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Cosmogonias e Matriarcado

Cosmogonia – Cosmologia
De acordo com os ocidentais, “Cosmogonia e
cosmologia referem-se as narrativas de origem do cosmos
ou universo. A diferença está em que a cosmogonia tem por
base os mitos, as crenças e religiões enquanto
a cosmologia se baseia no racional e científico”.
O racional, como base do fundamento da cultura ocidental, é
“superior” aos mitos e ao que eles denominam “crença”,
mas qual a diferença entre o que são, resumidamente,
tentativa de explicar o locus que vivemos? Existem outros
modelos de ciência baseados em compreensões
cosmogônicas? SIM!
Estruturas Cosmogônicas
Politeísmo: Nas sociedades politeístas são admitidas as existências de múltiplos deuses, normalmente cada um
dedicado a uma característica particular da natureza, como: deus do trovão, deus do sol, deusa da chuva, etc. O
politeísmo era bastante comum em sociedades da antiguidade, como no Egito Antigo, na Grécia Antiga e na Roma
Antiga, por exemplo. Atualmente, continua presente em algumas religiões de origem africana e asiática. Cada
divindade, no sistema politeísta, possuía forças e poderes especiais, sendo especialistas em determinadas áreas,
como elementos da natureza, relações humanas, objetos, atividades e etc. Os gregos antigos acreditavam
que Afrodite era a deusa do amor, da beleza e da sexualidade; enquanto que Atena era tida como a deusa da
sabedoria e da civilização, e assim em diante. Não há maniqueísmo no politeísmo.
Monoteísmo: consiste na crença de apenas um único Deus. As principais religiões monoteístas são o cristianismo,
o judaísmo e o islamismo. As divindades politeístas podiam ser representadas sob formas antropomórficas (figura
humana e figura animal), enquanto que no monoteísmo “Deus” é descrito como semelhante aos seres humanos.
Animismo: é a cosmovisão em que todas as formas de existência, para além da humana, possuem dignidade em si
mesmas, os animais, os vegetais, os minerais, as águas doces e salgadas, a terra, os fenômenos da natureza, os
astros, etc. Os sistemas religiosos que incorporam o animismo são, obviamente, politeístas, como nas culturas
egípcia, grega, romana, indígena e yoruba, para citar algumas. O animismo rejeita o dualismo platônico e cartesiano
e a perspectiva animística é tão fundamental, que representa um sistema de definição de um ethos comunitário, ou
seja, os modos de sentir, pensar e agir, que vão da ética à política. Exemplos: budismo, hinduísmo, jainismo, etc. No
animismo, os rituais são realizados para manter as relações entre o ser humano e as demais forças da natureza. Os
povos indígenas, por exemplo, costumam realizar esses rituais para apaziguar os espíritos e solicitar sua ajuda
durante atividades como caça e cura. Na região do Ártico, certos rituais são comuns antes da caça como forma de
mostrar respeito pelos espíritos dos animais.
Combate ao racismo religioso se faz com informação
“Os elementos representativos da cultura iorubá não funcionam apenas
como um simples registro de eventos, mas como ferramenta que possibilita
o entendimento do dinamismo dos acontecimentos do mundo e de tudo que
nele reside. Assim, como decodificam comportamentos, revelam
conhecimentos sobre a origem das coisas, inclusive o próprio mundo,
reorganizam as memórias ao longo do tempo removendo as barreiras do
imaginário, e assim, possibilitando mais que um entretenimento cultural ou
manifestação religiosa. Essa voz ancestral gera a manutenção das
estruturas sociais, a dignidade das subjetividades dos seres humanos, e
sobretudo, a longevidade da cultura iorubá”.
“Não há como romper a interação entre o ser humano e o divino pois a
oralidade reflete não apenas as práticas de instrumentalização das forças
divinas, das lendas ou das mitologias; ela não possui dissociação ao divino.
O espiritual e o material caminham juntos para uma boa prática de vida
conectando suas relações com a natureza e entendendo o papel que
precisa ser desempenhado em conjunto para uma vida com prosperidade”.
“A interação do ser humano com a natureza não faz dele um ser primitivo, e sim
um agente biológico que desfruta em seu território as relações de coexistência,
desta forma, sua formação social de inscrição neste espaço o permite
experimentar seus estilos de vida em relação ao espaço que habitam. Espaço
este que também se recompõe na diáspora através das casas de religiões de
matriz africana, como por exemplo, no Candomblé”.

“As forças que compõem o mundo manifestam-se de modo articulado,


interdependente e inter-relacional, complementar e recíproco. É possível falar,
nesse contexto, em uma ontologia relacional.” O espiritual e o material caminham
juntos para uma boa prática de vida conectando suas relações com a natureza e
entendendo o papel que precisa ser desempenhado em conjunto para uma vida
com prosperidade”.

“A manifestação da natureza, as relações cosmológicas entre divindades e seres


humanos, os componentes que os moldaram, suas capacidades cognitivas e a
responsabilidade em iwa rere (bom caráter) em equilíbrio durante as tensões nas
relações sociais formam estruturas estéticas que compõem a dinâmica iorubá de
existência, e é neste movimento de interação que Èṣù se coloca como a
engrenagem cosmológica do mundo”.
Mitos fundacionais: Mitologia

GENEALOGIA DOS DEUS DO EGITO ANTIGO


Noite Trevas terra céu Céu dia
superior
“Conta o Itan da criação de Aiê (terra/mundo) que o Orixá Oxalá, "O Grande Orixá" ou "O Rei do Pano Branco”, no
Candomblé e também na Umbanda, foi o primeiro a ser criado por Olorum, o deus supremo, e tinha um caráter bastante
obstinado e independente. Oxalá foi encarregado por Olorum de criar o mundo com o poder de sugerir (àbà) e o de
realizar (àse). Para cumprir sua missão, antes da partida, Olorum entregou-lhe o "saco da criação" para que com os
elementos contidos nele o Orixá pudesse criar, dar forma e vida ao mundo. O poder que lhe fora confiado não o
dispensava, entretanto, de submeter-se a certas regras e de respeitar diversas obrigações, inclusive para com os outros
orixás. Em razão de seu caráter altivo, ele se recusou fazer alguns sacrifícios e oferendas a Exú antes de iniciar sua
viagem para criar o mundo. Oxalá pôs-se a caminho apoiado num grande cajado de estanho, seu òpá osorò ou paxorô, e
no momento de ultrapassar a porta do Além, encontrou Exú, que entre as suas múltiplas obrigações, tinha a de fiscalizar
as comunicações entre os dois mundos. Exú descontente com a recusa do Grande Orixá em fazer as oferendas
prescritas, vingou-se o fazendo sentir uma sede gigantesca. Nada o fazia parar de ter sede, até que Oxalá para matar sua
sede, também usou como recurso o de furar com seu paxorô a casca do tronco de um dendezeiro. Um líquido refrescante
dele escorreu: era o vinho de palma. Ele bebeu-o ávida e abundantemente. Ficou bêbado, não sabia mais onde estava e
caiu adormecido. Veio então Odudua, criado por Olorum depois de Oxalá e o maior rival deste. Vendo o Grande Orixá
adormecido, furtou-lhe o "saco da criação", dirigiu-se à presença de Olorum para mostrar-lhe o seu achado e lhe contar
em que estado se encontrava Oxalá. Olorum exclamou: "Se ele está neste estado, vá você, Odudua! Vá criar o mundo!"
Odudua saiu assim do Além e encontrou adiante de uma extensão ilimitada de água. Deixou cair a substância marrom
contida no "saco da criação". Era terra. Formou-se, então, um montículo que ultrapassou a superfície das águas. Aí, ele
colocou uma galinha cujos pés tinham cinco garras. Esta começou a arranhar e a espalhar a terra sobre a superfície das
águas. Onde ciscava, cobria as águas, e a terra ia se alargando cada vez mais, o que em iorubá se diz ilè nfè, expressão
que deu origem ao nome da cidade de Ilê Ifé. Odudua aí se estabeleceu seguido pelos outros orixás, e tornou-se assim o
rei da terra. Quando Oxalá acordou não mais encontrou ao seu lado o "saco da criação“ e, chateado, voltou a Olorum e
este, como castigo pela sua embriaguez, proibiu ao Grande Orixá, assim como aos outros de sua família, os orixás funfun,
ou "orixás brancos", beber vinho de palma e mesmo usar azeite-de-dendê, mas, confiou-lhe, entretanto, como consolo a
tarefa de modelar no barro o corpo dos seres humanos aos quais ele, Olorum, insuflaria a vida”.
Sabedoria da Cosmogonia Iorubá:

1ª) A primeira lição é de respeito. Mesmo Oxalá, o primeiro Orixá criado por Olorum, devia respeito e ter
oferendado Exu, pois nada se deve fazer sem antes oferendar o dono da encruzilhada. Exu reina na
encruzilhada entre o mundo material (Ayê) e o mundo espiritual (Orum), por isso ao fazer a passagem
entre essas duas realidades é necessário oferendá-lo, por uma questão de respeito e devoção. Por isso,
ninguém é tão importante que não deva respeito aos outros.

2ª) Podemos ver que nem mesmo o mais ilustre de todos os Orixás, Oxalá, é capaz de criar a vida
sozinho. Ele foi capaz da criação do homem, em sua forma, mas a vida só pode ser gerada por Olorum.
Por mais poderoso que seja o Orixá, a entidade, ou qualquer ser, a origem da vida é necessariamente
um dom do Senhor Supremo.

3ª) O dom do perdão. Mesmo com os erros de Oxalá, que negou a oferenda a Exu e embriagou-se em
vinho perdendo sua missão, Olorum aceitou os pedidos de desculpas do orixá e o perdoou. É uma lição
de humildade, de reconhecimento e do poder do perdão.

4ª) É também uma lição sobre as responsabilidades e os excessos. Oxalá embriagou-se mesmo
sabendo que teria uma missão importante a cumprir para Olorum. É uma lição sobre os excessos, sobre
ultrapassar os nossos próprios limites e não respeitar o nosso corpo físico, deixando que nossos atos
prejudiquem nossa missão. Hoje, Oxalá é o orixá da sobriedade.
Cosmogonia Tupi-Guarani
“Na cosmogonia Guarani, segundo os cânticos Ayvú Rapyta dos mbyá-guaranis, tudo
que existe nasce e é nomeado a partir de um som produzido no mundo superior, o
Espírito-Música, o Grande Som Primeiro, esse som desdobra-se em formas que
serão pais e mães de seus filhos, as palavras-almas. Tupã não é a divindade
suprema, mas apenas uma força da natureza, como por exemplo, entre os Sioux. O
Ayvú rapyta é composto por textos majoritariamente narrativos que relatam a aparição
do ser criador e a cosmogonia seguinte, intercalados com hinos, orações, mensagens
recebidas, receitas de medicamentos e normas sociais variadas. No conjunto,
destaca-se a cosmologia do deus criador Nhamandú (Ñande Ru) tenondé, que após
manifestar a si mesmo, manifesta em desdobramento os fundamentos da Criação;
dentre os quais figura primeiro o “Mborayu", cujo significado pode ser compreendido
entre os conceitos de "amor", "solidariedade" e "reciprocidade". Nhamandú é
considerado por Kaká Werá a essência de Tupã tenondé, que se apresenta sob o
aspecto de colibri e em sua manifestação é o "Grande Som Primeiro", em uma
analogia de que a Criação é também uma música.
Paradigma Ocidental de Mundo & Paradigma Africano de Mundo
Os europeus estabeleceram parâmetros arbitrários do que
caracterizava uma civilização “superior” de outra “inferior” e fizeram
a defesa de que o modelo patriarcal representava a superioridade:
“O primeiro estágio seria um estado de promiscuidade total e
indiscriminada, em que o único parentesco conhecido de uma
criança seria o do lado materno. No segundo estágio, no qual a
paternidade também seria conhecida por meio de normas de
convívio e conduta sexual, o casamento entre irmã e irmão seria
proibido. O terceiro seria o da família monogâmica matrilinear, em
que o parentesco é traçado pelo lado da mãe. E o último e superior
seria o da família monogâmica patriarcal”.
Percebam que os europeus estão impondo, como universal, a
cultura, a religião e a organização social ocidentais como
modelo de superioridade!!!
O sistema matriarcal é ancestral na cultura africana

“O sistema matrilinear não implica uma dominação da mulher sobre o homem,


mas a partilha de responsabilidades e privilégios, inclusive do poder. Por este ser
partilhado entre mulher e homem, um equilíbrio estável era assegurado nos
negócios do Estado. Essa política se expressava no mito egípcio de Osíris, que
além de deus era o primeiro soberano simbólico da nação. Osiris exercia o poder
político e espiritual em conjunto com Ísis, sua irmã e esposa. Ísis ensinou ao povo
o conhecimento da agricultura, e Osíris prontamente o transmitiu à humanidade
como um todo, viajando a outras terras e visitando outros povos. De acordo com
esse mito fundador da sociedade egípcia, o deus Set, divindade dos desertos, das
doenças e das tempestades, assassinou Osíris e dilacerou seu corpo em uma
infinidade de pedaços. Ísis recolheu-os, reconstituiu o corpo de Osíris e o
ressuscitou. Essa é a primeira versão do mito da ressureição em uma religião
humana. Ísis também ensinou ao filho, Hórus, os segredos de Maat, a filosofia da
justiça, da verdade e do direito que Osíris difundiu e que fundamentava a matriz
ética da nação egípcia”.
Rainhas e Guerreiras Africanas
“A história da África conhece várias rainhas guerreiras,
estadistas que em vários casos enfrentaram, na arena militar
e política, os escravistas e colonizadores europeus. Em
Angola, há o exemplo da rainha Nzinga, contemporânea de
Zumbi, uma soberana competente o suficiente para resistir
aos dominadores portugueses e holandeses. Gana oferece
a figura da rainha Yaa Asantewaa, que liderou a guerra dos
asante contra o domínio inglês. Esses exemplos não
configuram casos isolados, mas confirmam uma tradição
que nasce de profundas raízes históricas e culturais. Trata-
se do sistema sociopolítico matrilinear, que caracteriza a
civilização africana desde os seus primórdios”.
A inspiração ancestral brasileira do mulherismo africana
A antropóloga brasileira Lélia Gonzalez, uma das fundadoras do Movimento
Negro Unificado (1978), agregou aos Estudos Africana a categoria
“Amefricanidade” que, compreendendo os laços de solidariedade afetivo-
ontológico-cultural com os pluri-povos ameríndios, vê os negros do continente
Sulamericano como “americanos”: “enquanto amefricanos, temos nossas
contribuições específicas para o mundo panafricano. Assumindo nossa
Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária ou
mitificada da África e, ao mesmo tempo, voltar nosso olhar para a realidade em
que vivem todos os amefricanos do continente. Num momento em que se
estreitam as relações entre os descendentes de africanos em todos os
continentes, em que nós, amefricanos, mais do que nunca, constatamos as
grandes similaridades que nos unem, a proposta de Molefi Keti Asante me
parece da maior atualidade. Sobretudo se pensarmos naqueles que, hoje, nós
possamos levar adiante o que eles iniciaram. Daí a minha insistência com
relação à categoria de “amefricanidade”, que floresceu e se estruturou no
decorrer dos séculos que marcaram a nossa presença no continente (Lélia
González).
A Força Matriarcal Africana de Renovação
“O poder do feminino nas tradições africanas é milenar – e essas relações de
pertencimento estão envoltas por valores ancestrais e sociais, pois os poderes de
gestação não são somente para gestar a vida, mas estão também nas forças dinâmicas e
propulsoras que movem as relações de todo um processo do comum, que organiza e
propõe perspectivas de interrelações grupais. Essas dinâmicas instrumentam a existência
comunitária e colocam as mulheres como força para gerir e gestar a vida e gerir e gestar
as organizações ancestrais, sociais, econômicas e políticas de um povo, assumindo o
papel de matrigeradoras e matrigestoras de uma comunidade. Quando falamos em poder
estamos falando de relações sociais de africanidade, estabelecidas com base em um
coletivo socio-ancestral que baseia seus modos de vivência e experiência alicerçados nas
tradições de um povo - tradições essas que buscam reforço e equilíbrio nos elementos da
natureza como princípio básico de reorganização existencial. O sequestro do Atlântico,
trouxe filosofias e ciências capazes de reestruturar e realocar os descendentes de África
dispersos pela escravização. Modelos de sociedades matriarcais e comunitárias
embarcaram nas memórias da juventude da negra escravizada e as bagagens existenciais
depositadas em seus corpos suportaram todo o massacre e a dor e restabeleceram as
forças para assim garantir o compromisso de reorganizar o trilho civilizacional do povo
negro disperso, fora de África”.
Do Epistemicídio: As estratégias de matar o
conhecimento negro africano e afrodiaspórico
Do Epistemicídio:
As estratégias de matar o conhecimento negro africano e afrodiaspórico
1ª) Objetifica o corpo e mata o conhecimento: “O epistemicídio mata ou
domina o corpo negro para evitar que o pensamento haja, reaja. Para a filósofa
nigeriana, Celestine Chukwuemeka Mbaegbu, o corpo e a mente não são
compreendidos, no pensamento africano, de forma dualista como problematiza
a filosofia ocidental. O assassinato do conhecimento pode, como se fez ao longo
de séculos, justificar o extermínio desse corpo reificado, tornado coisa, objeto,
quando ele é destituído da sua humanidade e, como consequência, da sua
racionalidade. O ser racional, que possui o desejo natural de querer saber e,
mais do que isso, é um ser que possui memória, pois o progresso do
conhecimento se torna possível a partir do acumulo de mais conhecimento. Mas
a racionalidade humana, percebida e defendia por muitos pensadores, é
elevada a um grau tão alto que passa a ser considerada superior à matéria
orgânica. Assim, o ser humano se torna o seu pensamento ou é reduzido a ele?”
2ª) Dissociação entre o corpo humano negro e o corpo humano europeu: durante o
século XIX teve início o questionamento sobre a humanidade dos Negros, as indagações
partiam da dissemelhança física-corpórea e das distinções de hábitos culturais e sociais:
a) a humanidade negra não possui história (Hegel);
b) o Negro é um não-semelhante (Kant);
c) o Negro deve ser “assimilado” à cultura europeia (todos os pensadores ocidentais).

“Há, nesta época, a tentativa de apresentar o Negro como um ser exótico, diferente, e por
ser muito diferente do corpo, do pensamento, da cultura e da sociedade europeias, não
pode ser um ser humano, mas pode passar por um “processo de humanização”, e ser
aceito ao se converter ao cristianismo (dominação religiosa), ao se adaptar ao modelo
econômico (dominação capitalista), e ao modelo político do Ocidente (dominação
representativa)”.

Para os ocidentais, “aceitar a alteridade passava pela tentativa de transformá-la em algo


que fosse aceitável ao ‘crivo’ europeu”. A razão foi usada para construir dogmas que
anulassem a existência de qualquer outro tipo de humanidade. Era preciso negar a
humanidade de povos não-europeus para controlá-los por meio da força, da vigilância e do
poder.
3ª) O universalismo ocidental construído: Os ocidentais criaram padrões de cultura,
de humanidade, de sabedoria e as estabeleceram como universais. Para Mogobe
Ramose, a universalidade é excludente e funciona dessa maneira justamente
porque, a princípio, ela parece propor uma igualdade entre todos os seres
humanos. Vejamos o funcionamento da noção de Dignidade Humana, para
Immanuel Kant (XVIII) :

“Na segunda seção da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant


afirma o imperativo categórico: “age de tal maneira que tomes a humanidade,
tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo
tempo como fim (télos), nunca meramente como meio”. É, pois, a partir dessa
formulação que Kant sustenta a ideia de que os seres humanos têm dignidade, a
qual os faz estarem acima de qualquer preço ou valor, deve-se ao fato de que
somente o ser humano possui dignidade (em função da sua racionalidade),
ocupando assim um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos. As
coisas possuem valor ou preço, os seres humanos não”.
“Na obra Metafísica dos Costumes, Kant afirma que “o dever
de respeito por meu próximo está contido na máxima de não
degradar qualquer outro ser humano, reduzindo-o a um
mero meio para os meus fins (não exigir que outrem
descarte a si mesmo para escravizar-se a favor de meu
fim)”. Para Kant, “o homem – e de modo geral todo ser
racional – existe com um fim em si mesmo, não meramente
como meio à disposição desta ou daquela vontade para ser
usado a seu bel-prazer, mas tem de ser considerado em
todas as suas ações, tanto as dirigidas a si mesmo quanto a
outros sempre ao mesmo tempo como fim” (ter fim em si
mesmo, significa existir para um télos, que não é
definido pelo outro, mas pelo simples fato de existir
enquanto ser racional).
Kant e a relatividade no universalismo do ser humano

“Os negros da África, por natureza, não têm nenhum sentimento


que se eleve acima do pueril. O senhor [David] Hume desafia
quem quer que seja a citar um único exemplo de um negro
demonstrando talento e afirma que dentre as centenas de milhares
de negros que são transportados de seus países para outros,
mesmo dentre um grande número deles que foram libertados, ele
nunca encontrou um só que, seja em arte, seja nas ciências, ou
em qualquer outra louvável qualidade, tenha tido um papel
importante, enquanto que dentre os brancos, constantemente ele
constata que, mesmo se nascidos das camadas mais baixas do
povo, estes sempre se elevam socialmente, graças a seus dons
superiores, merecendo a consideração de todos”.
Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, 1764.
“Todas as raças serão erradicadas (americanos e negros não podem
governar a si mesmos. Servem, portanto, apenas como escravos), menos a
dos brancos [os quais] contêm todos os móbeis da natureza em afetos e
paixões, todos os talentos, todas as disposições à cultura e civilização, e
podem assim tanto obedecer quanto dominar [sendo] os únicos que sempre
progridem à perfeição”. Antropologia de um ponto de vista pragmático, 1798.

“Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas [brancos e


negros], que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais
quanto à diferença de cores. [...] Os negros são muito vaidosos, mas à sua
própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a
pauladas”. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, 1764.

“Aliás, o calor úmido é favorecedor do forte crescimento dos animais em


geral, e breve, surge o Negro, que está bem adaptado ao seu clima, a
saber, é forte, corpulento, ágil; mas, que, ao abrigo do rico suprimento da
sua terra natal, [também] é indolente, mole e desocupado”.
Das diferentes raças humanas, 1775.
4ª) O etnocentrismo e a supremacia branca: O epistemicídio anda em paralelo com
o altericício, a morte do outro, que não é aceito como um “outro de mim mesmo”, mas
como objeto intrinsecamente ameaçador.
Arthur Gobineau (1816-1882), que foi enviado ao Brasil, por Napoleão, em 1869, e
que publicou o Ensaio sobre a desigualdade da raça (1855), a bíblia do racismo,
argumentava que a decadência de todas as civilizações da história tinha como
elemento fundamental a questão étnica: “a desigualdade das raças, cujo concurso
forma uma nação, basta para explicar todo o encadeamento do destino dos povos”.

Para Gobineau, o Brasil era a própria personificação do que ele chama de “anarquia
étnica”, esse termo sintetiza a sua tese da degeneração das raças que se
corromperam, misturando a raça “primeira”, de Adão e Eva, dando origem então às
três raças secundárias; a branca, a amarela e a negra. A miscigenação entre as três
raças tem como consequência as raças terciárias, já consideradas como um
subgênero, já a miscigenação dessas resultavam nas raças quaternárias, que seria o
estágio da miscigenação brasileira”.
5ª) Supremacia e o “fardo” do homem branco: De acordo com Kant, os
“esclarecidos” deveriam tutelar os indivíduos de minoridade, justamente porque
esses não conseguiriam por si mesmos alcançar a autonomia, a liberdade e o
conhecimento.

Trata-se da superioridade do branco europeu em relação aos povos estrangeiros,


principalmente aos povos negros do continente africano e aos indígenas da
américa: “[...] a raça branca-europeia teria, por sua “natural superioridade
biológica”, um direito inerente de tutelar os demais povos que estavam fora dos
padrões dos valores europeus considerados “normais”.” (Kant)

Afirmação de Hegel: “O negro representa o homem natural, selvagem e


indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o
que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a
ideia do caráter humano [...]. A carência de valor dos homens chega a ser
inacreditável. [...] Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos –
ou, para ser mais exato inexistentes”.
O fardo do homem branco
Civilização contra a barbárie
Desculturalizar
para reprogramar
Educar para “civilizar”!!
6ª) Dominação pelo grupo hegemônico: “O sujeito que detém o poder político
e econômico passa a determinar a epistemologia vigente, ou hegemônica!”

O Ocidente ditou, para os países colonizados, um modelo de sociedade, que


criaram demandas nessas novas sociedades, cada vez mais complexas. Essas
“demandas” reforçam os processos de inclusão e exclusão sociais que atendam
às necessidades de um sistema que produz muitas riquezas para poucos e
alarga a pobreza e a situação de subalternidade para a maior parte da
população. Esse processo de exclusão, cujo crivo é racial, decide quem deve
viver ou morrer. Nesse processo, a morte do pensamento, o epistemicídio, é
utilizado como estratégia de proteção do grupo hegemônico, pertencentes da
raça branca, em detrimento daqueles que são deixados para morrer, a raça
negra. A epistemologia hegemônica ocidental e/ou ocidentalizada controla a
produção e a legitimação do conhecimento, assim como a necropolítica
(Estado) controla e administra a política da morte dos corpos”.
7ª.) Biopolítica & Biopoder: os mecanismos de organização política e de domínio dos
povos estrangeiros foram descobertos durante as primeiras décadas do imperialismo:

# A raça como princípio da estrutura política;

# A burocracia como princípio do domínio no exterior.

“O imperialismo, isto é, a dominação dos países ocidentais sobre os países colonizados,


operava na lógica de “fazer morrer ou de deixar viver”.”

No modelo estatal ocidental, que o Brasil copiou, o controle sobre a vida das pessoas
ficou com o Estado. A partir do fim do século XVIII essa “tecnologia de poder”, a
burocracia e as legislações, que é outra etapa da técnica disciplinar, passa a ser a
tecnologia de controle dos corpos, que “devem ser vigiados, treinados, utilizados,
eventualmente, punidos”, essa é a biopolítica. O biopoder determina quem pode viver e
quem pode morrer usando o critério biológico da raça, há raças superiores e raças
inferiores, e esse é um critério eugenista. E qual raça seria essa, condenada a morte?
Todos os países do Sul, do continente africano e da américa latina, são descartáveis.
8ª.) A colonização como base do capitalismo: “Achile Mbembe, filósofo
camaronês, indica como a história do capitalismo se estabeleceu e se
fortaleceu com a expansão da exploração da mão de obra de corpos africanos,
que saíram da África como mercadoria para produzir riquezas na Europa e no
Novo Mundo (as américas). A colonização acumulou e produziu um lucro
jamais alcançado antes na comercialização de seres humanos como
escravos”.

Achille Mbembe nomeia de “primeiro capitalismo” o período da expansão


marítima europeia, quando o tráfico negreiro intensifica a diáspora africana o
que também intensifica a diáspora de outros povos para a ocupação,
principalmente dos continentes americano e africano. Esse primeiro capitalismo
para lograr êxito utiliza-se da mão de obra escrava, para auferir lucro ao
europeu nas terras do Novo Mundo. Esse processo de acumulação de riqueza
é “combustível” que vai fomentar o desejo de vários povos europeus de terem
suas próprias colônias seja na América, seja no continente africano”.
9ª.) Epistemicídio e biopoder como formas de apagamento: “a
estratégia da biopolítica: “fazer viver e deixar morrer”, são excluídos do
processo de industrialização, que privilegiou a mão de obra assalariada
aos imigrantes europeus deixando os negros em condições desfavorável
no mercado de trabalho reforçando ainda mais a sua posição de
subalterno”.

“Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu
sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou
ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam constituir uma ameaça à
expansão capitalista”.

Sempre foi disso que se tratou o epistemicídio!


SEMPRE HOUVE RESISTÊNCIA, SEMPRE HAVERÁ!

QUEM CONHECE A SUA HISTÓRIA NÃO SE ENGANA COM MENTIRAS!

SANKOFA
A reação dos africanos da diáspora e do continente africano ao epistemicídio

Realizam SANKOFA! Recuperam o sentido de um dos adinkra, conjunto de mais de


oitenta “ideogramas” que compõem a escrita dos povos akan, que estão localizados
tanto no país de Gana como no país da Costa do Marfim. Qual é o sentido de
Sankofa? Que nunca é tarde para voltar e recolher o que ficou para trás, pois sempre
podemos retificar os nossos erros. Em outras palavras, significa voltar às suas raízes
e construir sobre elas o desenvolvimento, o progresso e a prosperidade de sua
comunidade, em todos os aspectos da realização humana. É a sabedoria de aprender
com o passado para construir o presente e o futuro. Nesse sentido, voltar ao Egito
Africano Antigo e aos Reinos Africanos não se trata de um essencialismo romântico,
em relação à África, mas é fundamental para a construção de uma identidade própria,
viva, tanto no presente como na perspectiva de um futuro melhor para os filhos e
descendentes desse continente riquíssimo. Realizar sankofa é combater o
epistemicídio que o Ocidente impôs ao continente africano e a seus descendentes em
diáspora.

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