para Abrão, por outro, aponta para o fato de que ao atender ao chamado de
YHWH, Abrão é colocado em uma situação desconhecida e ameaçadora – “... a
terra que te mostrarei”. Costumeiramente pensamos que Deus é um constante
‘protetor’, alguém que está sempre cuidando de nós, nos protegendo de todos
os perigos e males. Entretanto, o nosso texto apresenta uma face diferente de
YHWH: ele está sempre conosco sim, mas sua presença e sua voz são mais deses-
tabilizadoras do que gostamos de pensar.
mundo’ (MARION, 1991, p. 7). Idolatria não se restringe, então, a adorar falsos
deuses, ou deuses inexistentes – podemos adorar idolatricamente o verdadeiro
Deus (veja a crítica de Oséias aos sacerdotes de YHWH em seu tempo, Os 4:1ss).
Idolatria é ter um estilo de vida infiel a YHWH, uma vida que não atende à voz
de YHWH, mas às vozes dos ídolos que criamos e adoramos.
O chamado é anti-idolátrico também na medida em que ele nos fala a res-
peito do Deus que chama:
A estrutura do chamado é precisamente chamar a partir de baixo para
ser o que está além, nos convocar para o que é prometido antecipa-
damente, e nos convocar de volta ao que já foi esquecido há muito.
A frágil força do chamado é algo em relação a que podemos (posse)
ou temos o poder de ignorar - para nosso prejuízo, talvez, mas pode-
mos. O chamado incorpora apenas um poder vocativo - não um poder,
puro e simples, mas o poder impotente de uma provocação ou de uma
convocação, de uma solicitação, um poder sedutor - mas não tem um
exército para garantir sua eficácia, e nada nos impede de fazermos ou-
vidos moucos ao chamado. Ele não tem a pura força de coerção ou de
traduzir o chamado em fato. Ele funciona com o poder da impotência,
não com o poder da fortaleza (CAPUTO, 2006, p. 13).
Quem é YHWH? É o Deus que me convoca para partir, para cortar os laços,
para abandonar a segurança da terra, da casa, da família paterna. É o Deus que
viaja, um deus migrante, como o próprio Abrão se tornará ao aceitar o chamado.
Os deuses do mundo de Abrão eram, quase todos, deuses com residência fixa:
em cidades, templos, montanhas. YHWH, o Deus de Abrão não tem residência
fixa, está onde Abrão está, está em qualquer lugar que precise estar.
O chamado não vem sozinho, vem com uma promessa perfeita (sete ver-
bos): “farei de ti um grande povo e te abençoarei e honrarei o teu nome. Sê uma
bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei o que te desonrar; em
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ti serão benditos todos os clãs agrários”. Uma promessa que é, ao mesmo tempo,
uma convocação: o que YHWH fará por Abrão é o que ele espera que Abrão faça
por si e pelos ‘clãs agrários’. Note o arranjo quiástico concêntrico:
É YHWH quem estabelece nossa reputação, não somos nós mesmos: pode-
mos ver aqui a graça em atuação: Deus faz em nós; e (d) YHWH convoca pessoas
para viverem como ele mesmo vive: abençoando – duas vezes o texto faz de
Abrão bênção para outras pessoas: no centro e na última linha da promessa
– torna-te bênção ‘para’ todos os clãs agrários. Bênção para quem sofre o mal
neste mundo. Tornar-se bênção é tornar-se uma pessoa abençoadora, que faz
o bem para o próximo, pessoa benigna, generosa etc.
A bênção é sempre uma promessa poderosa, o desejo de vida que somente
pode ser cumprido se quem abençoa efetivamente tem o poder para realizar
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mútua e antecipa a novidade, a alteração no estilo de viver. A temporalidade da
promessa é, então, a da futuridade, quem vive na expectativa do cumprimento
da promessa vive na invisibilidade do futuro, ainda não ‘presente’ (cronológico),
mas já presentificado (existencial) na disposição que cria no destinatário.
Como Deus da Promessa, podemos afirmar que YHWH é Deus da Futuridade
– Ele vem a nós ‘do futuro’, não do passado, nem do presente, mas ‘do futuro’
posto que a presença de YHWH é sempre na forma da antecipação, uma pre-
sença (no sentido existencial e/ou geográfico) jamais cem por cento presente
(no sentido cronológico), mas continuamente antecipadora e possibilitadora de
futuros não-calculados por seus destinatários.
dos valores implícitos na descrição no verso 5), que vivia próximo de seu pai
e irmãos, tendo migrado com eles de Ur para Harã. Nada mais sabemos sobre
Abrão – seus sentimentos, sua religiosidade, seus projetos de vida. O mais
importante no texto, porém, é a sua relação com YHWH. Abrão ouve YHWH.
O texto não diz como: visão, sonho, teofania, oração etc. Nada sabemos sobre
o modo de seu chamado. Mas ele ouviu YHWH e se deixou determinar pela
vocação divina a ele dirigida. Assumiu o risco de abandonar a segurança e par-
tir para o desconhecido. Aceitou a promessa de honra e descendência, mesmo
sabendo que a possibilidade de ter descendentes seria mínima, quase impossí-
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vel. Chegando ao local onde YHWH mostraria sua nova residência, continuou
viajando – será que YHWH ainda não lhe mostrará a ‘terra’, ou lhe mostrará (cf.
a promessa para a descendência) e Abrão percebeu que seu destino vocacional
seria a destinerrância? (Destinerrância é um termo do filósofo Jacques Derrida
que descreve a comunicação humana como tendo destinatário [destino], mas não
uma recepção plena pelo destinatário. Há um ‘fim’ a ser alcançado, mas alcan-
çá-lo sempre é adiado, ou diferido, como diria o próprio filósofo. Apropriei-me
do termo para aplicá-lo à vida humana enquanto tal. Para consultar uma das
obras em que Derrida discute o termo, ver DERRIDA, Jacques. Esporas. Rio de
Janeiro: Nau, 2013.)
Ouvinte, Abrão confia na promessa. Uma confiança ousada, pois até onde o
texto nos permite ver, Abrão não teria conhecido YHWH a não ser no próprio
momento da vocação e promessa. Costumamos pensar que receber uma pro-
messa é algo relativamente fácil, algo que não nos compromete. Porém,
é a promessa que requer uma decisão e um arrependimento radicais.
É a promessa que demanda a rejeição de toda segurança, o reconheci-
mento de que o mundo gira ao redor de, e é empoderado por esse outro
que será crido e adorado” (BRUEGEMANN, 1982, p. 119).
A promessa recebida era também constituída por um ‘mandato’, por uma ‘missão’
– ser bênção para outros Abrãos e Sarais. A promessa divina sempre é também
convocação, jamais pode ser vista ou recebida como privilégio, egoisticamente, é
dádiva que se concretiza não no receber, mas no partilhar – no continuar doando,
pois a dádiva só é dádiva quando também é ‘errante, caminhante’. Vale aqui uma
citação algo longo de um ‘livrinho’ de Carlos Mesters:
Por onde passa, sem destino certo a ser alcançado, ou talvez sem a certeza de
poder alcançar um destino (no capítulo 22 há um novo chamado de Deus a Abrão,
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para sacrificar Isaque, em um lugar que YHWH mostraria), Abrão é uma pes-
soa de fé-fidelidade: erige altares para adorar a seu Deus. No verso 8, juntamente
com a edificação do altar, Abrão ‘arma sua tenda’ (expressão idêntica é usada
para Isaque em Gn 26:25 também em conjunção com a edificação de um altar).
Tenda é a habitação do migrante, do seminômade, do sem-terra que ocupa a
terra que está disponível, mas está sempre sob risco de ter ‘sua’ terra reivindicada
por um proprietário então ausente. Em 13:18, após mudar suas tendas, Abrão edifica
novamente um altar. Será uma das tendas uma espécie de templo? Uma antecipação
do tabernáculo do livro do Êxodo? Ou será a tenda um sinal de gratidão pela terra
prometida e recebida sob o signo da antecipação, penhor ou primícias? Enfim, tenda
é sinônimo de não-durabilidade, de viver de modo perecível, arriscado, sinal de con-
fiança, de abertura ao desconhecido sob o signo da presença do Deus conhecido.
YHWH lhe aparece e seu nome é invocado por Abrão. Ao longo da narra-
tiva sobre a vida de Abrão vemos os vacilos, os erros, os ‘pecados’, as covardias,
as dúvidas – mas até o fim, Abrão permanece uma pessoa determinada pelo cha-
mado e, quando o chamado de YHWH se apresenta como a negação do chamado
original (22:1ss, sacrificar o filho, a descendência), Abrão, mais uma vez, não
titubeia: ouve e vai. Caminhante é a identidade de Abrão. Migrante-caminhante.
A fé-fidelidade de Abrão não lhe deu segurança e estabilidade; promoveu uma
errância constante, mas uma errância jamais solitária. YHWH esteve sempre
com ele. Quem sabe podemos dizer, mesmo com anacronismo, para Abrão,
YHWH é Emanuel. A fé-fidelidade é receber a promessa e aceitar a vocação de
compartilhador da promessa – destinerrante é o modo de ser da fé em YHWH.
Abraão é o outro-Caim, não o expulso de sua casa pelo crime, mas o convocado
para fora de casa como abençoado e abençoador; assim como Caim recebeu
uma marca na testa como sinal da proteção, Abrão recebeu a promessa de que
todo que o desonrar, o ferir, o ofender será amaldiçoado por Deus, pelo pró-
prio YHWH que abençoa e cuida, acompanha, caminha junto, fazendo, com o
caminhante, o caminho por onde caminhar. Ao chamar, YHWH doa vida e a
vida doada é prenhe de imprevisibilidade, é destinerrante, mas jamais solitária.
Vida com Deus é vida missionária, é vida solidária. É vida que sabe ouvir a voz
de YHWH, mas também a voz que clama sem saber que YHWH aqui está entre
nós como Emanuel. Assim nos diz a canção “Por onde vais”
Por onde é que vais? Caminho a seguir.
(Há) milhares que a paz almejam cumprir...
Alguém para ouvir, buscar decisões,
(Procurar), vagar pelo mar de opiniões...
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o que faziam para viver, etc. Essa é uma característica que perpassa todas as
narrativas de Gn 12-50, o que, inclusive, faz com que a análise das paixões dos
personagens fique restrita às paixões que se podem depreender da relação do
personagem com o objeto-valor, pois não há quase nenhuma explicitação das
paixões (as poucas exceções também retratam a paixão em função do foco teo-
lógico do texto).
Comentando sobre Gn 22,1-17, Erich Auerbach faz uma apta descrição do
estilo narrativo da perícope que se aplica ao conjunto de Gn 12-50:
[…] a externalização apenas dos poucos fenômenos necessários para o
propósito da narrativa, tudo o mais é deixado na obscuridade; somente
os pontos decisivos da narrativa é que são enfatizados, o que fica en-
tre eles é inexistente; tempo e espaço são sub-definidos e demandam
interpretação; pensamentos e sentimentos não são expressos e apenas
sugeridos pelo silêncio e pelos diálogos fragmentários; o todo, perme-
ado de ininterrupto suspense e dirigido a um único alvo, permanece
misterioso e carregado de pano-de-fundo. (AUERBACH, s/d, p. 11-12)
mais específica das relações interdiscursivas. Isso sugere que o texto é fruto de tra-
dição oral e mantém boa dose de fidelidade à forma oral anterior à textualização.
Todas as alusões reforçam a hipótese inicial em relação ao contexto da perícope:
o conteúdo desses temas aqui mantém relações predominantemente polêmicas com
as mesmas temáticas nos discursos monárquicos – não só de Israel, mas de todo
o Antigo Oriente Próximo. Entretanto, as noções subjacentes aos temas da perí-
cope partilham da visão cultural mais ampla no Antigo Oriente, por exemplo: (a) a
reciprocidade no tocante às bênçãos e maldições; (b) a honra do nome ligada à pros-
peridade demográfica e econômica, incluindo a posse de terra; (c) a comunicação
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entre Deus e pessoas ‘comuns’ (não oficiais do Estado ou do Templo).
A bênção divina pode ser mediada por uma pessoa sagrada, como um patriarca
(Gn 27:7), um sacerdote (cf. Lv 9:23), um rei (2Sm 6:18), um moribundo (Jó 29:13),
e pela sagrada congregação. Provavelmente as bênçãos são as palavras de bênção
que pessoas de oração pronunciam perante os justos. No livro de Rute as bênçãos do
Senhor são mediadas pela oração dos fieis: os trabalhadores a Boaz (Rt 2:4), Naomi a
Boaz (2:19-20), Boaz a Rute (3:10) e a congregação a Boaz e Rute (cf. 4:11). Quando
bênçãos são mediadas por terceiros, as palavras e o poder de abençoar se tornam
noções mescladas. Uma pessoa que outorga bênçãos é uma nephesh beraka (Pv
11:25), mas os semitas do Noroeste sempre viram a divindade como uma verdadeira
doadora de bênção, mesmo quando eles não o explicitam. (WALTKE, 2001, p. 206)
Como Fazer?
1. situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida (anali-
sando as suas relações contratuais e polêmicas);
2. formular a crítica social a partir do texto;
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SOCIEDADE
CULTURA
RELIGIÃO
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pretensão de universalidade, para a vida humana. Para efeitos da exegese, nesse
ciclo excluímos os conhecimentos religiosos (teologia), já analisados no segundo
ciclo. A distinção entre esses componentes do mundo-da-vida (sociedade, cul-
tura e religião) não deve ser entendida de forma rígida, pois na realidade social
existem interligados e na prática não é possível atribuir cada conteúdo simples-
mente a este ou aquele componente.
Religiões concretas, por exemplo, não são compostas apenas por elemen-
tos da “religião”, mas também incluem elementos da “cultura” (noções sobre o
mundo, a vida, o bem, etc.) e da “sociedade” (o conceito de pecado, por exem-
plo, tem uma função legitimadora negativa).
Do ponto de vista da sociedade encontramos em nosso texto os seguintes ele-
mentos: “casa de teu pai”, “grande povo”, “servos”, “bens”, “clãs agrários”, “(terra
e) terra de Canaã” (Hará, Siquém, Moré, Betel, Ai), “cananeus”, “descendência”,
“montanha”, “tenda”. Esses termos apontam para duas formas distintas de orga-
nização social: por um lado, a vida urbana das cidades-estado, que giravam ao
redor do palácio e do(s) templo(s), que exerciam controle sobre a atividade e o
território rural mediante a cobrança de tributo, a exigência de trabalho para o
rei e a proteção militar contra invasores.
Por outro lado, a vida seminômade de criadores de ovelhas, moradores em
tendas que circulavam nas regiões próximas às fronteiras das cidades-estado, a fim
de suprir suas necessidades que a vida fora das cidades não supria, não entravam
nas cidades para morar, pois não tinham interesse em ficar sob o domínio de reis.
Entretanto, o texto não favorece nenhum desses modos. Se, por um lado,
o chamado de YHWH leva Abrão para fora do âmbito das cidades-estado, por
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participante da vida cotidiana familiar. A perícope sobre a vocação de Abrão,
portanto, se situa no âmbito da defesa da vida rural em contraponto à vida da
cidade-estado. Para sintetizar e explicitar melhor as características dessa visão
de sociedade, retomo aqui o texto que está em meu livro Uma História Cultural
de Israel (2013), referindo-se ao projeto de identidade do campesinato israelita
no período anterior à monarquia davídica:
Usando a tipologia de Castells, os relatos das origens de Israel apontam
para um processo de construção identitária iniciado com a resistência
contra a dominação de cidades-estado canaanitas em busca da sobre-
vivência no caos da desorganização político-militar da região. Não é
necessário postular que essa resistência tenha se devido a uma utopia
fundamentada em visão social bem delineada, como é o caso em Got-
twald e em parte da leitura popular da Bíblia. O reconhecimento da
condição de desrespeito pode ter apenas base moral ou mesmo prag-
mática (a necessidade de sobrevivência, ou a fuga da guerra, por exem-
plo, se encaixam como motivos na instável situação da região de Canaã
no período sob estudo), o que, conforme demonstrado por Honneth,
é motivo suficiente para a ação social em busca de mudança de uma
situação de desrespeito. Essa identidade de resistência pouco a pouco
se transforma em identidade emancipatória de projeto. A atribuição
da condição de evento fundante de Israel ao êxodo de hebreus do Egi-
to constrói poderosamente esta característica do projeto: se venceu o
maior de todos os opressores, Israel também será capaz de derrotar as
cidades-estado que controlam a sua terra prometida por YHWH. Essa
identidade de projeto, por fim, possui força emancipatória (a atribuição
da alteridade aos filisteus sugere o esforço de manutenção da emanci-
pação, o desejo de não voltar à condição de subjugação ao domínio de
reis) (ZABATIERO, 2013, p. 91).
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uma cidade estado. Por que? A cobrança de tributos sem qualquer possibilidade de
controle por parte da sociedade; a obrigatoriedade de servir ao palácio sem remune-
ração e o serviço militar compulsório em tempos de guerra eram os três meios mais
constantes de injustiça praticados no ambiente das cidades-estado do Antigo Oriente.
Ao lado dessas práticas, também o uso da religião como mecanismo de legiti-
mação da autoridade real compunha o quadro da dominação – ou, em termos mais
contemporâneos, formavam o dispositivo de governamentalidade das cidades-es-
tado. Em resposta a esse dispositivo, o chamado de Deus a Abrão o coloca em uma
situação social de: (a) não depender dos meios de ‘segurança’ social e econômica
presentes na vida urbana; e (b) solidariedade ativa com os ‘clãs agrários’, ou seja com
as vítimas da dominação citadina.
Como nos apropriarmos desses elementos de sentido? (a) Quem vive pela fé-fi-
delidade em Jesus não depende dos mecanismos do sistema democrático e capitalista
para alcançar sua realização pessoal. O texto nos faz refletir sobre o fato de que o
chamado de Deus desestabiliza os elementos sólidos do mundo (no sentido joa-
nino do termo em 1 João “não ameis o mundo”). Falando de modo mais concreto,
não precisamos dos ‘bens deste mundo’ nem da ‘estabilidade’ política para alcançar
a realização diante de Deus. Na linguagem de João, usamos os bens desse mundo,
mas não somos controlados por eles.
Ou seja: o chamado divino nos possibilita viver no ‘presente século’ sem per-
tencer a ele, sem ser dominado pelos dispositivos de governabilidade (como a
tecnologia de comunicação, o consumismo, o individualismo etc.). Quem segue ao
Senhor não pode ter medo de assumir ‘riscos’ – nesse caso, os riscos derivados da
solidariedade com as vítimas do sistema contemporâneo. Do ponto de vista pessoal,
fundirmos os desejos e valores ‘desse século’ com a bênção e a promessa divina. Se,
por um lado, a bênção divina pode assumir a forma concreta de uma vida digna,
por outro lado, ela assume a forma concreta da solidariedade com o próximo. Viver
bem e fazer o bem ao próximo são os dois eixos da espiritualidade abraâmica. Quem
recebe a bênção divina não deve acumulá-la para si mesmo, mas pode estar aberto
a partilhá-la com quem a necessita – tanto em termos materiais como em termos
espirituais. A vocação abraâmica, como a vocação cristã, tem como finalidade servir
ao próximo como expressão de nossa confiança em Deus e serviço a ele em adora-
ção. O texto nos sugere que a adoração a Deus não pode estar dissociada da vida
cotidiana, não pode ser mera gratidão pela promessa, sem ser, também, compro-
misso com o ser bênção para toda a criação.
(c) Do ponto de vista teológico, o texto nos fala sobre o caráter de Deus: YHWH
é Deus que chama, abençoa e promete – mas seu chamado nunca é individualista,
nem acomodador. Deus chama as pessoas para que se arrisquem a viver de acordo
com o caráter de Deus, de acordo com a disposição divina de abençoar a quem
precisa. Deus não chama para ‘recebermos’ e nos cumularmos de bênçãos e pros-
peridade sem solidariedade e compaixão. O Deus que nos chama não é ‘patrono’
da vida confortável e segura da propaganda televisiva da atualidade. É o Deus des-
tinerrante, que caminha com seu povo pelos lugares mais inóspitos da terra, a fim
de abençoar os mais necessitados do amor e atenção divinos. Na linguagem de
Paulo, é o Deus que nos ama mesmo enquanto somos ainda pecadores (Rm 5:8), a
fim de que possamos encontrar a vida e a vida plena no discipulado e seguimento
de Jesus Cristo. Abraão, diz Paulo, é nosso pai na fé. Pode ser o modelo para nossa
resposta de fé em Deus. Destinerrantes, como o pai Abraão, destinerrantes como
o Filho Unigênito Jesus Cristo. Destinerrantes como o apóstolo Paulo e seus com-
panheiros de jornada missionária. Sempre seguindo os passos do Senhor Jesus,
por onde Ele andar.
Você pode refletir sobre a dimensão missional dessa perícope. Que tal escre-
ver, para você mesmo, alguns parágrafos sobre o que este texto significa?
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Iniciamos nosso estudo exegético de Gn 12,1-8 com uma hipótese contextual
ampla: situamos o texto no âmbito dos confrontos sociais no Antigo Oriente
sob o Modo de Produção Tributário – a época da escrita do texto poderia até
mesmo remontar aos tempos de Moisés e/ou do início da vida de Israel na Terra
Prometida. A análise exegética do texto – a meu ver – confirma a hipótese ini-
cial, na medida em que não encontramos nenhuma indicação específica de época
da escrita. Os termos teológicos presentes (chamado, bênção e promessa) são
encontrados em textos de todos os períodos da história israelita e a forma como
aparecem não nos permite uma especificidade maior. O único indício mais seguro
é a afirmação “naquele tempo os cananeus habitavam na terra”, que situa o texto
escrito já no período da história de Israel em que os cananeus não mais domi-
navam a região: ou seja, apenas do início da monarquia para frente.
Mais importante do que uma datação específica do texto, porém, é a sua com-
preensão contextual, o que é possível realizar mesmo sem uma data exata. A nossa
análise mostrou que o foco principal desse texto recai na fidelidade a YHWH acima
de outras fidelidades (família, terra, governo...). Ser fiel a YHWH significa aten-
der ao seu chamado, receber a sua bênção prometida e reparti-la solidariamente,
assumindo os riscos de viver de tal forma que não sigamos os padrões da nossa
própria sociedade, mas os padrões divinos. Na próxima Unidade continuaremos a
praticar a análise exegética, dessa vez com um texto profético, cuja datação é mais
segura – e veremos que não há diferenças significativas no trabalho interpretativo
em relação à diferença na forma de situar o texto em uma data na história de Israel.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
(a perícope). Você notou que usei o texto hebraico como base para a exegese.
Se você não conhece bem o hebraico, pode usar o texto em português e, sempre
que possível, consultar o hebraico. Entretanto, pode-se fazer uma boa exegese
apenas usando uma tradução do texto bíblico já publicada.
No segundo tópico, estudamos a dimensão espaço-temporal da ação.
Procuramos ver como o texto narra as relações entre pessoas agindo no tempo
e no espaço e como essas relações nos ajudam a entender o texto.
No terceiro, o foco recaiu sobre a dimensão teológica da ação, ou seja, ten-
tamos entender o sentido teológico da perícope - quem é Deus, o que ele faz,
com quem ele se relaciona, etc.
No quarto, o tema foi a dimensão sociocultural da ação - estudamos o modo
como o texto dá sentido à sociedade e cultura em que foi escrito: como ele vê
essa sociedade, como ele a crítica, como ele a pensa no futuro, etc.
Finalmente, o último tópico se ocupou da dimensão missional da ação: da
releitura do texto, de seu significado para o nosso próprio contexto e nossa pró-
pria vida.
Nesta Unidade, coube a você, principalmente, prestar atenção à aplicação
do método. Mas você não aprenderá exegese se não praticar o método. Assim,
sugiro que você escolha uma perícope do Antigo Testamento e vá fazendo, em
casa, a exegese, seguindo os passos aqui estudados. Além disso, faça os exercí-
cios que aparecerem ao longo das Unidades. Leia os textos complementares e,
acima de tudo, disponha-se a ler disciplinadamente a Bíblia.
Considerações Finais
100
6. Explique, com suas próprias palavras (mas podendo citar também partes do tex-
to da Unidade) o que significa a condição de Abrão como migrante ou viajante.
102
O Chamado
O chamado feito por Deus a Abraão e constituído por um breve texto:
O Senhor disse a Abraão:
Sai da tua terra, da tua parentela e da casa do teu pai e vai para a terra que eu
te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu
nome; sê uma benção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei aquele
que te amaldiçoar. Por ti serão abençoados todos os povos da terra (Gn 12,1-3).
Gênesis
Bruce K. Waltke
Editora: Cultura Cristã
Sinopse: Comentário histórico-gramatical ao livro de Gênesis, com ênfase em
questões teológicas e apologéticas.
A boa mentira
Ano: 2014
Sinopse: Um drama baseado em fatos verídicos sobre a vida de uma jovem
sobrevivente da Guerra Civil no Sudão, que muda juntamente com mais três
sobreviventes para uma cidade norte-americana, no qual desenvolve uma
improvável amizade com uma mulher americana.
105
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIA ON-LINE
1
Em: <http://biblia.com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/>. Acesso em: 4 mai.
2017.
2
Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em: 4 mai. 2017.
Em: <http://divagacoesligeiras.blogs.sapo.pt/147412.html>. Acesso em: 4 mai. 2017.
3
4
Em: <https://www.letras.mus.br/vencedores-por-cristo/1192435/>. Acesso em: 4 mai.
2017.
Em: <www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/pistis?dd1=12332&dd99=view&dd98=pb>.
5
1. D.
2. VERDADEIRO.
3. D.
4. E.
5. C.
6. Deve incluir, pelo menos, os seguintes elementos: Abrão não tinha terra própria,
trocava de lugar de moradia sempre que necessário, precisava confiar em Deus,
adorava a Deus em cada lugar que chegava.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
III
UNIDADE
ISAÍAS 1,21-26
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
111
INTRODUÇÃO
Olá! Estamos iniciando mais uma Unidade de nossa disciplina. Espero que o
percurso de estudo esteja claro para você até agora. Só para lembrar: estamos
interpretando textos do Antigo Testamento usando a metodologia sêmio-dis-
cursiva. Na Unidade I, apresentei informações sobre a época em que os livros
do Antigo Testamento foram escritos, a fim de situar você com mais facilidade
no contexto bíblico. A partir da Unidade II estaremos estudando a exegese de
diferentes perícopes.
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Introdução
112 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
âmbito do Modo de Produção Tributário (ou Palatino-Aldeão), em que a popu-
lação camponesa e os demais trabalhadores (rurais e urbanos) sustentava a corte
e o sistema religioso mediante o pagamento de tributos e corveia (trabalho gra-
tuito para o rei). Em tal Modo de Produção, comumente havia a exploração do
povo pelo monarca (e sistema religioso), que demandava maior volume de tri-
butos que as famílias poderiam pagar.
Podemos situar nosso texto em um período específico da história de Israel,
a partir do título do livro de Isaías: “Visão de Isaías, filho de Amós, que viu a res-
peito de Judá e de Jerusalém, durante os reinados de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias,
reis de Judá” (Is 1:1, tradução do autor). O que aprendemos dos livros dos Reis
e Crônicas é que estes reis governavam Judá durante o século VIII a.C., espe-
cialmente durante a chamada “crise assíria”. Os profetas foram um dos grupos
responsáveis pela crítica aos reis de Judá e Israel que não praticaram justiça, mas
governaram de acordo com os padrões do tributarismo e provocaram o sofri-
mento do povo judaíta e israelita. Tendo em vista esta possibilidade de construir
a hipótese a partir do próprio livro, somente farei as análises de gênero e de rela-
ções interdiscursivas ao longo da análise do Plano de Conteúdo (Fase Final), que
confirmarão ou não a hipótese aqui adotada. Um detalhe do texto, porém, merece
ser destacado aqui: ocupa o centro da estrutura da perícope a denúncia de que os
líderes de Jerusalém “não reconhecem o direito do órfão, e não levam em con-
sideração a causa das viúvas”, detalhe que nos ajuda a situar o texto na realidade
histórica da segunda metade do século VIII a.C. O aumento do número de viúvas
e órfãos ocorre com o advento dos conflitos militares com sírios e assírios, que se
dão a partir de 740 a.C., aproximadamente, e se estendem até cerca de 710 a.C.
Contra a parte final da tese de Kessler, podemos afirmar que profetas como Isaías,
Miquéias, Jeremias e Sofonias, por exemplo, serviam, para parte da população,
como porta-vozes da crítica contra a condição de vida de suas épocas. Entretanto,
não ofereciam uma alternativa estrutural, apenas indicavam que suas “identida-
des” eram de “resistência” e não de “projeto”.
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profético como um movimento revolucionário, os estudos realizados em nosso
continente oferecem indícios suficientes para interpretarmos a profecia crítica
como parte do movimento social da época. (Ver, entre outros, CROATTO,
2000; SCHWANTES & MESTERS 1990; SCHWANTES, 2002.)
Consequentemente, o quadro que descrevo a seguir pressupõe: (a) não há,
de fato, um movimento profético uniforme no período sob estudo; (b) a clas-
sificação dos “profetas” como intermediários, mediadores entre o divino e o
humano é a que melhor atende às necessidades de uma história cultural ou
social; (c) no final do VIII século a.C. já havia um suficiente grau de profis-
sionalização e especialização das funções de mediação religiosa geridas pela
corte e templos (sacerdotes e profetas que subordinavam outras categorias de
agentes religiosos).
Dito isso, podemos discernir os seguintes tipos de atuação profética em
Judá e Israel: (1) profetas extáticos, atuando individualmente ou em grupos, a
forma mais antiga e que continua ao longo de toda a história de Judá e Israel,
com variações conforme as circunstâncias socioculturais. Comumente viviam
na periferia social e eram denominados “videntes”, “adivinhos”, ou “homem de
Deus”. Podiam estar ligados a santuários locais, ou atuar de modo independente
dos santuários; (2) profetas da corte: atuavam a serviço do rei e sua função era
aconselhá-lo em suas atividades guerreiras e apoiar o processo de legitima-
ção da dinastia – sua função se extingue juntamente com o fim da monarquia;
(3) profetas do templo: atuavam a serviço do sacerdócio oficial ligado à corte,
cooperando com o trabalho educacional que os mesmos deveriam realizar na
formação e difusão da identidade estatal, cujas funções, possivelmente, deixam
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típico de sociedades tradicionais, os filhos pagam solidariamente pelos
erros dos pais (v. 29), visão que será questionada mais tarde, nos tempos
de Ezequiel (cap. 18) e Jeremias (cap. 31), em uma sociedade em franco
processo de urbanização e internacionalização.
b. os profetas críticos são representantes da resistência popular. O que mais
chama a atenção nesse breve relato é que não é a idolatria o motivo deter-
minante do juízo divino sobre Acabe, mas a tomada da terra e o assassinato
de Nabote. O relato desse crime (I Rs 21:1-16) é muito importante para
entendermos a resistência profético-popular contra a identidade esta-
tal monocêntrica. Em jogo está a justiça baseada no ato libertador de
YHWH. Na personagem Nabote está concentrada a resistência dos cam-
poneses israelitas contra a opressão monárquica. O termo herança (v. 4)
se refere, em Josué e outros livros, especialmente na tradição deutero-
nômica e deuteronomista, ao terreno que cada família deveria possuir
na terra prometida a fim de poder viver dignamente. A propriedade da
terra era a expressão concreta da libertação e da fidelidade divina. Era um
dom de YHWH, logo, não poderia ser transformada em mercadoria, não
poderia ser negociada, abandonada ou usada para enriquecimento. Na
ideologia canaanita, por outro lado, que serve de modelo para as monar-
quias judaica e israelita, o rei é proprietário de todas as terras na região
sob seu domínio. Assim, centralizam-se não só o poder e a identidade,
mas também as propriedades, de modo que a herança de YHWH deixa
de ser dom e se torna dotação real.
Com variações, esse padrão tríplice se repete na atuação dos profetas críticos
do reino de Judá. Se nos restringimos aos livros canônicos, os profetas que atuaram
no sul foram: (a) no séc. VIII a. C.: Miquéias e Isaías; (b) nos sécs. VII-VI: Sofonias,
Habacuque, Naum, Obadias, Jeremias e Ezequiel. Os focos principais da crítica des-
ses profetas eram: (1) a injustiça social resultante da tributação da corte (em espécie
e em trabalho), do custeio do sistema sacrificial, e da exploração de camponeses e
trabalhadores por famílias que enriqueceram mediante o latifúndio e a participação
no comércio e apoio à casa real (e.g. Mq 3:1-12; Is 1-5; Sf 1; 3:1-8); (2) o papel vicá-
rio do rei na teologia do davidismo, ao invés da afirmação de que o rei deveria ser
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um justo seguidor de YHWH, e não seu representante, ao estilo cananeu (e.g. Is 6-9;
11; Mq 5:2-5; Jr 22:1-9); (3) o culto alienado da prática de justiça e a inviolabilidade
de Sião e do Templo (e.g. Is 1:10ss; Am 5; Mq 3:9-12; Jr 7; 26:1-8); (4) a pregação dos
“falsos profetas”, que defendiam a teologia oficial da corte e dos templos estatais (e.g.
Mq 2:5-11; Jr caps. 23 e 28); (5) a política de alianças com povos estrangeiros, pois tais
alianças colocavam em risco a exclusividade de adoração a YHWH (e.g. Is 30-31); e
(6) embora não pregassem o fim da monarquia per se, sentenciavam o fim do domí-
nio de membros da dinastia sob uma potência estrangeira e sua eventual restauração.
Essa descrição sintética não pode ser entendida, porém, como a defesa de uma
teologia uniforme, presente na pregação de cada um dos profetas críticos. Destaco
esses elementos especialmente para classificar a pregação profética crítica como dis-
curso de resistência à identidade estatal monocêntrica – especialmente em relação aos
temas discursivos adotados e ressignificados do ideário cananeu e do mesopotâmico
(que, juntamente com as demais formas de resistência, formam o campo discursivo
do período). Enquanto formação discursiva, a profecia crítica adota uma estratégia
ambivalente em sua proposta identitária, posto que, embora critique a identidade
estatal, não propõe a terminação da monarquia e do sacerdócio como instituições
válidas na articulação social do povo. Tal estratégia pode ser entendida na medida
em que é simultaneamente uma resposta ao imperialismo mesopotâmico. A presença
imperialista é explicada como juízo de YHWH e não como superioridade militar-
-religiosa dos assírios ou babilônicos. A infidelidade à YHWH, principalmente da
parte do rei, corte, sacerdócio e apoiadores da dinastia, trouxe a desgraça a Israel e
Judá, mas não o seu fim puro e simples, posto que se o fizesse, colocaria o próprio
YHWH sob o domínio dos deuses mesopotâmicos.
DELIMITAÇÃO
As razões para delimitar nossa perícope são: em relação ao texto anterior: mudan-
ças de personagens, vocabulário e temática (Sodoma e Gomorra – símbolos para
Jerusalém – vocabulário litúrgico e temática da denúncia contra o culto e o sacer-
dócio); em relação ao texto posterior, especialmente mudança de personagens
e vocabulário (inclusive temática), embora o foco ainda recaia sobre Jerusalém.
Nos v. 27ss. o profeta fala em Sião, destacando, como nos vv.10-20 a dimensão
cúltica da cidade, enquanto os vv. 21-26 destacam a dimensão política.
Vejamos a delimitação da perícope sob outro ponto de vista, citando um
especialista em Análise de Formas Literárias:
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“A segunda subunidade estrutural maior em 1:2-31 é composta pelos
versos 21-31. Como no caso dos v. 2-20, esta seção contém entidades
genéricas distintas (vv. 21-26; 27-28; 29-31), mas aqui também elas es-
tão vinculadas, por diversos fatores, como uma subunidade textual co-
erente. Aqui também o primeiro é a conexão por palavras-chave. Os vv.
21-26 e 27-28 são conectados pelo uso de mispat ‘direito’ e sedeq ‘jus-
tiça’ nos versos 21 e 27 (cf. v. 26). Semelhantemente, o uso de yahdaw
‘juntos’ nos versos 28 e 31 oferecem um link entre os vv. 27-28 e 29-31.
[...] O terceiro fator unificador dos v. 21-31 tem a ver com o simbolis-
mo e temática. Os v. 21-26 enfatizam uma purificação de Jerusalém na
qual os elementos corruptos da liderança da cidade serão removidos
por YHWH da mesma forma como se remove as impurezas do metal
derretido. O resultado, é claro, será uma cidade purificada, restaurada
à sua justiça primitiva. Os v. 27-28 edificam sobre o tema ao enfatizar
a distinção de caráter e destino entre os que se arrependem ou retor-
nam a YHWH e os que continuam em seu caminho de rebeldia. Ao
descrever a redenção de Sião, o v. 27 enfatiza a ‘justiça’ e o ‘direito’ que
caracterizou a cidade no passado, de acordo com o v. 21. Os pecadores
perecerão, conforme o verso 28, assim como as impurezas são removi-
das do metal” (SWEENEY, 1996, p. 64-65).
Para Sweeney, embora os vv. 29-31 sejam uma unidade autônoma, esses versos
pertencem ao conjunto de 1:21ss. Entretanto, ele mostra que há mais vínculos
entre os vv. 27-28 e 29-31 do que entre os versos 29-31 e 21-26, de modo que ele
vê duas perícopes na subunidade: 21-26 e 27-31. Outros autores também fazem
a mesma delimitação (e.g. WILLIAMSON, 2006, p. 120ss.).
SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO
tauração de Jerusalém (v. 26). Temos, assim, um “oráculo de juízo com anúncio
de restauração”. Em relação ao contexto da perícope, o uso do ‘oráculo de juízo’
reforça a hipótese adotada, de um texto do VIII século a.C., conforme indicado
no título do livro de Isaías.
Do ponto de vista do conteúdo, vemos uma estruturação quiástica, que coloca
no centro a denúncia e o oráculo divino:
A Ah! Como se tornou prostituta a cidade fiel!
B Ela, que estava cheia do direito! Nela, habitava a justiça, agora, porém,
homicidas. 22 A tua prata se transformou em escórias, o teu licor fino
está misturado com água.
C 23
Os teus líderes são rebeldes e parceiros de ladrões; cada um deles
adora um suborno e vive em busca de recompensas.
D Não reconhecem o direito do órfão, e não levam em considera-
ção a causa das viúvas.
D’ 24
Portanto, oráculo do Senhor, YHWH dos Exércitos, Poderoso
de Israel:
C’ Ai de vós! Livrar-me-ei de meus adversários e vingar-me-ei dos
meus inimigos.
B’ 25
Voltarei contra ti a minha mão, purificar-te-ei das tuas escórias no
fogo com potassa e eliminarei todo metal impuro.
A’ 26
Restituir-te-ei os teus juízes, como nos tempos antigos, os teus con-
selheiros, como no princípio; então voltarás a ser chamada de cidade
de justiça, de cidade fiel.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Tradução:
Ah![i] Como se tornou prostituta a cidade fiel! Ela, que estava cheia do direito!
Nela, habitava a justiça[ii], agora, porém, homicidas. 22 A tua prata se transfor-
mou em escórias, o teu licor fino está misturado com água. 23 Os teus líderes[iii]
são rebeldes e parceiros de ladrões; cada um deles adora[iv] um suborno e vive
em busca de recompensas. Não reconhecem o direito do órfão, e não levam em
consideração a causa das viúvas[v]. 24 Portanto, oráculo[vi] do Senhor, YHWH
dos Exércitos, Poderoso de Israel: Ai de ti[vii]! Ficarei aliviado[viii] de meus
adversários e vingar-me-ei dos meus inimigos. 25 Voltarei contra ti a minha mão,
purificar-te-ei das tuas escórias no fogo com potassa e eliminarei todo metal
impuro. 26 Restituir-te-ei os teus juízes, como nos tempos antigos, os teus conse-
lheiros, como no princípio[ix]; então voltarás a ser chamada de cidade de justiça,
de cidade fiel. (Traduzido pelo Autor)
[i] A palavra hebraica que inicia a perícope é a interjeição usada no lamento
fúnebre, ou seja, a denúncia de Isaías é estilizada como o lamento pela
perda de um ente querido.
[ii] As palavras hebraicas são מִ ׁשְ ּפָ֗ טe צדֶ ק.
֛ ֶ Elas formam um par comum
no Antigo Testamento. A primeira se refere ao direito exercido nos tri-
bunais e a segunda se refere à justiça como ato de YHWH e como justiça
social em resposta à libertação divina.
[iii] A palavra hebraica sar indica lideranças formais, mas não sabemos
exatamente a que cargos se refere.
[iv] O verbo hebraico também pode ser traduzido por ‘amar’, mas optei
pelo uso do termo ‘adorar’, mais coloquial em língua portuguesa.
[v] O verso se refere à atuação nos tribunais. Na época de Isaías os tribu-
nais comumente eram espaços para mediação ou arbitragem e se reuniam
conforme houvesse necessidade. Eles eram dirigidos por líderes das cida-
des e vilas que atuavam como ‘juízes’ ad hoc. Conforme veremos ao longo
da análise do texto, órfãos e viúvas representavam um problema social
sério no século VIII a.C. em função dos conflitos com sírios e assírios.
[vi] Oráculo traduz um termo técnico dos livros proféticos do Antigo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Testamento. Evitei o uso do verbo ‘dizer’, comum nas traduções, por que
ele não reflete o caráter técnico da palavra hebraica. ‘Oráculo de YHWH’
é uma espécie de título para a fala profética originada na vocação divina.
[vii] Também termo técnico do lamento fúnebre, como no verso inicial
da perícope, mas uma palavra hebraica diferente da primeira da perícope.
[viii] O verbo hebraico tem sido predominantemente traduzido como ‘ira’,
mas o seu uso mais frequente é ‘conforto’ e ‘alívio’, por isso a minha opção
aqui, seguindo mais fielmente os léxicos do hebraico bíblico.
[ix] As referências temporais sugerem o período anterior à monarquia,
ou seja, ao período das tribos israelitas (ou, proto-israelitas, termo téc-
nico que adoto em meus escritos de História de Israel).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mos posteriores, e.g. caps. 24-27) da época de Isaías (VIII século a.C.), capítulos
40-55 do período exílico (ente 587 a.C. e 539 a.C.) e capítulos 56-66 do início do
pós-exílico (539-500 a.C.). Nas duas últimas décadas, a pesquisa tem destacado,
além da história redacional do livro, a unidade da composição – ou seja, não se
trata de mero ajuntamento de três coleções ‘autônomas’ de oráculos proféticos,
mas da efetiva ‘edição’ de um livro bem estruturado e arranjado.
Começando com Isaías e sendo moldado progressivamente pelos discí-
pulos do profeta ao longo do período apontado, o livro de Isaías ganhou sua
forma atual. O principal eixo organizador do livro é a relação de YHWH com
Jerusalém: na primeira parte do livro, predominam as acusações e a proclama-
ção de juízo contra Jerusalém por ser infiel à aliança com YHWH; na segunda
parte (40-55), predominam oráculos que anunciam a restauração de Jerusalém
que inclui o retorno dos exilados para a Babilônia; enquanto na terceira parte
temos a mescla de oráculos de esperança e oráculos de juízo contra os habitantes
de Jerusalém. Paralelo a esse eixo ‘geopolítico’ temos o eixo teológico que tema-
tiza a aliança entre YHWH e seu povo, aliança que demanda a exclusividade
da adoração a YHWH e a fidelidade ao seu caráter libertador e justo. Podemos
perceber uma similaridade estrutural com o livro do Êxodo: os caps. 1-39 de
Isaías correspondem aos primeiros capítulos do Êxodo, que retratam a opres-
são dos hebreus; os caps. 40-55 correspondem aos capítulos do êxodo em que se
dá a saída dos hebreus do Egito; e os caps. 56-66 correspondem à seção final do
Êxodo com suas determinações sobre a relação de Israel com YHWH, especial-
mente do ponto de vista cúltico (tabernáculo). Não é à toa que vários estudiosos
falam de Is 40-55 como o livro do novo êxodo.
distintos contextos: o das perícopes ‘isoladas’ – nesse caso, no século VIII a.C.;
o de cada seção do livro (sécs. VIII; VI e V a.C., respectivamente), e o do livro
como um todo, por volta da época de Esdras e Neemias, quando da redação final
do livro. Esse é um fenômeno semelhante ao ocorrido com os Evangelhos, que
podem ser lidos a partir de três contextos: o da pregação de Jesus propriamente
dita; o da tradição oral e escritas preliminares, e o da redação dos Evangelhos
(após o ano 70 d.C.).
Nessa disciplina, optei pela leitura a par-
tir do contexto da perícope tomada em si
mesma, o que não nos impede, porém,
de ver seu lugar no conjunto do
livro. Um detalhe chama a atenção:
o final do verso 23 é uma inversão
do final do verso 17 – nesse temos
uma exortação à prática da fideli-
dade à YHWH, que inclui julgar
corretamente a causa de órfãos e
viúvas; no v. 23 temos a denúncia de
que os líderes de Jerusalém não julgam
corretamente a causa de órfãos e viúvas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Cidade (21) caracterizada como: ‘prostituta’, cidade fiel, ‘ela, que estava cheia
do direito’, ‘nela habitava a justiça, agora, porém, homicidas’ (21), ‘tua prata
... teu licor (22) teus líderes ... (23); ‘ai de ti’ (24) ‘contra ti’, tuas escórias,
metal impuro (25), ‘teus juízes como nos tempos antigos ...’ (26), voltarás a
ser chamada de ‘cidade da justiça’, ‘cidade fiel’ (26)
Teus líderes (23), caracterizados por suas ações denunciadas por Isaías, e
apresentados antecipadamente como ‘homicidas’ v. 22
Órfãos e viúvas (como recipientes da ação dos ‘teus líderes’) v. 24
Senhor, YHWH (24) caracterizado como ‘Poderoso de Israel’, suas ações são
descritas: ficarei ... vingar-me-ei ... (24) voltarei ... purificar-te-ei ... elimina-
rei ... (25) restituir-te-ei ... (26)
Juízes e conselheiros (26) como recipientes da ação de YHWH em prol da
cidade [pelo co-texto do capítulo 1 sabemos que a cidade é Jerusalém]
Espaço:
Cidade, que é tanto ‘pessoa’ (personagem) como ‘espaço’ (“nela” v. 21)
Tempo:
Começo com os termos não-verbais –
Agora (21)
Tempos antigos, no princípio (26)
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baseado nos valores desse passado ‘ideal’).
“O verso 21 dirige seu olhar ao passado, a uma ‘cidade fiel’ em que
habitava a retidão, que fora ‘cheia de justiça’. Essas reminiscências são
apenas nostálgicas, remontando a um passado ideal, ou podem se re-
ferências à retidão, justiça e fé com uma intenção mais específica, a
saber, relembrar o comportamento correto do rei Ezequias? A retidão
então habitou em Jerusalém, na pessoa do rei Ezequias, cuja oração
salvou a cidade do desastre (37:21). Na passagem altamente parabóli-
ca que segue o relato da libertação de Jerusalém, realizada ‘pela honra
do meu nome e por amor a meu servo Davi’ (37:35), Ezequias adoece
terminalmente (38:1). Mesmo assim ele ora novamente por libertação,
pedindo a Deus para se lembrar ‘como caminhei diante do Senhor em
fidelidade’ (38:3). Deus ouve a oração de Ezequias e reverte a sentença
de morte, para ele e para a cidade (38:6)”. (SEITZ, 1993, p. 33-34)
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de um ou mais percursos temáticos que podem seguir a estrutura do plano de
expressão, mas, normalmente, possuem um arranjo próprio. Dois procedimentos
podem ser seguidos aqui: o mais técnico que é o procedimento de reconstrução
dos percursos temáticos do texto por meio da abstração, e o menos técnico que
é o procedimento de reconstruir os percursos temáticos a partir dos percursos
de pessoa, tempo e espaço. Na Unidade anterior usei o segundo procedimento
por razões didáticas, agora seguirei o primeiro.
Os percursos temáticos são reconstruídos mediante um raciocínio de abs-
tração dos termos presentes na superfície discursiva. O processo de abstração é
relativamente simples quando você fica acostumado com ele. Primeiro, devemos
notar as palavras (figuras e/ou temas presentes no texto), em seguida, devemos
verificar que noção mais abstrata dá unidade a essas palavras e, terceiro, nomear
o percurso temático a partir dessa noção mais abstrata. Enfim, devemos procurar
a noção abstrata que dá unidade a toda a perícope e apresentá-la – preferencial-
mente – na forma do quadrado semiótico.
Em nossa perícope, a estrutura do texto nos ajuda, na medida em que os
percursos temáticos seguem a própria ordem dos versos: (1) a infidelidade da
cidade e seus líderes v. 21-23; (2) a fidelidade justa de YHWH v. 24-25; e (3) a
fidelidade da cidade restaurada v. 26. Ao nomear os percursos, já conseguimos
notar o fator temático unificador de toda a perícope: a fidelidade. Na forma do
quadrado semiótico temos, então:
INFIDELIDADE FIDELIDADE
ENGAJAMENTO REBELDIA
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na qual o direito e a justiça estavam presentes – agora, porém, é habitada por
homicidas e seu caráter é apresentado, metaforicamente no verso 22, como adul-
terado, inferior ao padrão desejado. Não sabemos a respeito de que época da
vida da cidade Isaías está falando. Pode ser uma referência ao início do reinado
de Ezequias, com sua reforma religiosa, ou ao reinado de Jeosafá (que, segundo
Crônicas, também efetuou uma reforma jurídica e religiosa em Jerusalém), ou
pode ser apenas uma forma de argumentação – a apresentação de um passado ideal
nos tempos do rei Davi ou de Salomão. Para entender o texto, não é necessário
chegar a uma definição a esse respeito, o sentido é claro: a cidade de Jerusalém,
capital do reinado, deveria ser uma cidade fiel e, de acordo com nosso texto, uma
cidade fiel é uma cidade em que o direito e a justiça imperam. Como já vimos, o
par ‘direito e justiça’ é bastante comum no Antigo Testamento (de fato, em todo
o antigo Oriente) e se refere primariamente, nos textos pré-exílicos, ao cumpri-
mento da aliança entre YHWH e seu povo, mediante a justiça social (tsedaqah) e
a ‘justiça’ jurídica (mishpat), mediante a qual os conflitos entre famílias são arbi-
trados e os problemas de injustiça social são corrigidos. No percurso temático
da infidelidade dos líderes a ausência de justiça e direito é apresentada de modo
mais concreto: o direito de órfãos e viúvas é violado. Uma cidade fiel (à aliança
com YHWH) é uma cidade em que a justiça de YHWH – seu agir libertador – e
o direito de YHWH – sua torá libertadora – são o padrão da vida cotidiana. Nos
livros proféticos em geral, e em Isaías em particular, ‘direito e justiça’ são a tarefa
primordial do rei – não se imaginava naquela época ‘justiça social’ como resul-
tado de movimentos sociais ou do arranjo legal de uma sociedade democrática.
Assim como YHWH faz justiça, também o rei a deve fazer – não só o rei, mas
todas as pessoas que exercem autoridade e/ou poder, seja político, seja religioso,
seja econômico. Assim conclui Goldingay sua análise dessa parte da perícope:
“Mišpāṭ e ṣĕdāqâ, portanto, sugerem o exercício fiel do poder na comunidade”
(GOLDINGAY, 2014, p. 21).
Vale a pena uma longa citação que apresenta o uso do par de palavras ‘direito
e justiça’ no livro de Isaías em seus caps. 1-39:
Esta combinação de palavras ocorre frequentemente na primeira meta-
de de Isaías – de fato, a combinação é mais frequente do que o uso de
qualquer um de seus termos isoladamente. Assim, das 22 ocorrências
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de‘ מִ ׁשְ ּפָ֗ טdireito’, metade cai nesta categoria e, com apenas uma exceção
(32:1), ela é sempre a primeira palavra do par. Paralelamente, a propor-
ção de usos conexos de ‘ ֶ ֛צדֶ קjustiça’ é ainda maior, 13 de 20. Finalmente,
fortalecendo a conclusão de que este uso em Isaías transcende o uso co-
mum do vocabulário do Antigo Oriente Próximo, devemos notar que,
como neste verso, assim também nos demais, o par de palavras é asso-
ciado várias vezes com fiel נֶאֱ מָ ָנ֑ה, e outros derivados da mesma raiz; cf.
1:26-27; 11:4-5; 16:5; 28:16-17; 33:5-6. Parece claro que nosso verso dá
expressão a uma ideia próxima ao coração das preocupações de Isaías.
Assim como o presente verso descreve o ideal do passado com esta lin-
guagem, assim também ele condenará a geração atual por sua falta (ver
especialmente 5:7) e retornar a esse ideal é uma caracterização da restau-
ração da sociedade ideal do futuro (28:16-17). Ademais, esta fraseologia
aparece proeminentemente em sua descrição do rei ideal (9:6; 11:4-5) e
em sua citação aprovadora de um provérbio sobre a qualidade do gover-
no dos reis em geral (32:1). (WILLIAMSON, 2006, pp. 135-136)
A cidade fiel tornou-se uma prostituta – aqui a metáfora deve ser vista em sen-
tido bastante amplo, não só como ‘idolatria’ como no uso de Oséias, nem apenas
como as alianças (casamentos) com povos estrangeiros condenadas pelo próprio
Isaías. Prostituição é metáfora para a infidelidade integral da cidade à aliança com
YHWH, retrata a injustiça e a corrupção em todos os setores da vida: político, reli-
gioso, econômico, etc. Na cidade prostituída habitam, ao invés de ‘direito e justiça’,
assassinos: retoma a acusação do verso 15 (‘mãos cheias de sangue’) e aponta para
o verso 23 – a negação dos direitos de órfãos e viúvas. Duas metáforas adicionais
descrevem a infidelidade da cidade: a escória é o metal retirado da prata quando de
seu tratamento, a fim de que ela fique pura – o que é revertido aqui, de modo que
ela perde o valor. O licor (não sabemos ao certo a que bebida específica o termo
hebraico se refere) é adulterado com água, para ficar mais fraco e não oferecer
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tuguês ‘príncipes’ é enganadora, pois a palavra hebraica não se refere aos filhos
do rei. A palavra se refere, variadamente, aos líderes militares e aos anciãos prin-
cipalmente, de modo que aqui deve se referir aos anciãos (chefes de família)
responsáveis pela administração do direito na cidade – ao invés de julgar com
equidade, julgam de modo corrupto, aceitando subornos e buscando recompen-
sas – por isso, ‘rebeldes’ (desobedientes) e ‘parceiros de ladrões’, ou seja, membros
de quadrilha, gângsteres.
Na medida em que, naquele tempo, os juízes não eram profissionais, mas
líderes nomeados ad hoc, o cargo era usado para benefício próprio e dos ‘amigos’.
Em outros termos, Isaías condena aqui a corrupção nos escalões governamen-
tais. Os líderes que deveriam cuidar para que o direito e a justiça imperassem
na cidade estavam fazendo exatamente o contrário. Por isso, sua condenação é
radical – à altura da radicalidade de sua infidelidade à aliança com YHWH. Nas
palavras de Brueggemann, que interpreta essa seção como um ‘teste’ promovido
por YHWH, “Jerusalém falha completa e decisivamente, A questão teológica mais
ampla da vida com YHWH se dobra à concretude da política para com órfãos e
viúvas” (BRUEGGEMANN, 1998, p. 22).
Na análise da dimensão sociocultural da ação voltaremos a esse tema, com
mais detalhes sob uma perspectiva sociológica.
A palavra equidade (tsedaqah) denota as relações harmônicas que geram
paz e bem-estar no seio da comunidade. As relações harmônicas não surgem ao
acaso; nascem da igualdade social e da preocupação com que os pobres saiam
da pobreza (cf. Am 5:24; 6:12; Mq 3:1.8-9; Is 5:7.16; 10:2).
Este percurso é composto por duas partes: a introdução oracular (24a) e a sen-
tença de YHWH contra os seus ‘inimigos’ – os líderes de Jerusalém (v. 21-23).
Está construído segundo a lógica dos oráculos de juízo: a denúncia é seguida pela
sentença contra o crime denunciado, introduzida pela conjunção ‘portanto’ ().
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pos antigos de Israel, associadas com a arca.
Fonte: Williamson (2006, p. 140-41).
Esse tipo de estilização não é peculiar a Isaías, porém, estando presente tam-
bém em outros livros proféticos. Características importantes do ‘lamento’ são o
ritmo cadenciado e a assonância (que não podemos captar nas traduções, ape-
nas no original):
“o oráculo começa ex-abrupto com grito de dor: cinco palavras rima-
das prolongam o grito e o estabelecem no âmbito feminino: ’ayká haye-
tá lezoná qiriá ne’emaná. A cidade que é residência de moradores e se
vê cheia deles era morada da justiça e estava cheia da prática do direito;
tais eram os moradores privilegiados” (SCHOKEL & DIAZ, 1988, p.
123).
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quia. Isaías rompe com esse padrão e cria uma nova categoria profética, da qual
o oráculo de juízo e, depois, a coleção de oráculos na forma de livro são os sin-
tomas mais visíveis. A profecia crítica se insere entre os quadros profissionais
da cultura, ao lado (criticamente falando) do sacerdócio e da profecia oficial, ao
lado da sabedoria (tanto a serviço da corte quanto a popular). Insurge-se, assim,
como um terceiro grupo social, que defenderá o direito dos pobres e exigirá dos
reis e líderes do povo a fidelidade à aliança com YHWH.
Veja como Schwantes sintetiza a sua leitura de nosso texto:
“Caminhos um pouco diferentes trilha Isaías. Afinal, ele foi filho de
Sião e de Jerusalém. Convivia diariamente com as duas tradições sa-
gradas de Jerusalém: a do templo e a do sucessor de Davi. Isaías a rigor
não chegou a falar enfaticamente da destruição do templo, se bem que
quase se refere a ela em 29,1-4, e nem do fim da dinastia de Davi, se
bem que a ela alude em 7,17 e 11,1. O que prevalece em Isaías é que Sião
e Davi passam a adquirir novos sentidos. Ambos como que são trans-
figurados. Para Isaías, o templo no Sião deixa de ser lugar do sacrifício,
através do qual o povo era explorado e oprimido, e passa a ser lugar dos
mandamentos (2,2-5), lugar de abrigo e refúgio para os pobres do povo
(14,32). Isaías entende o templo não num sentido sacerdotal e sacrifi-
cial, mas dentro de uma mística de asilo (veja Sl 23). Algo semelhante
se passa com o davidismo. Para Isaías, o verdadeiro Davi já não é mais
aquele que, no momento, ocupa o trono de Jerusalém, mas aquele que
há de vir, em profunda fraqueza, fragilidade de criança (9,6; 11, 1-10),
em radical dedicação à justiça (9,6-7; 11,4-5). Esta ressignificação das
tradições de Sião e de Davi, tão enraizadas em Jerusalém, se assemelha,
em muito, à crítica às estruturas, promovida pelos demais profetas do
8º século”. Fonte: (SCHWANTES, [2017], on-line)3.
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o discurso do davidismo. Como Isaías critica tanto o culto como a liderança de
Jerusalém (1:10-20; 21-26), podemos supor com boa dose de certeza que ele
conhecia esses discursos e os estava criticando.
O uso da forma do lamento fúnebre, mediante a estilização, é outro exemplo
das relações interdiscursivas presentes em nossa perícope. Conforme indicamos
acima, a adoção da linguagem do lamento teve um papel importante na definição
da identidade de YHWH, enquanto juiz dos líderes da cidade e de seu povo – um
juiz animado, não pela ira, mas pelo sentimento de luto, pela tristeza e desgosto
diante da infidelidade dos líderes da nação. Se há alusão ao ‘lamento pela cidade
destruída’, um gênero comum no Antigo Oriente Próximo, é mais difícil postular.
Provavelmente não houve, embora não seja impossível que Isaías, como mem-
bro da aristocracia de Jerusalém (como se supõe), conhecesse tal gênero textual.
Estas relações interdiscursivas nos ajudam a reconstruir o universo discur-
sivo do século VIII a.C. em Judá. De um lado, temos os discursos da corte e do
Templo (davidismo e sionismo) que defendem a legitimidade da dinastia davídica
e a situam no âmbito da aliança com YHWH. De outro lado, temos o discurso
da profecia crítica nascente, que se coloca em relação polêmica contra o discurso
davidida-sionita, embora não proponha o fim da monarquia nem a destruição
do Templo. De alguma forma, o discurso da profecia crítica incorpora os anseios
populares (na cidade e no campo) por justiça social e vida digna diante de YHWH,
embora não tenhamos elementos concretos para explorar mais detalhadamente
essa relação. Em um terceiro bloco discursivo, encontramos o discurso da profecia
crítica ‘radical’ do reino do Norte (exemplificada nos escritos de Amós e Oséias),
que propunha a destituição dos reis e até a destruição dos Templos monárquicos
(devemos nos lembrar que a situação política do reino de Israel era bem distinta
da de Judá, pois jamais houve uma dinastia duradoura no reino do Norte). Nesse
período ainda não dispomos de informação suficiente para situar os sábios e escri-
bas, seja os ligados à corte e ao templo, seja os ‘populares’. Que a sabedoria veio
a se desenvolver como uma forma discursiva própria em Judá, é fato conhecido,
mas não temos ainda condições de oferecer um relato histórico de suas origens
‘discursivas’ para esse período – à luz do livro de Reis, podemos situar melhor o
discurso sapiencial a partir do século VI a. C., tendo em vista o papel de escribas
na tradição deuteronomista (o papel dos escribas durante a descoberta do livro
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e não com base em um ‘código de leis’ a que deveriam submissão. A honestidade
e a defesa dos direitos dos mais fracos eram elementos comuns à instrução nor-
mativa em Israel e Judá (cf., por exemplo, o Livro da Aliança em Êx 20:21-24:14).
Diferentemente de Oséias e Amós (profetas da mesma época, século VIII
a.C., mas do reino do Norte – Israel), Isaías não prevê o fim da monarquia como o
caminho para o retorno à fidelidade à aliança com YHWH. Ele espera, ao contrá-
rio, que a casa real cumpra sua tarefa com fidelidade, submetendo-se à soberania
de YHWH e governando com base no direito e na justiça – ver, especialmente,
a coleção de oráculos de esperança em Isaías 6-9 e cap. 11. Sua ‘utopia’ não é a
de um retorno ao tribalismo enquanto tal, mas à maior condição de equidade
(justiça social) típica da situação pré-monárquica de Israel. Isaías aceita a pre-
sença de um rei, mas demanda que o rei aja com justiça, seja fiel a YHWH e sua
aliança, e não oprima o povo. Nesse sentido, sua visão política é similar à da lei
do rei em Dt 17:14ss.
A profecia de Isaías se situa em ambiente similar à do profeta Miquéias. Este,
contemporâneo de Isaías (embora não saibamos exatamente em que períodos
ambos tenham atuado simultaneamente), era do interior e também denunciava for-
temente os ricos, as lideranças de Jerusalém e os ‘falsos’ profetas (ver especialmente
os capítulos 2-3 de seu livro). Como Isaías, Miquéias também lamenta pelo sofri-
mento do povo (cap. 1), mas o faz sob a circunstância da invasão de Senaqueribe,
que destrói boa parte do interior de Judá, deixando apenas Jerusalém como sobre-
vivente. No século VIII a.C. temos, então, em Judá, o surgimento do fenômeno
da profecia crítica – profetas que não se submetem ao comando do rei nem ao do
sacerdócio no Templo. A profecia, em Judá era, predominantemente, uma função
e corte de outro. A defesa do direito dos pobres era a marca registrada da profe-
cia crítica, como consequência da compreensão de que a fidelidade a YHWH não
poderia existir sem justiça social, pois YHWH é Deus justo e libertador.
O diagnóstico de Isaías assemelha-se ao que muitos contemporâneos emi-
tem sobre nossa sociedade. Vivemos num mundo que traiu e abandonou a Deus,
mundo infiel, falso. Os motivos, porém, talvez sejam diferentes. Aqui intervém
o contraste entre a ‘visão religiosa’ e a ‘profética’. Em que pensamos nós ao dizer
que o mundo abandonou a Deus, perdeu a fé, etc.? Em igrejas vazias? Em pouco
interesse pela doutrina tradicional? Em imoralidade? Que tipo de imoralidade?
Note como o texto é interpretado por um exegeta europeu:
Para Isaías, Jerusalém traiu a Deus porque traiu os pobres. E essa trai-
ção é levada a efeito pelas autoridades, que se encontram diante de dois
grupos sociais: os ricos, que se enriqueceram roubando (gannabîm,
ladrões), e os pobres (órfãos, viúvas). Os primeiros podem oferecer di-
nheiro antes de tratar de algum problema e recompensar com presentes
os serviços prestados. Os segundos não podem oferecer nada; só po-
dem pedir que sejam escutados. Diante dessa diferença, as autoridades
associam-se (hbr) aos ricos/ladrões.
Comparada com a visão que Amós oferece de Samaria, a de Isaías é
mais complexa e interessante. Fala daqueles que acumulam tesouros
roubando; nisso coincide com Amós. Descobre, porém, causa pro-
funda: os ricos podem roubar porque as autoridades permitem. E elas
permitem porque estão dominadas pelo afã do lucro. Só fazem o que
lhes serve para enriquecer-se. O que não dá dinheiro, desprezam. Isaías
não acusa aqui as autoridades de ‘julgar contra a justiça’, mas de não
cumprir com seu dever quando não há ganho possível. Com isso se
convertem em ‘rebeldes’ (srrym): traem sua profissão, traem os pobres
e também traem a Deus.(SICRE, 1990, p. 277)
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correspondem à infidelidade à aliança com YHWH, o Deus de Judá (e Israel).
No segundo momento, verificamos se o Novo Testamento demanda alguma
revisão teológica dos sentidos do texto. Nesse caso, a revisão a ser feita é a cris-
tológico-eclesiástica, ou seja, a identidade do povo de Deus agora não é mais
restrita a Israel enquanto povo ou etnia e, em especial, não se restringe a Israel
enquanto nação, e a esperança de restauração não se restringe mais a Jerusalém
enquanto capital do reino de Judá, mas tem a ver com toda a humanidade.
Percebido isto, os dois focos do texto podem ser trabalhados em uma dimen-
são ‘universal’ e não mais restrita a Jerusalém. Assim, a releitura do texto deverá
lidar com (1) os temas da corrupção e da injustiça social; e (2) o tema do lugar
da religião na legitimação do governo. Antes de fazermos a releitura devemos,
ainda, levar em consideração as diferenças institucionais e socioculturais entre o
mundo do texto e o nosso mundo. Ressalta, aqui, pela temática, o fato da separa-
ção institucional entre Estado e Instituições Religiosas – o que podemos chamar
de laicidade do Estado, ou seja, o fato de que o Estado não pode ser legitimado
com fundamentos religiosos e, ao mesmo tempo, não pode interferir na liber-
dade religiosa, mas tem o dever de atuar quando pessoas ou instituições religiosas
não cumprem os preceitos legais. Outro aspecto dessa diferenciação está na plu-
ralidade religiosa – enquanto em Israel todos os habitantes praticavam a mesma
religião (com exceção de estrangeiros), nos países democráticos a população pra-
tica diferentes religiões e existem diferentes modos de viver sem religião. Isso
afeta o modo como realizamos a releitura em função do público-alvo: se a dire-
cionamos a cristãos o enfoque será um, se a direcionamos a toda a sociedade o
enfoque deverá ser outro.
Separação Igreja-Estado
Um dos elementos da secularização/modernização foi a separação Instituição
Religiosa-Estado, de modo que a elaboração de legislação e a tomada de deci-
sões e implantação de políticas públicas são feitas pelo Estado sem necessidade
de apoio ou aprovação por parte das religiões. Assim, várias leis e decisões exe-
cutivas podem entrar em conflito com valores, crenças ou práticas religiosas
cristãs (ou de quaisquer outras religiões), como uma das expressões naturais da
consequente laicidade do Estado.
Reconhecida deste modo genérico a laicidade do Estado, porém, várias ques-
tões problemáticas ainda permanecem, algumas das quais discutiremos a seguir:
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presentes no mundo da vida. Somente exercendo tal neutralidade é que se pode
conseguir justiça política na esfera pública que, em sociedades democráticas,
exige a plena e igual participação de todos os cidadãos, independentemente de
suas ideias amplas sobre a realidade:
“a neutralidade do poder estatal, no que tange às cosmovisões, neutra-
lidade que garante iguais liberdades éticas a todos os cidadãos, não é
compatível com a generalização política de uma visão de mundo se-
cularista. Em princípio, os cidadãos secularizados, na medida em que
atuem em seu papel de cidadãos de um Estado, não devem negar às
imagens religiosas do mundo um potencial de verdade, nem devem
questionar o direito dos concidadãos crentes de participar, com a lin-
guagem religiosa, nas discussões públicas. Uma cultura política liberal
pode, inclusive, esperar dos cidadãos secularizados que participem nos
esforços de traduzir as contribuições relevantes da linguagem religiosa
a uma linguagem publicamente acessível” (HABERMAS, 2006, p. 119).
que é uma forma velada de afirmar que a vida política exige a crença na divindade.
O “positivo” dessa proposta de laicidade inclui exatamente tudo aquilo que a laici-
dade “tradicional” sempre excluiu e que sempre a definiu como um conceito político”;
“há alguns pensadores – como a espanhola Camil Ungureanu – que defendem
uma “laicidade esclarecida” e afirmam que a democracia não pode prescindir, ou
melhor, não pode rejeitar as perspectivas de mundo religiosas, pois elas contêm
valores que mobilizam os e orientam a conduta dos cidadãos. Dessa forma, man-
tendo a separação entre Igreja e Estado, Ungureanu afirma que o Estado não pode
ser surdo e cego para a religião e para os religiosos [...].
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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pelo monarca português. Esse sincretismo Igreja-Estado é denominado, na teo-
logia, de Cristandade. No que tange às relações religião-poder, particularmente
no tocante à formação da esfera pública, Ângela R. Paiva apresentou uma inte-
ressante descrição dos efeitos do padroado em terras brasileiras, estruturado
em uma dualidade de dependência (à corte) versus autonomia (subordinação
direta ao Vaticano).
Quanto ao primeiro pólo:
“Nada caracteriza melhor os graus de dependência e centralização da
esfera religiosa brasileira do que o regime do padroado. O padroado,
implantado aqui desde os primeiros séculos da colonização do Brasil
no espírito da Cristandade, vai perdurar até a Proclamação da Repú-
blica. Num primeiro momento, seguindo a tradição católica do padro-
ado em outras regiões do planeta, foi um regime dos mais convenien-
tes para Roma, pois garantia a evangelização das terras descobertas e
a certeza de que estas terras seriam católicas. Apesar de a Santa Sé ter
de ceder parte de seu poder centralizador para o monarca de Portugal,
estava assegurada a propagação do catolicismo em território tão amplo
e de difícil evangelização” (PAIVA, 2003, p. 61s.).
Um dos graves problemas que essa prática política trouxe ao Brasil foi o estabe-
lecimento de um clero secular (padres paroquianos) definido primariamente não
pela vocação religiosa, mas pela subordinação aos interesses da corte, fazendo
com que a atuação sacerdotal baseada na vocação praticamente se restringisse
ao clero religioso (frades e freiras), não diretamente subordinado ao Vaticano,
mas à direção das respectivas Ordens. Um clero submisso ao governo não pos-
suía autoridade moral para o exercício de sua função.
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igrejas cristãs;
2. a mentalidade mágica, ou seja, a expectativa de que os problemas do
cotidiano sejam resolvidos por interferência direta da divindade, mar-
cada também por um dualismo epistemológico no qual algumas esferas
da vida são reservadas ao saber científico, enquanto outras permanecem
monopólio das crenças religiosas;
3. o distanciamento da esfera pública, também praticado pela maioria das
igrejas protestantes, de modo que a atuação sócio-política de cristãos é,
predominantemente, marcada pelo assistencialismo e pelo corporativismo
– reforçando-se, assim, o messianismo cultural e político. E, acrescento,
esses traços acabam por articular um forte senso de destino – uma resig-
nação fatalista diante da realidade.
Com essas informações e reflexões, faça você a releitura deste texto, direcionan-
do-a a um público cristão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
lidade e justiça. Isaías, olhando a vida em seu redor percebe que a aliança está
rompida. Os governantes de Judá não praticam a justiça, e a vontade de YHWH
é abandonada.
Esse tema da corrupção e da injustiça é importante até os dias de hoje! Não se
trata de qual ideologia ou partido seguimos, mas, sim, de conhecer e de praticar
a justiça na vida social e política. Não devemos usar o texto bíblico para favore-
cer este ou aquele partido, esta ou aquela ideologia contemporânea. Entretanto,
somos convidados por Deus a usar a Bíblia para nos ensinar a praticar a justiça
em nossas vidas públicas.
Esse é um desafio permanente para a vida cristã. Não podemos jamais per-
der de vista que seguir a Jesus não é apenas frequentar igrejas ou cantar louvores,
mas se trata de viver como Jesus viveu, em todas as dimensões da vida, inclusiva
no campo da política e da sociedade.
Textos como esse de Isaías podem nos servir de guia para o estudo, a reflexão
e a prática na vida cotidiana. Veremos, na próxima Unidade, um texto de Jeremias
que, aparentemente, não tem nada a ver com a vida pública. Aparentemente!
Pois, na prática, tem muito a ver com a vida em sociedade e política. Esse tema
era fundamental na literatura profética do Antigo Testamento. vale a pena estu-
dá-lo com carinho e dedicação.
Bom trabalho, e ânimo para continuar os estudos!
Considerações Finais
152
3. As razões para delimitar nossa perícope são: em relação ao texto anterior: mu-
danças de _____________, vocabulário e temática (Sodoma e Gomorra – sím-
bolos para Jerusalém – ____________ litúrgico e temática da denúncia contra
o culto e o sacerdócio); em relação ao texto posterior, especialmente mudança
de personagens e vocabulário (inclusive temática), embora o foco ainda recaia
sobre ___________. Nos v. 27ss. o profeta fala em Sião, destacando, como nos
vv.10-20 a dimensão cúltica da cidade, enquanto os vv. 21-26 destacam a dimen-
são política.
A ordem correta das palavras para suprir as lacunas é:
a. vocabulário, personagens, Jerusalém.
b. Jerusalém, personagens, vocabulário.
c. personagens, vocabulário, Jerusalém.
d. vocabulário, Jerusalém, personagens.
e. personagens, Jerusalém, vocabulário.
153
“1. Amos (ca. 760 ou 750 a.C.) Já Natan tinha repreendido severamente a Davi por causa
do seu adultério e conjugicídio (2 Sm 12,1-15), Elias tinha atacado de (1) As notas a seguir
representam um resumo, em parte atualizado, de dois trabalhos: A evolução econômi-
co-social em Israel e a pregação dos profetas e A mensagem social dos profetas pós-ex-
flicos. O primeiro trabalho foi apresentado na XII Semana Bíblica Nacional em julho de
1977, em São Leopoldo, tendo sido publicado em Rev. Cult Bíbl 20, nova fase vol. 1,1977,
309-351, e no volume coletivo Os direitos humanos na BÍblia-I, Edições Loyola, São Pau-
lo, 1978, 15-57. O segundo trabalho foi apresentado na XIII Semana Bíblica Nacional, em
julho de 1979, em Vitória, ES; será publicado em Rev Cult BIbl, n<’4 (ou 12) de 1979. 248
rijo ao rei Acabe pela usurpação criminosa da vinha de Nabote (1 Rs 21). Menos salientes
são as intervenções de Elíseu a favor de duas viúvas (2 Rs 4,1-7 8,1-6); nada ouvimos que
ele tivesse protestado contra as horrorosas hecatombes do novel rei Jeu. Mas é com os
assim chamados profetas escritores no séc. 8’ a.C. que a mensagem social toma vulto e
vigor. Amos, durante sua breve atuação no reino do Norte, denuncia vigorosamente a
opressão e exploração dos pobres endividados (2,6-8 8,6 5,1 Ia), a violência que reina
em Samaria (3,9-12), os banquetes frívolos das madames de Samaria e as construções
aparatosas (4,1-3 cf.2,8b 6,6; 5,11b 3,10b.11b.15 6,8-11). O profeta verbera igualmente
o luxo desenfreado e escandaloso dos homens notáveis de Samaria e a ganância e as
fraudes dos negociantes (6,3-6.7 3,12; 8,4-6), denunciando o uso de balanças falsas (8,5c;
também Os 12,8 Miq 6,11 Ez 45,10 Cf. Dt 25,13 etc). Mas para Amos o cúmulo dos males
sociais é a corrupção da justiça nos tribunais (5,7-15.24): os pobres não têm acesso à
justiça (também 2,7), juízes e testemunhas aceitam ou reclamam subornos, o direito e a
justiça são convertidas em losna e veneno (também 6,12), quando deveriam ser, como a
água, um elemento benfazejo e fecundante do organismo social (5,24).
2. Oséias (ca. 750-725 a.C.) Ao contrário do seu contemporâneo Amós, o profeta Oséias
apresenta uma mensagem social menos pronunciada. Ele acusa os filhos de Israel de
que “falta a fidelidade e a solidariedade (ou espírito comunitário), falta reconhecimento
de Deus no país. Amaldiçoar, enganar, cometer assassinatos e furtos (ou seqüestres?),
cometer adultérios estão na ordem do dia, homicídio sucede a homicídio” (4,1 b-2 Cf.
7,1). Estas acusações lembram o decálogo. Adiante o profeta fala de palavras (vazias?),
perjúrios e alianças que fazem brotar o direito como veneno (10,4 cf.Am 6,12); isto talvez
se refira às tramóias e conchavos para derrubar e eliminar os reis (Cf. 5,11 -13 7,3-7 8,4.7-
10 10,13-15 13,10-11; 2 Rs 15,10-30).
3. Isaías (740-700 a.C.) Este aristocrata de Jerusalém, contemporâneo de Oséias e Mi-
quéias, tem mensagem social ampla e vigorosa, repetindo em parte no Sul o que Amós
tinha denunciado no Norte. Ele verbera a exploração dos fracos e pobres (1,17a.21 3,l4b-
15), os abusos revoltantes dos tribunais por subornos (1,23b 5,7.20.23-24a 29,21 se ge-
nuíno , parcialidade (3,9) e leis injustas (10,1-2), o luxo e os banquetes escandalosos
(5,11-12.22 22,12-14.15-19: contra Sobna 28,7-13). Mas também aparecem abusos no-
vos: a especulação imobi- 249 liaria e os latifúndios (5,8-10) e a exploração das viúvas e
órfãos (1,17.23 10,2b cf.9,16). Nesse contexto convém mencionar também a sátira mor-
daz contra as “filhas orgulhosas de Síão” e suas modas (3,16-24).
155
4. Miquéias Era contemporâneo um pouco mais novo de Isaías e o seu modesto livro de
7 cc. contém pregação social muito ampla e por vezes vazada em termos violentos. Ele
flagela a exploração desapiedada dos fracos, comparando os governantes e responsá-
veis com verdadeiros canibais ou tubarões (3,1-4): é um dos trechos mais violentos de
todos os profetas. Além disso, ataca a ganância insaciável que se manifesta na aquisição
de terras e casas (2,1-2.9; ver Is 5,8-10) e retenção ilegal do penhor (2,10b; cf. o manto
de 2,8). Por ganância os juízes e magistrados administram a justiça por subornos (3,11a
7,3b; Am 5,12 Is 1,23), os funcionários exigem propinas (7,3), os profetas proferem orácu-
los pagos (3,5-7.11c) e os sacerdotes dão as diretivas por dinheiro (3,11b). Não se recua
mesmo diante do derramamento de sangue (7,2a). As classes dirigentes da capital são
incriminadas de construírem a Sião com sangue e a Jerusalém com injustiça (3,9-10), ou
explorando os operários até a exaustão ou apoderando-se dos terrenos pela violência,
como só o faria um déspota estrangeiro (Hab 2,12). Apesar de acusações tão violentas o
profeta não incita as vítimas exploradas à violência ou a fazerem justiça por suas mãos:
isto cabe a Deus (cf. 5,1 ss 2,5). Finalmente Miquéias chama atenção à falsidade e deso-
nestidade que reinam na vida comunitária (6,10-12 7,2.5); uma vez mais se mencionam
medidas e pesos adulterados (6,10a. 11 Os 12,8-9 Ez 45,10). Outro mal muito sério é a
anarquia familiar (7,6).”
Fonte: J. B. Kipper ([2017], on-line)4.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Rede de Intrigas
Ano: 1976
Sinopse: apresentador de noticiário recebe a notícia de que está demitido em
razão dos seus baixos índices de audiência. Um dia, com o programa no ar,
comunica a sua saída da emissora e avisa que se matará na próxima semana,
quando o programa estiver no ar. É imediatamente afastado, mas o público pede
a sua volta e como a rede estava com problemas de audiência resolve lançá-lo.
A partir de então ele passa a encarnar o profeta louco, mas mesmo tendo um
comportamento insano a recepção do público é altamente positiva. No entanto,
as pessoas responsáveis pela sua ascensão agora querem detê-lo.
Um ótimo artigo para aderir aos seus conhecimentos resumindo a história da profecia no antigo Israel.
Web: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/downloads/2010/12/
Nt2Brevehistoria.pdf>
157
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIA ON-LINE
1
Em: <http://biblia.com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/isaias/>. Acesso em:
5 mai. 2017.
2
Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em 5 mai. 2017.
Em: <https://portal.metodista.br/fateo/noticias/a-profecia-durante-a-monarquia>.
3
1. Verdadeira.
2. C.
3. C.
4. B.
5. Falsa.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
ANÁLISE EXEGÉTICA DE
IV
UNIDADE
JEREMIAS 31:27-34
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
163
INTRODUÇÃO
mundo da Bíblia, tanto mais você será capaz de reconstruir os contextos bíblicos.
Nosso texto é o de Jeremias 31:27-34. Parte deste texto é bem conhecida, pois
é citada várias vezes em o Novo Testamento – trata-se da seção que fala sobre a
nova aliança (versos 31-34). Nosso hábito é o de ler esses versos isoladamente,
como se fossem uma perícope. Entretanto, você verá que é importante não só ler
estes versos junto com os versos 27-30, mas também que é importante ler esta
perícope em diálogo com os capítulos 30-31 de Jeremias e, em última instân-
cia, ler à luz de todo o livro de Jeremias. Mais uma vez quero insistir: o hábito
de ler perícopes não pode nos deixar de estudar os textos ‘dentro’ do livro do
qual eles fazem parte!
O estudo de Jeremias 31:27-34 nos traz não só temáticas teológicas impor-
tantes, mas também nos permite refletir mais intensamente sobre as dimensões
sociocultural e psicossocial dos textos bíblicos. Costumeiramente focamos na
dimensão teológica e na dimensão missional, mas a plena interpretação de tex-
tos bíblicos demanda que prestemos igual atenção a estas duas dimensões – e
que as estudemos a partir do texto e não a partir da bibliografia. Em certo sen-
tido, estas duas dimensões equivalem ao que chamamos de contexto de um texto
bíblico – pois ao analisá-las nós estamos, de fato, interpretando como o texto vê
a sua realidade e como devemos viver a nossa realidade.
Introdução
164 UNIDADE IV
28
ָאדם ו ְֶז ַ֥רע ּבְהֵ ָמֽה׃
֖ ָ ְהּודה ֶז ַ֥רע ָ ֔ ת־ּבית י ֣ ֵ ֶת־ּבית י ִׂשְ ָראֵ ֙ל ו ְא ֤ ֵ ֶהּנ֛ה י ִ ָ֥מים ּב ִ ָ֖אים נְאֻ ם־י ְה ָו֑ה וְז ַָרעְּתִ֗ י א ֵ
ֵיהם ִלבְנ֥ ֹות ֛ ֶ ו ְהָ ֞י ָה ּכַאֲ ֶ ׁ֧שר ׁשָ ַ ֣קדְ ּתִ י עֲ לֵיהֶ֗ ם ִלנ ְ֧תֹוׁש ו ְ ִלנ ְ֛תֹוץ וְלַהֲ ֖ר ֹס ּולְהַ אֲ ִ ֣ביד ּולְהָ ֵ ֑רעַ ֵ ּ֣כן אֶ ׁשְ ֧ק ֹד עֲ ל
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ִ ּ֛כי30 ָאבֹות ָ ֣אכְלּו ֑ב ֹסֶ ר ו ְׁשִ ֵּנ֥י ב ִָנ֖ים ּתִ קְ ֶהֽינָה׃ ֖ ַּבּי ִ ָ֣מים הָ הֵ֔ ם ֹלא־י ֹאמְ ֣רּו ֔עֹוד29 ו ְ ִלנ ְ֖טֹועַ נְאֻ ם־י ְה ָו ֽה׃
הִ ֵּנ֛ה י ִ ָ֥מים ּב ִ ָ֖אים נְאֻם־י ְה ָו֑ה וְכ ַָרּתִ֗ י31 ָֽאדם הָ א ֵ ֹ֥כל הַ ּ֖ב ֹסֶ ר ּתִ קְ ֶ ֥הינָה ׁשִ ּנָ ֽיו׃ ס֛ ָ ָל־ה
ָ אִם־איׁש ּבַעֲֹונ֖ ֹו י ָ֑מּות ּכ ִ֥
ִיקי ֣ ִ אֲׁשר ָּכ ַ֙רּתִ ֙י אֶ ת־אֲבֹותָ֔ ם ּבְיֹו ֙ם הֶ חֱ ז֤ ֶ ֹ֣לא ַכּב ְִ֗רית32 ְהּודה ּב ִ ְ֥רית חֲ דָ ָׁשֽה׃ ֖ ָ ת־ּבית י ֥ ֵ ֶת־ּבית י ִׂשְ ָר ֵ ֛אל ו ְא
֧ ֵ ֶא
ִ ּ֣כי ֣ז ֹאת33 ִיאם מֵ ֶ ֖א ֶרץ מִ צ ָ ְ֑רי ִם אֲׁשֶ ר־הֵ֜ ּמָ ה הֵ ֵ ֣פרּו אֶ ת־ּב ְִריתִ֗ י ו ְָאנ ִ ֹ֛כי ּב ַ ָ֥עלְּתִ י ָ ֖בם נְאֻם־י ְה ָו ֽה׃ ֖ ָ ְבי ֔ ָָדם לְהֹוצ
ת אֶ ת־ ֵּב֙ית י ִׂשְ ָראֵ֜ ל ַאחֲ ֵר֙י הַ ּי ִ ָ֤מים הָ הֵ ֙ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה נ ַ ָ֤תּתִ י אֶ ת־ּתֽ ָֹורתִ ֙י ּבְקִ ְר ָּ֔בם ֩ ֹ הַ ּב ְִ֡רית אֲ ֶ ׁ֣שר אֶ כְר
ת־רעֵ֜ הּו ֵ ֶ ו ְֹ֧לא יְלַּמְ ֣דּו ֗עֹוד ִ ֣איׁש א34 יּו־לי ל ְָעֽם׃ ֥ ִ ְו ְעַ ל־ל ָ ִּ֖בם אֶ כְּתֲ ֶ ֑בּנָה ו ְהָ ִי֤יתִ י לָהֶ ֙ם ֵלֽאֹלהִ֔ ים ו ֵ ְ֖הּמָ ה ִי ֽה
ֵ֙אמ ֹר ּדְ ֖עּו אֶת־י ְה ָו֑ה ִּכֽי־כּו ָּל ֩ם י ֵדְ עּ֙ו אֹותִ֜ י לְמִ קְ טַ ָּנ֤ם ו ְעַד־ּגְדֹו ָל ֙ם נְאֻם־י ְהו ָ֔ה ִ ּ֤כי אֶסְ לַח ֔ ו ִ ְ֤איׁש אֶת־ָאחִ י ֙ו ל
אתם ֹ֥לא אֶ ְזּכָר־עֽ ֹוד׃ ס ֖ ָ ָו ְעַ ד־ּגְדֹו ָל ֙ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה ִ ּ֤כי אֶ סְ לַח֙ ַלֽעֲ ֹו ָ֔נם ּולְחַ ּט
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, on-line)1.
Tradução
27
eis que vêm dias, oráculo de YHWH, em que semearei a casa de Israel e a casa
de Judá com a semente de homens e de animais. 28 Como velei sobre eles, para
arrancar, para derribar, para subverter, para destruir e para afligir, assim vela-
rei sobre eles para edificar e para plantar, oráculo de YHWH. 29 Naqueles dias já
não dirão: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram. 30
Cada um, porém, será morto pela sua iniquidade; de toda pessoa que comer uvas
verdes os dentes se embotarão. 31 Eis aí vêm dias, oráculo de YHWH, em que fir-
marei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. 32 Não conforme
a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar
da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os
haver desposado, oráculo de YHWH. 33 Porque esta é a aliança que firmarei com
a casa de Israel, depois daqueles dias, oráculo de YHWH: Na mente lhes impri-
mirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus,
e eles serão o meu povo. 34 Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem
cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece a YHWH, porque todos me conhe-
cerão, desde o menor até ao maior deles, oráculo de YHWH. Pois perdoarei as
suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei. (Traduzido pelo autor)
Questão Preliminar
Este texto é um exemplo perfeito para discutirmos alguns aspectos mais técnicos
da composição dos livros proféticos do Antigo Testamento. Já vimos, no estudo
de Isaías 1:21-28, que os livros dos profetas são coletâneas de pregações de um
profeta e seus discípulos e esse processo de colecionar pregações pode durar até
várias gerações. Sabemos que a noção de autor no mundo antigo era diferente da
nossa – para eles, autor pode ser a pessoa que inspirou um escrito, pode ser a pes-
soa que iniciou uma tradição discursiva, pode ser a pessoa que escreve partes de
um livro, ou mesmo a pessoa que escreve todo um livro. No caso dos livros profé-
ticos, há vários indícios de que, com raras exceções, o livro que recebe o nome de
um profeta corresponde a uma obra em que o autor é o iniciador de uma tradição
teológica ou discursiva. E assim é no caso de Jeremias. Ademais, o livro de Jeremias
também nos ajuda a conhecer outro fator da realidade da época: poucas pessoas
sabiam efetivamente ler e escrever. O próprio Jeremias não escrevia suas pregações
– o livro nos informa que um escriba fazia esse trabalho para ele, cujo nome era
Baruque. Aprendemos, também, no livro de Jeremias, que a obra de um profeta
poderia ser contestada pelas autoridades (do palácio e do Templo) e que o pró-
prio profeta poderia ser preso e seus escritos queimados ou banidos de circulação.
Outro aspecto peculiar desse livro que nos ajuda a aprender sobre questões
de escrita e editoração dos livros bíblicos é a diferença entre o Texto Massorético
(TM) a Septuaginta (LXX).
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Bem: o texto de Jeremias na LXX é cerca de 1/8 mais curto do que o texto do TM
(e.g.: faltam, na LXX, 33:14-26; 39:4-13; 51:44b-49ª; 52:27b-30 – além de frases
e epítetos de YHWH), e a ordem dos capítulos também é diferente – na LXX
a ordem é capítulos 1-25 + 46-51 = 26-45 + 52. Também ressalta à vista que a
composição do livro é bem complexa, aparentemente sendo o resultado do ajun-
tamento de pequenas coleções de pregações de Jeremias. Os capítulos 30-31 do
TM são os capítulos 37-38 da LXX.
Por fim, o livro de Jeremias também nos ajuda a perceber um aspecto impor-
tante da sociedade judaica do período exílico em diante: a nova importância dada
ao texto escrito. Enquanto antes da conquista babilônica a pregação dos profe-
tas era principalmente oral, a partir de Jeremias e Ezequiel a pregação profética
já incorporava a escrita como meio de comunicação:
“[...] Jeremias, que viveu pouco menos de um século depois [de Isaías],
não fala em discípulos, mas em um secretário ou escriba, Baruque (Jr
36:4.32). Jeremias deixou de ser um personagem importante para dis-
por de um secretário. De fato, Jr 36 é um capítulo significativo, porque
o elemento mais importante que aparece nele não é a pessoa do profeta,
mas um ‘rolo’. Jeremias dita um ‘rolo’ a seu secretário Baruque (Jr 36:1-
4) que o lê no Templo diante do povo e de alguns notáveis (36:5-10). Ele
o lê, de novo, perante os ‘príncipes’, ou seja – com toda a probabilidade
– diante dos funcionários da corte (Jr 36:11-20). Os príncipes, a seguir,
leem o rolo para o rei Jeoaquim, que manda queimar o livro e tenta,
sem sucesso, prender o profeta (36:21-26). Por ordem de Deus Jeremias
dita de novo a Baruque os oráculos queimados pelo rei, aos quais acres-
centa uma nova série (36:27-32)” (SKA, 2012, p. 84).
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esses capítulos foram inseridos nesse lugar no livro de Jeremias? Aparentemente
foram colocados aqui para que a mensagem de esperança não fosse desligada
da pregação de juízo e os ouvintes de Jeremias deixassem de perceber por que o
exílio e a destruição de Judá (o capítulo 29 é carta para os exilados e o capítulo
32 é mensagem para o rei e os líderes em Jerusalém, ambos apontando para o
juízo e para a esperança).
Assim, você já deve ter percebido os argumentos para a delimitação da perí-
cope: (a) o capítulo 32 inicia claramente uma nova temática, com novas pessoas,
novos lugares e vocabulário (o que não anula o fato de que os caps. 32-33 têm
uma importante ligação com 30-31 pois ambos também tematizam esperança e
perdão), (b) os versos anteriores a 31:27 não apresentam a palavra ‘dias’, assim
como os versos 35-40 do capítulo 31 tratam de outro tempo e espaço, bem como
desparecem as casas de Israel e de Judá e entra em cena ‘a cidade’ (apesar do uso
de “ ”הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מיםem 31:38, que é mais indicador do final do Livrinho do que de
unidade do trecho 31:27-40). A segmentação da perícope é bem clara: dois seg-
mentos iniciados ‘( ’ּב ִ ָ֖אים נְאֻ ם־י ְה ָו֑ה *ו ְ הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מיםo asterisco antes do waw lembra
que o verbo que acompanha o waw é diferente nos dois textos): 27-30 e 31-34 –
ambos também com duas partes: 27-28+29-30; 31-33+34 – sendo que no início
de cada segunda parte também temos uma expressão temporal: ‘naqueles dias”
(v. 29) ‘depois daqueles dias’ (v. 33). Ambos os segmentos também tem como
destinatários “casa de Israel e casa de Judá” e ambos são unidos conceitualmente
pelo par culpa-perdão que passa a ser individualizado (não mais se fará a culpa-
bilidade ou o perdão a partir da coletividade, mas do indivíduo como membro
da coletividade).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
gico presente nas descrições padrão da história ocidental.
O questionamento da descrição-padrão da Modernidade não é inédito.
Podemos perceber já em Max Weber, sem a nomenclatura aqui adotada, uma
perspectiva de longa duração mediante a qual ele descreve o processo de desen-
cantamento do mundo como tendo sido iniciado entre os profetas de Israel:
“[...] aquele grande processo histórico-religioso de desencantamento
do mundo, que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em
conjunto com o pensamento científico helenístico, repudiava como
superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação,
encontrou aqui sua conclusão” (WEBER, 2004, p. 96).
Daí, o uso provocativo do termo para me referir a esse período da história humana.
Apresentarei uma síntese conceitual do que chamo de modernidade judaico-
-israelita, ou seja, o novo lugar do indivíduo nas relações sociais e com o divino
(baseada principalmente em Dt 7,9-10; 24,16; Jr 31,27-37 e Ez 18,1ss). O obje-
tivo é mostrar como uma nova – moderna – descrição da relação da pessoa com
Deus e, consequentemente, com outras pessoas, está presente nesses textos, tes-
temunhando uma significativa transformação do modo tradicional da descrição
dessas mesmas relações. Ao usar o termo transformação, porém, não estou afir-
mando que ocorreu eliminando o modo tradicional. À luz da história posterior
de Judá, é mais adequado afirmar que esta transformação é mais teórica do que
prática. Semelhantemente, não postulo nenhum tipo de unidade teológica entre
esses diferentes escritos e seus respectivos projetos identitários.
Antes de apresentar minha descrição, vejamos avaliações similares na pes-
quisa recente. A avaliação genérica de Gerstenberger pode ser invocada aqui,
dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até a terceira e a quarta geração” (Êx
34,6-7); “YHWH é lento para a cólera e cheio de amor, tolera a falta e a trans-
gressão, mas não deixa ninguém impune, ele que castiga a falta dos pais nos filhos
até a terceira e quarta geração” (Nm 14,18); “Não te prostrarás diante desses deu-
ses e não os servirás, porque eu, YHWH teu Deus, sou um Deus ciumento, que
puno a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e a quarta geração dos que me
odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para com aque-
les que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20,5-6 = Dt 5,9-10).
Estas formulações tradicionais destacam o caráter transgeracional da punição
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até a terceira e a quarta geração, que demarcam claramente o padrão tradicional
da família extensa rural em que até quatro gerações viviam juntamente nas ter-
ras do pai – padrão que será quebrado pelo crescente processo de urbanização e
reterritorialização rural a partir da dominação assíria sobre Judá, bem como pela
nova condição dos judaítas após a destruição de Jerusalém, que passam a se per-
guntar por que estão pagando pelos erros de seus pais/antepassados. Vejamos,
então, como se dá a formulação moderna dessas relações.
Encontramos em forma sintética as bases da Modernidade judaico-israelita
em quatro textos inter-relacionados: “Saberás, portanto, que YHWH teu Deus
é o único Deus, o Deus fiel, que mantém a aliança e o amor por mil gerações em
favor daqueles que o amam e observam os seus mandamentos; mas também é o
que retribui pessoalmente (usando uma expressão hebraica que significa ‘diante
da face de’) aos que o odeiam: faz com que pereça sem demora aquele que o
odeia, retribuindo-lhe pessoalmente” (Dt 7,9-10); “Os pais não serão mortos
em lugar dos filhos, nem os filhos em lugar dos pais. Cada um será executado
por seu próprio crime” (Dt 24,16); “Nesses dias já não se dirá: ‘os pais comeram
uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram’. Mas cada um morrerá por sua
própria falta. Cada pessoa que tenha comido uvas verdes terá os dentes embo-
tados” (Jr 31,29-30); e “A palavra de YHWH me foi dirigida nestes termos: ‘que
vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘os pais comeram uvas
verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados’?’. Por minha vida, oráculo do
Senhor YHWH, não repetireis jamais este provérbio em Israel. Todas as pessoas
me pertencem, tanto a do pai, como a do filho. Pois bem, a pessoa que pecar,
esse morrerá” (Ez 18,1-4).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Essa mudança de modo de ser, enfim, foi fundamental para que a guarda
do sábado, a prática da circuncisão e as restrições alimentares transcendessem
os diversos projetos identitários em disputa e se firmassem, progressivamente,
como as marcas mais explícitas da diferenciação entre judeus-israelitas e seus
outros. Estes três rituais culturais inscrevem no próprio corpo a identidade em
construção e tornam-na independente do território – em qualquer lugar podem
ser praticados, independem da presença de um Templo e de um sacerdócio para
legitimá-los. Em meio às incertezas do período, em meio à reterritorialização
dispersa do povo, em meio às disputas internas por hegemonia, em meio à impo-
sição de um novo idioma, o Israel de YHWH precisava de portos seguros para a
reconstrução de sua identidade. Institucionalmente, o Templo e a Torá serão as
âncoras da nova identidade; pessoalmente, o sábado, a circuncisão, a alimentação.
Vemos, então, nesses textos, uma espécie de tríade, como a descrita por
Levinson, acima, que “rejeita o determinismo, afirma a responsabilidade indivi-
dual pela própria conduta no presente e exalta a importância da escolha moral”
(LEVINSON, 2008, p. 67), embora mereça uma formulação teoricamente mais
adequada. Não é tanto o determinismo que é rejeitado, mas a supremacia do
senhor (o pai das bet avot e seus equivalentes nas instâncias sociais acima da
família) e a consequente subordinação religiosa e legal dos membros da famí-
lia à sua autoridade – ou seja, questiona-se a ordem convencional hierárquica
das relações sociais e políticas. Não é tanto a escolha moral que se exalta, mas,
sim, a internalização da relação com YHWH, que questiona o papel tradicional
dos intermediários religiosos entre Deus e seu povo, especialmente o monopó-
lio existencial-religioso da sociedade convencional pré-axial. Afirma-se, sim, a
Relações Intratextuais
Livrinho da consolação
Como mencionado anteriormente, os capítulos 30-31 de Jeremias foram nomea-
dos como Livrinho (ou Livro) da Consolação, em função da presença intensa da
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esperança e promessas de restauração (embora os caps. 32-33 também tematizem
a esperança, a estruturação literária e o vocabulário apontam para a ‘indepen-
dência’ desses dois capítulos 30-31). Após a introdução em 30:1-2, a ‘pregação’ de
Jeremias começa em 31:3 com uma expressão que retornará em 31:38 formando
a moldura do livro (você já sabe que essa expressão também aparece em outras
partes do Livrinho): “ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה ֠ ִּכי הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מים
֙ ”ּבָאִ י. O ‘oráculo de YHWH’ tem
como seu conteúdo básico a volta dos exilados (30:3-11) e a lembrança de que
esse exílio foi a justa punição para a infidelidade de Israel (30:12-24). Enquanto o
capítulo 30 foca os exilados, o capítulo 31 expande o foco para ‘todas as famílias
de Israel’ (31:1ss), promovendo um ‘ir-e-vir’ entre ‘todas as famílias’, os exilados
(31:8-22), as ‘cidades’ (31:23-26), as ‘casas de Israel e de Judá’ (31:27-34), todo o
Israel (31:35-37) e a cidade de Jerusalém (38-40).
A lógica teológica desses capítulos é clara: (a) YHWH é fiel ao seu compromisso
com Israel e perdoará seu pecado e restaurará sua sorte; (b) Israel pecou continu-
amente e foi infiel à aliança com YHWH; (c) Somente o próprio YHWH poderá
restaurar a sorte de seu povo e
Ele o fará mediante uma nova
aliança, assim como o fizera no
êxodo do Egito. Os três elementos
dessa lógica teológica podem ser
vistos espalhados em todo o livro
de Jeremias – e na seção seguinte
indicarei os principais textos que
manifestam essa presença.
é especialmente vinculado a este por sua lógica: (a) Os ‘filhos de Israel e de Judá’
foram costumeiramente infiéis a YHWH; (b) Tendo esgotada a sua longanimidade,
YHWH derrama sobre esses ‘filhos’ o juízo do fim do Estado e da deportação; (c)
YHWH, porém, é fiel à sua aliança com os ‘filhos’ e a renovará (novo coração e dura-
ção eterna v. 38-40); (d) como expressão concreta da renovação da aliança YHWH
trará de volta os exilados e restaurará a sorte de todo o Israel (41-44).
A inscrição da torah nos corações e o perdão dos pecados estão em con-
traste com os duros oráculo de juízo nos capítulos 7-8 (especialmente 7:21-8:3
e 8:4-13) que denunciam reis, governantes, profetas, sacerdotes e escribas como
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os principais responsáveis pela contínua infidelidade de Jerusalém (e Judá) a
YHWH. Em especial devemos destacar o contraste com 17:1 “O pecado de Judá
está escrito com um ponteiro de ferro e com diamante pontiagudo, gravado na
tábua do seu coração e nas pontas dos seus altares”.
e fazei-o ouvir em Judá, dizendo: 21 Ouvi agora isto, ó povo insensato e sem cora-
ção (discernimento), que tendes olhos e não vedes, tendes ouvidos e não ouvis. 22
Não temereis a mim? – oráculo de YHWH; não temereis diante de mim, que pus a
areia para limite do mar, limite perpétuo, que ele não ultrapassará? Ainda que se
levantem as suas ondas, não prevalecerão; ainda que estrondem, não o ultrapassa-
rão. 23 Mas este povo é de coração rebelde e desobediente; virou as costas e partiu. 24
Não dizem a seus próprios corações: Temamos agora YHWH, nosso Deus, que nos
dá a seu tempo a chuva, a primeira e a última, que nos conserva as semanas deter-
minadas da sega. 25 As vossas iniquidades desviam estas coisas, e os vossos pecados
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afastam de vós o bem” (Jr 5:20-25 Tradução Própria). Notem que a palavra ‘coração’
ocorre três vezes nesta seção da perícope e se refere à própria essência da pessoa –
diríamos, em linguagem atual, sua consciência, sua identidade pessoal. Em outros
lugares Jeremias afirma a constante infidelidade a YHWH: 2:21-22; 3:10 e 13:23.
Um texto, em especial, ressalta essas relações intratextuais, pois fala da escrita
no coração em pleno contraste com 31:31ss – “O pecado de Judá está escrito
com um ponteiro de ferro e com diamante pontiagudo, gravado na tábua do
seu coração e nas pontas dos seus altares” (17:1). O verbo ‘gravar’ (luah) ocorre
pouco mais de 40 vezes no AT e em 29 delas se refere às tábuas da lei de Moisés
e a ‘pena’ que escreve a lei e a grava no coração é a mesma de Jr 8:8. O contraste,
então, é bem elaborado: no coração do povo está gravada a infidelidade – mesmo
quando o povo tem a Lei de Moisés à sua disposição, pois os responsáveis por seu
ensino a falsificam – por isso, somente YHWH poderá salvar o seu povo, escre-
vendo ele mesmo a sua torah nas tábuas de seu coração e não mais em tábuas de
pedra. (Note, como veremos nas relações interdiscursivas, que esta discussão de
Jeremias sobre o coração encontra eco em Ezequiel 36.)
É também intensa a relação polêmica da torah escrita no coração e do perdão
de pecados sem mediação com a infidelidade e falta de veracidade de profetas,
sacerdotes e escribas – ou seja, dos ‘profissionais institucionais’ da religião na
época de Jeremias: 2:8; 6:13; 8:10; 18:18; 23:11,33,34 (etc.). Igualmente, se con-
sultarmos uma concordância bíblica, buscando a palavra ‘mal’, veremos que
ela ocorre abundantemente em Jeremias e expressa a infidelidade a YHWH
bem como o juízo que sobrevirá ao povo infiel, liderado por corruptos e infi-
éis perante YHWH.
Enfim, a expressão ‘desde o maior até o menor deles’ ocorre várias vezes em
Jeremias, também ligada a contextos que vinculam o povo aos líderes religio-
sos: 6:13; 8:10; 42:1,8; 44:12. A expressão ocorre nove vezes em todo o Antigo
Testamento, das quais, seis aqui em Jeremias (as outras três são 1Sm 5:9; 30:2 e
2Rs 25:26).
Relações Interdiscursivas
A linguagem da aliança como ‘casamento’ retoma a terminologia de Oséias, que
deve ter servido como uma das fontes de inspiração da pregação de Jeremias –
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principalmente por sua crítica ao sacerdócio como infiel à aliança de YHWH
e incapaz de ensinar corretamente a Torá ao povo de Deus (ver Oséias 1-4). A
seção sobre a não necessidade de profissionais religiosos para o ensino tam-
bém dialoga com Dt 6,4ss (o Shemá Israel), o qual os próprios pais ensinam os
filhos em casa e não os sacerdotes no templo. Também encontramos ecos de
Jeremias em Dt 30:1ss sobre o coração – mas no tocante ao Deuteronômio, as
relações não são plenamente contratuais: há concordância em termos gerais,
mas discordância nos termos específicos – para o Deuteronômio e para a tradi-
ção deuteronomista os escribas e os levitas são mediadores fundamentais para a
saúde religiosa de Israel. A semelhança com Ezequiel 18 (responsabilidade indi-
vidual) e 36 (nova aliança = novo coração) indica a circulação, em Judá na época
do final da monarquia e início do exílio, de um discurso crítico do monopólio da
instrução religiosa pelo sacerdócio. Como o texto de Jeremias é extremamente
sintético em comparação ao de Ezequiel, pode-se defender a hipótese de que a
pregação de Ezequiel sobre a nova aliança e sobre a responsabilidade individual
era conhecida por Jeremias e serviu de base para o seu texto. (Normalmente,
textos sintéticos são fruto de textos mais longos.) Em relação a Isaías 40-55 pode-
mos postular uma relação ‘diagonal’, ou seja, não há um intercâmbio direto entre
Jeremias e Isaías 40-55, mas ambos apresentam a restauração de Israel a partir
de uma nova ação de YHWH.
Esses discursos fazem parte do que chamei, na seção anterior, de a moder-
nidade judaíta. A nova forma de viver tem como pressuposto a culpabilidade
da geração da destruição – tema que circulava polemicamente no período de
Jeremias, certamente não aceito pela liderança sacerdotal e política de Judá – de
Pessoas:
O texto trata das relações entre YHWH, a casa de Israel e a casa de Judá: YHWH
anuncia que virá um novo tempo para a casa de Israel e para a casa de Judá, um
tempo em que a desgraça atual não mais será sentida. Um tempo em que Israel
e Judá serão novamente um só povo, uma só nação, mas não mais organizada
segundo os padrões que vigoraram até os dias de Jeremias.
A perícope apresenta a fala de YHWH explicando porque o tempo atual é um
tempo de juízo e desgraça: YHWH havia feito uma aliança com os ‘pais’ de Israel
e Judá, mas essa aliança foi rompida pelos líderes de Israel e Judá. Que aliança
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fora essa? A aliança libertadora no Egito. Como ela foi rompida? (a) Mediante o
exercício do poder pelos reis de Israel e de Judá, que negaram a justiça que seria
o efeito da libertação – em termos teológicos: quebraram a aliança com YHWH
ao oprimir o povo; (b) Mediante o exercício do saber por um sacerdócio infiel
a YHWH, que mantinha o povo afastado da liberdade e da fidelidade a YHWH
e legitimava a dominação monárquica sobre a terra e a população de Judá; e (c)
mediante a noção de culpabilidade coletiva e não individual.
Finalmente, destaca a individualidade e a interiorização da relação entre
YHWH e seu povo – uma aliança em que a torá de YHWH estará ‘escrita’ no
interior de cada pessoa e uma nova vida estará igualmente disponível a cada pes-
soa dentro dessa aliança, sem a mediação dos profissionais religiosos.
Espaço:
Esta perícope não apresenta, explicitamente, termos relativos a lugares - a não ser
que consideremos “casa de Israel e casa de Judá” como termos espaciais - são melhor
compreendidos como designação de ‘pessoas’ e não de ‘espaços’. A espacialidade
é praticamente deixada ‘de lado’, o que indica o efeito de universalidade, ou seja: o
texto se apresenta como válido para qualquer lugar, para qualquer espaço em que
viva o ser humano. A única exceção é a expressão ‘terra do Egito’ (mesmo assim,
a expressão é uma forma padronizada para o que nós hoje chamaríamos de ‘o país
do Egito’), que traz a universalidade do texto para a concretude da história e geo-
grafia israelita. A ‘terra do Egito’, a qual os ‘pais’ foram libertos, representa todo e
qualquer espaço imperial – ou seja, qualquer espaço dominado por um rei conquis-
tador que expande seus territórios e sua população mediante a conquista militar.
Tempo:
Como vimos, a temporalidade da perícope é baseada nas expressões Dias vêm (2
vezes), naqueles dias, depois daqueles dias – que marcam os segmentos da perícope
e apontam para o futuro como o tempo da realização do que é dito na perícope e
formulam um contraste entre esse futuro e o passado de Judá e Israel (incluindo
o ‘presente’ dos ouvintes desta pregação). No primeiro segmento da perícope está
implícito o ‘passado imediato e remoto’ do povo de Judá e Israel (até os tempos
de Jeremias o ‘ditado’ continua em vigor). A única referência temporal ao pas-
sado distante é a do segundo segmento: “no dia em que os tomei pela mão, para
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A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO
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verbos em 1:10 e o verbo ‘vigiar’ retoma o mesmo verbo de 1:12. O exílio e a
dominação imperial representavam o pior castigo possível para um povo, pois
não só o tirava da sua terra, mas também reduzia drasticamente as suas chances
para uma vida saudável e próspera, na medida em que a tributação exigia dos
conquistados parcela significativa de sua produção e de sua energia de trabalho.
Esta inversão retoma elementos já presentes nas seções anteriores do livrinho:
30:10-11 sobre o retorno do cativeiro; 30:17-20 sobre o retorno do cativeiro e a
multiplicação da população; 31:3-5 sobre a volta e a plantação; 31:8-17 sobre o
retorno do cativeiro, a população crescente e a prosperidade agrícola.
O comentarista Leslie Allen sintetiza bem esta segunda inversão:
“[...] Yahweh promete uma abundância de população humana (cf. 3:16;
23:3; 30:19) e abundância de animais. A metáfora da semeadura é remi-
niscente da interpretação pós-juízo, positiva, de ‘Jezreel’ (Deus semeia)
em Os 2:22-23. Há uma lógica da reversão, visto que o desastre de 587
fora, anteriormente no livro, descrito como a punição de humanos e de
animais (Jr 7:20; 9:10; 21:6; cf. 32:43; 33:10)” (ALLEN, 2008, p. 354).
8
não emprestando com usura, e não recebendo mais de que emprestou, des-
viando a sua mão da desonestidade (më`äºwel), e fazendo verdadeira justiça
(mišPa† ´émet) entre homem e homem; 9 andando nos meus estatutos, e guar-
dando as minhas ordenanças, para proceder segundo a fidelidade (´émet); esse
é justo (caDDîq), certamente viverá, diz o Senhor Deus.
10-13 Segunda Geração 10 E se ele gerar um filho que se torne salteador, que
derrame sangue, que faça a seu irmão qualquer dessas coisas; 11 e que não
cumpra com nenhum desses deveres, porém coma sobre os montes, e con-
tamine a mulher de seu próximo, 12 oprima ao pobre e necessitado, pratique
roubos, não devolva o penhor, levante os seus olhos para os ídolos, cometa
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abominação, 13 empreste com usura, e receba mais do que emprestou; por-
ventura viverá ele? Não viverá! Todas estas abominações (Kol-haTTô`ëbôt),
ele as praticou; certamente morrerá; o seu sangue será sobre ele.
14-17 Terceira Geração 14 Eis que também, se este por sua vez gerar um filho
que veja todos os pecados (´et-Kol-Ha††ö´t) que seu pai fez, tema, e não
cometa coisas semelhantes, 15 não coma sobre os montes, nem levante os olhos
para os ídolos da casa de Israel, e não contamine a mulher de seu próximo,
16
nem oprima a ninguém, e não empreste sob penhores, nem roube, porém
reparta o seu pão com o faminto, e cubra ao nu com vestido; 17 que aparte
da iniqüidade a sua mão, que não receba usura nem mais do que empres-
tou, que observe as minhas ordenanças e ande nos meus estatutos; esse não
morrerá por causa da iniqüidade (Ba`áwön) de seu pai; certamente viverá.
18-19 Recapitulação da 2ª e 3ª Gerações 18 Quanto ao seu pai, porque prati-
cou extorsão, e roubou os bens do irmão, e fez o que não era bom (lö´-†ôb)
no meio de seu povo, eis que ele morrerá na sua iniqüidade (Ba`áwönô). 19
Contudo dizeis: Por que não levará o filho a iniquidade (Ba`áwön) do pai?
Ora, se o filho proceder com direito e justiça (mišPä† ûcüdäqâ), e guardar
todos os meus estatutos, e os cumprir, certamente viverá.
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Na discussão do contexto vimos como funcionava essa lógica patriarcal e como
no período de Jeremias essa lógica estava sendo contestada.
O primeiro argumento (5-19) retoma a lógica das gerações e relembra os textos
que falam da punição dos pais nos filhos até a terceira e quarta gerações. Ezequiel
mostra que não mais se poderá pensar assim e que a responsabilidade pelo pecado é
individual e intransferível. No verso 20 o critério é repetido e passamos ao segundo
argumento (21-29), não mais organizado por gerações, mas por tipos de pessoas (a
perversa e a justa), em que Ezequiel mostra que a lógica da responsabilidade indi-
vidual permanece e não admite transferência geracional – não só o filho não pode
ser punido por causa do pecado do pai, como o filho não pode ser inocentado
por causa da justiça do pai. Neste argumento se inclui também a possibilidade de
perversão do justo e de conversão do perverso. O capítulo conclui (30-32) com a
exortação de Ezequiel aos exilados na Babilônia para que se convertam.
Bem, Jeremias 31:29-30 é uma síntese deste capítulo de Ezequiel, com o foco
sobre a punição individual-pessoal. Implícita aqui está a questão da fidelidade de
YHWH e da fidelidade a YHWH. YHWH é fiel a si mesmo e a seu compromisso,
e seu compromisso é com cada pessoa, com cada membro de seu povo. Assim,
demanda fidelidade de cada membro do povo, ‘desde o maior até o menor deles’.
A lógica da responsabilidade individual, aqui, não é individualista, mas crítica da
moralidade convencional hierárquica do patriarcado judaico-israelita. Nessa lógica
do patriarcado, a elite político-econômica descrevia a si mesma como isenta de
punição, como uma elite privilegiada na relação com YHWH, não sujeita aos mes-
mos critérios morais do restante da população. YHWH, portanto, por meio dos
profetas, anuncia o fim dessa lógica e o início de uma nova lógica moral e social:
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um coração para que saibam que eu sou YHWH’ (definido de modo
mais específico em 32:39, provavelmente refletindo sobre Dt 30:1-14;
ver também Ez 11;19-20; 36:26-27). Este novo coração irá substituir
o ‘coração maligno’ tão característico da vida de Israel antes do exílio
(ver 13:10; 18:12; 23:17). Este será um novo ‘êxodo’ em termos dos te-
mas mais básicos, mas tão diferente em outros aspectos” (FRETHEIM,
2002, p. 443).
Interpretando o texto nessa direção, Leslie Allen oferece uma leitura mais
próximo do ponto central do texto:
“[...] a escrita na sede da vontade humana contrasta com uma escrita ex-
terior em tabletes, no Sinai, à luz do v. 32ª (cf. 2Co 3:3), ou em rolos. Ela
também contrasta com a escrita do pecado nos corações de Judá (Jr 17:1).
Esta transformação miraculosa se ocupa com a motivação e expressa teo-
logicamente a ‘nova’ disposição prevista no v. 22. Ela é consistente com os
dons divinos de caráter a Israel em Os 2:19-20 e com o novo coração de
Ez 36:26. Quando pistas internas substituem as externas, a fórmula dual
da aliança encontrará perfeito cumprimento na mutualidade de seus par-
ceiros. A expectativa de 31:1 e de 30:22 (TM) recebe aqui sua elucidação.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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aliança significa que, no tocante à torah (que, de acordo com 7:23 tem
sua essência no mandamento ‘ouvi minha voz’ e, assim, visa um re-
lacionamento pessoal com YHWH; ver em 31:33 ‘minha torah’) nin-
guém mais é dependente da instrução dada pelas autoridades religio-
sas” (LEENE, 2014, p. 208).
levítico. Nos ajuda, também, a idealizar o ser humano membro da nova aliança
– após a nova aliança ser firmada, YHWH perdoará os pecados (sem mediação
sacrificial) – ou seja, a pecaminosidade humana não será eliminada. A expec-
tativa de Jeremias, portanto, não era a de uma ‘nova humanidade’ no sentido
ontológico do termo, mas a de um novo Israel fiel a YHWH, fidelidade esta que
estará acima de todas as demais fidelidades humanamente necessárias (família,
povo, governo, religião, etc.).
Voltamos a Leene e sua análise perceptiva do texto:
“[...] caberá a cada israelita, individualmente, sob a nova aliança, deci-
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No Tópico anterior citei Brueggemann e sua visão da nova aliança como fruto da
atividade de escribas. Um autor que desenvolve e argumenta em prol dessa lei-
tura é Mark Leutcher, de quem veremos, agora, o posicionamento sobre o tema:
“[...] em nossa passagem, porém, a dinâmica foi completamente altera-
da [da formação de escribas]. O currículo que o escriba deve estudar
e cultivar agora está em seu próprio coração e, levando em considera-
ção a natureza interpretativa e exegética do escribalismo israelita no
final do sétimo e início do sexto séculos a.C., isto sugere que o impul-
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se exegético em si mesmo constitui a Torá. Certamente este não é um
conceito estranho à tradição de Jeremias, na medida em que a exegese
do próprio profeta foi apresentada como inerentemente deuteronômi-
ca em sua natureza e, como vimos, Jr 19:5-7 cria exegeticamente uma
circunstância pactual viável ao desenvolver a legislação deuteronômi-
ca. Em Jr 31:33 essa mesma metodologia é declarada como a base da
nova aliança, simultaneamente desqualificando as antigas hierarquias
do culto de Jerusalém e legitimando a tradição escribal de corte deute-
ronomístico, agora independente” (LEUCHTER, 2008, p. 58)
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tes. Profetas, sacerdotes, reis e cortesãos, os que falharam em usar a
responsabilidade que lhe fora dada, estavam na raiz da queda da na-
ção. ‘Profissionais’ de elite, que reservavam a si mesmos o direito de
interpretar a lei ou a vontade de Deus, que usaram sua posição e co-
nhecimento para estender falsidade sobre o seu povo são condenados.
Eles são tão falsos como seu ensino. Alegam serem eruditos na Lei,
mas são eruditos apenas no mal (18:5). Aqueles que cuidam da lei não
conhecem YHWH (2:8). Aqueles que mentem e enganam e cometem
iniquidade se recusam a conhecer YHWH (9:4-6). O dom precioso, o
conhecimento de Deus, que deixaram de transmitir aos outros, tam-
bém negaram a si mesmos” (POTTER, 1983, p. 353).
Não vejo como conciliar a tese de Leuchter com esta descrição tão crítica dos
profissionais da Torá no livro de Jeremias.
Outra opinião, menos sofisticada, mas também menos problemática é a de
Baker:
“[...] parece haver tanto um senso de continuidade como de desconti-
nuidade entre a aliança mosaica e a nova aliança. Isso implica em conti-
nuidade com a aliança anterior em termos de suas exigências. De outro
lado, a descontinuidade é vista no fato de que, ao invés de estarem ins-
critos em tábuas de pedra guardadas no templo, as exigências da alian-
ça iriam residir dentro dos participantes humanos da aliança. Assim, a
proposta de Sarason de que o conteúdo permanece enquanto o modo
de transmissão e observância é alterado parece a melhor. A aliança que
dá a todo o Israel uma identidade comum, portanto, mudará em seu
foco, não mais meramente comunitário, para um relacionamento mais
individual” (BAKER, 2008, p. 5-8, on-line)2.
(c) Henk Leene, com quem já dialogamos no tópico anterior, também oferece
uma descrição, mais adequada do que as anteriormente descritas, da dimensão
sociocultural da nova aliança:
“A principal questão que a promessa da nova aliança deseja responder é
como encontrar um tipo de relacionamento entre YHWH e Israel não
mais sancionado por um juízo coletivo. O que é novo na nova aliança
não é que ela contém novos mandamentos, nem que esses mandamen-
tos são levados no coração, tornando finalmente possível um relacio-
namento pessoal com Deus (essa possibilidade sempre esteve presen-
te, veja, por exemplo, o processo de maturação de Samuel), mas que
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esse relacionamento pessoal irá determinar toda a estrutura da vida
religiosa em israel, de modo que uma calamidade, com consequências
tão catastróficas como a experimentada em 587 a.C., estará barrada no
futuro. O que é verdadeiramente novo na nova aliança é sua indisso-
lubilidade. Todas as suas outras características (individualização, lai-
cização) estão sujeitas a esta. A ideia acalentada no dogma cristão de
um non posse peccare [não posso pecar] presumivelmente está fora do
‘horizonte de questionamento’ da promessa de Jeremias. Esta promes-
sa se restringe a dizer que YHWH não mais considerará todo o Israel
responsável pelos pecados de indivíduos israelitas, mas se compromete
a perdoar a cada um, grande ou pequeno, que pede por perdão. Uma
aliança com a casa de Israel e de Judá que se funda sobre o perdão
pessoal não pode ser quebrada coletivamente. Tal promessa oferece ao
leitor uma perspectiva prática: ela é mais anti-utópica do que utópica...”
(LEENE, 2014, p. 210).
Foco, agora, no aspecto adequado desta descrição: não se trata, então, de uma
individualização social ao estilo do individualismo moderno, mas, sim, à luz dos
versos anteriores de Jr 31, de uma alteração no critério de juízo e responsabili-
dade moral: não é mais coletivo, mas, sim, individual. Uma das consequências
dessa alteração é, de fato, que não se deverá mais pensar que todo o Israel será
punido por causa do pecado de alguns dos israelitas – o juízo de YHWH passa
a ser entendido como individualizado e não mais como ‘coletivo’ ou ‘nacional’.
Logo, não se deve esperar que a internalização da torá possa criar uma vida indi-
vidual mais perfeita. Devemos esperar, sim, que essa internalização modifique a
estrutura da vida religiosa – não mais centrada nos rituais coletivos e dependente
de profissionais, mas centrada na vivência cotidiana dos valores da fé e em uma
participação viva e crítica nos rituais coletivos proporcionados pelos profissio-
nais da religião. Não podemos, porém, entender que a indissolubilidade seja, de
fato, a grande novidade da nova aliança. A ‘velha aliança’ também era indissolúvel
(da parte de YHWH), o que muda é a não-possibilidade de dissolução nacional
da aliança: cada indivíduo entra na responsabilidade de ser fiel, e pode, porém,
se tornar infiel e sair do relacionamento da aliança com YHWH. A avaliação ao
final da citação, por fim, também é questionável: afirmar que a nova aliança é
antiutópica só faz sentido se definirmos utopia como uma sociedade ideal e per-
feita. Entretanto, se pensarmos em utopia como uma sociedade melhor do que a
presente, então o texto jeremiânico é, sim, utópico (reunificação de Israel e Judá,
volta do exílio, uma nova estruturação da vida religiosa centrada no indivíduo).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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(a) Leene subestima a importância da internalização da nova aliança. Embora
seja correto afirmar que a nova aliança torna o conhecimento de Deus acessí-
vel a todas as pessoas, independentemente de seu lugar social, ela oferece mais
do que isso, ela oferece uma efetiva internalização das relações com Deus e com
o próximo; (b) o fato de que Deus ‘escreve a sua torah’ em meu coração não
implica que de fato, conhecemos profundamente essa torah (instrução, vontade)
e a praticamos – aqui Leene vê a escrita da torah como algo mágico, um tipo de
conhecimento intuitivo, místico inexistente. O fato de que a nova aliança desaloja
os profissionais da torah não significa que o conhecimento de Deus seja automá-
tico – precisa ser cultivado individual e comunitariamente, precisa ser discutido
e vivenciado individual e comunitariamente. Não se trata, como já mencionei,
de acabar com cultos litúrgicos e estudos comunitários. Trata-se de subordinar
as reuniões coletivas aos critérios da fé internalizada em cada pessoa; trata-se
de revisar estruturalmente o papel de profissionais religiosos – não mais chefes,
nem definidores da vida religiosa, mas, sim, servidores dos praticantes da religião
– um ideal quase impossível de ser alcançado em formas fortemente institucio-
nalizadas de religião.
Um fator adicional que os autores acima discutidos não trataram é o do
fim do sacrifício – na nova aliança, com o perdão dos pecados também interna-
lizado e individualizado, não faz mais sentido uma religiosidade centrada em
sacrifícios que visam, em última instância, tornar a divindade favorável ao ser
humano. Neste sentido, Jeremias está em consonância com profetas anteriores
a ele, que também criticaram o culto sacrificial e suas limitações (e.g., Is 1:10ss;
Am 5:21ss). Com grande probabilidade, Jeremias está radicalizando a pregação
tiques o direito, ames a fidelidade e sejas humilde diante de teu Deus” (Mq 6:8);
e (b) “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces
da transgressão do remanescente da tua herança? YHWH não retém a sua ira
para sempre, porque tem prazer na fidelidade. Mais uma vez terá compaixão de
nós; pisoteará as nossas iniqüidades e lançará todos os nossos pecados nas pro-
fundezas do mar” (Mq 7:18-19).
Em síntese: esta perícope de Jeremias, juntamente com outras expressões de
esperança no livro, apresenta um projeto de transformação social e identitária
de grandes proporções – a que tenho chamado de Modernidade Judaíta e que
descrevi anteriormente na análise do contexto. As suas características sociopo-
líticas mais importantes são: (a) rejeição de um arranjo sociocultural baseado
na hierarquia econômico-política – o patriarcado – e afirmação de um arranjo
sociocultural baseado na igualdade de valor entre as pessoas; (b) rejeição de uma
estruturação da fé baseada, também, na hierarquia político-econômica e na insti-
tucionalização profissionalizante – a monarquia teocrática que situa Deus acima
de todo o mundo e estabelece o rei e o sacerdócio como mediadores exclusivos
da divindade (subordinando, assim, outros profissionais da religião – escribas e
profetas); (c) rejeição de um conjunto de valores morais centrado na superiori-
dade do pai – na família (o pai de fato), na religião (o sacerdote), na economia
(o proprietário de terras e bens), na política (o rei) – e a adoção de um conjunto
de valores centrado no caráter e na instrução de Deus; (d) a expectativa de um
futuro melhor para o povo de Deus, reunificado, com sua identidade centrada
não mais no palácio-templo, mas na fidelidade a Deus e sua aliança de liberta-
ção, direito, justiça e solidariedade.
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Como você entende e vivencia a instrução de Deus em seu coração, em co-
munhão com o Espírito Santo? Como essa compreensão se concretiza em
sua vida cotidiana?
Muito bem, agora cabe a você realizar este passo da metodologia exegética.
Procure seguir o mesmo modelo que usei em minhas releituras. Não é um texto
para você entregar e ser avaliado, é um exercício para você mesmo. Se quiser
compartilhar com os colegas, porém, você pode fazer.
Como fazer? Minha sugestão é que você siga os seguintes passos metodológicos:
1. Aliste as áreas da vida em que o texto pode ser aplicado – por exemplo:
liturgia, crítica social.
2. Verifique se há elementos teológicos do sentido do texto que devem ser
revistos à luz do Novo Testamento e faça tal revisão.
3. Analise os problemas atuais (de nosso tempo) nas áreas da vida em que
o texto pode ser aplicado e os explique.
4. Faça a aplicação propriamente dita.
Do ponto de vista da apresentação dos seus resultados, você pode seguir o exem-
plo das Unidades II e III.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
206
Artigo sobre o livro de Jeremias, escrito sob a perspectiva histórico-gramatical à luz da tradição
reformada. Disponível no seguinte link: <<http://cpaj.mackenzie.br/fidesreformata/arquivos/
edicao_38/artigos/266.pdf>
211
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIA ON-LINE
1
Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2017.
Em: <http://novaojs.newcastle.edu.au/ojsbct/index.php/bct/article/viewFile/178/162>.
2
1. FALSA.
3. FALSA.
ANÁLISE EXEGÉTICA DO
V
UNIDADE
SALMO 96
Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da fase
preparatória
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão psicossocial da ação
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão psicossocial da ação
■■ A dimensão missional da ação
215
INTRODUÇÃO
o reino de Judá, mas mesmo assim não era fácil aceitar que essa terrível situa-
ção era consequência da infidelidade a YHWH, consequência da infidelidade
do seu rei e do sacerdócio que deveria servir a YHWH e ensinar a sua verdade
ao povo. Uma outra resposta circulava entre os sobreviventes e os exilados de
Judá: naquele tempo se acreditava que quando um país conquistava outro, os
seus deuses derrotavam os deuses do país vencido. Marduque teria, então, derro-
tado YHWH e, assim como o Império babilônico subjugou Judá, Marduque teria
subordinado YHWH ao seu séquito de deuses inferiores. Muitos judeus ficaram,
por isso, em dúvida quanto ao poder e a força de YHWH. Era necessário, então,
reafirmar que YHWH é o deus dos deuses e o senhor dos senhores (Dt 10,17).
Em meio às incertezas do sofrimento, o Salmo 96 convida o pequeno povo
de Deus a se alegrar, a louvar o nome santo de YHWH. Convida o pequeno
povo de Deus a se regozijar diante de YHWH, juntamente com todos os povos,
mesmo os mais distantes povos da terra.
Ao realizarmos os procedimentos metodológicos da interpretação bíblica
não podemos nos restringir a uma atividade meramente técnica. Interpretar é
técnica mais imaginação e comprometimento com o texto. Sem a imaginação
teológica a exegese não funciona. A imaginação é fundamental para reconstruir
o contexto bíblico, mas também para fazermos a releitura, pois precisamos ima-
ginar o que fazer, hoje, à luz do texto. Eis o desafio da exegese.
Introdução
216 UNIDADE V
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הָ ֣בּו ֭ ַליהו ָה מִ ׁשְ ּפְ ֣חֹות עַ ִ ּ֑מים7 הֹוד־ו ְהָ ָ ֥דר לְפָ ָנ֑יו ֥ע ֹז ְ֜ו ִתפְ אֶ֗ ֶרת ּבְמִ קְ ּדָ ׁשֽ ֹו׃6 עָ ָׂשֽה׃
9
ָ ּוב ֹאּו ְלחַ צ
ְרֹותֽיו׃ ֥ הָ ֣בּו ֭ ַליהו ָה ּכ ְ֣בֹוד ׁשְ ֑מֹו ׂשְ אֽ ּו־מִ֜ נְחָ֗ ה8 הָ ֥בּו ֜ ַליה ָ֗וה ּכ ָ֥בֹוד ו ָֽע ֹז׃
אִ מְ ֤רּו בַּגֹוי ִ֙ם׀ י ְ֨ה ָ֤וה מָ ֗ ָלְך10 ת־ק ֹדֶ ׁש ִ ֥חילּו מִ֜ ּפָ ָ֗ניו ּכָל־הָ ָא ֶֽרץ׃ ֑ הִ ׁשְ ַּתחֲ ו֣ ּו ֭ ַליהו ָה ּבְהַ דְ ַר
י ִׂשְ מְ ֣חּו ֭הַ ּׁשָ מַ י ִם ו ְָת ֵ ֣גל הָ ָ ֑א ֶרץ11 ַל־ּת ּ֑מֹוט י ִ ָ֥דין עַ֜ ּמִ֗ ים ּבְמֵ יׁשָ ִ ֽרים׃ ִ ַאף־ּת ּ֣כֹון ֭ ֵּתבֵל ּב ִ
לִפְ ֵנ֤י13 ר־ּבֹו ָ ֥אז ְ֜י ַרּנְנ֗ ּו ּכָל־עֲ צֵי־ ָי ֽעַ ר׃֑ ֶ י ַעֲ ֹ֣לז ׂ֭שָ דַ י וְכָל־אֲ ׁש12 ִי ְֽר ַ ֥עם הַ֜ ָּ֗ים ּומְ ֹלאֽ ֹו׃
י ְהו ָ֙ה׀ ִּ֬כי ָ֗בא ִ ּ֥כי ב ָ֘א לִׁשְ ּ֪פ ֹט הָ֫ ָ ֥א ֶרץ י ִׁשְ ּֽפ ֹט־ּתֵ ֵ ֥בל ּב ֶ ְ֑צדֶ ק ְ֜ועַ ּמִ֗ ים ּבֶאֱ מּונָתֽ ֹו׃
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, on-line)1.
Tradução:
Cantai a YHWH um cântico novo, cantai a YHWH, todas as terras. 2 Cantai a
YHWH, bendizei o seu nome; proclamai diariamente a sua libertação. 3 Anunciai
entre as nações a sua glória, entre todos os povos os seus atos poderosos.
4
Porque YHWH é grande e louvável, merece mais reverência do que todos
os deuses. 5 Porque todos os deuses dos povos são ídolos; YHWH, porém, fez os
céus. 6 Honra e majestade estão diante dele, força e esplendor em seu santuário.
7
Presenteai a YHWH, ó famílias dos povos, presenteai a YHWH glória e
força. 8 Presenteai a YHWH a glória que lhe pertence; trazei oferendas e entrai
nos seus átrios.
9
Prostrai-vos perante YHWH diante de sua imponente majestade [ou ‘pode-
rosa manifestação’]; trema diante dele toda a terra. 10 Dizei entre as nações: YHWH
reina. Ele firmou o mundo para que não se abale e governa os povos com equidade.
11
Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar e a sua plenitude. 12
Exulte o campo e tudo o que nele há; celebrai todas as árvores do bosque 13 na
presença de YHWH,
Porque ele está próximo, está prestes a governar a terra; governará o mundo
com justiça e os povos com sua fidelidade.
[Em 1 Crônicas 16:23-33 temos uma versão ligeiramente mais curta deste
salmo inserida em um relato sobre a entrada da Arca em Jerusalém na época de
Davi] (Traduzido do autor)
A delimitação dos Salmos é simples – já está feita no próprio livro antigo. Cada
Salmo é uma perícope (de fato, não se deve falar em ‘Salmos capítulo x’, mas em
Salmo 1 ou Salmo 33, etc.), cabe a quem interpreta analisar a segmentação e a
estruturação. Tarefas mais exigentes têm a ver com o lugar do Salmo na estru-
tura do livro, tema de que trataremos mais adiante, na análise do contexto.
O texto hebraico do Salmo 96 oferece indícios bem claros para a sua seg-
mentação, temos três seções que são convites à atividade litúrgica: 1-3 com seis
verbos no imperativo; 7-10 com oito verbos no imperativo e 11-12 com cinco
verbos no jussivo (as seções no imperativo convocam seres humanos, a seção
com o jussivo convoca a natureza); temos duas seções iniciadas com ky (porque,
pois): 4-6; 13. Assim, os segmentos estão claros:
1-3 Cantai a YHWH
4-6 YHWH merece louvor
7-12 Presenteai a YHWH
11-12 Alegria da Natureza
13 YHWH reinará
Não é tão clara a estrutura do Salmo. Uma pista poderia ser encontrada na
análise quantitativa de linhas e palavras. Com isto, percebemos que o Salmo pos-
sui 6 estrofes, com 14 estíquios (linhas poéticas) divididos em dois semi-estíquios
cada, com exceção do verso 10, que tem três estíquios (o terceiro não possui
dois semi-estíquios), formando uma estrutura poética numericamente equili-
brada: 14 + 1 + 14 estíquios. Quando contamos as palavras (no texto hebraico),
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Não vejo como o verso 10c possa demarcar a estruturação do texto. Já o
verso 8a é um candidato mais viável, mas a estrutura fica desequilibrada no seu
paralelismo, na medida em que o verso 13 não está em paralelo com os versos
1-3 (o verso 13 está em paralelo com os versos 4-6):
A 1-3
B 4-6
C 7
D 8ª
C’ 8b-10
B’ 11-12
A’ 13
O CONTEXTO DO SALMO 96
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Gênero Textual
O Salmo 96 possui as marcas claras do gênero hínico (convite ao louvor e motiva-
ção para o louvor de YHWH), e foi composto para ser cantado no culto público.
Em que tipo de culto? Alguns autores propuseram que teria havido em Israel
uma festa para celebrar a entronização de YHWH, tendo em vista que os Salmos
93, 96-99 têm em comum o uso da frase YHWH mlk (YHWH reina, ou YHWH
começou a reinar). Entretanto, não há nenhum indício concreto da existência de
tal festa em Israel ou em Judá. Outros, situam os Salmos do Reinado de YHWH
(93, 96-99 – alguns autores incluem o Sl 47 e/ou o Sl 146 nesta lista) na festa do
Ano Novo em que se celebraria a renovação da aliança entre YHWH (rei) e seu
povo. Embora haja claros sinais da existência de uma Festa de Ano Novo em
Israel e Judá, não temos nenhuma informação sobre o conteúdo propriamente
dito dessa Festa. Em 1 Cr 16, capítulo no qual este Salmo é citado quase em sua
inteireza, também é situado em tempos antigos, quando da entrada da Arca em
Jerusalém. O livro de Crônicas tem por hábito situar textos litúrgicos de seu pró-
prio tempo (dominação persa) na época das origens da monarquia, de modo que
não oferece uma informação cronologicamente exata em relação a este Salmo –
a não ser que, na época da escrita do livro este Salmo era usado no culto e tinha
alguma importância (doutra forma não teria sido citado). No final das contas,
em que tipo específico de culto o Salmo 96 teria sido usado é secundário para
sua interpretação, era um Salmo de esperança, típico para celebrações cúlticas de
exilados ou de dominados por estrangeiros.
CONTEÚDO E INTERDISCURSIVIDADE
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52:7; 60:6; 61:1.
c. o louvor ‘universal’ – povos e nações, o mundo todo – é encontrado várias
vezes nos Salmos: 9:12; 67; 86:9; 102; 105:1 e pode ser um reflexo de Is
2:2-4 (=Mq 4:1-4) que fala da peregrinação das nações a Sião para ouvir
a torah de YHWH. A universalidade do reinado de YHWH e a partici-
pação das nações no culto está presente mais intensamente, porém, em
Isaías 40-66, por exemplo: “também os levarei ao meu santo monte e os
alegrarei na minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifí-
cios serão aceitos no meu altar, porque a minha casa será chamada Casa
de Oração para todos os povos” (Is 56:7) e “As nações verão a tua justiça,
e todos os reis, a tua glória; e serás chamada por um nome novo, que a
boca do SENHOR designará” (Is 62:2).
d. o louvor da natureza também é um tema frequente em Is 40-55: 42;10;
44:23; 49:13; 55:12. Está condensado e intensificado no Salmo 148 que
possui indícios de estar baseado em Is 40-66.
e. a vinda de YHWH é um tema recorrente de Is 40-66 – iniciando em 40:9-
11, passando por 52:7ss e culminando na vinda de novos céus e nova
terra em 65:17-25.
f. Os versos 7-9 são uma citação modificada de Sl 29:1-2 – ao invés de ‘filhos
de Deus’ (que equivaleria ao concílio celestial, cf. Sl 82:1ss), são convoca-
das as ‘famílias das nações’ – nós chamaríamos hoje em dia essa alteração
de uma ‘desdivinização’ – o que aponta para um período na história de
Israel em que a afirmação da unicidade de YHWH já era capaz de suplan-
tar as antigas tradições da ‘corte celestial’.
Esses dados são suficientes para nos fazer situar o Salmo no período da domi-
nação babilônica e início da dominação persa (entre c. 597 a.C. [a primeira
deportação para a Babilônia] e 515 a.C. [o primeiro retorno de deportados
para Jerusalém]. Temos, então, um contexto marcado por: consternação pela
perda de Jerusalém e do Templo, pela falta de liberdade e pela destruição do
Reino; mas também de esperança pela restauração de Jerusalém e do Templo
com a primeira leva de exilados voltando para Jerusalém (veja-se, por exem-
plo, o livro do profeta Ageu convocando à reconstrução do Templo, logo após
o ano 515 a.C.). Dentre os vários projetos teológicos do período, nosso Salmo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o resultado final de uma grande guerra entre os deuses, na qual Marduque foi
o vitorioso general que derrotou Tiamate (a deusa do mar). Após a morte de
Tiamate, Marduque criou o mundo com o sangue dela e fez os seres humanos
para servirem aos deuses, de modo que não mais houvesse revolta entre os deu-
ses. Como vitorioso deus, Marduque é entronizado rei dos deuses, o sábio e justo
criador do mundo e governante celestial.
Quando lemos os salmos do reinado de Javé e os comparamos com a teolo-
gia dos babilônios, percebemos muitos pontos de contato. Os salmos do reinado
de Javé podem, então, ter sido compostos (ou revisados) durante o período da
dominação babilônica, como uma forma de resistir contra a teologia babilônia
e seus apelos para que os judeus cressem em Marduque e não mais em Javé. São
textos, então, que polemizam contra a teologia dos babilônios e ajudam o povo
judeu a repensar a sua identidade e sua fé em Javé.
não andar nos caminhos do Senhor (Jr 7.1-15). São do mesmo período – o mais
provavelmente nas primeiras décadas após a destruição de Jerusalém – alguns
lamentos do povo judeu, se queixando de que Javé havia se esquecido deles (por
exemplo, em Is 40.27 e 49.14 encontramos “citações” do lamento contra Javé).
Diante da afirmação e da celebração da realeza de Marduque, era necessá-
rio reenfatizar que Javé era o rei de toda a terra, o criador e o redentor de Israel.
Note, nos salmos do reinado de Javé, quantas vezes se mencionam as “nações” e
os “povos” - indício de que os judeus estavam cantando estes cânticos de louvor
a seu deus enquanto “cercados” por pessoas de outros povos. Foi exatamente no
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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
é ele quem executa na terra a justiça divina (e.g. Salmo 72) – e é, por sua vez,
protegido e legitimado pelo governo divino. A importância da dinastia davídica
extrapola a teologia “oficial” da corte, e se manifesta também na forma de um
tipo de messianismo davidida, cujo lugar social é a crítica profética e popular à
dinastia davídica regente (e.g. Is 6-9).
A conquista dos babilônios foi profundamente marcante na revisão dessa
forma de pensar a relação entre a realeza de Javé e a nação de Judá. A promessa
de que a dinastia de Davi iria governar para sempre em Jerusalém não fora cum-
prida. Com a conquista pelos babilônios, a família de Davi foi tirada do trono e
levada para o cativeiro. Fez-se necessário repensar a teologia do reinado de Javé.
Outro tema importante para a monarquia de Judá, vinculado à crença na per-
manência da família de Davi no trono, era a crença na inviolabilidade de Jerusalém/
Sião. Como o Templo de Javé estava em Jerusalém, sobre o monte Sião, começou-se
a acreditar que a cidade jamais seria conquistada por um rei estrangeiro. O Templo
jamais seria destruído, pois como a morada de Deus, ele era visto como o centro do
cosmos e a morada eterna de Javé (veja os Salmos 46, 48, 76 e 87). Esta compreensão
está estreitamente ligada à legitimação da dinastia davídica brevemente comen-
tada acima. Na oração de dedicação do Templo, atribuída a Salomão, é afirmada a
perenidade do Templo enquanto morada de Javé (I Rs 8,13), crença reforçada na
crítica ao profeta Jeremias que anunciava o juízo contra a casa e a cidade (Jr 7,4).
A identidade teológica do povo judeu não mais podia se basear nessas duas
ideias: a dinastia davídica sem fim e a inviolabilidade de Jerusalém e Sião. Os
salmos do reinado de Javé afirmam a estabilidade do mundo todo, e não mais
da dinastia e da cidade, bem como a estabilidade do trono de Javé. Veja: “Javé
reina. Revestiu-se de majestade; de poder se revestiu Javé, e se cingiu. Firmou o
mundo, que não vacila. Desde a antiguidade está firme o teu trono” (93.1-2). “Dizei
entre as nações: Javé reina. Ele firmou o mundo, para que não se abale” (96.10).
Era necessário reafirmar a realeza de Javé, a soberania do deus de Israel. Mas
era necessário desvincular a realeza de Javé da durabilidade do reino davídico e
sua capital. Javé é o deus supremo, porque criou o mundo e porque reina sobre
todas as nações, e não porque garante o trono de Davi e a segurança de Sião!
Para reconstruir a identidade de um povo, nada mais eficaz e duradouro do
que as canções cantadas repetidamente nos cultos. Nada mais eficaz do que as
canções que se guardavam na memória e se cantarolavam no dia a dia, entre os
afazeres da vida cotidiana. “Como, porém, haveríamos de entoar o canto de Javé
em terra estranha?” (Sl 137.4). Somente seria possível cantar o canto de Javé na
terra estranha do exílio quando esse canto não mais estivesse preso à dinastia
de Davi e aos muros de Jerusalém. Crer e celebrar o reinado universal de Javé
foi um passo fundamental para a reconstrução da identidade do povo de Deus
durante a dominação babilônica.
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A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO
(1) Listagem
Vós: 1 (2x), 2 (3x), 3 (2x = uma está implícita), 7 (2x), 8 (2x), 9 (1x), 10 (1x)
YHWH: 1 (2x), 2 (2x), 3 (2x), 4 (1x), 5 (1x), 6 (1x), 9 (2x), 10 (3x), 13 (5x
= uma está implícita)
Todas as terras: 1 (1x)
Famílias dos povos: 7 (2x), 8 (2x)
Toda a terra: 9 (1x)
O mundo: 10 (1x), 13 (1x)
Os povos: 10 (1x), 13 (1x)
Todos os deuses dos povos: 5 (1x)
Céus, terra, mar e sua plenitude, campo e tudo que nele há, todas as árvo-
res do bosque: 11-12 (1x cada)
A terra: 13 (1x)
Todas as terras, toda a terra, famílias dos povos, os povos = outros povos,
individualmente ou em conjunto: chamados à adoração
Toda a terra, o mundo, a terra = toda a criação [natureza e pessoas]: cha-
mada à adoração
Céus, terra, mar e sua plenitude, campo e tudo que nele há, todas as árvores do
bosque = natureza (parte de toda a criação exclusive humanos): chamada à adoração
ESPAÇO
(1) Listagem
Entre as nações (3.10), entre todos os povos (3)
Diante de YHWH (6), seu santuário (6), seus átrios (8), perante YHWH (9),
diante dele (9)
Espaços personificados: todas as terras, toda a terra, o mundo, os céus, a terra,
o mar, o campo, do bosque
(2) Análise
Espaço político ‘global’ = Entre as nações (3.10), entre todos os povos (3)
Espaço litúrgico (Templo) = Diante de YHWH (6), seu santuário (6), seus
átrios (8), perante YHWH (9), diante dele (9)
Espaço da criação – universal = todas as terras, toda a terra, o mundo, os
céus, a terra, o mar, o campo, do bosque
TEMPO
(1) Listagem
A maioria dos verbos está no imperativo (alguns verbos no jussivo – o jus-
sivo é um tempo verbal que, no salmo, equivale ao imperativo)
Os demais verbos estão no incompleto hebraico (presente e futuro do pre-
sente em português)
No verso 13 temos advérbios e expressões temporais: “está próximo”, “está
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prestes a”
(2) Análise
A temporalidade é completamente ‘subjetiva’: a. ela gira ao redor da expec-
tativa dos sujeitos convocados à adoração (tanto no sentido de atender ao
chamado, como no sentido de esperar a chegada de YHWH como rei de toda
a terra), e b. ela é acrônica na descrição de YHWH
Passemos à síntese do Significado da Dimensão Espaço-Temporal da Ação.
Tudo nesse Salmo respira grandiosidade. YHWH é descrito em termos
majestosos e impressionantes. O tempo e o espaço são globais, universais, em
escala quase que infinita. Os adoradores e adoradoras de YHWH convocados
pelo hino também são colocados em escala universal – todas as nações, toda a
natureza, toda a terra, tudo que existe é convocado à adoração a Deus altíssimo,
acima de todas as coisas e de todos os deuses que não são sequer deuses. O efeito
de sentido é predominan-
temente subjetivo. Quem
ouve ou lê o hino se sente
parte de uma liturgia uni-
versal e quase que infinita.
Cantar a YHWH é entrar
em um ambiente de expec-
tativa esperançosa – ele
vem!
Vamos iniciar este Tópico com a análise da estrutura profunda do texto, ou seja,
de seu tema unificador.
CONFORMISMO ANSIEDADE
trazei oferendas e entrai nos seus átrios. 9 Prostrai-vos perante YHWH diante de
sua imponente majestade [ou ‘poderosa manifestação’]; trema diante dele toda
a terra. 11 Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar e a sua plenitude.
12 Exulte o campo e tudo o que nele há; celebrai todas as árvores do bosque 13
na presença de YHWH ...
“Como os salmos adjacentes, este começa com a convocação ao mundo inteiro
a que cante os louvores do Senhor. Esta, como muitas outras expressões, se asse-
melha a partes de Isaías 40-66 (ver as palavras iniciais em Is 42:10)” (HARMAN,
2011, p. 341). O louvor a Deus é descrito com uma profusão de verbos que apon-
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tam para a grandiosidade do culto e, por meio das repetições e duplas de ações,
para a intensidade das emoções e comprometimento de quem vai à casa de Deus
para louvá-lo: cantar + bendizer o nome; presentear + trazer oferendas; prostrar-
-se + tremer; alegrar-se + regozijar-se; exultar + celebrar.
Cantar a YHWH é também bendizer o seu nome. Quem bendiz a Deus reco-
nhece a sua bondade, o seu poder, a sua glória, etc. O nome, na cultura hebraica,
equivale ao caráter da divindade. Alguns autores consideram que a palavra ‘nome’,
aqui, pode estar sendo usada no sentido da teologia deuteronômica em que a
presença de YHWH é sempre descrita como a presença do nome de YHWH no
culto. O nome de Deus estaria presente no culto, mas o próprio Deus continua-
ria exaltado em sua transcendência, acima do controle dos adoradores. Não há
consenso em relação a tal teologia deuteronômica do nome. O que importa, aqui,
é que YHWH – extremamente grandioso – é digno de receber as boas palavras
e bons sentimentos de quem adora. O cântico a ser cantado deve ser novo – não
tanto em seu conteúdo, mas em sua disposição – uma nova disposição para rece-
ber a presença e a ação de YHWH em tempos nos quais parece que Ele sequer
está disponível para agir.
Presentear a YHWH é reconhecer que Ele é gracioso, misericordioso e aben-
çoador. Damos presentes a quem também nos dá presentes. Presentes e oferendas
de gratidão são a tônica desses dois verbos. Implícito neles está a ação anterior
de YHWH derramando suas bênçãos. Gratidão é a tônica desses verbos.
Prostrar-se e tremer são verbos que apontam para a reverência de adoradoras
e adoradores. YHWH é grandioso, muito mais do que qualquer rei ou imperador
humano, muito mais do que os deuses dos povos, muito maior do que os deuses
dos povos que dominam Israel. Em linguagem teológica, estes verbos respiram
a atmosfera do temor do Senhor.
Alegrar-se e regozijar-se, celebrar e exultar são os verbos finais do convite à
adoração. Fazem-nos entrar na atmosfera da plena satisfação, do contentamento
pleno, da celebração alegre e feliz. Israel, nações e toda a criação participam do
culto ao Senhor de todas as coisas. Viver diante de YHWH significa viver em
uma atmosfera de bem-aventurança, de felicidade sem fim. Todos os sentimentos
evocados pela presença e ação de YHWH desembocam nessa alegria incalculá-
vel. Não importam as circunstâncias!
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ídolos; YHWH, porém, fez os céus. 6
Honra e majestade estão diante dele,
força e esplendor em seu santuário. //
13 Porque ele está próximo, está prestes
a governar a terra; governará o mundo
com justiça e os povos com sua fidelidade.
A motivação para a adoração mescla ‘teo-
logia’ com ‘esperança’. Teologia: o que sabemos
sobre Deus e constitui nossa fé. Esperança: o que acre-
ditamos poder esperar de Deus, mesmo quando o presente parece contradizer o que
cremos. O Salmo nos convida a adorar a YHWH porque não há nada nem ninguém
tão grandioso e justo quanto Ele. Se agora sofremos, não precisamos temer e perder
a esperança, pois o sofrimento chegará ao seu fim quando YHWH retornar para
reinar sobre toda a sua criação.
Em um mundo politeísta, em que se acreditava que o deus do rei vencedor
derrotava o deus do rei perdedor, Israel tem a coragem de afirmar o contrário:
YHWH é rei, ele não foi derrotado! –
“[...] o salmista faz trocadilho com a palavra hebraica para Deus
(‘elohim), dizendo que os deuses pagãos não passam de ídolos sem
qualquer valor ou importância (‘elilim). São expostos ao opróbrio dian-
te de nosso Deus soberano (Is 19.l; S I 97.7). Não são reais, e por isso
não têm qualquer poder como tem aquele que fez os céus” (HARMAN,
2011, p. 342).
O que a realidade esconde, o culto manifesta. Se no dia a dia YHWH parece ter sido
derrotado pelos deuses estrangeiros, no culto reafirmamos a fé: YHWH é o Deus
dos deuses. Se Israel sofre é porque foi infiel a YHWH e enfrenta as consequências
dessa infidelidade. No culto, o povo pecador reconhece sua infidelidade e afirma a
fidelidade e grandeza de Deus. A alegria e as celebrações cúlticas não podem ocul-
tar a realidade da vida dos adoradores e adoradoras. Deus sempre será fiel – fiel a Si
mesmo e ao Seu compromisso com toda a criação. Ele não é fiel ‘a meus interesses’!
b. O conjunto da proclamação:
3 Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos os seus atos podero-
sos. // 10 Dizei entre as nações: YHWH reina. Ele firmou o mundo para que não
se abale e governa os povos com equidade. // Porque ele está próximo, está prestes
a governar a terra; governará o mundo com justiça e os povos com sua fidelidade.
O conteúdo da proclamação é, em síntese, o reino de YHWH. Este é um dos
temas mais debatidos na exegese e teologia do Antigo Testamento e, antes de
apresentar a minha própria descrição do reinado de YHWH neste salmo, vale a
pena apresentar uma série mais longa de citações de três autores contemporâ-
neos para que vocês possam ter um ‘gostinho’ do debate acadêmico sobre o tema.
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ção de diáspora de Israel após 586 a.C., em uma sociedade politeísta e
imperialista” (GERSTENBERGER, 2001, p. 173-174).
Devo acrescentar que o debate desaqueceu nos anos 1980-1990, mas foi reaberto
no século XXI e não dá mostras de chegar a um consenso. Particularmente, e a
minha interpretação desse salmo vai nessa direção, acredito que os salmos do
Reinado de YHWH mantêm relações interdiscursivas com os relatos de realeza
divina em Ugarite, Canaã e Mesopotâmia, mas a sua relação com eles é polê-
mica. Os israelitas afirmam: YHWH é o único Rei de toda a terra, ele é o deus
dos deuses e senhor dos senhores. Não consigo ver que Israel tenha adotado a
crença na entronização anual do deus supremo, nem que tenha assumido ple-
namente os conteúdos míticos dos seus vizinhos.
Voltemos a Gerstenberger:
“[...] o hino, propriamente dito (v. 4-6), ou seja, as linhas que exaltam a
Deus, deveria ser cantado por uma pessoa e, repetidamente, pelo coro
ou pela congregação, é parcialmente introduzido pela conjunção excla-
matória ky, ‘sim’ (vv. 4-5; cf Êx 15:21; Sl 118:1). A primeira linha (v. 4) é
um pouco diferente de 95:3, celebrando, por assim dizer, a superiorida-
de de YHWH sobre todos os deuses. Uma frase como ‘YHWH é grande’
(v. 4a) parece ter um peso e uma persistência arquetípicos; sua história
traditiva já tem milhares de anos (note também o louvor islâmico Allah
Akbar – Alá é grande; e, ocasionalmente, um eco humano ‘eu sou o
maior de todos’). A designação gâdôl, grande, com relação a divindades
e reis é fundamental no discurso hínico na Bíblia hebraica (cf. Dt 7:21;
10:17; Sl 21:6; 48:2; 77:14; 86:10: 99:2; 135:5; 145:3; 147:5). Interessante-
mente, esta linha do v. 4a aparece em dois outros salmos: 48:2 e 145:3,
apenas com uma variação na segunda parte. Nosso verso 4b, porém,
em contraste com essas duas passagens, mas em acordo com 95:3b,
encaminha para a polêmica: ‘todos os deuses das nações são nada’ (v.
5a). A polêmica israelita contra os deuses ‘estrangeiros’ é o resultado de
uma prolongada batalha pela sobrevivência em um império autocrático
e multi-religioso (cf. Is 40:18-25; 44:9-20). Reivindicar superioridade
para YHWH era o único meio de defesa contra os opressores babilônios
e persas. Alguns dos salmos do reinado de YHWH praticam este tipo de
refutação dos poderes estrangeiros, sem, por assim dizer, documentos
desta época crucial (cf. Sl 93:3-4; 95:3; 97:7,9). Para este tipo de ridicu-
larização de outros deuses, temos de comparar, especialmente, algumas
passagens no Segundo Isaías: Is 40:18-25; 44:9-20. O termo pejorativo,
’elilim, é usado em alguns outros contextos: cf. Lv 19:4; 26:1; Is 2:8, 20;
10:10-11; 19:1, 3; Hc 2:18” (GERSTENBERGER, 2001, p. 188)
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pre que o verbo vem em primeiro lugar, devemos entender a fórmula em sentido
enfático: ‘YHWH, somente ele, é rei!’. No ato cultual da prostração, YHWH é
glorificado como o rei que tem seu trono no Templo (sobre a Arca: 1Sm 4:4; Jr
3:16s.). A descrição é visionária (cf. Is 6). Revestido de soberana majestade (g’wt,
cf. Is 26:10) e de poder (‘z): é assim que a comunidade reunida para a festa con-
templa o Deus-rei. (KRAUS, 1995, p. 327-328)
Note que o debate apenas mencionado por Gerstenberger é apresentado
no comentário de Kraus. Você deve ter percebido o que caracteriza um debate
“acadêmico”: o interesse na exatidão técnica: gramatical, histórica, linguística. O
sentido do texto para a vida cotidiana fica em segundo lugar. Cabe, então, a você,
que lê textos acadêmicos, ‘traduzir’ as conclusões acadêmicas para as necessida-
des da vida social e cotidiana.
Em síntese: o que o Salmo 96 nos informa sobre YHWH como rei é que ele é
superior a todos os reis humanos e superior a todos os deuses (que sequer são
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deuses no sentido pleno da palavra). YHWH sempre foi rei desde a criação do
mundo. Ou seja, o mundo criado por Deus é governado, em última instância,
por Ele mesmo. Dentro desse governo, YHWH outorgou às suas criaturas um
grau de liberdade e de responsabilidade compatível com suas possibilidades – ao
ser humano Ele outorgou o maior grau de liberdade e de responsabilidade pos-
sível. Por isso, o ser humano rejeita a realeza de YHWH e cria as suas próprias
formas (humanas e divinas) de governo – distorcendo a justiça e a lealdade de
YHWH, e governando de forma injusta e opressora. Eis, portanto, a esperança
dos israelitas: o fim dos reinados humanos opressores e o retorno do reinado
de YHWH sobre seu povo e sua extensão a todos os povos – a fim de que a jus-
tiça e a fidelidade imperem nas relações humanas em sua totalidade.
“Nessa visão magnífica da fé, que abrange todo setor da realidade, insere-
-se também a natureza muda no estrondo do júbilo que retumba rumo ao
Rei divino, quando ele aparece ‘para julgar a terra’. Pois o julgamento de
Deus não consiste afinal em somente chamar às contas os seus adversários,
mas constitui a restauração da ordem divina no mundo. Esta se manifesta
igualmente na ordem da natureza e da história, na bênção da fertilidade da
terra e na salvação dos povos. Em ambas estas ordens revela-se a ‘verdade
de Deus’, ou seja, a realização de sua ‘fidelidade’” (WEISER, 1994, p. 483).
Para iniciar o estudo da dimensão psicossocial, vale a pena notar o que Kidner
percebeu no Salmo:
“[...] O desenvolvimento de palavras e frases repetidas (e.g. ‘cantai
...’, ‘tributai ...’, ‘porque Ele vem...’) dá ao salmo um vigor insistente e
contribui para o ambiente de emoção quase irreprimível por causa da
perspectiva da vinda de Deus. A ‘ardente expectativa’ da criação, da
qual Paulo fala em Rm 8:19, irrompe aqui em cânticos no momento do
cumprimento” (KIDNER, 1981, p. 368).
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A análise semiótica das paixões se caracteriza pelo foco exclusivo na paixão
enquanto textualmente comunicada – ou seja, não se caracteriza pela análise das
emoções de um determinado indivíduo, e, sim, pela análise dos sentidos atri-
buídos às paixões humanas no discurso (e no texto). A semiótica entende por
paixões o que costumeiramente chamamos de emoções e as vê como elementos
modalizadores do sujeito da ação. Elas são responsáveis, portanto, pela modali-
zação passional do sujeito.
Bem, esses termos parecem complicados, não é? Mas não são tão complica-
dos como parece. Modalizar um sujeito é mais ou menos equivalente às noções
de motivação e de capacidade. De acordo com a teoria semiótica da ação, um
sujeito é modalizado de modo quádruplo: saber, poder, dever, querer – e moda-
lizam tanto a ação (saber-fazer, poder-fazer, dever-fazer, querer-fazer), quanto
o sujeito da ação (saber-ser, poder-ser, dever-ser, querer-ser). O que caracte-
riza a modalização passional é o seu vínculo indissolúvel com o sujeito da ação,
ou, em outra linguagem, com a personalidade ou a identidade do sujeito. Uma
das razões para esta distinção entre modalização ativa e modalização passional
é que nem sempre há um acordo entre o que fazemos e o que somos (ou senti-
mos). A principal razão, porém, para a análise da dimensão passional da ação
(do sujeito da ação), é que não podemos dividir o ser humano em ‘cognição’,
‘volição’ e ‘sentimento’, como se cada uma dessas dimensões fosse independente
das demais. O que sabemos e o que desejamos está intrinsecamente ligado com
o que sentimos e vice-versa.
todas as idades. Algumas reações passionais são aceitas em pessoas idosas, mas
não em jovens; outras são aceitas em pessoas com necessidades especiais, mas
não em pessoas consideradas ‘normais’.
Outro aspecto que a pesquisa semiótica das paixões tem manifestado é o
de que a textualização das paixões não é uma prática exata. Se consultarmos
um dicionário de português, por exemplo, veremos que as definições de termos
passionais são muito parecidas umas com as outras quando se trata de paixões
afins. Por exemplo: as definições de paixões como alegria, júbilo, regozijo, etc.
são pouco diferenciadas, de modo que ao estudar as paixões em um texto pre-
cisamos perceber o mais exatamente possível a intensidade e a valoração que se
dá às paixões presentes.
Finalmente, na teoria semiótica a análise das paixões faz parte do que chamo
de dimensão psicossocial da ação, ou seja, da análise das identidades pessoais
e coletivas presentes em uma dada sociedade. Logo, o objeto da análise não é o
estudo das paixões propriamente ditas, mas o estudo da identidade psicossocial
presente no texto (embora não haja problema nenhum em estudar as paixões pro-
priamente ditas, caso o objetivo da exegese dê valor a essa procura). No caso de
nosso Salmo, por exemplo, a pergunta de fundo seria: que identidade é compa-
tível para israelitas dominados por Impérios estrangeiros e que desejam manter
sua fidelidade a YHWH?
O texto do Salmo 96 facilita o nosso trabalho de análise da dimensão psicos-
social da ação na medida em que paixões estão explícitas no texto. Nem sempre
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9
Prostrai-vos perante YHWH diante de sua imponente majestade; trema
diante dele toda a terra. / 11 Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar
e a sua plenitude. 12 Exulte o campo e tudo o que nele há; celebrai todas as árvo-
res do bosque 13 na presença de YHWH, porque ele está próximo ...
As paixões ligadas à reverência são textualizadas com os verbos prostrar-se
e tremer (v. 9), as ligadas à alegria, nos versos 11-12, com os verbos alegrar-
-se, regozijar-se rugir, exultar, celebrar. Já as paixões ligadas à expectativa estão
implícitas, tanto no caráter hínico do Salmo e seu estilo repetitivo e grandilo-
quente como, de modo mais específico, no verso 13 que afirma a iminência do
agir libertador de YHWH: porque ele está próximo ...
Uma forma mais competente de analisar o sentido das paixões e seu impacto
na identidade psicossocial das pessoas é destacar a oposição semântica entre
paixões contrárias. Em nosso salmo encontramos as seguintes oposições:
(1) reverência vs. indiferença; (2) alegria vs. ansiedade; (3) expectativa vs.
conformismo.
Diante da grandeza e da majestade incomparáveis de YHWH as nações
são convocadas a prostrar-se e a tremer. O pano de fundo sociocultural desses
imperativos do Salmo é a indiferença dos Impérios diante de YHWH. Como já
vimos, os povos do Antigo Oriente acreditavam que quando um rei conquis-
tava outro (quando um povo dominava outro), o deus (ou deuses) do povo
dominado também era conquistado (vencido e dominado) pelo deus (ou deu-
ses) do conquistador. Assim, nem os babilônios nem os persas teriam qualquer
tipo de reverência por YHWH, pois acreditavam que ele era um deus derro-
tado. No máximo, as crenças dos povos conquistados eram toleradas por razões
estratégicas – o que tornava mais fácil e barato manter o controle do povo con-
quistado. O salmista, então, apresenta uma nova atitude a ser adotada pelos seus
destinatários: prostrar-se e tremer diante de YHWH. São ações litúrgicas equi-
valentes a ações políticas de reverência. Diante de um rei a pessoa ‘inferior’ se
ajoelha e teme, pois não sabe o que o rei poderá fazer de modo que se comporta
de tal modo a conseguir o favor do rei e não a sua ira.
Temos, então, duas possibilidades passionais: a reverência e/ou o medo. A
diferença entre essas possibilidades depende do caráter do rei. Se o rei é visto
como arbitrário, como não-confiável, a paixão mais comum é o medo (e as liga-
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das ao medo). Se o rei é visto como fiel e confiável, ao invés do medo a paixão
presente é a da reverência. No jogo das identidades, porém, um conflito pode
ser instaurado: no caso do rei fiel, a negação da reverência pode ocasionar a
punição, de modo que o temor nunca está cem por cento ausente. Em nosso
Salmo a reverência é demandada porque YHWH é o maior de todos os deuses,
é o único deus, de fato, a quem se pode adorar e em quem se pode confiar – afi-
nal de contas, ele é criador, soberano, superior aos ‘deuses’ e exerce seu governo
sobre toda a terra e todas as nações. Como ele governa com justiça e fidelidade,
não é necessário ter medo de YHWH – é necessário, porém, reverenciá-lo, ou
seja, reconhecer a Sua grandeza e a radical diferença de poder entre ele e as cria-
turas. Não é à toa que, no Antigo Testamento, o termo hebraico que textualiza a
reverência é o substantivo temor e o verbo temer, de modo que uma pessoa pie-
dosa é descrita com o adjetivo temente a Deus.
Em síntese, o conjunto do Salmo nos convida a uma intensa reverência diante
de YHWH – pois Ele é um Deus acima de tudo quanto podemos imaginar, mas
é um Deus em quem podemos confiar, pois Ele age com justiça e fidelidade. No
espectro das paixões ligadas à reverência, neste Salmo, podemos também incluir
as paixões da gratidão e da fidelidade (confiança, segurança). Gratidão expressa
nos presentes e oferendas que levamos ao culto, fidelidade e confiança expres-
sas em nossa comunhão diária com o Deus que age fielmente para conosco,
mantendo para sempre a sua aliança, o seu compromisso para conosco, inde-
pendentemente do que possamos fazer ou deixar de fazer! Compromisso, porém,
que nunca pode ser visto como mera aceitação do que fazemos, e, sim, como um
compromisso justo e fiel à justiça do próprio Deus.
Rudolf Otto, um teólogo luterano alemão, escreveu uma obra que se tornou
um clássico da teologia e da ciência das religiões: Das Heilige. Nessa obra,
ele procura descrever as principais características da noção de sagrado nas
religiões, especialmente a partir da Escritura. Para ele, o sagrado é uma no-
ção ambígua, e a experiência do sagrado também é ambígua: ao mesmo
tempo em que nos fascina (atrai), o sagrado também nos assusta (repele).
Por exemplo: a experiência de Moisés descrita em Êxodo 3 na visão da sarça
ardente, ao mesmo tempo que atrai Moisés para vê-la, deixa Moisés com re-
ceio do que lhe possa acontecer. Outro exemplo dessa ambiguidade, no AT,
é a afirmação que ninguém pode ver a Deus sem morrer (Êx 19; etc.). Caso
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
você tenha interesse em conhecer mais sobre este tema, veja OTTO, Rudolf.
O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a sua
relação com o racional.
Fonte: adaptado de Otto (2007).
O conjunto das paixões ligadas à alegria é textualizado com vigor no Salmo – vários
verbos encadeiam-se para apresentar a maior intensidade possível da paixão da
alegria (alegrar-se, regozijar-se, rugir, exultar, celebrar). Podemos perceber que
o Salmo nos convida a construir uma identidade cúltica e cultural que poderí-
amos qualificar como feliz. No Dicionário Michaelis (2017, on-line)2 a palavra
alegria recebe a seguinte (primeira) definição: “1. Estado de contentamento ou
prazer moral; júbilo, regozijo.” . Note a imprecisão da definição – júbilo e rego-
zijo são formas intensificadas de alegria e não ‘sinônimos’ que indicam a mesma
paixão. Por outro lado, a definição nos leva a outras – o que é contentamento? O
que é ‘prazer moral’ (o que diferencia prazer moral de outros tipos de prazer)?
É mais fácil, a partir de nosso texto, descrever o que não é a alegria plena que o
Salmo convida seus destinatários a sentir: não é medo, não é ansiedade, não é
frustração. Em outros termos, uma pessoa ‘feliz’, nos termos do Salmo 96, é uma
pessoa que não sente falta de nada em sua vida, mesmo quando as circunstâncias
não são favoráveis. Talvez o primeiro verso do Salmo 23 seja a melhor explica-
ção para esta paixão: “YHWH é meu pastor. Nada me falta” – explicando: uma
vez que YHWH é meu pastor (lembre-se de que pastor também é uma metáfora
para rei no mundo antigo), não sinto falta de nada, pois Ele sempre está comigo
e me satisfaz plenamente.
qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo
e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome;
assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp
4:11-13). Um exemplo poético dessa paixão nos é dado por Habacuque, que escreveu
sob o domínio dos babilônios: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na
vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ove-
lhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro
em YHWH, exulto no Deus da minha salvação. YHWH, Deus, é a minha fortaleza,
e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente” (Hc 3;17-19).
Imagine a junção dessa alegria com a reverência que estudamos agora há
pouco. Uma reverente felicidade – da qual a descrição mais perfeita é a coleção
de Bem-Aventuranças de Jesus no Sermão do Monte!
Por fim, o terceiro conjunto de paixões nesse Salmo é o ligado à expectativa.
O Salmo conclui afirmando que YHWH está próximo, que Ele vem governar a
terra com justiça e fidelidade. Há uma saudável dose de realismo aqui. O reino
de YHWH descrito no Salmo é visto ainda apenas pela fé: o que os olhos dos
israelitas veem é o reino dos persas, e não o reino de YHWH. São governados
pelos persas que regem o mundo sem justiça e sem fidelidade. Porém, os israe-
litas sabem melhor! Eles sabem que os reinos humanos não duram para sempre
(veja, por exemplo, o que outro Salmo do Reinado de YHWH fala sobre os reinos
e impérios humanos: “Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens,
em quem não há salvação. Sai-lhes o espírito, e eles tornam ao pó; nesse mesmo
dia, perecem todos os seus desígnios. Bem-aventurado aquele que tem o Deus
de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está em YHWH, seu Deus” (Sl 146:3-5).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
até mesmo uma nação inteira se conformar!
A mensagem do Salmo, porém, não é de conformismo, mas de resistência e
expectativa: YHWH está próximo; YHWH está chegando para governar todas
as nações com sua justiça e fidelidade. Como vimos na análise do contexto, é a
mesma mensagem de Isaías 40-55 (seção do livro de Isaías que se dirige aos judeus
exilados na Babilônia e que já não mais queriam voltar a Jerusalém – haviam se
conformado com a vida no exílio). Não se trata, aqui, de ‘sair da Pérsia’, mas de
não deixar a Pérsia dominar o seu modo de pensar, sentir e agir. Em outros ter-
mos, a expectativa da vinda de YHWH possibilita não assumir uma identidade
colonizada, oprimida. Se sabemos, por fé, que YHWH vem, não nos conforma-
mos ao nosso mundo limitado. Não aceitamos a identidade que nos é imposta
pelo poder imperial.
Uma das melhores traduções deste sentimento é a que encontramos em
Romanos 12:1-2 “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apre-
senteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto verdadeiro. E não vos conformeis com o tempo presente, mas sede trans-
formados pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus”. Seja o império de uma nação, seja o
império do mal, seja o império da globalização, quem crê em YHWH é convo-
cado a não se conformar. Diante do que nega YHWH somos chamados a resistir.
Diante do que é indiferente a YHWH somos chamados à esperança. Como remé-
dio para o medo, a ansiedade e o conformismo, esperança resistente!
A identidade psicossocial proposta por este Salmo é uma identidade de resis-
tência à dominação e confiança na fidelidade de YHWH. Em outras palavras, o
Muito bem, agora cabe a você realizar este passo da metodologia exegética. Faça
o mesmo que indicamos na Unidade anterior.
Como fazer? Minha sugestão é que você siga os seguintes passos metodológicos:
1. Aliste as áreas da vida em que o texto pode ser aplicado – por exemplo:
liturgia, crítica social etc.
2. Verifique se há elementos teológicos do sentido do texto que devem ser
revistos à luz do Novo Testamento e faça tal revisão.
3. Analise os problemas atuais (de nosso tempo) nas áreas da vida em que
o texto pode ser aplicado e os explique.
4. Faça a aplicação propriamente dita.
A sua releitura pode ser na forma de sermão, de estudo bíblico, de artigo acadê-
mico, de meditação, de poesia etc.
Os três grandes temas deste Salmo são retomados e ampliados em o Novo
Testamento. A começar com o reino de YHWH, que é a mensagem central de Jesus
Cristo. A esperança celebrada no Salmo é declarada cumprida em Cristo Jesus: ele
trouxe o reino, na sua vida o reino de Deus veio para os pobres e para os pecadores
(Mc 1,14-15; Mt 4,13-17; etc.). Veio, mas de forma escatológica, inaugurado, mas
não consumado. Veio, em definitivo, como projeto de Deus para a humanidade.
Veio para construir o novo povo de Deus, feito de todas as pessoas que aceitam
a justiça de Deus e recebem a Boa-Nova de que somente Deus reina. Reinado de
Deus que é libertação e transformação social e pessoal (Lc 4,16-20; 7,18-23).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e verdade (Jo 4,24-25). Adoração cristã também nasce no dia-a-dia da prática
da fidelidade a Deus, da justiça do Evangelho, do fruto do Espírito Santo. Culto
verdadeiro é culto praticado por quem segue a Jesus no dia a dia. Por isso, Paulo
pode dizer que a entrega de nossa vida a Deus, a transformação da nossa mente,
a renovação do nosso projeto de vida, em seguimento a Jesus, é o culto racio-
nal, o culto verdadeiro e permanente das pessoas cristãs (Rm 12,1-2). O culto
ao Senhor é a festa do Senhor, é a festa do povo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
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1. O texto hebraico do Salmo 96 oferece indícios bem claros para a sua segmen-
tação, temos três seções que são _________ à atividade litúrgica: 1-3 com seis
verbos no imperativo; 7-10 com oito verbos no _________ e 11-12 com cinco
verbos no jussivo (as seções no imperativo convocam seres humanos, a seção
com o jussivo convoca a natureza); temos _________ seções iniciadas com ky
(porque, pois): 4-6; 13.
Para completar o parágrafo, a ordem correta das palavras é:
a. convites, duas, jussivo
b. imperativo, convites, jussivo
c. convites, duas, imperativo
d. convites, imperativo, duas
e. duas, convites, imperativo
A ordem correta é:
a. 1,1,2,3,3.
b. 2,1,2,2,3.
c. 3,1,3,2,1.
d. 1,2,3,3,3.
e. 2,3,3,2,2.
249
Para mais conhecimentos, junto aos Rios da Babilônia: Um estudo acerca da história de Israel no
exílio Estudo histórico por estudante de teologia, oferece dados básicos. Acesse: <http://www.abc.
com.bhttp://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/Relatorios/CTCH/TEO/TEO-Michel%20
Alves%20dos%20Santos.pdf>
253
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIA ON-LINE
2
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=alegria>. Acesso em:
10 mai. 2017.
3
Em: <http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=193>. Acesso
em: 10 mai. 2017.
GABARITO
1. D.
2. Verdadeira.
3. C.
4. B.
5. B.
255
CONCLUSÃO
Muito bem! Chegamos, juntos, ao fim desta disciplina. Percorremos um longo, de-
safiador e, espero, agradável caminho. Que tal relembrar o que aprendemos juntos?
Nosso grande objetivo foi: aprender a fazer exegese de textos do Antigo Testamento.
A esta altura, tenho certeza de que o objetivo foi alcançado. “Mas professor” - você
poderá dizer - “ainda não sei muita coisa!”. É verdade, ainda há muito para aprender,
mas você tem a vida toda pela frente para aperfeiçoar o que estudamos juntos aqui.
Dentro desse grande objetivo, vários outros objetivos parciais também foram alcan-
çados:
1. Você aprendeu a diferença entre realidade, situação e contexto de textos bíblicos.
Estudou um pouco sobre a realidade do mundo bíblico e viu como fazer a recons-
trução de contextos.
2. Aprendeu a delimitar, segmentar e estruturar uma perícope bíblica.
3. Aprendeu a exegese usando a metodologia sêmio-discursiva – com seus vários
ciclos e fases. (Espero que você tenha visto a importância de conhecer bem o nosso
idioma e, se possível, o idioma bíblico.)
Agora que você já sabe isto, pode aperfeiçoar esses conhecimentos: leia bastante
sobre a realidade do mundo bíblico, leia sobre exegese e hermenêutica e, acima
de tudo, leia e interprete constantemente a Bíblia. Exegese se aprende fazendo e
quanto mais você a praticar, mais saberá como fazê-la e fazê-la sempre de modo
mais eficiente e criativo.
Várias vezes mencionei que método não é a coisa mais importante na exegese.
Aprendemos a usar um método (e partes de outros), mas o importante é perceber
como o texto produz sentido e adaptar nossos métodos aos textos que estudamos.
Se seguir a regra básica de que um texto produz sentido dentro de seu contexto e
por meio da sua materialidade linguística, você poderá usar vários métodos e, até,
se desejar, criar seu próprio.
Foi um prazer estudar exegese com vocês! Continuem praticando! E usem o que
aprenderam aqui em outras disciplinas do Bacharelado.