Você está na página 1de 255

MÉTODOS

DE ESTUDOS
BÍBLICOS
NO ANTIGO
TESTAMENTO

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
Fabrício Lazilha
Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Direção de Mercado
Hilton Pereira
Direção de Polos Próprios
James Prestes
Direção de Desenvolvimento
Dayane Almeida
Direção de Relacionamento
Alessandra Baron
Head de Produção de Conteúdos
Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli
Gerência de Produção de Conteúdos
Gabriel Araújo
Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Supervisão de Projetos Especiais
Daniel F. Hey
Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Amanda Peçanha dos Santos
Distância; ZABATIERO, Paulo Tavares Mantovani.
Iconografia
Métodos de Estudos Bíblicos no Antigo Testamento. Júlio Isabela Soares Silva
Paulo Tavares Mantovani Zabatiero.
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.
Projeto Gráfico
255 p. Jaime de Marchi Junior
“Graduação - EaD”. José Jhonny Coelho

Arte Capa
1. Métodos. 2. Estudo Bíblico. 3. Antigo Testamento. 4. EaD. I. Título.
André Morais de Freitas
CDD - 22 ed. 200 Editoração
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Victor Augusto Thomazini
Qualidade Textual
Felipe Veiga da Fonseca

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário


João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Diretoria de
transformamos também a sociedade na qual estamos
Planejamento de Ensino
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria Operacional
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
de Ensino
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de
Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista
às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis-
so, lembre-se que existe uma equipe de professores
e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero


Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST/2000), Mestre em
Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST/1995). Graduação em Teologia
pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP/1980). Atualmente é
professor da Faculdade Teológica Sul-Americana. Dirige o Instituto de Teologia
Humanidades e Artes do Vale do Paraíba (ITHAVALE ). Tem experiência na área
de Teologia e Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes
temas: exegese bíblica, judaísmo antigo, análise do discurso, teologia pública,
sociologia da religião.

Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas


e publicações, acesse seu currículo, disponível no endereço a seguir: <http://
lattes.cnpq.br/6084107335994470>.
APRESENTAÇÃO

MÉTODOS DE ESTUDOS BÍBLICOS NO ANTIGO


TESTAMENTO

SEJA BEM-VINDO(A)!
Estamos iniciando nossos estudos de interpretação do Antigo Testamento. A exegese
do texto bíblico tem uma longa história, iniciada nos próprios livros da Bíblia que já
apresentam um trabalho de leitura e interpretação de outros textos bíblicos mais anti-
gos. Posteriormente, a interpretação da Bíblia continuou a ser praticada de modo cons-
tante, tanto pelas Igrejas Cristãs, quanto pelo Judaísmo rabínico – e isso até os nossos
dias. Na disciplina de Métodos e Interpretação da Bíblia estudamos parte dessa história
e, principalmente, os diferentes métodos que podem ser usados para fazer a exegese da
Escritura. Portanto, nesta disciplina colocaremos em prática e aprofundaremos conteú-
dos que já foram estudados naquela disciplina. Então, se você não se lembrar de algo,
basta consultar novamente o livro da disciplina (e a sua memória) a fim de reavivar o
que foi aprendido.
Esta disciplina é, portanto, uma disciplina prática. Você irá aprender a fazer exegese. Para
aprender a fazer algo normalmente seguimos a seguinte estratégia: (a) uma pessoa que
sabe fazer explica como fazer e mostra como se faz – você já teve disciplinas assim em
seus anos de escola e, se assiste programas de culinária na TV, por exemplo, sabe que
sempre se começa assim: explicação e exemplo; e (b) você mesmo precisa praticar, e
várias vezes, o que está sendo explicado e exemplificado até aprender a fazer. Então veja
bem: nessa disciplina o conteúdo do livro e das aulas é feito de explicação e exemplifica-
ção de como se faz exegese de textos do Antigo Testamento.
Só para relembrar os aspectos fundamentais da interpretação bíblica (exegese):
1. Os textos do Antigo Testamento foram escritos em uma língua diferente da nossa
(hebraico, com algumas seções em aramaico). Foram escritos em uma realidade muito
diferente da nossa – forma de governo diferente, economia diferente, cultura diferente,
geografia diferente, tecnología diferente etc. Consequentemente, precisamos conhecer
o máximo possível dessa realidade e língua, a fim de entendermos bem os textos. Logo,
a boa prática da exegese demanda alguns anos de aprendizado e estudo da realidade
em que a Bíblia foi escrita. Assim, durante o curso de Bacharelado, nós começamos a
aprender e, depois, temos a vida inteira pela frente para aperfeiçoar nosso conhecimen-
to. Para facilitar um pouco a sua vida, a primeira Unidade desta disciplina é dedicada a
uma apresentação dos aspectos fundamentais da realidade em que o Antigo Testamen-
to foi escrito. Então, estude bem a primeira Unidade e, quando estivermos estudando
a exegese propriamente dita dos textos nas demais Unidades, não deixe de rever os
conteúdos da Primeira Unidade sempre que for necessário.
2. Conhecer a realidade do mundo bíblico, então, é uma primeira exigência para fazer
uma boa exegese. Mas é só o começo. A história da interpretação da Bíblia nos ensina
que para entender um texto é preciso lê-lo em seu contexto. Ora, o contexto não é a re-
alidade, mas a maneira como o próprio texto interpreta a sua realidade. Então, uma de
nossas primeiras atividades práticas da exegese é reconstruir o contexto do texto bíblico
a partir das informações que o próprio texto nos dá – e usando essas informações à luz
do que sabemos sobre a realidade da época em que o texto foi escrito. Dessa forma,
APRESENTAÇÃO

nas quatro Unidades em que estudaremos textos bíblicos, sempre mostrarei a vocês
como se reconstrói o contexto do texto bíblico. São três as técnicas metodológicas
para reconstruir o contexto: (a) estudar o gênero textual, pois o gênero é uma reali-
dade social e literária que nos ajuda a situar um texto em seu contexto; (b) estudar
o conteúdo do texto naquilo que ele nos fala sobre o seu mundo; e (c) estudar as
relações intertextuais e interdiscursivas do texto, pois elas nos mostram o lugar que
o nosso texto ocupa em seu contexto.
3. Após o estudo do contexto, voltamos novamente ao nosso texto para continuar
a exegese, com a finalidade de entender o texto. Vários passos ou técnicas são ne-
cessários:
(a) no método que utilizamos, há a fase preparatória da exegese, na qual, além de
estudar o contexto, nós definimos qual é o texto a ser interpretado. É parte da tra-
dição exegética nas Igrejas e na academia teológica, que a exegese de um livro da
Bíblia comece com a exegese de pequenos trechos, que chamamos de perícopes.
Assim, nosso primeiro passo na exegese será o de delimitar, segmentar e estruturar
a perícope;
(b) definido o texto que será interpretado, passamos a interpretar o seu conteúdo
propriamente dito (nos passos anteriores estudamos a sua realidade, o seu contexto
e a sua forma). O conteúdo de um texto bíblico é muito amplo e, para simplificar
nosso aprendizado, dividi as atividades metodológicas em cinco ciclos ou dimen-
sões. Entramos, assim, no que chamo de a fase final da exegese.
* o primeiro ciclo é uma análise da dimensão espaço temporal da ação no texto.
Estudamos as personagens do texto, suas ações e relações, e o sentido dado a elas
no texto;
* o segundo ciclo é a análise da dimensão teológica da ação. Nosso foco recai na
compreensão das noções teológicas presentes no texto;
* o terceiro ciclo é a análise da dimensão sociocultural da ação. Aqui retomamos em
parte o estudo do contexto, mas nosso foco recairá sobre o significado que o texto
atribui às diferentes áreas da vida sociocultural;
* no quarto ciclo, enfocamos a dimensão psicossocial da ação. Estudamos como o
texto constrói a identidade das pessoas e instituições a respeito de que ele fala;
* finalmente, no quinto ciclo analisamos a dimensão missional da ação. Queremos,
neste último ciclo, saber como o texto bíblico é importante para nós hoje, o que ele
nos propõe crer e fazer como expressão da fé em Deus ou da busca de uma vida
mais justa, espiritual e humana.
Fica aqui o convite para você participar ativamente deste processo de aprendiza-
do. Espero que estes conhecimentos sejam úteis para você e ajudem você a crescer
como pessoa e como seguidor(a) de Deus.
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO

15 Introdução

16 Breve Revisão da Teoria Hermenêutica

27 Breve Revisão da Metodologia Sêmio-Discursiva

31 Contexto: Discussão e Definição de Termos

38 O Antigo Oriente Próximo Como Contexto do AT

47 História de Israel Como Contexto do AT

51 Considerações Finais

58 Referências

59 Gabarito

UNIDADE II

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8

63 Introdução

64 Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação

73 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

77 A Dimensão Teológica da Ação

90 A Dimensão Sociocultural da Ação

95 A Dimensão Missional da Ação

99 Considerações Finais

105 Referências

107 Gabarito
10
SUMÁRIO

UNIDADE III

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26

111 Introdução

112 Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação

126 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

128 A Dimensão Teológica da Ação 

141 A Dimensão Sociocultural da Ação

144 A Dimensão Missional da Ação

151 Considerações Finais

157 Referências

159 Gabarito

UNIDADE IV

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34

163 Introdução

164 Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação

181 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

184 A Dimensão Teológica da Ação

196 A Dimensão Sociocultural da Ação

204 A Dimensão Missional da Ação

205 Considerações Finais

211 Referências

212 Gabarito
11
SUMÁRIO

UNIDADE V

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96

215 Introdução

216 Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação

226 A Dimensão Espaço-Temporal da Ação

229 A Dimensão Teológica da Ação

238 A Dimensão Psicossocial da Ação

245 A Dimensão Missional da Ação

247 Considerações Finais

253 Referências

254 Gabarito

255 CONCLUSÃO
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO

I
UNIDADE
EM SEU CONTEXTO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Descrever os principais elementos da hermenêutica bíblica.
■■ Recapitular os passos metodológicos da Exegese Sêmio-Discursiva.
■■ Definir contexto e sua importância para a interpretação do texto
bíblico.
■■ Descrever as principais características socioculturais do Antigo
Oriente.
■■ Próximo enquanto contexto do AT.
■■ Descrever as principais características socioculturais do povo e da
nação de Israel enquanto contexto do AT.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Breve revisão da teoria hermenêutica
■■ Breve revisão da metodologia sêmio-discursiva
■■ Contexto: definição e discussão de termos
■■ O Antigo Oriente Próximo como contexto do AT
■■ História de Israel como contexto do AT
15

INTRODUÇÃO

Estamos iniciando o estudo da exegese do Antigo Testamento. Como você já


sabe, ‘exegese’ é uma palavra derivada da língua grega e se refere à interpretação
técnica ou acadêmica do texto bíblico. É equivalente aos termos ‘interpretação’,
‘compreensão’, ‘leitura’, e às vezes é usada com o mesmo significado de ‘herme-
nêutica’ (interpretação, também se refere a um tipo específico de filosofia - a
filosofia hermenêutica).
Em termos práticos, aprenderemos a interpretar textos do Antigo Testamento
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de modo disciplinado - ou seja, utilizando conscientemente métodos de leitura e


interpretação desenvolvidos nos ambientes acadêmicos de interpretação e pes-
quisa bíblica. O principal método que usaremos é o da exegese ‘sêmio-discursiva’,
cuja teoria estudamos na disciplina Métodos e Interpretação Bíblica.
Entretanto, como também já vimos, nenhum método, sozinho, dá conta da
complexidade da interpretação do texto bíblico, em função da época em que
foi escrito, da cultura de seus autores, da diferença linguística etc. Dessa forma,
usaremos aspectos do método histórico e do sociológico, especialmente para
entender o contexto do texto bíblico - ou seja, a época em que o texto foi escrito.
Nesta primeira unidade, o nosso foco recairá sobre a análise da realidade
histórico-social e do contexto em que a Bíblia foi escrita. Isso porque, como já é
de consenso há mais de dois séculos na exegese acadêmica: nenhum texto pode
ser entendido fora de seu contexto. Consenso que também se estende às Igrejas.
Preste atenção aos objetivos de aprendizagem e deixe que dirijam o seu
estudo. Pense nos objetivos como perguntas que você deve responder e, ao final
da leitura da Unidade, efetivamente responda aos objetivos - para você mesmo
- e verifique se você atingiu os objetivos propostos.
Bom estudo! Que Deus te abençoe!

Introdução
16 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
BREVE REVISÃO DA TEORIA HERMENÊUTICA

A realidade atual traz complexos e interessantes desafios para as Igrejas Cristãs,


especialmente para a leitura bíblica. Lembremos de algumas delas, que afetam
diariamente a vida cristã: (1) as mudanças na motivação religiosa das pessoas,
cada vez mais pluralistas e consumistas – ou seja, muita gente não vai mais à
igreja movido pelo compromisso de seguir fielmente as normas da religião, Deus,
ou a doutrina, vão à igreja porque procuram algum benefício concreto e ime-
diato para as suas vidas; e, de preferência, com o menor custo possível (tanto
financeiro, quanto pessoal); (2) essa mudança da religiosidade está na raiz das
mudanças nas relações entre as instituições eclesiásticas, cada vez mais marcadas
pela competição e concorrência; (3) tudo isso acarreta mudanças na compreen-
são do papel da Igreja e da fé cristã na sociedade – aquela antiga visão de que as
igrejas tinham um papel ético a cumprir, os crentes devendo ser “testemunhas”
de bom comportamento, já não é mais a visão predominante; também se pensa
atualmente no papel político que a igreja deve exercer, no papel econômico das
igrejas, como bons negócios, etc.; e (4) a atividade mais visível do pastorado –
a pregação – enfrenta desafios tremendos, pois os seus ouvintes já não são mais
os mesmos – são pessoas que estão acostumadas com TV, vídeo-games e vídeo-
-clips, pessoas que usam computadores e muitas até que passam horas por dia
na internet.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


17

Essas pessoas já não conseguem mais ficar atraídas por um sermão à moda
antiga, sua capacidade de atenção é diferenciada, mais diversificada, mais ner-
vosa; em outras palavras, aquele velho tipo de sermão já não funciona mais.
Nós que vivemos em uma sociedade em que a leitura de textos cada vez
mais é substituída pelo assistir às imagens da TV, cinema e internet, precisamos
rever a nossa maneira de ler a Bíblia, a Palavra de Deus. A fé cristã foi chamada,
durante muito tempo, de a religião do livro, tendo a Bíblia sido o guia inspira-
dor da vida da Igreja, suas reformas, suas renovações, seu aperfeiçoamento. Hoje
em dia, porém, cada vez menos impacto o livro realiza sobre as pessoas de fé.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Cada vez mais esse impacto é substituído pela força das imagens, dos tes-
temunhos, dos discursos emotivos, das canções e rituais cúlticos. Nos próprios
sermões, a Bíblia parece estar se tornando apenas um ícone, um símbolo que é
evocado para dar legitimidade ao conteúdo da pregação, mas que tem pouco a
ver com esse conteúdo.
Diante desses desafios, o conselho de Eugene Peterson é relevante:
“Para os cristãos, a leitura e o estudo das Sagradas Escrituras como nos-
sa autoridade, em todas as questões da fé e da prática, é uma atividade
fundamental e essencial, e não um acréscimo opcional. Mas no nosso
mundo contemporâneo, com sua moda proliferante de “espiritualida-
de”, cada vez mais pessoas estão escolhendo outras autoridades e guias
para a salvação. Por mais atualizadas e atraentes que muitas dessas op-
ções pareçam, nós, os cristãos, as rejeitamos. (PETERSON, 2001, p. 7)

Diante dessa realidade, como compreender e como realizar a agradável tarefa de


estudar as Escrituras? Neste curso já estudamos o tema na disciplina Métodos
e Interpretação, agora iremos estudar ainda mais, colocando em prática a teo-
ria aprendida.
Por isso, nessa revisão da teoria hermenêutica, quero focalizar nossa atenção
sobre dois modos de ler a Bíblia na história recente da Igreja Cristã, que têm afe-
tado o ministério pastoral de forma intensa: o primeiro deles, predominante nos
séculos XVIII-XX e que, em parte tem uma responsabilidade no esvaziamento
da força do livro na vida cristã. O segundo deles, mais recente, se apresenta como
uma resposta possível aos novos desafios da realidade – e o faz sem abandonar,
sem jogar fora toda a história anterior de leitura da Bíblia. Nas duas primeiras
seções serei mais “técnico”. Na última seção, mais “pastoral”.

Breve Revisão da Teoria Hermenêutica


18 UNIDADE I

A LEITURA DA BÍBLIA: UMA PESQUISA AGÔNICA

Nos séculos XVIII-XX, perdoada a simplificação excessiva, predominou um


modelo de leitura caracterizado pelo confronto e conflito entre verdades opos-
tas e concorrentes entre si. Na primeira parte desse período, simultaneamente
ao desenvolvimento do iluminismo e do positivismo na filosofia e nas ciências
em geral, a leitura da Bíblia ficou polarizada pela disputa entre o dogma e a ciên-
cia, entre a submissão à doutrina e autoridade religiosa e a autonomia do ser
humano diante de toda e qualquer autoridade, humana ou divina.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Cada lado dessa disputa estabeleceu seus próprios critérios de validade, recu-
sando ao outro lado a possibilidade de provar a sua própria verdade. Pelo que
se pode chamar este modelo de leitura de pesquisa agônica (você se lembra das
aulas de grego no Seminário? Agon é uma palavra grega que significa luta, con-
flito, esforço árduo, etc.).
Permitam-me descrever com mais detalhes esse modelo que é o predomi-
nante no mundo evangélico.

Como você lê a Bíblia? Segue algum desses modos?


Fonte: O autor.

Leituras não Acadêmicas da Escritura

Leitura Fundamentalista da Bíblia


Por fundamentalista, entendo o tipo de leitura que identifica a palavra escrita
com a Palavra divina, negando, assim, a historicidade do texto e reivindicando,
assim, para os textos bíblicos, o caráter de autoridade final da Escritura, gra-
ças à sua inerrância e expressão da verdade divina absoluta (fora de contexto).

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


19

O objetivo da leitura da Bíblia, no fundamentalismo, é a escuta direta da


Palavra de Deus que irá confirmar, ao final, as verdades doutrinárias e morais
componentes do ideário fundamentalista. Destaco como características da
hermenêutica fundamentalista, o doutrinismo, o moralismo, o espiritualismo
e o individualismo.
Doutrinismo, na medida em que é uma leitura que se faz a partir de um con-
junto de doutrinas (dogmas) já reconhecidos como verdadeiro e que sempre o
confirma, estabelecendo dessa maneira a divisão entre verdadeiros e falsos cris-
tãos. Moralismo, na medida em que é uma leitura que parte de, e reforça o ideário
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

moral da classe média interiorana dos Estados Unidos da América, confundindo-o


com a própria ética cristã. Espiritualismo, na medida em que os textos são vistos
como inspirados diretamente pelo Espírito Santo e, por isso, inerrantes e não presos
ao contexto histórico, mas presos à vontade de Deus que permanece a mesma até
hoje, e que deve ser reconhecida na leitura – mesmo que seja plenamente alegórica.
Individualismo, enfim, porque apesar de afirmar que o sentido do texto
depende da intenção do autor, em última análise é a intenção do/a leitor/a que
prevalece na interpretação, na sua busca de encontrar o sentido da Palavra de
Deus para mim.

Leitura conservadora da Bíblia


A leitura conservadora é a forma hermenêutica predominante no mundo
evangelical. Quase idêntica à fundamentalista, distingue-se por não afirmar
peremptoriamente a inerrância, mas a infalibilidade das Escrituras em questões
de doutrina e fé. Reconhece a historicidade dos escritos bíblicos, mas realiza uma
espécie de suspensão dessa historicidade quando o texto trata de temas doutri-
nários reconhecidos e aceitos de antemão como verdades da fé cristã.
Uma leitura conservadora poderia, por exemplo, aceitar a verdade limitada
da teoria da evolução, e faria, então, um grande esforço para fazer conciliar as
“verdades” da Bíblia com as “verdades” da ciência. A leitura conservadora tam-
bém se caracteriza por uma preocupação devocional e missiológica mais ampla
do que no fundamentalismo.

Breve Revisão da Teoria Hermenêutica


20 UNIDADE I

Leitura devocional da Bíblia


Por leitura devocional não indica uma atitude hermenêutica distinta das atitudes
fundamentalista e conservadora, mas um propósito distinto de leitura da Bíblia.
A leitura é devocional quando o seu objetivo é encontrar respostas de Deus para
os problemas da vida diária da pessoa. Na leitura devocional, a Bíblia é lida como
se fosse o jornal do dia, trazendo a mensagem direta de Deus para quem a lê. O
resultado final da leitura sempre dependerá do discurso doutrinário específico
ao qual pertence a pessoa que lê. Se pentecostal, por exemplo, a resposta divina
terá um tom pentecostal, se conservadora; um tom conservador, se progressista;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
um tom progressista, e assim por diante.

Leitura “neo-pentecostal” da Bíblia


Por que incluir a hermenêutica “neo-pentecostal” no mundo evangélico? Apesar
de eu pensar que são dois mundos diversos, é necessário constatar que a leitura
neo-pentecostal, graças ao uso intenso de meios de comunicação de massa, tem
encontrado lugar dentro do chamado mundo evangélico. Ocupa já um espaço
significativo nesse mundo, ainda que seja alvo de intensa polemização e apo-
logética por parte das lideranças denominacionais em geral. Normalmente, o
resultado da leitura neo-pentecostal da Bíblia é a confirmação da chamada “teo-
logia da prosperidade”, o que mostra sua similaridade às leituras fundamentalista
e conservadora no tocante ao predomínio do discurso contemporâneo sobre os
discursos da época do texto bíblico.

Leituras acadêmicas da Bíblia

Leitura histórico-gramatical
Predomina, ainda, a hermenêutica histórico-gramatical. A leitura histórico-
-gramatical se constituiu a partir da polêmica contra a leitura histórico-crítica
que, diz-se, nega o caráter inspirado da Escritura, por ter se rendido à visão
racionalista de mundo, negando os milagres de Deus na criação e na histó-
ria. Conquanto guarde muito das características das leituras fundamentalista e

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


21

conservadora não-acadêmicas (especialmente as dimensões doutrinista e mora-


lista), a distinção, aqui, é o cuidado para com uma leitura metodologicamente
disciplinada do texto bíblico.
Típico dessa abordagem é a crença em que o sentido do texto é determi-
nado pela “intenção” do autor e pela “recepção dos seus primeiros leitores”.
Dessa forma, cada texto tem somente um sentido verdadeiro, que pode ser des-
coberto mediante o estudo cuidadoso do contexto histórico da época de sua
escrita e da configuração gramatical-lingüística do texto.
Outra característica dessa abordagem é a crença na unidade teológica da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Escritura, mediante a qual os sentidos históricos dos textos vão sendo nivelados e
harmonizados a partir do conjunto de doutrinas reconhecidas como verdadeiras,
e que encontram nos escritos paulinos, principalmente, a sua fonte primordial.

HERMENÊUTICA CONTEXTUAL

A hermenêutica contextual é uma vertente histórico-gramatical, que se distin-


gue pelo maior cuidado na análise dos contextos do texto bíblico e da época da
leitura, bem como pela intenção missionária mais típica – o texto traz a palavra
de Deus que ensina à Igreja como realizar a sua missão. Segundo as palavras de
J. Stam (2004, p. 93):
De um lado, o exegeta procura entender a mensagem bíblica dentro
da maior fidelidade ao contexto histórico original. Essa tarefa costuma
chamar-se exegese gramático-histórica. De outro lado, como discípulo
do Senhor, o exegeta é chamado a obedecer e proclamar o Evangelho
aqui e agora. Cabe-lhe a tarefa complexa de entender a fundo nosso
próprio contexto em todas as suas dimensões e de captar a relação di-
nâmica entre a mensagem bíblica e a Palavra de Deus para nossa situ-
ação contemporânea. Se não perceber esta mensagem atual, não terá
escutado realmente a Palavra. Uma interpretação descontextualizada,
seja do contexto histórico do passado ou do contexto (também histó-
rico) do presente, será inevitavelmente uma interpretação infiel, anti-
-bíblica. As próprias Escrituras e o próprio evangelho nos impõe esta
tarefa de dupla contextualização.

Breve Revisão da Teoria Hermenêutica


22 UNIDADE I

A LEITURA DA BÍBLIA: UM DIÁLOGO CONSTRUTIVO

Eu gostaria de desafiar você a construir uma forma comunitária de leitura da


Bíblia, na qual sejamos capazes de redescobrir o impacto e a força do livro santo
em nossa vida pessoal e em nosso mistério, é o grande desafio que pode ser enfren-
tado com uma mudança de hábitos. Ao invés de uma leitura agônica, defendo a
importância e a urgência de adotarmos um modelo dialogal de leitura, estudo
e comunicação da Bíblia.
Permitam-me compartilhar com vocês algumas breves reflexões sobre os

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
objetivos e as estratégias da leitura bíblica no modelo dialogal.
Ler a Bíblia visa, neste modelo, a construir consensos, ou seja, acordos frater-
nos sobre a vontade de Deus na atualidade. Consenso não significa que todas as
pessoas envolvidas concordam com tudo que se diz, ou se escreve. Um consenso
é a conclusão de uma discussão baseada em argumentos, fundada na partici-
pação inteligente das pessoas envolvidas, e deve direcionar a ação coletiva das
pessoas. Bons consensos, baseados no estudo dialogal da Bíblia, deveriam ser:
(a) eticamente válidos, pois nem todos os meios são justificados pelos fins – ou,
nem tudo que funciona, ou que dá prazer, é justo, é bom, é santo – ou seja,
a Bíblia deveria nos ajudar a estabelecer os critérios mediante os quais deci-
dir qual projeto de ministério assumir, como enfrentar a concorrência etc.;
(b) cognitivamente verdadeiros, pois nem todas as experiências, doutrinas e
conceitos que defendemos passam pelo crivo da Sagrada Escritura – ou
seja, mediante o estudo deveríamos ajudar a comunidade cristã a crescer
em conhecimento teológico sadio e relevante;
(c) pessoalmente verídicos, pois muitas vezes ocultamos a verdade pessoal e
institucional atrás das máscaras do poder, do dinheiro, do prestígio ou do
saber – ou seja, a leitura da Bíblia deveria nos ajudar a sermos pessoas mais
transparentes umas às outras, nos ajudar a superar a tentação de “desem-
penhar papéis” na igreja, ao invés de sermos nós mesmos;
(d) missionariamente relevantes, pois a Escritura é a biblioteca de Deus que
prepara o povo de Deus para a missão – ou seja, a leitura da Bíblia deveria
resultar em práticas ministeriais cada vez mais dignas do Reino de Deus,
cada vez mais relevantes para a nossa sociedade, cada vez mais transfor-
madoras de nossa comunidade.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


23

Ler a Bíblia em busca desses consensos depende de um hábito de leitura em que


os sujeitos da leitura não sejam mais os indivíduos isolados, os especialistas da
técnica, mas que sejam todos os participantes da comunidade de fé. Depende
de um hábito em que as diferentes contribuições de cada pessoa – tenha ela for-
mação teológica ou não – possam ser:
(a) criticamente examinadas, ou seja, que a opinião de cada um seja demons-
trada e provada, e não apenas apoiada ou aceita por causa da autoridade
acadêmica ou política ou espiritual de quem a formula;
(b) livremente apresentadas, ou seja, que cada membro da comunidade da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

fé possa falar, se expor, apresentar aos demais a sua visão da fé, da vida,
da missão, da vontade de Deus conforme ele ou ela a vê na Escritura;
(c) responsavelmente partilhadas, ou seja, que não se fale apenas por falar,
que não se fale apenas a partir do achômetro de cada um, mas que cada
participante do diálogo com a Bíblia e a partir da Bíblia, seja responsável
em sua contribuição – tendo examinado bem o que leu e o que quer dizer
– como os antigos judeus de Beréia que, ao ouvir a explanação da Bíblia
pelos missionários cristãos, foram examinar cuidadosamente o valor e
a validade da nova forma de ler a Bíblia que a fé cristã estava trazendo.

NOVOS HÁBITOS DE LEITURA DA BÍBLIA PARA UM MINISTÉRIO


PASTORAL RELEVANTE

Não posso oferecer receitas prontas e rápidas para você aplicar no seu ministério,
mas gostaria de compartilhar com você algumas possibilidades de ações que nos
ajudará a tornar a leitura da Bíblia uma atividade ministerial rica e transformadora.
(1) Precisamos recuperar o valor da Escritura como palavra de Deus para a
humanidade, como obra literária de qualidade, como fonte inesgotável de sabe-
doria – recuperar o caráter inovador e desafiador da Bíblia, que sempre fala a
nós, mas também contra nós. Para fazer isto, precisamos orar, buscar a Deus, e
voltar para a Bíblia – e lê-la com mais freqüência e assiduidade. Precisamos ler
a Bíblia não para procurar ensinamentos e sermões, mas simplesmente para ter-
mos o prazer de ouvir o que Deus disse à humanidade.

Breve Revisão da Teoria Hermenêutica


24 UNIDADE I

Uma nova leitura da Bíblia só será possível se ler a Bíblia for uma fonte de
prazer e não só um hábito profissional. Novos hábitos só acontecem se novos
valores forem adotados – novos que podem ser muito antigos, como este dos
primeiros apóstolos: “e quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministé-
rio da palavra.” (BÍBLIA, Atos, 6, 4).
(2) Paralelamente, precisamos cuidar do hábito de ler “perícopes” homiletica-
mente (ou seja, lemos pequenos trechos pensando no próximo sermão, ou lemos
pequenos trechos e os interpretamos dentro dos limites da igreja e do ministério
pastoral) – cuidar, sem abandonar. Precisamos nos habituar a ler livros inteiros

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da Bíblia, tentando entender o conjunto da mensagem de cada um desses livros;
precisamos retomar o hábito de ler a Bíblia toda em curtos períodos de tempo
(um ou dois anos), mas não só para “ler”, e, sim, para notar (e anotar) as recor-
rências temáticas que passam pela Bíblia toda, pois essas repetições temáticas
são uma importante pista para entendermos o que é relevante para o Reino de
Deus (hoje em dia temos também a ajuda de bíblias em cd-rom e online, que
facilitam a busca por repetições temáticas – mas não confunda isto com repe-
tição de palavras). Em linguagem paulina, você precisa permitir que a Bíblia
“habite” ricamente em sua mente (Cl 3,16), isto é, que ela “faça a sua cabeça”;
precisamos reaprender a ler devocionalmente a Bíblia, sem compromisso ser-
monário ou profissional.
(3) Uma nova leitura precisa de novas perguntas. Habituamo-nos a fazer as
mesmas perguntas para a Bíblia, perguntas de tipo doutrinário, perguntas sobre
como fazer melhor o nosso ministério, perguntas sobre o comportamento das
pessoas da igreja, etc. Sem abandonar esse tipo de perguntas, mas colocando-o
em segundo plano, precisamos nos habituar a fazer perguntas que sejam rele-
vantes para o nosso tempo e para a missão da igreja hoje. Por exemplo, questões
de gênero, raça, identidade, saúde, corporeidade, realização profissional, lazer,
globalização, diálogo inter-religioso, prosperidade com justiça, solidariedade,
participação política, evangelização da cultura etc.
(4) Precisamos, na prática, ler a Bíblia em grupos na igreja e fora da igreja
(movimentos populares, lares, escolas, etc.). Não quero dizer que devamos aban-
donar a leitura individual da Bíblia, é claro. Mas precisamos dar mais valor e
ênfase à leitura da Bíblia em pequenos grupos. Um dos primeiros avivamentos

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


25

protestantes começou com a leitura da Bíblia em pequenos grupos – o pietismo.


O movimento de evangelização universitária teve seu maior impulso na prática
do que eles chamavam de estudo indutivo da Bíblia, que era feito em pequenos
grupos nas universidades.
As comunidades eclesiais de base e a teologia da libertação se alimentaram
do estudo da Bíblia em pequenos grupos. Fala-se muito hoje em dia de células,
pequenos grupos, comunhão. Sem entrar no mérito de como isso afeta a estrutu-
ração da igreja, precisamos aprender a trabalhar a leitura da Bíblia nesses novos
modelos de igreja. Mas, ler a Bíblia em grupo não é “um falar e outros poucos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

anotarem”. Ler em grupo significa que todos os participantes do grupo falam,


discutem, contribuem.
(5) Talvez você não goste muito dessa sugestão, mas eu a entendo como tão
importante como as anteriores. É necessário buscar novas teorias do sentido,
aperfeiçoar os métodos tradicionais, aproveitar e criar novos métodos de leitura
da Bíblia (popular, feminista, semiótica, literária, etc.). No ministério pastoral,
a dimensão acadêmica não deveria ser abandonada. Todo pastor e pastora que
deseja ser efetivamente relevante e transformador em seu ministério deveria
assumir, também, a sua tarefa de produzir saber, de estudar disciplinadamente,
de ser um estudioso ou estudiosa das coisas de Deus e da humanidade.
Há muitos novos conhecimentos sobre a leitura, sobre o sentido, sobre a
hermenêutica. Esses conhecimentos são importantes para renovarmos nossos
hábitos e transformarmos nosso jeito de ler a Bíblia. Não é exagero acreditar que
você pode ler um ou dois livros acadêmicos sobre a Bíblia por ano, ou é? Não é
demais imaginar que você separaria tempo para voltar a estudar, fazendo uma
pós-graduação em teologia, ou uma nova graduação em outra área do saber?
Henri Nouwen (2002, p. 57.) nos desafía nesse sentido:
Os líderes cristãos do futuro precisam ser teólogos, pessoas que conhe-
cem o coração de Deus e são treinadas – através da oração, do estudo
e da análise detalhada – a manifestar o supremo evento da obra reden-
tora de Deus no meio dos inúmeros eventos aparentemente casuais da
sua época.

(6) Um hábito que além de agradável ajuda muito a pregar melhor é o de acom-
panhar a leitura da Bíblia com a leitura de obras culturais de nosso tempo:

Breve Revisão da Teoria Hermenêutica


26 UNIDADE I

literatura, poesia, cinema, música, etc. Ser capaz de temperar os sermões com
citações literárias, poéticas, ou do cinema, é uma boa prática, que atrai a atenção,
que comunica melhor, que ajuda a entender melhor a realidade, que aumenta
nosso vocabulário, nossa capacidade de criar e inovar, etc.
Os melhores pregadores contemporâneos que eu tenho ouvido, e de quem
tenho aprendido, são ávidos leitores de boa literatura. Aliás, ler boas obras literá-
rias deveria ser um hábito permanente de quem se dedica ao ministério, pois além
de muitos outros benefícios, a literatura de qualidade é uma das principais vias de
aprendizado da cultura contemporânea, e dos estilos de ser pessoa no mundo atual

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
– melhor até do que muitas obras técnicas de psicologia, sociologia, filosofia, etc.
Novos tempos demandam novas práticas. Nas duas últimas décadas temos
visto intensas mudanças na liturgia e na estruturação de igrejas locais, bem como
importantes alterações nos hábitos pastorais. Algumas dessas mudanças não são
tão boas quanto gostaríamos, mas é necessário tentar, mesmo que erramos – pois
sempre se pode consertar o que está errado.
Vejo com muito prazer novos hábitos devocionais e de liderança que muitos
ministros e ministras têm adotado, na busca de serem exemplos de fato para seus
rebanhos. Vejo com bons olhos que muitas pastoras e pastores têm incorporado
algumas características de comunicação derivadas da televisão – sermões mais nar-
rativos, maior movimentação, alguma interatividade com o auditório. Não tenho
visto, porém, mudanças significativas nos hábitos de leitura da Bíblia – pelo menos
a partir do que se pode perceber pelo conteúdo de sermões.
Por menos prático que possa parecer, porém, renovar nosso jeito de ler a Bíblia
é fundamental para um ministério criativo, inovador e eficaz. É bom nos lembrar-
mos que a Palavra de Deus é o principal meio pelo qual Deus age, ela é a espada do
Espírito, é luz para nossos passos, é inspiração divina para o nosso viver. O poder
da Palavra supera todas as estratégias, planejamentos, estruturações e modelos de
igreja e ministério. A Palavra nos ensina a discernir, a decidir, a fazer as coisas cer-
tas nas horas certas.
E hoje em dia, diante de tantas alternativas à nossa disposição, saber escolher a
melhor é um imperativo urgente. Por isso, insisto com você na importância de buscar
novos hábitos de leitura da Bíblia. Insisto e reafirmo: uma das dimensões fundamen-
tais do ministério é a acadêmica – você precisa também ser um estudioso e estudiosa

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


27

da Escritura, da teologia, da realidade humana, da vontade de Deus. Ler bem a Bíblia


demanda esforço disciplinado, estudo teórico e experimentação constante.
Para mim, o mais importante é que a leitura da Bíblia deveria se tornar uma
prática comunitária. Os métodos vêm e vão, alguns são melhores do que outros,
mas nenhum dura para sempre. Fundamental é repensarmos o sujeito da leitura
da Bíblia. Está mais do que na hora da igreja voltar a ser uma comunidade her-
menêutica, como foi nos primeiros séculos de sua existência.
A leitura individual da Bíblia deveria estar a serviço da leitura comunitá-
ria e você, pastor(a), é a pessoa chave para que mudanças desse tipo ocorram
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

na sua igreja. Imagine e planeje que mudanças fundamentais deveriam ocorrer


em sua prática ministerial cotidiana para que a leitura da Bíblia se tornasse uma
prática importante de sua comunidade. Você já pensou em como preparar o
sermão com a participação dos membros da igreja? Participação ativa, e não só
a passiva participação tradicional, do tipo “é para a igreja que eu me preparo”?
Imagine e aja. Imaginação é chave para a renovação, e sem a Bíblia não há ver-
dadeira renovação pessoal, ministerial ou eclesial.

BREVE REVISÃO DA METODOLOGIA SÊMIO-DISCURSIVA

Estudamos a Bíblia porque: (1) queremos conhecer melhor a Deus; (b) queremos
servir melhor a Deus; (c) queremos crescer espiritualmente; (d) queremos discernir
a vontade de Deus para a nossa vida e nosso ministério. Porque a Bíblia é a Palavra
de Deus, nós levamos muito a sério o seu estudo. Não queremos ler na Bíblia a
“nossa” teologia, precisamos encontrar na Bíblia, a instrução de Deus para nós.
A hermenêutica tem como objetivo primário e fundamental a compreen-
são dos textos bíblicos em seu contexto e a sua aplicação para o nosso contexto.
Temos usado a palavra hermenêutica nesta disciplina como a teoria da interpre-
tação. Toda teoria precisa ser complementada por uma metodologia. Damos à
metodologia de interpretação da Bíblia o nome de exegese.

Breve Revisão da Metodologia Sêmio-Discursiva


28 UNIDADE I

A exegese sêmio-discursiva é uma metodologia derivada da teoria herme-


nêutica da enunciação, e nós a usaremos neste curso de teologia porque tem
muitos valores e permite compreender o texto de forma bastante abrangente –
sendo guiada, para isso, pelo próprio texto. Mas, por mais importante que seja
o método, não pode substituir o texto. Todo e qualquer método de interpreta-
ção bíblica deve permitir que o texto aponte as pistas para a sua compreensão,
de modo que o texto fale mais do que nós!
A partir da teoria enunciativa, nós percorreremos um caminho (sinônimo
de método) com três fases: preliminar, preparatória e final, conforme descrito a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
seguir. Note bem: nós percorremos um caminho – ou seja, só se aprende a fazer
exegese, fazendo! Só se chega ao fim do caminho, caminhando! O meu papel,
como professor, é apontar o caminho, andar com você os primeiros passos, e
apoiar você quando estiver caminhando sozinha ou sozinho. Não sou eu quem
fará a exegese do texto bíblico. Seremos você e eu.
A metodologia que utilizaremos está dividida em três fases, que vão se tor-
nando mais complexas e abrangentes. Cada fase tem seus objetivos, e consiste
em uma série de perguntas que fazemos ao texto, a fim de, aos poucos, construir-
mos a exegese. A fase final é a mais importante e complexa, e está estruturada
em cinco ciclos, ou seja, você irá estudar o texto a partir de cinco diferentes pon-
tos de vista, todos eles baseados na teoria sêmio-discursiva.

FASE PRELIMINAR

Objetivo: Familiarizar-se com o texto em seu contexto literário.

Como fazer:
1) ler o texto bíblico até ficar amplamente familiarizado com ele;
2) anotar as suas primeiras impressões e dúvidas sobre o texto (revisá-las
a cada ciclo da leitura);
3) ler o livro, ou seção do livro, ao qual o texto pertence, notando suas prin-
cipais inter-relações (vocabulário, pessoas, lugares, assuntos);

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


29

4) definir, provisoriamente, a época em que o texto foi escrito, e conhe-


cer o máximo que puder sobre ela.

FASE PREPARATÓRIA

Objetivo: Analisar o texto enquanto plano de expressão.

Como fazer:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(1) Qual é o texto a ser interpretado (do ponto de vista da crítica textual e
genética); (2) como o texto está delimitado, segmentado e estruturado; e
(3) que elementos do plano de expressão contribuem mais intensamente
para a produção do sentido?

FASE FINAL

Objetivo: Analisar o texto enquanto plano de conteúdo.


Um método organizado em ciclos permite o estudo do texto bíblico de dife-
rentes pontos de vista, mas todos girando ao redor de um eixo: a ação!

Como Fazer:
Respondendo às perguntas de cada ciclo, que correspondem às diversas
dimensões de significado de um texto, conforme apresentado a seguir.

I Ciclo: A dimensão espaço-temporal da ação


(1) Quem age, onde, quando, fazendo o quê, a quem; (2) como são carac-
terizados agentes, pacientes, tempo e espaço no texto; (3) como o texto
organiza essas ações e relações no tempo e no espaço?
O espaço e o tempo não são apenas realidades geográficas e cronológicas,
também são realidades culturais e funcionam como estruturas básicas
da ação humana.

Breve Revisão da Metodologia Sêmio-Discursiva


30 UNIDADE I

II Ciclo: A dimensão teológica da ação


Quais são as possibilidades de sentido teológico da ação e como elas estão
organizadas: (1) intertextual e interdiscursivamente; (2) estilística e argu-
mentativamente; e (3) sintática e tematicamente?
A teologia de um texto está organizada em várias camadas distintas, e
precisamos analisá-las uma por uma, sem perder de vista a sua unidade

III Ciclo: A dimensão sociocultural da ação

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação
sob os pontos de vista da (1) sociedade; (2) cultura; e (3) religião?
A sociedade, a cultura e a religião são realidades complexas, fruto da ação
e da interação organizada e conflitiva de pessoas e instituições.

IV Ciclo: A dimensão psico-social da ação


Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, (1) descreve as rela-
ções passionais no texto; e (2) constitui a identidade dos agentes a partir
de seus objetivos, motivos, competências e relações passionais?
As nossas emoções e a nossa identidade são construídas na relação com
outras pessoas, e expressas no texto de formas muito diversificadas.

V Ciclo: A dimensão missional da ação


Que possibilidades de ação e sentido da ação o texto constitui no diálogo
conosco; e como podemos praticá-las e/ou re-escrevê-las em nossa pró-
pria realidade?
A releitura é, ao mesmo tempo, o ciclo final e o “ponto de partida” da
exegese, pois sempre que lemos um texto, lemos a partir de nossas pre-
ocupações, interesses e perguntas. Reler um texto bíblico é re-escrever o
texto em nosso contexto e em nossas ações.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


31

CONTEXTO: DISCUSSÃO E DEFINIÇÃO DE TERMOS


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Vamos agora discutir a noção de contexto, que tem um papel importante em


qualquer exegese bíblica.

REVENDO A NOÇÃO DE CONTEXTO

Tradicionalmente o contexto é pensado como o extra-texto, como a realidade


externa ao texto na qual o texto foi produzido. Essa é uma noção derivada do
senso comum. É claro que existe uma realidade ‘fora’ do texto – pessoas, paí-
ses, casas, palácios, etc. É claro que podemos nos referir a essa realidade como
o contexto de uma obra escrita. Entretanto, não podemos permanecer no nível
do senso comum e seu realismo ingênuo. De fato, essa realidade extratextual só
faz sentido e só contribui para a feitura do sentido no texto na medida em que
ela é compreendida semioticamente.
É nesse sentido que podemos entender a afirmação greimasiana, por exemplo,
de que ‘fora do texto não há salvação’ (parafraseando o famoso axioma teoló-
gico patrístico). Não se trata de uma ingênua linguistificação das coisas, mas de
uma afirmação forte e retoricamente pesada de que o único acesso que temos
ao ‘contexto’ é mediante a semiose – a produção de sentido. Para ser mais pre-
ciso, não há realidade extra semiótica – o contexto é, ele mesmo, semiótico, ou
seja, precisa ser interpretado.

Contexto: Discussão e Definição de Termos


32 UNIDADE I

O linguista franco-argelino A. J. Greimas é o fundador da teoria semiótica do


discurso. Nós o estudamos na disciplina Métodos e Interpretação Bíblica, e
todos os conceitos e estratégias que desenvolvi no método sêmio-discursi-
vo são fruto de meu diálogo crítico com esse importante autor.
Fonte: o autor.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Voltando à terminologia greimasiana, o contexto não é uma realidade extra
semiótica, o contexto é semiótico. De fato, todas as coisas existentes existem
também semioticamente. Por isso, na tradição greimasiana se pode falar, por
exemplo da ‘semiótica do mundo natural’ – na medida em que nosso acesso à
‘natureza’ é semioticamente mediado: pela semiótica natural propriamente dita,
pelos indícios de significação e sentido que a própria natureza nos oferece, e pela
semiótica discursiva – pelas descrições, explicações, articulações semânticas que
nós damos ao mundo natural mediante nossas várias atividades de produção de
sentido (entre elas, a ‘ciência’).
O contexto de um texto (bíblico, ou não) é, dessa forma, uma realidade semi-
ótica, e não uma realidade extralinguística ou extrasemiótica. Nosso acesso ao
contexto é semioticamente mediado – e a própria descrição histórica do contexto
não passa de uma reconstrução semiótica do mundo em que o texto foi elabo-
rado. Essa reconstrução dialoga, é claro, com as diversas semióticas desse mundo:
a natural (quando utilizamos fontes da ‘natureza’), a arquitetônica (quando utili-
zamos fontes arqueológicas ‘monumentais’), a discursiva (quando nos utilizamos
de fontes escritas da época), etc. Dessa forma, a reconstrução do contexto de um
texto deve ser repensada como parte da interpretação do próprio texto, como
uma pesquisa sobre o contexto no texto, sobre o contexto que ‘atravessa’ o texto
com sua frágil presença, por assim, dizer, nas entrelinhas do texto.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


33

Podemos, aqui, inserir uma contribuição proveniente da Linguística Textual:


“O contexto, da forma como é hoje entendido no interior da Linguís-
tica Textual abrange, portanto, não só o co-texto, como a situação de
interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolítico-cultural)
e também o contexto sociocognitivo dos interlocutores que, na verda-
de, subsume os demais. Ele engloba todos os tipos de conhecimentos
arquivados na memória dos actantes sociais, que necessitam ser mobi-
lizados por ocasião do intercâmbio verbal (cf. Koch, 1997): o conheci-
mento linguístico propriamente dito, o conhecimento enciclopédico,
quer declarativo, quer episódico (frames, scripts), o conhecimento da
situação comunicativa e de suas “regras” (situacionalidade), o conhe-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

cimento superestrutural (tipos textuais), o conhecimento estilístico


(registros, variedades de língua e sua adequação às situações comuni-
cativas), o conhecimento sobre os variados gêneros adequados às di-
versas práticas sociais, bem como o conhecimento de outros textos que
permeiam nossa cultura (intertextualidade)” (KOCH, 2003, p. 24).

Assim repensada a noção de contexto, podemos perceber mais uma razão porque
jamais duas interpretações de um texto serão idênticas – não só as habilidades
analíticas de texto diferem, mas também – e principalmente – o lugar das pes-
soas no contexto é sempre diferente: jamais duas pessoas veem e vivenciam seu
contexto de forma idêntica. Assim também, na interpretação de um texto bíblico,
jamais se poderá reconstruir o contexto do texto de forma idêntica – seja à vivên-
cia do contexto pelo autor ou autora do texto, seja à reconstrução do contexto
por intérpretes do texto.
Aliás, levando em conta essas diferenças inevitáveis, podemos também com-
preender o dito hermenêutico de que um intérprete chega a compreender o texto
melhor do que seu autor ou autora. Poderíamos evitar mal-entendidos deixando
de usar o advérbio ‘melhor’ e usando o advérbio diferentemente, que englobaria
a capacidade de intérpretes em captar sentidos que sequer teriam sido intencio-
nados por autoras e autores.
Ao rever a noção de contexto, precisamos de uma nova terminologia para
diferenciar as dimensões do que chamamos de contexto, um termo que tem sido
usado de modo bastante impreciso e plural.

Contexto: Discussão e Definição de Termos


34 UNIDADE I

Proponho usar a seguinte terminologia: (a) realidade histórica (ou só reali-


dade), para nos referirmos ao conjunto de ações, instituições, grupos sociais e
estruturas de uma determinada época em um determinado lugar; (b) situação
retórica, para nos referirmos à situação específica a que um texto nasce em res-
posta e que inclui não só a intencionalidade do sentido do autor, mas também
a resposta de seus primeiros ouvintes-leitores – e que somente pode ser conhe-
cida mediante os indícios que o próprio texto oferece; (c) contexto (com-texto
ou universo discursivo), para a relação discursivamente mediada entre o texto,
sua realidade e sua situação retórica, pois é essa relação que, de fato, podemos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
chamar de contexto, e (d) co-texto para as relações internas da perícope estu-
dada com o ‘texto’ (livro ou seção de livro ou do cânon bíblico) da qual ela faz
parte. Em certo sentido, assim como no caso dos termos anteriores, o co-texto
depende da decisão hermenêutica em relação ao texto a ser interpretado.
Dessa forma, não é necessário pensar no contexto como ‘fora’ do texto, mas
como dimensão integrante do texto: o contexto está no texto e, em certo sentido,
ler um texto em seu contexto é simplesmente ler o texto (é impossível ler um texto
‘fora do contexto’, a não ser na medida em que usemos essa frase para nos refe-
rirmos a uma interpretação que situe erradamente o texto em seus contextos).

REVENDO A QUESTÃO METODOLÓGICA

(a) A leitura deve partir da premissa de que toda reconstrução do contexto pelo
intérprete se diferencia da percepção do contexto pelo autor do texto, de tal
modo que se faz necessário, mediante a análise interna do texto, tentar recons-
truir como o próprio texto se situa em seu contexto (ou o reconstrói).
(b) A leitura deve exercer em relação ao texto uma postura crítica, na medida
em que precisa analisar as pretensões de validade utilizadas pelo texto, expli-
cando porque o texto se apresenta como tal e não de outra forma.
(c) A leitura, enfim, deve saber discernir os problemas que o texto encontrou
e tentou resolver em seu contexto para, a partir deles e das respostas textuais,
construir os próprios problemas que a interpretação visa resolver em seu pró-
prio contexto, a fim de que a interpretação não seja mera reprodução textual,

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


35

mas seja um efetivo diálogo com o texto antigo, concretizado na elaboração de


um novo texto em um novo contexto.
Consequentemente, não basta estudar o contexto de um texto bíblico a partir
de sua reconstrução historiográfica, por mais ampla que seja. Tal reconstrução é,
sim, necessária e indispensável. Não é, entretanto, suficiente. Precisamos, tam-
bém, analisar o contexto a partir de uma reconstrução semiótica da época em
que o livro foi escrito, pois essa reconstrução nos permitiria enxergar o contexto
a partir da interpretação do próprio autor ou autora do texto, e estabelecer o diá-
logo necessário com nossa própria visão do contexto.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Há três procedimentos complementares que a teoria sêmio-discursiva oferece


para a análise do contexto de um livro ou texto a ser interpretado. O primeiro é a
análise do gênero textual do livro, o segundo é a análise das relações interdiscur-
sivas do e no livro, e o terceiro é a análise do contrato de veridicção proposto pelo
texto. Mediante a análise do gênero, situamos o livro no conjunto das instituições
e práticas sociais de sua época. Mediante a análise das relações interdiscursivas
situamos o livro e suas perícopes nas relações contratuais e polêmicas de seu
universo discursivo (ou conjunto das instituições e práticas sociais). Mediante a
análise do contrato de veridicção do texto especificamos os resultados alcança-
dos mediante os dois procedimentos anteriores.
Não posso entrar em detalhes, aqui, sobre os procedimentos propriamente
ditos, de modo que me restrinjo à definição teórica dos três processos de aná-
lise. Início com o conceito de gênero textual:
[...] os gêneros são tipos de texto que codificam os traços característicos e
as estruturas dos eventos sociais, bem como os propósitos dos participantes
discursivos envolvidos naqueles eventos. Assim, os gêneros textuais (orais
ou escritos) constituem um ‘inventário’ dos eventos sociais de determinada
instituição, ao expressarem aspectos convencionais daquelas práticas so-
ciais, com diferentes graus de ritualização” (BALOCCO, 2005, p. 65).

Como a própria definição indica, a principal contribuição do estudo dos gêne-


ros textuais, para a exegese, está na compreensão da relação do texto com o seu
contexto, conforme explicita Meurer (2002, p. 28):
[...] descrever e explicar gêneros textuais relativamente às representações,
relações sociais e identidades neles embutidas poderá servir para eviden-
ciar que, no discurso, e através dele, os indivíduos produzem, reproduzem,
ou desafiam as estruturas e as práticas sociais onde se inserem.

Contexto: Discussão e Definição de Termos


36 UNIDADE I

Em seguida, a contribuição das relações interdiscursivas. Também me restrinjo


às definições básicas. (a) Interdiscursividade é o termo que explica o uso que um
texto faz de discursos, a ele anteriores, ou contemporâneos. Há duas maneiras
de uso de outros discursos: a citação, quando um texto copia percurso(s) temá-
tico(s) de outro(s); e a alusão, quando um texto se apropria mais livremente de
percurso(s) temático(s) de outro(s). (b) Intertextualidade é o termo que explica
o uso que um texto faz de outros, a ele anteriores, ou contemporâneos.
Há três maneiras de uso de outros textos: a citação, quando um texto copia
literalmente partes ou o todo de outro(s) texto(s); alusão, quando um texto se

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
apropria não literalmente de partes ou do todo de outro(s); e estilização, quando
um texto imita o estilo de outros. Tanto na interdiscursividade quanto na inter-
textualidade, o uso dos outros textos e/ou discursos pode ser de forma contratual
(quando há um acordo de ideias ou práticas), ou polêmica (quando os outros
textos e/ou discursos são usados sem concordância).
Nem sempre as relações interdiscursivas estão explicitadas no texto, de modo
que o estudo dos ‘implícitos’ (pressupostos e subentendidos) é indispensável para
a análise. Quando as relações estão explicitadas, há várias maneiras de marcar no
texto essas relações. Pode-se afirmar claramente que se está citando um outro texto
ou discurso; pode-se indicar essas relações mediante o uso de aspas, travessões ou
outras formas de pontuação; pode-se usar de recursos estilísticos como a ironia
e a paródia; pode-se usar a negação; pode-se usar glosas; podem-se usar tam-
bém diferentes formas de
inclusão de outras vozes:
discurso direto (a fala da
“voz” é citada), e discurso
indireto (a fala da “voz”
é marcada por um verbo
de dizer e uma oração
subordinada substantiva
objetiva direta).

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


37

O terceiro procedimento é o da análise do contrato de veridicção, uma das


noções fundamentais do conceito mais amplo de narratividade desenvolvido
por Greimas e cooperadores:
Parte-se de duas concepções complementares de narratividade: narra-
tividade como transformação de estados, de situações, operadas pelo
fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em
busca de certos valores investidos nos objetos; narratividade como su-
cessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um desti-
nador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos
entre os sujeitos e a circulação de objetos-valor (BARROS, 1988, p. 26).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A chave aqui é a percepção dos objetos-valores do texto e o contrato de veridic-


ção que está implícito em sua busca. O conceito de contrato de veridicção pode
ser assim descrito:
No nível do discurso, o contrato fiduciário é um contrato de veridic-
ção, que determina o estatuto veridictório do discurso. A verdade ou
a falsidade do discurso dependem do tipo de discurso, da cultura e da
sociedade. [...] O contrato de veridicção determina as condições para
o discurso ser considerado verdadeiro, falso, mentiroso ou secreto, ou
seja, estabelece os parâmetros, a partir dos quais o enunciatário pode
reconhecer as marcas da veridicção que, como um dispositivo veridic-
tório permeiam o discurso. A interpretação depende, assim, da aceita-
ção do contrato fiduciário e, sem dúvida, da persuasão do enunciador,
para que o enunciatário encontre as marcas de veridicção do discurso
e as compare com seus conhecimentos e convicções, decorrentes de
outros contratos de veridicção, e creia, isto é, assuma as posições cog-
nitivas formuladas pelo enunciador (BARROS, 1988, p. 93).

Nesse sentido, reafirma-se a proposição teórica anteriormente apresentada


de que o contexto não está fora do texto, mas presente no texto, e presente de
diferentes modos. Assim, mantemos o valor das definições históricas e con-
textuais da leitura bíblica: o texto só produz sentido em seu contexto. Porém,
oferecemos um olhar metodológico mais adequado para cumprir a tarefa da
interpretação.

Contexto: Discussão e Definição de Termos


38 UNIDADE I

O ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO


COMO CONTEXTO DO AT

Para entendermos o contexto dos livros do Antigo Testamento precisamos conhe-


cer o mundo em que Israel viveu. A esse mundo chamamos de Antigo Oriente
Próximo - o tema deste tópico.

O ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO (MÉDIO)

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“O palco da história do povo de Israel é a parte meridional do corredor
siro-palestinense entre as antigas civilizações e potências situadas junto
ao Nilo, na Mesopotâmia e na Ásia Menor. Em virtude de sua situa-
ção geográfica, esse corredor foi ao longo dos milênios um cadinho
de influências políticas e culturais que, provindo de todas as direções,
ali se encontravam e eram processadas. Estava destinada a transmitir
ao Ocidente, pela via dos gregos, a herança do Oriente. Além dessa
missão histórico-cultural, não produziu formações políticas autôno-
mas em maior estilo. O corredor era e permaneceu uma região de in-
teresses e objeto da política imperialista dos impérios. Só nas fases de
enfraquecimento das potências externas conseguia, sempre passagei-
ramente, ganhar um peso político próprio. [...] a história de Israel em
época alguma poderá e deverá ser considerada isoladamente. Ela está
entrelaçada na história do Oriente Antigo, sendo em todos os sentidos
parte inseparável da mesma.” (DONNER, 1997, p. 33)

A essa região também se costuma dar o nome de Crescente Fértil, em função de sua
semelhança com a lua crescente e sua capacidade produtiva (agrícola e pastoril),
estando entre duas grandes regiões dominadas por grandes rios (Nilo, no Egito; Tigre
e Eufrates, na Mesopotâmia). Na segunda
metade do segundo milênio, há um equi-
líbrio de forças entre as grandes potências
do Antigo Oriente: Egito (junto ao Nilo),
Mitanni, Assíria, Babilônia (os três na
Mesopotâmia) e Hititas (Ásia Menor)
– todas as quais tentavam se configu-
rar como impérios, dominando toda a
região, mas sem o conseguir.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


39

Como potências menores havia a Síria (Mesopotâmia) e a Etiópia (África ao


sul do Egito). Esse desenvolvimento do imperialismo foi possível, entre outros
fatores, graças à tecnologia de carros de combate (introduzida pelos hicsos, que
dominaram o Egito entre 1730 e 1580 a.C.).
Os governantes dos países do Oriente Próximo formaram corpos de
carros de combate, cujos integrantes constituíam uma espécie de no-
breza de cavaleiros a serviço da coroa. Em tempos de paz esse corpo de
cavaleiros (maryannu, maryannutu) podia ficar estacionado em dife-
rentes partes do império, receber feudos dos bens da coroa e manter-se
em prontidão para a guerra (DONNER, 1997, p. 35).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Continuemos a seguir a descrição feita por Donner:


“Por volta de 1200 a.C. o sistema de impérios da segunda metade do se-
gundo milênio desmoronou de forma relativamente rápida, se bem que
não inesperada. O impulso para isso veio com a chamada migração dos
povos do mar, que desde o séc. 13 aflui para as regiões da periferia oci-
dental do Oriente Médio, por água através do Mar Mediterrâneo e por
terra através da Ásia Menor. Os povos do mar, que de forma alguma eram
sempre grupos coesos entre si, provinham principalmente das ilhas do
Mar Egeu, em parte talvez também dos Bálcãs. Ante seu ímpeto, conju-
gado com a pressão dos frígios e de outras populações da Ásia Menor
Ocidental, o Novo Reino Hitita sucumbiu.” (DONNER, 1997, p. 45)

O Egito também sofreu a perda de seu domínio na Palestina e Ásia Menor, redu-
zindo-se à região africana.
Esse desenvolvimento naturalmente não deixou de ter conseqüências para o
corredor. Com o caso do reino hitita e com a extinção da hegemonia egípcia sur-
gira aí, por assim dizer, um espaço vazio em termos de poder político. A partir do
momento do término do equilíbrio de forças no Oriente Próximo, os territórios
situados entre os blocos de poder tornaram-se historicamente relevantes e capazes
de produzir formações políticas próprias – por certo não de imediato, mas poten-
cial e tendencialmente. Tal possibilidade foi promovida pelo afluxo e surgimento
de novos elementos populacionais, e por fim efetivada pelos filisteus e arameus.
De qualquer maneira, aos arameus pertenciam os amonitas, moabitas e
edomitas da Transjordânia – e aquelas tribos que sob o nome de Israel
posteriormente se estabeleceram e se tornaram sedentárias sobretudo
na Cisjordânia. Na região montanhosa, toparam com os filisteus, e os
filisteus com eles: um conflito da mais alta relevância histórica, que,
por fim, levou à formação do Estado israelita” (DONNER, 1997, p. 49).

O Antigo Oriente PróximoComo Contexto do AT


40 UNIDADE I

A esses dados devemos acrescentar: (1) que na região siro-palestinense a organi-


zação política desenvolvida nesse período foi a de cidades-estado, ou seja, cidades
fortificadas que dominavam uma determinada região de terra agricultável ao seu
redor, e eram governadas por um rei. As várias cidades-estado competiam entre si
pelos territórios e algumas ascendiam no poder temporariamente, em detrimento
de outras; (2) a importante presença de grupos populacionais que não se deixavam
subordinar ao poderio das cidades-estado, e viviam em regiões marginais/perifé-
ricas. Esses grupos populacionais viviam como nômades, semi-nômades ou como
“bandoleiros”, de acordo com suas opções econômicas e de organização social. Dos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
grupos semi-nômades veio boa parte da população do futuro povo de Israel, aos
quais dedicaremos atenção em um tempo posterior.
Deve ficar claro para quem estuda a história de Israel que este povo, que se cons-
titui tardiamente na região (o início de sua história não se deve datar antes de 1.230
a.C), foi constituído como um amálgama de formações sociais, culturais, religiosas,
políticas e econômicas. A noção de uma população racialmente definida, etnica-
mente bem delineada, religiosamente separada de seus vizinhos não se aplica, de
forma alguma, ao nascente Israel – que era uma população sincrética do ponto de
vista cultural e religioso. Quatro foram as grandes influências que marcaram esse
sincretismo: a negra-africana (Egito e Etiópia/Cuxe); a siro-mesopotâmica; a dos
povos do mar (especialmente filisteus) e a das populações marginais ao sistema.
Destaco: (a) o politeísmo e a longa tradição religiosa oficial dos Estados, bem como
os conflitos entre as religiões oficiais dos impérios e das cidades-estado e as religiões
populares; (b) a organização tributária dos Estados, mediante a qual a corte (e seu
exército) e o sistema religioso oficial (Templos e sacerdócio) eram sustentados pelos
tributos recolhidos junto aos camponeses (agricultores e/ou pastores), pelos espó-
lios de guerra, e pelo trabalho gratuito prestado pelas populações camponesas e pelos
escravos de guerra ao Estado (corvéia); (c) uma relativa miscigenação étnica-racial,
provocada pelos constantes contatos interpopulacionais, não só de natureza comer-
cial e pacífica – imagina-se, por exemplo, os efeitos de uma invasão militar com seus
inevitáveis estupros, deslocamentos populacionais e mortalidade de homens jovens.
Passo ao estudo da cosmologia vétero-oriental, tema que destaca as diferen-
ças principais entre o modo dos antigos verem o mundo e o modo atual como nós
mesmos vemos o mundo.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


41

ASPECTOS BÁSICOS DA COSMOLOGIA VÉTERO-ORIENTAL

A cosmologia vétero-oriental, com variantes, é claro, concebia a o mundo em três


níveis: (a) o nível superior, celestial ou divino, habitado por um grande número de
deuses e deusas – em constante comunicação com o nível intermediário e, em menor
grau, com o nível inferior – localizado acima do “céu” visível a olho nu; (b) o nível
intermediário, da terra, concebido mais ou menos como uma lâmina quadrada sus-
tentada por colunas acima das águas do nível inferior, habitado por criaturas não-vivas
e vivas – distinguidas, por sua vez, entre “humanos” e “animais” (entre aspas, porque
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

as concepções de “homem” e “animal” não eram as atuais modernas); e (c) o nível


inferior, localizado debaixo da terra, que é o mundo da morte, habitado por deuses
(vivos) e seres humanos (mortos), no qual se encontra o “mar” ou os “rios” originários.
Um lembrete: os termos “mundo” e “cosmologia” são, em certo sentido, anacrô-
nicos, na medida em que vêm do mundo grego e do mundo moderno. Os termos
vétero-orientais para o que chamamos de mundo eram de tipo concreto e não abs-
trato, como, por exemplo, a hendíade “céu e terra”.
Uma particularidade dessa cosmovisão, no tocante às divindades, graças à con-
cepção híbrida, é que elas tanto habitavam nos níveis superior e inferior, quanto no
terreno: em montanhas, que faziam a comunicação entre o nível intermediário e o
superior (daí o formato antigo dos templos mesopotâmicos, na forma de torres imi-
tando montanhas), ou em nascentes de rios, ou em lugares desertos, ou, enfim, em
locais litúrgicos encontrados ou construídos por seres humanos.
Não havia, então, uma compreensão de leis impessoais regendo a vida do nível
intermediário – tudo o que acontece “aqui” acontece mediante a atividade dos deu-
ses, de modo que eles devem ser: (a) temidos, posto que podem matar; (b) servidos,
posto que possuem um poder supremo; (c) cultuados, posto que podem ser influen-
ciados para fazer coisas boas em nosso benefício; e (d) estudados, posto que podemos
conhecer como eles fazem a ordem do mundo funcionar.
Como no mundo vétero-oriental não havia ainda diferenciação de esferas de
valor e saber, as explicações sobre a vida em sua totalidade eram híbridas e com-
plexas na medida em que os aspectos natural, político, econômico, social, cultural
e religioso formavam um único conglomerado explicativo. A partir do VIII século
a.C., porém, já se pode notar no Antigo Oriente, como em outras regiões do mundo,

O Antigo Oriente PróximoComo Contexto do AT


42 UNIDADE I

formas incipientes de diferenciação entre religião e política, principalmente nas crí-


ticas de cunho profético contra governantes (relativamente intensas em Judá e Israel,
mas não ausentes de todo em outros países vétero-orientais).

ASPECTOS BÁSICOS DA NOÇÃO DE CRIAÇÃO

Em todo o Antigo Oriente Próximo a existência do mundo é atribuída à ação


criadora dos deuses. Varia, de região em região, de época em época, a descrição

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da criação e a extensão do mundo criado – que pode ser apenas a região onde
habitam os seguidores da divindade criadora (em textos mais antigos), ou pode
ser “toda a terra”, ou seja, todas as regiões que, de uma forma ou de outra, estão
presente na vida dos seguidores da divindade – nunca, porém, o “planeta” terra.
Vejamos, como exemplo, o caso da Bíblia Hebraica.
Nos dois relatos da criação em Gn 1,1-24ª e Gn 2,4b-17 não há nenhuma indi-
cação de que “céu e terra” (Gn 1,1 & 2,4b) seja o que nós chamamos de universo
(cosmos), ou de que a terra seja o “planeta” terra. No capítulo 2 encontramos
uma descrição geográfica compatível com o que hoje chamamos de Crescente
Fértil, ou seja – um arco que vai do Egito à Mesopotâmia ao longo do litoral do
Mediterrâneo (cf. os quatro “rios” [cf. o delta do Nilo] que saem do rio primor-
dial do Éden em 2,10-14).
Do ponto de vista hermenêutico, os fatores mais importantes dessa descrição
são: (a) a ausência de uma descrição metafísica; (b) crença nos deuses como seres
poderosos agentes na vida sobre a terra; (c) crença na capacidade destruidora dos
deuses – a ameaça de “fim do mundo” é base para a maior parte das liturgias de
Ano Novo na região; (d) crença em uma ordem da vida no nível intermediário,
regida diretamente por um ou mais deuses – fonte da sabedoria vétero-oriental e
precursora do que chamamos hoje em dia de ciência (note-se, por exemplo, que
na sabedoria israelita não é necessária uma “revelação” da divindade para se obter
conhecimento. Esse é obtido mediante a observação dos acontecimentos naturais e
humanos. O “temor a Deus” é o fundamento existencial para a sabedoria, mas não
exerce, poderíamos dizer, papel epistêmico; e (e) a contextualidade das descrições do
mundo e da ação dos deuses, com variações significativas entre as regiões do oriente.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


43

Esse último item nos possibilita uma observação importante do ponto de


vista das discussões hermenêuticas e teológicas do período moderno. A cosmo-
logia vétero-oriental é baseada na observação da “realidade” a olho nu, mediante
a experiência empírica nua e crua, direcionada por modelos mítico-religiosos e
não por modelos mítico-científicos.
Não se pode, por um lado, desqualificar o conhecimento vétero-oriental
sobre as dimensões social e expressiva (pessoal) da realidade porque a descri-
ção da natureza é incompatível com o que hoje sabemos sobre o universo (ou
multiverso). Por outro lado também não se pode desqualificar os conhecimentos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

científicos sobre a dimensão físico-natural do cosmos porque eles são diferentes


das descrições vétero-orientais e vétero-testamentárias.
O procedimento interpretativo é similar, sob este aspecto, à interpretação
dos filósofos gregos antigos. Sua cosmologia também era inadequada do ponto
de vista dos conhecimentos científicos atuais, o que não desqualifica, entretanto,
as suas discussões sobre a vida e o conhecimento humanos em sua globalidade.
O texto, então, é sempre um ponto de partida para quem o lê, nunca o ponto
de chegada. A conclusão de um processo interpretativo sempre será um “novo”
texto, mais amplo do que o primeiro, posto que orientada pela “história da lei-
tura” do texto primeiro e pelo universo discursivo de quem o interpreta.

COSMOLOGIAS OCIDENTAIS

Estudamos a cosmovisão do antigo oriente. Agora, é importante vermos como


as Igrejas Cristãs modificaram essa cosmovisão e como a ciência moderna tam-
bém modificou as cosmovisões anteriores.

Cosmovisão Cristã Medieval

A cosmovisão ocidental religiosa (cristã) concebe o mundo como constituído


de três níveis do Ser: (a) o nível superior, onde vive apenas Deus, o Incriado-
Criador, o Ser em sua essência, a Unidade perfeita, o Sentido Verdadeiro; (b) o
nível intermediário, onde habitam entes criados, mas não divinos, nem humanos;

O Antigo Oriente PróximoComo Contexto do AT


44 UNIDADE I

estruturado de forma conflitiva: anjos vs. demônios, organizados de modo mili-


tar: exércitos celestiais; caracterizado pelo dualismo moral: bem vs. mal; e (c)
o nível inferior, o das coisas criadas, habitado por entes inferiores aos do nível
intermediário, articulado em graus de ser: minerais, vegetais e animais – sendo
que os animais também se distinguem entre o humano e os não-humanos.
Nessa cosmovisão, as relações entre os diversos níveis cósmicos são caracte-
rizadas pelo dualismo ontológico: não há comunhão de essência entre os níveis,
apenas ação sobrenatural do Ser no mundo dos entes, descrita predominantemente
em termos morais e/ou miraculosos, e ação dos seres do nível intermediário

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
no nível inferior: (a) em o nível intermediário os anjos são assistentes de Deus,
enquanto os demônios são alvo do juízo divino prévio (não podem ser salvos)
– mas não se fala a respeito de ação de Deus nesse nível; (b) em o nível inferior,
“primariamente” os humanos são objetos da ação divina: (1) objetos do amor/
ira de Deus, conforme sua resposta à oferta de salvação; (2) objetos da provi-
dência divina, “comum” a salvos e não-salvos; (3) objetos do cuidado especial
de Deus – apenas os “salvos” – cuidado também descrito como ação miraculosa.
Em comparação à cosmovisão judaico-cristã antiga, as principais diferen-
ças têm a ver com: (a) comunicação entre os seres dos níveis intermediário e
inferior – na visão pré-moderna, os seres do nível intermediário interagem cons-
tantemente com os do inferior; na moderna, essa interação é menos constante;
e (b) comunicação entre humanos mortos e vivos – na visão pré-moderna essa
comunicação inexiste; na moderna essa comunicação é diferenciada: (1) no
Catolicismo algumas pessoas mortas podem se tornar santas e, como que do
nível intermediário, agir no mundo; (2) no Espiritismo os espíritos dos mortos
interagem constantemente com os vivos; (3) no Protestantismo não se postula
tal tipo de comunicação.
Em relação ao Gênesis, essa cosmologia gera dificuldades exegéticas de
monta – se a identificarmos com o relato bíblico. Como vimos acima, na cos-
mologia judaica antiga não há a noção de separação entre as esferas, nem há
uma concepção dualista do mundo e da realidade. Dessa forma, independen-
temente da validade da cosmologia teísta cristã, do ponto de vista filosófico ou
teológico; do ponto de vista exegético ela não deve servir de base para a leitura
do texto bíblico.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


45

Cosmovisão Mecanicista Moderna

A cosmovisão mecanicista moderna (derivada da ciência dos séculos XVII-


XIX) concebe o mundo como um Universo físico e mecânico regido por leis
físicas (tais como a da gravidade), sem distinção de essência entre seres “natu-
rais” e “sobrenaturais”. A cosmovisão mecanicista pode ser de cunho deísta ou de
cunho ateísta: (a) no Deísmo, elimina-se o nível intermediário e reduz-se Deus
à transcendência – Ele criou o mundo e o entregou às suas próprias leis de fun-
cionamento – no tocante aos seres humanos, Ele não age, mas influencia (?) a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

existência mediante as crenças; (b) no Ateísmo, eliminam-se os níveis intermedi-


ário e superior, negando-se a existência de seres angelicais, demoníacos e divinos.
Em ambos os casos, porém, cabe às ciências explicar todos os fenômenos
físicos e mentais sem recurso à hipótese Deus. Em ambos os casos, o universo é
concebido como uma máquina e não como um organismo, de modo que se gera
um problema epistemológico: como explicar a cultura e a mente humanas? Ou,
como explicar a pessoalidade em uma realidade impessoal?

Cosmovisão Pós-Mecanicista

Em resposta à cosmovisão mecanicista moderna, podemos desenvolver uma


cosmovisão baseada na vida orgânica, a que se pode chamar de cosmovisão da
complexidade. Pensar a complexidade é respeitar a tessitura comum, o complexo
que ela forma para além de suas partes.
Em uma cosmovisão pós-mecanicista, o universo é visto mais como um
organismo do que como uma máquina, um sistema biológico e não um sistema
mecânico. Não se pode deduzir disso, porém, que o universo seja pessoal, mas,
sim, que a pessoalidade (característica do humano) é parte integrante do cosmos
como efeito, em nível mais abstrato, da realidade física em nível mais concreto.

Cosmovisão Mecanicista e Fé Cristã

A cosmovisão mecanicista representa um desafio para a fé cristã, na medida em


que desconsidera a ação de Deus no mundo físico. O teísmo tem sido a resposta

O Antigo Oriente PróximoComo Contexto do AT


46 UNIDADE I

da maioria dos cristãos ocidentais à cosmovisão mecanicista moderna. O Teísmo,


segundo Feinberg :
“é, literalmente, a fé na existência de Deus. Embora o conceito pareça ser
tão antigo quanto a filosofia, o termo propriamente dito parece ser de
origem relativamente recente. Alguns sugerem que apareceu na Inglater-
ra no século XVII para substituir palavras como ‘deísmo’ e ‘deísta’ para
referir-se a crença em Deus. ‘Teísmo’ costuma ser usado como oposto do
‘ateísmo’, que é o termo que descreve a negação da existência de Deus, e
que distingue o teísta do ateu ou do agnóstico sem tentar fazer qualquer
conexão técnica filosófica ou teológica” (FEINBERG, 1990, p. 435);

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O teísmo cristão ocidental clássico postula Deus como um Ser eterno, imortal, trans-
cendente, etc., que é a causa última de tudo o que ocorre no mundo, reconhecendo,
porém, a existência de causas intermediárias que podem ser estudadas e explicadas
cientificamente. O agir de Deus, propriamente dito, não é passível de explicação
científica, mas deve ser pressuposto pelas ciências como meio de dar sentido à tota-
lidade do Universo – o conceito de Deus serve, assim, como fundamento metafísico
para o exercício da razão (filosófica e científica). Embora outorgue certa credibi-
lidade filosófica à fé cristã, esse conceito teísta não é suficiente para solucionar os
problemas da visão mecanicista do universo, de modo que, nesse caso, as relações
entre fé e ciência se dão de modo antagônico.
A pergunta nova a se fazer é: sob o paradigma da complexidade, como justificar
filosófica e cientificamente o teísmo? Este nasceu em resposta à cosmovisão mecani-
cista, sendo incapaz, porém, de dar conta dos novos desafios e possibilidades abertos
pela cosmovisão complexa. Sob o paradigma da complexidade é possível revisar
o conceito filosófico de Deus em diálogo com as ciências explicativas do universo.
Do ponto de vista hermenêutico, as questões mais interessantes são: (a) como
fazer dialogar as cosmovisões marcadas pela visão mecanicista do mundo – inclu-
sive o teísmo – com o texto bíblico elaborado em uma cosmovisão vétero-oriental
não-teísta, nem mecanicista? (b) como fazer dialogar a cosmovisão da complexi-
dade com o texto bíblico, na medida em que estamos tão acostumados a ler a Bíblia
a partir das cosmovisões construídas sob o signo do mecanicismo? (c) que papel
pode desempenhar a Bíblia na avaliação de e na construção de uma cosmologia
pós-mecanicista na atualidade?

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


47

HISTÓRIA DE ISRAEL COMO CONTEXTO DO AT

No tópico anterior examinamos algumas características geográficas e culturais


do Antigo Oriente Próximo e suas implicações para a vida do povo de Israel.
Agora nosso foco recairá sobre as estruturas sociais da vida no Oriente antigo.
Israel, nação tardia no Antigo Oriente, também sofria sob a dominação cultural
e religiosa das grandes potências vétero-orientais. Essa dominação torna ainda
mais espantosa a força da identidade e da religião israelitas – um pequeno povo
que marcou a história mundial com sua fé. Ao lermos a Escritura, essa força nos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ajuda a perceber a mão de Deus na vida do povo.


Durante quase todo o período da história de Israel no Antigo Testamento,
as sociedades e países do Antigo Oriente eram organizadas economicamente ao
redor da relação tensa entre a corte monárquica e a população rural-urbana. Uma
das maneiras de descrever essa organização socioeconômica vem do ambiente
intelectual marxista, utilizando-se do conceito de Modo de Produção.
As sociedades do Antigo Oriente Próximo podem ser descritas como orga-
nizadas de acordo com o que se convencionou chamar de Modo de Produção
Tributário (Ciro Cardoso prefere o termo Palatino-Aldeão). Nesse tipo de orga-
nização social, há uma distinção entre dois grandes grupos sociais: a corte (ou o
Estado monárquico) e a população trabalhadora em geral (ou o Povo).
Em tais sociedades, o “rei” cobra tributos de camponeses (agricultores e
pecuaristas) e trabalhadores urbanos para o sustento da corte (família real, fun-
cionários, o aparato religioso e militar) e demanda trabalho gratuito da população
(corveia) com o apoio da aristocracia agrária e urbana. É a corte que controla o
comércio internacional e estabelece as “regras do jogo” na vida interna do país.
Nessas sociedades, o conceito ideológico que explica as relações entre corte
e povo é o de “contrato” entre a população e o “rei”. Não havia distinção, naquela
época, entre conceitos religiosos e conceitos políticos, de modo que a religião
exercia a função de legitimação do Estado e da família real. Como garantia de
continuidade no poder a corte mantinha o exército, que não só servia para a
defesa do território e para a conquista de novos, como também exercia as fun-
ções que atualmente cabem à polícia.

História de Israel Como Contexto do AT


48 UNIDADE I

De modo geral, as condições de vida do povo nas sociedades tributaristas


eram muito difíceis, pois a população ficava à mercê do arbítrio do rei no tocante
ao volume dos tributos cobrados e dos trabalhos forçados. Quando essa cobrança
ficava acima dos limites aceitáveis, o Estado praticava a opressão e a injustiça
(note que a teologia do Antigo Testamento gira, em grande medida, ao redor do
tema da libertação – ou seja, da crítica e da rejeição à injustiça e à opressão, por
exemplo, Êxodo capítulos 1-3; Amós caps. 3-5; Mq cap. 3; Isaías caps. 1-5; etc.).
As relações internacionais eram dependentes de circunstâncias econômicas
e do desejo de expansão dos reis dos grandes países. Nesse sentido, Israel teve

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sua história determinada, em grande medida, pela fúria conquistadora de Egito,
Assíria, Babilônia e Pérsia que, na maior parte do período vétero-testamentário
fitavam os olhos cobiçosos sobre a importante faixa de terra ocupada por israelitas.
Se você tem interesse em ver como textos do Antigo Testamento descrevem
a relação entre Estado monárquico e povo, pode ler I Samuel 8,11-17; I Reis
cap. 12 (sem contar os profetas Isaías, Miquéias, Amós e Oséias), que retratam
a dura relação entre rei e povo, centrada na tributação e no trabalho forçado.
Um texto muito interessante, voltado para a restrição dos poderes dos reis, é o
de Dt 17,14-20, que também merece ser lido para entender um pouco melhor
as lutas políticas internas de Israel.

Em Dt 17:14-20 qual é a atividade mais importante do rei? Que implicações


você pode extrair do texto para a liderança na atualidade?

Dessa forma, os Estados no Antigo Oriente eram de tipo monárquico (gover-


nado por um soberano), dinástico (sucessão por linhagem familiar) e despótico
(não admitia desobediência). A legitimidade do Estado dependia da legitimidade
do rei, que era descrito ou como a imagem dos deuses, ou como filho de Deus.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


49

De qualquer forma, os reis eram considerados os representantes dos deu-


ses na terra e seus supremos sacerdotes e pontífices. Em II Samuel capítulo 7, a
chamada profecia de Natã é exemplo de como os reis vétero-orientais se apre-
sentavam como representantes da divindade (ver também os Salmos 2 e 72). O
capítulo 14 de Oséias é exemplo de uma crítica radical à monarquia em Israel
(reino do norte), enquanto Isaías caps. 6-9 descrevem uma crítica menos radi-
cal, mas não menos severa, à monarquia em Judá (reino do sul).
A população dos países vivia predominantemente no campo, que orbitava
ao redor de cidades que serviam para proteção, comércio, religião e solução de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

conflitos jurídicos. Essas populações se estruturavam de modo familiar patriar-


cal (no AT a família patriarcal era chamada de bet ab “casa paterna”) e clânico
(o que chamamos de família extensa por consanguinidade). Como alternativa
ao Modo de Produção Tributário, grupos sociais resistentes se organizavam
em associações de clãs ou de famílias, a que se chama de tribos, com economia
e poder quase-igualitários e que, comumente, viviam às margens do territó-
rio dominado pelos grandes países ou pelas cidades-estado fora desses grandes
países. Israel, em suas origens, foi um país tribal, uma associação familiar livre,
fundada na religião e interesses comuns, cujo exército era do tipo da milícia, ou
seja, associação voluntária de homens para a defesa da família e do território.
Como já mencionado, a religião era a ideologia estatal no Antigo Oriente
Próximo. Como ideologia, cumpria as funções de criar, manter e legitimar as
relações de dominação da corte sobre o povo. Podia, também, servir como fonte
de resistência e motivação para a transformação social de grupos alternativos
e, assim, cumpria as funções de resistir, rebelar-se contra o status quo e proje-
tar uma nova sociedade.
Além das funções ideológica e de resistência, a religião era componente fun-
damental do Mundo-da-Vida vétero-oriental. De modo diferente de nosso tempo
atual, o Mundo-da-Vida não estava dividido em diversas formas de racionalidade
e estrutura, de modo que a religião não era um elemento à parte da política, do
direito, etc. Era a religião que, de fato, ocupava o centro do Mundo-da-Vida dos
povos e nações do Crescente Fértil.

História de Israel Como Contexto do AT


50 UNIDADE I

Dessa forma, podemos perceber nos países vétero-orientais em geral e em


Israel, em particular, pelo menos três grandes setores da prática e das crenças
religiosas: a religião oficial do Estado (legitimadora da dominação), a religião
dos setores intermediários da população (o que chamaríamos hoje de elite eco-
nômica ou cultural); e a religião familiar dos camponeses e grupos alternativos
(que chamaríamos hoje de religiosidade popular).
No Antigo Testamento, podemos analisar a presença predominante dos
dois primeiros setores, que lutavam intensamente pelo poder de definir a iden-
tidade israelita. A presença das práticas e crenças religiosas populares no Antigo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Testamento demanda um esforço maior de análise textual. A pesquisa arqueo-
lógica é, nesse sentido, de importância fundamental para compreendermos de
forma mais ampla a religião popular em Judá e Israel.
Caro(a) aluno(a), apesar de muita informação resumida, certamente você
está com muitas perguntas e dúvidas em sua mente. Não se preocupe. Esses
conhecimentos gerais são necessários para você se situar melhor no estudo da
história e da cultura dos antigos judeus. É claro que, se você deseja conhecer
bem mais aprofundadamente essa história, é preciso consultar os livros espe-
cialmente dedicados a esse tema.
O pouco que vimos até agora, porém, já serve de alerta: se desejamos conhe-
cer a história de Israel, precisaremos ler o Antigo Testamento com muito mais
atenção do que costumamos fazer, bem como precisamos prestar atenção a deta-
lhes que normalmente ficam ocultos em leitura de ênfase mais devocional ou
teológica. Semelhantemente, precisaremos prestar atenção aos confrontos teoló-
gicos dentro dos próprios livros do Antigo Testamento, que revelam as posições
de diferentes grupos sociais ao longo da história israelita.
O hábito de uniformizar os textos bíblicos para construir doutrinas não nos
ajudará a estudar a história de Israel. Não se trata de mudar doutrinas, mas de
mudar hábitos. Não se trata de depreciar o Antigo Testamento enquanto Palavra
de Deus, mas de enxergar aspectos que não costumávamos enxergar no teste-
munho bíblico. Se formos insistentes, disciplinados e curiosos, esta disciplina,
com todas as dificuldades que pode criar para nossos conhecimentos, servirá
também como fonte de crescimento espiritual.

SITUANDO O TEXTO BÍBLICO EM SEU CONTEXTO


51

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa Unidade fizemos uma revisão da teoria e método da interpretação de tex-


tos bíblicos e dedicamos atenção ao estudo do contexto do texto bíblico. Situar o
texto bíblico em seu contexto é um dos objetivos fundamentais da exegese, pois
sem isso não conseguimos compreender um texto (bíblico ou qualquer outro
tipo de texto).
Mostramos uma distinção entre a visão tradicional e a visão enunciativa
ou sêmio-discursiva de contexto e como estudá-lo, ou reconstruí-lo, na exegese
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

bíblica. Vimos que precisamos continuar fazendo pesquisa historiográfica como


nos modelos histórico e sociológico, mas também precisamos de pesquisa semió-
tica para reconstruir o contexto, e destacamos os três tipos de análise do contexto
no paradigma semiótico: análise do gênero textual; análise das relações interdis-
cursivas e análise do contrato de veridicção.
Na sequência, apresentamos algumas características da realidade do povo de
Israel no período do Antigo Testamento - como uma primeira síntese da ‘pes-
quisa historiográfica’ da Escritura. Destacamos a localização geográfica de Israel
e suas implicações políticas e sociais para a vida do povo. Enfim, apresentamos
o Modo de Produção Tributário como uma chave para a pesquisa sociológica
(historiográfica) do contexto do antigo Israel.
Enfim, preparamos o terreno para a prática da exegese de textos do
Antigo Testamento, que nos ocupará nas próximas Unidades desta disciplina.
Apresentaremos quatro textos e sua interpretação exegética como modelo para
seu trabalho e ofereceremos alguns exercícios para que você pratique a exegese.
Afinal, aprender a fazer exegese só acontece se você fizer exegese.
Como em todo aprendizado, os primeiros passos são os mais lentos e difí-
ceis. Se perseveramos, porém, tudo vai ficando mais fácil e natural.
Bom trabalho! Na paz do Senhor.

Considerações Finais
52

1. No primeiro tópico destaquei algumas necessidades de inovação e renovação


da leitura bíblica em busca de um ministério pastoral relevante. Leia as afirma-
ções a seguir e assinale no parêntese ao final da afirmação quais são falsas
e quais são verdadeiras:
( ) Precisamos nos habituar a ler livros inteiros da Bíblia, tentando entender
o conjunto da mensagem de cada um desses livros; precisamos retomar o
hábito de ler a Bíblia toda em curtos períodos de tempo (um ou dois anos),
mas não só para “ler”, e, sim, para notar (e anotar) as recorrências temáticas
que passam pela Bíblia toda, pois essas repetições temáticas são uma im-
portante pista para entendermos o que é relevante para o Reino de Deus.
( ) Precisamos recuperar o valor da Escritura como palavra de Deus para a
humanidade, como obra literária de qualidade, como fonte inesgotável de
sabedoria.
( ) Precisamos de perguntas de tipo doutrinário, perguntas sobre como fazer
melhor o nosso ministério, perguntas sobre o comportamento das pessoas
da igreja.
( ) Precisamos, na prática, ler a Bíblia em grupos na igreja e fora da igreja (mo-
vimentos populares, lares, escolas, etc.).
( ) Não precisamos nos preocupar em ler a Bíblia disciplinadamente.

2. No tópico 2 da Unidade I, revisamos o conceito de hermenêutica. Complete as


lacunas na sentença abaixo:
A hermenêutica tem como objetivo primário e fundamental a ________________
dos textos bíblicos em _____ contexto e a sua aplicação para o ____________
contexto. Temos usado a palavra hermenêutica nesta disciplina como a
______________ da interpretação.
1. compreensão, ação, situação, teoria.
2. compreensão, nosso, seu, chave.
3. compreensão, seu, nosso, teoria.
4. metodologia, seu, nosso, prática.
A sequência correta é a:
a. 1.
b. 2.
c. 3.
d. 4.
e. Nenhuma das anteriores.
53

3. Toda teoria precisa ser complementada por uma metodologia. Damos à meto-
dologia de interpretação da Bíblia o nome de:
a. pesquisa.
b. exegese.
c. eisegese.
d. estudo bíblico.
e. nenhuma das alternativas.
(Assinale apenas uma alternativa).

4. A metodologia usada nessa disciplina é baseada na teoria enunciativa da lingua-


gem e a chamamos de metodologia sêmio-discursiva. A partir da teoria enun-
ciativa, nós percorreremos um caminho metodológico com três fases. Assinale
a alternativa correta:
a. preparatória, interpretativa, aplicativa.
b. preliminar, contextual, final.
c. preliminar, preparatória, final.
d. preliminar, preparatória, missional.
e. espacial, missional, temporal.

5. Tradicionalmente o contexto é pensado como:


A. o próprio texto.
B. o extra-texto.
C. a cosmovisão cultural da época do texto.
D. o inter-texto.
E. a realidade externa ao texto na qual o texto foi produzido.
Duas alternativas estão corretas:
a. A e B.
b. C e D.
c. B e E.
d. D e E.
e. C e D.
54

6. Para reconstruir o contexto de um texto bíblico precisamos metodologicamente


de:
Afirmação A: pesquisa historiográfica, análise do gênero textual, análise das rela-
ções interdiscursivas e análise do contrato de veridicção.
Afirmação B: pesquisa semiótica, análise do gênero textual, análise das relações
intradiscursivas e análise do contrato de veridicção.
Afirmação C: pesquisa historiográfica, análise sociológica, análise de gênero,
análise das relações interculturais.
Afirmação D: pesquisa historiográfica, pesquisa semiótica, pesquisa sociológica,
pesquisa cultural.
A afirmativa correta é:
a. Afirmação A.
b. Afirmação B.
c. Afirmação C.
d. Afirmação D.
e. nenhuma das anteriores.

7. De acordo com as pesquisas de Linguística textual, “O contexto abrange, portan-


to, não só o co-texto, como a situação de interação imediata, a situação mediata
(entorno sociopolítico-cultural) e também o contexto sociocognitivo dos inter-
locutores que, na verdade, subsume os demais. Ele engloba todos os tipos de
conhecimentos arquivados na memória dos actantes sociais, que necessitam ser
mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal (cf. Koch, 1997): o conhecimento
linguístico propriamente dito, o conhecimento enciclopédico, quer declarativo,
quer episódico (frames, scripts), o conhecimento da situação comunicativa e de
suas “regras” (situacionalidade), o conhecimento superestrutural (tipos textuais),
o conhecimento estilístico (registros, variedades de língua e sua adequação às
situações comunicativas), o conhecimento sobre os variados gêneros adequa-
dos às diversas práticas sociais, bem como o conhecimento de outros textos que
permeiam nossa cultura (intertextualidade)”.
Esta afirmação é:
( ) VERDADEIRA ( ) FALSA

8. Descreva as principais características do Modo de Produção Tributário, que nos


ajuda a entender a vida sociocultural do povo e nação de Israel no AT.
55

OS ESTUDOS BÍBLICOS EM NOVAS PERSPECTIVAS


C. MESTERS elenca três “características de uma exegese popular” que, em última análise,
correspondem à postura hermenêutica dos pobres e das CEBs – seu interesse – no pro-
cesso de interpretação da
Palavra de Deus.
a) Ler o texto com liberdade. Trata-se da liberdade em relação à prisão da letra que “apa-
rece como o fruto quase natural de uma experiência vivida”, de uma fé libertadora e
comunitária. Daí não caírem na tentação de um fundamentalismo fanático e irracional.
Essa liberdade flui também da capacidade de atribuir valor simbólico aos textos bíblicos,
sem se preocupar, em primeiro lugar, com a questão da historicidade. Não se pode atri-
buir essa capacidade de fazer uma leitura simbólica à consciência ingênua, acrítica ou
pré-científica do povo, pois esse é o caminho que encontra para tornar a Palavra de Deus
carregada de sentido no seu quotidiano de luta e anseio de libertação.
b) Familiarizar-se com o texto bíblico. As comunidades, no processo de leitura da Bíblia,
procuram criar profunda familiaridade com ela. Esta é muito distinta da familiaridade
intelectual dos exegetas profissionais e dos que conhecem a Bíblia “de cabo a rabo”, por
tê-la tornado objeto de leitura constante. Trata-se antes de uma familiaridade existen-
cial pela qual o povo sente que tudo quanto está na Bíblia tem algo a ver com a sua
vida. É como se ela fosse um espelho de sua realidade. E quanto mais desafiadora é a
experiência de opressão e escravidão tanto maior será a empatia das comunidades de
fé com a Bíblia.
c) Manter-se fiel ao texto bíblico. Por fim, a hermenêutica popular esforça-se por primar
pela fidelidade à Bíblia. Há quem se atemorize diante da possibilidade de o povo fazer
interpretações pouco ortodoxas – preconceito ainda não de todo superado na Igreja Ca-
tólica – pelo fato de não possuir suficiente cabedal científico para achegar-se a um livro
“cheio de armadilhas” para seus intérpretes. O desconhecimento das línguas bíblicas, da
arqueologia, da história das civilizações antigas, dos usos e costumes do povo bíblico,
dos modernos métodos de interpretação bíblica etc. seria um handicap insuperável do
povo, que torna necessária a presença de um exegeta profissional para se chegar à in-
terpretação fiel do texto bíblico.
A fidelidade praticada pelo povo, entretanto, vai muito além das filigranas da moderna
exegese. “Ele procura ser fiel, não em primeiro lugar ao sentido que o texto tem em
si mesmo (sentido histórico-literal), mas ao sentido que ele descobre dentro do texto
para a sua vida”60. Existem, porém, critérios bem definidos para uma correta leitura da
Bíblia nas CEBs. Ela deve partir da realidade e ser feita em comunidade, respeitar o texto,
buscando ligar fé e vida. Não pode perder de vista o caráter ecumênico e libertador, de
forma a ser uma leitura comprometida.
56

O paradigma libertador da interpretação da Bíblia pelos pobres nas CEBs está em re-
lação antipodal com o paradigma da dominação ainda em voga na prática de muitos
biblistas. A. PARRA formalizou a contraposição entre ambos. O paradigma libertador
busca passar “da história do passado ao presente”, pois importa interpretar o presente e
não simplesmente conhecer o passado, visando transformar a história,
optando “por uma hermenêutica que favoreça os processos de libertação social, polí-
tico-econômica e cultural”. A isto se contrapõe o “historicismo dogmático”, para o qual
o passado prevalece sobre o presente. Origina-se daí um tipo de leitura bíblica que se
contenta em recuperar a história de Israel, conhecer os dados étnico-culturais do povo
bíblico, adentrar-se pelo emaranhado de tradições que perpassam o texto bíblico,
servindo-se para tanto de sofisticados métodos exegéticos, sem preocupar-se com a
incidência do resultado de seu esforço, por exemplo, em termos sócio-eclesiais. Uma
segunda contraposição: o paradigma libertador passa “do dogmatismo do texto à her-
menêutica textual situada e situacional”, enquanto o paradigma da dominação fixa-se
no “dogmatismo textual”. “Uma hermenêutica libertadora postula necessariamente uma
nova prática na hermenêutica textual, que não sirva para repetir com simplismo o pas-
sado, mas que colabore para a interpretação transformadora do presente”64, sem fixar-
-se na pura análise filológica, semântico-gramatical, estrutural etc.do texto bíblico, para
não redundar num puro repertório de informações culturais, históricas, arqueológicas
etc. sem interesse para a história vivida pelo intérprete e seus contemporâneos. Pois, “o
eu que interpreta não é um ser abstrato, asséptico, que possa prescindir de si mesmo
no momento de interpretar, para buscar um sentido textual ‘em si’. O eu que interpreta
interroga os textos desde a sua mesmidade, ou seja, desde sua situação e sua historici-
dade. O eu que interpreta é parte constitutiva da própria interpretação. O intérprete é
elemento interno da interpretação”. Já o fruto do dogmatismo textual seria “obter dos
textos alguns arquétipos de comportamento (doutrinas), válidos hoje como ontem,
dando por suposta a identidade do ser humano. Então, a preocupação dominante da
racionalidade exegética é a de desentranhar por todo meio possível o que o autor ou os
autores quiseram expressar. Dessa forma, o texto se divorcia da vida presente
e se aprisiona em seu próprio passado, sem possibilidade alguma de ser renovado her-
meneuticamente.
Fonte: VITÓRIO (1999, on-line)1.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Para uma Hermenêutica Bíblica


Júlio Paulo Tavares Zabatiero & Sidney Sanches & José Adriano Filho
Editora: Fonet Editorial e Editora Unida
Sinopse: a interpretação da Bíblia continua sendo um tema polêmico,
marcado por uma ampla conflitividade tanto no campo eclesiástico, quanto
no acadêmico. A pergunta sobre “como interpretar corretamente” a Bíblia é
repetida à exaustão e os debates que ela suscita não dão mostras de se encerrar.
Novos livros e artigos sobre a hermenêutica e a exegese bíblicas são escritos e
publicados constantemente, dando expressão ao caráter polêmico da leitura da
Bíblia em nossos tempos. Este livro se insere nesse grande e contínuo debate.
Consequentemente, não tem a pretensão de encerrar o debate, mas, sim, de
oferecer outro conjunto de vozes sobre o tema e, especialmente, outro olhar
sobre a história da interpretação da Bíblia.

O Carteiro e o Poeta
Ano: 1994
Sinopse: filme poético sobre a extremidade da poesia. Mario (Massimo Troisi)
é um carteiro que, ao fazer amizade com o grande poeta Pablo Neruda (então
exilado político), vira seu carteiro particular e acredita que ele pode se tornar
seu cúmplice para conquistar o coração de uma donzela. Descobre, assim, a
poesia que sempre existiu em si, assemelhando-se às descobertas de verdade
pelos meios dialéticos de Sócrates-Platão. O filme se passa em uma ilha na
costa italiana. Massimo Troisi, que morreu aos 41 anos, horas após o término
das filmagens, não pôde ver o enorme reconhecimento mundial que o filme
teve, com as 5 indicações para o Oscar, incluindo Melhor Filme, Diretor e Ator,
em 1995.
Comentário: Vale a pena prestar atenção à importância da palavra poética e da
imaginação para a vida.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BALOCCO, A. E. A perspectiva discursivo-semiótica de Gunther Kress: o gênero como


um recurso representacional”. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs.)
Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
BARROS, D. L. P. de. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual
Editora, 1988.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Trad.
João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1966.
DONNER, H. História de Israel e dos povos vizinhos. São Leopoldo: Sinodal /IEPG;
Petrópolis: Vozes, 1997.
FEINBERG, J. S. Teísmo. In: Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. III. São
Paulo: Vida Nova, 1990.
KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003.
MEURER, J. L. Uma dimensão crítica do estudo de gêneros textuais. In MEURER, José
Luiz & MOTTA-ROTH, Désirée (orgs.). Gêneros textuais e práticas discursivas: sub-
sídios para o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, 2002.
NOUWEN, H. O Perfil do Líder Cristão do século XXI. Belo Horizonte: Editora Atos,
2002.
PETERSON, E. Introdução. Caveat Lector. In: DYCK, E. (ED.) Ouvindo a Deus. Uma
abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. São Paulo: Shedd Publicações, 2001.
STAM, J. A Bíblia, o leitor e seu contexto histórico, Boletim Teológico, n. 3, confor-
me edição em CD-ROM, Belo Horizonte: Visão Mundial, 2004.

REFERÊNCIA ON-LINE

1
Em: <faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/668>. Acesso em:
09 jan. 2017.
59
GABARITO

1. V, V, F, V.

2. C.

3. B.

4. C.

5. D.

6. A.

7. Verdadeira (KOCH, 2003).

8. Deve incluir pelo menos: governo monárquico, religião ligada ao rei, cobrança
de tributo, divisão entre cidade e campo.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

II
UNIDADE
GÊNESIS 12,1-8

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da fase preparatória
da interpretação do texto bíblico.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão sociocultural da ação.
■■ Reconhecer os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
63

INTRODUÇÃO

Olá! estamos de volta ao nosso estudo da exegese do Antigo Testamento. Na


Unidade I revisamos os aspectos fundamentais da interpretação bíblica e estuda-
mos os principais aspectos da realidade (e contexto) do mundo israelita. Agora
começaremos o estudo exegético propriamente dito. Aprender a interpretar o
texto bíblico demanda disciplina e, acima de tudo, prática. Eu vou oferecer a
vocês exemplos de como interpretar textos de tipos variados, mas o seu apren-
dizado só acontecerá se você mesma(o) interpretar textos bíblicos seguindo os
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

passos apresentados nos exemplos.


Por isso, juntamente com a exemplificação dos métodos, apresentarei a
vocês a possibilidade de realizar exercícios mediante os quais a prática da exe-
gese poderá ser feita progressivamente. Repito: você só aprenderá a fazer exegese
fazendo! Mas, note bem, você não aprenderá a fazer exegese em um mês ou dois.
As disciplinas deste curso de bacharelado em teologia oferecem apenas o ponto
de partida, você tem a vida inteira pela frente para continuar estudando e apren-
dendo a interpretar a Escritura. Assim, não se deixe desanimar se, em alguns
exemplos, você perceber que ainda não tem todos os conhecimentos e habilida-
des necessários para fazer uma exegese “perfeita”. Você ainda está aprendendo
e apenas começando. Não desanime! Ao contrário, aproveite esta disciplina e as
demais disciplinas de exegese para se motivar cada vez mais à interpretação da
Escritura.
Como já vimos, a interpretação de textos bíblicos demanda disciplina, método
e imaginação criativa. Acima de tudo, demanda compromisso com a compreensão
e prática dos sentidos propostos pelos textos bíblicos. Pensamento crítico, espi-
ritualidade e imaginação caminham juntos na exegese, sob a direção do Espírito
Santo que torna concreta em nós a vida do Messias Jesus.
Nessa Unidade, o objetivo fundamental é reconhecer os procedimentos meto-
dológicos. Por isso, preste bem atenção a tudo o que está escrito e tente entender
o processo de interpretação.

Introdução
64 UNIDADE II

FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO, TEXTO,


DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Damos início à exemplificação do método exegético. Por favor, acompanhe o


texto com atenção e procure anotar as suas dúvidas e o que você considerou
mais importante, a fim de que você mesmo desenvolva seu hábito de interpre-
tação bíblica.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO

Como vimos na Unidade I desta disciplina, o contexto de um texto deve ser


reconstruído a partir do próprio texto, levando em conta os seguintes indícios
por ele fornecidos: gênero textual, relações interdiscursivas e o próprio con-
teúdo do texto (na medida em que nos revela o seu contrato de veridicção).
Consequentemente, nessa altura da exegese (o início do trabalho), podemos
apenas oferecer hipóteses que deverão ser confirmadas ao longo do trabalho de
interpretação. Do ponto de vista da realidade, podemos situar o texto no âmbito
do Modo de Produção Tributário (ou Palatino-Aldeão), em que a população
camponesa e os demais trabalhadores (rurais e urbanos) sustentava a corte e o
sistema religioso mediante o pagamento de tributos e corveia (trabalho gratuito
para o rei). Em tal Modo de Produção, comumente havia a exploração do povo
pelo monarca (e sistema religioso), que demandava maior volume de tributos
que as famílias poderiam pagar.
O conteúdo da perícope, então, sugere uma atitude de oposição a tal modo
de organização da vida social: YHWH chama Abrão para deixar a vida urbana
(assim como o pai de Abrão já saíra de Ur, uma das primeiras cidades-estado do
Antigo Oriente) e se dirigir a uma terra ainda não-conhecida. Nos primeiros dias
nessa terra Abrão recebe uma manifestação de YHWH e constrói altares onde se
estabelece provisoriamente (rompendo com a lógica do sistema religioso esta-
tal mediante a qual somente sacerdotes profissionais podem realizar o culto).
A promessa de YHWH a Abrão (tornar-se um grande povo = goy) sugere, tam-
bém, a busca de uma vida familiar mais independente da cidade-estado, com a

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


65

possibilidade não só de gerar filhas e filhos, mas de manter a família trabalhando


e crescendo (o que seria bem mais difícil no âmbito citadino, com a obrigato-
riedade de serviço militar e demais exigências tributárias). Semelhantemente,
a promessa de bênção a Abrão é complementada pela constatação de que em
Abrão seriam abençoados todos os ‘clãs agrários’, termo técnico no hebraico
antigo para as famílias de camponeses.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A palavra hebraica goy denota um grupo de pessoas, em contraposição ao


termo mais comum usado para se referir ao povo de Israel já organizado
como nação, ‘am (que também é um termo usado para referir-se a unidades
militares).
Fonte: o autor.

O gênero textual da perícope é típico das narrativas das famílias de pais e mães de
Israel, encontramos paralelos a esta perícope em 26,1-6 (Isaque) e 46,1-7 (Jacó).
Nas três perícopes temos chamado de YHWH a uma pessoa para ir (ou não ir)
com sua família a um determinado lugar e a reafirmação da promessa a Abrão.
Igualmente, o lugar para onde se deveria ir é caracterizado como ameaçador,
ambiente não exatamente propício para o cumprimento da promessa divina. Se
levarmos em conta que Gênesis é um livro de origens (começos), a perícope que
analisamos demarca a origem do povo israelita como um povo rural (campe-
sino), resistente ao domínio das cidades-estado.
Ainda do ponto de vista das relações intradiscursivas, o fato de que YHWH
é quem dará um nome a Abrão está em contraste com a busca autônoma de
um nome pelos construtores da torre de Babel (Gn 11,1ss) e mais uma vez
sugere um contexto de resistência contra a monarquia tributária. Nas meto-
dologias históricas, o contexto é entendido como a realidade em que o texto foi
escrito e se define mediante a busca de autor e primeiros leitores, bem como
pela reconstrução do período em que o texto foi escrito (autoria e data). Do

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


66 UNIDADE II

ponto de vista da interpretação do texto ‘em seu contexto’, a datação exata ou


aproximada é secundária, ela se torna crucial para a utilização do texto na pes-
quisa historiográfica.
Do ponto de vista das relações interdiscursivas, a perícope mostra uma rela-
ção contratual com as narrativas da saída dos israelitas do Egito. O que reforça a
hipótese já estabelecida anteriormente, bem como a edificação de altar por Abrão
estar em sintonia discursiva com a liberdade das tribos israelitas (em Juízes), de
adorar a YHWH em diferentes lugares, sem a mediação sacerdotal oficial.
Poderíamos, então, designar este gênero textual como Vocação para a Bênção

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Partilhada e notar que o gênero confirma a hipótese contextual definida a partir
do conteúdo: temos uma perícope de resistência contra o governo monárqui-
co-tributário, a partir da valorização da vida rural. (Vendo o contexto dessa
forma, evitamos o problema técnico de estabelecer a data original da perícope:
se no período dos patriarcas, se no período de Moisés, ou se no período de Israel
assentado na terra, ou, ainda, se nos períodos exílico ou pós-exílico. Em qual-
quer dessas datas a atitude de resistência contra as cidades-estado e a valorização
do campesinato pode ser situada.)

DELIMITAÇÃO

(1) Em relação à perícope anterior: alteração de pessoas (Naor, Tera e esposas,


ausência do nome YHWH), alteração de espaço (de Ur a Harã), alteração de
tempo (morte de Harã), alteração de gênero (genealogia para narrativa de vocação)
(2) Em relação à perícope posterior: alteração de espaço (Neguebe, Egito),
alteração de pessoas (egípcios, ausência do nome YHWH), alteração de tempo
(Depois), alteração de vocabulário (sem altares).
Embora a maioria dos comentaristas inclua o verso 9 nessa perícope,
considero o verso 9 como início da jornada de Abrão ao Egito, e o verso 8, con-
sequentemente, concluindo o relato de sua jornada a Canaã. Em seu comentário,
Westermann define o verso 9 como um verso de transição para a próxima perí-
cope, o que apoia a decisão aqui tomada de ver o verso 8 como o final da perícope
(WESTERMANN, 1987, p. 98).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


67

11,29 - Abrão e Naor tomaram para si mulheres; a de Abrão chamava-


-se Sarai, a de Naor, Milca, filha de Harã, que foi pai de Milca e de Iscá.
30 Sarai era estéril, não tinha filhos. 31 Tomou Tera a Abrão, seu filho, e
a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai, sua nora, mulher de seu
filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã;
foram até Harã, onde ficaram. 32 E, havendo Tera vivido duzentos e
cinco anos ao todo, morreu em Harã.
12,1 - Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela
e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; 2 de ti farei uma
grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma
bênção! 3 Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra. 4 Partiu,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pois, Abrão, como lho ordenara o SENHOR, e Ló foi com ele. Tinha
Abrão setenta e cinco anos quando saiu de Harã. 5 Levou Abrão consigo
a Sarai, sua mulher, e a Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam
adquirido, e as pessoas que lhes acresceram em Harã. Partiram para a
terra de Canaã; e lá chegaram. 6 Atravessou Abrão a terra até Siquém, até
ao carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra. 7
Apareceu o SENHOR a Abrão e lhe disse: Darei à tua descendência esta
terra. Ali edificou Abrão um altar ao SENHOR, que lhe aparecera. 8 Pas-
sando dali para o monte ao oriente de Betel, armou a sua tenda, ficando
Betel ao ocidente e Ai ao oriente; ali edificou um altar ao SENHOR e
invocou o nome do SENHOR. 9 Depois, seguiu Abrão dali, indo sempre
para o Neguebe. 10 Havia fome naquela terra; desceu, pois, Abrão ao
Egito, para aí ficar, porquanto era grande a fome na terra. 11 Quando
se aproximava do Egito, quase ao entrar, disse a Sarai, sua mulher: Ora,
bem sei que és mulher de formosa aparência; 12 os egípcios, quando te
virem, vão dizer: É a mulher dele e me matarão, deixando-te com vida.
13 Dize, pois, que és minha irmã, para que me considerem por amor de
ti e, por tua causa, me conservem a vida. (SBB, [2017], on-line)¹

SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO

Conforme indicado, vejo três segmentos na perícope, demarcadas claramente


pelas mudanças temática e espacial:
a. O chamado propriamente dito 1-4a
b. A viagem de Abraão e família 4b-6
c. Teofania e Culto 7-8

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


68 UNIDADE II

Do ponto de vista da estruturação, temos:

a. A estrutura geral da perícope é quiástica


A 1-4a Vocação de Abrão por YHWH
B 4b-6 Jornada de Abrão
A’ 7-8 Teofania de YHWH a Abrão

b. O primeiro segmento é estruturado de modo quiástico, com a promessa

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ocupando o centro estrutural:
A Disse YHWH a Abrão
B Deixa a tua terra...
C Farei de ti ...
B’ Partiu pois Abrão
A’ Como lhe ordenara YHWH

c. O segundo segmento é estruturado quiasticamente, na forma de um iti-


nerário de viagem com glosas explicativas:
A A Partida de Abrão
B Os companheiros de Abrão
A’ Partida e Chegada de Abrão

d. O terceiro segmento é estruturado sequencialmente em paralelismo


sinonímico:
7 Teofania e Altar
8 Jornada e Altar

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


69

Texto Hebraico e Tradução


‫ָארץ אֲ ׁשֶ ר‬ ֶ ָ‫ַארצְָך ּומִ ּמֹולַדְ ְּתָך ּומִ ּבֵית ָאבִיָך אֶ ל־ה‬ ְ ֵ‫ו ַּי ֹאמֶ ר י ְהו ָה אֶ ל־ַאב ְָרם ֶלְך־לְָך מ‬
‫ ו ַאֲ ב ֲָרכָה מְ ב ְָרכֶיָך‬3 ‫ ו ְאֶ עֶ ׂשְ ָך לְגֹוי ּגָדֹול ו ַאֲ ב ֶָרכְָך ו ַאֲ גַּדְ לָה ׁשְ מֶ ָך ו ֶהְ י ֵה ּב ְָרכָה‬2 ‫ּך‬ָ ֶ‫ַארא‬
ְ
‫ וַּיֵלְֶך ַאב ְָרם ּכַאֲ ׁשֶ ר ּדִ ּבֶר אֵ לָיו י ְהו ָה‬4 ‫ּומְ קַ ֶּללְָך ָאא ֹר וְנִב ְְרכּו בְָך ּכ ֹל מִ ׁשְ ּפְ ח ֹת הָ אֲ דָ מָ ה‬
‫ וַּיִּקַ ח ַאב ְָרם‬5 ‫וַּיֵ ֶלְך אִ ּתֹו לֹוט ו ְַאב ְָרם ּבֶן־חָ מֵ ׁש ׁשָ נִים ו ְׁשִ בְעִ ים ׁשָ נָה ְּבצֵאתֹו מֵ חָ ָרן‬
‫ָל־רכּוׁשָ ם אֲ ׁשֶ ר ָרכָׁשּו ו ְאֶ ת־הַ ּנֶפֶ ׁש‬ ְ ‫אֶ ת־ׂשָ ַרי אִ ׁשְ ּתֹו ו ְאֶ ת־לֹוט ֶּבן־ָאחִ יו ו ְאֶ ת־ּכ‬
‫ָָארץ עַ ד‬ ֶ ‫ וַּיַעֲ ב ֹר ַאב ְָרם ּב‬6 ‫ַארצָה ְּכנָעַ ן‬
ְ ‫ַארצָה ְּכנַעַ ן וַּיָב ֹאּו‬ְ ‫אֲ ׁשֶ ר־עָ ׂשּו בְחָ ָרן וַּיֵצְאּו ָל ֶלכֶת‬
‫ וַּי ֵָרא י ְהו ָה אֶ ל־ַאב ְָרם ו ַּי ֹאמֶ ר ְלז ְַרעֲ ָך‬7 ‫ָָארץ‬ֶ ‫מֹורה ו ְהַ ְּכנַעֲ נִי ָאז ּב‬
ֶ ‫מְ קֹום ׁשְ כֶם עַ ד אֵ לֹון‬
‫ וַּיַעְ ֵּתק מִ ּׁשָ ם הָ הָ ָרה‬8 ‫ָארץ הַ ּז ֹאת וַּיִבֶן ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה הַ ּנ ְִראֶ ה אֵ לָיו‬ ֶ ָ‫אֶ ֵּתן אֶ ת־ה‬
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

‫מִ ּקֶ דֶ ם ְלבֵית־אֵ ל וַּיֵט ָאהֳ ֹלה ּבֵית־אֵ ל מִ ּיָם ו ְהָ עַ י מִ ּקֶ דֶ ם וַּיִבֶן־ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה וַּיִקְ ָרא‬
‫ּבְׁשֵ ם י ְהו ָה‬
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, [2017], on-line)²

Tradução:
1
Então YHWH disse a Abrão: Deixa tua terra, tua terra natal e a casa de teu pai
em direção à terra que te mostrarei. 2 Consequentemente, farei de ti um grande
povo e te abençoarei e honrarei o teu nome. Torna-te bênção! 3 Abençoarei os
que te abençoarem e amaldiçoarei o que te desonrar; em ti serão benditos todos
os clãs agrários. 4 Então, partiu Abrão conforme lhe dissera YHWH – com ele
seguiu Ló. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. 5 Abrão levou
Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão, todos os bens que haviam adquirido,
bem como os servos que adquiriu em Harã. E começaram a jornada para a terra
de Canaã. E chegaram à terra de Canaã. 6 Abrão atravessou a terra até a região
de Siquém, até ao carvalho de Moré. Naquela época os cananeus habitavam na
terra. 7 YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: à tua descendência darei esta terra.
Ali edificou um altar a YHWH, pois a ele aparecera. 8 Partiu dali para a monta-
nha a leste de Betel e armou sua tenda, com Betel a oeste e Ai ao leste. Edificou
um altar a YHWH e lá invocou o nome de YHWH (Traduzido pelo autor)

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


70 UNIDADE II

A PERÍCOPE NO LIVRO DE GÊNESIS

O hábito de interpretar perícopes em função do uso litúrgico e/ou da pesquisa


histórico-crítica que dá destaque ao aspecto diacrônico da elaboração do texto
bíblico dificulta a compreensão da perícope como parte integrante de um texto
sequencial – no caso do Gênesis, de uma narrativa bem estruturada. Podemos
observar o fluxo narrativo de Gênesis a partir de diferentes pontos de vista, mas
em função da interpretação de Gn 12,1ss farei as observações a partir da famí-
lia de Abrão.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Podemos notar a conexão imediata da saga abraâmica aos capítulos ante-
riores de Gênesis por meio da genealogia de Sem em 11,10ss de quem descende
Abrão. A genealogia de Sem, por sua vez, é conectada ao texto anterior mediante
seu vínculo com o relato da torre de Babel e com a genealogia em Gn 10. Esta,
por sua vez, se vincula com o que lhe antecede mediante a inversão da situação
relativa ao dilúvio (Gn 6-9) com a quase extinção da vida animal no planeta. O
dilúvio, por sua vez, retrata a intensificação da infidelidade humana a Deus, ini-
ciada com Adão e Eva no capítulo 3 e ampliada por Caim e seus descendentes.
Por fim, a narrativa de Adão e Eva situa a criação do ser humano sob a criação
de tudo o que existe (Gn 1) e seu acento sobre a bênção aos seres humanos (Gn
1,26ss) que inclui a multiplicação e o cuidado do planeta.
Gn 12,1ss situa Abrão no movimento entre a bênção e a maldição que per-
passa todo o livro do Gênesis, especialmente em sua primeira seção nos caps.
1-11. A bênção divina é sempre ameaçada pela infidelidade humana – pode-
mos dizer pela desonra de Deus causada pela infidelidade humana (por isso a
advertência no caso da desonra a Abrão) – mas jamais impedida, pois Deus per-
manece fiel ao seu modo de ser-agir como Criador e Abençoador. Abrão, como
Noé antes dele, representa a continuidade da bênção divina cuja abrangência é
toda a humanidade (‘todos os clãs agrários’). A sequência da narrativa mostra
o mesmo padrão de ameaça ao cumprimento da bênção divina, especialmente
nas narrativas de rivalidade familiar (entre esposas, e entre irmãos).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


71

O capítulo 22 possui uma relação peculiar com esse, na medida em que vocá-
bulos dessa perícope são retomados no comando de Deus a Abraão para sacrificar
Isaque (a ameaça mais perigosa ao cumprimento de promessa divina), como
teste da fidelidade de Abraão. A saga de Abrão vai até 25,18 sendo sequenciada
pelas sagas de Jacó e José (com um breve interlúdio referente a Isaque, pai de
Esaú e Jacó). O livro encerra com o sepultamento de Jacó (Israel) e o retorno de
José e seus irmãos para o Egito. José é fiel para com seu pai e seus irmãos, repre-
sentando a fidelidade divina que possibilita à humanidade viver sob o signo da
bênção, mas o último versículo narra a morte e o sepultamento de José, fazendo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o livro concluir com uma nota de expectativa.


Duas tensões perpassam todo o livro e estão presentes na perícope sob estudo:
a bênção divina ameaçada, mas jamais impedida (transformada na promessa a
Abrão e seus descendentes) e a particularidade das pessoas chamadas por Deus
em função da universalidade do alcance da bênção divina (cf. as repetições da
promessa em 18,18; 22,18; 26,4; 28,14). A particularidade também é destacada
mediante a inclusão da terra na promessa abraâmica, de modo que a bênção adâ-
mica se torna bênção abraâmica ligada à terra prometida. Walter Bruegemann
apresenta uma opinião semelhante:
“Este texto [11,30-12,9] é central em Gênesis. Ele vincula as tradições
do cuidado providencial de Deus pelo mundo e do chamado eletivo de
Israel por Deus. Ele também apresenta um modelo primário para a pa-
lavra de Deus criadora-de-promessa que dá início à história de Israel
e à fé israelita em resposta a Deus na pessoa de Moisés” (BRUEGE-
MANN, 1982, p. 115s.).

O fato de Abrão jamais, efetivamente, tomar posse da terra (a não ser no caso
de sua tumba), mostra o caráter liminar da vida entre a fidelidade a Deus e a
infidelidade praticada pelos seres humanos. Benção (Promessa) versus Ameaça
(Maldição); Particularidade versus Universalidade são os temas abstratos de
fundo da narrativa abraâmica em seu lugar no enredo do Gênesis.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


72 UNIDADE II

Vogels, por outro lado, destaca a peculiaridade dessa perícope na estrutura


do livro de Gênesis:
[...] a história dos grandes personagens antes de Abrão, e portanto de
seus ancestrais distantes, começa sempre por: “Eis o toledot” (tradu-
zido por “a história” ou “a descendência”) de Adão (Gn 5,1), de Noé
(Gn 6,9), dos filhos de Noé, Shem, Ham e Iéfet (gn 10,1), de Shem (Gn
11,10), ou de Térah, seu próprio pai (Gn 11,27). Assim será para a his-
tória dos patriarcas depois dele, e portanto de seus sucessores: “Eis o
toledot” de seu filho Ismael (Gn 25,12), de seu filho Isaac (Gn 25,19), de
Esaú (Gn 36,1.9) e de Jacó (Gn 37,2). O contraste é notável. A história
de Abraão começa com uma fala de Deus, e esse Deus é Javé, o Deus de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Israel. Javé está na origem da história de Abraão.

É o condutor do jogo, como mostra a repetição o pronome “Eu”, que é o


sujeito da maior parte dos verbos. O “Eu” aparece até seis vezes, quase
sete, número que exprime a perfeição. E, com efeito, o “Eu” aparece
no texto uma sétima vez, mas somente depois que Abraão aceitou o
convite de Deus (v. 7). Fala-se sempre do ciclo de Abrão, em referência
ao ator humano principal, mas o início mostra que Deus, tanto quan-
to Abraão, talvez mais do que ele, é o personagem central. (VOGELS,
2000, p. 59)

Se examinamos a relação dessa perícope com o restante do livro, a partir do


tópico da bênção/promessa, podemos destacar:
É só na aparência que, pela posição de Abraão, a bênção se limita àquele
único portador da promessa e ao seu entorno mais próximo. A dimensão pro-
to-histórica, ao contrário, é preservada. Como aquele grande nome – idêntico
ao prometido grande povo (Gn 12.2) – prometido pela bênção de Deus é o con-
traponto para o nome que os construtores da torre querem dar a si próprios
(Gn 11,4), assim a bênção (brk ni., passivum divinum) kol mispehot ha ’adamah
(“todas as famílias da terra”, Gn 12.3) é referência consciente à amaldiçoada ’ada-
mah (“terra”) em Gn 3.17 e ao primeiro ser humano amaldiçoado, Caim (4.11),
que ao mesmo tempo é fundador de uma tribo (Gn 4.17-24), na qual a maldição
é glorificada em forma de sede insaciável de vingança. Contra a proto-histó-
ria carregada de maldição, encontra-se a bênção de Deus a Abraão que, nessa
relação especial, consegue desenvolver toda a força relacional de sua bênção de
forma nova e permitir que, por meio de Abraão, ela chegue a todo o mundo.
(FELDMEIER & SPIECKERMANN, 2015, p. 290)

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


73

Sobre Gênesis 12-25: A unidade total da narrativa pode ser entendida como
uma Saga familiar. A saga apresenta a história de uma família de tal maneira
que os princípios qualificadores da família aparecem de forma mais aguda no
pano-de-fundo. Aqui temos as tradições que contam sobre a família que ela
apresenta como a de Abraão. Tais tradições se distinguem da escrita da história
em virtude de sua preocupação em narrar, não apenas a sequência de eventos
ditada pela relação de causa-efeito no passado, mas, sim, o núcleo central do
passado, que engloba cada geração sucessivamente. Ela é uma representação
mais simbólica do que objetiva: é uma forma de arte, não um trabalho cien-
tificamente objetivo. E embora o símbolo emerja como uma forma de arte, o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

poder da forma de arte pertence à qualidade da própria vida familiar.


Fonte: Coats (1983, p. 102).

A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

Passo ao primeiro ciclo da Fase Final da Exegese.

ALISTANDO AS PESSOAS, TEMPOS E ESPAÇOS

Pessoas: Gênesis 12
YHWH (v. 1: disse a Abrão [...] à terra que te mostrarei); (v. 2 [...] ‘disse’ farei
de ti um grande povo, te abençoarei, honrarei teu nome. Sê uma bênção)
(v. 3 [...] ‘disse’ abençoarei [...] amaldiçoarei [...]) (v. 4 conforme lhe dissera
YHWH); (v. 7 apareceu a Abrão, lhe disse: ‘à tua [...]’; edificou um altar a
YHWH, pois a ele aparecera); (v. 8 edificou um altar a YHWH, lá invocou
o nome de YHWH)
Abrão (v. 1 YHWH disse a Abrão: ‘Deixa [...]’ [até verso 3]) (v. 4 Então par-
tiu Abrão, conforme lhe dissera YHWH; com ele seguiu Ló. Tinha 75 anos
quando saiu de Harã); (v. 5 levou Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão,
todos os bens que haviam adquirido, bem como os servos que adquiriu em
Harã. E começaram a jornada para a terra de Canaã. E chegaram à terra de
Canaã.) (v. 6 Abrão atravessou a terra até a região de Siquém, até ao carvalho
de Moré.) (v. 7 YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: à tua descendência darei

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


74 UNIDADE II

esta terra. Ali edificou um altar a YHWH, pois a ele aparecerá) (v. 8 Partiu
dali para a montanha a leste de Betel e armou sua tenda, com Betel a oeste
e Ai ao leste. Edificou um altar a YHWH e lá invocou o nome de YHWH)

Teu pai (v. 1 casa de teu pai)


Os que te abençoarem (v. 3)
O que te amaldiçoar (v. 3)
Todos os clãs agrários (v. 3)
Ló (v. 4 com ele seguiu Ló) (v. 5 levou [...] Ló, filho de seu irmão)

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Sarai (v. 5 Sarai, sua mulher)
Servos (v. 5 que se juntaram a ele)

Espaço:
Tua terra (v. 1 Deixa [...])
Tua terra natal (v. 1 deixa)
Terra (v. 1 em direção à [...] que te mostrarei) (v. 6 cananeus habitavam na
terra) (v. 7 esta terra)
Partiu (v. 4)
Seguiu Ló (v. 4)
Saiu (v. 4 de Harã)
Harã (v. 4 quando saiu de) (v. 5 a ele se juntaram em Harã)
Começaram a jornada (v. 50
Terra de Canaã (v. 5 começaram ... chegaram à terra de ) = terra (v. 1.6)
Atravessou a terra (v. 6)
Até a região de Siquém (6)
Até o carvalho de Moré (v. 6) Ali (v. 7)
Partiu dali (v. 8 [...])
Montanha a leste de Betel (v. 8 partiu [...] com Betel a oeste e Ai a leste)
Lá (v. 8)

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


75

Tempo[xii]:
Então (v. 1)
Pretérito perfeito (v. 1 disse) (v. 4 partiu; seguiu; saiu) (v. 5 levou; juntaram;
começaram; chegaram) (v. 6 atravessou) (v. 7 apareceu; disse; edificou) (v. 8
partiu; armou; edificou; invocou)
Imperativo (v. 1 deixa) (v. 2 sê)
Futuro (v. 1 mostrarei) (v. 2 farei; te abençoarei; honrarei) (v. 3 abençoarei,
amaldiçoarei, serão benditos) (v. 7 darei)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Infinitivo pessoal (v. 3 abençoarem, desonrar)


Pretérito mais que perfeito (v. 4 dissera) (v. 7 aparecera)
Pretérito imperfeito (v. 4 tinha) (v. 5 haviam adquirido) (v. 6 habitavam)
Naquela época (v. 6)

COMO O TEXTO ORGANIZA ESSAS AÇÕES E RELAÇÕES NO


TEMPO E NO ESPAÇO?

A perícope constrói relações centradas na manifestação (e fala) de Deus a Abrão


e no movimento em resposta às manifestações divinas. Abrão é chamado para
deixar seu espaço vital e partir para um espaço desconhecido, a fim de receber a
bênção divina de uma grande posteridade e honra (o que incluía, naquele tempo,
vida digna e boa reputação).
Do ponto de vista temporal, as manifestações divinas são apresentadas no
aspecto completo e no tempo pretérito, enquanto as promessas de Deus a Abrão,
como não poderia deixar de ser, estão no aspecto durativo e no tempo futuro.
Os tempos do pretérito-mais-que-perfeito nos v. 4 e 7 ajudam a compor a dinâ-
mica das relações entre YHWH e Abrão, de modo que o texto não só apresenta
tons objetivos, como mostra efeitos de subjetividade que fazem os leitores e as
leitoras se identificarem com as personagens principais. Alguns verbos, nos ver-
sos 4-6 se referem ao modo de vida que Abrão deixou ao obedecer ao chamado
de YHWH (aspecto durativo processual), partindo para um estilo de vida na
liminaridade (em movimento – sugerindo uma referência ao seminomadismo).

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


76 UNIDADE II

Uma glosa (v. 6) insere a temporalidade enunciativa (em relação ao enunciador


– autor do texto) no âmbito da temporalidade enunciva que predomina no texto
e serve para acentuar as dificuldades que Abrão teria de enfrentar para atender ao
chamado de YHWH. A principal relação interpessoal no texto se dá entre YHWH e
Abrão, mediante a fala e a aparição de YHWH ao segundo e sua obediência e culto
(altares). Ló e Sarai (bem como o pai e os servos de Abrão) compõem o cenário, mas
não são ativos na perícope, demarcando seu papel como coadjuvantes da narrativa.
A segunda relação interpessoal é a que se dá entre Abrão e os seus relacionamen-
tos – descritos de modo genérico sob a tensão da honra e da bênção. Mediante sua

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ênfase nas relações entre YHWH e Abrão, o texto destaca o caráter de seu relacio-
namento como uma berit (aliança, parceria). Na perícope, ambos os parceiros são
fiéis – YHWH se manifestando a Abrão e este atendendo a e adorando a YHWH. Do
lado de Abrão há um peso sobre a insegurança causada pelo movimento incessante,
equilibrado pela relação de Abrão com YHWH, que oferece base para a segurança
de Abrão em cada lugar no qual se instala provisoriamente.
Sobre a condição de viajante, vale ler um poema de Mia Couto:
Viajaste
sob árvore sem sombra.

Pisaste
a carne da pedra,
rasgaste
o fio da água.

E aprendeste:
o teu gesto
não é destinado a ter dimensão.

Agora, sabes:
teus braços foram feitos
para abraçar horizontes.

És maior que o voo do sono,


E voltas a ser nada
quando infinito te pensas.
(COUTO, 2016, p. 66)

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


77

A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

Passamos ao segundo ciclo da exegese.


‫ָארץ אֲ ׁשֶ ר‬ ֶ ָ‫ַארצְָך ּומִ ּמֹולַדְ ְּתָך ּומִ ּבֵית ָאבִיָך אֶ ל־ה‬ ְ ֵ‫ו ַּי ֹאמֶ ר י ְהו ָה אֶ ל־ַאב ְָרם לְֶך־לְָך מ‬
‫ ו ַאֲ ב ֲָרכָה מְ ב ְָרכֶיָך‬3 ‫ ו ְאֶ עֶ ׂשְ ָך לְגֹוי ּגָדֹול ו ַאֲ ב ֶָרכְָך ו ַאֲ גַּדְ לָה ׁשְ מֶ ָך ו ֶהְ י ֵה ּב ְָרכָה‬2 ‫ּך‬ָ ֶ‫ַארא‬
ְ
‫ וַּיֵלְֶך ַאב ְָרם ּכַאֲ ׁשֶ ר ּדִ ּבֶר אֵ לָיו י ְהו ָה‬4 ‫ּומְ קַ ֶּללְָך ָאא ֹר וְנִב ְְרכּו בְָך ּכ ֹל מִ ׁשְ ּפְ ח ֹת הָ אֲ דָ מָ ה‬
‫ וַּיִּקַ ח ַאב ְָרם‬5 ‫וַּיֵ ֶלְך אִ ּתֹו לֹוט ו ְַאב ְָרם ּבֶן־חָ מֵ ׁש ׁשָ נִים ו ְׁשִ בְעִ ים ׁשָ נָה ְּבצֵאתֹו מֵ חָ ָרן‬
‫ָל־רכּוׁשָ ם אֲ ׁשֶ ר ָרכָׁשּו ו ְאֶ ת־הַ ּנֶפֶ ׁש‬ ְ ‫אֶ ת־ׂשָ ַרי אִ ׁשְ ּתֹו ו ְאֶ ת־לֹוט ֶּבן־ָאחִ יו ו ְאֶ ת־ּכ‬
‫ָָארץ עַ ד‬ ֶ ‫ וַּיַעֲ ב ֹר ַאב ְָרם ּב‬6 ‫ַארצָה ְּכנָעַ ן‬
ְ ‫ַארצָה ְּכנַעַ ן וַּיָב ֹאּו‬ְ ‫אֲ ׁשֶ ר־עָ ׂשּו בְחָ ָרן וַּיֵצְאּו ָל ֶלכֶת‬
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

‫ וַּי ֵָרא י ְהו ָה אֶ ל־ַאב ְָרם ו ַּי ֹאמֶ ר ְלז ְַרעֲ ָך‬7 ‫ָָארץ‬ֶ ‫מֹורה ו ְהַ ְּכנַעֲ נִי ָאז ּב‬
ֶ ‫מְ קֹום ׁשְ כֶם עַ ד אֵ לֹון‬
‫ וַּיַעְ ֵּתק מִ ּׁשָ ם הָ הָ ָרה‬8 ‫ָארץ הַ ּז ֹאת וַּיִבֶן ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה הַ ּנ ְִראֶ ה אֵ לָיו‬ ֶ ָ‫אֶ ֵּתן אֶ ת־ה‬
‫מִ ּקֶ דֶ ם ְלבֵית־אֵ ל וַּיֵט ָאהֳ ֹלה ּבֵית־אֵ ל מִ ּיָם ו ְהָ עַ י מִ ּקֶ דֶ ם וַּיִבֶן־ׁשָ ם מִ ְזּבֵחַ לַיהו ָה וַּיִקְ ָרא‬
‫ּבְׁשֵ ם י ְהו ָה‬
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia. [2017], on-line)²

Tradução:
1
Então YHWH disse a Abrão: Deixa tua terra, tua terra natal e a casa de teu pai
em direção à terra que te mostrarei. 2 Consequentemente, farei de ti um grande
povo e te abençoarei e honrarei o teu nome. Torna-te bênção! 3 Abençoarei
os que te abençoarem e amaldiçoarei o que te desonrar; em ti serão bendi-
tos todos os clãs agrários. 4 Então, partiu Abrão conforme lhe dissera YHWH
– com ele seguiu Ló. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã.
5
Abrão levou Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão, todos os bens que
haviam adquirido, bem como os servos que adquiriu em Harã. E começaram
a jornada para a terra de Canaã. E chegaram à terra de Canaã. 6 Abrão atra-
vessou a terra até a região de Siquém, até ao carvalho de Moré. Naquela época
os cananeus habitavam na terra. 7 YHWH apareceu a Abrão e lhe disse: à tua
descendência darei esta terra. Ali edificou um altar a YHWH, pois a ele apa-
recera. 8 Partiu dali para a montanha a leste de Betel e armou sua tenda, com
Betel a oeste e Ai ao leste. Edificou um altar a YHWH e lá invocou o nome de
YHWH. (Traduzido pelo autor)

A Dimensão Teológica da Ação


78 UNIDADE II

Na descrição do método sêmio-discursivo, o segundo ciclo da fase final


da interpretação é estruturado ao redor de uma pergunta tríplice: quais são as
possibilidades de sentido teológico da ação e como elas estão organizadas: (1)
intertextual e interdiscursivamente; (2) estilística e argumentativamente; e (3)
sintática e tematicamente? A análise da dimensão teológica da ação é a parte da
metodologia discursiva que corresponde, nas metodologias históricas e contex-
tuais, à busca do sentido do texto.
Por exemplo, no Manual de Exegese do Novo Testamento (perspectiva histó-
rico-crítica) escrito por Uwe Wegner (1998), um dos mais lidos e utilizados em

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
nosso país, o trabalho que fazemos no Segundo Ciclo é discutido em dois capí-
tulos, com os títulos “Análise de Conteúdo” e “Análise Teológica” (WEGNER,
1998, p. 248ss.). No Manual de Hermenêutica de Henry Virkler (perspectiva his-
tórico-gramatical), este trabalho é descrito também em dois capítulos: “Análise
Léxico-Sintática” e “Análise Teológica” (VIRKLER, 1987, p. 105ss.). No manual
do presbiteriano Louis Berkhof (histórico-gramatical), a análise correspondente
ao II Ciclo é discutida e apresentada em duas seções: “Intepretação Gramatical”
e “Interpretação Teológica” (BERKHOF, 2000, p. 53-86 e 101-126).
Essa dimensão da análise é a que, do ponto de vista teórico-metodológico, é
mais afetada (positivamente falando) pelo desenvolvimento da Linguística e das
diversas disciplinas que, a partir da Linguística, se dedicam a explicar os proces-
sos de significação e interpretação (Semióticas, Análises do Discurso, Semiologia,
Filosofia da Linguagem, Hermenêutica Filosófica).
A estruturação dos procedimentos analíticos que proponho é baseada nos resul-
tados e questionamentos mais significativos dessas diversas disciplinas científicas.
Em parte, está presente a correção de alguns dos problemas teóricos e analíticos
dos métodos que não se apropriaram dessas ciências; mais importante, porém, é a
estruturação dos procedimentos de um modo que, embora mais complexo, é mais
eficaz na compreensão do texto na medida em que se baseia em uma teoria mais
adequada do sentido e dos processos de textualização e comunicação do sentido.
A estrutura triádica dos procedimentos nesse Ciclo procura dar conta da
complexidade dos processos de produção, difusão e recepção do sentido. Em
primeiro lugar, por partir da totalidade para as partes – tanto do ponto de vista
da produção do sentido (por isso a interdiscursividade vem em primeiro lugar,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


79

para situar o texto em seu contexto), quanto do ponto de vista do sentido no texto
propriamente dito (o sentido das palavras e das orações depende do sentido do
texto todo). Depois, por levar em conta como integrante da produção do sentido
os elementos de estilo e argumentação, ou não eram considerados nos méto-
dos anteriores ou eram alocados a diferentes momentos da análise, bem como
por trazer, para dentro do texto (por assim dizer) as perguntas da Pragmática da
comunicação. Por fim, ao tratar da dimensão ‘temática’ (ou semântica) do texto
juntamente com sua estruturação sintática discursiva, momento em que se reto-
mam os aspectos relevantes da análise do plano de expressão.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Exatamente por conta dessa complexidade, o II Ciclo da exegese sêmio-dis-


cursiva oferece desafios importantes para a sua prática. Esses desafios têm sua
origem no fato de que os textos bíblicos foram escritos em outras línguas, outras
épocas e em outras culturas, das quais o nosso conhecimento só se torna signifi-
cativo após estudo disciplinado e amplo, que toma vários anos (além da própria
duração do curso de bacharelado). Do ponto de vista do procedimento, porém,
os passos são claros e podem ser seguidos até mesmo por iniciantes no estudo
teológico ou por pessoas sem instrução teológica formal (acadêmica). Levando
em conta o aspecto didático, vou começar com a pergunta mais simples e que
depende de menos conhecimentos sobre o contexto de Gênesis.

ANÁLISE DA ORGANIZAÇÃO SINTÁTICA E TEMÁTICA DE GN 12,1-8

Na perspectiva semiótica, o sentido de um texto é percebido como o conjunto


de um ou mais percursos temáticos que podem seguir a estrutura do plano de
expressão, mas, normalmente, possuem um arranjo próprio. Dois procedimentos
podem ser seguidos aqui: o mais técnico que é o procedimento de reconstru-
ção dos percursos temáticos do texto por meio da abstração, e o menos técnico
que é o procedimento de reconstruir os percursos temáticos a partir dos per-
cursos de pessoa, tempo e espaço. Usarei este segundo procedimento também
por razões didáticas (em outras unidades trabalharei com o procedimento mais
técnico). Começar com o mais simples nos permite mais motivação para pros-
seguir para o mais complexo.

A Dimensão Teológica da Ação


80 UNIDADE II

Como vimos na análise da dimensão espaço-temporal da ação, os personagens


principais do texto são YHWH e Abrão, de modo que discutiremos o percurso
temático de YHWH e o de Abrão e sua relação com YHWH (em tese, podería-
mos ver aqui um único percurso – o da relação – mas para tornar o procedimento
mais simples de ser seguido, farei a análise separadamente). Depois, dedicaremos
atenção ao percurso do movimento de Abrão – tanto no sentido ‘espacial’, como no
‘temporal’ e no ‘existencial’ (ao mudar de lugar Abrão muda seu modo de viver).

YHWH. Vamos retomar o que vimos no I Ciclo:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(v. 1: disse a Abrão [...] à terra que te mostrarei); (v. 2 [...] ‘disse’ farei de ti um
grande povo, te abençoarei, honrarei teu nome. Sê uma bênção) (v. 3 [...] ‘disse’
abençoarei […] amaldiçoarei [...]) (v. 4 conforme lhe dissera YHWH); (v. 7 apa-
receu a Abrão, lhe disse: ‘à tua descendência darei esta terra’; edificou um altar
a YHWH, pois a ele aparecera); (v. 8 edificou um altar a YHWH, lá invocou o
nome de YHWH). Três características de YHWH são aparentes à vista: ele fala
(e sua fala é convocação, promessa e bênção), ele aparece (para falar) e ele é ado-
rado (invocado em sua ‘ausência’, ou seja, em sua não-aparição).
A perícope começa de modo abrupto, com a fala de YHWH a Abrão
(lembremo-nos de que YHWH não aparece na perícope anterior que trata
da família de Abrão): “Então YHWH disse a Abrão: Deixa [...]” (‫ו ַּי ֹאמֶ ר י ְהו ָה‬
‫)אֶ ל־ַאב ְָרם לְֶך־לְָך‬. A forma da sentença com lekha unido ao verbo imperativo
lekhe pode ser interpretada de duas maneiras: (a) seguindo Whitley, como
uma forma enfática: Deixa, ‘mas deixa mesmo’; (b) seguindo Muraoka (1985),
como um dativo ético ou centrípeto, cujo “efeito é criar um pequeno e autocon-
tido mundo, um efeito de focalização no sujeito” (MURAOKA, 1985, p. 122).
Se, por um lado, a preposição l indica que o ato de deixar sua terra é bené-
fico para Abrão, por outro, aponta para o fato de que ao atender ao chamado de
YHWH, Abrão é colocado em uma situação desconhecida e ameaçadora – “... a
terra que te mostrarei”. Costumeiramente pensamos que Deus é um constante
‘protetor’, alguém que está sempre cuidando de nós, nos protegendo de todos
os perigos e males. Entretanto, o nosso texto apresenta uma face diferente de
YHWH: ele está sempre conosco sim, mas sua presença e sua voz são mais deses-
tabilizadoras do que gostamos de pensar.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


81

O chamado de Deus se dá em contraste com os ‘chamados’ do mundo em que


vivemos – nos tempos de Abrão, os inúmeros chamados dos inúmeros deuses dos
babilônios (caldeus) e dos sírios (Harã); deuses estreitamente vinculados a reis e
a templos com seus sistemas sacrificiais e suas complexas hierarquias sacerdotais.
Poderíamos fazer aqui uma abstração e afirmar que o chamado de Deus tem
um caráter anti-idolátrico: a voz divina nos retira do confortável mundo dos ído-
los que criamos para nós mesmos e nos dão segurança, conforto, estabilidade.
Podemos aproveitar a reflexão de Jean-Luc Marion (1991) sobre o ídolo, que ele
define não como um ‘ser’ entre outros, mas como ‘um modo de ser (viver) no
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mundo’ (MARION, 1991, p. 7). Idolatria não se restringe, então, a adorar falsos
deuses, ou deuses inexistentes – podemos adorar idolatricamente o verdadeiro
Deus (veja a crítica de Oséias aos sacerdotes de YHWH em seu tempo, Os 4:1ss).
Idolatria é ter um estilo de vida infiel a YHWH, uma vida que não atende à voz
de YHWH, mas às vozes dos ídolos que criamos e adoramos.
O chamado é anti-idolátrico também na medida em que ele nos fala a res-
peito do Deus que chama:
A estrutura do chamado é precisamente chamar a partir de baixo para
ser o que está além, nos convocar para o que é prometido antecipa-
damente, e nos convocar de volta ao que já foi esquecido há muito.
A frágil força do chamado é algo em relação a que podemos (posse)
ou temos o poder de ignorar - para nosso prejuízo, talvez, mas pode-
mos. O chamado incorpora apenas um poder vocativo - não um poder,
puro e simples, mas o poder impotente de uma provocação ou de uma
convocação, de uma solicitação, um poder sedutor - mas não tem um
exército para garantir sua eficácia, e nada nos impede de fazermos ou-
vidos moucos ao chamado. Ele não tem a pura força de coerção ou de
traduzir o chamado em fato. Ele funciona com o poder da impotência,
não com o poder da fortaleza (CAPUTO, 2006, p. 13).

YHWH, o Deus que chama a Abrão é, em grande medida, desconhecido a Abrão


– YHWH não era adorado em Ur, nem em Harã. O chamado de um Deus des-
conhecido é um frágil chamado, não tem uma ‘teologia do poder’ que torna o
chamado em lei que deve ser obedecida sob pena de punição. O chamado de
YHWH é, de fato, o que torna possível conhecer a YHWH. Podemos especu-
lar e afirmar que ao ouvir o chamado Abrão conheceu YHWH. Sua teologia era
básica e radical.

A Dimensão Teológica da Ação


82 UNIDADE II

Quem é YHWH? É o Deus que me convoca para partir, para cortar os laços,
para abandonar a segurança da terra, da casa, da família paterna. É o Deus que
viaja, um deus migrante, como o próprio Abrão se tornará ao aceitar o chamado.
Os deuses do mundo de Abrão eram, quase todos, deuses com residência fixa:
em cidades, templos, montanhas. YHWH, o Deus de Abrão não tem residência
fixa, está onde Abrão está, está em qualquer lugar que precise estar.
O chamado não vem sozinho, vem com uma promessa perfeita (sete ver-
bos): “farei de ti um grande povo e te abençoarei e honrarei o teu nome. Sê uma
bênção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei o que te desonrar; em

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ti serão benditos todos os clãs agrários”. Uma promessa que é, ao mesmo tempo,
uma convocação: o que YHWH fará por Abrão é o que ele espera que Abrão faça
por si e pelos ‘clãs agrários’. Note o arranjo quiástico concêntrico:

Farei de ti um grande povo


E te abençoarei
E honrarei teu nome
Torna-te bênção!
Abençoarei os que te abençoarem
Amaldiçoarei o que te desonrar
Em ti serão benditos todos os clãs agrários
(Repare que a ordem dos verbos na ‘volta’ do arranjo quiástico está em desa-
cordo com a ordem na primeira parte da estrutura).
O conteúdo da promessa nos fala muito a respeito de YHWH: (a) criativi-
dade que gera vida e doa a potência para gerar vida – aqui podemos evocar o
relato hínico da criação em Gn 1, que embora não use YHWH para Deus (usa
Elohim), nos ensina que para Deus, criar é gerar vida e doar a potência para
gerar vida – potência esta que também é descrita como bênção ao ser humano
(v. 26-28); (b) abençoa, o Deus que cria é o Deus que abençoa e sua bênção é a
potência de gerar mais vida e cuidar da vida gerada; (c) honra o nome de seus
parceiros e parceiras – em contraste com a honra que se busca sem Deus, con-
forme o relato de Babel em 11,1ss.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


83

É YHWH quem estabelece nossa reputação, não somos nós mesmos: pode-
mos ver aqui a graça em atuação: Deus faz em nós; e (d) YHWH convoca pessoas
para viverem como ele mesmo vive: abençoando – duas vezes o texto faz de
Abrão bênção para outras pessoas: no centro e na última linha da promessa
– torna-te bênção ‘para’ todos os clãs agrários. Bênção para quem sofre o mal
neste mundo. Tornar-se bênção é tornar-se uma pessoa abençoadora, que faz
o bem para o próximo, pessoa benigna, generosa etc.
A bênção é sempre uma promessa poderosa, o desejo de vida que somente
pode ser cumprido se quem abençoa efetivamente tem o poder para realizar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a bênção proferida. Além disso, a bênção prometida está em contraste radical


com a maldição em Gn 1-11 (3:14,17; 4:11; 5:29; 9:25). Será mera coincidência
que haja cinco aparições da maldição em Gn 1-11 e cinco aparições da bênção
em 12:1-3? Parafraseando Paulo, por um homem entrou o pecado no jardim
(Adão), por um homem entrou a maldição no mundo (Caim), por um homem
entrou a bênção no mundo – um homem que aponta para o último homem, o
último Adão-Abraão: Jesus Cristo.
O texto também nos diz que YHWH apareceu a Abrão – usando o niphal
(voz passiva) do verbo ‫( ָרָאה‬ver), o mesmo verbo usado no v. 1 em relação à terra
que YHWH mostraria a Abrão (YHWH fará a terra aparecer a Abrão). Aparecer
é uma das características de YHWH nas narrativas sobre os pais e mães de Israel
(três vezes a Abrão, 12:7; 17:1 e 18:1), duas vezes a Isaque (26:2, 24) e uma a Jacó
(35:9 – o verso fala que YHWH apareceu ‘de novo’ a Jacó, mas não há nenhum
relato de aparição a Jacó antes deste verso). De fato, aparecer é uma caracterís-
tica do ser de YHWH – ou, na linguagem mais tradicional da teologia: revelar-se.
Podemos refletir também aqui mais abstratamente: o deus invisível se faz
visível a seus parceiros e parceiras. Em outras palavras o aparecer de Deus torna
visível a invisibilidade do invisível e denuncia a idolatria como a invisibilidade
do visível (tornar coisas visíveis em invisíveis). Como no caso da voz de Deus a
aparição de YHWH é seguida de uma promessa, dessa vez Abrão não é o des-
tinatário: ‘à tua descendência darei esta terra’ – e sim a sua descendência.
Ressalta, portanto, o caráter de toda promessa que é sempre um adiamento
– o cumprimento só poderá ocorrer no futuro e, aqui, Abrão ouve a promessa
mas sabe que não irá desfrutá-la. O texto, assim, reforça a condição migrante

A Dimensão Teológica da Ação


84 UNIDADE II

de Abrão (e de YHWH), sempre em movimento para acompanhar e cumprir a


vocação de YHWH. Da mesma forma, reafirma o caráter abençoador de Deus
e sua fidelidade – prometer é um ato entre amigos, entre pessoas que vivem em
parceria, doutra forma seria uma obrigação – ou, como era comum no Antigo
Oriente em relações institucionais: o juramento.
Além da diferença entre os âmbitos pessoal e institucional, a promessa difere
do juramento na medida em que este sempre demanda uma obrigação e suas
sanções e recompensas, enquanto a promessa é sempre oferta de um dom, uma
dádiva. Destarte, a promessa estabelece um vínculo de fidelidade, de confiança

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mútua e antecipa a novidade, a alteração no estilo de viver. A temporalidade da
promessa é, então, a da futuridade, quem vive na expectativa do cumprimento
da promessa vive na invisibilidade do futuro, ainda não ‘presente’ (cronológico),
mas já presentificado (existencial) na disposição que cria no destinatário.
Como Deus da Promessa, podemos afirmar que YHWH é Deus da Futuridade
– Ele vem a nós ‘do futuro’, não do passado, nem do presente, mas ‘do futuro’
posto que a presença de YHWH é sempre na forma da antecipação, uma pre-
sença (no sentido existencial e/ou geográfico) jamais cem por cento presente
(no sentido cronológico), mas continuamente antecipadora e possibilitadora de
futuros não-calculados por seus destinatários.

Abrão e sua relação com YHWH


(v. 1 YHWH disse a Abrão: ‘Deixa [...]’ [até verso 3]) (v. 4 Então partiu Abrão,
conforme lhe dissera YHWH; com ele seguiu Ló. Tinha 75 anos quando saiu de
Harã); (v. 5 levou Sarai, sua mulher; Ló, filho de seu irmão, todos os bens que
haviam adquirido, bem como os servos que adquiriu em Harã. E começaram a
jornada para a terra de Canaã. E chegaram à terra de Canaã.) (v. 6 Abrão atra-
vessou a terra até a região de Siquém, até ao carvalho de Moré.) (v. 7 YHWH
apareceu a Abrão e lhe disse: à tua descendência darei esta terra. Ali edificou
um altar a YHWH, pois a ele aparecerá) (v. 8 Partiu dali para a montanha a leste
de Betel e armou sua tenda, com Betel a oeste e Ai ao leste. Edificou um altar a
YHWH e lá invocou o nome de YHWH)
Quem é Abrão? O texto retrata um homem com idade avançada, casado,
sem filhos, financeiramente estável e, eventualmente, próspero (dependendo

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


85

dos valores implícitos na descrição no verso 5), que vivia próximo de seu pai
e irmãos, tendo migrado com eles de Ur para Harã. Nada mais sabemos sobre
Abrão – seus sentimentos, sua religiosidade, seus projetos de vida. O mais
importante no texto, porém, é a sua relação com YHWH. Abrão ouve YHWH.
O texto não diz como: visão, sonho, teofania, oração etc. Nada sabemos sobre
o modo de seu chamado. Mas ele ouviu YHWH e se deixou determinar pela
vocação divina a ele dirigida. Assumiu o risco de abandonar a segurança e par-
tir para o desconhecido. Aceitou a promessa de honra e descendência, mesmo
sabendo que a possibilidade de ter descendentes seria mínima, quase impossí-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

vel. Chegando ao local onde YHWH mostraria sua nova residência, continuou
viajando – será que YHWH ainda não lhe mostrará a ‘terra’, ou lhe mostrará (cf.
a promessa para a descendência) e Abrão percebeu que seu destino vocacional
seria a destinerrância? (Destinerrância é um termo do filósofo Jacques Derrida
que descreve a comunicação humana como tendo destinatário [destino], mas não
uma recepção plena pelo destinatário. Há um ‘fim’ a ser alcançado, mas alcan-
çá-lo sempre é adiado, ou diferido, como diria o próprio filósofo. Apropriei-me
do termo para aplicá-lo à vida humana enquanto tal. Para consultar uma das
obras em que Derrida discute o termo, ver DERRIDA, Jacques. Esporas. Rio de
Janeiro: Nau, 2013.)
Ouvinte, Abrão confia na promessa. Uma confiança ousada, pois até onde o
texto nos permite ver, Abrão não teria conhecido YHWH a não ser no próprio
momento da vocação e promessa. Costumamos pensar que receber uma pro-
messa é algo relativamente fácil, algo que não nos compromete. Porém,
é a promessa que requer uma decisão e um arrependimento radicais.
É a promessa que demanda a rejeição de toda segurança, o reconheci-
mento de que o mundo gira ao redor de, e é empoderado por esse outro
que será crido e adorado” (BRUEGEMANN, 1982, p. 119).

A promessa recebida era também constituída por um ‘mandato’, por uma ‘missão’
– ser bênção para outros Abrãos e Sarais. A promessa divina sempre é também
convocação, jamais pode ser vista ou recebida como privilégio, egoisticamente, é
dádiva que se concretiza não no receber, mas no partilhar – no continuar doando,
pois a dádiva só é dádiva quando também é ‘errante, caminhante’. Vale aqui uma
citação algo longo de um ‘livrinho’ de Carlos Mesters:

A Dimensão Teológica da Ação


86 UNIDADE II

Conforme a Bíblia, Abraão se mandou e caiu no mundo, pensando não


só em si e na sua família, mas em todos os homens. Pensava no mundo
que estava estragado. A gente percebe isso bem claramente nas palavras
que Deus lhe dirige. [...] Deus só fala em bênção! Do começo até o fim!
É aquela mesma bênção dada a todos os homens no dia da criação.
Abraão deve trazê-la de volta e tornar-se, ele mesmo, uma fonte de bên-
ção! Abraão carrega uma grande responsabilidade! Por isso, não pode
trabalhar sozinho, mas através do povo a ser formado em torno dele.
Deve tornar-se pai de um povo! (MESTERS, 1978, p. 53-54)

Por onde passa, sem destino certo a ser alcançado, ou talvez sem a certeza de
poder alcançar um destino (no capítulo 22 há um novo chamado de Deus a Abrão,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
para sacrificar Isaque, em um lugar que YHWH mostraria), Abrão é uma pes-
soa de fé-fidelidade: erige altares para adorar a seu Deus. No verso 8, juntamente
com a edificação do altar, Abrão ‘arma sua tenda’ (expressão idêntica é usada
para Isaque em Gn 26:25 também em conjunção com a edificação de um altar).
Tenda é a habitação do migrante, do seminômade, do sem-terra que ocupa a
terra que está disponível, mas está sempre sob risco de ter ‘sua’ terra reivindicada
por um proprietário então ausente. Em 13:18, após mudar suas tendas, Abrão edifica
novamente um altar. Será uma das tendas uma espécie de templo? Uma antecipação
do tabernáculo do livro do Êxodo? Ou será a tenda um sinal de gratidão pela terra
prometida e recebida sob o signo da antecipação, penhor ou primícias? Enfim, tenda
é sinônimo de não-durabilidade, de viver de modo perecível, arriscado, sinal de con-
fiança, de abertura ao desconhecido sob o signo da presença do Deus conhecido.
YHWH lhe aparece e seu nome é invocado por Abrão. Ao longo da narra-
tiva sobre a vida de Abrão vemos os vacilos, os erros, os ‘pecados’, as covardias,
as dúvidas – mas até o fim, Abrão permanece uma pessoa determinada pelo cha-
mado e, quando o chamado de YHWH se apresenta como a negação do chamado
original (22:1ss, sacrificar o filho, a descendência), Abrão, mais uma vez, não
titubeia: ouve e vai. Caminhante é a identidade de Abrão. Migrante-caminhante.
A fé-fidelidade de Abrão não lhe deu segurança e estabilidade; promoveu uma
errância constante, mas uma errância jamais solitária. YHWH esteve sempre
com ele. Quem sabe podemos dizer, mesmo com anacronismo, para Abrão,
YHWH é Emanuel. A fé-fidelidade é receber a promessa e aceitar a vocação de
compartilhador da promessa – destinerrante é o modo de ser da fé em YHWH.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


87

Segundo a poesia do espanhol Antonio Machado, assim é a vida do caminhante:


Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho


e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Caminhante não há caminho,


senão sulcos no mar… (MACHADO, [2016], on-line)³.

Abraão é o outro-Caim, não o expulso de sua casa pelo crime, mas o convocado
para fora de casa como abençoado e abençoador; assim como Caim recebeu
uma marca na testa como sinal da proteção, Abrão recebeu a promessa de que
todo que o desonrar, o ferir, o ofender será amaldiçoado por Deus, pelo pró-
prio YHWH que abençoa e cuida, acompanha, caminha junto, fazendo, com o
caminhante, o caminho por onde caminhar. Ao chamar, YHWH doa vida e a
vida doada é prenhe de imprevisibilidade, é destinerrante, mas jamais solitária.
Vida com Deus é vida missionária, é vida solidária. É vida que sabe ouvir a voz
de YHWH, mas também a voz que clama sem saber que YHWH aqui está entre
nós como Emanuel. Assim nos diz a canção “Por onde vais”
Por onde é que vais? Caminho a seguir.
(Há) milhares que a paz almejam cumprir...
Alguém para ouvir, buscar decisões,
(Procurar), vagar pelo mar de opiniões...

Constante tropeçar no medo,


Com o olhar preso ao chão,
Sem querer sentir que a mão de Cristo quer ajudar.
Erga o olhar!

Por onde é que vais? Caminho a seguir.


(Há) que leva a paz, ter Cristo é bem mais! (PIMENTA, 2016)4.

A Dimensão Teológica da Ação


88 UNIDADE II

ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS DE ESTILO E ARGUMENTAÇÃO


EM GN 12,1-8

O gênero da perícope já foi brevemente discutido na análise do plano de expres-


são, material que retomaremos aqui do ponto de vista do sentido teológico da
ação no texto. Antes de voltarmos à questão do gênero textual, porém, alguns
comentários sobre o estilo da narrativa. Em primeiro lugar, constatamos a eco-
nomia narrativa em função do foco teológico – não são dados detalhes sobre o
modo de vida de Abrão ou de seus familiares, quanto tempo estavam em Harã,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o que faziam para viver, etc. Essa é uma característica que perpassa todas as
narrativas de Gn 12-50, o que, inclusive, faz com que a análise das paixões dos
personagens fique restrita às paixões que se podem depreender da relação do
personagem com o objeto-valor, pois não há quase nenhuma explicitação das
paixões (as poucas exceções também retratam a paixão em função do foco teo-
lógico do texto).
Comentando sobre Gn 22,1-17, Erich Auerbach faz uma apta descrição do
estilo narrativo da perícope que se aplica ao conjunto de Gn 12-50:
[…] a externalização apenas dos poucos fenômenos necessários para o
propósito da narrativa, tudo o mais é deixado na obscuridade; somente
os pontos decisivos da narrativa é que são enfatizados, o que fica en-
tre eles é inexistente; tempo e espaço são sub-definidos e demandam
interpretação; pensamentos e sentimentos não são expressos e apenas
sugeridos pelo silêncio e pelos diálogos fragmentários; o todo, perme-
ado de ininterrupto suspense e dirigido a um único alvo, permanece
misterioso e carregado de pano-de-fundo. (AUERBACH, s/d, p. 11-12)

O foco da narrativa se concentra exclusivamente na relação entre YHWH e


Abrão, tudo o mais é secundário e aparece no relato apenas para compor mini-
mamente o cenário dos eventos. É um estilo que convida à reflexão existencial
e à pergunta “qual é o meu lugar na relação com Deus”? Leitoras e leitores são
desafiados a mergulhar no mundo das ações e relações e extrair desse mundo
os significados mais apropriados para a sua própria experiência de fé-fidelidade.
O foco marca, então, intensamente, a construção da identidade como propósito
fundante do que é narrado. Quem sou eu diante de YHWH? Quem é YHWH e
como Ele age neste mundo? são as perguntas que se descortinam a nossos olhos.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


89

A estruturação no plano de expressão corresponde ao estilo – o arranjo qui-


ástico dos primeiros versos que aponta diretamente para a responsabilidade de
Abrão em ser bênção para os demais, bem como a aparição de YHWH e a nova
formulação da promessa, no v. 7, direcionam a narrativa para o tempo ‘presente’ de
Abrão, deixando o futuro na forma da antecipação – a vida de Abrão é como que
penhor da promessa da terra à sua descendência, e a tensão em relação ao cum-
primento da promessa não cede até o quase sacrifício de Isaque no capítulo 22 e
culmina no inesperado desaparecimento de Isaque ao final da narrativa (22,17),
para somente reaparecer na companhia de seu pai quando de seu futuro casamento.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Esta perícope, em função de seu gênero textual, não possui argumentação


lógica, o seu estilo e o seu conteúdo criam o material necessário para a persua-
são de leitoras e leitores.

ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERTEXTUAIS E INTERDISCURSIVAS


DE GN 12,1-8

Na análise do Plano de Expressão examinamos as relações intratextuais da perí-


cope, procedimento que retomamos, quando necessário, na análise dos percursos
temáticos do texto. Quanto às relações interdiscursivas, a datação aproximada do
texto se torna importante – se datamos o texto à época de Moisés, não teremos
relações intertextuais (uma vez que teria sido o primeiro texto escrito dos isra-
elitas), e as relações interdiscursivas teriam de ser buscadas no mundo cananeu
e egípcio; se datamos o texto durante a história de Israel já na terra, então tería-
mos possíveis relações intertextuais e as relações interdiscursivas poderiam ser
buscadas internamente em Israel (e, conforme a data atribuída ao texto, discur-
sos mesopotâmicos e/ou persas poderiam ser relevantes).
O que constatamos, porém, no exame da perícope até agora, mostra que não
temos relações intertextuais – ou seja, não há citações nem alusões a outros textos
conhecidos, e a especificidade de gênero mostra que não há estilização (os três modos
de intertextualidade). Do ponto de vista das relações interdiscursivas encontramos
apenas alusões a discursos culturalmente significativos: bênção, promessa, honra,
manifestação divina, culto. O formato genérico do texto não permite uma análise

A Dimensão Teológica da Ação


90 UNIDADE II

mais específica das relações interdiscursivas. Isso sugere que o texto é fruto de tra-
dição oral e mantém boa dose de fidelidade à forma oral anterior à textualização.
Todas as alusões reforçam a hipótese inicial em relação ao contexto da perícope:
o conteúdo desses temas aqui mantém relações predominantemente polêmicas com
as mesmas temáticas nos discursos monárquicos – não só de Israel, mas de todo
o Antigo Oriente Próximo. Entretanto, as noções subjacentes aos temas da perí-
cope partilham da visão cultural mais ampla no Antigo Oriente, por exemplo: (a) a
reciprocidade no tocante às bênçãos e maldições; (b) a honra do nome ligada à pros-
peridade demográfica e econômica, incluindo a posse de terra; (c) a comunicação

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
entre Deus e pessoas ‘comuns’ (não oficiais do Estado ou do Templo).
A bênção divina pode ser mediada por uma pessoa sagrada, como um patriarca
(Gn 27:7), um sacerdote (cf. Lv 9:23), um rei (2Sm 6:18), um moribundo (Jó 29:13),
e pela sagrada congregação. Provavelmente as bênçãos são as palavras de bênção
que pessoas de oração pronunciam perante os justos. No livro de Rute as bênçãos do
Senhor são mediadas pela oração dos fieis: os trabalhadores a Boaz (Rt 2:4), Naomi a
Boaz (2:19-20), Boaz a Rute (3:10) e a congregação a Boaz e Rute (cf. 4:11). Quando
bênçãos são mediadas por terceiros, as palavras e o poder de abençoar se tornam
noções mescladas. Uma pessoa que outorga bênçãos é uma nephesh beraka (Pv
11:25), mas os semitas do Noroeste sempre viram a divindade como uma verdadeira
doadora de bênção, mesmo quando eles não o explicitam. (WALTKE, 2001, p. 206)

A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO

Há dois caminhos para a realização da análise da dimensão sociocultural da


ação. O primeiro segue os procedimentos definidos pela compreensão do nível
narrativo do percurso gerativo do sentido – e é o mais difícil para iniciantes na
leitura sêmio-discursiva. O segundo é realizado com maior grau de facilidade
por iniciantes na exegese e é o que seguiremos aqui. Para lembrar do procedi-
mento, que vimos na disciplina de Métodos e Interpretação Bíblica, reapresento
as perguntas desse Ciclo e as definições básicas para utilizar os procedimentos.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


91

II Ciclo: A dimensão sociocultural da ação


Como o texto, em interação com seu mundo-da-vida, dá sentido à ação sob os
pontos de vista da (1) sociedade; (2) cultura; e (3) religião?

Como Fazer?
1. situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida (anali-
sando as suas relações contratuais e polêmicas);
2. formular a crítica social a partir do texto;
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

3. elaborar uma síntese.

SOCIEDADE

“Consiste nas ordens legítimas nas quais os participantes na comunicação regulam


as suas filiações em grupos sociais e salvaguardam a solidariedade” (HABERMAS,
2002, p. 139). Distingue-se da cultura principalmente pelo caráter legitimador
de seus conteúdos, ou seja, por definir que tipos de comportamentos, que papéis
sociais, que relações pessoais etc., são legítimas e podem ser realizadas. O sistema de
parentesco, por exemplo, é um componente da sociedade, pois legitima que tipos de
relacionamentos podem ser efetuados entre parentes, e também entre não-parentes
(o incesto é uma das normas sociais presente em quase todos os mundos-da-vida).
Aspecto fundamental da “sociedade”, então, é a noção de poder e seus con-
flitos, uma vez que, na ocorrência de conflitos de poder, sempre há também
distintos jogos de legitimação da situação. Legitimidade é, então, um termo rela-
tivo ao seu sujeito, à sua formação discursiva, pois ordens sociais que para uns
são legítimas, para outros não o serão.

CULTURA

“Cultura é aquilo que definimos como reserva de conhecimento à qual os parti-


cipantes na comunicação, ao entender-se uns com os outros, vão buscar as suas

A Dimensão Sociocultural da Ação


92 UNIDADE II

interpretações” (HABERMAS, 2002, p. 139). Distingue-se da sociedade pelo fato


de não se ocupar das legitimações, mas ser composta de noções mais abstratas
– valores, ideias, princípios, que estão na base das legitimações.

RELIGIÃO

O acervo de conhecimentos, valores, práticas e rituais considerados sagrados,


mediante o qual, os participantes da interação social produzem sentido, com

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pretensão de universalidade, para a vida humana. Para efeitos da exegese, nesse
ciclo excluímos os conhecimentos religiosos (teologia), já analisados no segundo
ciclo. A distinção entre esses componentes do mundo-da-vida (sociedade, cul-
tura e religião) não deve ser entendida de forma rígida, pois na realidade social
existem interligados e na prática não é possível atribuir cada conteúdo simples-
mente a este ou aquele componente.
Religiões concretas, por exemplo, não são compostas apenas por elemen-
tos da “religião”, mas também incluem elementos da “cultura” (noções sobre o
mundo, a vida, o bem, etc.) e da “sociedade” (o conceito de pecado, por exem-
plo, tem uma função legitimadora negativa).
Do ponto de vista da sociedade encontramos em nosso texto os seguintes ele-
mentos: “casa de teu pai”, “grande povo”, “servos”, “bens”, “clãs agrários”, “(terra
e) terra de Canaã” (Hará, Siquém, Moré, Betel, Ai), “cananeus”, “descendência”,
“montanha”, “tenda”. Esses termos apontam para duas formas distintas de orga-
nização social: por um lado, a vida urbana das cidades-estado, que giravam ao
redor do palácio e do(s) templo(s), que exerciam controle sobre a atividade e o
território rural mediante a cobrança de tributo, a exigência de trabalho para o
rei e a proteção militar contra invasores.
Por outro lado, a vida seminômade de criadores de ovelhas, moradores em
tendas que circulavam nas regiões próximas às fronteiras das cidades-estado, a fim
de suprir suas necessidades que a vida fora das cidades não supria, não entravam
nas cidades para morar, pois não tinham interesse em ficar sob o domínio de reis.
Entretanto, o texto não favorece nenhum desses modos. Se, por um lado,
o chamado de YHWH leva Abrão para fora do âmbito das cidades-estado, por

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


93

outro, a promessa não se coaduna com a existência seminômade, na qual ‘um


grande povo’ não era uma esperança, nem a posse de uma ‘terra’ fazia parte das
expectativas. A chave para entender a visão de sociedade, presente no texto, está
na expressão ‘clãs agrários’ (‫)מִ ׁשְ ּפְ ח ֹת הָ אֲ דָ מָ ה‬.
A expressão se refere a camponeses assentados em um território especí-
fico – não são seminômades, nem moradores de cidades. Do ponto de vista dos
livros no cânon da Bíblia Hebraica, a expressão aponta para o modo de vida
israelita na terra antes da monarquia – o que se convencionou chamar de triba-
lismo israelita. Na síntese final desse Ciclo descreverei de modo mais técnico o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

projeto ‘tribal’ israelita.


Do ponto de vista da cultura encontramos termos como: “honrarei teu nome”,
“amaldiçoar”, “desonrar”. Do ponto de vista da religião encontramos expressões
como: “YHWH disse”, “bênção”, “YHWH apareceu”, “altar”, “invocou o nome de
YHWH”. Tendo em vista o fato de que os elementos ‘culturais’ são usados na ‘fala’
de YHWH, podemos unir estes dois segmentos da vida social e analisá-los em
conjunto. (Para efeitos didáticos, mantenho a análise da “sociedade” em sepa-
rado, mas tendo em vista as condições históricas da época, também as normas
sociais funcionavam em conjunto com a cultura e a religião.)
Para entender os limites específicos de sentido desses termos, precisamos
situá-los no âmbito do modo de vida agrário (camponês) e contrastá-los com
os sentidos dos mesmos termos no modo de vida das cidades-estado. Do ponto
de vista das cidades-estado ‘nome’ e ‘honra’ estavam vinculados primariamente
à reputação do rei, de modo que a bênção e a maldição eram vistas também em
sua conjunção com o status dos monarcas. O nome (honra) de um rei dependia
de sua capacidade militar – defender seu próprio território (cidade) e, eventu-
almente, conquistar outras cidades.
Assim, bênção significava aumentar o território, aumentar a população
que pagava tributos ao rei e aumentar a sua reputação militar na região em que
estava a sua cidade. A religião girava, portanto, ao redor da realização dessas
expectativas: o(s) deus(es) adorado(s) tinha a função primária de defender o rei
e ajudá-lo a alcançar o ‘nome’ desejado. Como função da cidade-estado, a reli-
gião era organizada e institucionalizada com templos e sacerdócio profissional,
que se encarregava dos ritos e da difusão da ideologia monárquica.

A Dimensão Sociocultural da Ação


94 UNIDADE II

Na perspectiva do campesinato, o nome tinha a ver com a capacidade de


sustentar a família e manter a terra da família – sua única fonte de sustento. A
expectativa de crescimento numérico da família estava vinculada à capacidade de
sustento e às relações com outras famílias de agricultores – os casamentos ocor-
riam de modo tal a garantir a permanência na terra e a possibilidade de colheitas
bem-sucedidas (mão de obra necessária para o cuidado da terra).
A religião era, portanto, estruturada de modo não-institucional: o próprio
chefe da família atuava como sacerdote e não havia necessidade de templos,
pois deus(es) era(m) adorado(s) na própria terra da família e era visto como

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
participante da vida cotidiana familiar. A perícope sobre a vocação de Abrão,
portanto, se situa no âmbito da defesa da vida rural em contraponto à vida da
cidade-estado. Para sintetizar e explicitar melhor as características dessa visão
de sociedade, retomo aqui o texto que está em meu livro Uma História Cultural
de Israel (2013), referindo-se ao projeto de identidade do campesinato israelita
no período anterior à monarquia davídica:
Usando a tipologia de Castells, os relatos das origens de Israel apontam
para um processo de construção identitária iniciado com a resistência
contra a dominação de cidades-estado canaanitas em busca da sobre-
vivência no caos da desorganização político-militar da região. Não é
necessário postular que essa resistência tenha se devido a uma utopia
fundamentada em visão social bem delineada, como é o caso em Got-
twald e em parte da leitura popular da Bíblia. O reconhecimento da
condição de desrespeito pode ter apenas base moral ou mesmo prag-
mática (a necessidade de sobrevivência, ou a fuga da guerra, por exem-
plo, se encaixam como motivos na instável situação da região de Canaã
no período sob estudo), o que, conforme demonstrado por Honneth,
é motivo suficiente para a ação social em busca de mudança de uma
situação de desrespeito. Essa identidade de resistência pouco a pouco
se transforma em identidade emancipatória de projeto. A atribuição
da condição de evento fundante de Israel ao êxodo de hebreus do Egi-
to constrói poderosamente esta característica do projeto: se venceu o
maior de todos os opressores, Israel também será capaz de derrotar as
cidades-estado que controlam a sua terra prometida por YHWH. Essa
identidade de projeto, por fim, possui força emancipatória (a atribuição
da alteridade aos filisteus sugere o esforço de manutenção da emanci-
pação, o desejo de não voltar à condição de subjugação ao domínio de
reis) (ZABATIERO, 2013, p. 91).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


95

Teologicamente falando, a perícope apresenta uma noção da soberania de YHWH


que não é mediada pela monarquia nem pelo sacerdócio. YHWH contata direta-
mente as famílias a que abençoa, as acompanha e é adorado por elas nas situações
de sua vida cotidiana. A Sua promessa tem a ver com a dignidade da vida no
âmbito familiar agrário e não prevê uma ‘prosperidade’ do tipo acumulador de
bens, terras e reputação. Na linguagem mais comum da teologia, o nosso texto
apresenta um Deus pessoal, cuja relação com as pessoas é não-mediada insti-
tucionalmente, é baseada na fidelidade (graça) e não na obrigatoriedade (lei).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Nesse ciclo da fase final da exegese sêmio-discursiva chegamos ao ponto culmi-


nante da leitura da Bíblia – refletir sobre os significados possíveis do texto para
a nossa vida contemporânea. Embora pareça uma tarefa simples, de fato, ela é
a mais complexa, especialmente quando se trata do estudo de textos do Antigo
Testamento. Por quê? Por que não é possível simplesmente transferir os senti-
dos do texto em seu contexto para o nosso próprio contexto.
É preciso levar em conta: (a) que lemos como cristãos, de modo que toda
aplicação do texto veterotestamentário deve levar em consideração a releitura
que o Novo Testamento faz do Antigo; (b) que há toda uma história de inter-
pretação (recepção) do texto bíblico que já aponta para possíveis aplicações; (c)
a realidade contemporânea é completamente diferente da realidade do texto
bíblico, de modo que não podemos simplesmente imitar o que os personagens
bíblicos fizeram; e (d) nosso conhecimento teológico e experiência pessoal de
Deus interferem no modo como nos apropriamos do texto na atualidade. Como
não é possível explicitar e detalhar os elementos presentes nesses quatro itens,
apresentarei os resultados de minha análise da dimensão missional da ação, de
modo que cabe a você, leitor(a), levar em conta as questões aqui levantadas.

A Dimensão Missional da Ação


96 UNIDADE II

Iniciamos retomando as áreas da vida humana em relação às quais o texto se


situa: (a) político-social – o confronto entre o modo de produção tributário (a vida a
partir das cidades-estado) e o modo de vida seminômade de Abrão; (b) cultural-re-
ligioso: o chamado de Abrão para uma ‘aventura’, acompanhado da promessa divina
de bênção e a correspondente demanda para ser bênção; (c) ‘teológico’ – YHWH
como Deus que chama e promete (abençoa) e a resposta humana de fé-fidelidade
ao chamado de Deus.
No âmbito político-social o texto posiciona a bênção do lado dos que vivem fora
do controle da cidade-estado, ou seja, ele vê como ‘maldição’ o ser dominado por

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
uma cidade estado. Por que? A cobrança de tributos sem qualquer possibilidade de
controle por parte da sociedade; a obrigatoriedade de servir ao palácio sem remune-
ração e o serviço militar compulsório em tempos de guerra eram os três meios mais
constantes de injustiça praticados no ambiente das cidades-estado do Antigo Oriente.
Ao lado dessas práticas, também o uso da religião como mecanismo de legiti-
mação da autoridade real compunha o quadro da dominação – ou, em termos mais
contemporâneos, formavam o dispositivo de governamentalidade das cidades-es-
tado. Em resposta a esse dispositivo, o chamado de Deus a Abrão o coloca em uma
situação social de: (a) não depender dos meios de ‘segurança’ social e econômica
presentes na vida urbana; e (b) solidariedade ativa com os ‘clãs agrários’, ou seja com
as vítimas da dominação citadina.
Como nos apropriarmos desses elementos de sentido? (a) Quem vive pela fé-fi-
delidade em Jesus não depende dos mecanismos do sistema democrático e capitalista
para alcançar sua realização pessoal. O texto nos faz refletir sobre o fato de que o
chamado de Deus desestabiliza os elementos sólidos do mundo (no sentido joa-
nino do termo em 1 João “não ameis o mundo”). Falando de modo mais concreto,
não precisamos dos ‘bens deste mundo’ nem da ‘estabilidade’ política para alcançar
a realização diante de Deus. Na linguagem de João, usamos os bens desse mundo,
mas não somos controlados por eles.
Ou seja: o chamado divino nos possibilita viver no ‘presente século’ sem per-
tencer a ele, sem ser dominado pelos dispositivos de governabilidade (como a
tecnologia de comunicação, o consumismo, o individualismo etc.). Quem segue ao
Senhor não pode ter medo de assumir ‘riscos’ – nesse caso, os riscos derivados da
solidariedade com as vítimas do sistema contemporâneo. Do ponto de vista pessoal,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


97

somos chamados para viver a dimensão pública da fé mediante o exercício da solida-


riedade e da benignidade, da compaixão para com os que sofrem e não conseguem
alcançar uma vida digna. (Os modos concretos e específicos devem ser considera-
dos por cada um ou cada uma de nós, não cabe neste texto uma determinação dos
rumos cotidianos da vida).
(b) Do ponto de vista cultural-religioso, a perícope do chamado de Abrão nos
ensina a viver sob o signo da confiança (fé-fidelidade) em Deus. O eixo dirigente
da vida de cada pessoa que crê no Senhor é a fidelidade de Deus, que cumpre as
suas promessas e nós derrama suas bênçãos. Temos de cuidar, porém, em não con-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

fundirmos os desejos e valores ‘desse século’ com a bênção e a promessa divina. Se,
por um lado, a bênção divina pode assumir a forma concreta de uma vida digna,
por outro lado, ela assume a forma concreta da solidariedade com o próximo. Viver
bem e fazer o bem ao próximo são os dois eixos da espiritualidade abraâmica. Quem
recebe a bênção divina não deve acumulá-la para si mesmo, mas pode estar aberto
a partilhá-la com quem a necessita – tanto em termos materiais como em termos
espirituais. A vocação abraâmica, como a vocação cristã, tem como finalidade servir
ao próximo como expressão de nossa confiança em Deus e serviço a ele em adora-
ção. O texto nos sugere que a adoração a Deus não pode estar dissociada da vida
cotidiana, não pode ser mera gratidão pela promessa, sem ser, também, compro-
misso com o ser bênção para toda a criação.
(c) Do ponto de vista teológico, o texto nos fala sobre o caráter de Deus: YHWH
é Deus que chama, abençoa e promete – mas seu chamado nunca é individualista,
nem acomodador. Deus chama as pessoas para que se arrisquem a viver de acordo
com o caráter de Deus, de acordo com a disposição divina de abençoar a quem
precisa. Deus não chama para ‘recebermos’ e nos cumularmos de bênçãos e pros-
peridade sem solidariedade e compaixão. O Deus que nos chama não é ‘patrono’
da vida confortável e segura da propaganda televisiva da atualidade. É o Deus des-
tinerrante, que caminha com seu povo pelos lugares mais inóspitos da terra, a fim
de abençoar os mais necessitados do amor e atenção divinos. Na linguagem de
Paulo, é o Deus que nos ama mesmo enquanto somos ainda pecadores (Rm 5:8), a
fim de que possamos encontrar a vida e a vida plena no discipulado e seguimento
de Jesus Cristo. Abraão, diz Paulo, é nosso pai na fé. Pode ser o modelo para nossa
resposta de fé em Deus. Destinerrantes, como o pai Abraão, destinerrantes como

A Dimensão Missional da Ação


98 UNIDADE II

o Filho Unigênito Jesus Cristo. Destinerrantes como o apóstolo Paulo e seus com-
panheiros de jornada missionária. Sempre seguindo os passos do Senhor Jesus,
por onde Ele andar.

Você pode refletir sobre a dimensão missional dessa perícope. Que tal escre-
ver, para você mesmo, alguns parágrafos sobre o que este texto significa?

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Iniciamos nosso estudo exegético de Gn 12,1-8 com uma hipótese contextual
ampla: situamos o texto no âmbito dos confrontos sociais no Antigo Oriente
sob o Modo de Produção Tributário – a época da escrita do texto poderia até
mesmo remontar aos tempos de Moisés e/ou do início da vida de Israel na Terra
Prometida. A análise exegética do texto – a meu ver – confirma a hipótese ini-
cial, na medida em que não encontramos nenhuma indicação específica de época
da escrita. Os termos teológicos presentes (chamado, bênção e promessa) são
encontrados em textos de todos os períodos da história israelita e a forma como
aparecem não nos permite uma especificidade maior. O único indício mais seguro
é a afirmação “naquele tempo os cananeus habitavam na terra”, que situa o texto
escrito já no período da história de Israel em que os cananeus não mais domi-
navam a região: ou seja, apenas do início da monarquia para frente.
Mais importante do que uma datação específica do texto, porém, é a sua com-
preensão contextual, o que é possível realizar mesmo sem uma data exata. A nossa
análise mostrou que o foco principal desse texto recai na fidelidade a YHWH acima
de outras fidelidades (família, terra, governo...). Ser fiel a YHWH significa aten-
der ao seu chamado, receber a sua bênção prometida e reparti-la solidariamente,
assumindo os riscos de viver de tal forma que não sigamos os padrões da nossa
própria sociedade, mas os padrões divinos. Na próxima Unidade continuaremos a
praticar a análise exegética, dessa vez com um texto profético, cuja datação é mais
segura – e veremos que não há diferenças significativas no trabalho interpretativo
em relação à diferença na forma de situar o texto em uma data na história de Israel.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE GÊNESIS 12,1-8


99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a),você chegou até o fim de nosso trabalho de interpretação de


Gênesis 12:1-8. Parabéns!
Procurei mostrar, passo a passo, como se faz a exegese de um texto bíblico
seguindo o método sêmio-discursivo (em diálogo com outras metodologias e
teorias de interpretação bíblica).
No primeiro tópico, praticamos os passos da fase preparatória da interpre-
tação, estudando o contexto e delimitando, segmentando e estruturando o texto
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(a perícope). Você notou que usei o texto hebraico como base para a exegese.
Se você não conhece bem o hebraico, pode usar o texto em português e, sempre
que possível, consultar o hebraico. Entretanto, pode-se fazer uma boa exegese
apenas usando uma tradução do texto bíblico já publicada.
No segundo tópico, estudamos a dimensão espaço-temporal da ação.
Procuramos ver como o texto narra as relações entre pessoas agindo no tempo
e no espaço e como essas relações nos ajudam a entender o texto.
No terceiro, o foco recaiu sobre a dimensão teológica da ação, ou seja, ten-
tamos entender o sentido teológico da perícope - quem é Deus, o que ele faz,
com quem ele se relaciona, etc.
No quarto, o tema foi a dimensão sociocultural da ação - estudamos o modo
como o texto dá sentido à sociedade e cultura em que foi escrito: como ele vê
essa sociedade, como ele a crítica, como ele a pensa no futuro, etc.
Finalmente, o último tópico se ocupou da dimensão missional da ação: da
releitura do texto, de seu significado para o nosso próprio contexto e nossa pró-
pria vida.
Nesta Unidade, coube a você, principalmente, prestar atenção à aplicação
do método. Mas você não aprenderá exegese se não praticar o método. Assim,
sugiro que você escolha uma perícope do Antigo Testamento e vá fazendo, em
casa, a exegese, seguindo os passos aqui estudados. Além disso, faça os exercí-
cios que aparecerem ao longo das Unidades. Leia os textos complementares e,
acima de tudo, disponha-se a ler disciplinadamente a Bíblia.

Considerações Finais
100

1. Na fase preparatória estudamos:


a. contexto, texto, intertexto.
b. delimitação, segmentação, gênero textual.
c. delimitação, contexto, gênero textual e teologia.
d. contexto, delimitação, estruturação, segmentação da perícope.
e. nenhuma das anteriores.

2. Na análise da dimensão espaço temporal da ação, estudamos no texto as pes-


soas e suas ações no tempo e no espaço. Essas pessoas, tempo e espaço são
estudadas em sua realidade exclusivamente textual.
( ) FALSO ( ) VERDADEIRO

3. Na descrição do método sêmio-discursivo, o segundo ciclo da fase final da inter-


pretação é estruturado ao redor de uma pergunta tríplice - quais são as possibili-
dades de sentido teológico da ação e como elas estão organizadas:
A. (1) intratextual e historicamente; (2) estilística e tematicamente; e (3) sintática
e tematicamente?
B. (1) intertextual e teologicamente; (2) temática e argumentativamente; e (3)
sintática e tematicamente?
C. (1) intertextual e argumentativamente; (2) estilística e interdiscursivamente;
e (3) sintática e semanticamente?
D. (1) intertextual e interdiscursivamente; (2) estilística e argumentativamente;
e (3) sintática e tematicamente?
E. (1) intertextual e interdiscursivamente; (2) estilística e tematicamente; e (3)
sintática e argumentativamente?
A lista correta é:
a. A.
b. B.
c. C.
d. D.
e. E.
101

4. As metas metodológicas da análise da dimensão sociocultural da ação são as


seguintes:
a. 1. Situar o texto no seu lugar geográfico; 2. Formular a crítica social a partir do
texto; e 3. Elaborar uma teologia.
b. 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida; 2. Enten-
der a realidade social a partir do texto,; e 3. Elaborar uma síntese.
c. 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida; 2. Formu-
lar a crítica social a partir do texto,; e 3. Elaborar uma ideologia.
d. 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida; 2. Repro-
duzir o contexto do texto; e 3. Elaborar uma síntese.
e. 1. Situar o texto nas formações discursivas de seu mundo-da-vida; 2. Formu-
lar a crítica social a partir do texto; e 3. Elaborar uma síntese.

5. Para iniciar a análise da dimensão missional da ação, nós:


A. retomamos as áreas da vida divina em relação às quais o texto se situa.
B. retomamos as situações da vida humana em relação às quais a igreja se po-
siciona.
C. retomamos as áreas da vida humana em relação às quais o texto se situa.
D. retomamos as áreas da vida humana em relação às quais a tradição teológica
se situa.
E. nenhuma das anteriores
A alternativa correta é:
a. A.
b. B.
c. C.
d. D.
e. E.

6. Explique, com suas próprias palavras (mas podendo citar também partes do tex-
to da Unidade) o que significa a condição de Abrão como migrante ou viajante.
102

O Chamado
O chamado feito por Deus a Abraão e constituído por um breve texto:
O Senhor disse a Abraão:
Sai da tua terra, da tua parentela e da casa do teu pai e vai para a terra que eu
te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu
nome; sê uma benção! Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei aquele
que te amaldiçoar. Por ti serão abençoados todos os povos da terra (Gn 12,1-3).

A iniciativa é unicamente da parte do Senhor. É um chamado vocacional, um convite em


vista de um projeto maior que o Senhor tem para ele. O verbo hebraico halak (sair, partir,
caminhar, andar) é usado no imperativo: “Sai!”.
Embora Abraão seja livre, a ele só restam duas opções: aceitar o chamado com todas as
suas consequências ou renunciar e não escutar o convite divino. O Senhor pede mais:
Abraão deve romper laços importantes. É necessário que abandone sua região e o lugar
onde habita (o país); deve romper com os seus laços mais próximos (parentes); deve
deixar a casa paterna (família). “Estes três conceitos indicam que Deus sabe muito bem
quão difíceis são tais separações” (RAD, 1982, p. 192).
Deixando tudo, só tem diante de si um único horizonte: a terra que o Senhor lhe prome-
teu. E um partir na noite escura, rumo ao desconhecido, sem possibilidade de retorno,
acreditando unicamente na Palavra do Senhor. A terra e promessa, colocada num hori-
zonte distante, mas realizável. Abraão ainda não pode vê-la, mas pode imaginá- la, pois
o Senhor promete que ele a verá: “eu te mostrarei” (Gn 12,1).
Somente quando chega a Siquém o Senhor lhe diz que é esta a terra da promessa (Gn
12,6-7; 17,8). O texto indica também que o Senhor confia na resposta positiva de Abraão
e, por isso, são apresentados os novos elementos da promessa: a descendência e a ben-
ção. A idade de Abraão já era avançada, Sara era estéril (Gn 11,30) e eles não tinham
filhos. Na época, a esterilidade era um problema sério, pois impedia a continuidade da
descendência, tanto que, se a esposa não lhe desse filhos, o marido tinha o direito de
buscar outra mulher para garantir a descendência e, com isso, assegurar a continuidade
do seu nome. O Senhor lhe promete que sua descendência será grande: “Ergue os olhos
para o céu e conta as estrelas, se as podes contar [...] Assim será a tua posteridade” (Gn
15,5). A promessa é apresentada com esse simbolismo vigoroso: “o céu estrelado e si-
lencioso aponta ao poder ilimitado do Deus oculto que, ao revelar-se só em sua palavra,
provoca a aventura da confiança pessoal pela qual o homem se entrega inteiramente
nas mãos de Deus” (EICHRODT, 2004, p. 727).
103

Outro elemento importante e fundamental no chamado e a promessa da benção. Abraão


será abençoado. A bênção divina é sinal de proteção e de graça, ao mesmo tempo se diz
que será amaldiçoado quem amaldiçoar Abraão. Rad (1982, p. 193) chama atenção para
esse aspecto: “Note-se também o singular ‘ao que te amaldiçoa’ em contraste com o plu-
ral ‘os que te abençoam’”3. Contudo, mais do que ser abençoado, Abraão será fonte de
bênção: “Por ti serão benditos todos os clãs da terra” (Gn 12,3). Ao ser abençoado, recebe
também a promessa de que seu nome “será engrandecido”.
O nome vai ser ampliado, conforme analisaremos mais adiante, mas também Abraão se
torna fonte de bênçãos e pai de numerosas nações, todos os povos sendo abençoados
por meio dele. É importante ressaltar que a promessa, na sua totalidade, foi feita pelo
Senhor a Abraão antes ainda de ter instituído com ele a aliança e de ele ter sido circunci-
dado. Abraão recebe o chamado quando ainda não havia feito o pacto (berit) com Deus,
mas por causa da fé no Deus que o chamou. Diante da promessa do Senhor, sua resposta
novamente é definida com uma única ação: “Abraão creu no Senhor, e lhe foi tido em
conta de justiça” (Gn 15,6).
Fonte: PERONDI, I. (2013, on-line)5.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Gênesis
Bruce K. Waltke
Editora: Cultura Cristã
Sinopse: Comentário histórico-gramatical ao livro de Gênesis, com ênfase em
questões teológicas e apologéticas.

A boa mentira
Ano: 2014
Sinopse: Um drama baseado em fatos verídicos sobre a vida de uma jovem
sobrevivente da Guerra Civil no Sudão, que muda juntamente com mais três
sobreviventes para uma cidade norte-americana, no qual desenvolve uma
improvável amizade com uma mulher americana.
105
REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Mímesis. Madrid: Baja Ebooks, s/d. (Original de 1942).


BERKHOF, Louis. Princípios de Interpretação Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã,
2000.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Trad.
João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1966.
BRUEGGEMANN, Walter. Genesis. Interpretation, a Bible commentary for teaching
and preaching. Atlanta: John Knox Press, 1982.
CAPUTO, John. The weakness of God: a theology of the event. Bloomington: India-
na University Press, 2006.
COATS, George W. Genesis with an introduction to narrative. Grand Rapids: Eerd-
mans, 1983.
COUTO, Mia. Poemas Escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
DERRIDA, Jacques. Esporas. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
FELDMEIER, Richard & SPIECKERMANN, Hermann. O Deus dos vivos: uma doutrina
bíblica de Deus. São Leopoldo: Sinodal & EST, 2015.
HABERMAS, Jürgen. Acções, actos de fala, interacções linguisticamente mediadas
e o mundo vivo. In: Racionalidade e Comunicação. Lisboa: Edições 70, 2002, p.
103-148.
MARION, Jean-Luc. God without being: Hors-texte. Chicago: University of Chicago
Press, 1991.
MESTERS, Carlos. Abraão e Sara. Petrópolis: Vozes, 1978.
MURAOKA, Tetsuo. Emphatic Words and Structures in Biblical Hebrew. Jerusa-
lem: Magnes Press & Leiden: Brill, 1985.
VIRKLER, Henry A. Hermenêutica. Princípios e processos de interpretação bíblica.
São Paulo: Vida, 1987.
VOGELS, Walter. Abraão e sua lenda. Gênesis 12,1-25,11. São Paulo: Loyola, 2000.
WALTKE, Bruce K. Genesis: a Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 2001.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. Manual de Metodologia. São Leo-
poldo: Sinodal & EST, 1998.
WESTERMANN, Claus. Genesis. New York: T & T Clark, 1987.
ZABATIERO, Júlio P. T. M. Uma História Cultural de Israel. São Paulo: Paulus, 2013.
REFERÊNCIAS

REFERÊNCIA ON-LINE

1
Em: <http://biblia.com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/>. Acesso em: 4 mai.
2017.
2
Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em: 4 mai. 2017.
Em: <http://divagacoesligeiras.blogs.sapo.pt/147412.html>. Acesso em: 4 mai. 2017.
3

4
Em: <https://www.letras.mus.br/vencedores-por-cristo/1192435/>. Acesso em: 4 mai.
2017.
Em: <www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/pistis?dd1=12332&dd99=view&dd98=pb>.
5

Acesso em: 4 mai. 2017.


107
GABARITO

1. D.

2. VERDADEIRO.

3. D.

4. E.

5. C.

6. Deve incluir, pelo menos, os seguintes elementos: Abrão não tinha terra própria,
trocava de lugar de moradia sempre que necessário, precisava confiar em Deus,
adorava a Deus em cada lugar que chegava.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

III
UNIDADE
ISAÍAS 1,21-26

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
111

INTRODUÇÃO

Olá! Estamos iniciando mais uma Unidade de nossa disciplina. Espero que o
percurso de estudo esteja claro para você até agora. Só para lembrar: estamos
interpretando textos do Antigo Testamento usando a metodologia sêmio-dis-
cursiva. Na Unidade I, apresentei informações sobre a época em que os livros
do Antigo Testamento foram escritos, a fim de situar você com mais facilidade
no contexto bíblico. A partir da Unidade II estaremos estudando a exegese de
diferentes perícopes.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nas Unidades II-V, eu apresentarei exemplos de como utilizar o método


sêmio-discursivo. Usarei para cada perícope o texto hebraico como base, mas
sempre farei a maior parte das citações usando a tradução, a fim de que você
possa acompanhar o conteúdo mesmo que não saiba hebraico. É importante,
porém, usar o idioma original do texto bíblico para que a nossa compreensão
seja mais rica e mais profunda.
Nessa Unidade III, o texto de estudo é Isaías 1:21-26. Com este texto temos
um dos dois exemplos de exegese de textos proféticos. A profecia bíblica é, pre-
dominantemente, exortação - não se trata de “predição” de eventos futuros,
mas de uma leitura crítica da realidade a partir da fé em Deus. O que os profe-
tas falam sobre o futuro sempre é condicionado à vontade de Deus ser aceita e
praticada, ou não, por Israel.
Nossa perícope é uma crítica da injustiça social praticada pelos governantes
de Judá, na cidade de Jerusalém. Isaías não se furtou de criticar as autoridades,
mesmo correndo o risco de ser preso ou executado. A coragem era uma das prin-
cipais virtudes dos profetas de Israel. Da mesma forma, precisamos de coragem
para viver a fé cristã em nossos tempos atuais.
Isaías é um dos livros mais queridos do Antigo Testamento. Espero que este
estudo anime e motive você a estudar este profeta com mais afinco e dedicação.

Introdução
112 UNIDADE III

FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO, TEXTO,


DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Como vimos na Unidade I desta disciplina, o contexto de um texto deve ser


reconstruído a partir do próprio texto, levando em conta os seguintes indícios
por ele fornecidos: gênero textual, relações interdiscursivas e o próprio conte-
údo do texto. Consequentemente, nessa altura da exegese (o início do trabalho),
podemos apenas oferecer hipóteses que deverão ser confirmadas ao longo do tra-
balho de interpretação. Do ponto de vista da realidade, podemos situar o texto no

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
âmbito do Modo de Produção Tributário (ou Palatino-Aldeão), em que a popu-
lação camponesa e os demais trabalhadores (rurais e urbanos) sustentava a corte
e o sistema religioso mediante o pagamento de tributos e corveia (trabalho gra-
tuito para o rei). Em tal Modo de Produção, comumente havia a exploração do
povo pelo monarca (e sistema religioso), que demandava maior volume de tri-
butos que as famílias poderiam pagar.
Podemos situar nosso texto em um período específico da história de Israel,
a partir do título do livro de Isaías: “Visão de Isaías, filho de Amós, que viu a res-
peito de Judá e de Jerusalém, durante os reinados de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias,
reis de Judá” (Is 1:1, tradução do autor). O que aprendemos dos livros dos Reis
e Crônicas é que estes reis governavam Judá durante o século VIII a.C., espe-
cialmente durante a chamada “crise assíria”. Os profetas foram um dos grupos
responsáveis pela crítica aos reis de Judá e Israel que não praticaram justiça, mas
governaram de acordo com os padrões do tributarismo e provocaram o sofri-
mento do povo judaíta e israelita. Tendo em vista esta possibilidade de construir
a hipótese a partir do próprio livro, somente farei as análises de gênero e de rela-
ções interdiscursivas ao longo da análise do Plano de Conteúdo (Fase Final), que
confirmarão ou não a hipótese aqui adotada. Um detalhe do texto, porém, merece
ser destacado aqui: ocupa o centro da estrutura da perícope a denúncia de que os
líderes de Jerusalém “não reconhecem o direito do órfão, e não levam em con-
sideração a causa das viúvas”, detalhe que nos ajuda a situar o texto na realidade
histórica da segunda metade do século VIII a.C. O aumento do número de viúvas
e órfãos ocorre com o advento dos conflitos militares com sírios e assírios, que se
dão a partir de 740 a.C., aproximadamente, e se estendem até cerca de 710 a.C.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


113

A seguir, ofereço uma descrição do movimento profético como forma de resis-


tência crítica à injustiça e à infidelidade à YHWH, pois esse é o contexto em que
devemos ler o texto de Isaías. (A descrição a seguir se baseia em ZABATIERO,
2013, p. 147ss.)
De acordo com a descrição padrão da profecia vétero-oriental e em Judá e
Israel, a atuação de profetas precede à existência da nação de Israel. Textos de
países e cidades-estado em Canaã, Mesopotâmia e Síria, antes das origens de
Israel, já falam acerca de profetas como profissionais religiosos distintos de outros
profissionais da religião. Nos textos referentes ao período das comunidades pro-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

to-israelitas, as menções a profetas indicam que não havia ainda especialização


profissional entre os vários tipos de agentes e mediadores religiosos. Somente
com o advento da monarquia a profissionalização e a consequente especializa-
ção proféticas acontecem em Israel – simultaneamente à profissionalização do
sacerdócio e à especialização de funções a serviço do rei e dos templos.
Durante a monarquia a resistência profética não chegou a ser um movimento
unificado e organizado a partir de um centro. Os profetas foram porta-vozes da
crítica teológica e social aos reis e líderes de Judá e Israel, representando a dor
das principais vítimas da injustiça: o campesinato israelita. Vejamos como o his-
toriador Rainer Kessler descreve a profecia pré-exílica:
“A crítica profética, que desde os dias de Amós nos meados do século VIII
jamais silenciou, mostra que o desenvolvimento social em Israel e Judá,
marcado por crises, não foi aceito sem resistências. Podemos supor que
aqueles que foram diretamente afetados pelo débito escorchante não se
submeteram voluntariamente ao seu destino, e esta suposição é fortalecida
pela crítica social profética que, repetidamente, denuncia os atos violentos
dos membros da classe alta. Todavia, não podemos perceber qualquer mo-
vimento organizado de resistência, não podemos dizer nada a respeito de
um movimento com alvos claramente definidos, e os profetas certamente
não podem ser vistos como líderes de tais movimentos, nem como repre-
sentantes de programas de revolução social.” (KESSLER, 2008, p. 114)

Contra a parte final da tese de Kessler, podemos afirmar que profetas como Isaías,
Miquéias, Jeremias e Sofonias, por exemplo, serviam, para parte da população,
como porta-vozes da crítica contra a condição de vida de suas épocas. Entretanto,
não ofereciam uma alternativa estrutural, apenas indicavam que suas “identida-
des” eram de “resistência” e não de “projeto”.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


114 UNIDADE III

Como, porém, resistir a uma ideologia tão poderosa como a da identidade


estatal monocêntrica sem uma base social concreta? (A identidade monocên-
trica é o nome que dou à teologia da corte de Davi e seus descendentes. Suas
marcas principais são: Deus escolheu Davi e seus filhos para reinar sobre Judá
e Israel; Deus escolheu Sião para local do Templo onde mora e apoia os reis
davididas com sua bênção; e os reis de Judá e Israel são representantes de Deus
e devem fazer justiça como YHWH sempre o fez). A teoria do “gênio” indivi-
dual não dá conta desse tipo de atividade. Se, em diversas ocasiões, a leitura
popular da Bíblia na América Latina exagerou em sua descrição do movimento

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
profético como um movimento revolucionário, os estudos realizados em nosso
continente oferecem indícios suficientes para interpretarmos a profecia crítica
como parte do movimento social da época. (Ver, entre outros, CROATTO,
2000; SCHWANTES & MESTERS 1990; SCHWANTES, 2002.)
Consequentemente, o quadro que descrevo a seguir pressupõe: (a) não há,
de fato, um movimento profético uniforme no período sob estudo; (b) a clas-
sificação dos “profetas” como intermediários, mediadores entre o divino e o
humano é a que melhor atende às necessidades de uma história cultural ou
social; (c) no final do VIII século a.C. já havia um suficiente grau de profis-
sionalização e especialização das funções de mediação religiosa geridas pela
corte e templos (sacerdotes e profetas que subordinavam outras categorias de
agentes religiosos).
Dito isso, podemos discernir os seguintes tipos de atuação profética em
Judá e Israel: (1) profetas extáticos, atuando individualmente ou em grupos, a
forma mais antiga e que continua ao longo de toda a história de Judá e Israel,
com variações conforme as circunstâncias socioculturais. Comumente viviam
na periferia social e eram denominados “videntes”, “adivinhos”, ou “homem de
Deus”. Podiam estar ligados a santuários locais, ou atuar de modo independente
dos santuários; (2) profetas da corte: atuavam a serviço do rei e sua função era
aconselhá-lo em suas atividades guerreiras e apoiar o processo de legitima-
ção da dinastia – sua função se extingue juntamente com o fim da monarquia;
(3) profetas do templo: atuavam a serviço do sacerdócio oficial ligado à corte,
cooperando com o trabalho educacional que os mesmos deveriam realizar na
formação e difusão da identidade estatal, cujas funções, possivelmente, deixam

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


115

de existir no período da dominação persa, sendo substituídos por escribas e


levitas; e (4) profetas críticos: que analisam criticamente a vida de Judá e Israel
sob a monarquia e realizam a crítica do poder político, da religião e da ativi-
dade socioeconômica.
Do ponto de vista do lugar social, esses vários tipos de profetas vêm de
diferentes lugares sociais: (1) margens da sociedade: especialmente profetas
de cunho extático e alguns profetas críticos; (2) vilas rurais: trabalhadores
sem-terra, ou pequenos proprietários que atuam como porta-vozes de campo-
neses empobrecidos na crítica à economia e/ou à corte; (3) santuários locais:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

atuam como porta-vozes do deus adorado no santuário, são “consultores” para


líderes locais/regionais, sacerdotes ou o povo em geral; (4) funcionalismo da
corte e templos estatais, possivelmente oriundos de famílias de agricultores
e de sacerdotes; podem ter sido treinados em escolas de profetas; e (5) cida-
des maiores, provavelmente originários de famílias importantes (econômica
ou religiosamente), seja atuando como críticos da sociedade e da monarquia,
seja como apoiadores da identidade monocêntrica estatal (em textos proféticos
canônicos são os chamados “falsos profetas” – terminologia que não podemos
adotar em perspectiva histórica, a não ser como descrição originária de um
grupo oponente).
Do ponto de vista da resistência à identidade estatal monocêntrica, o que
nos interessa aqui é a atuação dos profetas críticos. Os primeiros menciona-
dos na Escritura aparecem no reino de Israel – Elias e Eliseu do séc. IX a. C.
Os relatos sobre a atuação destes profetas, no livro de Reis, são literariamente
ricos e teologicamente impressionantes, com claras marcas de um trabalho
teológico e editorial intenso. Do ponto de vista de uma história cultural da
identidade, destaco três aspectos da atuação de Elias-Eliseu que servem como
uma espécie de padrão para a profecia crítica: (a) participam criticamente da
vida política (I Rs 21:17ss); (b) atacam a teologia oficial da corte, classificando-a
como idolatria (I Rs 18) e; (c) não aceitam a quebra do direito consuetudinário
“proto-israelita”, que era uma manifestação da identidade popular policêntrica
(I Rs 21). Ainda que tal descrição não seja factualmente acurada e exata, ela
revela a auto-imagem da profecia crítica desse período, composta das seguin-
tes características:

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


116 UNIDADE III

a. os profetas críticos são agentes políticos. O fato de que Elias participa


ativamente de um golpe de estado (I Rs 22) contra uma dinastia que
rompeu com as origens israelitas mostra o quanto a memória da identi-
dade popular policêntrica é importante para a profecia. Os profetas de
Judá, porém, não questionam a dinastia davídica enquanto tal, mas, sim,
a atuação individual de membros da dinastia. No discurso profético se
encontram os três momentos do tempo: o passado como padrão do agir
libertador de YHWH, o presente como tempo de afastamento desse padrão
e o futuro como retorno criativo ao padrão. I Reis 22:17-29 narra a atu-
ação de Elias, como uma espécie de modelo profético. Incidentalmente,
revela uma sociedade ainda bastante rural, pouco urbanizada. Como é

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
típico de sociedades tradicionais, os filhos pagam solidariamente pelos
erros dos pais (v. 29), visão que será questionada mais tarde, nos tempos
de Ezequiel (cap. 18) e Jeremias (cap. 31), em uma sociedade em franco
processo de urbanização e internacionalização.
b. os profetas críticos são representantes da resistência popular. O que mais
chama a atenção nesse breve relato é que não é a idolatria o motivo deter-
minante do juízo divino sobre Acabe, mas a tomada da terra e o assassinato
de Nabote. O relato desse crime (I Rs 21:1-16) é muito importante para
entendermos a resistência profético-popular contra a identidade esta-
tal monocêntrica. Em jogo está a justiça baseada no ato libertador de
YHWH. Na personagem Nabote está concentrada a resistência dos cam-
poneses israelitas contra a opressão monárquica. O termo herança (v. 4)
se refere, em Josué e outros livros, especialmente na tradição deutero-
nômica e deuteronomista, ao terreno que cada família deveria possuir
na terra prometida a fim de poder viver dignamente. A propriedade da
terra era a expressão concreta da libertação e da fidelidade divina. Era um
dom de YHWH, logo, não poderia ser transformada em mercadoria, não
poderia ser negociada, abandonada ou usada para enriquecimento. Na
ideologia canaanita, por outro lado, que serve de modelo para as monar-
quias judaica e israelita, o rei é proprietário de todas as terras na região
sob seu domínio. Assim, centralizam-se não só o poder e a identidade,
mas também as propriedades, de modo que a herança de YHWH deixa
de ser dom e se torna dotação real.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


117

c. os profetas críticos eram defensores da fidelidade libertadora de YHWH.


O terceiro tema fundamental da crítica profética de Elias é o da rejeição da
teologia oficial monárquica. A identidade estatal monocêntrica, embora
defenda a exclusividade de YHWH, constrói a imagem de YHWH à luz
da de Baal, de modo que YHWH se torna legitimador da monarquia e é
afastado da relação direta com as comunidades aldeãs. Ao demonstrar
a supremacia do poder de YHWH diante de um adormecido Baal (I Rs
18:20ss), o texto bíblico se posiciona a favor da identidade popular poli-
cêntrica. Dessa forma, podemos postular que a noção da exclusividade
de YHWH não é apenas a noção de uma elite dirigente, mas também a
de parcela significativa das comunidades aldeãs, conforme representa-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

das pela atuação profética.

Ainda no reino do norte, no séc. VIII a. C., a consolidação da identidade estatal


monocêntrica apenas aprofunda os problemas já criticados por Elias. Amós, que
atua por volta de 760 a. C., condena a injustiça social (resultado da cobrança de
tributos e da ausência de solidariedade, mediante a qual o excedente da produ-
ção ao invés de ser partilhado era acumulado – ver Amós 2:6-16; 4:1-5:17) e a
teologia oficial da corte israelita (os conceitos fundamentais são os da “eleição”
– Am 3:1-8; 9:7-10; e o do dia do Senhor – Am 5:18ss). O sacerdócio oficial e
o Templo do rei são veementemente condenados por Amós (7:10-17). Oséias,
que atua algumas décadas depois de Amós, condena principalmente a idolatria
e o desconhecimento de YHWH, causados por um sacerdócio infiel à memó-
ria das origens emancipatórias (caps. 1-5; 7-11) e pela própria monarquia (Os
13:8-11) que é a patrocinadora do abandono do projeto original de Israel. Nos
caps. 8 e 14 a esperança de um novo Israel é colocada na volta a YHWH – ou
seja, na volta à identidade popular policêntrica, quando YHWH reinava sobre
Israel. Em síntese, os profetas do Norte rejeitam a identidade estatal monocên-
trica e pregam a reinvenção da identidade popular policêntrica. Os capítulos 1-4
de Oséias destacam o papel crítico das mulheres na resistência contra a pregação
sacerdotal e a adoção de elementos canaanitas nas festas da colheita. Por meio
da imigração a Judá no período assírio, a força da mensagem profética crítica
encontra espaço no reino do sul.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


118 UNIDADE III

Com variações, esse padrão tríplice se repete na atuação dos profetas críticos
do reino de Judá. Se nos restringimos aos livros canônicos, os profetas que atuaram
no sul foram: (a) no séc. VIII a. C.: Miquéias e Isaías; (b) nos sécs. VII-VI: Sofonias,
Habacuque, Naum, Obadias, Jeremias e Ezequiel. Os focos principais da crítica des-
ses profetas eram: (1) a injustiça social resultante da tributação da corte (em espécie
e em trabalho), do custeio do sistema sacrificial, e da exploração de camponeses e
trabalhadores por famílias que enriqueceram mediante o latifúndio e a participação
no comércio e apoio à casa real (e.g. Mq 3:1-12; Is 1-5; Sf 1; 3:1-8); (2) o papel vicá-
rio do rei na teologia do davidismo, ao invés da afirmação de que o rei deveria ser

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
um justo seguidor de YHWH, e não seu representante, ao estilo cananeu (e.g. Is 6-9;
11; Mq 5:2-5; Jr 22:1-9); (3) o culto alienado da prática de justiça e a inviolabilidade
de Sião e do Templo (e.g. Is 1:10ss; Am 5; Mq 3:9-12; Jr 7; 26:1-8); (4) a pregação dos
“falsos profetas”, que defendiam a teologia oficial da corte e dos templos estatais (e.g.
Mq 2:5-11; Jr caps. 23 e 28); (5) a política de alianças com povos estrangeiros, pois tais
alianças colocavam em risco a exclusividade de adoração a YHWH (e.g. Is 30-31); e
(6) embora não pregassem o fim da monarquia per se, sentenciavam o fim do domí-
nio de membros da dinastia sob uma potência estrangeira e sua eventual restauração.
Essa descrição sintética não pode ser entendida, porém, como a defesa de uma
teologia uniforme, presente na pregação de cada um dos profetas críticos. Destaco
esses elementos especialmente para classificar a pregação profética crítica como dis-
curso de resistência à identidade estatal monocêntrica – especialmente em relação aos
temas discursivos adotados e ressignificados do ideário cananeu e do mesopotâmico
(que, juntamente com as demais formas de resistência, formam o campo discursivo
do período). Enquanto formação discursiva, a profecia crítica adota uma estratégia
ambivalente em sua proposta identitária, posto que, embora critique a identidade
estatal, não propõe a terminação da monarquia e do sacerdócio como instituições
válidas na articulação social do povo. Tal estratégia pode ser entendida na medida
em que é simultaneamente uma resposta ao imperialismo mesopotâmico. A presença
imperialista é explicada como juízo de YHWH e não como superioridade militar-
-religiosa dos assírios ou babilônicos. A infidelidade à YHWH, principalmente da
parte do rei, corte, sacerdócio e apoiadores da dinastia, trouxe a desgraça a Israel e
Judá, mas não o seu fim puro e simples, posto que se o fizesse, colocaria o próprio
YHWH sob o domínio dos deuses mesopotâmicos.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


119

DELIMITAÇÃO

Isaías 1:10 Ouvi a palavra do SENHOR, vós, príncipes de Sodoma; prestai


ouvidos à lei do nosso Deus, vós, povo de Gomorra. 11 De que me serve a
mim a multidão de vossos sacrifícios? -- diz o SENHOR. Estou farto dos ho-
locaustos de carneiros e da gordura de animais cevados e não me agrado do
sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes. 12 Quando vindes para
comparecer perante mim, quem vos requereu o só pisardes os meus átrios?
13
Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação,
e também as Festas da Lua Nova, os sábados, e a convocação das congre-
gações; não posso suportar iniquidade associada ao ajuntamento solene. 14
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

As vossas Festas da Lua Nova e as vossas solenidades, a minha alma as


aborrece; já me são pesadas; estou cansado de as sofrer. 15 Pelo que, quando
estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vos-
sas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. 16
Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus
olhos; cessai de fazer o mal. 17 Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, re-
preendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.
18
Vinde, pois, e arrazoemos, diz o SENHOR; ainda que os vossos pecados
sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que
sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã. 19 Se quiserdes
e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra. 20 Mas, se recusardes e fordes
rebeldes, sereis devorados à espada; porque a boca do SENHOR o disse.
21
Como se fez prostituta a cidade fiel! Ela, que estava cheia de justiça! Nela,
habitava a retidão, mas, agora, homicidas. 22 A tua prata se tornou em es-
córias, o teu licor se misturou com água. 23 Os teus príncipes são rebeldes
e companheiros de ladrões; cada um deles ama o suborno e corre atrás de
recompensas. Não defendem o direito do órfão, e não chega perante eles a
causa das viúvas. 24 Portanto, diz o Senhor, o SENHOR dos Exércitos, o
Poderoso de Israel: Ah! Tomarei satisfações aos meus adversários e vingar-
-me-ei dos meus inimigos. 25 Voltarei contra ti a minha mão, purificar-te-ei
como com potassa das tuas escórias e tirarei de ti todo metal impuro. 26
Restituir-te-ei os teus juízes, como eram antigamente, os teus conselheiros,
como no princípio; depois, te chamarão cidade de justiça, cidade fiel.
27
Sião será redimida pelo direito, e os que se arrependem, pela justiça. 28
Mas os transgressores e os pecadores serão juntamente destruídos; e os que
deixarem o SENHOR perecerão. 29 Porque vos envergonhareis dos carvalhos
que cobiçastes e sereis confundidos por causa dos jardins que escolhestes.
30
Porque sereis como o carvalho, cujas folhas murcham, e como a floresta
que não tem água. 31 O forte se tornará em estopa, e a sua obra, em faísca;
ambos arderão juntamente, e não haverá quem os apague. (ALMEIDA,
[2017], on-line)1.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


120 UNIDADE III

As razões para delimitar nossa perícope são: em relação ao texto anterior: mudan-
ças de personagens, vocabulário e temática (Sodoma e Gomorra – símbolos para
Jerusalém – vocabulário litúrgico e temática da denúncia contra o culto e o sacer-
dócio); em relação ao texto posterior, especialmente mudança de personagens
e vocabulário (inclusive temática), embora o foco ainda recaia sobre Jerusalém.
Nos v. 27ss. o profeta fala em Sião, destacando, como nos vv.10-20 a dimensão
cúltica da cidade, enquanto os vv. 21-26 destacam a dimensão política.
Vejamos a delimitação da perícope sob outro ponto de vista, citando um
especialista em Análise de Formas Literárias:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“A segunda subunidade estrutural maior em 1:2-31 é composta pelos
versos 21-31. Como no caso dos v. 2-20, esta seção contém entidades
genéricas distintas (vv. 21-26; 27-28; 29-31), mas aqui também elas es-
tão vinculadas, por diversos fatores, como uma subunidade textual co-
erente. Aqui também o primeiro é a conexão por palavras-chave. Os vv.
21-26 e 27-28 são conectados pelo uso de mispat ‘direito’ e sedeq ‘jus-
tiça’ nos versos 21 e 27 (cf. v. 26). Semelhantemente, o uso de yahdaw
‘juntos’ nos versos 28 e 31 oferecem um link entre os vv. 27-28 e 29-31.
[...] O terceiro fator unificador dos v. 21-31 tem a ver com o simbolis-
mo e temática. Os v. 21-26 enfatizam uma purificação de Jerusalém na
qual os elementos corruptos da liderança da cidade serão removidos
por YHWH da mesma forma como se remove as impurezas do metal
derretido. O resultado, é claro, será uma cidade purificada, restaurada
à sua justiça primitiva. Os v. 27-28 edificam sobre o tema ao enfatizar
a distinção de caráter e destino entre os que se arrependem ou retor-
nam a YHWH e os que continuam em seu caminho de rebeldia. Ao
descrever a redenção de Sião, o v. 27 enfatiza a ‘justiça’ e o ‘direito’ que
caracterizou a cidade no passado, de acordo com o v. 21. Os pecadores
perecerão, conforme o verso 28, assim como as impurezas são removi-
das do metal” (SWEENEY, 1996, p. 64-65).

Para Sweeney, embora os vv. 29-31 sejam uma unidade autônoma, esses versos
pertencem ao conjunto de 1:21ss. Entretanto, ele mostra que há mais vínculos
entre os vv. 27-28 e 29-31 do que entre os versos 29-31 e 21-26, de modo que ele
vê duas perícopes na subunidade: 21-26 e 27-31. Outros autores também fazem
a mesma delimitação (e.g. WILLIAMSON, 2006, p. 120ss.).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


121

SEGMENTAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO

Do ponto de vista do gênero textual, a perícope mostra dois segmentos: 21-23


com a denúncia dos crimes e 24-26 com a sentença contra os crimes, introduzida
pela expressão Oráculo de YHWH (note que, diferentemente da maioria dos orá-
culos de juízo, aqui temos também o anúncio da restauração de Jerusalém após o
juízo). O gênero textual é típico da profecia pré-exílica e comumente é nomeado
como “oráculo de juízo”, composto de duas partes: denúncia e sentença. Como
já vimos, aqui a forma não é seguida estritamente, pois há o acréscimo da res-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tauração de Jerusalém (v. 26). Temos, assim, um “oráculo de juízo com anúncio
de restauração”. Em relação ao contexto da perícope, o uso do ‘oráculo de juízo’
reforça a hipótese adotada, de um texto do VIII século a.C., conforme indicado
no título do livro de Isaías.
Do ponto de vista do conteúdo, vemos uma estruturação quiástica, que coloca
no centro a denúncia e o oráculo divino:
A Ah! Como se tornou prostituta a cidade fiel!
B Ela, que estava cheia do direito! Nela, habitava a justiça, agora, porém,
homicidas. 22 A tua prata se transformou em escórias, o teu licor fino
está misturado com água.
C 23
Os teus líderes são rebeldes e parceiros de ladrões; cada um deles
adora um suborno e vive em busca de recompensas.
D Não reconhecem o direito do órfão, e não levam em considera-
ção a causa das viúvas.
D’ 24
Portanto, oráculo do Senhor, YHWH dos Exércitos, Poderoso
de Israel:
C’ Ai de vós! Livrar-me-ei de meus adversários e vingar-me-ei dos
meus inimigos.
B’ 25
Voltarei contra ti a minha mão, purificar-te-ei das tuas escórias no
fogo com potassa e eliminarei todo metal impuro.
A’ 26
Restituir-te-ei os teus juízes, como nos tempos antigos, os teus con-
selheiros, como no princípio; então voltarás a ser chamada de cidade
de justiça, de cidade fiel.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


122 UNIDADE III

Texto Hebraico e Tradução


22
‫אֵ יכָה֙ הָ י ָ ְ֣תה לְזֹו ָ֔נה קִ ְר ָ֖יה נֶאֱ מָ ָנ֑ה מְ לֵאֲ ִ ֣תי מִ ׁשְ ּפָ֗ ט ֶ ֛צדֶ ק י ִ ָ֥לין ָ ּ֖בּה ו ְעַ ָ ּ֥תה מְ ַרּצ ְִחֽים׃‬
‫סֹור ִ֗רים ו ְחַ ב ְֵר ֙י ַּגּנָ ִ֔בים ּכֻּל ֹ֙ו א ֵ ֹ֣הב‬ ְ ‫ ׂשָ ַ ֣רי ְִך‬23 ‫ַּמי ִם׃‬ֽ ָ ‫יגים סָ ב ֵ ְ֖אְך מָ ֥הּול ּב‬ ֑ ִ ִ‫ּכַסְ ֵ ּ֖פְך הָ ָי֣ה לְס‬
‫ ָל ֵ֗כן נ ֻ ְ֤אם‬24 ‫ֵיהֽם׃ פ‬ ֶ ‫ׁ֔ש ֹחַ ד ו ְר ֵ ֹ֖דף ׁשַ לְמ ֹנִ ֑ים י ָתֹום֙ ֹ֣לא י ִׁשְ ּ֔פ ֹטּו ו ִ ְ֥ריב ַאלְמָ ָנ֖ה ֹלֽא־י ָ֥בֹוא אֲ ל‬
‫ ו ְאָ ִ ׁ֤שיבָה י ָדִ ֙י‬25 ‫ָהָֽאדֹו ֙ן י ְה ָו֣ה ְצב ָ֔אֹות אֲ ִ ֖ביר י ִׂשְ ָר ֵ ֑אל ֚הֹוי אֶ ּנ ֵ ָ֣חם מִ ּצ ַ ָ֔רי ו ְאִ ּנָקְ ָ ֖מה מֵ אֹוי ְָבֽי׃‬
‫טי ְִך֙ ְּכב ִ ָ֣ראׁש ֹ ָ֔נה ו ְי ֹעֲ ַ ֖צי ְִך‬
֙ ַ ְ‫ ו ְאָ ִ ׁ֤שיבָה ׁש ֹפ‬26 ‫ילי ְִך׃‬ ֽ ָ ִ‫ירה ּכָל־ּבְד‬ ֑ ָ ִ‫עָ ֔ ַלי ְִך ו ְאֶ צ ְ֥ר ֹף ּכ ַּ֖ב ֹר ס‬
֖ ִ ‫יגי ְִך ו‬
ָ ‫ְָאס‬
‫ְּכבַּתְ חִ ָ ּ֑לה ַאחֲ ֵרי־ ֵ֗כן י ָ ִּ֤ק ֵרא ָל ְ֙ך ִ ֣עיר הַ ֶּ֔צדֶ ק קִ ְר ָ֖יה נֶאֱ מָ נָ ֽה ׃‬
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, on-line)2.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Tradução:
Ah![i] Como se tornou prostituta a cidade fiel! Ela, que estava cheia do direito!
Nela, habitava a justiça[ii], agora, porém, homicidas. 22 A tua prata se transfor-
mou em escórias, o teu licor fino está misturado com água. 23 Os teus líderes[iii]
são rebeldes e parceiros de ladrões; cada um deles adora[iv] um suborno e vive
em busca de recompensas. Não reconhecem o direito do órfão, e não levam em
consideração a causa das viúvas[v]. 24 Portanto, oráculo[vi] do Senhor, YHWH
dos Exércitos, Poderoso de Israel: Ai de ti[vii]! Ficarei aliviado[viii] de meus
adversários e vingar-me-ei dos meus inimigos. 25 Voltarei contra ti a minha mão,
purificar-te-ei das tuas escórias no fogo com potassa e eliminarei todo metal
impuro. 26 Restituir-te-ei os teus juízes, como nos tempos antigos, os teus conse-
lheiros, como no princípio[ix]; então voltarás a ser chamada de cidade de justiça,
de cidade fiel. (Traduzido pelo Autor)
[i] A palavra hebraica que inicia a perícope é a interjeição usada no lamento
fúnebre, ou seja, a denúncia de Isaías é estilizada como o lamento pela
perda de um ente querido.
[ii] As palavras hebraicas são ‫ מִ ׁשְ ּפָ֗ ט‬e ‫צדֶ ק‬.
֛ ֶ Elas formam um par comum
no Antigo Testamento. A primeira se refere ao direito exercido nos tri-
bunais e a segunda se refere à justiça como ato de YHWH e como justiça
social em resposta à libertação divina.
[iii] A palavra hebraica sar indica lideranças formais, mas não sabemos
exatamente a que cargos se refere.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


123

[iv] O verbo hebraico também pode ser traduzido por ‘amar’, mas optei
pelo uso do termo ‘adorar’, mais coloquial em língua portuguesa.
[v] O verso se refere à atuação nos tribunais. Na época de Isaías os tribu-
nais comumente eram espaços para mediação ou arbitragem e se reuniam
conforme houvesse necessidade. Eles eram dirigidos por líderes das cida-
des e vilas que atuavam como ‘juízes’ ad hoc. Conforme veremos ao longo
da análise do texto, órfãos e viúvas representavam um problema social
sério no século VIII a.C. em função dos conflitos com sírios e assírios.
[vi] Oráculo traduz um termo técnico dos livros proféticos do Antigo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Testamento. Evitei o uso do verbo ‘dizer’, comum nas traduções, por que
ele não reflete o caráter técnico da palavra hebraica. ‘Oráculo de YHWH’
é uma espécie de título para a fala profética originada na vocação divina.
[vii] Também termo técnico do lamento fúnebre, como no verso inicial
da perícope, mas uma palavra hebraica diferente da primeira da perícope.
[viii] O verbo hebraico tem sido predominantemente traduzido como ‘ira’,
mas o seu uso mais frequente é ‘conforto’ e ‘alívio’, por isso a minha opção
aqui, seguindo mais fielmente os léxicos do hebraico bíblico.
[ix] As referências temporais sugerem o período anterior à monarquia,
ou seja, ao período das tribos israelitas (ou, proto-israelitas, termo téc-
nico que adoto em meus escritos de História de Israel).

Por mispat (direito) devem ser entendidas primariamente a legislação e a


jurisprudência concretas, por sedeq e sedaqa (justiça) primariamente a con-
cepção abrangente com função de fundamentação, reivindicação normati-
va e força expressiva para o presente e o futuro. [...] O caráter abrangente da
justiça que ordena e preserva o mundo é de origem divina. Direito e justiça
dão sustentação ao trono de Deus (Sl 89:15; 97:2). Deus confia ao rei a tarefa
de fazer valer direito e justiça por meio de sua soberania.
Fonte: Feldmeier e Spieckermann (2015, p. 302s).

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


124 UNIDADE III

A PERÍCOPE NO LIVRO DE ISAÍAS

O processo de redação e editoração do livro de Isaías deve ter sido relativa-


mente complexo e de longa duração. As hipóteses histórico-críticas mais fortes
no ambiente acadêmico apontam para um período de cerca de 200 anos, entre
a época do profeta Isaías propriamente dito (a partir de 740 a.C. aproximada-
mente) até o período inicial da restauração de Jerusalém após o edito de Ciro (c.
539 a.C. até 500 a.C. aproximadamente). Conforme a tradição acadêmica sugere,
temos três grandes coleções de oráculos proféticos: capítulos 1-39 (com acrésci-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mos posteriores, e.g. caps. 24-27) da época de Isaías (VIII século a.C.), capítulos
40-55 do período exílico (ente 587 a.C. e 539 a.C.) e capítulos 56-66 do início do
pós-exílico (539-500 a.C.). Nas duas últimas décadas, a pesquisa tem destacado,
além da história redacional do livro, a unidade da composição – ou seja, não se
trata de mero ajuntamento de três coleções ‘autônomas’ de oráculos proféticos,
mas da efetiva ‘edição’ de um livro bem estruturado e arranjado.
Começando com Isaías e sendo moldado progressivamente pelos discí-
pulos do profeta ao longo do período apontado, o livro de Isaías ganhou sua
forma atual. O principal eixo organizador do livro é a relação de YHWH com
Jerusalém: na primeira parte do livro, predominam as acusações e a proclama-
ção de juízo contra Jerusalém por ser infiel à aliança com YHWH; na segunda
parte (40-55), predominam oráculos que anunciam a restauração de Jerusalém
que inclui o retorno dos exilados para a Babilônia; enquanto na terceira parte
temos a mescla de oráculos de esperança e oráculos de juízo contra os habitantes
de Jerusalém. Paralelo a esse eixo ‘geopolítico’ temos o eixo teológico que tema-
tiza a aliança entre YHWH e seu povo, aliança que demanda a exclusividade
da adoração a YHWH e a fidelidade ao seu caráter libertador e justo. Podemos
perceber uma similaridade estrutural com o livro do Êxodo: os caps. 1-39 de
Isaías correspondem aos primeiros capítulos do Êxodo, que retratam a opres-
são dos hebreus; os caps. 40-55 correspondem aos capítulos do êxodo em que se
dá a saída dos hebreus do Egito; e os caps. 56-66 correspondem à seção final do
Êxodo com suas determinações sobre a relação de Israel com YHWH, especial-
mente do ponto de vista cúltico (tabernáculo). Não é à toa que vários estudiosos
falam de Is 40-55 como o livro do novo êxodo.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


125

Nossa perícope, consequentemente, ocupa um lugar especial na primeira


parte do livro pois, na medida em que encontramos um anúncio de restauração
no verso 26, temos uma antecipação proléptica de Is 40-66. Ou seja, nossa perí-
cope ajuda a situar os caps. 1-39 como oráculos de juízo, mas já antecipa o laço
com os caps. 40-66 mediante sua esperança de uma restauração de Jerusalém aos
seus tempos de fidelidade à YHWH. O capítulo 1 funciona como uma introdução
geral ao livro, o que é ressaltado pela existência de uma nova ‘introdução’ em 2:1
“Palavra que Isaías, filho de Amós viu a respeito de Judá e de Jerusalém”. Estas
considerações nos mostram que é possível ler livros como o de Isaías em três
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

distintos contextos: o das perícopes ‘isoladas’ – nesse caso, no século VIII a.C.;
o de cada seção do livro (sécs. VIII; VI e V a.C., respectivamente), e o do livro
como um todo, por volta da época de Esdras e Neemias, quando da redação final
do livro. Esse é um fenômeno semelhante ao ocorrido com os Evangelhos, que
podem ser lidos a partir de três contextos: o da pregação de Jesus propriamente
dita; o da tradição oral e escritas preliminares, e o da redação dos Evangelhos
(após o ano 70 d.C.).
Nessa disciplina, optei pela leitura a par-
tir do contexto da perícope tomada em si
mesma, o que não nos impede, porém,
de ver seu lugar no conjunto do
livro. Um detalhe chama a atenção:
o final do verso 23 é uma inversão
do final do verso 17 – nesse temos
uma exortação à prática da fideli-
dade à YHWH, que inclui julgar
corretamente a causa de órfãos e
viúvas; no v. 23 temos a denúncia de
que os líderes de Jerusalém não julgam
corretamente a causa de órfãos e viúvas.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


126 UNIDADE III

A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

Passo à prática deste novo ciclo da exegese em sua fase final.

ALISTANDO AS PESSOAS, TEMPOS E ESPAÇOS

Pessoas (e suas ações):

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Cidade (21) caracterizada como: ‘prostituta’, cidade fiel, ‘ela, que estava cheia
do direito’, ‘nela habitava a justiça, agora, porém, homicidas’ (21), ‘tua prata
... teu licor (22) teus líderes ... (23); ‘ai de ti’ (24) ‘contra ti’, tuas escórias,
metal impuro (25), ‘teus juízes como nos tempos antigos ...’ (26), voltarás a
ser chamada de ‘cidade da justiça’, ‘cidade fiel’ (26)
Teus líderes (23), caracterizados por suas ações denunciadas por Isaías, e
apresentados antecipadamente como ‘homicidas’ v. 22
Órfãos e viúvas (como recipientes da ação dos ‘teus líderes’) v. 24
Senhor, YHWH (24) caracterizado como ‘Poderoso de Israel’, suas ações são
descritas: ficarei ... vingar-me-ei ... (24) voltarei ... purificar-te-ei ... elimina-
rei ... (25) restituir-te-ei ... (26)
Juízes e conselheiros (26) como recipientes da ação de YHWH em prol da
cidade [pelo co-texto do capítulo 1 sabemos que a cidade é Jerusalém]

Espaço:
Cidade, que é tanto ‘pessoa’ (personagem) como ‘espaço’ (“nela” v. 21)

Tempo:
Começo com os termos não-verbais –
Agora (21)
Tempos antigos, no princípio (26)

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


127

Passo para os verbos –


Tornou (pret. perfeito) 21 [ação vista como completa]
Estava ... habitava (pret. Imperfeito) 21 [ação vista como incompleta, indi-
cando um hábito]
[implícito: ‘habitam’ (presente) v. 21] (conforme o pretérito imperfeito)

Transformou (pret. perfeito); está misturado (tempo composto participal


apontando ação completa) Os dois verbos indicam o aspecto completo da
ação, o primeiro com destaque para o elemento ‘processual’ e o segundo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

para o elemento ‘terminativo’


São (presente); adora (presente) vive (presente) não reconhecem; não levam
em consideração (presente) 23 Todos os verbos mostram o aspecto incom-
pleto das ações – vistas com em processo
Ficarei aliviado; vingar-me-ei (futuro) 24 Voltarei; purificar-te-ei; elimina-
rei (futuro) 25
Restituir-te-ei; voltarás (futuro) 26 ‘a ser chamada’ (locução participal com
infinitivo) 26 Os futuros nos vv. 25-26 indicam aspecto incompleto da ação,
possivelmente também destacando o elemento processual da ação; com a
locução infinitivo-participal apontando para o elemento ‘terminativo’ ou
seja, destacando o resultado das ações de YHWH.

Como o texto organiza essas ações e relações no tempo e no espaço?


Na caracterização da cidade temos um movimento temporal do passado
(implícito) para o presente da pregação do profeta, em que a cidade se tornou
infiel à YHWH por causa da infidelidade de seus líderes, infidelidade que é des-
crita como um hábito da liderança, não apenas como ações isoladas. Como
consequência desse movimento, um novo mover temporal ocorre: YHWH
anuncia no presente o que fará no futuro (próximo?), com a punição dos líderes
de Jerusalém. A infidelidade dos líderes não só afeta a cidade, afeta também a
YHWH que já não pode mais considerar Jerusalém como sua cidade (e a carac-
teriza como local de homicidas, de inimigos de YHWH).

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


128 UNIDADE III

Um futuro posterior ao futuro do juízo também é apresentado, tempo em


que YHWH restaurará Jerusalém ao estado inicial – do passado implícito no
v.21 – no verso 26. A cidade é identificada com sua liderança e sofrerá com ela o
juízo divino, mas a restauração de YHWH proverá nova liderança para a cidade,
que voltará a ser vista como cidade fiel e justa. Chama a atenção o fato de que
a descrição utópica da cidade (o futuro posterior ao futuro do juízo) remete ao
passado distante da cidade, ao tempo tribal (quando, de fato, Jerusalém nem
era uma cidade israelita, mas jebusita) – ou seja, um passado idealizado (não se
trata, então, de voltar a ser o que Israel havia sido, mas de construir um futuro

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
baseado nos valores desse passado ‘ideal’).
“O verso 21 dirige seu olhar ao passado, a uma ‘cidade fiel’ em que
habitava a retidão, que fora ‘cheia de justiça’. Essas reminiscências são
apenas nostálgicas, remontando a um passado ideal, ou podem se re-
ferências à retidão, justiça e fé com uma intenção mais específica, a
saber, relembrar o comportamento correto do rei Ezequias? A retidão
então habitou em Jerusalém, na pessoa do rei Ezequias, cuja oração
salvou a cidade do desastre (37:21). Na passagem altamente parabóli-
ca que segue o relato da libertação de Jerusalém, realizada ‘pela honra
do meu nome e por amor a meu servo Davi’ (37:35), Ezequias adoece
terminalmente (38:1). Mesmo assim ele ora novamente por libertação,
pedindo a Deus para se lembrar ‘como caminhei diante do Senhor em
fidelidade’ (38:3). Deus ouve a oração de Ezequias e reverte a sentença
de morte, para ele e para a cidade (38:6)”. (SEITZ, 1993, p. 33-34)

A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

Na descrição do método sêmio-discursivo, o segundo ciclo da fase final da interpre-


tação é estruturado ao redor de uma pergunta tríplice: quais são as possibilidades de
sentido teológico da ação e como elas estão organizadas: (1) intertextual e interdis-
cursivamente; (2) estilística e argumentativamente; e (3) sintática e tematicamente?
A análise da dimensão teológica da ação é a parte da metodologia discursiva que
corresponde, nas metodologias históricas e contextuais, à busca do sentido do texto.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


129

Essa dimensão da análise é a que, do ponto de vista teórico-metodológico, é mais


afetada (positivamente falando) pelo desenvolvimento da Linguística e das diversas
disciplinas que, a partir da Linguística, se dedicam a explicar os processos de sig-
nificação e interpretação (Semióticas, Análises do Discurso, Semiologia, Filosofia
da Linguagem, Hermenêutica Filosófica).
A estruturação dos procedimentos analíticos que proponho é baseada nos
resultados e questionamentos mais significativos dessas diversas disciplinas
científicas. Em parte, está presente a correção de alguns dos problemas teóricos
e analíticos dos métodos que não se apropriaram dessas ciências; mais impor-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tante, porém, é a estruturação dos procedimentos de um modo que, embora


mais complexo, é mais eficaz na compreensão do texto na medida em que se
baseia em uma teoria mais adequada do sentido e dos processos de textualiza-
ção e comunicação do sentido.
A estrutura triádica dos procedimentos nesse Ciclo procura dar conta da
complexidade dos processos de produção, difusão e recepção do sentido. Em
primeiro lugar, por partir da totalidade para as partes – tanto do ponto de vista
da produção do sentido (por isso a interdiscursividade vem em primeiro lugar,
para situar o texto em seu contexto), quanto do ponto de vista do sentido no texto
propriamente dito (o sentido das palavras e das orações depende do sentido do
texto todo). Depois, por levar em conta como integrante da produção do sentido
os elementos de estilo e argumentação, que ou não eram considerados nos méto-
dos anteriores, ou eram alocados a diferentes momentos da análise, bem como
por trazer, para dentro do texto (por assim dizer) as perguntas da Pragmática da
comunicação; por fim, ao tratar da dimensão ‘temática’ (ou semântica) do texto
juntamente com sua estruturação sintática discursiva, momento em que se reto-
mam os aspectos relevantes da análise do plano de expressão.
Exatamente por conta dessa complexidade, o II Ciclo da exegese sêmio-
-discursiva oferece desafios importantes para a sua prática. Esses desafios têm
sua origem no fato de que os textos bíblicos foram escritos em outras línguas,
outras épocas e em outras culturas, das quais o nosso conhecimento só se torna
significativo após estudo disciplinado e amplo, que toma vários anos (além da
própria duração do curso de bacharelado). Do ponto de vista do procedimento,
porém, os passos são claros e podem ser seguidos mesmo por iniciantes no estudo

A Dimensão Teológica da Ação


130 UNIDADE III

teológico ou por pessoas sem instrução teológica formal (acadêmica). Levando


em conta o aspecto didático, vou começar com a forma mais simples de análise
e que depende de menos conhecimentos sobre o contexto de Isaías.

ANÁLISE DA ORGANIZAÇÃO SINTÁTICA E TEMÁTICA DE ISAIAS


1,21-26

Na perspectiva semiótica, o sentido de um texto é percebido como o conjunto

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de um ou mais percursos temáticos que podem seguir a estrutura do plano de
expressão, mas, normalmente, possuem um arranjo próprio. Dois procedimentos
podem ser seguidos aqui: o mais técnico que é o procedimento de reconstrução
dos percursos temáticos do texto por meio da abstração, e o menos técnico que
é o procedimento de reconstruir os percursos temáticos a partir dos percursos
de pessoa, tempo e espaço. Na Unidade anterior usei o segundo procedimento
por razões didáticas, agora seguirei o primeiro.
Os percursos temáticos são reconstruídos mediante um raciocínio de abs-
tração dos termos presentes na superfície discursiva. O processo de abstração é
relativamente simples quando você fica acostumado com ele. Primeiro, devemos
notar as palavras (figuras e/ou temas presentes no texto), em seguida, devemos
verificar que noção mais abstrata dá unidade a essas palavras e, terceiro, nomear
o percurso temático a partir dessa noção mais abstrata. Enfim, devemos procurar
a noção abstrata que dá unidade a toda a perícope e apresentá-la – preferencial-
mente – na forma do quadrado semiótico.
Em nossa perícope, a estrutura do texto nos ajuda, na medida em que os
percursos temáticos seguem a própria ordem dos versos: (1) a infidelidade da
cidade e seus líderes v. 21-23; (2) a fidelidade justa de YHWH v. 24-25; e (3) a
fidelidade da cidade restaurada v. 26. Ao nomear os percursos, já conseguimos
notar o fator temático unificador de toda a perícope: a fidelidade. Na forma do
quadrado semiótico temos, então:
INFIDELIDADE FIDELIDADE
ENGAJAMENTO REBELDIA

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


131

Temos como polo eufórico a fidelidade (logo, o disfórico é o da infidelidade), e o


movimento temático do texto vai da infidelidade (descrita como a mudança do
passado implícito) passando pela rebeldia (o hábito dos líderes) e culminando
na fidelidade restaurada por YHWH.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A semântica do Nível Fundamental, o mais abstrato do percurso gerativo


do sentido, tem a ver com as “categorias semânticas” que formam a base
do percurso gerativo do sentido. “Uma categoria semântica fundamenta-se
numa diferença, numa oposição. No entanto, para que dois termos possam
ser apreendidos conjuntamente é preciso que tenham algo em comum, e
é sobre esse traço comum que se estabelece uma diferenciação” (FIORIN,
1989, p. 18s). A notação do nível discursivo é o chamado “quadrado semió-
tico”. Esses termos em oposição são semanticamente qualificados, ou seja,
recebem - no texto - um valor, positivo ou negativo. Se o valor é positivo, o
termo é chamado de eufórico, se negativo, de disfórico. “Euforia e disforia
não são valores determinados pelo sistema axiológico do leitor, mas estão
inscritos no texto”.
Fonte: Fiorin (1989, p. 20).

Nesse ponto, encontra-se o elo mais evidente entre a abordagem semiótica e a


sociocrítica: a concepção conflitiva do sentido e da sociedade. E é aqui que se
pode, também, perceber o valor e alguns dos limites da semiótica. O valor é
percebido a partir do seguinte critério: “a exigência metodológica de articular a
contradição fundamental de um texto pode, então, ser vista como um teste de
abrangência da análise” (JAMESON, 1992, p. 73). O limite, por sua vez, está em
que o quadrado semiótico pode ser interpretado a-historicamente, como antino-
mia linguística e não como expressão de uma contradição concreta. No diálogo
com a leitura sociocrítica, a semiótica pode se precaver contra essa redução do
conceito de conflito.

A Dimensão Teológica da Ação


132 UNIDADE III

Podemos, agora, detalhar os sentidos dos percursos temáticos da perícope.

1. A infidelidade da cidade e seus líderes


21
Ah! Como se tornou prostituta a cidade fiel! Ela, que estava cheia do
direito! Nela, habitava a justiça, agora, porém, homicidas. 22 A tua prata
se transformou em escórias, o teu licor fino está misturado com água. 23
Os teus líderes são rebeldes e parceiros de ladrões; cada um deles adora
um suborno e vive em busca de recompensas.

O texto nos apresenta um movimento temporal da ‘cidade fiel’ – outrora fiel,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
na qual o direito e a justiça estavam presentes – agora, porém, é habitada por
homicidas e seu caráter é apresentado, metaforicamente no verso 22, como adul-
terado, inferior ao padrão desejado. Não sabemos a respeito de que época da
vida da cidade Isaías está falando. Pode ser uma referência ao início do reinado
de Ezequias, com sua reforma religiosa, ou ao reinado de Jeosafá (que, segundo
Crônicas, também efetuou uma reforma jurídica e religiosa em Jerusalém), ou
pode ser apenas uma forma de argumentação – a apresentação de um passado ideal
nos tempos do rei Davi ou de Salomão. Para entender o texto, não é necessário
chegar a uma definição a esse respeito, o sentido é claro: a cidade de Jerusalém,
capital do reinado, deveria ser uma cidade fiel e, de acordo com nosso texto, uma
cidade fiel é uma cidade em que o direito e a justiça imperam. Como já vimos, o
par ‘direito e justiça’ é bastante comum no Antigo Testamento (de fato, em todo
o antigo Oriente) e se refere primariamente, nos textos pré-exílicos, ao cumpri-
mento da aliança entre YHWH e seu povo, mediante a justiça social (tsedaqah) e
a ‘justiça’ jurídica (mishpat), mediante a qual os conflitos entre famílias são arbi-
trados e os problemas de injustiça social são corrigidos. No percurso temático
da infidelidade dos líderes a ausência de justiça e direito é apresentada de modo
mais concreto: o direito de órfãos e viúvas é violado. Uma cidade fiel (à aliança
com YHWH) é uma cidade em que a justiça de YHWH – seu agir libertador – e
o direito de YHWH – sua torá libertadora – são o padrão da vida cotidiana. Nos
livros proféticos em geral, e em Isaías em particular, ‘direito e justiça’ são a tarefa
primordial do rei – não se imaginava naquela época ‘justiça social’ como resul-
tado de movimentos sociais ou do arranjo legal de uma sociedade democrática.
Assim como YHWH faz justiça, também o rei a deve fazer – não só o rei, mas

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


133

todas as pessoas que exercem autoridade e/ou poder, seja político, seja religioso,
seja econômico. Assim conclui Goldingay sua análise dessa parte da perícope:
“Mišpāṭ e ṣĕdāqâ, portanto, sugerem o exercício fiel do poder na comunidade”
(GOLDINGAY, 2014, p. 21).
Vale a pena uma longa citação que apresenta o uso do par de palavras ‘direito
e justiça’ no livro de Isaías em seus caps. 1-39:
Esta combinação de palavras ocorre frequentemente na primeira meta-
de de Isaías – de fato, a combinação é mais frequente do que o uso de
qualquer um de seus termos isoladamente. Assim, das 22 ocorrências
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de‫‘ מִ ׁשְ ּפָ֗ ט‬direito’, metade cai nesta categoria e, com apenas uma exceção
(32:1), ela é sempre a primeira palavra do par. Paralelamente, a propor-
ção de usos conexos de ‫‘ ֶ ֛צדֶ ק‬justiça’ é ainda maior, 13 de 20. Finalmente,
fortalecendo a conclusão de que este uso em Isaías transcende o uso co-
mum do vocabulário do Antigo Oriente Próximo, devemos notar que,
como neste verso, assim também nos demais, o par de palavras é asso-
ciado várias vezes com fiel ‫נֶאֱ מָ ָנ֑ה‬, e outros derivados da mesma raiz; cf.
1:26-27; 11:4-5; 16:5; 28:16-17; 33:5-6. Parece claro que nosso verso dá
expressão a uma ideia próxima ao coração das preocupações de Isaías.
Assim como o presente verso descreve o ideal do passado com esta lin-
guagem, assim também ele condenará a geração atual por sua falta (ver
especialmente 5:7) e retornar a esse ideal é uma caracterização da restau-
ração da sociedade ideal do futuro (28:16-17). Ademais, esta fraseologia
aparece proeminentemente em sua descrição do rei ideal (9:6; 11:4-5) e
em sua citação aprovadora de um provérbio sobre a qualidade do gover-
no dos reis em geral (32:1). (WILLIAMSON, 2006, pp. 135-136)

A cidade fiel tornou-se uma prostituta – aqui a metáfora deve ser vista em sen-
tido bastante amplo, não só como ‘idolatria’ como no uso de Oséias, nem apenas
como as alianças (casamentos) com povos estrangeiros condenadas pelo próprio
Isaías. Prostituição é metáfora para a infidelidade integral da cidade à aliança com
YHWH, retrata a injustiça e a corrupção em todos os setores da vida: político, reli-
gioso, econômico, etc. Na cidade prostituída habitam, ao invés de ‘direito e justiça’,
assassinos: retoma a acusação do verso 15 (‘mãos cheias de sangue’) e aponta para
o verso 23 – a negação dos direitos de órfãos e viúvas. Duas metáforas adicionais
descrevem a infidelidade da cidade: a escória é o metal retirado da prata quando de
seu tratamento, a fim de que ela fique pura – o que é revertido aqui, de modo que
ela perde o valor. O licor (não sabemos ao certo a que bebida específica o termo
hebraico se refere) é adulterado com água, para ficar mais fraco e não oferecer

A Dimensão Teológica da Ação


134 UNIDADE III

os efeitos desejados. No conjunto, as três metáforas se reforçam mutuamente e


indicam a presença dominante da corrupção e da injustiça social na cidade. Do
ponto de vista da estrutura social, o verso aponta para o que há de pior no modo
de produção tributário – a vida social controlada pelo rei e seus funcionários e
apoiadores, que desconsideram o direito de todos os demais habitantes da nação.
Nos versos anteriores, o texto estava repleto de metáforas e de linguagem
abstrata para descrever a transformação da cidade fiel em uma cidade corrupta
e opressora. Agora, dirigindo-se especificamente aos governantes da cidade, o
texto é mais direto e explícito. Quem são os líderes? A tradução comum em por-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tuguês ‘príncipes’ é enganadora, pois a palavra hebraica não se refere aos filhos
do rei. A palavra se refere, variadamente, aos líderes militares e aos anciãos prin-
cipalmente, de modo que aqui deve se referir aos anciãos (chefes de família)
responsáveis pela administração do direito na cidade – ao invés de julgar com
equidade, julgam de modo corrupto, aceitando subornos e buscando recompen-
sas – por isso, ‘rebeldes’ (desobedientes) e ‘parceiros de ladrões’, ou seja, membros
de quadrilha, gângsteres.
Na medida em que, naquele tempo, os juízes não eram profissionais, mas
líderes nomeados ad hoc, o cargo era usado para benefício próprio e dos ‘amigos’.
Em outros termos, Isaías condena aqui a corrupção nos escalões governamen-
tais. Os líderes que deveriam cuidar para que o direito e a justiça imperassem
na cidade estavam fazendo exatamente o contrário. Por isso, sua condenação é
radical – à altura da radicalidade de sua infidelidade à aliança com YHWH. Nas
palavras de Brueggemann, que interpreta essa seção como um ‘teste’ promovido
por YHWH, “Jerusalém falha completa e decisivamente, A questão teológica mais
ampla da vida com YHWH se dobra à concretude da política para com órfãos e
viúvas” (BRUEGGEMANN, 1998, p. 22).
Na análise da dimensão sociocultural da ação voltaremos a esse tema, com
mais detalhes sob uma perspectiva sociológica.
A palavra equidade (tsedaqah) denota as relações harmônicas que geram
paz e bem-estar no seio da comunidade. As relações harmônicas não surgem ao
acaso; nascem da igualdade social e da preocupação com que os pobres saiam
da pobreza (cf. Am 5:24; 6:12; Mq 3:1.8-9; Is 5:7.16; 10:2).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


135

2. A fidelidade justa de YHWH v. 24-25


Portanto, oráculo do Senhor, YHWH dos Exércitos, Poderoso de Israel:
24

Ai de vós! Livrar-me-ei de meus adversários e vingar-me-ei dos meus ini-


migos. 25 Voltarei contra ti a minha mão, purificar-te-ei das tuas escórias
no fogo com potassa e eliminarei todo metal impuro

Este percurso é composto por duas partes: a introdução oracular (24a) e a sen-
tença de YHWH contra os seus ‘inimigos’ – os líderes de Jerusalém (v. 21-23).
Está construído segundo a lógica dos oráculos de juízo: a denúncia é seguida pela
sentença contra o crime denunciado, introduzida pela conjunção ‘portanto’ ().
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Aqui, porém, temos uma peculiaridade – normalmente a sentença não é intro-


duzida pelo termo técnico ‘oráculo de...’; da mesma forma, o termo ‘oráculo de’
somente aqui é seguido de três títulos de YHWH: O Senhor (֙‫)הָֽאדֹון‬, ָ YHWH dos
Exército (‫ )י ְה ָו֣ה ְצב ָ֔אֹות‬e Poderoso de Israel (‫)אֲ ִ ֖ביר י ִׂשְ ָר ֵ ֑אל‬. O acúmulo de títulos
e nomes de Deus serve para indicar a intensidade da resposta de YHWH à infi-
delidade dos líderes da cidade. A lógica é a da aliança: os líderes foram infiéis,
mas YHWH permanece fiel – fiel à aliança, de modo tal que não pode deixar
impunes os líderes que se rebelaram contra ele. “O Senhor” com o artigo, enfa-
tiza o senhorio de YHWH como Soberano na Aliança (é um título usado em
várias ocasiões para o rei); “YHWH dos Exércitos” é um título que destaca a
liderança militar de YHWH – normalmente, um judeu esperaria que “YHWH
dos Exércitos” soasse como proteção, mas Isaías reverte o sentido e está afir-
mando metaforicamente que YHWH é o chefe dos exércitos que punirão Judá;
Poderoso de Israel (ou Forte de Israel) também tem conotações militares – no
conjunto, temos uma declaração de que YHWH, ao permanecer fiel à aliança
com seu povo, torna-se o chefe dos exércitos que punirão os líderes rebeldes que
quebraram a aliança.
A sentença propriamente dita é uma inversão dos crimes denunciados: (a)
os líderes que se rebelaram, serão tratados como inimigos – os chefes dos exér-
citos de Judá serão tratados como chefes de invasores; (b) a corrupção na cidade
será eliminada e as impurezas serão purificadas. A sentença dirige-se precisa-
mente contra os denunciados: a cidade e seus líderes, e não contra as vítimas
dos criminosos – o povo.

A Dimensão Teológica da Ação


136 UNIDADE III

O Soberano (֙‫ ָהָֽאדֹון‬literalmente ‘senhor’, ‘mestre’, como em um relaciona-


mento senhor-escravo, mas especialmente em relacionamentos humanos,
aplicado ao rei) é usado várias vezes em combinação com O Senhor dos
Exércitos em Isaías (cf. 3:1; 10:16.33; 19:4), e na mesma combinação, mas
com a forma ‫ אֲ ד ָֹנ֤י‬, em 3:15; 10:23.24; 22:5.12.14.15; 28:22. Como já notado
(ver sobre o v. 9), é provável que Isaías tenha derivado o título da tradição
litúrgica de Jerusalém (mesmo que ele não tenha sua origem nessa tradi-
ção), e o mesmo é provável também para o título O Soberano e para essa
combinação em particular, que pode representar uma fusão antiga do culto
jebusita original e das tradições que chegaram cedo a Jerusalém, nos tem-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pos antigos de Israel, associadas com a arca.
Fonte: Williamson (2006, p. 140-41).

3. A fidelidade da cidade restaurada v. 26


26
Restituir-te-ei os teus juízes, como nos tempos antigos, os teus conse-
lheiros, como no princípio; então voltarás a ser chamada de cidade de
justiça, de cidade fiel.
O texto é concluído de modo não comum em oráculos proféticos de juízo – com
uma declaração de esperança. Na forma tradicional do oráculo de juízo a sentença
é o elemento final. Essa peculiaridade aponta para o modo como Isaías enxerga
sua vocação e a ação de YHWH: o juízo não é a última palavra, nem a infideli-
dade do povo (aqui, é claro, dos líderes). YHWH, sendo fiel à aliança, trabalhará
para que também o povo seja fiel. Aqui, a resposta de YHWH é fazer Jerusalém
voltar aos tempos das tribos israelitas (quando Jerusalém sequer era cidade isra-
elita, mas a cidade dos jebuseus), modo de organização social em que é muito
mais difícil a prática da opressão e da corrupção. Na monarquia, os juízes e con-
selheiros eram nomeados pelo rei, com o juízo das lideranças, o próprio YHWH
apontará os líderes fiéis para governar seu povo. A lógica permanece a da aliança
– o crime é a infidelidade, a salvação será o retorno à fidelidade a Deus. Como
no início do oráculo, a fidelidade está intimamente ligada à justiça – somente
um povo justo é um povo fiel à YHWH. Finalmente, devemos notar que a res-
tauração de Jerusalém é o tema predominante nos caps. 40-55 (especialmente
o capítulo 54) e 56-66 (especialmente 65:17-25) – temos, então, uma antecipa-
ção proléptica do restante do livro nesse pequeno verso final de nossa perícope.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


137

ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS DE ESTILO E ARGUMENTAÇÃO


EM ISAÍAS 1,21-26

Como já mencionamos, nossa perícope pertence ao gênero textual ‘oráculo de


juízo’, mas possui peculiaridades. Uma, já apontada, é o acréscimo de uma pala-
vra de esperança após a sentença. A outra peculiaridade é que nossa perícope é
estilizada como um lamento fúnebre, duas vezes no texto a interjeição que indica
o gênero do lamento fúnebre é usada: 21 ( ֙‫ )אֵ יכָה‬e 24 (‫)הֹוי‬,
֚ na introdução ao orá-
culo (denúncia) e na introdução à sentença.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“A passagem é introduzida com um “Ah!” exclamatório, que é caracte-


rístico do lamento funerário (e.g. 2Sm 1:19-27; Jr 48:17). Embora não
seja difícil ver como tal forma possa ter sido adaptada metaforicamente
ao lamento pela cidade destruída (notavelmente no livro de Lamenta-
ções, que começa em 1:1 com esta mesma exclamação; ver, também;
2:1; 4:1.2; Jr 9:19), não devemos supor que este foi um desenvolvimento
peculiarmente intra-hebraico. Há muitos paralelos na literatura meso-
potâmica que remontam a tempos bem mais antigos” (WILLIAMSON,
2006, p. 134).

Esse tipo de estilização não é peculiar a Isaías, porém, estando presente tam-
bém em outros livros proféticos. Características importantes do ‘lamento’ são o
ritmo cadenciado e a assonância (que não podemos captar nas traduções, ape-
nas no original):
“o oráculo começa ex-abrupto com grito de dor: cinco palavras rima-
das prolongam o grito e o estabelecem no âmbito feminino: ’ayká haye-
tá lezoná qiriá ne’emaná. A cidade que é residência de moradores e se
vê cheia deles era morada da justiça e estava cheia da prática do direito;
tais eram os moradores privilegiados” (SCHOKEL & DIAZ, 1988, p.
123).

O uso da forma ‘lamento fúnebre’ é importante, na medida em que atenua – em


certo sentido – o tom fortemente militar da punição. YHWH não é apresen-
tado como um chefe militar irado, mas como o parceiro entristecido da aliança:
embora a punição deva ocorrer, YHWH não se agrada, mas chora expressando
seu luto pelo sofrimento do povo da cidade. Do ponto de vista da argumenta-
ção, ressalta a repetição dos termos ‘direito e justiça’ e sua união com o termo
‘fiel’ que, conforme já mostramos, sinaliza que a fidelidade a YHWH somente se

A Dimensão Teológica da Ação


138 UNIDADE III

concretiza se há justiça social, ou seja, fidelidade ao próximo. A estrutura qui-


ástica também contribui para a persuasão dos ouvintes (e leitores) da pregação
profética, com sua centralização da fórmula do oráculo (v. 24) e a repetição da
interjeição usada nos textos de lamento fúnebre.
Por fim, cabe destacar a questão do gênero profético. Isaías é o primeiro exem-
plo da profecia crítica no reino do Sul (Judá). No reino do Norte (Israel) Elias e
Eliseu já haviam estabelecido um padrão de profecia crítica, que é seguido por
Amós e Oséias. No Sul, porém, os profetas estavam fortemente ligados à corte e
ao templo, de modo que eram uma categoria profissional de agentes da monar-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quia. Isaías rompe com esse padrão e cria uma nova categoria profética, da qual
o oráculo de juízo e, depois, a coleção de oráculos na forma de livro são os sin-
tomas mais visíveis. A profecia crítica se insere entre os quadros profissionais
da cultura, ao lado (criticamente falando) do sacerdócio e da profecia oficial, ao
lado da sabedoria (tanto a serviço da corte quanto a popular). Insurge-se, assim,
como um terceiro grupo social, que defenderá o direito dos pobres e exigirá dos
reis e líderes do povo a fidelidade à aliança com YHWH.
Veja como Schwantes sintetiza a sua leitura de nosso texto:
“Caminhos um pouco diferentes trilha Isaías. Afinal, ele foi filho de
Sião e de Jerusalém. Convivia diariamente com as duas tradições sa-
gradas de Jerusalém: a do templo e a do sucessor de Davi. Isaías a rigor
não chegou a falar enfaticamente da destruição do templo, se bem que
quase se refere a ela em 29,1-4, e nem do fim da dinastia de Davi, se
bem que a ela alude em 7,17 e 11,1. O que prevalece em Isaías é que Sião
e Davi passam a adquirir novos sentidos. Ambos como que são trans-
figurados. Para Isaías, o templo no Sião deixa de ser lugar do sacrifício,
através do qual o povo era explorado e oprimido, e passa a ser lugar dos
mandamentos (2,2-5), lugar de abrigo e refúgio para os pobres do povo
(14,32). Isaías entende o templo não num sentido sacerdotal e sacrifi-
cial, mas dentro de uma mística de asilo (veja Sl 23). Algo semelhante
se passa com o davidismo. Para Isaías, o verdadeiro Davi já não é mais
aquele que, no momento, ocupa o trono de Jerusalém, mas aquele que
há de vir, em profunda fraqueza, fragilidade de criança (9,6; 11, 1-10),
em radical dedicação à justiça (9,6-7; 11,4-5). Esta ressignificação das
tradições de Sião e de Davi, tão enraizadas em Jerusalém, se assemelha,
em muito, à crítica às estruturas, promovida pelos demais profetas do
8º século”. Fonte: (SCHWANTES, [2017], on-line)3.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


139

ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERTEXTUAIS E INTERDISCURSIVAS


DE IS 1,21-26

Isaías, como já vimos, é o primeiro profeta ‘canônico’ de Judá. Entretanto, não


podemos perder de vista o fato de que ele mesmo não escreveu um livro. Sua
pregação era oral e os seus oráculos eram memorizados pelos seus discípulos e
por parte dos ouvintes. Foram os discípulos de Isaías os responsáveis pela cole-
ção dos oráculos do profeta e sua organização na forma de livro. No século VIII
a.C., a sociedade judaíta era uma sociedade não-literária, uma cultura da orali-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dade. Textos eram predominantemente documentos da corte e do Templo, mas


ainda predominava a produção oral e a memória a ela associada. Levando em
conta o caráter oral da sociedade israelita e da pregação de Isaías, podemos par-
tir da premissa de que não encontraremos relações intertextuais – ou seja, não
teria sido hábito de Isaías ler e citar (ou aludir a) textos escritos, mas, sim, o de
citar e aludir a discursos presentes em sua sociedade e em seu tempo.
Que discursos entram na rede de interdiscursividade dessa perícope isaiânica?
Em primeiro lugar, o discurso da berit (aliança) entre YHWH e seu povo
- incluindo a berit com Davi e seus descendentes – pode se chamado de dis-
curso da fidelidade, o qual Isaías vincula estreitamente ao discurso do direito
e justiça – parte do discurso da corte judaíta (que, por sua vez, o adota do uni-
verso discursivo vétero-oriental, tanto na Babilônia como na região de Canaã).
Esse discurso era promovido primariamente pela corte judaíta, na medida em
que fazia parte do discurso monárquico comum do Antigo Oriente Próximo.
Entretanto, uma forma específica do discurso da fidelidade também fazia parte
das tradições populares de Judá e Israel, como memória da libertação outorgada
por YHWH nos tempos das origens israelitas. Isaías alude, assim, polemicamente
ao discurso ‘monárquico’ e ‘contratualmente’ ao discurso popular da fidelidade.
Concomitantemente, Isaías alude polemicamente ao discurso de Sião-Davi,
ou seja, às tradições do davidismo e do sionismo. O discurso davidida (a manu-
tenção de um descendente de Davi no trono de Judá, por desejo divino) recebe
sua formatação escrita típica mais ou menos na mesma época em que Isaías
prega – possivelmente, a sua formatação escrita tenha sido uma reação à pro-
fecia crítica. Antes disso, veiculava-se oralmente nas festas religiosas e demais

A Dimensão Teológica da Ação


140 UNIDADE III

cerimônias ligadas à monarquia. Com a presença militar dos assírios ameaçando


Israel e Judá, a legitimidade do monarca davidida foi colocada em xeque (ver,
por exemplo, no próprio livro de Isaías, o longo trecho de Reis em que o por-
ta-voz militar da babilônia apresenta o questionamento da aliança entre Davi e
YHWH (caps. 36-39) e a pregação dos profetas críticos era uma séria ameaça à
manutenção da legitimidade do governo da dinastia davídica. Já o discurso ‘sio-
nita’ (valorização de Sião como local do Templo que seria indestrutível, protegido
para sempre por YHWH) tem sua base no sacerdócio do Templo de Jerusalém e
era difundido pelo culto – orações e cânticos – de modo que servia para apoiar

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o discurso do davidismo. Como Isaías critica tanto o culto como a liderança de
Jerusalém (1:10-20; 21-26), podemos supor com boa dose de certeza que ele
conhecia esses discursos e os estava criticando.
O uso da forma do lamento fúnebre, mediante a estilização, é outro exemplo
das relações interdiscursivas presentes em nossa perícope. Conforme indicamos
acima, a adoção da linguagem do lamento teve um papel importante na definição
da identidade de YHWH, enquanto juiz dos líderes da cidade e de seu povo – um
juiz animado, não pela ira, mas pelo sentimento de luto, pela tristeza e desgosto
diante da infidelidade dos líderes da nação. Se há alusão ao ‘lamento pela cidade
destruída’, um gênero comum no Antigo Oriente Próximo, é mais difícil postular.
Provavelmente não houve, embora não seja impossível que Isaías, como mem-
bro da aristocracia de Jerusalém (como se supõe), conhecesse tal gênero textual.
Estas relações interdiscursivas nos ajudam a reconstruir o universo discur-
sivo do século VIII a.C. em Judá. De um lado, temos os discursos da corte e do
Templo (davidismo e sionismo) que defendem a legitimidade da dinastia davídica
e a situam no âmbito da aliança com YHWH. De outro lado, temos o discurso
da profecia crítica nascente, que se coloca em relação polêmica contra o discurso
davidida-sionita, embora não proponha o fim da monarquia nem a destruição
do Templo. De alguma forma, o discurso da profecia crítica incorpora os anseios
populares (na cidade e no campo) por justiça social e vida digna diante de YHWH,
embora não tenhamos elementos concretos para explorar mais detalhadamente
essa relação. Em um terceiro bloco discursivo, encontramos o discurso da profecia
crítica ‘radical’ do reino do Norte (exemplificada nos escritos de Amós e Oséias),
que propunha a destituição dos reis e até a destruição dos Templos monárquicos

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


141

(devemos nos lembrar que a situação política do reino de Israel era bem distinta
da de Judá, pois jamais houve uma dinastia duradoura no reino do Norte). Nesse
período ainda não dispomos de informação suficiente para situar os sábios e escri-
bas, seja os ligados à corte e ao templo, seja os ‘populares’. Que a sabedoria veio
a se desenvolver como uma forma discursiva própria em Judá, é fato conhecido,
mas não temos ainda condições de oferecer um relato histórico de suas origens
‘discursivas’ para esse período – à luz do livro de Reis, podemos situar melhor o
discurso sapiencial a partir do século VI a. C., tendo em vista o papel de escribas
na tradição deuteronomista (o papel dos escribas durante a descoberta do livro
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da Lei no Templo durante o reinado de Josias, 2 Rs 22).

A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO

Na análise da dimensão teológica da ação já encontramos os elementos fundamentais


da dimensão sociocultural: a aliança como o modelo de vínculo social; a liderança
corrupta da cidade; a cidade-estado Jerusalém e o lamento fúnebre como fonte do
estilo do oráculo; a restauração da fidelidade na forma de um retorno ao tribalismo;
não se pode esquecer, ainda, do fato dessa perícope pertencer a um livro profético e
seu gênero ser o do oráculo de juízo. Já destacamos, também, os sentidos ‘socioló-
gicos’ presentes. Falta, porém, uma reflexão mais concreta sobre a estrutura social.
Ressalta, na perícope, a ausência de menção ao rei como o ‘líder’ dos ‘líderes’.
Essa ausência é comum em Isaías e nos livros proféticos do mesmo período no
sul. Em Isaías, particularmente, essa ausência se deve à esperança do profeta em
que um rei davídico justo será designado por YHWH para governar fielmente a
cidade. Essa esperança está intimamente ligada à compreensão comum do Antigo
Oriente Próximo de que o rei é o responsável pela administração da justiça e do
direito. No caso específico de Isaías, ainda encontramos o vínculo com a teologia
davidida que afirmava a eleição de Davi e seus descendentes como representan-
tes de YHWH no governo de Judá (e Israel), cf., especialmente, 2 Samuel 7:1-16.

A Dimensão Sociocultural da Ação


142 UNIDADE III

Implícita na perícope é a estrutura jurídica peculiar da cidade-capital


(Jerusalém era, na prática, uma cidade-estado), na qual os juízes eram nomea-
dos pelo rei e, possivelmente, atuassem em cooperação com o sacerdócio, julgando
as causas no próprio Templo – que era um anexo do palácio real. Nas cidades
‘comuns’, os julgamentos ocorriam na porta da cidade, o local público das reu-
niões dos anciãos, do comércio e da via pública da cidade. Na visão comum do
Antigo Oriente Próximo e, particularmente, na visão judaico-israelita da prática
da justiça, a honestidade dos juízes era uma demanda fundamental, na medida
em que eles julgavam com base nos testemunhos trazidos pelas partes em litígio

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e não com base em um ‘código de leis’ a que deveriam submissão. A honestidade
e a defesa dos direitos dos mais fracos eram elementos comuns à instrução nor-
mativa em Israel e Judá (cf., por exemplo, o Livro da Aliança em Êx 20:21-24:14).
Diferentemente de Oséias e Amós (profetas da mesma época, século VIII
a.C., mas do reino do Norte – Israel), Isaías não prevê o fim da monarquia como o
caminho para o retorno à fidelidade à aliança com YHWH. Ele espera, ao contrá-
rio, que a casa real cumpra sua tarefa com fidelidade, submetendo-se à soberania
de YHWH e governando com base no direito e na justiça – ver, especialmente,
a coleção de oráculos de esperança em Isaías 6-9 e cap. 11. Sua ‘utopia’ não é a
de um retorno ao tribalismo enquanto tal, mas à maior condição de equidade
(justiça social) típica da situação pré-monárquica de Israel. Isaías aceita a pre-
sença de um rei, mas demanda que o rei aja com justiça, seja fiel a YHWH e sua
aliança, e não oprima o povo. Nesse sentido, sua visão política é similar à da lei
do rei em Dt 17:14ss.
A profecia de Isaías se situa em ambiente similar à do profeta Miquéias. Este,
contemporâneo de Isaías (embora não saibamos exatamente em que períodos
ambos tenham atuado simultaneamente), era do interior e também denunciava for-
temente os ricos, as lideranças de Jerusalém e os ‘falsos’ profetas (ver especialmente
os capítulos 2-3 de seu livro). Como Isaías, Miquéias também lamenta pelo sofri-
mento do povo (cap. 1), mas o faz sob a circunstância da invasão de Senaqueribe,
que destrói boa parte do interior de Judá, deixando apenas Jerusalém como sobre-
vivente. No século VIII a.C. temos, então, em Judá, o surgimento do fenômeno
da profecia crítica – profetas que não se submetem ao comando do rei nem ao do
sacerdócio no Templo. A profecia, em Judá era, predominantemente, uma função

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


143

ligada ao rei e ao Templo, mas os profetas críticos – independentes – surgiram


nesse período e se tornaram o grupo profético mais importante, de tal modo que
suas pregações se tornaram parte do cânon bíblico. Isaías é o primeiro de uma
nobre linhagem de profetas críticos em Judá durante a fase final da monarquia: ele,
Miquéias, Sofonias, Jeremias, Naum e Habacuque. Simultaneamente, no reino do
Norte também surgem os profetas críticos (Oséias e Amós são os canônicos), mas
estes têm uma história anterior mais rica: Elias e Eliseu, que atuaram já no século
IX a.C., criticando os desmandos dos reis israelitas. A profecia judaico-israelita,
portanto, tornou-se um campo de disputa social – profetas, de um lado; Templo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e corte de outro. A defesa do direito dos pobres era a marca registrada da profe-
cia crítica, como consequência da compreensão de que a fidelidade a YHWH não
poderia existir sem justiça social, pois YHWH é Deus justo e libertador.
O diagnóstico de Isaías assemelha-se ao que muitos contemporâneos emi-
tem sobre nossa sociedade. Vivemos num mundo que traiu e abandonou a Deus,
mundo infiel, falso. Os motivos, porém, talvez sejam diferentes. Aqui intervém
o contraste entre a ‘visão religiosa’ e a ‘profética’. Em que pensamos nós ao dizer
que o mundo abandonou a Deus, perdeu a fé, etc.? Em igrejas vazias? Em pouco
interesse pela doutrina tradicional? Em imoralidade? Que tipo de imoralidade?
Note como o texto é interpretado por um exegeta europeu:
Para Isaías, Jerusalém traiu a Deus porque traiu os pobres. E essa trai-
ção é levada a efeito pelas autoridades, que se encontram diante de dois
grupos sociais: os ricos, que se enriqueceram roubando (gannabîm,
ladrões), e os pobres (órfãos, viúvas). Os primeiros podem oferecer di-
nheiro antes de tratar de algum problema e recompensar com presentes
os serviços prestados. Os segundos não podem oferecer nada; só po-
dem pedir que sejam escutados. Diante dessa diferença, as autoridades
associam-se (hbr) aos ricos/ladrões.
Comparada com a visão que Amós oferece de Samaria, a de Isaías é
mais complexa e interessante. Fala daqueles que acumulam tesouros
roubando; nisso coincide com Amós. Descobre, porém, causa pro-
funda: os ricos podem roubar porque as autoridades permitem. E elas
permitem porque estão dominadas pelo afã do lucro. Só fazem o que
lhes serve para enriquecer-se. O que não dá dinheiro, desprezam. Isaías
não acusa aqui as autoridades de ‘julgar contra a justiça’, mas de não
cumprir com seu dever quando não há ganho possível. Com isso se
convertem em ‘rebeldes’ (srrym): traem sua profissão, traem os pobres
e também traem a Deus.(SICRE, 1990, p. 277)

A Dimensão Sociocultural da Ação


144 UNIDADE III

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Chegamos ao último ciclo de nossa leitura de Isaías 1:21-28, o momento de tra-


balharmos as possibilidades de sentido e ação que o texto evoca para os nossos
próprios dias. Em primeiro lugar, devemos destacar as áreas ou dimensões da vida
com que o texto se relaciona. Nossa perícope foca na área política institucional
(o que chamaríamos hoje de governo, tanto o executivo como, principalmente, o
legislativo) e na legitimação religiosa da ação política. O texto denuncia a injus-
tiça e corrupção dos tribunais e líderes de Jerusalém e mostra como tais práticas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
correspondem à infidelidade à aliança com YHWH, o Deus de Judá (e Israel).
No segundo momento, verificamos se o Novo Testamento demanda alguma
revisão teológica dos sentidos do texto. Nesse caso, a revisão a ser feita é a cris-
tológico-eclesiástica, ou seja, a identidade do povo de Deus agora não é mais
restrita a Israel enquanto povo ou etnia e, em especial, não se restringe a Israel
enquanto nação, e a esperança de restauração não se restringe mais a Jerusalém
enquanto capital do reino de Judá, mas tem a ver com toda a humanidade.
Percebido isto, os dois focos do texto podem ser trabalhados em uma dimen-
são ‘universal’ e não mais restrita a Jerusalém. Assim, a releitura do texto deverá
lidar com (1) os temas da corrupção e da injustiça social; e (2) o tema do lugar
da religião na legitimação do governo. Antes de fazermos a releitura devemos,
ainda, levar em consideração as diferenças institucionais e socioculturais entre o
mundo do texto e o nosso mundo. Ressalta, aqui, pela temática, o fato da separa-
ção institucional entre Estado e Instituições Religiosas – o que podemos chamar
de laicidade do Estado, ou seja, o fato de que o Estado não pode ser legitimado
com fundamentos religiosos e, ao mesmo tempo, não pode interferir na liber-
dade religiosa, mas tem o dever de atuar quando pessoas ou instituições religiosas
não cumprem os preceitos legais. Outro aspecto dessa diferenciação está na plu-
ralidade religiosa – enquanto em Israel todos os habitantes praticavam a mesma
religião (com exceção de estrangeiros), nos países democráticos a população pra-
tica diferentes religiões e existem diferentes modos de viver sem religião. Isso
afeta o modo como realizamos a releitura em função do público-alvo: se a dire-
cionamos a cristãos o enfoque será um, se a direcionamos a toda a sociedade o
enfoque deverá ser outro.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


145

Vou entregar a você a tarefa de fazer a releitura. Porém, para ajudá-la(lo)


nessa tarefa, apresentarei uma breve discussão sobre a laicidade em relação com
a situação brasileira.
Em termos genéricos, a palavra laicidade tem a ver com o modo como o
Estado se relaciona com as religiões em seu território – e não há um único modo
de tal relação. Laicismo comumente se refere a uma atitude institucional que
supervaloriza a laicidade (como no caso da França, por exemplo), mas também
pode ser visto como um termo neutro, que se refere ao conceito fundamental
da laicidade. Na sequência, discutirei a questão da laicidade.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

LAICIDADE E SEPARAÇÃO IGREJA-ESTADO

Passemos, agora, à reflexão sobre a noção de separação igreja-estado.

Separação Igreja-Estado
Um dos elementos da secularização/modernização foi a separação Instituição
Religiosa-Estado, de modo que a elaboração de legislação e a tomada de deci-
sões e implantação de políticas públicas são feitas pelo Estado sem necessidade
de apoio ou aprovação por parte das religiões. Assim, várias leis e decisões exe-
cutivas podem entrar em conflito com valores, crenças ou práticas religiosas
cristãs (ou de quaisquer outras religiões), como uma das expressões naturais da
consequente laicidade do Estado.
Reconhecida deste modo genérico a laicidade do Estado, porém, várias ques-
tões problemáticas ainda permanecem, algumas das quais discutiremos a seguir:

(1) Religião & Política?


O reconhecimento da separação entre Instituições Religiosas e Estado não signi-
fica, porém, a cisão entre política e religião – os agentes políticos não prescindem
de sua identidade para atuar, de modo que pessoas religiosas agem politicamente
levando em consideração as suas crenças e seus compromissos institucionais.
Assim, embora em tese leis e decisões executivas sejam elaboradas e tomadas de
modo laico, não é possível deixar de reconhecer a presença de elementos religiosos

A Dimensão Missional da Ação


146 UNIDADE III

nos processos de elaboração e tomada de decisão pública. Igualmente, as esco-


lhas eleitorais (e políticas em geral) de cidadãs e cidadãos religiosos, por mais que
sejam “racionalmente” definidas, não podem, simplesmente, abolir a presença e a
influência da dimensão religiosa da identidade dos mesmos. Por isso, é importante
definir os parâmetros dessa relação institucional a partir do conceito de laicidade.

(2) Que tipo, então, de laicidade?


Para Jürgen Habermas, afirmar que o Estado é leigo significa que ele deve exercer
uma forte neutralidade em relação às concepções abrangentes sobre a realidade

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
presentes no mundo da vida. Somente exercendo tal neutralidade é que se pode
conseguir justiça política na esfera pública que, em sociedades democráticas,
exige a plena e igual participação de todos os cidadãos, independentemente de
suas ideias amplas sobre a realidade:
“a neutralidade do poder estatal, no que tange às cosmovisões, neutra-
lidade que garante iguais liberdades éticas a todos os cidadãos, não é
compatível com a generalização política de uma visão de mundo se-
cularista. Em princípio, os cidadãos secularizados, na medida em que
atuem em seu papel de cidadãos de um Estado, não devem negar às
imagens religiosas do mundo um potencial de verdade, nem devem
questionar o direito dos concidadãos crentes de participar, com a lin-
guagem religiosa, nas discussões públicas. Uma cultura política liberal
pode, inclusive, esperar dos cidadãos secularizados que participem nos
esforços de traduzir as contribuições relevantes da linguagem religiosa
a uma linguagem publicamente acessível” (HABERMAS, 2006, p. 119).

A partir dessa definição, podemos entender que a laicidade é o reconhecimento


do caráter laico do Estado e, a grosso modo, da política institucionalizada.
Entretanto, há diferentes modelos de laicidade:
Modelo “Francês”: “indiferença do Estado a respeito de todas as perspectivas
religiosas e salvaguarda do mesmo Estado à possibilidade de crer (ou não) no que
se desejar, com a consequência de que o liame político baseia-se em si mesmo e não
na filiação a um credo ou outro”;
“a posição de Nicolas Sarkozy e Bento XVI, para quem a laicidade deve englobar a
religião (como discurso) e os religiosos (como grupos organizados) na vida social, afir-
mando, além disso, que uma “verdadeira” concepção da realidade (cósmica e, no que
presentemente interessa, também política) inclui um diálogo com a transcendência, o

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


147

que é uma forma velada de afirmar que a vida política exige a crença na divindade.
O “positivo” dessa proposta de laicidade inclui exatamente tudo aquilo que a laici-
dade “tradicional” sempre excluiu e que sempre a definiu como um conceito político”;
“há alguns pensadores – como a espanhola Camil Ungureanu – que defendem
uma “laicidade esclarecida” e afirmam que a democracia não pode prescindir, ou
melhor, não pode rejeitar as perspectivas de mundo religiosas, pois elas contêm
valores que mobilizam os e orientam a conduta dos cidadãos. Dessa forma, man-
tendo a separação entre Igreja e Estado, Ungureanu afirma que o Estado não pode
ser surdo e cego para a religião e para os religiosos [...].
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O problema torna-se, então, a influência admissível dos grupos e ideias reli-


giosos sobre o Estado. Kintzler afirma que a laicidade convive com esse paradoxo,
o de ser cega e surda a esse tipo de pressão; Ungureanu considera que essa pressão
é correta e legítima, desde que políticos e cidadãos aceitem argumentos religiosos
mas usem-nos de maneira “secularizada”. Dessa forma, ambas as perspectivas
reconhecem aporias em suas formulações”. (citações de comunicação inédita de
Gustavo Biscaia de Lacerda no XXXIII Encontro Anual da ANPOCS)

(3) Qual é o problema, afinal, se pensarmos no Brasil atual?


A Grosso modo, penso que o problema teórico fundamental aqui tem os seguin-
tes parâmetros:
a. falta de profundidade histórica, na medida em que os chamados valores
seculares ou laicos no Ocidente são tributários de valores cristãos;
b. confusão entre valores criados e praticados pelas pessoas adeptas das reli-
giões e os valores, doutrinas e práticas oficiais das instituições religiosas
(que, normalmente, atuam como agentes estratégicos);
c. a equiparação, pura e simples, de valores seculares com valores demo-
cráticos ou progressistas e, consequentemente, de valores religiosos com
valores conservadores ou não-democráticos;
d. a convivência, mais difícil na prática do que na teoria, com a pluralidade
de valores e cosmovisões e a aceitação do dissenso racional entre pessoas
de distintas religiões ou não-religiosas.
Para entendermos melhor a situação da laicidade no Brasil, precisamos de uma
reflexão sobre a nossa história institucional, especificamente sobre o padroado.

A Dimensão Missional da Ação


148 UNIDADE III

O PADROADO E SEUS EFEITOS POLÍTICO-CULTURAIS

A característica fundante da religiosa brasileira no período colonial e monár-


quico foi a prática político-religiosa do padroado. Por padroado se entende o
acordo entre a Cúria Romana e a Corte Portuguesa mediante o qual a primeira
delega ao monarca português o direito de gerir a Igreja Católica nas terras bra-
sileiras. Se, por um lado, o Vaticano cedia à corte parcela significativa do seu
poder, por outro, garantia que o Estado português assegurasse o sustento finan-
ceiro e a perpetuação da Igreja Católica como a religião oficial dos povos dirigidos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pelo monarca português. Esse sincretismo Igreja-Estado é denominado, na teo-
logia, de Cristandade. No que tange às relações religião-poder, particularmente
no tocante à formação da esfera pública, Ângela R. Paiva apresentou uma inte-
ressante descrição dos efeitos do padroado em terras brasileiras, estruturado
em uma dualidade de dependência (à corte) versus autonomia (subordinação
direta ao Vaticano).
Quanto ao primeiro pólo:
“Nada caracteriza melhor os graus de dependência e centralização da
esfera religiosa brasileira do que o regime do padroado. O padroado,
implantado aqui desde os primeiros séculos da colonização do Brasil
no espírito da Cristandade, vai perdurar até a Proclamação da Repú-
blica. Num primeiro momento, seguindo a tradição católica do padro-
ado em outras regiões do planeta, foi um regime dos mais convenien-
tes para Roma, pois garantia a evangelização das terras descobertas e
a certeza de que estas terras seriam católicas. Apesar de a Santa Sé ter
de ceder parte de seu poder centralizador para o monarca de Portugal,
estava assegurada a propagação do catolicismo em território tão amplo
e de difícil evangelização” (PAIVA, 2003, p. 61s.).

Já, quanto ao segundo:


“No que se refere ao grau de autonomia, o que mais sobressai nessa rela-
ção originada com o padroado é o grau de compromisso da esfera religio-
sa com a esfera política. Os monarcas portugueses assumem o governo
civil e religioso, principalmente nas colônias. E o que vai ser visto nessa
relação no Brasil-colônia é um crescente controle do Monarca sobre o
clero em detrimento de sua autonomia, que fica ainda mais evidente no
período da monarquia. [...] Na relação promovida pelo padroado havia
obrigações e deveres e não havia qualquer possibilidade de espaço para os
direitos individuais. Apenas cabia o direito cristão (PAIVA, 2003, p. 62).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


149

Um dos graves problemas que essa prática política trouxe ao Brasil foi o estabe-
lecimento de um clero secular (padres paroquianos) definido primariamente não
pela vocação religiosa, mas pela subordinação aos interesses da corte, fazendo
com que a atuação sacerdotal baseada na vocação praticamente se restringisse
ao clero religioso (frades e freiras), não diretamente subordinado ao Vaticano,
mas à direção das respectivas Ordens. Um clero submisso ao governo não pos-
suía autoridade moral para o exercício de sua função.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

CONSEQUÊNCIAS DO PADROADO PARA A RELIGIOSIDADE


BRASILEIRA

Em um conciso parágrafo Angela Paiva descreve as principais consequências


do padroado para a constituição da religiosidade brasileira nos períodos colo-
nial e monárquico:
“A esfera religiosa no Brasil caminhava num sentido inverso [em re-
lação à norte-americana]: o que prevaleceu foi a submissão do religio-
so ao político, numa centralização necessária para seu controle; foi a
manutenção de um mundo mágico para as classes dominadas na pre-
servação de relações desiguais; foi ainda um descolamento da prática
religiosa da vida cotidiana, pois esta é vivida em um formalismo que
exige pouco do fiel na sua vida diária, neutralizando qualquer tipo de
ação social; foi, por último, um distanciamento da esfera pública, pro-
veniente mesmo dessa magia preservada e do deslocamento de sua
prática das questões sociais. Eram características que estavam longe
de propiciar qualquer movimento em relação à participação social e o
católico brasileiro vivia sua religiosidade sem nenhuma tensão com a
esfera social, por mais injusta que esta fosse, porque a esfera religiosa
simplesmente não fornecia munição para outro tipo de vivência” (PAI-
VA, 2003, p. 64).

A Dimensão Missional da Ação


150 UNIDADE III

Essas características, apesar do fim do Padroado, permanecem ainda determi-


nantes na religiosidade brasileira, alteradas, é claro, pelos diversos processos
políticos, econômicos, sociais e culturais que constituíram a história do Brasil
no período republicano, mas presentes – e não só no catolicismo, também em
certa medida, nas demais denominações cristãs:
1. a submissão do religioso ao político se transferiu principalmente ao campo
simbólico, mas ainda se pode ver na incapacidade de igrejas se posicio-
narem claramente contra o Estado (a não ser em questões morais), e na
manutenção de comportamentos clientelistas por políticos afiliados a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
igrejas cristãs;
2. a mentalidade mágica, ou seja, a expectativa de que os problemas do
cotidiano sejam resolvidos por interferência direta da divindade, mar-
cada também por um dualismo epistemológico no qual algumas esferas
da vida são reservadas ao saber científico, enquanto outras permanecem
monopólio das crenças religiosas;
3. o distanciamento da esfera pública, também praticado pela maioria das
igrejas protestantes, de modo que a atuação sócio-política de cristãos é,
predominantemente, marcada pelo assistencialismo e pelo corporativismo
– reforçando-se, assim, o messianismo cultural e político. E, acrescento,
esses traços acabam por articular um forte senso de destino – uma resig-
nação fatalista diante da realidade.

Com essas informações e reflexões, faça você a releitura deste texto, direcionan-
do-a a um público cristão.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE ISAÍAS 1,21-26


151

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem aluno(a)! Chegamos ao final de mais um exemplo de exegese bíblica


usando a metodologia sêmio-discursiva. Espero que você tenha conseguido per-
ceber como se usa a metodologia e se motive a fazer você mesmo a exegese de
textos bíblicos usando disciplinadamente uma metodologia apropriada.
Nosso texto de Isaías é muito interessante. Ele trata de questões sociais e
políticas da vida do antigo Reino de Judá, à luz do conceito de justiça divina:
Deus liberta as pessoas oprimidas e lhes possibilita viver em uma aliança de fide-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

lidade e justiça. Isaías, olhando a vida em seu redor percebe que a aliança está
rompida. Os governantes de Judá não praticam a justiça, e a vontade de YHWH
é abandonada.
Esse tema da corrupção e da injustiça é importante até os dias de hoje! Não se
trata de qual ideologia ou partido seguimos, mas, sim, de conhecer e de praticar
a justiça na vida social e política. Não devemos usar o texto bíblico para favore-
cer este ou aquele partido, esta ou aquela ideologia contemporânea. Entretanto,
somos convidados por Deus a usar a Bíblia para nos ensinar a praticar a justiça
em nossas vidas públicas.
Esse é um desafio permanente para a vida cristã. Não podemos jamais per-
der de vista que seguir a Jesus não é apenas frequentar igrejas ou cantar louvores,
mas se trata de viver como Jesus viveu, em todas as dimensões da vida, inclusiva
no campo da política e da sociedade.
Textos como esse de Isaías podem nos servir de guia para o estudo, a reflexão
e a prática na vida cotidiana. Veremos, na próxima Unidade, um texto de Jeremias
que, aparentemente, não tem nada a ver com a vida pública. Aparentemente!
Pois, na prática, tem muito a ver com a vida em sociedade e política. Esse tema
era fundamental na literatura profética do Antigo Testamento. vale a pena estu-
dá-lo com carinho e dedicação.
Bom trabalho, e ânimo para continuar os estudos!

Considerações Finais
152

1. O contexto de um texto deve ser reconstruído a partir do próprio texto, levando


em conta os seguintes indícios por ele fornecidos: gênero textual, relações inter-
discursivas e o próprio conteúdo do texto. Esta afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA

2. Que tipos de profetas centravam sua pregação na exortação em relação ao exer-


cício do poder?
a. Extáticos.
b. Críticos.
c. da Corte.
d. do Templo.
e. Nenhum dos anteriores.

3. As razões para delimitar nossa perícope são: em relação ao texto anterior: mu-
danças de _____________, vocabulário e temática (Sodoma e Gomorra – sím-
bolos para Jerusalém – ____________ litúrgico e temática da denúncia contra
o culto e o sacerdócio); em relação ao texto posterior, especialmente mudança
de personagens e vocabulário (inclusive temática), embora o foco ainda recaia
sobre ___________. Nos v. 27ss. o profeta fala em Sião, destacando, como nos
vv.10-20 a dimensão cúltica da cidade, enquanto os vv. 21-26 destacam a dimen-
são política.
A ordem correta das palavras para suprir as lacunas é:
a. vocabulário, personagens, Jerusalém.
b. Jerusalém, personagens, vocabulário.
c. personagens, vocabulário, Jerusalém.
d. vocabulário, Jerusalém, personagens.
e. personagens, Jerusalém, vocabulário.
153

4. Um verbo no pretérito perfeito, em português, geralmente indica o aspecto:


a. incompleto da ação.
b. completo da ação.
c. gnômico da ação.
d. perfectivo da ação.
e. durativo da ação.

5. Na visão comum do Antigo Oriente Próximo e, particularmente, na visão judai-


co-israelita da prática da justiça, a honestidade dos juízes não era uma demanda
fundamental, o que importava era seguir o código de leis corretamente.
Esta afirmação é:
( ) FALSA ( ) VERDADEIRA
154

“1. Amos (ca. 760 ou 750 a.C.) Já Natan tinha repreendido severamente a Davi por causa
do seu adultério e conjugicídio (2 Sm 12,1-15), Elias tinha atacado de (1) As notas a seguir
representam um resumo, em parte atualizado, de dois trabalhos: A evolução econômi-
co-social em Israel e a pregação dos profetas e A mensagem social dos profetas pós-ex-
flicos. O primeiro trabalho foi apresentado na XII Semana Bíblica Nacional em julho de
1977, em São Leopoldo, tendo sido publicado em Rev. Cult Bíbl 20, nova fase vol. 1,1977,
309-351, e no volume coletivo Os direitos humanos na BÍblia-I, Edições Loyola, São Pau-
lo, 1978, 15-57. O segundo trabalho foi apresentado na XIII Semana Bíblica Nacional, em
julho de 1979, em Vitória, ES; será publicado em Rev Cult BIbl, n<’4 (ou 12) de 1979. 248
rijo ao rei Acabe pela usurpação criminosa da vinha de Nabote (1 Rs 21). Menos salientes
são as intervenções de Elíseu a favor de duas viúvas (2 Rs 4,1-7 8,1-6); nada ouvimos que
ele tivesse protestado contra as horrorosas hecatombes do novel rei Jeu. Mas é com os
assim chamados profetas escritores no séc. 8’ a.C. que a mensagem social toma vulto e
vigor. Amos, durante sua breve atuação no reino do Norte, denuncia vigorosamente a
opressão e exploração dos pobres endividados (2,6-8 8,6 5,1 Ia), a violência que reina
em Samaria (3,9-12), os banquetes frívolos das madames de Samaria e as construções
aparatosas (4,1-3 cf.2,8b 6,6; 5,11b 3,10b.11b.15 6,8-11). O profeta verbera igualmente
o luxo desenfreado e escandaloso dos homens notáveis de Samaria e a ganância e as
fraudes dos negociantes (6,3-6.7 3,12; 8,4-6), denunciando o uso de balanças falsas (8,5c;
também Os 12,8 Miq 6,11 Ez 45,10 Cf. Dt 25,13 etc). Mas para Amos o cúmulo dos males
sociais é a corrupção da justiça nos tribunais (5,7-15.24): os pobres não têm acesso à
justiça (também 2,7), juízes e testemunhas aceitam ou reclamam subornos, o direito e a
justiça são convertidas em losna e veneno (também 6,12), quando deveriam ser, como a
água, um elemento benfazejo e fecundante do organismo social (5,24).
2. Oséias (ca. 750-725 a.C.) Ao contrário do seu contemporâneo Amós, o profeta Oséias
apresenta uma mensagem social menos pronunciada. Ele acusa os filhos de Israel de
que “falta a fidelidade e a solidariedade (ou espírito comunitário), falta reconhecimento
de Deus no país. Amaldiçoar, enganar, cometer assassinatos e furtos (ou seqüestres?),
cometer adultérios estão na ordem do dia, homicídio sucede a homicídio” (4,1 b-2 Cf.
7,1). Estas acusações lembram o decálogo. Adiante o profeta fala de palavras (vazias?),
perjúrios e alianças que fazem brotar o direito como veneno (10,4 cf.Am 6,12); isto talvez
se refira às tramóias e conchavos para derrubar e eliminar os reis (Cf. 5,11 -13 7,3-7 8,4.7-
10 10,13-15 13,10-11; 2 Rs 15,10-30).
3. Isaías (740-700 a.C.) Este aristocrata de Jerusalém, contemporâneo de Oséias e Mi-
quéias, tem mensagem social ampla e vigorosa, repetindo em parte no Sul o que Amós
tinha denunciado no Norte. Ele verbera a exploração dos fracos e pobres (1,17a.21 3,l4b-
15), os abusos revoltantes dos tribunais por subornos (1,23b 5,7.20.23-24a 29,21 se ge-
nuíno , parcialidade (3,9) e leis injustas (10,1-2), o luxo e os banquetes escandalosos
(5,11-12.22 22,12-14.15-19: contra Sobna 28,7-13). Mas também aparecem abusos no-
vos: a especulação imobi- 249 liaria e os latifúndios (5,8-10) e a exploração das viúvas e
órfãos (1,17.23 10,2b cf.9,16). Nesse contexto convém mencionar também a sátira mor-
daz contra as “filhas orgulhosas de Síão” e suas modas (3,16-24).
155

4. Miquéias Era contemporâneo um pouco mais novo de Isaías e o seu modesto livro de
7 cc. contém pregação social muito ampla e por vezes vazada em termos violentos. Ele
flagela a exploração desapiedada dos fracos, comparando os governantes e responsá-
veis com verdadeiros canibais ou tubarões (3,1-4): é um dos trechos mais violentos de
todos os profetas. Além disso, ataca a ganância insaciável que se manifesta na aquisição
de terras e casas (2,1-2.9; ver Is 5,8-10) e retenção ilegal do penhor (2,10b; cf. o manto
de 2,8). Por ganância os juízes e magistrados administram a justiça por subornos (3,11a
7,3b; Am 5,12 Is 1,23), os funcionários exigem propinas (7,3), os profetas proferem orácu-
los pagos (3,5-7.11c) e os sacerdotes dão as diretivas por dinheiro (3,11b). Não se recua
mesmo diante do derramamento de sangue (7,2a). As classes dirigentes da capital são
incriminadas de construírem a Sião com sangue e a Jerusalém com injustiça (3,9-10), ou
explorando os operários até a exaustão ou apoderando-se dos terrenos pela violência,
como só o faria um déspota estrangeiro (Hab 2,12). Apesar de acusações tão violentas o
profeta não incita as vítimas exploradas à violência ou a fazerem justiça por suas mãos:
isto cabe a Deus (cf. 5,1 ss 2,5). Finalmente Miquéias chama atenção à falsidade e deso-
nestidade que reinam na vida comunitária (6,10-12 7,2.5); uma vez mais se mencionam
medidas e pesos adulterados (6,10a. 11 Os 12,8-9 Ez 45,10). Outro mal muito sério é a
anarquia familiar (7,6).”
Fonte: J. B. Kipper ([2017], on-line)4.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Com os Pobres da Terra - A Justiça Social nos Profetas de Israel


José Luis Sicre
Editora: Academia Cristã
Sinopse: o profetismo é, indiscutivelmente, um dos mais importantes movimentos
que geram a compreensão cristã. Pois, esse movimento não apenas fundamenta
a identidade de Jesus como Cristo de Deus, mas, também, disponibiliza
metodologicamente a forma e conteúdo da escola discipular do “Mestre Galileu”...
Este livro é uma abertura enorme para a compreensão do profetismo, sobretudo,
no que diz respeito ao envolvimento direto do movimento com o problema da
justiça e sua efetivação na história, partindo das influências egípcia, mesopotâmica,
cananea, fenícia e hitita sobre o antigo Israel.
Por certo, estamos de posse de uma grande contribuição para o estudo do Antigo
Testamento

Rede de Intrigas
Ano: 1976
Sinopse: apresentador de noticiário recebe a notícia de que está demitido em
razão dos seus baixos índices de audiência. Um dia, com o programa no ar,
comunica a sua saída da emissora e avisa que se matará na próxima semana,
quando o programa estiver no ar. É imediatamente afastado, mas o público pede
a sua volta e como a rede estava com problemas de audiência resolve lançá-lo.
A partir de então ele passa a encarnar o profeta louco, mas mesmo tendo um
comportamento insano a recepção do público é altamente positiva. No entanto,
as pessoas responsáveis pela sua ascensão agora querem detê-lo.

Um ótimo artigo para aderir aos seus conhecimentos resumindo a história da profecia no antigo Israel.
Web: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/downloads/2010/12/
Nt2Brevehistoria.pdf>
157
REFERÊNCIAS

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Trad.


João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1966.
BRUEGGEMANN, Walter. Isaiah. Louisville: Westminster/John Knox Press, 1998.
CROATTO, J. S. (org.). Os Livros Proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. Revis-
ta de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis: Vozes; São Leopoldo:
Sinodal, v. 35-36, 2000.
DARDES, Francesc R. Isaías 1-39. Bilbao: Editorial Desclée De Brouwer, 2006.
FELDMEIER, Richard & SPIECKERMANN, Hermann. O Deus dos vivos: uma doutrina
bíblica de Deus. São Leopoldo: Sinodal & EST, 2015.
FIORIN, José L. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto & EDUSP,
1989.
GOLDINGAY, John. The theology of the book of Isaiah. Downers Grove: Inter-Var-
sity Pres, 2014.
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo y religión. Barcelona: Paidós Ibérica, 2006.
JAMESON, Fredric. O inconsciente Político: A Narrativa como Ato Socialmente
Simbólico. São Paulo: Ática, 1992.
KESSLER, Rainer. The Social History of Ancient Israel. An Introduction. Minneapo-
lis: Fortress Press, 2008.
PAIVA, Angela R. Católico, protestante, cidadão. Uma comparação entre Brasil e
Estados Unidos. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
SCHÖKEL, Luis Alonso & DIAZ, José Luiz S. Profetas I. Isaías, Jeremias. São Paulo:
Paulinas, 1988.
SCHWANTES, Milton. (org.). Profetas e profecias: novas leituras. Estudos Bíblicos
n. 73. Petrópolis: Vozes, 2002.
SCHWANTES, Milton. & MESTERS, C. Profetas: saudades e esperança. São Leopoldo:
CEBI, 1990.
SEITZ, Christopher R. Isaiah 1-39. Interpretation. A Bible Commentary for Teaching
and Preaching. Louisville: John Knox Press, 1993.
SICRE, José L. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990.
SWEENEY, Marvin A. Isaiah 1-39: with an introduction to prophetic literature. Grand
Rapids: Eerdmans, 1996.
WILLIAMSON, Hugh G. M. Isaiah 1-27. Londres: T & T Clark, 2006.
ZABATIERO, Júlio P. T. M. Uma História Cultural de Israel. São Paulo: Paulus, 2013.
REFERÊNCIAS

REFERÊNCIA ON-LINE

1
Em: <http://biblia.com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/isaias/>. Acesso em:
5 mai. 2017.
2
Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em 5 mai. 2017.
Em: <https://portal.metodista.br/fateo/noticias/a-profecia-durante-a-monarquia>.
3

Acesso em: 5 mai. 2017.


Em: <www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/download/2128/2422>.
4

Acesso em: 5 mai. 2017.


159
GABARITO

1. Verdadeira.

2. C.

3. C.

4. B.

5. Falsa.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DE

IV
UNIDADE
JEREMIAS 31:27-34

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da fase
preparatória.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão sociocultural da ação.
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão sociocultural da ação
■■ A dimensão missional da ação
163

INTRODUÇÃO

Chegamos ao nosso terceiro exemplo de interpretação de textos do Antigo


Testamento. Você já deve ter reparado que a Fase Preparatória mescla dois tipos
de atividades: (a) uma mais simples, que é baseada na atenção que prestamos aos
detalhes do texto – a delimitação, segmentação e estruturação; e (b) uma mais
complexa, que é a construção do contexto em que o livro bíblico foi escrito. A
compreensão do contexto bíblico é algo que você deve construir ao longo de seus
estudos sobre a Bíblia, até o fim de sua vida. Quanto mais você estudar a Bíblia e o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mundo da Bíblia, tanto mais você será capaz de reconstruir os contextos bíblicos.
Nosso texto é o de Jeremias 31:27-34. Parte deste texto é bem conhecida, pois
é citada várias vezes em o Novo Testamento – trata-se da seção que fala sobre a
nova aliança (versos 31-34). Nosso hábito é o de ler esses versos isoladamente,
como se fossem uma perícope. Entretanto, você verá que é importante não só ler
estes versos junto com os versos 27-30, mas também que é importante ler esta
perícope em diálogo com os capítulos 30-31 de Jeremias e, em última instân-
cia, ler à luz de todo o livro de Jeremias. Mais uma vez quero insistir: o hábito
de ler perícopes não pode nos deixar de estudar os textos ‘dentro’ do livro do
qual eles fazem parte!
O estudo de Jeremias 31:27-34 nos traz não só temáticas teológicas impor-
tantes, mas também nos permite refletir mais intensamente sobre as dimensões
sociocultural e psicossocial dos textos bíblicos. Costumeiramente focamos na
dimensão teológica e na dimensão missional, mas a plena interpretação de tex-
tos bíblicos demanda que prestemos igual atenção a estas duas dimensões – e
que as estudemos a partir do texto e não a partir da bibliografia. Em certo sen-
tido, estas duas dimensões equivalem ao que chamamos de contexto de um texto
bíblico – pois ao analisá-las nós estamos, de fato, interpretando como o texto vê
a sua realidade e como devemos viver a nossa realidade.

Introdução
164 UNIDADE IV

FASE PREPARATÓRIA: CONTEXTO, TEXTO,


DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Para iniciar a fase preparatória, vejamos o texto base de nosso estudo.

Texto Hebraico e Tradução

28
‫ָאדם ו ְֶז ַ֥רע ּבְהֵ ָמֽה׃‬
֖ ָ ‫ְהּודה ֶז ַ֥רע‬ ָ ֔ ‫ת־ּבית י‬ ֣ ֵ ֶ‫ת־ּבית י ִׂשְ ָראֵ ֙ל ו ְא‬ ֤ ֵ ֶ‫הּנ֛ה י ִ ָ֥מים ּב ִ ָ֖אים נְאֻ ם־י ְה ָו֑ה וְז ַָרעְּתִ֗ י א‬ ֵ
‫ֵיהם ִלבְנ֥ ֹות‬ ֛ ֶ ‫ו ְהָ ֞י ָה ּכַאֲ ֶ ׁ֧שר ׁשָ ַ ֣קדְ ּתִ י עֲ לֵיהֶ֗ ם ִלנ ְ֧תֹוׁש ו ְ ִלנ ְ֛תֹוץ וְלַהֲ ֖ר ֹס ּולְהַ אֲ ִ ֣ביד ּולְהָ ֵ ֑רעַ ֵ ּ֣כן אֶ ׁשְ ֧ק ֹד עֲ ל‬

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
‫ ִ ּ֛כי‬30 ‫ָאבֹות ָ ֣אכְלּו ֑ב ֹסֶ ר ו ְׁשִ ֵּנ֥י ב ִָנ֖ים ּתִ קְ ֶהֽינָה׃‬ ֖ ‫ ַּבּי ִ ָ֣מים הָ הֵ֔ ם ֹלא־י ֹאמְ ֣רּו ֔עֹוד‬29 ‫ו ְ ִלנ ְ֖טֹועַ נְאֻ ם־י ְה ָו ֽה׃‬
‫ הִ ֵּנ֛ה י ִ ָ֥מים ּב ִ ָ֖אים נְאֻם־י ְה ָו֑ה וְכ ַָרּתִ֗ י‬31 ‫ָֽאדם הָ א ֵ ֹ֥כל הַ ּ֖ב ֹסֶ ר ּתִ קְ ֶ ֥הינָה ׁשִ ּנָ ֽיו׃ ס‬֛ ָ ‫ָל־ה‬
ָ ‫אִם־איׁש ּבַעֲֹונ֖ ֹו י ָ֑מּות ּכ‬ ִ֥
‫ִיקי‬ ֣ ִ ‫אֲׁשר ָּכ ַ֙רּתִ ֙י אֶ ת־אֲבֹותָ֔ ם ּבְיֹו ֙ם הֶ חֱ ז‬֤ ֶ ‫ ֹ֣לא ַכּב ְִ֗רית‬32 ‫ְהּודה ּב ִ ְ֥רית חֲ דָ ָׁשֽה׃‬ ֖ ָ ‫ת־ּבית י‬ ֥ ֵ ֶ‫ת־ּבית י ִׂשְ ָר ֵ ֛אל ו ְא‬
֧ ֵ ֶ‫א‬
‫ ִ ּ֣כי ֣ז ֹאת‬33 ‫ִיאם מֵ ֶ ֖א ֶרץ מִ צ ָ ְ֑רי ִם אֲׁשֶ ר־הֵ֜ ּמָ ה הֵ ֵ ֣פרּו אֶ ת־ּב ְִריתִ֗ י ו ְָאנ ִ ֹ֛כי ּב ַ ָ֥עלְּתִ י ָ ֖בם נְאֻם־י ְה ָו ֽה׃‬ ֖ ָ ‫ְבי ֔ ָָדם לְהֹוצ‬
‫ת אֶ ת־ ֵּב֙ית י ִׂשְ ָראֵ֜ ל ַאחֲ ֵר֙י הַ ּי ִ ָ֤מים הָ הֵ ֙ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה נ ַ ָ֤תּתִ י אֶ ת־ּתֽ ָֹורתִ ֙י ּבְקִ ְר ָּ֔בם‬ ֩ ֹ ‫הַ ּב ְִ֡רית אֲ ֶ ׁ֣שר אֶ כְר‬
‫ת־רעֵ֜ הּו‬ ֵ ֶ‫ ו ְֹ֧לא יְלַּמְ ֣דּו ֗עֹוד ִ ֣איׁש א‬34 ‫יּו־לי ל ְָעֽם׃‬ ֥ ִ ְ‫ו ְעַ ל־ל ָ ִּ֖בם אֶ כְּתֲ ֶ ֑בּנָה ו ְהָ ִי֤יתִ י לָהֶ ֙ם ֵלֽאֹלהִ֔ ים ו ֵ ְ֖הּמָ ה ִי ֽה‬
֙‫ֵאמ ֹר ּדְ ֖עּו אֶת־י ְה ָו֑ה ִּכֽי־כּו ָּל ֩ם י ֵדְ עּ֙ו אֹותִ֜ י לְמִ קְ טַ ָּנ֤ם ו ְעַד־ּגְדֹו ָל ֙ם נְאֻם־י ְהו ָ֔ה ִ ּ֤כי אֶסְ לַח‬ ֔ ‫ו ִ ְ֤איׁש אֶת־ָאחִ י ֙ו ל‬
‫אתם ֹ֥לא אֶ ְזּכָר־עֽ ֹוד׃ ס‬ ֖ ָ ָ‫ו ְעַ ד־ּגְדֹו ָל ֙ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה ִ ּ֤כי אֶ סְ לַח֙ ַלֽעֲ ֹו ָ֔נם ּולְחַ ּט‬
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, on-line)1.

Tradução
27
eis que vêm dias, oráculo de YHWH, em que semearei a casa de Israel e a casa
de Judá com a semente de homens e de animais. 28 Como velei sobre eles, para
arrancar, para derribar, para subverter, para destruir e para afligir, assim vela-
rei sobre eles para edificar e para plantar, oráculo de YHWH. 29 Naqueles dias já
não dirão: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram. 30
Cada um, porém, será morto pela sua iniquidade; de toda pessoa que comer uvas
verdes os dentes se embotarão. 31 Eis aí vêm dias, oráculo de YHWH, em que fir-
marei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. 32 Não conforme
a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar
da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os
haver desposado, oráculo de YHWH. 33 Porque esta é a aliança que firmarei com
a casa de Israel, depois daqueles dias, oráculo de YHWH: Na mente lhes impri-
mirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


165

e eles serão o meu povo. 34 Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem
cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece a YHWH, porque todos me conhe-
cerão, desde o menor até ao maior deles, oráculo de YHWH. Pois perdoarei as
suas iniquidades e dos seus pecados jamais me lembrarei. (Traduzido pelo autor)

DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Antes de iniciarmos a delimitação, propriamente dita, alguns comentários sobre


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a natureza dos livros proféticos.

Questão Preliminar

Este texto é um exemplo perfeito para discutirmos alguns aspectos mais técnicos
da composição dos livros proféticos do Antigo Testamento. Já vimos, no estudo
de Isaías 1:21-28, que os livros dos profetas são coletâneas de pregações de um
profeta e seus discípulos e esse processo de colecionar pregações pode durar até
várias gerações. Sabemos que a noção de autor no mundo antigo era diferente da
nossa – para eles, autor pode ser a pessoa que inspirou um escrito, pode ser a pes-
soa que iniciou uma tradição discursiva, pode ser a pessoa que escreve partes de
um livro, ou mesmo a pessoa que escreve todo um livro. No caso dos livros profé-
ticos, há vários indícios de que, com raras exceções, o livro que recebe o nome de
um profeta corresponde a uma obra em que o autor é o iniciador de uma tradição
teológica ou discursiva. E assim é no caso de Jeremias. Ademais, o livro de Jeremias
também nos ajuda a conhecer outro fator da realidade da época: poucas pessoas
sabiam efetivamente ler e escrever. O próprio Jeremias não escrevia suas pregações
– o livro nos informa que um escriba fazia esse trabalho para ele, cujo nome era
Baruque. Aprendemos, também, no livro de Jeremias, que a obra de um profeta
poderia ser contestada pelas autoridades (do palácio e do Templo) e que o pró-
prio profeta poderia ser preso e seus escritos queimados ou banidos de circulação.
Outro aspecto peculiar desse livro que nos ajuda a aprender sobre questões
de escrita e editoração dos livros bíblicos é a diferença entre o Texto Massorético
(TM) a Septuaginta (LXX).

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


166 UNIDADE IV

TM é o texto hebraico preservado por escribas medievais, com o acréscimo


dos sinais vocálicos – a base de nossas Bíblias Hebraicas atuais é do século
XI d.C., mas se supõe que o TM representa uma tradição muito antiga de
manuscritos, provavelmente dos primeiros séculos antes de Cristo. LXX é a
tradução da Bíblia Hebraica para o grego, feita em Alexandria, Egito, no se-
gundo e primeiro séculos a.C.
Fonte: o autor.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Bem: o texto de Jeremias na LXX é cerca de 1/8 mais curto do que o texto do TM
(e.g.: faltam, na LXX, 33:14-26; 39:4-13; 51:44b-49ª; 52:27b-30 – além de frases
e epítetos de YHWH), e a ordem dos capítulos também é diferente – na LXX
a ordem é capítulos 1-25 + 46-51 = 26-45 + 52. Também ressalta à vista que a
composição do livro é bem complexa, aparentemente sendo o resultado do ajun-
tamento de pequenas coleções de pregações de Jeremias. Os capítulos 30-31 do
TM são os capítulos 37-38 da LXX.
Por fim, o livro de Jeremias também nos ajuda a perceber um aspecto impor-
tante da sociedade judaica do período exílico em diante: a nova importância dada
ao texto escrito. Enquanto antes da conquista babilônica a pregação dos profe-
tas era principalmente oral, a partir de Jeremias e Ezequiel a pregação profética
já incorporava a escrita como meio de comunicação:
“[...] Jeremias, que viveu pouco menos de um século depois [de Isaías],
não fala em discípulos, mas em um secretário ou escriba, Baruque (Jr
36:4.32). Jeremias deixou de ser um personagem importante para dis-
por de um secretário. De fato, Jr 36 é um capítulo significativo, porque
o elemento mais importante que aparece nele não é a pessoa do profeta,
mas um ‘rolo’. Jeremias dita um ‘rolo’ a seu secretário Baruque (Jr 36:1-
4) que o lê no Templo diante do povo e de alguns notáveis (36:5-10). Ele
o lê, de novo, perante os ‘príncipes’, ou seja – com toda a probabilidade
– diante dos funcionários da corte (Jr 36:11-20). Os príncipes, a seguir,
leem o rolo para o rei Jeoaquim, que manda queimar o livro e tenta,
sem sucesso, prender o profeta (36:21-26). Por ordem de Deus Jeremias
dita de novo a Baruque os oráculos queimados pelo rei, aos quais acres-
centa uma nova série (36:27-32)” (SKA, 2012, p. 84).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


167

Do ponto de vista da datação da atuação do profeta Jeremias, o livro indica que


ele pregou nos últimos anos do reino de Judá e nos primeiros anos da dominação
babilônica sobre Judá – o que nos coloca entre 600 a.C. e 570 a.C. aproxima-
damente. Esse período de transição é responsável pelo fato de que no livro de
Jeremias temos predominantemente oráculos de juízo no livro, com apenas os
capítulos 30-31 oferecendo oráculos de salvação. Jeremias é, então, um dos pri-
meiros profetas de Judá a viver na transição entre o fim do reino e o começo da
dominação babilônica.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Uma boa apresentação dessas questões técnicas que envolvem o livro de


Jeremias pode ser encontrada em DILLARD, Raymond B. & LONGMAN III,
Tremper. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova,
2005, p. 277-284.
Fonte: o autor.

Delimitação, Segmentação, Estruturação

Quando prestamos atenção ao co-texto, notamos que o capítulo 32 inicia com


uma informação sobre a pregação de Jeremias no período do rei Zedequias, com
Jeremias na prisão (o que indica uma radical mudança de temática ou de perí-
cope). O capítulo 29 consta de uma carta que Jeremias enviou aos exilados, o que
também aponta para outros personagens. Finalmente, notamos que os capítulos
30-31, embora também se pareçam com uma coleção de pregações sem ligação
entre si, tem como tema geral a esperança e a renovação de Israel e de Judá –
formalmente no texto hebraico a expressão “‫( ”הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מים‬Eis que vem dias) marca
o início (30:3) e o fim (31:38) do Livrinho da Consolação. Por isso, os estudio-
sos em geral chamam estes dois capítulos de “O Livr(inh)o da Consolação” de
Jeremias. Note o início do capítulo 30 “A palavra do Senhor que veio a Jeremias,

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


168 UNIDADE IV

dizendo: Assim diz YHWH, Deus de Israel: Escreve em um livro as palavras


todas que te mencionei, pois eis que vêm dias, oráculo de YHWH, ...” e, ao longo
dos dois capítulos, a palavra ‘dia’ ou ‘dias’ é muito frequente, indicando de forma
bem concreta o tema da esperança ou da renovação. Uma conclusão provável
que podemos tirar destes dados é: os capítulos 30-31 foram compostos como
uma espécie de panfleto da restauração de Israel e de Judá, sendo usado pelos
discípulos de Jeremias para pregar e motivar seus ouvintes à reflexão e à ação em
resposta à promessa de Deus em renovar a vida do povo após o juízo (ou seja, a
destruição de Jerusalém e a dominação babilônica). Fica a pergunta – por que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
esses capítulos foram inseridos nesse lugar no livro de Jeremias? Aparentemente
foram colocados aqui para que a mensagem de esperança não fosse desligada
da pregação de juízo e os ouvintes de Jeremias deixassem de perceber por que o
exílio e a destruição de Judá (o capítulo 29 é carta para os exilados e o capítulo
32 é mensagem para o rei e os líderes em Jerusalém, ambos apontando para o
juízo e para a esperança).
Assim, você já deve ter percebido os argumentos para a delimitação da perí-
cope: (a) o capítulo 32 inicia claramente uma nova temática, com novas pessoas,
novos lugares e vocabulário (o que não anula o fato de que os caps. 32-33 têm
uma importante ligação com 30-31 pois ambos também tematizam esperança e
perdão), (b) os versos anteriores a 31:27 não apresentam a palavra ‘dias’, assim
como os versos 35-40 do capítulo 31 tratam de outro tempo e espaço, bem como
desparecem as casas de Israel e de Judá e entra em cena ‘a cidade’ (apesar do uso
de “‫ ”הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מים‬em 31:38, que é mais indicador do final do Livrinho do que de
unidade do trecho 31:27-40). A segmentação da perícope é bem clara: dois seg-
mentos iniciados ‘‫( ’ּב ִ ָ֖אים נְאֻ ם־י ְה ָו֑ה *ו ְ הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מים‬o asterisco antes do waw lembra
que o verbo que acompanha o waw é diferente nos dois textos): 27-30 e 31-34 –
ambos também com duas partes: 27-28+29-30; 31-33+34 – sendo que no início
de cada segunda parte também temos uma expressão temporal: ‘naqueles dias”
(v. 29) ‘depois daqueles dias’ (v. 33). Ambos os segmentos também tem como
destinatários “casa de Israel e casa de Judá” e ambos são unidos conceitualmente
pelo par culpa-perdão que passa a ser individualizado (não mais se fará a culpa-
bilidade ou o perdão a partir da coletividade, mas do indivíduo como membro
da coletividade).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


169

A estruturação da perícope é, então, a de um paralelismo sinonímico:

A 27-30 Dias veem – semearei


27-28 – Retorno do Cativeiro
29-30 – Novo Relacionamento

B 31-34 Dias vem – farei nova aliança


31-32 – Nova Aliança
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

33-34 – Novo Relacionamento

REALIDADE E CONTEXTO DO LIVRO DE JEREMIAS - A


MODERNIDADE JUDAICO-ISRAELITA

Sobre a realidade da época de Jeremias, podem ser consultadas as histórias de


Israel que tratam do chamado período exílico, bem como a Introdução ao Antigo
Testamento de Dillard e Longman já citada. Em síntese, podemos lembrar que: (a)
Jeremias prega durante os últimos anos do reino de Judá antes de sua conquista
e anexação ao império pelos babilônios; (b) a conquista babilônia teve como um
dos efeitos a deportação de quase toda a elite governamental, sacerdotal, militar
e econômica de Jerusalém, que ficou uma cidade praticamente desabitada e ina-
tiva; (c) a reorganização política e econômica de Judá e Jerusalém no período da
vida de Jeremias foi muito complicada e não teve grande sucesso; (d) eventual-
mente Jeremias foi obrigado a mudar-se para o Egito, seguindo alguns líderes
de Jerusalém que não conseguiram se adaptar ao governo imperial babilônico.
Do ponto de vista do contexto, podemos olhar para o período do livro de
Jeremias como um período que é possível nomear de a modernidade judaico-is-
raelita. Uso o termo modernidade, aqui, de modo provocador. Costumeiramente
nomeia-se Modernidade como o período iniciado com os movimentos inte-
lectuais da Renascença e Reforma e com os movimentos de democratização
na Europa a partir do século XVI d.C.). Na descrição padrão da Modernidade,
há um evidente juízo de valor negativo em relação aos tempos pré-modernos,

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


170 UNIDADE IV

subdesenvolvidos intelectualmente e politicamente em relação aos tempos moder-


nos. Adotando um viés não teleológico-desenvolvimentista, considero legítimo
falar em uma Modernidade nesse período entre os séculos VII e V a. C., posto
que nesse período encontramos uma profunda alteração no modo de conceber
a relação das pessoas entre si e com as divindades – um modo focado no indi-
víduo e não na coletividade. É claro que, do ponto de vista tecnológico e das
instituições políticas, este período não é moderno (ocidental). Entretanto, sua
nova visão da pessoa humana o caracteriza adequadamente como moderno, é
claro, usando provocativamente o termo, para desconstruir o elemento teleoló-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
gico presente nas descrições padrão da história ocidental.
O questionamento da descrição-padrão da Modernidade não é inédito.
Podemos perceber já em Max Weber, sem a nomenclatura aqui adotada, uma
perspectiva de longa duração mediante a qual ele descreve o processo de desen-
cantamento do mundo como tendo sido iniciado entre os profetas de Israel:
“[...] aquele grande processo histórico-religioso de desencantamento
do mundo, que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em
conjunto com o pensamento científico helenístico, repudiava como
superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação,
encontrou aqui sua conclusão” (WEBER, 2004, p. 96).

Daí, o uso provocativo do termo para me referir a esse período da história humana.
Apresentarei uma síntese conceitual do que chamo de modernidade judaico-
-israelita, ou seja, o novo lugar do indivíduo nas relações sociais e com o divino
(baseada principalmente em Dt 7,9-10; 24,16; Jr 31,27-37 e Ez 18,1ss). O obje-
tivo é mostrar como uma nova – moderna – descrição da relação da pessoa com
Deus e, consequentemente, com outras pessoas, está presente nesses textos, tes-
temunhando uma significativa transformação do modo tradicional da descrição
dessas mesmas relações. Ao usar o termo transformação, porém, não estou afir-
mando que ocorreu eliminando o modo tradicional. À luz da história posterior
de Judá, é mais adequado afirmar que esta transformação é mais teórica do que
prática. Semelhantemente, não postulo nenhum tipo de unidade teológica entre
esses diferentes escritos e seus respectivos projetos identitários.
Antes de apresentar minha descrição, vejamos avaliações similares na pes-
quisa recente. A avaliação genérica de Gerstenberger pode ser invocada aqui,

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


171

independentemente de aceitarmos plenamente a descrição que ele faz da cul-


tura judaico-israelita do período exílico e pós-exílico:
“[...] podemos, portanto, afirmar que, na época exílica e pós-exílica, a
fé em Javé assumiu, sob a influência das novas estruturas comunitárias,
feições bem mais pessoais, se comparada com teologias tribais e esta-
tais. Em analogia às antigas divindades da família, Javé tornou-se a alte-
ridade pessoal para cada membro, individualmente” (GERSTENBER-
GER, 2007, p. 267s.)

Semelhantemente, a descrição de Levinson é impactante, mesmo que não con-


cordemos plenamente com ela:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

“[...] embora celebrado amplamente em textos-padrão de Teologia do


Antigo Testamento pelo seu foco sobre o indivíduo, a formulação de li-
berdade em Ezequiel representa um marco comumente não reconheci-
do na história do pensamento. A despeito de sua terminologia religiosa,
é essencialmente moderno em sua estrutura conceitual. Graças ao seu
poderoso engajamento crítico com conceitos previamente existentes,
ela equivale a uma teoria da ação humana que rejeita o determinismo,
afirma a responsabilidade individual pela própria conduta no presente
e exalta a importância da escolha moral” (LEVINSON, 2008, p. 67).

Não só em Israel, mas em todo o Antigo Oriente, em seu período “pré-moderno”


a unidade social e legal era a família extensa rural e patriarcal, de modo que a res-
ponsabilidade financeira e criminal do pai de família se estendia a todos os seus
membros, que podiam ser escravizados e até executados por causa dos erros do
chefe da unidade familiar. Nesse tipo de arranjo social, o indivíduo é uma parte
da família, é esta quem constitui a identidade e a ela se subordina a identidade
pessoal ou individual. O indivíduo é subordinado à estrutura familiar hierárquica
– neste contexto vétero-oriental, patriarcal – o domínio do pai. Nas Escrituras
judaicas há vários exemplos de filhos pagando pelos erros de seus pais, mas um
único exemplo de um pai pagando com a morte o erro de um filho (Gn 34 que
narra a vingança dos filhos de Jacó contra Hemor por ter seu filho, Siquém,
violado Diná). A simbolização teológica dessa forma sociocultural de relações
jurídicas se encontra em um importante credo judaico-israelita, do qual Dt 7,9-
10 é uma forma moderna: “YHWH, YHWH, Deus de ternura e de piedade, lento
para a cólera, rico em graça e fidelidade; que guarda sua graça a milhares, tolera
a falta, a transgressão e o pecado, mas a ninguém deixa impune e castiga a falta

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


172 UNIDADE IV

dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até a terceira e a quarta geração” (Êx
34,6-7); “YHWH é lento para a cólera e cheio de amor, tolera a falta e a trans-
gressão, mas não deixa ninguém impune, ele que castiga a falta dos pais nos filhos
até a terceira e quarta geração” (Nm 14,18); “Não te prostrarás diante desses deu-
ses e não os servirás, porque eu, YHWH teu Deus, sou um Deus ciumento, que
puno a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e a quarta geração dos que me
odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para com aque-
les que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20,5-6 = Dt 5,9-10).
Estas formulações tradicionais destacam o caráter transgeracional da punição

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
até a terceira e a quarta geração, que demarcam claramente o padrão tradicional
da família extensa rural em que até quatro gerações viviam juntamente nas ter-
ras do pai – padrão que será quebrado pelo crescente processo de urbanização e
reterritorialização rural a partir da dominação assíria sobre Judá, bem como pela
nova condição dos judaítas após a destruição de Jerusalém, que passam a se per-
guntar por que estão pagando pelos erros de seus pais/antepassados. Vejamos,
então, como se dá a formulação moderna dessas relações.
Encontramos em forma sintética as bases da Modernidade judaico-israelita
em quatro textos inter-relacionados: “Saberás, portanto, que YHWH teu Deus
é o único Deus, o Deus fiel, que mantém a aliança e o amor por mil gerações em
favor daqueles que o amam e observam os seus mandamentos; mas também é o
que retribui pessoalmente (usando uma expressão hebraica que significa ‘diante
da face de’) aos que o odeiam: faz com que pereça sem demora aquele que o
odeia, retribuindo-lhe pessoalmente” (Dt 7,9-10); “Os pais não serão mortos
em lugar dos filhos, nem os filhos em lugar dos pais. Cada um será executado
por seu próprio crime” (Dt 24,16); “Nesses dias já não se dirá: ‘os pais comeram
uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram’. Mas cada um morrerá por sua
própria falta. Cada pessoa que tenha comido uvas verdes terá os dentes embo-
tados” (Jr 31,29-30); e “A palavra de YHWH me foi dirigida nestes termos: ‘que
vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘os pais comeram uvas
verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados’?’. Por minha vida, oráculo do
Senhor YHWH, não repetireis jamais este provérbio em Israel. Todas as pessoas
me pertencem, tanto a do pai, como a do filho. Pois bem, a pessoa que pecar,
esse morrerá” (Ez 18,1-4).

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


173

O primeiro texto (Dt 7,9-10) se destaca na medida em que a formulação


transgeracional-familiar é substituída pela sincrônica-pessoal, ressaltando-se o
fato de que mesmo nos textos deuteronomistas do Decálogo a fórmula tradicio-
nal é mantida. O princípio jurídico da execução pessoal em Dt 24,16 não só se
destaca pelo seu conteúdo, mas também por sua localização estrutural no cha-
mado Código Deuteronômico, posto que não está nas seções que tratam dos
crimes passíveis de pena de morte e se encontra no centro estrutural das nor-
mas dos caps. 24-25, que tratam das relações interpessoais do povo de YHWH,
emolduradas por normas à relação com não-israelitas (24,5 e 25,17-19). Estes
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

textos revelam as modificações internas ao deuteronomismo em sua maneira de


conceber a sociedade e o lugar do indivíduo nela e nas relações com o divino.
Sugerem que tal mudança não se deu em um curto espaço de tempo, nem foi
aceita com facilidade e rapidez – como é comum em mudanças culturais dessa
amplitude. Os textos de Jeremias e Ezequiel provêm de outro ambiente textual,
mas testemunham – interdiscursivamente – do mesmo processo de transição
para a modernidade. A punição de YHWH não deve mais ser concebida como
transgeracional e familiar, mas como pessoal e imediata. Em Jeremias 31 essa
mudança é ampliada e aprofundada pelo conceito da nova aliança, que também
ataca a visão tradicional da mediação sacerdotal entre YHWH e seu povo – seja
no ensino, seja no perdão – e afirma a modernidade das relações entre Deus e
povo, mediante a escrita da torah na mente e coração das pessoas e mediante o
perdão direto dos pecados por YHWH – que combate o monopólio sacerdotal
do perdão e do ensino da torah (“Porque esta é a aliança que firmarei com a casa
de Israel depois desses dias, oráculo de YHWH: porei minha lei no fundo de seu
ser e a escreverei em seu coração, então serei seu Deus e eles serão meu povo.
Eles não terão mais que instruir seu próximo ou seu irmão, dizendo: ‘conhece a
YHWH’, pois todos me conhecerão, do menor até o maior, oráculo de YHWH,
porque perdoarei sua culpa e não mais me lembrarei de seu pecado” Jr 31,33-34).
A “nova aliança” de Jeremias, então, juntamente com os demais textos acima
mencionados aponta socioculturalmente para: (a) uma estrutura social pós-con-
vencional, baseada em famílias de indivíduos e não mais em famílias coletivas, o
que coloca a relação entre o crente e YHWH no âmbito pessoal e não institucio-
nal; e (b) o fim do monopólio monárquico-sacerdotal sobre a instrução (torá) e o

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


174 UNIDADE IV

perdão dos pecados, reforçando a pessoalidade da relação individual com YHWH,


que não precisa da mediação institucional para se concretizar. Em Ezequiel 18 o
ideário de uma nova “aliança” está presente, embora com formulação textual dis-
tinta: “Por isso mesmo eu vos julgarei, a cada um conforme o seu procedimento,
ó casa de Israel, oráculo do Senhor YHWH. Convertei-vos e abandonai todas as
vossas transgressões; não torneis a buscar pretexto para fazerdes o mal. Lançai
fora todas as transgressões, moldai um coração novo e um novo espírito. Por que
haveis de morrer, ó casa de Israel? Eu não tenho prazer na morte de quem quer
que seja, oráculo do Senhor YHWH. Convertei-vos e vivereis” (Ez 18,30-32).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Essa mudança de modo de ser, enfim, foi fundamental para que a guarda
do sábado, a prática da circuncisão e as restrições alimentares transcendessem
os diversos projetos identitários em disputa e se firmassem, progressivamente,
como as marcas mais explícitas da diferenciação entre judeus-israelitas e seus
outros. Estes três rituais culturais inscrevem no próprio corpo a identidade em
construção e tornam-na independente do território – em qualquer lugar podem
ser praticados, independem da presença de um Templo e de um sacerdócio para
legitimá-los. Em meio às incertezas do período, em meio à reterritorialização
dispersa do povo, em meio às disputas internas por hegemonia, em meio à impo-
sição de um novo idioma, o Israel de YHWH precisava de portos seguros para a
reconstrução de sua identidade. Institucionalmente, o Templo e a Torá serão as
âncoras da nova identidade; pessoalmente, o sábado, a circuncisão, a alimentação.
Vemos, então, nesses textos, uma espécie de tríade, como a descrita por
Levinson, acima, que “rejeita o determinismo, afirma a responsabilidade indivi-
dual pela própria conduta no presente e exalta a importância da escolha moral”
(LEVINSON, 2008, p. 67), embora mereça uma formulação teoricamente mais
adequada. Não é tanto o determinismo que é rejeitado, mas a supremacia do
senhor (o pai das bet avot e seus equivalentes nas instâncias sociais acima da
família) e a consequente subordinação religiosa e legal dos membros da famí-
lia à sua autoridade – ou seja, questiona-se a ordem convencional hierárquica
das relações sociais e políticas. Não é tanto a escolha moral que se exalta, mas,
sim, a internalização da relação com YHWH, que questiona o papel tradicional
dos intermediários religiosos entre Deus e seu povo, especialmente o monopó-
lio existencial-religioso da sociedade convencional pré-axial. Afirma-se, sim, a

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


175

responsabilidade individual, mas não só pela própria conduta no presente, des-


taca-se também a solidariedade do povo e seu futuro diante de YHWH, posto
que não se trata de individualismo e presenteísmo (estes, sim, modos de pen-
sar e agir da modernidade ocidental), e sim de uma nova aliança, de um novo
coração-espírito que está se forjando – ou, em termos nossos contemporâneos,
de uma nova identidade pessoal e sociocultural pós-convencional.
A adoção deste modo “moderno” da relação com Deus, porém, não concreti-
zou a passagem da religião judaica de um “culto comunitário” a uma “comunidade
religiosa”, tendo em vista que não se consumou a passagem para o individualismo e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

para a privatização da religião. Somente com a destruição do Templo de Jerusalém


pelos romanos em 70 d.C. e com o advento do Cristianismo é que temos duas for-
mas de religião judaica que podem ser descrita como “comunidade religiosa”: o
Cristianismo, que, separando-se de sua matriz judaica, funciona como uma “reli-
gião messiânica de salvação” e o Judaísmo rabínico que permite ao povo judeu
disperso manter a sua identidade religiosa mesmo na impossibilidade de viver na
sua própria terra com sua própria nação e seu próprio governo e instituição reli-
giosa baseada no Templo. Como uma religião de salvação precisa de uma “alma
perdida” para se estabelecer, a fé em YHWH recebeu o impulso da destruição do
estado e do templo para se mover nessa direção mediante a confissão do pecado.
Entretanto, a manutenção da estrutura familiar das bet avot e da estrutura polí-
tica na forma de província (ou qualquer denominação adequada) de um império,
brecou tal avanço, mantendo, lado a lado, os modos moderno e pré-moderno de
fé em YHWH. Isto explica por que a identidade étnica religiosa monocêntrica
impediu a concretização da transformação ‘moderna’ iniciada, assim como a uni-
versalização da fé em YHWH. A modernidade judaico-israelita tornou-se uma
força subterrânea dentro do ‘culto comunitário’ e só conseguiu florescer como
religião salvífica após a dissolução da comunidade política judaica pelo império
romano. Neste sentido, o cristianismo primitivo é uma testemunha da adoção da
‘modernidade’ pelos israelitas que acreditaram que Jesus era o Messias.
Procurei destacar nessa descrição do contexto, o aspecto inovador e radical
que envolve a pregação de Jeremias e de Ezequiel, como uma das respostas ao
complexo e assustador período do final do reino de Judá e do início da domi-
nação imperial babilônica.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


176 UNIDADE IV

RELAÇÕES INTERTEXTUAIS E INTERDISCURSIVAS

Passemos ao estudo das relações interdiscursivas.

Relações Intratextuais

Livrinho da consolação
Como mencionado anteriormente, os capítulos 30-31 de Jeremias foram nomea-
dos como Livrinho (ou Livro) da Consolação, em função da presença intensa da

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
esperança e promessas de restauração (embora os caps. 32-33 também tematizem
a esperança, a estruturação literária e o vocabulário apontam para a ‘indepen-
dência’ desses dois capítulos 30-31). Após a introdução em 30:1-2, a ‘pregação’ de
Jeremias começa em 31:3 com uma expressão que retornará em 31:38 formando
a moldura do livro (você já sabe que essa expressão também aparece em outras
partes do Livrinho): “‫ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה ֠ ִּכי הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מים‬
֙ ‫”ּבָאִ י‬. O ‘oráculo de YHWH’ tem
como seu conteúdo básico a volta dos exilados (30:3-11) e a lembrança de que
esse exílio foi a justa punição para a infidelidade de Israel (30:12-24). Enquanto o
capítulo 30 foca os exilados, o capítulo 31 expande o foco para ‘todas as famílias
de Israel’ (31:1ss), promovendo um ‘ir-e-vir’ entre ‘todas as famílias’, os exilados
(31:8-22), as ‘cidades’ (31:23-26), as ‘casas de Israel e de Judá’ (31:27-34), todo o
Israel (31:35-37) e a cidade de Jerusalém (38-40).
A lógica teológica desses capítulos é clara: (a) YHWH é fiel ao seu compromisso
com Israel e perdoará seu pecado e restaurará sua sorte; (b) Israel pecou continu-
amente e foi infiel à aliança com YHWH; (c) Somente o próprio YHWH poderá
restaurar a sorte de seu povo e
Ele o fará mediante uma nova
aliança, assim como o fizera no
êxodo do Egito. Os três elementos
dessa lógica teológica podem ser
vistos espalhados em todo o livro
de Jeremias – e na seção seguinte
indicarei os principais textos que
manifestam essa presença.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


177

Uma boa síntese da lógica do Livrinho é a seguinte:


“[...] a motivação por detrás da tarefa de escrita em Jr 30:3 continua
em 31:27-34. Esta motivação se concentra em três ações consecutivas:
retorno, restauração e mudança interior. YHWH promete que o povo
irá retornar, será restaurado e será renovado; e agora, para dar a esta
promessa um maior ímpeto, as palavras poéticas de Jeremias em 30:5-
31:26 tiveram de ser registradas em escrito para as futuras gerações.
Este parece ser o modo mais lógico de ler a complexidade [do Livri-
nho] como um todo” (LEENE, 2014, p. 214).

Vínculos com outras seções do livro de Jeremias


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A promessa de semeadura de pessoas e animais (crescimento da população),


no verso 27, retoma textos como Jr 3:16 e 23:3 e reverte o peso da condenação
sobre pessoas e animais presente em textos como Jr 7:20; 9:10; 21:6; cf. 32:43;
33:10. No verso 28 temos uma clara alusão a Jr 1:10-12, apontando para a che-
gada do momento novo da ação de YHWH – de edificar e plantar, não mais o
momento de derrubar e destruir.
Nos versos 29-30 a menção aos pais retoma textos como Jr 3:16 e 16:14–15
(= 23:7–8), destacando a novidade que se dará na vida sociocultural de Judá.
As casas de Israel e de Judá são colocadas sob juízo em Jr 5:11 e 11:10.17, e sob
promessa em 3:18 e 33:14, bem como em 50:4-5 elas participam do retorno dos
exilados a Sião lembrando-se da aliança ‘eterna’ de YHWH.
A referência ao Egito e à aliança em 31ss. retoma textos como 7:22.23.25 (os
erros dos ‘pais’ em relação à aliança); 11:1-17 (a constante infidelidade dos ‘pais’,
que receberam a torah mas não a cumpriram, infidelidade que se estende até os
próprios dias de Jeremias) e 16:14–15 (= 23:7–8), que falam de um novo êxodo, ou
seja, a reunificação de Judá e Israel. Há também uma alusão a 2:1ss no oráculo que
condena governantes, sacerdotes e profetas por ignorarem a Torá de YHWH e não
a ensinarem ao povo. O ‘coração’ como metáfora da pessoa é usado no capítulo 17
várias vezes, mas descrito como enganoso e infiel a YHWH – o contrário do novo
coração na nova aliança. A frase “farei uma aliança” do verso 31 é idêntica à de Ex
34:10. A expressão ‘desde o maior até ao menor’ já aparecera em Jr 6,11-13. Por
fim, a fórmula da aliança “eu serei vosso Deus e vós sereis meu povo” é usada tam-
bém em 7:23; 11:34 (nestas duas passagens se refere à aliança antiga); 24:7; 30:22;
31:1 e 32:38 (nestas quatro se refere à aliança prometida). O oráculo em 32:30-44

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


178 UNIDADE IV

é especialmente vinculado a este por sua lógica: (a) Os ‘filhos de Israel e de Judá’
foram costumeiramente infiéis a YHWH; (b) Tendo esgotada a sua longanimidade,
YHWH derrama sobre esses ‘filhos’ o juízo do fim do Estado e da deportação; (c)
YHWH, porém, é fiel à sua aliança com os ‘filhos’ e a renovará (novo coração e dura-
ção eterna v. 38-40); (d) como expressão concreta da renovação da aliança YHWH
trará de volta os exilados e restaurará a sorte de todo o Israel (41-44).
A inscrição da torah nos corações e o perdão dos pecados estão em con-
traste com os duros oráculo de juízo nos capítulos 7-8 (especialmente 7:21-8:3
e 8:4-13) que denunciam reis, governantes, profetas, sacerdotes e escribas como

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
os principais responsáveis pela contínua infidelidade de Jerusalém (e Judá) a
YHWH. Em especial devemos destacar o contraste com 17:1 “O pecado de Judá
está escrito com um ponteiro de ferro e com diamante pontiagudo, gravado na
tábua do seu coração e nas pontas dos seus altares”.

Há uma ampla discussão na tradição acadêmica sobre a relação entre Je-


remias e a reforma de Josias – e, consequentemente, sobre a relação entre
a teologia do livro de Jeremias e a teologia do livro do Deuteronômio. Jr
8:8, por exemplo, é interpretado por vários estudiosos como se referindo de
modo condenatório à reforma de Josias – os escribas que levaram ao rei o
‘livro da lei’ seriam, de fato, falsificadores da lei. A compreensão do texto e
da teologia de Jeremias, porém, independe da solução a essa discussão que
permanece em aberto. Para mais informações sobre essa discussão, caso
você tenha interesse, consulte as Introduções ao Antigo Testamento ou as
Histórias de Israel acadêmicas.
Fonte: o autor.

A escrita da torah no coração pode, ainda, ser vista como o cumprimento da


palavra em Jr 24:7 “Dar-lhes-ei um coração para que possam saber que eu sou
YHWH”. Por que essa promessa? Porque o coração do povo de Jerusalém e de
Judá é infiel a YHWH e se afasta constantemente dele. Logo, somente um novo
coração pode ser a esperança para o povo de Deus: “Anunciai isto na casa de Jacó

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


179

e fazei-o ouvir em Judá, dizendo: 21 Ouvi agora isto, ó povo insensato e sem cora-
ção (discernimento), que tendes olhos e não vedes, tendes ouvidos e não ouvis. 22
Não temereis a mim? – oráculo de YHWH; não temereis diante de mim, que pus a
areia para limite do mar, limite perpétuo, que ele não ultrapassará? Ainda que se
levantem as suas ondas, não prevalecerão; ainda que estrondem, não o ultrapassa-
rão. 23 Mas este povo é de coração rebelde e desobediente; virou as costas e partiu. 24
Não dizem a seus próprios corações: Temamos agora YHWH, nosso Deus, que nos
dá a seu tempo a chuva, a primeira e a última, que nos conserva as semanas deter-
minadas da sega. 25 As vossas iniquidades desviam estas coisas, e os vossos pecados
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

afastam de vós o bem” (Jr 5:20-25 Tradução Própria). Notem que a palavra ‘coração’
ocorre três vezes nesta seção da perícope e se refere à própria essência da pessoa –
diríamos, em linguagem atual, sua consciência, sua identidade pessoal. Em outros
lugares Jeremias afirma a constante infidelidade a YHWH: 2:21-22; 3:10 e 13:23.
Um texto, em especial, ressalta essas relações intratextuais, pois fala da escrita
no coração em pleno contraste com 31:31ss – “O pecado de Judá está escrito
com um ponteiro de ferro e com diamante pontiagudo, gravado na tábua do
seu coração e nas pontas dos seus altares” (17:1). O verbo ‘gravar’ (luah) ocorre
pouco mais de 40 vezes no AT e em 29 delas se refere às tábuas da lei de Moisés
e a ‘pena’ que escreve a lei e a grava no coração é a mesma de Jr 8:8. O contraste,
então, é bem elaborado: no coração do povo está gravada a infidelidade – mesmo
quando o povo tem a Lei de Moisés à sua disposição, pois os responsáveis por seu
ensino a falsificam – por isso, somente YHWH poderá salvar o seu povo, escre-
vendo ele mesmo a sua torah nas tábuas de seu coração e não mais em tábuas de
pedra. (Note, como veremos nas relações interdiscursivas, que esta discussão de
Jeremias sobre o coração encontra eco em Ezequiel 36.)
É também intensa a relação polêmica da torah escrita no coração e do perdão
de pecados sem mediação com a infidelidade e falta de veracidade de profetas,
sacerdotes e escribas – ou seja, dos ‘profissionais institucionais’ da religião na
época de Jeremias: 2:8; 6:13; 8:10; 18:18; 23:11,33,34 (etc.). Igualmente, se con-
sultarmos uma concordância bíblica, buscando a palavra ‘mal’, veremos que
ela ocorre abundantemente em Jeremias e expressa a infidelidade a YHWH
bem como o juízo que sobrevirá ao povo infiel, liderado por corruptos e infi-
éis perante YHWH.

Fase Preparatória: Contexto, Texto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


180 UNIDADE IV

Enfim, a expressão ‘desde o maior até o menor deles’ ocorre várias vezes em
Jeremias, também ligada a contextos que vinculam o povo aos líderes religio-
sos: 6:13; 8:10; 42:1,8; 44:12. A expressão ocorre nove vezes em todo o Antigo
Testamento, das quais, seis aqui em Jeremias (as outras três são 1Sm 5:9; 30:2 e
2Rs 25:26).

Relações Interdiscursivas
A linguagem da aliança como ‘casamento’ retoma a terminologia de Oséias, que
deve ter servido como uma das fontes de inspiração da pregação de Jeremias –

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
principalmente por sua crítica ao sacerdócio como infiel à aliança de YHWH
e incapaz de ensinar corretamente a Torá ao povo de Deus (ver Oséias 1-4). A
seção sobre a não necessidade de profissionais religiosos para o ensino tam-
bém dialoga com Dt 6,4ss (o Shemá Israel), o qual os próprios pais ensinam os
filhos em casa e não os sacerdotes no templo. Também encontramos ecos de
Jeremias em Dt 30:1ss sobre o coração – mas no tocante ao Deuteronômio, as
relações não são plenamente contratuais: há concordância em termos gerais,
mas discordância nos termos específicos – para o Deuteronômio e para a tradi-
ção deuteronomista os escribas e os levitas são mediadores fundamentais para a
saúde religiosa de Israel. A semelhança com Ezequiel 18 (responsabilidade indi-
vidual) e 36 (nova aliança = novo coração) indica a circulação, em Judá na época
do final da monarquia e início do exílio, de um discurso crítico do monopólio da
instrução religiosa pelo sacerdócio. Como o texto de Jeremias é extremamente
sintético em comparação ao de Ezequiel, pode-se defender a hipótese de que a
pregação de Ezequiel sobre a nova aliança e sobre a responsabilidade individual
era conhecida por Jeremias e serviu de base para o seu texto. (Normalmente,
textos sintéticos são fruto de textos mais longos.) Em relação a Isaías 40-55 pode-
mos postular uma relação ‘diagonal’, ou seja, não há um intercâmbio direto entre
Jeremias e Isaías 40-55, mas ambos apresentam a restauração de Israel a partir
de uma nova ação de YHWH.
Esses discursos fazem parte do que chamei, na seção anterior, de a moder-
nidade judaíta. A nova forma de viver tem como pressuposto a culpabilidade
da geração da destruição – tema que circulava polemicamente no período de
Jeremias, certamente não aceito pela liderança sacerdotal e política de Judá – de

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


181

que os conflitos de Jeremias com o rei e o sacerdócio dão testemunho evidente.


Semelhantemente, o livro de Habacuque revela o conflito daquele profeta com
a culpabilidade de seu próprio povo e geração, de modo que a temática da culpa
diante da catástrofe certamente ocupava intensamente o ambiente discursivo de
Judá nos tempos de Jeremias.
A noção de responsabilidade individual e a da aliança ocupam papel impor-
tante nos discursos vétero-orientais do período de Jeremias, conforme a discussão
acadêmica sobre a Era Axial. Trata-se, então, de uma época da história humana
em que se refaz a noção do relacionamento entre ‘deuses’ e ‘seres humanos’, bem
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

como a relação entre ‘indivíduo’ e ‘coletividade’. Lembramos, ainda, que a noção


de ‘aliança’ para expressar a relação entre um rei mais poderoso e um rei inferior
era bastante usada tanto pelos assírios (dominadores de Canaã antes dos babi-
lônios) como pelos babilônios.
Em sentido mais genérico, a condenação de Jerusalém e Judá por causa do
pecado é comum na profecia pré-exílica e, embora com outras fundamentações,
na literatura deuteronomista (Dt; 1 e 2 Reis). Idolatria, infidelidade a YHWH,
culto hipócrita, injustiça social, governo corrupto e o consequente juízo divino
de destruição do reino são moeda corrente em Isaías, Sofonias, Amós, Oséias,
Jeremias e Miquéias. Por outro lado, a pregação de Jeremias – em sentido amplo
– se insere na terminologia discursiva das relações internacionais no Antigo
Oriente, que usava o termo da ‘aliança’ e do ‘juramento’ como expressões das
relações entre deuses e povos e entre povos e povos.

A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

Apresentarei apenas o resultado da análise. Você pode exercitar o uso do método


alistando as pessoas, os espaços e o tempos – bem como as ações, relações e carac-
terizações. Quanto ao significado dos termos, sempre que necessário, discutirei
na análise da dimensão teológica da ação.

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


182 UNIDADE IV

Pessoas:
O texto trata das relações entre YHWH, a casa de Israel e a casa de Judá: YHWH
anuncia que virá um novo tempo para a casa de Israel e para a casa de Judá, um
tempo em que a desgraça atual não mais será sentida. Um tempo em que Israel
e Judá serão novamente um só povo, uma só nação, mas não mais organizada
segundo os padrões que vigoraram até os dias de Jeremias.
A perícope apresenta a fala de YHWH explicando porque o tempo atual é um
tempo de juízo e desgraça: YHWH havia feito uma aliança com os ‘pais’ de Israel
e Judá, mas essa aliança foi rompida pelos líderes de Israel e Judá. Que aliança

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
fora essa? A aliança libertadora no Egito. Como ela foi rompida? (a) Mediante o
exercício do poder pelos reis de Israel e de Judá, que negaram a justiça que seria
o efeito da libertação – em termos teológicos: quebraram a aliança com YHWH
ao oprimir o povo; (b) Mediante o exercício do saber por um sacerdócio infiel
a YHWH, que mantinha o povo afastado da liberdade e da fidelidade a YHWH
e legitimava a dominação monárquica sobre a terra e a população de Judá; e (c)
mediante a noção de culpabilidade coletiva e não individual.
Finalmente, destaca a individualidade e a interiorização da relação entre
YHWH e seu povo – uma aliança em que a torá de YHWH estará ‘escrita’ no
interior de cada pessoa e uma nova vida estará igualmente disponível a cada pes-
soa dentro dessa aliança, sem a mediação dos profissionais religiosos.

Espaço:
Esta perícope não apresenta, explicitamente, termos relativos a lugares - a não ser
que consideremos “casa de Israel e casa de Judá” como termos espaciais - são melhor
compreendidos como designação de ‘pessoas’ e não de ‘espaços’. A espacialidade
é praticamente deixada ‘de lado’, o que indica o efeito de universalidade, ou seja: o
texto se apresenta como válido para qualquer lugar, para qualquer espaço em que
viva o ser humano. A única exceção é a expressão ‘terra do Egito’ (mesmo assim,
a expressão é uma forma padronizada para o que nós hoje chamaríamos de ‘o país
do Egito’), que traz a universalidade do texto para a concretude da história e geo-
grafia israelita. A ‘terra do Egito’, a qual os ‘pais’ foram libertos, representa todo e
qualquer espaço imperial – ou seja, qualquer espaço dominado por um rei conquis-
tador que expande seus territórios e sua população mediante a conquista militar.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


183

Tempo:
Como vimos, a temporalidade da perícope é baseada nas expressões Dias vêm (2
vezes), naqueles dias, depois daqueles dias – que marcam os segmentos da perícope
e apontam para o futuro como o tempo da realização do que é dito na perícope e
formulam um contraste entre esse futuro e o passado de Judá e Israel (incluindo
o ‘presente’ dos ouvintes desta pregação). No primeiro segmento da perícope está
implícito o ‘passado imediato e remoto’ do povo de Judá e Israel (até os tempos
de Jeremias o ‘ditado’ continua em vigor). A única referência temporal ao pas-
sado distante é a do segundo segmento: “no dia em que os tomei pela mão, para
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

os tirar da terra do Egito”. Essas duas referências ao passado explicam porque o


tempo atual do profeta (antes dos ‘dias’ a chegar) é um tempo de juízo e desgraça.
Já os tempos verbais mais usados na perícope são: (a) o futuro do indicativo,
que aponta para o caráter antecipatório do texto – ele fala sobre um tempo que
ainda virá; (b) o pretérito perfeito, indicando que o tempo atual (do profeta) já é
visto como ‘terminado’, ou seja, como uma época culturalmente invalidada, embora
ainda socialmente em vigor, esperando apenas a concretização da chegada de uma
nova época. Esta temporalidade é inexata e pode-se especular que tipo de rela-
ção há entre a expressão “dias vêm” e sua subsequente em cada perícope. Prefiro
entender a segunda expressão temporal de cada segmento da perícope como uma
especificação da inexatidão da afirmação jeremiânica. Diferentemente de outras
afirmações sobre a duração do cativeiro (setenta anos – Jr 25:11-12 e 29:10), aqui
o anúncio da nova forma de vida israelita é, propositadamente, apresentado sob
o regime da inexatidão – demandando esperança e comprometimento.
Na tradição teológica costumamos chamar esse tipo de temporalidade de
escatológica (mas não podemos ver aqui uma noção de ‘fim do mundo’ que só
aparecerá mais tarde na literatura apocalíptica de Israel no período da dominação
greco-romana). Em outras palavras, a perícope define o tempo atual do profeta
como um tempo de transição – o fim (escaton) de um modo de viver está che-
gando, e o início de um novo modo de viver se aproxima. A ênfase recai sobre
o novo tempo e não sobre o tempo atual.
Como de costume, na análise da dimensão teológica da ação retomarei estes
temas do primeiro ciclo e ampliarei a sua interpretação sob a ótica das pergun-
tas teológicas.

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


184 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

(1) A unidade temática


O arranjo estrutural da perícope nos oferece a pista para o tema discursivo que
dá unidade à perícope: a nova aliança no novo tempo. Na estrutura discursiva
da perícope, portanto, a novidade ocupa o lugar central. Entretanto, do ponto
de vista das estruturas profundas, devemos realizar uma abstração mais elevada
a fim de encontrar o tema que efetivamente dá unidade à perícope. Que tema
seria esse? Ora, se temos um contraste entre o novo e o velho, entre o tempo do
rompimento da aliança e o do surgimento de uma nova aliança, o tema mais
abstrato é o da fidelidade – pois foi a infidelidade que rompeu a antiga aliança
e será a fidelidade que dará sustentabilidade à relação de aliança! Desse modo,
a representação do tema da perícope na forma do quadrado semiótico seria a
seguinte:
FIDELIDADE INFIDELIDADE
SUBMISSÃO OBEDIÊNCIA

O movimento semântico de nossa perícope inicia na infidelidade (o polo disfórico),


passa pela submissão (o que os reis e o sacerdócio exigiam do povo) e culmina
na fidelidade (o polo eufórico da perícope), que o futuro deveria concretizar.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


185

Do ponto de vista dos percursos temáticos da perícope em sua estrutura de


superfície, temos: (a) o percurso da restauração da casa de Israel e de Judá (27-
28); (b) o percurso da revogação do patriarcado (29-30) e (c) o percurso da nova
aliança (31-34). Dedicaremos atenção à análise e detalhamento dos sentidos de
cada um desses percursos para, ao final, apresentar uma síntese teológica a par-
tir do tema da fidelidade.

(2) Detalhamento dos Percursos


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(a) A restauração da casa de Israel e da casa de Judá (27-28)


Conforme já vimos, os versos 27-28 apresentam uma promessa de salvação
construída como a inversão do juízo descrito no chamado de Jeremias no capí-
tulo 1 (texto citado no verso 28). Também já vimos que a abertura da promessa
é composta por duas frases cruciais no Livrinho da Consolação, a primeira se
referindo ao tempo (Eis que dias veem) e a segunda se referindo ao autor da
֙ ‫”הִ ּנֵ֙ה י ִ ָ֤מים ּבָאִ י‬. A promessa resume
promessa (oráculo de YHWH) : “‫ם נְאֻ ם־י ְה ָ֔וה‬
o conteúdo da pregação de salvação no capítulo 30 e é construída a partir da
lógica da inversão:
Em primeiro lugar, a inversão da separação das casas de Israel e de Judá.
Sabemos que os reinos do Sul (Judá) e do Norte (Israel) se dividiram politica-
mente na época de Jeroboão (cf. 1Rs 11-12). Apesar da separação política, as
populações de Judá e Israel mantinham a noção de que eram um só povo, a
família de YHWH, Deus da aliança. Quando se da destruição de Israel pelos
assírios, no século VIII a.C., boa parte da população de Israel migrou para Judá
(os ‘peregrinos’ ou ‘estrangeiros’ do livro do Deuteronômio e do livro de Isaías).
Teologicamente falando, a questão crucial era a da fidelidade de YHWH à aliança
– YHWH havia firmado uma aliança com os pais de Israel (o patriarca Jacó-
Israel), com a descendência de Abraão, e essa aliança não fora revogada – mesmo
com o advento da monarquia, da aliança com a casa de Davi e com a separação
dos reinos. Na aliança, YHWH prometera terra e descendência a Abraão e tanto
a casa de Israel como a casa de Judá estavam, na época de Jeremias, sem terra
e sem descendência (exílio e dominação imperial). Assim, o profeta, em nome
de YHWH, anuncia a chegada de uma época em que a desgraça que acometera

A Dimensão Teológica da Ação


186 UNIDADE IV

Israel e Judá seria encerrada. Israel e Judá se reuniriam novamente como um


só povo, sob um único Deus, e viveriam em sua própria terra, com condições
para sua descendência se expandir e prosperar.
Em segundo lugar, a inversão da punição a Judá (e Israel) mediante o exílio
e a dominação imperial. Em todo o livro de Jeremias a culpabilidade dos líderes
de Judá (especialmente os religiosos) é ressaltada (vimos essa ênfase na apresen-
tação das relações intratextuais da perícope). A própria vocação de Jeremias foi
apresentada na forma de chamado para pregar o juízo e a possível restauração
(1:4-19). Os verbos aqui usados sobre a ação de YHWH retomam os mesmos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
verbos em 1:10 e o verbo ‘vigiar’ retoma o mesmo verbo de 1:12. O exílio e a
dominação imperial representavam o pior castigo possível para um povo, pois
não só o tirava da sua terra, mas também reduzia drasticamente as suas chances
para uma vida saudável e próspera, na medida em que a tributação exigia dos
conquistados parcela significativa de sua produção e de sua energia de trabalho.
Esta inversão retoma elementos já presentes nas seções anteriores do livrinho:
30:10-11 sobre o retorno do cativeiro; 30:17-20 sobre o retorno do cativeiro e a
multiplicação da população; 31:3-5 sobre a volta e a plantação; 31:8-17 sobre o
retorno do cativeiro, a população crescente e a prosperidade agrícola.
O comentarista Leslie Allen sintetiza bem esta segunda inversão:
“[...] Yahweh promete uma abundância de população humana (cf. 3:16;
23:3; 30:19) e abundância de animais. A metáfora da semeadura é remi-
niscente da interpretação pós-juízo, positiva, de ‘Jezreel’ (Deus semeia)
em Os 2:22-23. Há uma lógica da reversão, visto que o desastre de 587
fora, anteriormente no livro, descrito como a punição de humanos e de
animais (Jr 7:20; 9:10; 21:6; cf. 32:43; 33:10)” (ALLEN, 2008, p. 354).

A volta do cativeiro, a reunificação das casas de Israel e de Judá são, consequen-


temente, a expressão da fidelidade de YHWH ao seu compromisso (aliança)
assumido com Abrão (Gn 12:1ss e paralelos). Apesar da infidelidade de seu
povo, YHWH permanece fiel. Foi fiel na punição e continuará fiel na restauração
– linguagem que se retoma em 32:37-44. Em 33:10-26 a fidelidade de YHWH
é ligada à aliança com a casa de Davi, de modo que o novo Israel estará unifi-
cado sob um novo rei davídico e um novo sacerdócio. O próximo percurso (v.
29-30) justifica a punição da casa de Judá e anuncia uma nova característica do
Israel restaurado.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


187

(b) A revogação do patriarcado (29-30)


Os versos 29-30 ampliam o sentido de 27-28 mediante uma nova inversão. Desta
vez, uma inversão ‘moral’, ou seja, uma nova maneira de compreender a responsa-
bilidade pessoal em relação ao pecado e à justiça. O verso inicia com a expressão
‘não mais’, que retoma Jr 3:16 e 14-15=23:5-8, vinculando a mudança aqui anun-
ciada com a restauração da dinastia davídica (cf. 23:5-8). Haverá novamente um
rei, mas a forma de governar deverá ser radicalmente nova, baseada na fideli-
dade à aliança com YHWH e não de acordo com ‘as demais nações’ (1Sm 8:1ss).
Implícita aqui está a discussão sobre a monarquia e sua relação com a Torá pre-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sente em Dt 17:14-20 e na pregação dos profetas pré-exílicos.


Ressalta, aqui, portanto, a inversão moral, que Jeremias – muito provavelmente
– adotou de Ezequiel 18. Tendo em vista a importância do tema, introduzirei aqui o
capítulo 18 de Ezequiel para que possamos entender mais plenamente essa inversão.

Abertura (v. 1) – Wortereignisformel (Fórmula do Evento da Palavra)


1
De novo veio a mim a palavra do Senhor, dizendo:

Questionamento de YHWH (v. 2-3)


2
Que quereis vós dizer, citando na terra de Israel este provérbio: Os pais
comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram? 3 Vivo eu, diz o
Senhor Deus, não se vos permite mais usar este provérbio em Israel.

O Critério do Juízo de YHWH (v. 4)


4
Eis que todas as pessoas “para mim”; tanto a vida do pai, como a vida do
filho “para mim”: a pessoa que pecar, ela mesma morrerá.

Três Gerações e o Juízo (v. 5-19)


5-9 Primeira Geração 5 Sendo pois o homem justo (caDDîq), e procedendo
com direito e justiça (mišPä† ûcüdäqâ), 6 não comendo sobre os montes, nem
levantando os seus olhos para os ídolos da casa de Israel, nem contaminando
a mulher do seu próximo, nem se chegando à mulher na sua separação; 7 não
oprimindo a ninguém, tornando, porém, ao devedor o seu penhor, e não rou-
bando, repartindo o seu pão com o faminto, e cobrindo ao nu com vestido;

A Dimensão Teológica da Ação


188 UNIDADE IV

8
não emprestando com usura, e não recebendo mais de que emprestou, des-
viando a sua mão da desonestidade (më`äºwel), e fazendo verdadeira justiça
(mišPa† ´émet) entre homem e homem; 9 andando nos meus estatutos, e guar-
dando as minhas ordenanças, para proceder segundo a fidelidade (´émet); esse
é justo (caDDîq), certamente viverá, diz o Senhor Deus.
10-13 Segunda Geração 10 E se ele gerar um filho que se torne salteador, que
derrame sangue, que faça a seu irmão qualquer dessas coisas; 11 e que não
cumpra com nenhum desses deveres, porém coma sobre os montes, e con-
tamine a mulher de seu próximo, 12 oprima ao pobre e necessitado, pratique
roubos, não devolva o penhor, levante os seus olhos para os ídolos, cometa

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
abominação, 13 empreste com usura, e receba mais do que emprestou; por-
ventura viverá ele? Não viverá! Todas estas abominações (Kol-haTTô`ëbôt),
ele as praticou; certamente morrerá; o seu sangue será sobre ele.
14-17 Terceira Geração 14 Eis que também, se este por sua vez gerar um filho
que veja todos os pecados (´et-Kol-Ha††ö´t) que seu pai fez, tema, e não
cometa coisas semelhantes, 15 não coma sobre os montes, nem levante os olhos
para os ídolos da casa de Israel, e não contamine a mulher de seu próximo,
16
nem oprima a ninguém, e não empreste sob penhores, nem roube, porém
reparta o seu pão com o faminto, e cubra ao nu com vestido; 17 que aparte
da iniqüidade a sua mão, que não receba usura nem mais do que empres-
tou, que observe as minhas ordenanças e ande nos meus estatutos; esse não
morrerá por causa da iniqüidade (Ba`áwön) de seu pai; certamente viverá.
18-19 Recapitulação da 2ª e 3ª Gerações 18 Quanto ao seu pai, porque prati-
cou extorsão, e roubou os bens do irmão, e fez o que não era bom (lö´-†ôb)
no meio de seu povo, eis que ele morrerá na sua iniqüidade (Ba`áwönô). 19
Contudo dizeis: Por que não levará o filho a iniquidade (Ba`áwön) do pai?
Ora, se o filho proceder com direito e justiça (mišPä† ûcüdäqâ), e guardar
todos os meus estatutos, e os cumprir, certamente viverá.

Repetição Ampliada do Critério do Juízo de YHWH (v. 20)


20
A pessoa que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade (Ba`áwön)
do pai, nem o pai levará a iniqüidade (Ba`áwön) do filho. A justiça do justo
(cidqat haccaDDîq) ficará sobre ele, e a perversidade do perverso (würiš`at
räšä`) cairá sobre ele.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


189

A Pessoa Perversa e a Pessoa Justa (v. 21-29)


21-23 A Pessoa Perversa 21 Mas se o perverso (wühäräšä`) se converter de
todos os seus pecados que cometeu, e guardar todos os meus estatutos, e
proceder com direito e justiça (mišPä† ûcüdäqâ), certamente viverá; não
morrerá. 22 De todos os seus crimes (Kol-Püšä`äyw) que cometeu não haverá
lembrança contra ele; pela sua justiça (Bücidqätô) que praticou viverá. 23
Tenho eu algum prazer na morte do perverso (räšä`)? diz o Senhor Deus.
Não desejo antes que se converta dos seus caminhos, e viva?
24-26 A Pessoa Justa que se Desvia 24 Mas, desviando-se o justo da sua justiça
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(caDDîq miccidqätô), e cometendo a iniqüidade (`äºwel), fazendo conforme todas


as abominações (haTTô`ëbôt) que faz o perverso (häräšä`), porventura viverá?
De todos os atos de justiça (Kol-cidqötäyw) que tiver feito não se fará memória;
pois pela traição (Büma`álô) que praticou, e pelo pecado (ûbüHa††ä´tô) que
pecou (´ášer-Hä†ä´) ele morrerá. 25 Dizeis, porém: O caminho do Senhor não é
reto (yiTTäkën). Ouvi, pois, ó casa de Israel: Acaso não é reto (yiTTäkën) o meu
caminho? Não são os vossos caminhos que são tortuosos (lö´ yiTTäkëºnû)? 26
Desviando-se o justo da sua justiça (caDDîq miccidqätô), e cometendo iniqüidade
(`äºwel), morrerá por ela; na sua iniqüidade (Bü`awlô) que cometeu morrerá.
27-29 A Pessoa Perversa que se Converte 27 Mas, convertendo-se o perverso da
sua perversidade (räšä` më|riš`ätô) que cometeu, e procedendo com retidão
e justiça (mišPä† ûcüdäqâ), conservará este a sua alma em vida. 28 Pois que
reconsidera, e se desvia de todos os seus crimes (Kol-Püšä`äyw) que cometeu,
certamente viverá, não morrerá. 29 Contudo, diz a casa de Israel: O caminho
do Senhor não é reto (lö´ yiTTäkën). Acaso não são retos (yiTTä|knnû) os
meus caminhos, ó casa de Israel, Não são antes os vossos caminhos que são
tortuosos (lö´ yiTTäkën)?

Conclusão (v. 30-32)


30
Portanto, eu vos julgarei (´ešPö†), a cada um conforme os seus caminhos
(Kidräkäyw), ó casa de Israel, diz o Senhor Deus. Voltai e convertei-vos
(šûºbû wühäšîºbû) de todos os vossos crimes (miKKol-Piš`êkem), para que
a iniqüidade (`äwön) não vos leve à perdição. 31 Lançai de vós todos os vos-
sos crimes (´et-Kol-Piš`êkem) que cometestes contra mim; e criai em vós
um coração novo e um espírito novo (lëb Hädäš würûªH Hádäšâ); pois,
por que morrereis, ó casa de Israel? 32 Porque não tenho prazer na morte de
quem morre, diz o Senhor Deus; convertei-vos (wühäšîºbû), pois, e vivei.
(Tradução do Autor)

A Dimensão Teológica da Ação


190 UNIDADE IV

A estrutura do capítulo, destacada acima, é argumentativa – após o ques-


tionamento de YHWH (2-3) temos a resposta do próprio YHWH baseada no
critério por Ele mesmo estabelecido (4). A resposta é expandida na forma de
uma argumentação que visa romper com a lógica patriarcal da propriedade e da
moralidade (incluindo as relações sociais). Na lógica patriarcal, a responsabili-
dade pelo pecado era entendida, primeiramente, como coletiva e não individual
e, em segundo lugar, entendida como subordinada à autoridade do pai, ou seja,
do chefe da família (o patriarca). Essa lógica não só valia para a família e o clã,
mas também valia para a organização monárquica (o rei como o grande pai).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Na discussão do contexto vimos como funcionava essa lógica patriarcal e como
no período de Jeremias essa lógica estava sendo contestada.
O primeiro argumento (5-19) retoma a lógica das gerações e relembra os textos
que falam da punição dos pais nos filhos até a terceira e quarta gerações. Ezequiel
mostra que não mais se poderá pensar assim e que a responsabilidade pelo pecado é
individual e intransferível. No verso 20 o critério é repetido e passamos ao segundo
argumento (21-29), não mais organizado por gerações, mas por tipos de pessoas (a
perversa e a justa), em que Ezequiel mostra que a lógica da responsabilidade indi-
vidual permanece e não admite transferência geracional – não só o filho não pode
ser punido por causa do pecado do pai, como o filho não pode ser inocentado
por causa da justiça do pai. Neste argumento se inclui também a possibilidade de
perversão do justo e de conversão do perverso. O capítulo conclui (30-32) com a
exortação de Ezequiel aos exilados na Babilônia para que se convertam.
Bem, Jeremias 31:29-30 é uma síntese deste capítulo de Ezequiel, com o foco
sobre a punição individual-pessoal. Implícita aqui está a questão da fidelidade de
YHWH e da fidelidade a YHWH. YHWH é fiel a si mesmo e a seu compromisso,
e seu compromisso é com cada pessoa, com cada membro de seu povo. Assim,
demanda fidelidade de cada membro do povo, ‘desde o maior até o menor deles’.
A lógica da responsabilidade individual, aqui, não é individualista, mas crítica da
moralidade convencional hierárquica do patriarcado judaico-israelita. Nessa lógica
do patriarcado, a elite político-econômica descrevia a si mesma como isenta de
punição, como uma elite privilegiada na relação com YHWH, não sujeita aos mes-
mos critérios morais do restante da população. YHWH, portanto, por meio dos
profetas, anuncia o fim dessa lógica e o início de uma nova lógica moral e social:

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


191

cada pessoa é igualmente valiosa – as diferenças sociais, de gênero, raça, políti-


cas, econômicas, não afetam o valor da pessoa diante de Deus e diante umas das
outras. Na apresentação resumidíssima de Jeremias – todos são pecadores (do
maior até o menor) e todos são responsáveis individualmente diante de YHWH.
Mas esta não é a última palavra de YHWH. A dimensão positiva e transformadora
da nova lógica é apresentada na segunda parte da perícope, no terceiro percurso
– o da nova aliança.

(c) A nova aliança (31-34)


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Como já vimos, este segmento da perícope é dividido em duas partes que se


complementam pelo contraste. Na primeira parte temos, inicialmente, o anún-
cio da chegada de uma nova berit a ser firmada entre YHWH e as casas de Israel
e de Judá. No verso 32 temos uma explicação da necessidade dessa nova berit: a
aliança em vigor na época de Jeremias, firmada no êxodo do Egito, foi anulada
pelos ‘seus pais’. Na segunda parte temos a explicação dessa nova berit, que será
firmada ‘depois daqueles dias’, e que consistirá em uma ‘escrita’ da torah no corpo
de cada membro da casa de Israel. Implícita neste esquema estrutural está a crença
na fidelidade de YHWH – ‘os pais’ foram infiéis, mas YHWH permanece fiel.
Podemos centrar nosso detalhamento dos sentidos desse percurso na refle-
xão sobre o significado do adjetivo ‘nova’. Para tal, uma citação abrirá o debate:
“[...] esta é a única passagem do Antigo Testamento onde ‘nova’ modi-
fica ‘aliança’, embora outros adjetivos usados impliquem em novidade
(cf. ‘eterna’ em 32:40; 50:5). Discute-se o que é ‘novo’ em relação a esta
aliança. O único outro uso consistente da palavra ‘nova’ em Jeremias
está no verso 22 (veja, também, o novo coração e o novo espírito em Ez
36:26 e as ‘coisas novas’ de Is 42:9; 43:19). Esta nova aliança é descrita
explicitamente como não de acordo com aquela que Deus fez com um
Israel redimido do Egito no Sinai. Esta referência ao êxodo deve ser
ligada ao chamado para uma mudança de confissão em 16:14-16=23:7-
8, também introduzida por ‘eis dias vem’. A nova aliança não será vin-
culada nem ao Sinai nem ao êxodo! O retorno do exílio é um evento
novo constituinte para o povo de Israel e a nova aliança é um acompa-
nhamento integrado a esse evento. Dado o padrão no livro do Êxodo,
é apropriado que uma nova aliança com Israel venha em sequência a
este novo evento salvífico constituinte. Esta nova aliança será feita por
Deus ‘depois daqueles dias’ (v. 33), isto é, depois do retorno de Israel do
exílio” (FRETHEIM, 2002, p. 442).

A Dimensão Teológica da Ação


192 UNIDADE IV

A interpretação de Fretheim é correta no que afirma, mas negligencia o mais


importante no texto de Jeremias 31:33-34. De fato, a nova aliança se funda no
‘novo êxodo’, ou seja, no retorno dos exilados como o evento fundante da nova
casa reunificada de Israel e de Judá. Entretanto, a novidade essencial não está
aí, mas, conforme diz o próprio texto, a novidade consiste na ‘escrita’ da torá
no corpo dos membros do povo e em suas consequências. O próprio Fretheim
chega bem perto desta percepção na sequência de sua análise:
“[...] o que este evento constitutivo possibilita positivamente para Israel
foi descrito em 24:6-7; Deus irá edificá-los e plantá-los e ‘lhes darei

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
um coração para que saibam que eu sou YHWH’ (definido de modo
mais específico em 32:39, provavelmente refletindo sobre Dt 30:1-14;
ver também Ez 11;19-20; 36:26-27). Este novo coração irá substituir
o ‘coração maligno’ tão característico da vida de Israel antes do exílio
(ver 13:10; 18:12; 23:17). Este será um novo ‘êxodo’ em termos dos te-
mas mais básicos, mas tão diferente em outros aspectos” (FRETHEIM,
2002, p. 443).

Novamente, o que é afirmado é correto, o problema é o que é omitido.


Note que o erro de Fretheim é desconsiderar o próprio texto de Jr 31:33-34 para
entender a novidade da nova aliança. Os textos sobre o novo coração em Jeremias,
Deuteronômio e Ezequiel são importantes paralelos a esta descrição da nova aliança
e, de fato, a nova aliança pressupõe uma compreensão dos israelitas como ‘duros de
coração’ ou de ‘coração maligno’, de tal modo que apesar de terem sido ‘desposados’
por YHWH, jamais foram fiéis a Ele. Assim, a solução definitiva para Israel não é
meramente a posse da terra e a autonomia política, mas, sim, uma nova subjetividade
– para usar um termo atual.
E é essa a novidade da nova
aliança – o que YHWH fará é
instituir uma nova subjetivi-
dade de modo que instituirá,
enfim, um novo povo. Uma
subjetividade e um povo com
a potencialidade de serem
fiéis a YHWH, assim como
YHWH sempre tem sido fiel.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


193

Interpretando o texto nessa direção, Leslie Allen oferece uma leitura mais
próximo do ponto central do texto:
“[...] a escrita na sede da vontade humana contrasta com uma escrita ex-
terior em tabletes, no Sinai, à luz do v. 32ª (cf. 2Co 3:3), ou em rolos. Ela
também contrasta com a escrita do pecado nos corações de Judá (Jr 17:1).
Esta transformação miraculosa se ocupa com a motivação e expressa teo-
logicamente a ‘nova’ disposição prevista no v. 22. Ela é consistente com os
dons divinos de caráter a Israel em Os 2:19-20 e com o novo coração de
Ez 36:26. Quando pistas internas substituem as externas, a fórmula dual
da aliança encontrará perfeito cumprimento na mutualidade de seus par-
ceiros. A expectativa de 31:1 e de 30:22 (TM) recebe aqui sua elucidação.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Em termos genéricos, o ideal não-realizado de 7:23 e 11:4 encontrará seu


cumprimento nos moldes de 24:7” (ALLEN, 2008, p. 356).

Se Fretheim errou ao subestimar a novidade da nova aliança, Allen erra, a meu


ver, por superestimá-la. Sua análise começa muito bem, porém, perde o rumo
com a frase “essa transformação miraculosa se ocupa com a motivação”. Em pri-
meiro lugar, o texto de Jeremias não fala em uma ‘transformação miraculosa’,
mas em uma ‘escrita’ interior; em segundo, não reduz essa eventual transfor-
mação a uma questão de motivação – o verso 34 fala em conhecimento de Deus.
Allen lê em Jeremias uma versão da noção protestante de conversão e comete
um anacronismo perigoso ao ler em Jeremias e Ezequiel elementos que estarão
presentes apenas em o Novo Testamento. Mais uma vez, é preciso prestar aten-
ção ao que o texto afirma – YHWH firmará uma nova berit – a novidade, como
Allen percebeu parcialmente, está no modo dessa berit: não mais com a escrita
da torah em tábuas de pedra ou em rolos de pergaminho; mas com a torah escrita
nos corpos dos membros da casa reunificada de Israel.
Walter Brueggemann nos ajuda a chegar ainda mais perto do sentido da nova
aliança, ao notar que a nova aliança é moldada na Torá do Sinai e fundada no per-
dão dos pecados – ações do próprio YHWH – assim a novidade está primeiro
no modo de YHWH agir e não na ‘natureza’ das pessoas. Porém, em seu esforço
de traduzir a linguagem metafórica de Jeremias ele erra o ponto: “a tradição de
Jeremias, então, manifesta a transição definidora da fé profética para a fé escri-
bal, um escribalismo que irá servir ao ‘povo do rolo’ e se consumará na instrução
e interpretações rabínicas” (BRUEGGEMANN, 2007, p. 130). Nada mais distante
do texto de Jeremias: se ‘ninguém ensinará ...’, como podemos interpretar este texto

A Dimensão Teológica da Ação


194 UNIDADE IV

como se ele afirmasse uma nova classe de ensinadores? O Judaísmo rabínico, de


fato, pode ser interpretado como uma das formas mediante as quais estas noções de
Jeremias, Ezequiel e Deuteronômio (a modernidade israelita) podem ser colocadas
em prática, mas não podemos afirmar que era este o projeto de Jeremias – por mais
importante que tenha sido o papel de Baruque (o escriba) na tradição jeremiânica.
Leene entendeu melhor esta dimensão do texto de jeremias do que
Brueggemann:
“[...] é significativo o contraste entre Jr 31:33-34 e 2:8 ‘os que lidam
profissionalmente com a torah (sacerdotes) não me conhecem’. A nova

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
aliança significa que, no tocante à torah (que, de acordo com 7:23 tem
sua essência no mandamento ‘ouvi minha voz’ e, assim, visa um re-
lacionamento pessoal com YHWH; ver em 31:33 ‘minha torah’) nin-
guém mais é dependente da instrução dada pelas autoridades religio-
sas” (LEENE, 2014, p. 208).

Agora chegamos ao ponto central da novidade: a relação entre YHWH e seu


povo não será mais uma relação mediada por textos manuseados e controla-
dos por autoridades (pais, reis, sacerdotes, escribas, profetas). Será uma relação
imediata, ou seja, os textos (orais e escritos) da torah estarão disponíveis a cada
pessoa em Israel para serem interpretados e vividos.
Não se trata, como veremos melhor na próxima seção desta Unidade, da
eliminação de todo o aparato religioso. Continuarão a existir os profissionais
da religião, as suas instituições e todas as atividades que giram ao redor delas.
Entretanto, essas instituições não serão mediadoras do conhecimento de YHWH.
Estamos em um mundo próximo ao do Shemá Israel de Dt 6: é nas casas que as
crianças aprenderão, de seus pais, nos rituais domésticos, a conhecer a YHWH.
A grande novidade de Jeremias é a subordinação da religião institucional à vida
cotidiana, da autoridade religiosa ao praticante da religião. Ao invés, então de
uma ‘transformação miraculosa’ da natureza das pessoas, teremos a transfor-
mação (não menos ‘miraculosa’) do modo de funcionamento das instituições
religiosas – o que autores do Novo Testamento captaram muito bem e que os
reformadores chamaram de ‘sacerdócio universal dos santos’ – mas que até hoje
ainda não se colocou em prática no Cristianismo institucionalizado.
Esta leitura nos ajuda a evitar que a noção de nova aliança entre em contra-
dição com a expectativa, em Jeremias, de um novo rei e de um novo sacerdócio

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


195

levítico. Nos ajuda, também, a idealizar o ser humano membro da nova aliança
– após a nova aliança ser firmada, YHWH perdoará os pecados (sem mediação
sacrificial) – ou seja, a pecaminosidade humana não será eliminada. A expec-
tativa de Jeremias, portanto, não era a de uma ‘nova humanidade’ no sentido
ontológico do termo, mas a de um novo Israel fiel a YHWH, fidelidade esta que
estará acima de todas as demais fidelidades humanamente necessárias (família,
povo, governo, religião, etc.).
Voltamos a Leene e sua análise perceptiva do texto:
“[...] caberá a cada israelita, individualmente, sob a nova aliança, deci-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dir que interpretação da lei irá levá-lo ou levá-la a conhecer a Deus. A


noção de que ‘minha torah’ significa simplesmente o Pentateuco fixado
na escrita contradiz a liberdade que o livro de Jeremias tem, ele mesmo,
em relação à letra do Pentateuco (7:22!). Se Deus escreve algo em meu
coração, isto também quer dizer que eu entendo plenamente o que foi
escrito e sou capaz de adaptar meus pensamento e ações em consonân-
cia com essa escrita” (LEENE, 2014, p. 209-210).

De fato, se ‘ninguém ensinará ninguém’ e se o ‘próprio YHWH perdoará os peca-


dos’, então o que temos é uma reestruturação das funções institucionais da religião
– o problema da antiga aliança estava nos ‘pais’ (símbolo de todas as autorida-
des), ou nos sacerdotes e escribas a quem Jeremias acusa repetidamente de não
conhecer a Torá (conforme também Oseáis 4). Para ser fiel a YHWH não é pos-
sível depender de intermediários, é preciso se relacionar diretamente com Ele.
Essa relação, porém, não pode ser baseada na experiência individual, nem deve
ser individualista. Seu eixo é a torah de YHWH e seu meio-ambiente é a vida
do povo de Deus. Assim, todos saberão quem YHWH é o único Deus de Israel,
não sendo necessário nenhum outro senhor – divino ou humano!
Vemos, aqui, a principal diferença entre a tradição jeremiânica e as tradi-
ções deuteronômica e ezequielina. Para o deuteronomismo, o papel dos escribas
é fundamental e a mediação de um profeta-legislador, como Moisés, é inte-
grante da esperança de restauração. Para Ezequiel e seus discípulos o Templo é
fundamental na reconstrução do Israel de YHWH, inclusive do ponto de vista
da reestruturação política. Estas três tradições partilham, em comum, a visão
‘moderna’ da relação entre YHWH e os membros do seu povo – mas cada uma
delas desenvolve sua própria versão dessa ‘modernidade’.

A Dimensão Teológica da Ação


196 UNIDADE IV

A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA AÇÃO

No Tópico anterior citei Brueggemann e sua visão da nova aliança como fruto da
atividade de escribas. Um autor que desenvolve e argumenta em prol dessa lei-
tura é Mark Leutcher, de quem veremos, agora, o posicionamento sobre o tema:
“[...] em nossa passagem, porém, a dinâmica foi completamente altera-
da [da formação de escribas]. O currículo que o escriba deve estudar
e cultivar agora está em seu próprio coração e, levando em considera-
ção a natureza interpretativa e exegética do escribalismo israelita no
final do sétimo e início do sexto séculos a.C., isto sugere que o impul-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
se exegético em si mesmo constitui a Torá. Certamente este não é um
conceito estranho à tradição de Jeremias, na medida em que a exegese
do próprio profeta foi apresentada como inerentemente deuteronômi-
ca em sua natureza e, como vimos, Jr 19:5-7 cria exegeticamente uma
circunstância pactual viável ao desenvolver a legislação deuteronômi-
ca. Em Jr 31:33 essa mesma metodologia é declarada como a base da
nova aliança, simultaneamente desqualificando as antigas hierarquias
do culto de Jerusalém e legitimando a tradição escribal de corte deute-
ronomístico, agora independente” (LEUCHTER, 2008, p. 58)

A tese de Leuchter pressupõe um conflito entre profissionais da religião na cidade


de Jerusalém, pelo menos a partir do reinado de Josias. A Torá era, durante pra-
ticamente toda a história monárquica de Judá, atributo dos sacerdotes (levitas)
e os escribas trabalhavam para o Templo (cf. Jr 18:18: “Então, disseram: Vinde,
e forjemos projetos contra Jeremias; porquanto não há de faltar a Torá ao sacer-
dote, nem o conselho ao sábio, nem a palavra ao profeta; vinde, firamo-lo com a
língua e não atendamos a nenhuma das suas palavras”). A descrição da reforma
de Josias no livro de II Reis sugere, porém, que algumas famílias de escribas se
rebelaram e passaram a lutar por autonomia na escrita e interpretação da Torá
perante o rei, não mais sendo subordinados ao sacerdócio. Esse conflito teria
como uma de suas características a mudança do modelo de formação do escriba,
não mais a partir da cópia de textos, mas, sim, da criação de textos a partir dos
documentos anteriores.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


197

Uma formação não mais baseada na mera repetição da tradição, mas na


reflexão:
“[...] a exegese dos escribas, por outro lado [em relação à sacerdotal
e à profética], é, por natureza, intangível, própria para processos de
educação-enculturação. Como a tradição deuteronômica já havia esta-
belecido, tais métodos de enculturação demandavam o compromisso
individual; o Deuteronômio repetidamente convoca o indivíduo à res-
ponsabilidade e coloca o compromisso individual com a lei acima de to-
dos os demais sistemas de lealdade. A exegese adicional à tradição deu-
teronômica advogada em Jr 31:31-34 segue, assim, a trajetória de idéias
que subordinará as instituições do reinado e do Templo de Jerusalém à
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

internalização individual da lei (Dt 17:14-20; 1Rs 6:11-13), completada


pelo trabalho dos escribas em sua administração, preservação, ensino e
desenvolvimento (Dt 16:18-20)” (LEUCHTER, 2008, p. 59).

Nessa interpretação, Leuchter pressupõe que os ouvintes da pregação da nova


aliança são a elite governante de Jerusalém exilada em 597:
“[...] para uma comunidade a quem o profeta já se dirigira em termos
deuteronômicos, agora separada da sua terra natal desolada, a lideran-
ça dos escribas, enraizada na própria compreensão pactual do profeta,
seria um ponto médio apropriado entre a quebra de e a manutenção
da tradição. [...] Dessa forma a audiência poderia reter sua identidade
israelita ao mesmo tempo que rejeitaria a natureza corporativa do na-
cionalismo israelita sob o rei e os sacerdotes em Jerusalém. Esta men-
sagem era inteiramente aplicável a uma comunidade judaíta cortada de
sua terra natal, onde as instituições do reinado e da monarquia ainda
operavam. A ênfase institucional em Jr 31:31-34 é sugestiva, ainda, da
composição da audiência para a qual foi composta: a retórica se dirige
aos interesses das elites vinculadas a tais instituições (escribas, oficiais,
sacerdotes, etc.), especialmente se essas instituições ainda estivessem
funcionando. Não há indicação, nestes versos, de que jerusalém ou o
seu culto tenham sido destruídos. O oráculo tem seu lugar, portanto,
em um contexto pré-587 e seria dirigido mais diretamente à elite exila-
da em 597” (LEUCHTER, 2008, p. 59-60).

Embora atraente, a proposta de Leuchter esbarra na impossibilidade de pro-


var a sua datação e os seus destinatários, bem como não leva em consideração
que o texto de Jeremias 31 pressupõe a culpabilidade da elite de Jerusalém e a
incapacidade dos oficiais da religião em serem fiéis à Torá de YHWH – não só
sacerdotes, mas também escribas. Ademais, depende da hipótese de que Jeremias

A Dimensão Sociocultural da Ação


198 UNIDADE IV

e o movimento deuteronômico estivessem teologicamente unidos, o que não é


possível de comprovar. Por fim, a proposta não dá conta da afirmação de que
‘ninguém ensinará ninguém’ na descrição da nova aliança – inserindo escribas
onde não há intermediários. Neste sentido, a proposta de Jeremias é radical em
sua rejeição dos intermediários, por causa de sua responsabilidade pela infide-
lidade do povo a YHWH.
Potter percebe melhor este aspecto da situação em Jeremias:
“[...] Jeremias viu a queda de Israel e, especialmente a de Judá, prima-
riamente como responsabilidade da liderança e das classes governan-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tes. Profetas, sacerdotes, reis e cortesãos, os que falharam em usar a
responsabilidade que lhe fora dada, estavam na raiz da queda da na-
ção. ‘Profissionais’ de elite, que reservavam a si mesmos o direito de
interpretar a lei ou a vontade de Deus, que usaram sua posição e co-
nhecimento para estender falsidade sobre o seu povo são condenados.
Eles são tão falsos como seu ensino. Alegam serem eruditos na Lei,
mas são eruditos apenas no mal (18:5). Aqueles que cuidam da lei não
conhecem YHWH (2:8). Aqueles que mentem e enganam e cometem
iniquidade se recusam a conhecer YHWH (9:4-6). O dom precioso, o
conhecimento de Deus, que deixaram de transmitir aos outros, tam-
bém negaram a si mesmos” (POTTER, 1983, p. 353).

Não vejo como conciliar a tese de Leuchter com esta descrição tão crítica dos
profissionais da Torá no livro de Jeremias.
Outra opinião, menos sofisticada, mas também menos problemática é a de
Baker:
“[...] parece haver tanto um senso de continuidade como de desconti-
nuidade entre a aliança mosaica e a nova aliança. Isso implica em conti-
nuidade com a aliança anterior em termos de suas exigências. De outro
lado, a descontinuidade é vista no fato de que, ao invés de estarem ins-
critos em tábuas de pedra guardadas no templo, as exigências da alian-
ça iriam residir dentro dos participantes humanos da aliança. Assim, a
proposta de Sarason de que o conteúdo permanece enquanto o modo
de transmissão e observância é alterado parece a melhor. A aliança que
dá a todo o Israel uma identidade comum, portanto, mudará em seu
foco, não mais meramente comunitário, para um relacionamento mais
individual” (BAKER, 2008, p. 5-8, on-line)2.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


199

A descrição de Baker é excessivamente genérica, mas oferece um dado impor-


tante – a aliança é um dos modos simbólicos de construção da identidade coletiva
e individual. Falta uma descrição adequada do significado dessa individualiza-
ção. Na próxima citação, Baker reenfatiza a questão da identidade e da unidade
do povo, mas, novamente, falha em sua descrição do processo de individualiza-
ção presente na nova aliança:
“[...] a colocação da Torá nos corações e mentes de cada indivíduo ‘con-
trasta com as estipulações da aliança serem colocadas em um templo
comunitário para a leitura pública periódica’ (Adeyemi 2006, 74) e, as-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sim, coloca maior responsabilidade sobre cada participante individu-


al da nova aliança. Em síntese, Jeremias 31:31-34 proclama uma nova
aliança que, diferentemente da anterior, a mosaica, seria colocada den-
tro de cada participante, capacitando, assim, a uma obediência mais
perfeita à Torá divina. Os recebedores desta nova aliança serão os filhos
unificados de Israel, e a nova aliança servirá como sua identidade co-
mum. Para um povo cuja história está repleta de facções tribais, divisão
política e guerras, as palavras promissórias de um profeta algo idealista
ofereciam esperança por um futuro melhor” (BAKER, 2008, p. 05-9).

O erro, aqui, consiste na suposição de que, em função da internalização da moral


da aliança, a obediência à Torá seria mais perfeita. De fato, são dois erros nesta
formulação: (a) quando falamos em moral internalizada dei-
xamos de falar em obediência e passamos a falar em fidelidade
– pois a moral internalizada é uma moral de princípios e valores,
não mais uma moral de regras e mandamentos;
e (b) a internalização de princípios e valores
morais não possibilita, por si só, o cumprimento
desses valores. Na verdade, cria, sim, uma respon-
sabilidade bem maior: a de decidir como vivenciar
cada princípio e/ou valor nas situações cotidianas;
mas não acarreta na força moral para viver à altura
da moral internalizada. O próprio texto de Jeremias
parece menos idealista do que seus intérpretes, está
visível em sua declaração final sobre o perdão de
pecados – no regime da nova aliança os pecados con-
tinuarão a existir! Voltaremos a este ponto.

A Dimensão Sociocultural da Ação


200 UNIDADE IV

(c) Henk Leene, com quem já dialogamos no tópico anterior, também oferece
uma descrição, mais adequada do que as anteriormente descritas, da dimensão
sociocultural da nova aliança:
“A principal questão que a promessa da nova aliança deseja responder é
como encontrar um tipo de relacionamento entre YHWH e Israel não
mais sancionado por um juízo coletivo. O que é novo na nova aliança
não é que ela contém novos mandamentos, nem que esses mandamen-
tos são levados no coração, tornando finalmente possível um relacio-
namento pessoal com Deus (essa possibilidade sempre esteve presen-
te, veja, por exemplo, o processo de maturação de Samuel), mas que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
esse relacionamento pessoal irá determinar toda a estrutura da vida
religiosa em israel, de modo que uma calamidade, com consequências
tão catastróficas como a experimentada em 587 a.C., estará barrada no
futuro. O que é verdadeiramente novo na nova aliança é sua indisso-
lubilidade. Todas as suas outras características (individualização, lai-
cização) estão sujeitas a esta. A ideia acalentada no dogma cristão de
um non posse peccare [não posso pecar] presumivelmente está fora do
‘horizonte de questionamento’ da promessa de Jeremias. Esta promes-
sa se restringe a dizer que YHWH não mais considerará todo o Israel
responsável pelos pecados de indivíduos israelitas, mas se compromete
a perdoar a cada um, grande ou pequeno, que pede por perdão. Uma
aliança com a casa de Israel e de Judá que se funda sobre o perdão
pessoal não pode ser quebrada coletivamente. Tal promessa oferece ao
leitor uma perspectiva prática: ela é mais anti-utópica do que utópica...”
(LEENE, 2014, p. 210).

Foco, agora, no aspecto adequado desta descrição: não se trata, então, de uma
individualização social ao estilo do individualismo moderno, mas, sim, à luz dos
versos anteriores de Jr 31, de uma alteração no critério de juízo e responsabili-
dade moral: não é mais coletivo, mas, sim, individual. Uma das consequências
dessa alteração é, de fato, que não se deverá mais pensar que todo o Israel será
punido por causa do pecado de alguns dos israelitas – o juízo de YHWH passa
a ser entendido como individualizado e não mais como ‘coletivo’ ou ‘nacional’.
Logo, não se deve esperar que a internalização da torá possa criar uma vida indi-
vidual mais perfeita. Devemos esperar, sim, que essa internalização modifique a
estrutura da vida religiosa – não mais centrada nos rituais coletivos e dependente
de profissionais, mas centrada na vivência cotidiana dos valores da fé e em uma
participação viva e crítica nos rituais coletivos proporcionados pelos profissio-
nais da religião. Não podemos, porém, entender que a indissolubilidade seja, de

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


201

fato, a grande novidade da nova aliança. A ‘velha aliança’ também era indissolúvel
(da parte de YHWH), o que muda é a não-possibilidade de dissolução nacional
da aliança: cada indivíduo entra na responsabilidade de ser fiel, e pode, porém,
se tornar infiel e sair do relacionamento da aliança com YHWH. A avaliação ao
final da citação, por fim, também é questionável: afirmar que a nova aliança é
antiutópica só faz sentido se definirmos utopia como uma sociedade ideal e per-
feita. Entretanto, se pensarmos em utopia como uma sociedade melhor do que a
presente, então o texto jeremiânico é, sim, utópico (reunificação de Israel e Judá,
volta do exílio, uma nova estruturação da vida religiosa centrada no indivíduo).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Em um parágrafo anterior, Leene destacou mais o aspecto individual:


“[...] a novidade de Jr 31 é, portanto, não tanto a de uma internalização
da torah propriamente dita, mas, sim, de que ela será acessível a cada
pessoa no futuro Israel. A descrição da lei de YHWH carregada no co-
ração é mais antiga e mais genérica do que a ideia de que YHWH a es-
creveu com sua própria mão. Alcançar conhecimento de Deus é o alvo
da obediência à lei, que, em certa medida, é relativizada por esse alvo
maior. Caberá a cada israelita, individualmente, sob a nova aliança, de-
cidir que interpretação da lei irá leva-la ou leva-lo a conhecer a Deus. A
noção de que ‘minha torah’ simplesmente significa o Pentateuco, con-
forme fixado em escrito, contradiz a liberdade que o próprio livro de
Jeremias permite a sim mesmo no tocante à letra do Pentateuco (7:22!).
Se Deus escreve algo em meu coração, isto também quer dizer que eu
entendo, em seu sentido mais profundo, o que foi escrito, e sou capaz
de adaptar, concordemente, meus pensamentos e ações” (LEENE, 2014,
p. 209-10, GRIFO NOSSO).

E me permito incluir um pequenino trecho de outra parte do livro de Leene:


“com este leitor, chega ao fim cada profissional da instrução-torah (cf. Jr 2:8) e,
com ele, começa o conhecimento imediato de Deus, conforme assegurado pela
promessa”. (LEENE, 2014, p. 234).
Início, novamente, com o que considero adequado na descrição: (a) o conheci-
mento de Deus como alvo da nova aliança é, de fato, muito mais do que obediência
à lei – como já escrevi, a internalização da aliança promove uma alteração no
modo de relacionamento: não mais centrado na obediência, e, sim, na fideli-
dade; (b) a nova aliança demanda uma nova subjetividade – cada participante
da nova aliança se torna responsável por interpretar e definir como viver os valo-
res da fé em Deus; (c) esta nova subjetividade desaloja a subjetividade centrada

A Dimensão Sociocultural da Ação


202 UNIDADE IV

na moral externa, convencional, de obediência a normas regidas por autorida-


des sociais (familiares, políticas ou religiosas); (d) de fato, a torah que YHWH
escreverá não pode ser identificada com o Pentateuco, pois se o fosse, não have-
ria sentido na promessa; e (e) o conhecimento de Deus passa a ser imediato, ou
seja, sem mediadores profissionais – aqui Leene mostra o limite da interpreta-
ção de que a nova aliança abre lugar para novos escribas profissionais como os
principais responsáveis pela vida religiosa – a nova aliança não é uma ‘religião
do livro’, mas uma ‘religião do coração’.
Passo, agora, aos aspectos que considero inadequados em sua descrição.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(a) Leene subestima a importância da internalização da nova aliança. Embora
seja correto afirmar que a nova aliança torna o conhecimento de Deus acessí-
vel a todas as pessoas, independentemente de seu lugar social, ela oferece mais
do que isso, ela oferece uma efetiva internalização das relações com Deus e com
o próximo; (b) o fato de que Deus ‘escreve a sua torah’ em meu coração não
implica que de fato, conhecemos profundamente essa torah (instrução, vontade)
e a praticamos – aqui Leene vê a escrita da torah como algo mágico, um tipo de
conhecimento intuitivo, místico inexistente. O fato de que a nova aliança desaloja
os profissionais da torah não significa que o conhecimento de Deus seja automá-
tico – precisa ser cultivado individual e comunitariamente, precisa ser discutido
e vivenciado individual e comunitariamente. Não se trata, como já mencionei,
de acabar com cultos litúrgicos e estudos comunitários. Trata-se de subordinar
as reuniões coletivas aos critérios da fé internalizada em cada pessoa; trata-se
de revisar estruturalmente o papel de profissionais religiosos – não mais chefes,
nem definidores da vida religiosa, mas, sim, servidores dos praticantes da religião
– um ideal quase impossível de ser alcançado em formas fortemente institucio-
nalizadas de religião.
Um fator adicional que os autores acima discutidos não trataram é o do
fim do sacrifício – na nova aliança, com o perdão dos pecados também interna-
lizado e individualizado, não faz mais sentido uma religiosidade centrada em
sacrifícios que visam, em última instância, tornar a divindade favorável ao ser
humano. Neste sentido, Jeremias está em consonância com profetas anteriores
a ele, que também criticaram o culto sacrificial e suas limitações (e.g., Is 1:10ss;
Am 5:21ss). Com grande probabilidade, Jeremias está radicalizando a pregação

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


203

de Oséias: “Pois é a fidelidade que me agrada, não os sacrifícios; o conhecimento


de Deus, não os holocaustos. Mas eles transgrediram a aliança, como Adão;
foram infiéis para comigo” (Os 6:6-7, tradução própria). O que está em jogo, na
nova aliança, é ‘como agradar a YHWH’? O próprio Jeremias já oferece a res-
posta: “o que se gloria, glorie-se nisto: me conhecer, saber que eu sou YHWH,
aquele que age com fidelidade, direito e justiça em toda a terra; eu tenho pra-
zer nessas coisas, oráculo de YHWH” (Jr 9:24 tradução própria). Outro profeta
com quem Jeremias concorda e cuja pregação radicaliza é Miquéias: (a) “Ele te
anunciou, ó homem, o que é bom e o que YHWH exige de ti, a não ser que pra-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tiques o direito, ames a fidelidade e sejas humilde diante de teu Deus” (Mq 6:8);
e (b) “Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces
da transgressão do remanescente da tua herança? YHWH não retém a sua ira
para sempre, porque tem prazer na fidelidade. Mais uma vez terá compaixão de
nós; pisoteará as nossas iniqüidades e lançará todos os nossos pecados nas pro-
fundezas do mar” (Mq 7:18-19).
Em síntese: esta perícope de Jeremias, juntamente com outras expressões de
esperança no livro, apresenta um projeto de transformação social e identitária
de grandes proporções – a que tenho chamado de Modernidade Judaíta e que
descrevi anteriormente na análise do contexto. As suas características sociopo-
líticas mais importantes são: (a) rejeição de um arranjo sociocultural baseado
na hierarquia econômico-política – o patriarcado – e afirmação de um arranjo
sociocultural baseado na igualdade de valor entre as pessoas; (b) rejeição de uma
estruturação da fé baseada, também, na hierarquia político-econômica e na insti-
tucionalização profissionalizante – a monarquia teocrática que situa Deus acima
de todo o mundo e estabelece o rei e o sacerdócio como mediadores exclusivos
da divindade (subordinando, assim, outros profissionais da religião – escribas e
profetas); (c) rejeição de um conjunto de valores morais centrado na superiori-
dade do pai – na família (o pai de fato), na religião (o sacerdote), na economia
(o proprietário de terras e bens), na política (o rei) – e a adoção de um conjunto
de valores centrado no caráter e na instrução de Deus; (d) a expectativa de um
futuro melhor para o povo de Deus, reunificado, com sua identidade centrada
não mais no palácio-templo, mas na fidelidade a Deus e sua aliança de liberta-
ção, direito, justiça e solidariedade.

A Dimensão Sociocultural da Ação


204 UNIDADE IV

Estas são características abstratas – não encontramos em Jeremias uma des-


crição detalhada – ao estilo da sociologia por exemplo – de como deve ser a vida
social. Não há discussão sobre o modo de governo, nem sobre o tamanho da
institucionalização da religião e outros detalhes do tipo. O que Jeremias oferece
é ‘teologia profética’ – a concretização dessa teologia é tarefa de todo israelita e,
diríamos, para transcender o contexto do livro – tarefa de toda pessoa.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Como você entende e vivencia a instrução de Deus em seu coração, em co-
munhão com o Espírito Santo? Como essa compreensão se concretiza em
sua vida cotidiana?

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO

Muito bem, agora cabe a você realizar este passo da metodologia exegética.
Procure seguir o mesmo modelo que usei em minhas releituras. Não é um texto
para você entregar e ser avaliado, é um exercício para você mesmo. Se quiser
compartilhar com os colegas, porém, você pode fazer.
Como fazer? Minha sugestão é que você siga os seguintes passos metodológicos:
1. Aliste as áreas da vida em que o texto pode ser aplicado – por exemplo:
liturgia, crítica social.
2. Verifique se há elementos teológicos do sentido do texto que devem ser
revistos à luz do Novo Testamento e faça tal revisão.
3. Analise os problemas atuais (de nosso tempo) nas áreas da vida em que
o texto pode ser aplicado e os explique.
4. Faça a aplicação propriamente dita.

Do ponto de vista da apresentação dos seus resultados, você pode seguir o exem-
plo das Unidades II e III.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JEREMIAS 31:27-34


205

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Então caro aluno(a), o livro de Jeremias é um interessante exemplo de como os


livros eram escritos no mundo antigo. O fato de termos versões diferentes, na
Bíblia Hebraica e na Septuaginta, nos ensina que várias gerações atuavam na
transmissão e na editoração do texto de um livro. Também nos mostra a impor-
tância que, a partir da dominação babilônica, a escrita passou a ter em Judá e
Israel. Mais tarde, o Judaísmo se torna uma religião do livro – focada na inter-
pretação rabínica da Bíblia e das próprias tradições rabínicas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Voltando ao texto de Jeremias e à nossa perícope. O tema, como você viu, é


desafiador: a nova aliança e todas as suas implicações pessoais, socioculturais,
psicossociais e religiosas. A novidade da pregação de Jeremias e Ezequiel foi
tão grande que o Judaísmo de sua época não conseguiu absorver. Somente nos
tempos de Jesus em diante é que judeus e cristãos perceberam as implicações
da mensagem destes profetas e buscaram vivenciá-la de modo mais adequado.
A nova aliança de Jeremias estabelece desafios consideráveis para as institui-
ções religiosas, pois ela afirma que a pessoa é mais importante do que a instituição;
que a fidelidade a Deus é mais importante do que os deveres religiosos; que o
simples viver é mais importante do que o cumprir leis e obrigações. Em o Novo
Testamento isto se chama de ‘viver pela graça’. Viver pela graça é quase impos-
sível para o ser humano. Nós conseguimos viver bem pela dívida e pelo dever,
mas sofremos quando se trata de viver pela dádiva e pela misericórdia (graça).
Somente no Espírito de Deus conseguimos viver pela graça.
Esta perícope de Jeremias, enfim, nos ajuda a ver que lei e graça coexistem
no Antigo Testamento, e que o Novo Testamento é, em certa medida, uma rein-
terpretação da graça no Antigo Testamento. Jeremias nos desafia a viver na nova
aliança! Aceitaremos o desafio?

Considerações Finais
206

1. O conteúdo do livro de Jeremias é o mesmo na Bíblia Hebraica e na Septuaginta.


Esta afirmação é:
( ) VERDADEIRA ( ) FALSA

2. O livro de Jeremias foi escrito em que período da história de Judá?


a. Período tribal
b. Período de Davi
c. Final da Monarquia e Início do Exílio babilônico
d. Época de Jesus
e. Período do Império Romano

3. A Nova Aliança em Jeremias foi colocada em prática pelos judeus na época de


Esdras e Neemias. Esta afirmação é:
( ) VERDADEIRA ( ) FALSA

4. A individualização e interiorização da Lei proposta por Jeremias significa:


a. individualismo moderno
b. mudança do conteúdo da Lei de Deus
c. alteração no critério de juízo moral
d. obediência ao ensino dos escribas
e. nenhuma das anteriores

5. Na nova aliança o perdão dos pecados é feito:


a. mediante o sacrifício de animais
b. mediante uma oferenda do pecador
c. por meio da meditação sobre a Bíblia
d. ação direta de Deus
e. nenhuma das anteriores
207

“4. A Nova Aliança: Nova mesmo?


Jeremias faz questão de enfatizar que a nova aliança não vai ser ijMial ao acordo feito
quando Deus tirou o povo do Egito. Os elementos centrais da nova aliança já eram co-
nhecidos de outras alianças:
a) Eu porei a minha lei nas suas mentes e a escreverei nos seus corações’’. A lei continua
a mesma, ou seja, é a mesma Tom da aliança sinaítica. O conhecimento da Torá não
representa novidade. Deuteronômio 6.6-9, entre outras coisas, fala que a lei deve ser
guardada nos corações. Deuteronômio 30.6 anuncia que Deus despertará no coração o
desejo de obedecê-lo. Os Salmos 37.31 e 40.8 falam de pessoas que guardam no cora-
ção a lei de Deus. Portanto, conhecimento da lei não é um elemento totalmente novo e
desconhecido da piedade judaica.
Todavia, a lei mostrou-se inútil. Não conseguiu fazer com que o povo conhecesse a Deus
e permanecesse fiel. Pelo contrário, a grande reclamação de Jeremias é que o povo não
cumpriu a lei. Por que então Deus insiste numa aliança baseada na lei? A insistência
na lei é uma comprovação de que a lei não estava errada. O problema não era a lei de
Deus, e nem o próprio Deus, mas sim o não-cumprimento da lei. Quem estava errado
não era a lei, e sim o povo. Anunciar uma aliança que não fosse baseada na lei seria uma
afirmação de que o problema estava na lei e não na falta de cumprimento dela. E é aqui
que aparece o aspecto novo da aliança que Jeremias anuncia: o conhecimento da lei
não virá a partir do esforço humano, mas pela vontade de Deus, que colocará a lei nos
corações e mentes.
b) Eu serei o Deus deles e eles serão o meu povo. Esta formulação reforça o pacto do
Sinai, que exigia fidelidade do povo e, ao mesmo tempo, tornava Javé o único Deus do
povo.
c) Pois eu perdoarei os seus pecados. Na questão do perdão encontramos formulações
semelhantes em Êx 34.6-7; Nm 14.18; Dt 5.9-10; SI 86.15; Jl 2.13. Quer dizer, as alianças
que precederam a nova aliança agora anunciada já conheciam o perdão. Uma novidade
estaria na concepção de pecado e culpa. Jeremias 31.29-30 fala da responsabilidade
pessoal — e não hereditária — pelo pecado, como é sugerido em Êx 34.7. Agora há um
completo recomeçar. A maldade não é mais castigada de geração em geração, mas es-
quecida: E nunca mais me lembrarei das suas maldades.
[...]
6. O Texto e a Comunidade
O tema central de Jr 31.31-34 é a aliança. Aliança significa acordo, compromisso. Mas
isto não estaria banalizado nos dias de hoje? O que conhecemos em termos de aliança?
Para o trabalho em culto comunitário ou grupo de reflexão sugiro refletir sobre o tema
aliança ou acordo a partir dos seguinte passos:
208

O que entendemos por acordo ou aliança ?


Podemos lembrar que acordos, alianças, são fatos rotineiros na nossa vida. Fazemos vá-
rios acordos em nossa vida. Exemplo de aliança ou acordo é a amizade entre duas pes-
soas, quando uma confia à outra problemas, alegrias, intimidades. Acordos acontecem
entre pessoas quando fazem negócios. Há a aliança entre grupos econômicos, que, para
aumentar os lucros e para acabar com certo tipo de concorrência, unem-se em torno
de determinados acordos. Acordos acontecem em comunidades: a comunidade tal, de
comum acordo, decide realizar tal e tal obra. Acordo acontece no casamento: duas pes-
soas unem suas vidas e sonhos e decidem viver juntas. Acordos acontecem no campo
da política, quando partidos ou políticos se unem em torno de uma proposta. Existem
também acordos trabalhistas, os assim chamados contratos coletivos de trabalho. Acor-
dos e alianças não são novidade para nós.
O que caracteriza um acordo?
Um acordo acontece somente quando há pelo menos duas partes envolvidas. Não existe
acordo de uma pessoa com ela mesma. Acordo é coletivo, amplo e necessita de, pelo me-
nos, duas partes. Para acontecer um acordo deve haver uma proposta e uma iniciativa.
O que acontece quando um acordo é cumprido?
Geralmente, quando acordos são cumpridos há satisfação entre as partes envolvidas,
sobretudo quando as duas partes estavam realmente de comum acordo.
O que acontece quando um acordo não é cumprido?
Infelizmente, muitos acordos são rompidos. O rompimento de um acordo pode às vezes
trazer punição à parte que causou o rompimento. Quando um amigo trai a confiança
do outro, rompeu o acordo que tinham. Nesses casos presenciamos, não raro, o fim não
apenas da confiança, mas da própria amizade. Quando um acordo comercial é rompi-
do, seguem-se implicações legais e batalhas judiciais. Quando políticos rompem seus
acordos, o que acontece? Nem sempre temos punição... Quais as implicações do rompi-
mento de outras alianças como matrimónio, acordo de trabalho, decisões referentes à
vida comunitária?
Num segundo momento podemos ver o que esse acordo anunciado por Jeremias tem
de diferente em comparação com os acordos e alianças que conhecemos. Agora pode-
riam ser explorados os seguintes pontos:
a) A nova aliança é um acordo realizado por Deus com as pessoas. Quem toma a iniciati-
va é Deus. É ele quem traz a proposta e oferece o acordo.
b) A proposta feita é de nos tornarmos povo de Deus. Qual é a implicação dela para
a nossa vida? l Pe 2.9 fala que somos povo que pertence a Deus, para anunciar seus
atos poderosos. Como anunciar concretamente os atos poderosos de Deus? Ser povo
de Deus, conforme Jr 7.1-15, não se define a partir dos templos e práticas litúrgicas, mas
a partir da prática da justiça.
209

c) O conhecimento de Deus não depende da inteligência humana, mas da vontade divi-


na. Isso não é uma libertação também para os membros de nossas igrejas, geralmente
tratados como leigos por não possuírem conhecimento? Haverá legitimidade no em-
prego da palavra leigo após a nova aliança? Não terão todos o mesmo conhecimento?
d) Deus está disposto a construir em cima dos cacos. Existiram acordos que foram que-
brados, mas Deus continua e certamente continuará insistindo no convite para a reno-
vação de alianças quebradas.”
Fonte: Voigt (1997, on-line)3.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Jeremias e Lamentações: Introdução e Comentário


Roland K. Harrison
Editora: Vida Nova
Sinopse: comentário histórico-gramatical aos livros de Jeremias e Lamentações.

Blade Runner - O Caçador de Andróides


Ano: 1982
Sinopse: ficção científica que discute sobre a identidade humana. Como
a pessoa se torna pessoa e as dúvidas que a sociedade implanta em cada
indivíduo.

Artigo sobre o livro de Jeremias, escrito sob a perspectiva histórico-gramatical à luz da tradição
reformada. Disponível no seguinte link: <<http://cpaj.mackenzie.br/fidesreformata/arquivos/
edicao_38/artigos/266.pdf>
211
REFERÊNCIAS

ALLEN, Leslie C. Jeremiah: A Commentary. Louisville: Westminster John Knox Press,


2008.
BRUEGGEMANN, Walter. The Theology of the Book of Jeremiah. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2007.
DILLARD, Raymond B.; LONGMAN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento.
São Paulo: Edições Vida Nova, 2005.
FRETHEIM, Terence E. Jeremiah. Macon: Smyth & Helwys Publishing, 2002.
GERSTENBERGER, Ehrard. Teologias no Antigo Testamento. Pluralidade e sincre-
tismo da fé em Deus no Antigo Testamento. São Leopoldo: CEBI; Sinodal; EST, 2007.
LEENE, Henk. Newness in Old Testament prophecy: An Intertextual Study. Leiden:
Brill, 2014.
LEUCHTER, Mark. The Polemics of Exile in Jeremiah 26–45. Cambridge: Cambrid-
ge University Press, 2008.
LEVINSON, Bernard M. Legal Revision and Religious Renewal in Ancient Israel.
Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
POTTER, Hans D. The New Covenant in Jeremiah XXXI 31-34. In: Vetus Testamen-
tum. Vol. 33, Fasc. 3. Leiden: Brill, 1983, p. 347-357.
SKA, Jean-Louis. Introduccion ao Antiguo Testamento. Santander: Sal Terrae, 2012.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2004.

REFERÊNCIA ON-LINE

1
Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2017.
Em: <http://novaojs.newcastle.edu.au/ojsbct/index.php/bct/article/viewFile/178/162>.
2

Acesso em: 10 mai. 2017.


3
Em: <http://www.luteranos.com.br/textos/jeremias-31-31-34>. Acesso em: 9 mai.
2017.
GABARITO

1. FALSA.

2. Final da Monarquia e Início do Exílio babilônico.

3. FALSA.

4. Alteração no critério de juízo moral.

5. Ação direta de Deus.


Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

ANÁLISE EXEGÉTICA DO

V
UNIDADE
SALMO 96

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da fase
preparatória
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão espaço-temporal da ação
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão teológica da ação
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão psicossocial da ação
■■ Reconhecer e praticar os procedimentos metodológicos da análise da
dimensão missional da ação

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação,
Segmentação
■■ A dimensão espaço-temporal da ação
■■ A dimensão teológica da ação
■■ A dimensão psicossocial da ação
■■ A dimensão missional da ação
215

INTRODUÇÃO

Para finalizar, caro aluno(a), no estudo deste Salmo, entraremos em um ambiente


contextual novo na história de Israel: o exílio. Para entender bem este Salmo
precisamos, além de seguir os procedimentos metodológicos já aprendidos, nos
identificarmos com a condição dos judaítas no exílio. Que condição era essa?
A fé e a esperança do povo de Deus estavam abaladas diante de tamanha
destruição, diante do fim da independência de Judá e do governo da dinastia
de Davi. É certo que vários profetas haviam anunciado o juízo de YHWH sobre
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o reino de Judá, mas mesmo assim não era fácil aceitar que essa terrível situa-
ção era consequência da infidelidade a YHWH, consequência da infidelidade
do seu rei e do sacerdócio que deveria servir a YHWH e ensinar a sua verdade
ao povo. Uma outra resposta circulava entre os sobreviventes e os exilados de
Judá: naquele tempo se acreditava que quando um país conquistava outro, os
seus deuses derrotavam os deuses do país vencido. Marduque teria, então, derro-
tado YHWH e, assim como o Império babilônico subjugou Judá, Marduque teria
subordinado YHWH ao seu séquito de deuses inferiores. Muitos judeus ficaram,
por isso, em dúvida quanto ao poder e a força de YHWH. Era necessário, então,
reafirmar que YHWH é o deus dos deuses e o senhor dos senhores (Dt 10,17).
Em meio às incertezas do sofrimento, o Salmo 96 convida o pequeno povo
de Deus a se alegrar, a louvar o nome santo de YHWH. Convida o pequeno
povo de Deus a se regozijar diante de YHWH, juntamente com todos os povos,
mesmo os mais distantes povos da terra.
Ao realizarmos os procedimentos metodológicos da interpretação bíblica
não podemos nos restringir a uma atividade meramente técnica. Interpretar é
técnica mais imaginação e comprometimento com o texto. Sem a imaginação
teológica a exegese não funciona. A imaginação é fundamental para reconstruir
o contexto bíblico, mas também para fazermos a releitura, pois precisamos ima-
ginar o que fazer, hoje, à luz do texto. Eis o desafio da exegese.

Introdução
216 UNIDADE V

FASE PREPARATÓRIA: TEXTO, CONTEXTO,


DELIMITAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, SEGMENTAÇÃO

Como de costume, iniciamos com a leitura do texto bíblico.

Texto Hebraico e Tradução


‫ ִ ׁ֣שירּו ֭ ַליהו ָה ּב ֲָר ֣כּו ׁשְ ֑מֹו ּבַּׂשְ ֥רּו‬2 ‫ׁשִ ירּו ֭ ַליהו ָה ִ ׁ֣שיר חָ ָ ֑דׁש ִ ׁ֥שירּו ֜ ַליה ָ֗וה ּכָל־הָ ָא ֶֽרץ׃‬
‫ ִ ּ֥כי ָ֨ג ֤דֹול י ְה ָו֣ה‬4 ‫ְאֹותֽיו׃‬ ָ ‫ָל־העַ ּמִ֗ ים נִפְ ל‬ ֽ ָ ֜ ‫ְבֹודֹו ְּבכ‬ ֑ ‫ַּגֹוי֣ם ּכ‬ִ ‫ סַ ּפְ ֣רּו ב‬3 ‫מִ ּיֹֽום־ ֜ ְלי֗ ֹום י ְׁשּועָ ֽתֹו׃‬
‫ִילים ַ֜ו ֽיה ָ֗וה ׁשָ ַ ֥מי ִם‬ ֑ ִ ‫ֹלהי הָ עַ ִ ּ֣מים אֱ ל‬
֣ ֵ ֱ‫ ִ ּ֤כי׀ ּכָל־א‬5 ‫ֹלהֽים׃‬ ִ ֱ‫נֹורא ֜֗הּוא עַ ל־ּכָל־א‬ ֥ ָ ‫ּומְ הֻ ָ ּ֣לל מְ ֑א ֹד‬

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
‫ הָ ֣בּו ֭ ַליהו ָה מִ ׁשְ ּפְ ֣חֹות עַ ִ ּ֑מים‬7 ‫ הֹוד־ו ְהָ ָ ֥דר לְפָ ָנ֑יו ֥ע ֹז ְ֜ו ִתפְ אֶ֗ ֶרת ּבְמִ קְ ּדָ ׁשֽ ֹו׃‬6 ‫עָ ָׂשֽה׃‬
9
ָ ‫ּוב ֹאּו ְלחַ צ‬
‫ְרֹותֽיו׃‬ ֥ ‫ הָ ֣בּו ֭ ַליהו ָה ּכ ְ֣בֹוד ׁשְ ֑מֹו ׂשְ אֽ ּו־מִ֜ נְחָ֗ ה‬8 ‫הָ ֥בּו ֜ ַליה ָ֗וה ּכ ָ֥בֹוד ו ָֽע ֹז׃‬
‫ אִ מְ ֤רּו בַּגֹוי ִ֙ם׀ י ְ֨ה ָ֤וה מָ ֗ ָלְך‬10 ‫ת־ק ֹדֶ ׁש ִ ֥חילּו מִ֜ ּפָ ָ֗ניו ּכָל־הָ ָא ֶֽרץ׃‬ ֑ ‫הִ ׁשְ ַּתחֲ ו֣ ּו ֭ ַליהו ָה ּבְהַ דְ ַר‬
‫ י ִׂשְ מְ ֣חּו ֭הַ ּׁשָ מַ י ִם ו ְָת ֵ ֣גל הָ ָ ֑א ֶרץ‬11 ‫ַל־ּת ּ֑מֹוט י ִ ָ֥דין עַ֜ ּמִ֗ ים ּבְמֵ יׁשָ ִ ֽרים׃‬ ִ ‫ַאף־ּת ּ֣כֹון ֭ ֵּתבֵל ּב‬ ִ
‫ לִפְ ֵנ֤י‬13 ‫ר־ּבֹו ָ ֥אז ְ֜י ַרּנְנ֗ ּו ּכָל־עֲ צֵי־ ָי ֽעַ ר׃‬֑ ֶ‫ י ַעֲ ֹ֣לז ׂ֭שָ דַ י וְכָל־אֲ ׁש‬12 ‫ִי ְֽר ַ ֥עם הַ֜ ָּ֗ים ּומְ ֹלאֽ ֹו׃‬
‫י ְהו ָ֙ה׀ ִּ֬כי ָ֗בא ִ ּ֥כי ב ָ֘א לִׁשְ ּ֪פ ֹט הָ֫ ָ ֥א ֶרץ י ִׁשְ ּֽפ ֹט־ּתֵ ֵ ֥בל ּב ֶ ְ֑צדֶ ק ְ֜ועַ ּמִ֗ ים ּבֶאֱ מּונָתֽ ֹו׃‬
(Bíblia Hebraica Stuttgartensia, on-line)1.

Tradução:
Cantai a YHWH um cântico novo, cantai a YHWH, todas as terras. 2 Cantai a
YHWH, bendizei o seu nome; proclamai diariamente a sua libertação. 3 Anunciai
entre as nações a sua glória, entre todos os povos os seus atos poderosos.
4
Porque YHWH é grande e louvável, merece mais reverência do que todos
os deuses. 5 Porque todos os deuses dos povos são ídolos; YHWH, porém, fez os
céus. 6 Honra e majestade estão diante dele, força e esplendor em seu santuário.
7
Presenteai a YHWH, ó famílias dos povos, presenteai a YHWH glória e
força. 8 Presenteai a YHWH a glória que lhe pertence; trazei oferendas e entrai
nos seus átrios.
9
Prostrai-vos perante YHWH diante de sua imponente majestade [ou ‘pode-
rosa manifestação’]; trema diante dele toda a terra. 10 Dizei entre as nações: YHWH
reina. Ele firmou o mundo para que não se abale e governa os povos com equidade.
11
Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar e a sua plenitude. 12
Exulte o campo e tudo o que nele há; celebrai todas as árvores do bosque 13 na
presença de YHWH,

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


217

Porque ele está próximo, está prestes a governar a terra; governará o mundo
com justiça e os povos com sua fidelidade.
[Em 1 Crônicas 16:23-33 temos uma versão ligeiramente mais curta deste
salmo inserida em um relato sobre a entrada da Arca em Jerusalém na época de
Davi] (Traduzido do autor)

DELIMITAÇÃO, SEGMENTAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A delimitação dos Salmos é simples – já está feita no próprio livro antigo. Cada
Salmo é uma perícope (de fato, não se deve falar em ‘Salmos capítulo x’, mas em
Salmo 1 ou Salmo 33, etc.), cabe a quem interpreta analisar a segmentação e a
estruturação. Tarefas mais exigentes têm a ver com o lugar do Salmo na estru-
tura do livro, tema de que trataremos mais adiante, na análise do contexto.
O texto hebraico do Salmo 96 oferece indícios bem claros para a sua seg-
mentação, temos três seções que são convites à atividade litúrgica: 1-3 com seis
verbos no imperativo; 7-10 com oito verbos no imperativo e 11-12 com cinco
verbos no jussivo (as seções no imperativo convocam seres humanos, a seção
com o jussivo convoca a natureza); temos duas seções iniciadas com ky (porque,
pois): 4-6; 13. Assim, os segmentos estão claros:
1-3 Cantai a YHWH
4-6 YHWH merece louvor
7-12 Presenteai a YHWH
11-12 Alegria da Natureza
13 YHWH reinará

Não é tão clara a estrutura do Salmo. Uma pista poderia ser encontrada na
análise quantitativa de linhas e palavras. Com isto, percebemos que o Salmo pos-
sui 6 estrofes, com 14 estíquios (linhas poéticas) divididos em dois semi-estíquios
cada, com exceção do verso 10, que tem três estíquios (o terceiro não possui
dois semi-estíquios), formando uma estrutura poética numericamente equili-
brada: 14 + 1 + 14 estíquios. Quando contamos as palavras (no texto hebraico),

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


218 UNIDADE V

encontramos: 22+24 |16+20 |17+13 = 112 palavras = 16×7 palavras). Pode-se


perceber um arranjo centrado no número 7: duas seções que possuem 2x7 estí-
quios cada, e um estíquios solitário; o total de palavras equivale a um múltiplo de
7 (16x7). Se contarmos ainda mais detalhadamente as palavras percebemos que o
Salmo apresenta uma divisão cujo centro é o verso 8ª: vv. 1–7.8a.8b–13 > 54+4+54
palavras. Entretanto, após analisar a estrutura quantitativa do Salmo não consegui-
mos perceber como essa estrutura quantitativa poderia ser, também, a estrutura
semântica (significativa) do Salmo. O que teria mais importância estrutural? O
verso 8ª que é o centro quantitativo, ou o verso 10c que tem um estíquio solitário?

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Não vejo como o verso 10c possa demarcar a estruturação do texto. Já o
verso 8a é um candidato mais viável, mas a estrutura fica desequilibrada no seu
paralelismo, na medida em que o verso 13 não está em paralelo com os versos
1-3 (o verso 13 está em paralelo com os versos 4-6):
A 1-3
B 4-6
C 7
D 8ª
C’ 8b-10
B’ 11-12
A’ 13

Quando examinamos a história da pesquisa deste Salmo, notamos que há mais


de 15 propostas para a sua estruturação (para uma síntese, ver VAN DER LUGT,
2013, p. 64-75), de modo que a nossa dificuldade não é inusitada. O fato é que a
estruturação deste Salmo é irregular e, talvez, a hipótese menos complicada seja:
A 1-3 Convite à adoração
B 4-6 Motivação para a adoração
A’ 7-12 Convite à adoração
Aos seres humanos (7-10)
À natureza (11-12)
B’ 13 Motivação para a adoração

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


219

O CONTEXTO DO SALMO 96
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Passamos agora ao estudo do contexto do Salmo.

Gênero Textual
O Salmo 96 possui as marcas claras do gênero hínico (convite ao louvor e motiva-
ção para o louvor de YHWH), e foi composto para ser cantado no culto público.
Em que tipo de culto? Alguns autores propuseram que teria havido em Israel
uma festa para celebrar a entronização de YHWH, tendo em vista que os Salmos
93, 96-99 têm em comum o uso da frase YHWH mlk (YHWH reina, ou YHWH
começou a reinar). Entretanto, não há nenhum indício concreto da existência de
tal festa em Israel ou em Judá. Outros, situam os Salmos do Reinado de YHWH
(93, 96-99 – alguns autores incluem o Sl 47 e/ou o Sl 146 nesta lista) na festa do
Ano Novo em que se celebraria a renovação da aliança entre YHWH (rei) e seu
povo. Embora haja claros sinais da existência de uma Festa de Ano Novo em
Israel e Judá, não temos nenhuma informação sobre o conteúdo propriamente
dito dessa Festa. Em 1 Cr 16, capítulo no qual este Salmo é citado quase em sua
inteireza, também é situado em tempos antigos, quando da entrada da Arca em
Jerusalém. O livro de Crônicas tem por hábito situar textos litúrgicos de seu pró-
prio tempo (dominação persa) na época das origens da monarquia, de modo que
não oferece uma informação cronologicamente exata em relação a este Salmo –
a não ser que, na época da escrita do livro este Salmo era usado no culto e tinha
alguma importância (doutra forma não teria sido citado). No final das contas,
em que tipo específico de culto o Salmo 96 teria sido usado é secundário para
sua interpretação, era um Salmo de esperança, típico para celebrações cúlticas de
exilados ou de dominados por estrangeiros.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


220 UNIDADE V

CONTEÚDO E INTERDISCURSIVIDADE

Estamos em um terreno mais sólido quando examinamos o conteúdo e as rela-


ções interdiscursivas do Salmo. Vejamos alguns dos aspectos mais importantes
da interdiscursividade:
a. “Cantai a YHWH um cântico novo” é sentença que encontramos nos
Salmos 33:3; 40:4, 98:1; 144:9 e 149:1; bem como em Isaías 42:10.
b. “Anunciai” (hebraico bsr) é um verbo típico de Isaías 40-66 (40:9; 41:27;

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
52:7; 60:6; 61:1.
c. o louvor ‘universal’ – povos e nações, o mundo todo – é encontrado várias
vezes nos Salmos: 9:12; 67; 86:9; 102; 105:1 e pode ser um reflexo de Is
2:2-4 (=Mq 4:1-4) que fala da peregrinação das nações a Sião para ouvir
a torah de YHWH. A universalidade do reinado de YHWH e a partici-
pação das nações no culto está presente mais intensamente, porém, em
Isaías 40-66, por exemplo: “também os levarei ao meu santo monte e os
alegrarei na minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifí-
cios serão aceitos no meu altar, porque a minha casa será chamada Casa
de Oração para todos os povos” (Is 56:7) e “As nações verão a tua justiça,
e todos os reis, a tua glória; e serás chamada por um nome novo, que a
boca do SENHOR designará” (Is 62:2).
d. o louvor da natureza também é um tema frequente em Is 40-55: 42;10;
44:23; 49:13; 55:12. Está condensado e intensificado no Salmo 148 que
possui indícios de estar baseado em Is 40-66.
e. a vinda de YHWH é um tema recorrente de Is 40-66 – iniciando em 40:9-
11, passando por 52:7ss e culminando na vinda de novos céus e nova
terra em 65:17-25.
f. Os versos 7-9 são uma citação modificada de Sl 29:1-2 – ao invés de ‘filhos
de Deus’ (que equivaleria ao concílio celestial, cf. Sl 82:1ss), são convoca-
das as ‘famílias das nações’ – nós chamaríamos hoje em dia essa alteração
de uma ‘desdivinização’ – o que aponta para um período na história de
Israel em que a afirmação da unicidade de YHWH já era capaz de suplan-
tar as antigas tradições da ‘corte celestial’.

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


221

Esses dados são suficientes para nos fazer situar o Salmo no período da domi-
nação babilônica e início da dominação persa (entre c. 597 a.C. [a primeira
deportação para a Babilônia] e 515 a.C. [o primeiro retorno de deportados
para Jerusalém]. Temos, então, um contexto marcado por: consternação pela
perda de Jerusalém e do Templo, pela falta de liberdade e pela destruição do
Reino; mas também de esperança pela restauração de Jerusalém e do Templo
com a primeira leva de exilados voltando para Jerusalém (veja-se, por exem-
plo, o livro do profeta Ageu convocando à reconstrução do Templo, logo após
o ano 515 a.C.). Dentre os vários projetos teológicos do período, nosso Salmo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

se alinha com o do livro de Isaías que, com a ausência de um rei da dinastia


davídica, faz novamente recair o foco da esperança sobre o próprio YHWH
como rei de Israel (em contraste com os projetos sacerdotal e deuteronômico
de valorização dos intermediários humanos – sacerdócio e rei). Este Salmo
pode ser lido, então, como parte da teologia da esperança em que YHWH vol-
taria a reinar sobre Judá e Israel, outorgando assim novamente liberdade ao seu
povo, novamente habitando a sua própria terra, e não mais sujeito às potên-
cias militares estrangeiras.
Vamos refletir um pouco mais sobre o contexto deste Salmo. O período
da escrita do Salmo 96 representa uma outra época em que a temática do rei-
nado de Javé se torna relevante para a fé israelita. Os babilônios afirmavam que
seu deus principal, Marduque (o deus-sol), era o rei dos deuses e o rei de toda
a terra, o criador da terra e dos seus habitantes. Um grande festival era cele-
brado em honra de Marduque anualmente, no início do ano, conhecido como
Festival do Ano Novo (Akitu era o nome babilônio desse festival). Parte da cele-
bração desse festival era a entronização de Marduque como o rei dos deuses e o
senhor de toda a terra. O rei babilônio era reconhecido como o representante
de Marduque na terra, de modo que o poder do rei era a prova concreta do
poder do seu deus. A principal causa da queda da Babilônia nas mãos de Ciro,
rei dos persas, foi a tentativa do rei Nabonido fazer de Sin (o deus-lua) o deus
principal dos babilônios, ocupando o lugar de Marduque. Houve uma revolta
contra a política de Nabonido, e Ciro conseguiu conquistar o trono babilônico
sem necessidade de guerra.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


222 UNIDADE V

Imagine-se como um judeu, exilado na Babilônia, tendo de participar des-


ses festivais em honra de Marduque. Como resistir à afirmação da soberania de
Marduque se a terra de Israel fora destruída? Se o templo de Javé fora derrubado
e o trono de Davi estava vazio?
Além da afirmação da realeza de Marduque, um outro elemento da teolo-
gia dos babilônios é importante para nos ajudar a datar os salmos do reinado
de Javé na época da dominação babilônica. A teologia dos babilônios enfatizava
o papel de Marduque como criador do mundo. Em um importante texto, cha-
mado Enuma Elish, os sábios babilônios descreviam a criação do mundo como

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o resultado final de uma grande guerra entre os deuses, na qual Marduque foi
o vitorioso general que derrotou Tiamate (a deusa do mar). Após a morte de
Tiamate, Marduque criou o mundo com o sangue dela e fez os seres humanos
para servirem aos deuses, de modo que não mais houvesse revolta entre os deu-
ses. Como vitorioso deus, Marduque é entronizado rei dos deuses, o sábio e justo
criador do mundo e governante celestial.
Quando lemos os salmos do reinado de Javé e os comparamos com a teolo-
gia dos babilônios, percebemos muitos pontos de contato. Os salmos do reinado
de Javé podem, então, ter sido compostos (ou revisados) durante o período da
dominação babilônica, como uma forma de resistir contra a teologia babilônia
e seus apelos para que os judeus cressem em Marduque e não mais em Javé. São
textos, então, que polemizam contra a teologia dos babilônios e ajudam o povo
judeu a repensar a sua identidade e sua fé em Javé.

(1) Polêmica contra a teologia dos babilônios


No Antigo Oriente, era comum os povos acreditarem que, quando uma nação era
conquistada por outra, os deuses da nação conquistadora derrotavam os deuses
da nação conquistada (veja um exemplo dessa crença no discurso do porta-voz
dos assírios perante os muros de Jerusalém – II Reis 18.19-37, especialmente os
versos 33-25). Como os babilônios haviam conquistado Judá, afirmavam que seu
deus principal, Marduque, havia derrotado Javé, o deus dos judeus. É provável que
muitos judeus tenham acreditado mesmo que Javé havia sido derrotado. Já o pro-
feta Jeremias – que pregou no período da guerra contra os babilônios – acusava o
povo de Jerusalém de cometer idolatria (Jr 7.16-20) e a liderança de Jerusalém de

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


223

não andar nos caminhos do Senhor (Jr 7.1-15). São do mesmo período – o mais
provavelmente nas primeiras décadas após a destruição de Jerusalém – alguns
lamentos do povo judeu, se queixando de que Javé havia se esquecido deles (por
exemplo, em Is 40.27 e 49.14 encontramos “citações” do lamento contra Javé).
Diante da afirmação e da celebração da realeza de Marduque, era necessá-
rio reenfatizar que Javé era o rei de toda a terra, o criador e o redentor de Israel.
Note, nos salmos do reinado de Javé, quantas vezes se mencionam as “nações” e
os “povos” - indício de que os judeus estavam cantando estes cânticos de louvor
a seu deus enquanto “cercados” por pessoas de outros povos. Foi exatamente no
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

período da dominação babilônica que os judeus tiveram de viver em colônias


na terra dos babilônios, lado a lado com outras colônias de diferentes povos. Era
costume dos babilônios deportar grupos de pessoas dos povos conquistados, para
reconstruir cidades ou reorganizar fazendas. Ao lado de pessoas de outros povos,
certamente não seria incomum que os judeus ouvissem zombarias contra a sua fé
em Javé – de gente que acreditava que Javé havia sido derrotado por Marduque!
Repare, por exemplo, em: (a) Salmo 96.3-5: “anunciai entre as nações a sua
glória, entre todos os povos as suas maravilhas. Porque grande é Javé, mui digno
de ser louvado, temível mais que todos os deuses. Porque todos os deuses dos povos
não passam de ídolos; Javé, porém, fez os céus” (lembra, como vimos acima, que
os deuses babilônios eram considerados astros do céu?); (b) Salmo 97.9: “pois tu,
Javé, és o altíssimo sobre toda a terra; tu és sobremodo elevado acima de todos
os deuses”. São afirmações da supremacia de Javé sobre os deuses das nações – e
até se afirma que os deuses não eram mais do que ídolos.
Outro tema importante que só pode ser bem entendido se comparado com a
teologia dos babilônios, é o da supremacia de Javé sobre as águas. Veja: “Levantam
os rios, ó Deus, levantam os rios o seu bramido; levantam os rios o seu fragor. Mas
Javé, nas alturas, é mais poderoso do que o bramido das grandes águas, do que
os poderosos vagalhões do mar” (93.3-4). “Alegrem-se os céus, e a terra exulte;
ruja o mar e a sua plenitude” (96.11). “Ruja o mar e sua plenitude, o mundo e os
que nele habitam. Os rios batam palmas, e juntos cantem de júbilo os montes”
(98.7-8). No Enuma Elish, Marduque (deus-sol) derrota Tiamate (deusa-mar)
antes de criar o mundo. Nos Salmos, o mar e os céus são apenas criaturas de
Javé, incapazes de vencê-lo, e subjugadas a Ele para o adorar.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


224 UNIDADE V

(2) Repensando a identidade teológica do povo judeu


Um dos temas diretamente vinculados à afirmação da realeza de Javé, nas tradi-
ções monárquicas de Judá, é a relação entre a realeza divina e a dinastia davídica.
Textos como II Samuel 7 e Salmos 72 e 89; a ênfase na figura de Davi como
“servo de Javé”; a esperança messiânica real (cf. Is 6-9); e as afirmações sobre a
filiação divina do rei (Sl 2), são exemplos dessa relação – que não tem nada de
inusitado nas teologias políticas do Antigo Oriente, pois era moeda corrente –
os reis são, na terra, representantes (ou filhos) do deus supremo, ou dos deuses.
O rei terreno é quem governa na terra manifestando o governo divino – ou seja,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
é ele quem executa na terra a justiça divina (e.g. Salmo 72) – e é, por sua vez,
protegido e legitimado pelo governo divino. A importância da dinastia davídica
extrapola a teologia “oficial” da corte, e se manifesta também na forma de um
tipo de messianismo davidida, cujo lugar social é a crítica profética e popular à
dinastia davídica regente (e.g. Is 6-9).
A conquista dos babilônios foi profundamente marcante na revisão dessa
forma de pensar a relação entre a realeza de Javé e a nação de Judá. A promessa
de que a dinastia de Davi iria governar para sempre em Jerusalém não fora cum-
prida. Com a conquista pelos babilônios, a família de Davi foi tirada do trono e
levada para o cativeiro. Fez-se necessário repensar a teologia do reinado de Javé.
Outro tema importante para a monarquia de Judá, vinculado à crença na per-
manência da família de Davi no trono, era a crença na inviolabilidade de Jerusalém/
Sião. Como o Templo de Javé estava em Jerusalém, sobre o monte Sião, começou-se
a acreditar que a cidade jamais seria conquistada por um rei estrangeiro. O Templo
jamais seria destruído, pois como a morada de Deus, ele era visto como o centro do
cosmos e a morada eterna de Javé (veja os Salmos 46, 48, 76 e 87). Esta compreensão
está estreitamente ligada à legitimação da dinastia davídica brevemente comen-
tada acima. Na oração de dedicação do Templo, atribuída a Salomão, é afirmada a
perenidade do Templo enquanto morada de Javé (I Rs 8,13), crença reforçada na
crítica ao profeta Jeremias que anunciava o juízo contra a casa e a cidade (Jr 7,4).

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


225

A queda da cidade e a destruição do Templo representaram um desastre terrível


para a fé judaíta:
[...] caiu, assim, um baluarte. Não casualidade, mas indício. Sinal da
presença de Deus. No entanto, um Deus que perdia a habitação que
escolhera para si, perdia também a força. Que significado tem esse fato
para a possibilidade de se falar desse Deus? Cito aqui trechos de uma
oração: ‘que por tua ordem seja edificada a cidade divina ... o templo
seja acabado! Que por tua palavra, pois ela não muda, possa ... com-
pletar-se a obra de minhas mãos! Que tudo o que criou dure e subsista
visivelmente até os tempos mais remotos’. (PERLITT, 1981, p. 295).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A identidade teológica do povo judeu não mais podia se basear nessas duas
ideias: a dinastia davídica sem fim e a inviolabilidade de Jerusalém e Sião. Os
salmos do reinado de Javé afirmam a estabilidade do mundo todo, e não mais
da dinastia e da cidade, bem como a estabilidade do trono de Javé. Veja: “Javé
reina. Revestiu-se de majestade; de poder se revestiu Javé, e se cingiu. Firmou o
mundo, que não vacila. Desde a antiguidade está firme o teu trono” (93.1-2). “Dizei
entre as nações: Javé reina. Ele firmou o mundo, para que não se abale” (96.10).
Era necessário reafirmar a realeza de Javé, a soberania do deus de Israel. Mas
era necessário desvincular a realeza de Javé da durabilidade do reino davídico e
sua capital. Javé é o deus supremo, porque criou o mundo e porque reina sobre
todas as nações, e não porque garante o trono de Davi e a segurança de Sião!
Para reconstruir a identidade de um povo, nada mais eficaz e duradouro do
que as canções cantadas repetidamente nos cultos. Nada mais eficaz do que as
canções que se guardavam na memória e se cantarolavam no dia a dia, entre os
afazeres da vida cotidiana. “Como, porém, haveríamos de entoar o canto de Javé
em terra estranha?” (Sl 137.4). Somente seria possível cantar o canto de Javé na
terra estranha do exílio quando esse canto não mais estivesse preso à dinastia
de Davi e aos muros de Jerusalém. Crer e celebrar o reinado universal de Javé
foi um passo fundamental para a reconstrução da identidade do povo de Deus
durante a dominação babilônica.

Fase Preparatória: Texto, Contexto, Delimitação, Estruturação, Segmentação


226 UNIDADE V

Um dado interessante é o título que este Salmo recebe na LXX (Septuaginta


ou Os Setenta, tradução da Bíblia Hebraica para o idioma grego): “Quando
a casa foi construída após o exílio”. Cântico. De Davi. Note que o salmo é
atribuído a Davi, mesmo sendo situado depois do exílio (séculos depois da
morte de Davi). Por um lado, o título nos ajuda a datar o Salmo, confirmando
a hipótese já aventada. Por outro, nos ajuda a reconhecer que a noção de
autoria para os judeus antigos não era a mesma que a nossa – o autor não
é necessariamente quem ‘escreve’, é autor a ‘autoridade’ por detrás do texto,
ou a pessoa que iniciou uma forma nova de pensar e pregar sobre a fé.
Fonte: o autor.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL DA AÇÃO

Como de costume, iniciamos alistando os elementos.

AS PESSOAS (LISTAGEM E ANÁLISE)

(1) Listagem
Vós: 1 (2x), 2 (3x), 3 (2x = uma está implícita), 7 (2x), 8 (2x), 9 (1x), 10 (1x)
YHWH: 1 (2x), 2 (2x), 3 (2x), 4 (1x), 5 (1x), 6 (1x), 9 (2x), 10 (3x), 13 (5x
= uma está implícita)
Todas as terras: 1 (1x)
Famílias dos povos: 7 (2x), 8 (2x)
Toda a terra: 9 (1x)
O mundo: 10 (1x), 13 (1x)
Os povos: 10 (1x), 13 (1x)
Todos os deuses dos povos: 5 (1x)
Céus, terra, mar e sua plenitude, campo e tudo que nele há, todas as árvo-
res do bosque: 11-12 (1x cada)
A terra: 13 (1x)

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


227

(2) Análise. Os atores do Salmo 96 e suas ações são:


YHWH: (a) como destinatário do cântico novo (1.2.3.7.8.9.10.13a); (b) é grande
e louvável (4a), merece mais reverência do que todos os deuses (4b), fez os céus
(5b), honra e majestade estão diante dele (6a), força e esplendor em seu santu-
ário (6b), glória que lhe pertence (8a), imponente majestade (9a), reina (10a),
firmou o mundo para que não se abale (10b), governa os povos com equidade
(10c), ele está próximo (13a), está prestes a governar a terra (13b), governará o
mundo com justiça (13c), governará os povos com sua fidelidade (13d)
Vós = todos os povos destinatários do Salmo: chamados à adoração
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Todas as terras, toda a terra, famílias dos povos, os povos = outros povos,
individualmente ou em conjunto: chamados à adoração
Toda a terra, o mundo, a terra = toda a criação [natureza e pessoas]: cha-
mada à adoração
Céus, terra, mar e sua plenitude, campo e tudo que nele há, todas as árvores do
bosque = natureza (parte de toda a criação exclusive humanos): chamada à adoração

ESPAÇO

(1) Listagem
Entre as nações (3.10), entre todos os povos (3)
Diante de YHWH (6), seu santuário (6), seus átrios (8), perante YHWH (9),
diante dele (9)
Espaços personificados: todas as terras, toda a terra, o mundo, os céus, a terra,
o mar, o campo, do bosque

(2) Análise
Espaço político ‘global’ = Entre as nações (3.10), entre todos os povos (3)
Espaço litúrgico (Templo) = Diante de YHWH (6), seu santuário (6), seus
átrios (8), perante YHWH (9), diante dele (9)
Espaço da criação – universal = todas as terras, toda a terra, o mundo, os
céus, a terra, o mar, o campo, do bosque

A Dimensão Espaço-Temporal da Ação


228 UNIDADE V

TEMPO

(1) Listagem
A maioria dos verbos está no imperativo (alguns verbos no jussivo – o jus-
sivo é um tempo verbal que, no salmo, equivale ao imperativo)
Os demais verbos estão no incompleto hebraico (presente e futuro do pre-
sente em português)
No verso 13 temos advérbios e expressões temporais: “está próximo”, “está

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
prestes a”

(2) Análise
A temporalidade é completamente ‘subjetiva’: a. ela gira ao redor da expec-
tativa dos sujeitos convocados à adoração (tanto no sentido de atender ao
chamado, como no sentido de esperar a chegada de YHWH como rei de toda
a terra), e b. ela é acrônica na descrição de YHWH
Passemos à síntese do Significado da Dimensão Espaço-Temporal da Ação.
Tudo nesse Salmo respira grandiosidade. YHWH é descrito em termos
majestosos e impressionantes. O tempo e o espaço são globais, universais, em
escala quase que infinita. Os adoradores e adoradoras de YHWH convocados
pelo hino também são colocados em escala universal – todas as nações, toda a
natureza, toda a terra, tudo que existe é convocado à adoração a Deus altíssimo,
acima de todas as coisas e de todos os deuses que não são sequer deuses. O efeito
de sentido é predominan-
temente subjetivo. Quem
ouve ou lê o hino se sente
parte de uma liturgia uni-
versal e quase que infinita.
Cantar a YHWH é entrar
em um ambiente de expec-
tativa esperançosa – ele
vem!

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


229

A DIMENSÃO TEOLÓGICA DA AÇÃO

Vamos iniciar este Tópico com a análise da estrutura profunda do texto, ou seja,
de seu tema unificador.

O sentido do texto em sua unidade


A oposição semântica que dá unidade ao texto é:
ESPERANÇA DESESPERANÇA
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

CONFORMISMO ANSIEDADE

O movimento do texto inicia na desesperança (implícita na situação de domina-


ção imperial), passando pelo conformismo (implícito na aceitação da dominação,
mas recusado pelo Salmo) e culminando na esperança (de que YHWH virá e
mudará a situação de seu povo). Podemos imaginar o liturgista chamando os
israelitas subjugados (entre as nações) para cantar um novo cântico (novo na
medida em que a situação de exílio é nova) que lhes possibilitaria sair da situa-
ção de desesperança para uma situação de esperança positiva, sem conformismo
com sua situação presente, nem ansiedade em relação ao seu futuro. Esta uni-
dade se desdobra em dois percursos: (1) a disposição para adorar, manifestado
nas chamadas à adoração e proclamação, (2) a esperança da vida nova, manifes-
tado nas motivações para a adoração e no conteúdo da proclamação.

DETALHAMENTO DO SENTIDO DOS PERCURSOS

(1) A disposição para a vida nova


Este percurso agrupa dois conjuntos de expressões convocatórias no modo ver-
bal da possibilidade (imperativo e jussivo):

a. convites à adoração a YHWH


1 Cantai a YHWH um cântico novo, cantai a YHWH, todas as terras. 2 Cantai a
YHWH, bendizei o seu nome; 7 Presenteai a YHWH, ó famílias dos povos, pre-
senteai a YHWH glória e força. 8 Presenteai a YHWH a glória que lhe pertence;

A Dimensão Teológica da Ação


230 UNIDADE V

trazei oferendas e entrai nos seus átrios. 9 Prostrai-vos perante YHWH diante de
sua imponente majestade [ou ‘poderosa manifestação’]; trema diante dele toda
a terra. 11 Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar e a sua plenitude.
12 Exulte o campo e tudo o que nele há; celebrai todas as árvores do bosque 13
na presença de YHWH ...
“Como os salmos adjacentes, este começa com a convocação ao mundo inteiro
a que cante os louvores do Senhor. Esta, como muitas outras expressões, se asse-
melha a partes de Isaías 40-66 (ver as palavras iniciais em Is 42:10)” (HARMAN,
2011, p. 341). O louvor a Deus é descrito com uma profusão de verbos que apon-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tam para a grandiosidade do culto e, por meio das repetições e duplas de ações,
para a intensidade das emoções e comprometimento de quem vai à casa de Deus
para louvá-lo: cantar + bendizer o nome; presentear + trazer oferendas; prostrar-
-se + tremer; alegrar-se + regozijar-se; exultar + celebrar.
Cantar a YHWH é também bendizer o seu nome. Quem bendiz a Deus reco-
nhece a sua bondade, o seu poder, a sua glória, etc. O nome, na cultura hebraica,
equivale ao caráter da divindade. Alguns autores consideram que a palavra ‘nome’,
aqui, pode estar sendo usada no sentido da teologia deuteronômica em que a
presença de YHWH é sempre descrita como a presença do nome de YHWH no
culto. O nome de Deus estaria presente no culto, mas o próprio Deus continua-
ria exaltado em sua transcendência, acima do controle dos adoradores. Não há
consenso em relação a tal teologia deuteronômica do nome. O que importa, aqui,
é que YHWH – extremamente grandioso – é digno de receber as boas palavras
e bons sentimentos de quem adora. O cântico a ser cantado deve ser novo – não
tanto em seu conteúdo, mas em sua disposição – uma nova disposição para rece-
ber a presença e a ação de YHWH em tempos nos quais parece que Ele sequer
está disponível para agir.
Presentear a YHWH é reconhecer que Ele é gracioso, misericordioso e aben-
çoador. Damos presentes a quem também nos dá presentes. Presentes e oferendas
de gratidão são a tônica desses dois verbos. Implícito neles está a ação anterior
de YHWH derramando suas bênçãos. Gratidão é a tônica desses verbos.
Prostrar-se e tremer são verbos que apontam para a reverência de adoradoras
e adoradores. YHWH é grandioso, muito mais do que qualquer rei ou imperador
humano, muito mais do que os deuses dos povos, muito maior do que os deuses

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


231

dos povos que dominam Israel. Em linguagem teológica, estes verbos respiram
a atmosfera do temor do Senhor.
Alegrar-se e regozijar-se, celebrar e exultar são os verbos finais do convite à
adoração. Fazem-nos entrar na atmosfera da plena satisfação, do contentamento
pleno, da celebração alegre e feliz. Israel, nações e toda a criação participam do
culto ao Senhor de todas as coisas. Viver diante de YHWH significa viver em
uma atmosfera de bem-aventurança, de felicidade sem fim. Todos os sentimentos
evocados pela presença e ação de YHWH desembocam nessa alegria incalculá-
vel. Não importam as circunstâncias!
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

b. Convites à proclamação de boa-nova


3 Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos os seus atos pode-
rosos. 10 Dizei entre as nações: YHWH reina. Ele firmou o mundo para que não
se abale e governa os povos com equidade.
Dois estíquios formados de dois hemistíquios. O primeiro (v. 3) descreve a
ação da proclamação com uma raiz que em Is 40-66 é traduzida como evangeli-
zar (a LXX traduz este verbo por aggelo anunciar). O povo oprimido e dominado
é convocado a trazer uma boa notícia para todas as nações: YHWH é glorioso e
poderoso. Glória e atos poderosos (maravilhas) formam um par impressionante
– denotam grandeza e poder: exatamente as características que os reis e impera-
dores do Antigo Oriente (e até hoje) atribuíam a si mesmos por suas conquistas. O
hino diz: somente YHWH é glorioso, somente YHWH tem poder para transfor-
mar a vida para o bem! Todos os grandes desta terra são apenas sombra e ilusão.
Esta boa-nova, que é também uma crítica ao exercício injusto do poder, é
repetida e culmina no conteúdo do que deve ser dito (v. 10 – o verbo hebraico
é o simples ‘dizer’ e complementa o verbo do verso 3, indicando o conteúdo da
boa notícia): YHWH reina! YHWH criou o mundo! YHWH sustenta sua cria-
ção. Voltarei ao tema do reinado de YHWH na próxima seção. Basta agora notar
que ele forma o conteúdo da proclamação – a proclamação implícita na adora-
ção a YHWH. Não se trata de uma ‘pregação’ após os louvores. Trata-se, sim,
do conteúdo dos louvores. A celebração de YHWH é a celebração de sua impo-
nente soberania, e todos os povos terão de reconhecer que somente YHWH é o
Senhor de todas as coisas.

A Dimensão Teológica da Ação


232 UNIDADE V

(2) Esperança de uma Vida Nova


A motivação para os louvores e o conteúdo dos louvores se mesclam no hino e
formam dois conjuntos de majestosas declarações teológicas a respeito da pes-
soa e ação de YHWH:

a. O conjunto dos porquês:


4 Porque YHWH é grande e louvável, merece
mais reverência do que todos os deuses.
5 Porque todos os deuses dos povos são

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ídolos; YHWH, porém, fez os céus. 6
Honra e majestade estão diante dele,
força e esplendor em seu santuário. //
13 Porque ele está próximo, está prestes
a governar a terra; governará o mundo
com justiça e os povos com sua fidelidade.
A motivação para a adoração mescla ‘teo-
logia’ com ‘esperança’. Teologia: o que sabemos
sobre Deus e constitui nossa fé. Esperança: o que acre-
ditamos poder esperar de Deus, mesmo quando o presente parece contradizer o que
cremos. O Salmo nos convida a adorar a YHWH porque não há nada nem ninguém
tão grandioso e justo quanto Ele. Se agora sofremos, não precisamos temer e perder
a esperança, pois o sofrimento chegará ao seu fim quando YHWH retornar para
reinar sobre toda a sua criação.
Em um mundo politeísta, em que se acreditava que o deus do rei vencedor
derrotava o deus do rei perdedor, Israel tem a coragem de afirmar o contrário:
YHWH é rei, ele não foi derrotado! –
“[...] o salmista faz trocadilho com a palavra hebraica para Deus
(‘elohim), dizendo que os deuses pagãos não passam de ídolos sem
qualquer valor ou importância (‘elilim). São expostos ao opróbrio dian-
te de nosso Deus soberano (Is 19.l; S I 97.7). Não são reais, e por isso
não têm qualquer poder como tem aquele que fez os céus” (HARMAN,
2011, p. 342).

É impressionante a ousadia dos israelitas – oprimidos pelos impérios – ao afir-


mar que seu Deus é o Deus dos deuses! Vejamos:

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


233

“[...] o corpo do hino apresenta os motivos para o cântico novo. O pri-


meiro motivo é que ‘YHWH é grande’ (4a), não há ninguém maior do
que ele. Ele é o único que merece ser louvado. É o Deus terrível por
excelência (Sl 76), como gosta de afirmar o pregador deuteronômico:
o único a quem se deve a adesão fiel. Em outras palavras, o primeiro
motivo é a vigência do principal mandamento da aliança: ‘não terás
outros deuses diante de mim’ (Dt 5:7). O que são o resto dos deuses?
Nada, nulidade, vazio, como Isaías gosta de proclamar (cf. Is 40:12-20;
41:23-24; 44:9-20; etc.). O segundo motivo é que os ídolos são obra de
mãos humanas (cf. Is 40:19; 41:6-7); YHWH, ao contrário, é o ‘criador
dos céus’ (v. 5b). Longe de ser uma nulidade, YHWH é o criador da su-
posta morada dos deuses, o céu, que o poeta relega a mera manufatura.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O terceiro é a esplêndida majestade de Deus: o criador do céu passeia


pela terra cortejado por um conjunto de quatro personificações: ‘glória
e majestade’ andam adiante dele – às vezes consideradas com a veste
real de Deus, sinal de sua posição e prestígio (Sl 104:1), e de ‘poder
e esplendor’ (v. 6), sinais do ‘tremendo’ e ‘fascinante’ que envolvem o
mistério divino. É assim que YHWH pode ser contemplado em seu
Templo. É assim que YHWH se manifesta em seu templo terrestre, au-
xiliado por estas quatro personificações” (RODRÍGUEZ, 2008, p. 271).

O que a realidade esconde, o culto manifesta. Se no dia a dia YHWH parece ter sido
derrotado pelos deuses estrangeiros, no culto reafirmamos a fé: YHWH é o Deus
dos deuses. Se Israel sofre é porque foi infiel a YHWH e enfrenta as consequências
dessa infidelidade. No culto, o povo pecador reconhece sua infidelidade e afirma a
fidelidade e grandeza de Deus. A alegria e as celebrações cúlticas não podem ocul-
tar a realidade da vida dos adoradores e adoradoras. Deus sempre será fiel – fiel a Si
mesmo e ao Seu compromisso com toda a criação. Ele não é fiel ‘a meus interesses’!

b. O conjunto da proclamação:
3 Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos os seus atos podero-
sos. // 10 Dizei entre as nações: YHWH reina. Ele firmou o mundo para que não
se abale e governa os povos com equidade. // Porque ele está próximo, está prestes
a governar a terra; governará o mundo com justiça e os povos com sua fidelidade.
O conteúdo da proclamação é, em síntese, o reino de YHWH. Este é um dos
temas mais debatidos na exegese e teologia do Antigo Testamento e, antes de
apresentar a minha própria descrição do reinado de YHWH neste salmo, vale a
pena apresentar uma série mais longa de citações de três autores contemporâ-
neos para que vocês possam ter um ‘gostinho’ do debate acadêmico sobre o tema.

A Dimensão Teológica da Ação


234 UNIDADE V

“Nos anos 1960 um amplo e parcialmente acirrado debate foi trava-


do em relação ao sentido exato desta frase (YHWH mlk). Ela enfatiza
o reinado eterno de YHWH, afirmando a sua autoridade permanente
sobre toda a criação e sobre todos os demais poderes divinos? Ou ela
comunica memórias de quando YHWH assumia anualmente, no cul-
to, o senhorio supremo, ao modo das divindades vétero-orientais que
morrem e ressuscitam? [...] Com base na evidência linguística e teoló-
gica, parece óbvio que os salmos do reinado de YHWH pressupõem
mitos da batalha primordial e que até mesmo ‘a estrutura do culto pós-
-exílico tenha sido moldado pelos conceitos do senhorio de YHWH’
(Seybold, 577). Para mim, datas pré-exílicas para este grupo de salmos
são improváveis; YHWH, o Deus supremo, faz mais sentido na situa-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ção de diáspora de Israel após 586 a.C., em uma sociedade politeísta e
imperialista” (GERSTENBERGER, 2001, p. 173-174).

Devo acrescentar que o debate desaqueceu nos anos 1980-1990, mas foi reaberto
no século XXI e não dá mostras de chegar a um consenso. Particularmente, e a
minha interpretação desse salmo vai nessa direção, acredito que os salmos do
Reinado de YHWH mantêm relações interdiscursivas com os relatos de realeza
divina em Ugarite, Canaã e Mesopotâmia, mas a sua relação com eles é polê-
mica. Os israelitas afirmam: YHWH é o único Rei de toda a terra, ele é o deus
dos deuses e senhor dos senhores. Não consigo ver que Israel tenha adotado a
crença na entronização anual do deus supremo, nem que tenha assumido ple-
namente os conteúdos míticos dos seus vizinhos.
Voltemos a Gerstenberger:
“[...] o hino, propriamente dito (v. 4-6), ou seja, as linhas que exaltam a
Deus, deveria ser cantado por uma pessoa e, repetidamente, pelo coro
ou pela congregação, é parcialmente introduzido pela conjunção excla-
matória ky, ‘sim’ (vv. 4-5; cf Êx 15:21; Sl 118:1). A primeira linha (v. 4) é
um pouco diferente de 95:3, celebrando, por assim dizer, a superiorida-
de de YHWH sobre todos os deuses. Uma frase como ‘YHWH é grande’
(v. 4a) parece ter um peso e uma persistência arquetípicos; sua história
traditiva já tem milhares de anos (note também o louvor islâmico Allah
Akbar – Alá é grande; e, ocasionalmente, um eco humano ‘eu sou o
maior de todos’). A designação gâdôl, grande, com relação a divindades
e reis é fundamental no discurso hínico na Bíblia hebraica (cf. Dt 7:21;
10:17; Sl 21:6; 48:2; 77:14; 86:10: 99:2; 135:5; 145:3; 147:5). Interessante-
mente, esta linha do v. 4a aparece em dois outros salmos: 48:2 e 145:3,
apenas com uma variação na segunda parte. Nosso verso 4b, porém,
em contraste com essas duas passagens, mas em acordo com 95:3b,

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


235

encaminha para a polêmica: ‘todos os deuses das nações são nada’ (v.
5a). A polêmica israelita contra os deuses ‘estrangeiros’ é o resultado de
uma prolongada batalha pela sobrevivência em um império autocrático
e multi-religioso (cf. Is 40:18-25; 44:9-20). Reivindicar superioridade
para YHWH era o único meio de defesa contra os opressores babilônios
e persas. Alguns dos salmos do reinado de YHWH praticam este tipo de
refutação dos poderes estrangeiros, sem, por assim dizer, documentos
desta época crucial (cf. Sl 93:3-4; 95:3; 97:7,9). Para este tipo de ridicu-
larização de outros deuses, temos de comparar, especialmente, algumas
passagens no Segundo Isaías: Is 40:18-25; 44:9-20. O termo pejorativo,
’elilim, é usado em alguns outros contextos: cf. Lv 19:4; 26:1; Is 2:8, 20;
10:10-11; 19:1, 3; Hc 2:18” (GERSTENBERGER, 2001, p. 188)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(b) Hans Joachim Kraus


“A tradução da fórmula inicial YHWH mlk por ‘YHWH é rei’ precisa, antes de tudo,
ser demonstrada claramente, pois essa tradução está em conflito com uma concep-
ção que, em tempos recentes, tem gozado de grande aceitação. 1. Em primeiro lugar,
devemos levar em conta a ordem das palavras. A proposição verbal mlk YHWH
refere-se a um acontecimento vívido e comovente, ao término do ato de entroni-
zação (cf. 1Rs 1:11; Sl 47:9; Is 52:7); por outro lado, a proposição que enuncia um
estado YHWH mlk descreve uma condição imutável do ser (cf. 1Rs 1:18: Sl 93:1;
96:10; 97:1; 99:1). Contra esta explicação sintática podemos levantar as seguintes
objeções: a) a sucessão das palavras YHWH mlk como enunciado de um estado do
ser não deve ser contrastada com a proposição verbal mlk YHWH, porque o fato
do verbo estar em primeiro lugar não oferece nenhum outro sentido além de uma
ênfase à ação verbal: ‘YHWH se tornou rei’. b) De fato, a LXX – assim poderíamos
seguir argumentando tem ebasileusen, o que apoiaria a tradução ‘tornou-se rei’.
Contra esta objeção se dirige o segundo argumento. 2. A ideia de uma entro-
nização cúltica de YHWH como rei é descartada pelo contexto do Salmo 93 com
a declaração: “teu trono está firme desde tempos antigos, desde a eternidade tu és,
ó Deus’. Aqui se acentua enfaticamente a condição imutável e eterna de YHWH
como rei. Em consonância com este fato encontramos as seguintes afirmações do
Saltério: Sl 9:8.10.16; 29:10; 145:13; 146:10. Ora, a LXX nos oferece uma tradução
literal de mlk cujo sentido não devemos superestimar, pois a expressão dos tem-
pos verbais em grego se ajusta a categorias diferentes das categorias das línguas
semíticas. O perfeito (completo) hebraico mlk se aproxima mais do tempo verbal

A Dimensão Teológica da Ação


236 UNIDADE V

permansivo acádico, que sabe diferenciar-se do pretérito. 3. A ideia da entroniza-


ção, para fundamentar a tradução ‘YHWH tornou-se rei’ conduz à consequência
claramente expressa por H. Schmidt (sobre o Sl 47), que YHWH estaria subme-
tido ao mito do ritmo cíclico da natureza, e que ele ‘realmente perde, durante
algum tempo, sua condição como rei’. Entretanto, não podemos achar nenhuma
prova, em todo Antigo Testamento, dessa concepção que é, de fato, um ataque
grave à fé vétero-testamentária. Consequentemente, tomo como ponto de par-
tida a tradução YHWH é rei. Sobre este ponto de vista, cf. também A. Gelston,
VT 16 (1966) 507ss, no qual o citado especialista expressa sua opinião que, sem-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pre que o verbo vem em primeiro lugar, devemos entender a fórmula em sentido
enfático: ‘YHWH, somente ele, é rei!’. No ato cultual da prostração, YHWH é
glorificado como o rei que tem seu trono no Templo (sobre a Arca: 1Sm 4:4; Jr
3:16s.). A descrição é visionária (cf. Is 6). Revestido de soberana majestade (g’wt,
cf. Is 26:10) e de poder (‘z): é assim que a comunidade reunida para a festa con-
templa o Deus-rei. (KRAUS, 1995, p. 327-328)
Note que o debate apenas mencionado por Gerstenberger é apresentado
no comentário de Kraus. Você deve ter percebido o que caracteriza um debate
“acadêmico”: o interesse na exatidão técnica: gramatical, histórica, linguística. O
sentido do texto para a vida cotidiana fica em segundo lugar. Cabe, então, a você,
que lê textos acadêmicos, ‘traduzir’ as conclusões acadêmicas para as necessida-
des da vida social e cotidiana.

(c) Ángel Rodriguez


Enquanto os dois autores anteriores apresentam a discussão em termos estrita-
mente acadêmicos, este próximo autor oferece uma perspectiva mais próxima
da vida cotidiana e ministerial.
“Dizei aos gentios: ‘YHWH é rei’ (10a). O povo de Deus havia narrado
aos gentios a glória de YHWH (3a). Agora completa sua aula de teo-
logia narrativa dizendo aos povos: ‘YHWH reina!’ (10a). Neste poema
desapareceu o pano de fundo mítico que se percebia com clareza no
Salmo 93. YHWH reina sobre um mundo seguro e estável, que não
vacilará porque a ordem cósmica já foi estabelecida para sempre. O
reinado de Deus possui dois aspectos: governar e julgar. Todos os povos
deverão saber que Deus governa sobre eles e que o faz ‘retamente’ (10c),
de acordo com sua justiça’” (RODRÍGUEZ, 2008, p. 272).

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


237

O autor continua sua interpretação:


“[...] vem julgar/reger a terra (o mundo inteiro e todos os povos) com
justiça e lealdade, que são as duas grandes virtudes da aliança. Durante
a época posterior ao exílio Israel se abriu à universalidade, ao mesmo
tempo em que se fechou dentro de si mesmo (época de Esdras, Neemias
e Macabeus). Neste poema prevalece o universalismo sobre o particu-
larismo. Que tudo e todos cantem um cântico novo, porque YHWH é
rei soberano de tudo e de todos” (RODRÍGUEZ, 2008, p. 273).

Em síntese: o que o Salmo 96 nos informa sobre YHWH como rei é que ele é
superior a todos os reis humanos e superior a todos os deuses (que sequer são
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

deuses no sentido pleno da palavra). YHWH sempre foi rei desde a criação do
mundo. Ou seja, o mundo criado por Deus é governado, em última instância,
por Ele mesmo. Dentro desse governo, YHWH outorgou às suas criaturas um
grau de liberdade e de responsabilidade compatível com suas possibilidades – ao
ser humano Ele outorgou o maior grau de liberdade e de responsabilidade pos-
sível. Por isso, o ser humano rejeita a realeza de YHWH e cria as suas próprias
formas (humanas e divinas) de governo – distorcendo a justiça e a lealdade de
YHWH, e governando de forma injusta e opressora. Eis, portanto, a esperança
dos israelitas: o fim dos reinados humanos opressores e o retorno do reinado
de YHWH sobre seu povo e sua extensão a todos os povos – a fim de que a jus-
tiça e a fidelidade imperem nas relações humanas em sua totalidade.
“Nessa visão magnífica da fé, que abrange todo setor da realidade, insere-
-se também a natureza muda no estrondo do júbilo que retumba rumo ao
Rei divino, quando ele aparece ‘para julgar a terra’. Pois o julgamento de
Deus não consiste afinal em somente chamar às contas os seus adversários,
mas constitui a restauração da ordem divina no mundo. Esta se manifesta
igualmente na ordem da natureza e da história, na bênção da fertilidade da
terra e na salvação dos povos. Em ambas estas ordens revela-se a ‘verdade
de Deus’, ou seja, a realização de sua ‘fidelidade’” (WEISER, 1994, p. 483).

O que significa, para você, a realeza universal de Deus?

A Dimensão Teológica da Ação


238 UNIDADE V

A DIMENSÃO PSICOSSOCIAL DA AÇÃO

Para iniciar o estudo da dimensão psicossocial, vale a pena notar o que Kidner
percebeu no Salmo:
“[...] O desenvolvimento de palavras e frases repetidas (e.g. ‘cantai
...’, ‘tributai ...’, ‘porque Ele vem...’) dá ao salmo um vigor insistente e
contribui para o ambiente de emoção quase irreprimível por causa da
perspectiva da vinda de Deus. A ‘ardente expectativa’ da criação, da
qual Paulo fala em Rm 8:19, irrompe aqui em cânticos no momento do
cumprimento” (KIDNER, 1981, p. 368).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A análise semiótica das paixões se caracteriza pelo foco exclusivo na paixão
enquanto textualmente comunicada – ou seja, não se caracteriza pela análise das
emoções de um determinado indivíduo, e, sim, pela análise dos sentidos atri-
buídos às paixões humanas no discurso (e no texto). A semiótica entende por
paixões o que costumeiramente chamamos de emoções e as vê como elementos
modalizadores do sujeito da ação. Elas são responsáveis, portanto, pela modali-
zação passional do sujeito.
Bem, esses termos parecem complicados, não é? Mas não são tão complica-
dos como parece. Modalizar um sujeito é mais ou menos equivalente às noções
de motivação e de capacidade. De acordo com a teoria semiótica da ação, um
sujeito é modalizado de modo quádruplo: saber, poder, dever, querer – e moda-
lizam tanto a ação (saber-fazer, poder-fazer, dever-fazer, querer-fazer), quanto
o sujeito da ação (saber-ser, poder-ser, dever-ser, querer-ser). O que caracte-
riza a modalização passional é o seu vínculo indissolúvel com o sujeito da ação,
ou, em outra linguagem, com a personalidade ou a identidade do sujeito. Uma
das razões para esta distinção entre modalização ativa e modalização passional
é que nem sempre há um acordo entre o que fazemos e o que somos (ou senti-
mos). A principal razão, porém, para a análise da dimensão passional da ação
(do sujeito da ação), é que não podemos dividir o ser humano em ‘cognição’,
‘volição’ e ‘sentimento’, como se cada uma dessas dimensões fosse independente
das demais. O que sabemos e o que desejamos está intrinsecamente ligado com
o que sentimos e vice-versa.

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


239

Outra característica importante da compreensão semiótica das paixões é


que elas não são vistas apenas como emoções individuais, mas como emoções
pessoais socialmente configuradas – nossa sociedade atribui valores às paixões
e estabelece limites para sua experiência. Por exemplo, em algumas sociedades
a ambição é vista como uma paixão positiva, em outras, como negativa. A ira (e
paixões similares), por exemplo, pode ser considerada justificada ou não, depen-
dendo do motivo porque uma pessoa fica irada ou irritada. Na educação de filhos,
por exemplo, alguns grupos sociais fazem uma distinção forte entre paixões ‘de
menino’ e paixões ‘de menina’, distinção que pode acompanhar as pessoas em
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

todas as idades. Algumas reações passionais são aceitas em pessoas idosas, mas
não em jovens; outras são aceitas em pessoas com necessidades especiais, mas
não em pessoas consideradas ‘normais’.
Outro aspecto que a pesquisa semiótica das paixões tem manifestado é o
de que a textualização das paixões não é uma prática exata. Se consultarmos
um dicionário de português, por exemplo, veremos que as definições de termos
passionais são muito parecidas umas com as outras quando se trata de paixões
afins. Por exemplo: as definições de paixões como alegria, júbilo, regozijo, etc.
são pouco diferenciadas, de modo que ao estudar as paixões em um texto pre-
cisamos perceber o mais exatamente possível a intensidade e a valoração que se
dá às paixões presentes.
Finalmente, na teoria semiótica a análise das paixões faz parte do que chamo
de dimensão psicossocial da ação, ou seja, da análise das identidades pessoais
e coletivas presentes em uma dada sociedade. Logo, o objeto da análise não é o
estudo das paixões propriamente ditas, mas o estudo da identidade psicossocial
presente no texto (embora não haja problema nenhum em estudar as paixões pro-
priamente ditas, caso o objetivo da exegese dê valor a essa procura). No caso de
nosso Salmo, por exemplo, a pergunta de fundo seria: que identidade é compa-
tível para israelitas dominados por Impérios estrangeiros e que desejam manter
sua fidelidade a YHWH?
O texto do Salmo 96 facilita o nosso trabalho de análise da dimensão psicos-
social da ação na medida em que paixões estão explícitas no texto. Nem sempre

A Dimensão Psicossocial da Ação


240 UNIDADE V

esse é o caso, especialmente na Escritura, de modo que a análise das paixões


na Escritura demanda um esforço disciplinado e intenso da parte de intérpre-
tes, seguindo com esmero a teoria e a metodologia semióticas. Apresentarei, a
seguir, o resultado de minha análise da dimensão passional da ação no Salmo,
lembrando que o foco recai sempre sobre o sentido das paixões e não sobre a
análise das paixões de pessoas de carne e osso.
Nosso Salmo apresenta três conjuntos de paixões: as ligadas à alegria, as liga-
das à reverência e as ligadas à expectativa. Vejamos cada um desses conjuntos, a
partir do que está mais explícito no texto:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
9
Prostrai-vos perante YHWH diante de sua imponente majestade; trema
diante dele toda a terra. / 11 Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra; ruja o mar
e a sua plenitude. 12 Exulte o campo e tudo o que nele há; celebrai todas as árvo-
res do bosque 13 na presença de YHWH, porque ele está próximo ...
As paixões ligadas à reverência são textualizadas com os verbos prostrar-se
e tremer (v. 9), as ligadas à alegria, nos versos 11-12, com os verbos alegrar-
-se, regozijar-se rugir, exultar, celebrar. Já as paixões ligadas à expectativa estão
implícitas, tanto no caráter hínico do Salmo e seu estilo repetitivo e grandilo-
quente como, de modo mais específico, no verso 13 que afirma a iminência do
agir libertador de YHWH: porque ele está próximo ...
Uma forma mais competente de analisar o sentido das paixões e seu impacto
na identidade psicossocial das pessoas é destacar a oposição semântica entre
paixões contrárias. Em nosso salmo encontramos as seguintes oposições:
(1) reverência vs. indiferença; (2) alegria vs. ansiedade; (3) expectativa vs.
conformismo.
Diante da grandeza e da majestade incomparáveis de YHWH as nações
são convocadas a prostrar-se e a tremer. O pano de fundo sociocultural desses
imperativos do Salmo é a indiferença dos Impérios diante de YHWH. Como já
vimos, os povos do Antigo Oriente acreditavam que quando um rei conquis-
tava outro (quando um povo dominava outro), o deus (ou deuses) do povo
dominado também era conquistado (vencido e dominado) pelo deus (ou deu-
ses) do conquistador. Assim, nem os babilônios nem os persas teriam qualquer
tipo de reverência por YHWH, pois acreditavam que ele era um deus derro-
tado. No máximo, as crenças dos povos conquistados eram toleradas por razões

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


241

estratégicas – o que tornava mais fácil e barato manter o controle do povo con-
quistado. O salmista, então, apresenta uma nova atitude a ser adotada pelos seus
destinatários: prostrar-se e tremer diante de YHWH. São ações litúrgicas equi-
valentes a ações políticas de reverência. Diante de um rei a pessoa ‘inferior’ se
ajoelha e teme, pois não sabe o que o rei poderá fazer de modo que se comporta
de tal modo a conseguir o favor do rei e não a sua ira.
Temos, então, duas possibilidades passionais: a reverência e/ou o medo. A
diferença entre essas possibilidades depende do caráter do rei. Se o rei é visto
como arbitrário, como não-confiável, a paixão mais comum é o medo (e as liga-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

das ao medo). Se o rei é visto como fiel e confiável, ao invés do medo a paixão
presente é a da reverência. No jogo das identidades, porém, um conflito pode
ser instaurado: no caso do rei fiel, a negação da reverência pode ocasionar a
punição, de modo que o temor nunca está cem por cento ausente. Em nosso
Salmo a reverência é demandada porque YHWH é o maior de todos os deuses,
é o único deus, de fato, a quem se pode adorar e em quem se pode confiar – afi-
nal de contas, ele é criador, soberano, superior aos ‘deuses’ e exerce seu governo
sobre toda a terra e todas as nações. Como ele governa com justiça e fidelidade,
não é necessário ter medo de YHWH – é necessário, porém, reverenciá-lo, ou
seja, reconhecer a Sua grandeza e a radical diferença de poder entre ele e as cria-
turas. Não é à toa que, no Antigo Testamento, o termo hebraico que textualiza a
reverência é o substantivo temor e o verbo temer, de modo que uma pessoa pie-
dosa é descrita com o adjetivo temente a Deus.
Em síntese, o conjunto do Salmo nos convida a uma intensa reverência diante
de YHWH – pois Ele é um Deus acima de tudo quanto podemos imaginar, mas
é um Deus em quem podemos confiar, pois Ele age com justiça e fidelidade. No
espectro das paixões ligadas à reverência, neste Salmo, podemos também incluir
as paixões da gratidão e da fidelidade (confiança, segurança). Gratidão expressa
nos presentes e oferendas que levamos ao culto, fidelidade e confiança expres-
sas em nossa comunhão diária com o Deus que age fielmente para conosco,
mantendo para sempre a sua aliança, o seu compromisso para conosco, inde-
pendentemente do que possamos fazer ou deixar de fazer! Compromisso, porém,
que nunca pode ser visto como mera aceitação do que fazemos, e, sim, como um
compromisso justo e fiel à justiça do próprio Deus.

A Dimensão Psicossocial da Ação


242 UNIDADE V

Rudolf Otto, um teólogo luterano alemão, escreveu uma obra que se tornou
um clássico da teologia e da ciência das religiões: Das Heilige. Nessa obra,
ele procura descrever as principais características da noção de sagrado nas
religiões, especialmente a partir da Escritura. Para ele, o sagrado é uma no-
ção ambígua, e a experiência do sagrado também é ambígua: ao mesmo
tempo em que nos fascina (atrai), o sagrado também nos assusta (repele).
Por exemplo: a experiência de Moisés descrita em Êxodo 3 na visão da sarça
ardente, ao mesmo tempo que atrai Moisés para vê-la, deixa Moisés com re-
ceio do que lhe possa acontecer. Outro exemplo dessa ambiguidade, no AT,
é a afirmação que ninguém pode ver a Deus sem morrer (Êx 19; etc.). Caso

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
você tenha interesse em conhecer mais sobre este tema, veja OTTO, Rudolf.
O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a sua
relação com o racional.
Fonte: adaptado de Otto (2007).

O conjunto das paixões ligadas à alegria é textualizado com vigor no Salmo – vários
verbos encadeiam-se para apresentar a maior intensidade possível da paixão da
alegria (alegrar-se, regozijar-se, rugir, exultar, celebrar). Podemos perceber que
o Salmo nos convida a construir uma identidade cúltica e cultural que poderí-
amos qualificar como feliz. No Dicionário Michaelis (2017, on-line)2 a palavra
alegria recebe a seguinte (primeira) definição: “1. Estado de contentamento ou
prazer moral; júbilo, regozijo.” . Note a imprecisão da definição – júbilo e rego-
zijo são formas intensificadas de alegria e não ‘sinônimos’ que indicam a mesma
paixão. Por outro lado, a definição nos leva a outras – o que é contentamento? O
que é ‘prazer moral’ (o que diferencia prazer moral de outros tipos de prazer)?
É mais fácil, a partir de nosso texto, descrever o que não é a alegria plena que o
Salmo convida seus destinatários a sentir: não é medo, não é ansiedade, não é
frustração. Em outros termos, uma pessoa ‘feliz’, nos termos do Salmo 96, é uma
pessoa que não sente falta de nada em sua vida, mesmo quando as circunstâncias
não são favoráveis. Talvez o primeiro verso do Salmo 23 seja a melhor explica-
ção para esta paixão: “YHWH é meu pastor. Nada me falta” – explicando: uma
vez que YHWH é meu pastor (lembre-se de que pastor também é uma metáfora
para rei no mundo antigo), não sinto falta de nada, pois Ele sempre está comigo
e me satisfaz plenamente.

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


243

Para os israelitas vivendo sob a ameaça constante do Império, sob o controle de


seu governo, sob a tributação de seus bens e trabalho, sob a constante possibilidade
de perder tudo o que tem, o Salmo faz um convite ousado: sejam felizes, YHWH é
muito mais do que tudo isso e, com Ele, nossa vida é plena – aqui e agora, bem como
mais tarde quando YHWH vier para reinar com justiça e fidelidade sobre todas as
nações. Acreditemos que YHWH é rei, aceitemos o seu reinado sobre nós e seremos
testemunhas a todo o mundo de que YHWH reina e virá para reinar! Em o Novo
Testamento Paulo oferece uma bela interpretação dessa paixão em sua vida pessoal:
“Digo isto, não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

qualquer situação. Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo
e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome;
assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece” (Fp
4:11-13). Um exemplo poético dessa paixão nos é dado por Habacuque, que escreveu
sob o domínio dos babilônios: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na
vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ove-
lhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro
em YHWH, exulto no Deus da minha salvação. YHWH, Deus, é a minha fortaleza,
e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente” (Hc 3;17-19).
Imagine a junção dessa alegria com a reverência que estudamos agora há
pouco. Uma reverente felicidade – da qual a descrição mais perfeita é a coleção
de Bem-Aventuranças de Jesus no Sermão do Monte!
Por fim, o terceiro conjunto de paixões nesse Salmo é o ligado à expectativa.
O Salmo conclui afirmando que YHWH está próximo, que Ele vem governar a
terra com justiça e fidelidade. Há uma saudável dose de realismo aqui. O reino
de YHWH descrito no Salmo é visto ainda apenas pela fé: o que os olhos dos
israelitas veem é o reino dos persas, e não o reino de YHWH. São governados
pelos persas que regem o mundo sem justiça e sem fidelidade. Porém, os israe-
litas sabem melhor! Eles sabem que os reinos humanos não duram para sempre
(veja, por exemplo, o que outro Salmo do Reinado de YHWH fala sobre os reinos
e impérios humanos: “Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens,
em quem não há salvação. Sai-lhes o espírito, e eles tornam ao pó; nesse mesmo
dia, perecem todos os seus desígnios. Bem-aventurado aquele que tem o Deus
de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está em YHWH, seu Deus” (Sl 146:3-5).

A Dimensão Psicossocial da Ação


244 UNIDADE V

Se não reconhecemos que na vida humana tudo é transitório, tudo morre,


jamais poderemos encontrar a felicidade e a fé. Seremos dominados pelo presente
– seja ele positivo, seja negativo. Do ponto de vista passional, diremos que uma
pessoa assim é uma pessoa conformista. Se o conformismo for intenso, chama-
remos essa pessoa de pessimista – tudo que está ruim pode piorar! Os israelitas
poderiam se tornar conformistas: desde o século VIII a.C. estava dominados
por potências estrangeiras (Assíria, Babilônia e Pérsia) – se o Salmo é de cerca
de 550 a.C. e a dominação assíria começa a ser datada em 740 a.C., são quase
duzentos anos de dominação estrangeira. Tempo suficiente para uma pessoa e

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
até mesmo uma nação inteira se conformar!
A mensagem do Salmo, porém, não é de conformismo, mas de resistência e
expectativa: YHWH está próximo; YHWH está chegando para governar todas
as nações com sua justiça e fidelidade. Como vimos na análise do contexto, é a
mesma mensagem de Isaías 40-55 (seção do livro de Isaías que se dirige aos judeus
exilados na Babilônia e que já não mais queriam voltar a Jerusalém – haviam se
conformado com a vida no exílio). Não se trata, aqui, de ‘sair da Pérsia’, mas de
não deixar a Pérsia dominar o seu modo de pensar, sentir e agir. Em outros ter-
mos, a expectativa da vinda de YHWH possibilita não assumir uma identidade
colonizada, oprimida. Se sabemos, por fé, que YHWH vem, não nos conforma-
mos ao nosso mundo limitado. Não aceitamos a identidade que nos é imposta
pelo poder imperial.
Uma das melhores traduções deste sentimento é a que encontramos em
Romanos 12:1-2 “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apre-
senteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto verdadeiro. E não vos conformeis com o tempo presente, mas sede trans-
formados pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus”. Seja o império de uma nação, seja o
império do mal, seja o império da globalização, quem crê em YHWH é convo-
cado a não se conformar. Diante do que nega YHWH somos chamados a resistir.
Diante do que é indiferente a YHWH somos chamados à esperança. Como remé-
dio para o medo, a ansiedade e o conformismo, esperança resistente!
A identidade psicossocial proposta por este Salmo é uma identidade de resis-
tência à dominação e confiança na fidelidade de YHWH. Em outras palavras, o

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


245

Salmo convida o israelita a ser israelita em qualquer circunstância. Essa é, de fato,


a característica da fidelidade: permanência independentemente das circunstân-
cias mutáveis da vida. YHWH é fiel e nos convida a sermos fiéis como Ele é fiel!

A DIMENSÃO MISSIONAL DA AÇÃO


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Muito bem, agora cabe a você realizar este passo da metodologia exegética. Faça
o mesmo que indicamos na Unidade anterior.
Como fazer? Minha sugestão é que você siga os seguintes passos metodológicos:
1. Aliste as áreas da vida em que o texto pode ser aplicado – por exemplo:
liturgia, crítica social etc.
2. Verifique se há elementos teológicos do sentido do texto que devem ser
revistos à luz do Novo Testamento e faça tal revisão.
3. Analise os problemas atuais (de nosso tempo) nas áreas da vida em que
o texto pode ser aplicado e os explique.
4. Faça a aplicação propriamente dita.

A sua releitura pode ser na forma de sermão, de estudo bíblico, de artigo acadê-
mico, de meditação, de poesia etc.
Os três grandes temas deste Salmo são retomados e ampliados em o Novo
Testamento. A começar com o reino de YHWH, que é a mensagem central de Jesus
Cristo. A esperança celebrada no Salmo é declarada cumprida em Cristo Jesus: ele
trouxe o reino, na sua vida o reino de Deus veio para os pobres e para os pecadores
(Mc 1,14-15; Mt 4,13-17; etc.). Veio, mas de forma escatológica, inaugurado, mas
não consumado. Veio, em definitivo, como projeto de Deus para a humanidade.
Veio para construir o novo povo de Deus, feito de todas as pessoas que aceitam
a justiça de Deus e recebem a Boa-Nova de que somente Deus reina. Reinado de
Deus que é libertação e transformação social e pessoal (Lc 4,16-20; 7,18-23).

A Dimensão Missional da Ação


246 UNIDADE V

O segundo tema é o da alegria. Para Paulo, a alegria é fruto do Espírito Santo


(Gl 5,22), é característica do reino de Deus, juntamente com a justiça e a paz
(Rm 14,17). Alegria é o sentimento permanente de quem segue a Jesus Cristo,
derivada da gratidão a Deus pela salvação recebida, derivada do compromisso
com o reino de justiça e paz concretizado em Cristo Jesus. A alegria é tão impor-
tante para a fé cristã que, na carta aos filipenses, Paulo faz dela um mandamento:
“Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito: alegrai-vos!” (Fp 4,4).
E o terceiro tema é o da adoração. Culto alegre também é marca da Igreja de
Cristo (cp. I Co 14). Culto alegre, mas também solidário, praticado em Espírito

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e verdade (Jo 4,24-25). Adoração cristã também nasce no dia-a-dia da prática
da fidelidade a Deus, da justiça do Evangelho, do fruto do Espírito Santo. Culto
verdadeiro é culto praticado por quem segue a Jesus no dia a dia. Por isso, Paulo
pode dizer que a entrega de nossa vida a Deus, a transformação da nossa mente,
a renovação do nosso projeto de vida, em seguimento a Jesus, é o culto racio-
nal, o culto verdadeiro e permanente das pessoas cristãs (Rm 12,1-2). O culto
ao Senhor é a festa do Senhor, é a festa do povo.

ANÁLISE EXEGÉTICA DO SALMO 96


247

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bem colegas, chegamos ao fim de nossa disciplina de métodos de estudos bíbli-


cos no Antigo Testamento. Percorremos um caminho complexo e desafiador.
Vamos relembrar?
1. Para fazer exegese precisamos delimitar, segmentar e estruturar uma perí-
cope - um texto com começo, meio e fim. Mas precisamos, também, ler a
perícope dentro do livro do qual ela faz parte.
2. Em segundo lugar, precisamos situar o texto em seu contexto, o que já é parte
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da própria exegese, pois para fazer isso precisamos entender o conteúdo do


texto, analisar seu gênero textual e verificar as suas relações interdiscursivas.
3. Feito isso, passamos à chamada Fase Final da exegese, que é analisar o
texto sob cinco diferentes pontos de vista, ou ciclos que se complemen-
tam mutuamente.
4. Embora seja possível seguir passo a passo cada um dos ciclos (ou cada uma
das dimensões da análise), após nos acostumarmos com o método nós pas-
samos a praticá-lo de modo integrado, mesclando os ciclos, conforme cada
perícope nos possibilita fazer.
5. Exegese bem feita é exegese que se deixa guiar pelo texto a ser interpre-
tado. Guiar tecnicamente, guiar imaginativamente, e guiar teologicamente.
6. A finalidade da exegese é conhecer melhor a Deus e viver a fé de modo
mais adequado. Método, imaginação e compromisso são, então, os ingre-
dientes essenciais.
7. Quais são os elementos que podem nos atrapalhar na compreensão do
texto? Em primeiro lugar, o que não sabemos: (a) o que não sabemos sobre
o mundo bíblico; (b) o que não sabemos sobre o próprio texto bíblico; (c)
o que não sabemos sobre a vida e a vida com Deus. Depois, o que já sabe-
mos: (a) nossa experiência pessoal pode ser um obstáculo; (b) nossa visão
institucional da fé também; e (c) nossa doutrina pode atrapalhar. Como
eu disse, “pode” atrapalhar, não quer dizer que sempre atrapalhará, é só
tomarmos os devidos cuidados.
Então, juntamos tudo o que já sabemos e o que não sabemos, e colocamos a
serviço da interpretação da Bíblia. Deus nos ajudará a chegar ao objetivo final.

Considerações Finais
248

1. O texto hebraico do Salmo 96 oferece indícios bem claros para a sua segmen-
tação, temos três seções que são _________ à atividade litúrgica: 1-3 com seis
verbos no imperativo; 7-10 com oito verbos no _________ e 11-12 com cinco
verbos no jussivo (as seções no imperativo convocam seres humanos, a seção
com o jussivo convoca a natureza); temos _________ seções iniciadas com ky
(porque, pois): 4-6; 13.
Para completar o parágrafo, a ordem correta das palavras é:
a. convites, duas, jussivo
b. imperativo, convites, jussivo
c. convites, duas, imperativo
d. convites, imperativo, duas
e. duas, convites, imperativo

2. A temporalidade do Salmo 96 é plenamente subjetiva. Esta afirmação é:


( ) FALSA ( ) VERDADEIRA

3. Faça a correspondência entre as colunas:

1. Paixões de reverência ( ) exultar


2. Paixões de expectativa ( ) tremer
3. Paixões de alegria ( ) exaltar
( ) implícitas no Salmo
( ) prostrar-se

A ordem correta é:
a. 1,1,2,3,3.
b. 2,1,2,2,3.
c. 3,1,3,2,1.
d. 1,2,3,3,3.
e. 2,3,3,2,2.
249

4. O conteúdo da proclamação proposta pelo Salmo é, em síntese:


a. o reino de Davi.
b. o reino de YHWH.
c. o reino de Marduque.
d. o reino do louvor.
e. o reino da alegria.

5. “A mensagem do Salmo, porém, não é de ____________, mas de resistência e


expectativa: YHWH está __________; YHWH está chegando para governar todas
as nações com sua ________ e _____________.” Para completar o parágrafo, a
ordem correta é:
a. justiça, conformismo, resistência, fidelidade.
b. conformismo, próximo, justiça, fidelidade.
c. fidelidade, justiça, conformismo, resistência.
d. resistência, conformismo, próximo, justiça.
e. próximo, resistência, conformismo, fidelidade.
250

O Reino de Deus nos Evangelhos


O projeto histórico do Reino de Deus provou ser capaz de sobreviver até mesmo ao colap-
so da Guerra judaico-romana, inspirando a religião cristã e movendo a esperança daque-
les primeiros seguidores de Cristo que viviam na Palestina do século I. O Reino de Deus,
conforme revelado nos Evangelhos, concorda a erudição moderna, constituía o centro
da mensagem de Jesus. O relato de Marcos demonstra que Jesus iniciou seu ministério
falando do Reino: “Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evan-
gelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-
-vos e crede no evangelho” (Marcos 1.14-15). Na ótica de Mateus, o resumo do ministério
de Jesus está em 4.23: “Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando
o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo”.
Nos Evangelhos, a expressão “Reino de Deus” (basileia tou theou) aparece 51 vezes, sen-
do 4 em Mateus, 14 em Marcos, 31 em Lucas e 2 em João. Além dos Evangelhos a ex-
pressão também aparece em Atos e em algumas cartas de Paulo (Romanos, 1 Coríntios,
Gálatas, Colossenses e 2 Tessalonicenses) totalizando 65 ocorrências no Novo Testamento.
A expressão “Reino dos Céus” (basileia tôn ouranôn) aparece somente em Mateus em 32
ocorrências.9
A palavra basileia (Hebraico – malkuth) significa basicamente governo, domínio, poder
real. O conceito espacial – ou seja, geográfico – é secundário. No Antigo Testamento
e no judaísmo rabínico, o Reino de Deus possui uma dinâmica tal que não é possível
restringi-lo ao eschaton, mas denota uma realidade também presente. Conforme G.E.
Ladd Deus já é o Rei, mas ele também precisa tornar-se Rei10. Isso significa que, embora
indiscutivelmente Deus seja Rei, ele ainda há de manifestar sua soberania real no mun-
do dos homens.
Já a expressão “Reino dos Céus” tem provocado algumas especulações. Em alguns círcu-
los evangélicos têm-se adotado a postura que leva a uma diferenciação entre o Reino de
Deus e o Reino dos Céus, sendo este último uma referência ao Reino teocrático terreno
conforme prometido a Israel no Antigo Testamento. Visto que Israel rejeitou o domínio
de Deus não aceitando seu Messias, Jesus introduziu uma nova mensagem, oferecendo
descanso e serviço para todos os que cressem, começando assim uma nova família de fé
que participará do Reino de Deus futuro.
Não creio ser essa diferenciação plausível. O “Reino dos Céus” é uma expressão semítica,
na qual a expressão “céus” (ouranos) está sendo usada para substituir o nome divino –
Deus. Em Lucas 15.18, no relato do chamado “filho pródigo”, temos um exemplo disso.
Ali quando diz “Pai pequei contra o céu e diante de ti” está claro que “céu” substitui Deus. É
contra Deus que o filho está dizendo ao pai que pecou. Para Ladd desde que a tradição
dos Evangelhos mostra que Jesus não criticou de modo consistente a palavra “Deus”, isto
é, o uso do nome divino – Deus, é possível que o “Reino dos Céus” seja uma expressão
251

nativa judaico-cristã, a qual preservou a tradição do evangelho encontrada em Mateus,


em lugar de refletir o uso real feito por Jesus. É possível que Ele tenha usado ambas as
frases e os evangelhos que foram originalmente escritos para um público gentio, omi-
tiram a expressão semítica, pois essa não faria sentido aos seus ouvidos. Mateus evita
usar a palavra Deus, tal como muitos judeus do seu tempo, e a substitui pelo eufemismo
“céus”. Assim, as duas expressões em significado são idênticas e tratam de um mesmo
reino.11
Por toda a extensão dos Evangelhos Sinópticos a missão de Jesus é frequentemente
interpretada como o cumprimento das promessas do Antigo Testamento. Este fundo
histórico precisa ser levado em conta ao considerar as expressões referentes ao Reino
de Deus como uma realidade presente.
Mas o que exatamente se fez presente, no que tange ao Reino de Deus, quando Jesus
estava na terra? O texto chave para essa resposta é Mateus 12.28,29: “Se, porém, eu ex-
pulso demônios pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós. Ou
como pode alguém entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens sem primeiro amarrá-lo?
E, então, lhe saqueará a casa”. O poder real de Deus atacando o domínio de Satanás e
libertando os homens do poder do mal foi o que se fez presente, não o eschaton. Con-
forme o verso 29, Jesus declara que invadiu o reino de Satanás e “aprisionou” o homem
valente, sendo esse aprisionamento uma metáfora que designa a vitória sobre Satanás
de tal forma que o seu poder é freado.
Nos relatos dos Evangelhos, Satanás continua ativo subjugando a palavra do Reino na
vida dos indivíduos que não a aceitam realmente (Mt13.19), falando através de Pedro
(Mc 8.33), entrando em Judas (Lc 22.3), e desejou tomar posse da vida de Pedro também
(Lc 22.31). Satanás não está desprovido de poder, mas o seu poder está enfraquecido.12
Tudo o que Jesus realizou, seja em palavras, feitos, morte e ressurreição, constituem uma
derrota inicial do poder satânico que transforma a vitória e o triunfo final do Reino de
Deus algo líquido e certo.
No Antigo Testamento os inimigos do Reino de Deus eram nações hostis e ímpias, mas
nos Evangelhos são poderes espirituais malignos. A vitória do Reino de Deus se dá numa
dimensão espiritual e não terrena, espacial ou geográfica.13 De algum modo, que escapa
a compreensão humana, Jesus lutou com os poderes do mal, conquistando uma vitória
sobre eles para que ao fim dos tempos tais poderes possam ser quebrados de uma for-
ma definitiva.
Nos ensinos de Jesus, o Reino de Deus tem uma dupla manifestação: uma na missão de
Jesus, libertando os homens do poder de Satanás e outra, ao fim dos tempos, destruin-
do Satanás.
Fonte: Revista Teologia Brasileira (2010, on-line)3.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Salmos 73-150 Introdução e Comentário


Derek Kidner
Editora: Vida Nova
Sinopse: comentário histórico-gramatical do livro dos Salmos.

Doze anos de escravidão


Ano: 2013
Sinopse: em 1841, Solomon Northup é um negro livre, que vive em paz ao lado
da esposa e filhos. Um dia, após aceitar um trabalho que o leva a outra cidade,
ele é sequestrado e acorrentado. Vendido como se fosse um escravo, Solomon
precisa superar humilhações físicas e emocionais para sobreviver. Ao longo de
doze anos, ele passa por dois senhores, Ford e Edwin Epps, que, cada um à sua
maneira, exploram seus serviços.
Comentário: Bom para refletir sobre a acomodação a uma situação de opressão,
e como enfrentá-la.

Para mais conhecimentos, junto aos Rios da Babilônia: Um estudo acerca da história de Israel no
exílio Estudo histórico por estudante de teologia, oferece dados básicos. Acesse: <http://www.abc.
com.bhttp://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2011/Relatorios/CTCH/TEO/TEO-Michel%20
Alves%20dos%20Santos.pdf>
253
REFERÊNCIAS

GERSTENBERGER, Ehrard S. Psalms, Part 2 and Lamentations. Grand Rapids: Eerd-


mans, 2001. (Forms of Old Testament Literature)
HARMAN, Allan M. Salmos. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. (Comentários do Antigo
Testamento)
KIDNER, Derek. Salmos 73-50. Introdução e Comentário aos Livros III a V dos Sal-
mos. São Paulo: Vida Nova, 1981.
KRAUS, Hans-Joachim. Los salmos II. Salmos 60-150. Salamanca: Sígueme, 1995.
(Original de 1989)
OTTO, Rudolf. O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino
e a sua relação com o racional. São Leopoldo: Sinodal & EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
PERLITT, Lothar. Acusação e absolvição de Deus. In: GERSTENBERGER, Ehrard. (ed.)
Deus no Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 1981.
RODRÍGUEZ, Ángel A. Salmos 73-106. Bilbao: Desclée de Brower, 2008. (Comenta-
rios a la Nueva Biblia de Jerusalén)
VAN DER LUGT, Pieter. Cantos and Strophes in Biblical Hebrew poetry III: Psalms
90-150 and Psalm 1. Leiden: Brill, 2013.
WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994. (Grande Comentário Bíblico)

REFERÊNCIA ON-LINE

Em: <http://www.biblia.wortale.net/pliki/BHS.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2017.


1

2
Em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=alegria>. Acesso em:
10 mai. 2017.
3
Em: <http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=193>. Acesso
em: 10 mai. 2017.
GABARITO

1. D.

2. Verdadeira.

3. C.

4. B.

5. B.
255
CONCLUSÃO

Muito bem! Chegamos, juntos, ao fim desta disciplina. Percorremos um longo, de-
safiador e, espero, agradável caminho. Que tal relembrar o que aprendemos juntos?
Nosso grande objetivo foi: aprender a fazer exegese de textos do Antigo Testamento.
A esta altura, tenho certeza de que o objetivo foi alcançado. “Mas professor” - você
poderá dizer - “ainda não sei muita coisa!”. É verdade, ainda há muito para aprender,
mas você tem a vida toda pela frente para aperfeiçoar o que estudamos juntos aqui.
Dentro desse grande objetivo, vários outros objetivos parciais também foram alcan-
çados:
1. Você aprendeu a diferença entre realidade, situação e contexto de textos bíblicos.
Estudou um pouco sobre a realidade do mundo bíblico e viu como fazer a recons-
trução de contextos.
2. Aprendeu a delimitar, segmentar e estruturar uma perícope bíblica.
3. Aprendeu a exegese usando a metodologia sêmio-discursiva – com seus vários
ciclos e fases. (Espero que você tenha visto a importância de conhecer bem o nosso
idioma e, se possível, o idioma bíblico.)
Agora que você já sabe isto, pode aperfeiçoar esses conhecimentos: leia bastante
sobre a realidade do mundo bíblico, leia sobre exegese e hermenêutica e, acima
de tudo, leia e interprete constantemente a Bíblia. Exegese se aprende fazendo e
quanto mais você a praticar, mais saberá como fazê-la e fazê-la sempre de modo
mais eficiente e criativo.
Várias vezes mencionei que método não é a coisa mais importante na exegese.
Aprendemos a usar um método (e partes de outros), mas o importante é perceber
como o texto produz sentido e adaptar nossos métodos aos textos que estudamos.
Se seguir a regra básica de que um texto produz sentido dentro de seu contexto e
por meio da sua materialidade linguística, você poderá usar vários métodos e, até,
se desejar, criar seu próprio.
Foi um prazer estudar exegese com vocês! Continuem praticando! E usem o que
aprenderam aqui em outras disciplinas do Bacharelado.

Você também pode gostar