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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Símbolos vikings e umbandistas: cópia ou


coincidência?

SÍMBOLOS VIKINGS E UMBANDISTAS: CÓPIA OU


COINCIDÊNCIA?

Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Há alguns anos circulam pela internet algumas


indagações sobre a semelhança entre símbolos mágicos
utilizados pelos vikings e os pontos riscados da Umbanda e
suas possíveis conexões ou influências mútuas. Em parte
isso se deve à crescente popularidade dos nórdicos pela
mídia televisiva, mas também pela imensa difusão de
tatuagens no mundo pop, como o símbolo de um vegvisir
usado pela cantora islandesa Björk em um dos braços ou
pelas bandas de viking metal. Vamos esclarecer alguns
pontos sobre a área nórdica e em seguida algumas
considerações sobre a Umbanda, para em seguida
realizarmos algumas conclusões sobre o assunto.
A cantora Björk e sua tatuagem de vegvisir

Tatuagens com ægishjálmur

Símbolos vikings e renascentistas:

Em primeiro lugar, ocorre uma certa confusão com o


termo viking. Os grafismos simbólicos considerados hoje
em dia como vikings foram retiradas de obras islandesas
escritas durante o século XVI e XVII, muito depois da Era
Viking. Alguns destes símbolos realmente são nativos,
conhecidos durante o período das migrações germânicas
até o final do século XI, como a suástica (também utilizada
por diversos outros povos euroasiáticos e relacionada
tanto a Odin quanto a Thor, vide o estudo: Símbolos
mágicos nórdicos: guia visual e histórico) e
o Hrungnisjarta a partir do século VIII. Nas fontes
medievais, a palavra viking surge relacionada a uma
atividade temporária, geralmente náutica e predatória e
em alguns casos possui certa identidade cultural, mas no
imaginário contemporâneo ela acaba sendo sinônimo de
nórdico em geral (Langer, 2018). Neste caso, a aplicação
do termo viking aos símbolos islandeses é equivocada.

Os símbolos mágicos que nos interessam dos grimórios


islandeses (grande manuais de práticas mágicas) são
especialmente o vegvisír (um símbolo mágico utilizado
para as pessoas encontrarem o caminho durante
tempestades ou períodos nublados) e
o ægishjálmur (utilizado para proteção e feitiçaria).
Somente esse último foi registrado anteriormente pela
literatura durante o período medieval, mas não se
conhecem imagens preservadas dele antes do século XVI.
Diversos pesquisadores questionam se ele realmente teria
sido utilizado pelos guerreiros em seus elmos durante a Era
Viking (750 a 1100 d.C.), sendo mais visto como uma figura
puramente literária e mitológica (Foster, 2017). Neste
sentido, não há como comprovar ou sequer referendar o
uso da expressão símbolos vikings a esses dois grafismos
dos grimórios.
Ægishjálmur, Galdrakver, Lbs. 143 8vo, Islândia, 1670.

O mais antigo dos grimórios islandeses foi o Galdrabók,


datado de 1600, contendo diversos encantamentos e
invocações a entidades cristãs, demônios e deuses
nórdicos. O material rúnico contido neste manuscrito é
percebido como uma expressão nórdica tardia de
tradições mágicas mediterrânicas. Muitos símbolos são
variações latinas de cruzes e de runas (Macleod e Mees,
2006).

O Ægishjálmur foi citado primeiramente


no Fáfnismál 16, 17 e 19 (Codex Regius da Edda Poética).
Neste poema éddico, o símbolo traria vitória a seu
possuidor (segundo o dragão Fáfnir), e no mesmo poema,
alude-se a pertencer ao tesouro de Sigurðr, de onde se
deduz que estaria gravado em um elmo. Ao mesmo tempo,
essa descrição de um objeto mágico na cabeça de Fáfnir
tem relação com uma tradição européia que remonta aos
gregos e que sobreviveu até o fim da Idade Média: de uma
pedra que os dragões possuíam em suas cabeças
(snakestone ou dracontite), utilizada para fins curativos; e
por outro lado, com o olhar mortífero que este tipo de
monstro teria (o “olhar de fogo”). Em algumas sagas
islandesas, como Sverris saga 38, o símbolo também é
citado como proteção nas batalhas.

Vegvísir, manuscrito Huld, p. 60, Geir Vigfússon, Islândia, 1860.

Para o pesquisador alemão Rudolf Simek (2007, p. 2)


as características terríveis do Ægishjálmur foram
originadas do classicismo, derivados do grego aigis (como
o escudo de Zeus e a capa de Pallas Atenas). A palavra
grega aigis pode ter se tornado elmo do terror na
etimologia folclórica como resultado da similaridade
fonética com o nórdico œgr, terrível. E apesar da derivação
etimológica, Ægishjálmur não teria relação com o gigante
marinho Ægir.

Alguns especialistas traduzem Ægishjálmur como leme


do pavor ou de Æegir, devido ao seu formato nos
grimórios, um círculo formado de oito braços em forma de
tridentes, assemelhando-se ao leme de roda das
embarcações. O problema é que esse tipo de instrumento
náutico só foi conhecido na Escandinávia a partir do século
XIII: os vikings utilizavam um remo transversal como leme.
Como Æegir era uma divindade relacionada ao mar, talvez
os eruditos nórdicos do final do medievo tenham fundido
a este folclore o tridente de Netuno, explicando a sua
morfologia (ou mesmo o tridente do demônio, utilizado no
imaginário cristão). De qualquer maneira, não há imagens
deste símbolo anterior ao século XV, e não temos como
provar que existiu entre os vikings. Segundo Macleod e
Mees (2006, p. 252), o Ægishjálmur foi uma forma cruzada
e adaptada do símbolo tvímadr, presente no calendário
rúnico do século XIII.

Sintetizando, a morfologia conhecida


do Ægishjálmur possivelmente foi originada de uma
confluência tardo medieval entre tradições clássicas e
cristãs (o tridente), aplicada a caracteres não alfabéticos
(o tvímadr), não tendo relação direta com a tradição rúnica
antiga.
Os símbolos de Exu:
A Umbanda possui diversas manifestações visuais
sagradas conhecidas como pontos riscados, em especial o
da Pomba gira Menina. Um círculo (considerado o
universo da perfeição); um tridente (associado a Exu),
hexagrama e triângulos entrelaçados - estes sendo
associados a rituais (Sampaio e Gnerre, 2012). Segundo
Solera (2014, p. 31), os sinais e símbolos umbandistas
correspondem a várias tradições advindas de
religiosidades e diferenciadas historicamente, como o
Espiritismo, judaísmo, cristianismo e etnias indígenas e
africanas.

O símbolo do tridente do Exu na Umbanda é uma


apropriação derivada do sincretismo religioso moderno,
não tendo uma origem puramente africana (Sodré, 2009,
p. 5). O Exu é uma entidade Iorubá relacionada com a
fertilidade, cujos simbolismos mais conhecidos são um
porte fálico, cabaças e búzios. A Umbanda possui suas
origens a partir de 1908, derivada essencialmente de
diversas tradições brasileiras, indígenas e africanas. Devido
a fortes perseguições e associações do Exu com a figura do
diabo judaico-cristão, os adeptos da Umbanda (em uma
forma de resistência cultural) passaram a adotar os
simbolismos típicos da tradição medieval relacionada a
Satã: este orixá passa a ser representado de cor vermelha,
com chifres e tridente (a exemplo do Exu das sete
encruzilhadas e Exu caveira). O tridente, deste modo, foi
um símbolo derivado do imaginário judaico-cristão sobre a
figura de Exu, mas que recebeu outros significados
adaptados, como os diversos caminhos que o orixá
percorre e domina (Sodré, 2009, p. 9 e 12).
Ponto riscado Pomba Gira Menina; Ponto riscado Exu tranca gira.
Fonte: http://umbandapaijoaodeangola.com.br/pontos-riscados-exu.php

Não existem pesquisas mais detalhadas ou profundas


sobre a iconografia simbólica afro-brasileira. De nossa
parte, realizamos alguns levantamentos historiográficos
para detectar possíveis origens coloniais dos símbolos com
tridente na religiosidade popular brasileira, mas não
conseguimos nenhum resultado. Analisando Souza (1986)
e Calainho (2008), percebemos que os símbolos adotados
por escravos brasileiros durante o período colonial são
influenciados pela forma de cruzes latinas, Sol, estrelas,
serpentes, caveiras e flores, mas não existe nenhuma
referência a tridentes ou qualquer similitude com os ponto
riscado de Exu antes do século XIX, reforçando sua origem
contemporânea.

Conclusão:

De um ponto de vista histórico, os símbolos islandeses


e os pontos riscados dedicados a Exu não possuem
qualquer tipo de conexão, influência ou aproximação. Suas
similitudes são apenas frutos de uma coincidência
morfológica. Ambos parecem ter sido influenciados pelo
imaginário cristão, que ressignificou tradições nativas de
práticas mágicas com o referencial do tridente. Outras
tradições religiosas que possuem símbolos circulares com
terminais tridentiformes, como a ashtánga yantra da
tradição shivaista, também foram relacionados
ao Ægishjálmur – mas do mesmo modo alguns
pesquisadores vem descartando essa similitude,
considerando uma simples coincidência (Foster, 2017).

Explicações para as similitudes entre símbolos de


culturas afastadas no tempo e no espaço são populares
hoje em dia, geralmente apelando para referenciais como
“emanações do inconsciente coletivo” ou produtos
arquetípicos, mas não passam de especulações sem bases
mais rigorosas de investigação. O medievalista francês
Michel Pastoreau conclama para o perigo de anacronismo
constante que ronda o historiador quando estuda o
simbolismo e a fragilidade da análise universalista: “O que
às vezes leva – erradamente – a crer na existência de uma
simbólica transcultural, apoiada em arquétipos (...) no
mundo dos símbolos, tudo é cultural e deve ser estudado
em relação à sociedade que dele faz uso, em determinado
momento de sua história e em um contexto preciso”.
(Pastoreau, 2002, p. 507).

Comparações apressadas utilizando apenas a


morfologia, sem um contexto histórico e social mais
rigoroso, podem criar conclusões fantasiosas como as que
relacionam conexões transcontinentais entre os povos
pré-colombianos e os do Velho Mundo – utilizando
simplesmente a coincidência do formato das pirâmides
que existem entre ambos. Os símbolos mágicos
constituem um terreno ainda repleto de possibilidades
para pesquisas futuras, mas os referenciais generalistas e
universalistas devem ser evitados pelas próximas gerações
de pesquisadores.

Referências bibliográficas:

CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandingas:


religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo
regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

FOSTER, Justin. Galdrastafir: icelandic magical staves,


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FRANÇA, Dilaine Soares Sampaio & GNERRE, Maria Lucia


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