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CAPÍTULO 2

EPOS, MYTHOS E LOGOS

“O medo do desconhecido e a necessidade de dar sentido ao mundo que o cerca


levaram o homem a fundar diversos sistemas de crenças, cerimônias e cultos -- muitas
vezes centrados na figura de um ente supremo -- que o ajudam a compreender o
significado último de sua própria natureza. Mitos, superstições ou ritos mágicos que as
sociedades primitivas teceram em torno de uma existência sobrenatural, inatingível pela
razão, equivaleram à crença num ser superior e ao desejo de comunhão com ele, nas
primeiras formas de religião”. 1

2 A questão do sentido

Conforme sinalizado no capítulo anterior, o ‘Sentido’ da vida é desde sempre e


eternamente, o ‘Sentido’ do Logos em todas as suas dimensões e reflexões. A esse respeito,
faço minha as palavras do Pastor Romain Rolland à Freud, ao comparar o referido ‘Sentido'
a um sentimento subjetivo designado por uma ‘sensação de eternidade’, algo ilimitado, sem
fronteiras – “oceânico” por assim dizer, 2 não apenas um artigo de fé e que constitui a
verdadeira fonte de energia da vida da qual todos os seres humanos se alimentam e
dependem, ainda que não reconheçam como tal.

Antes de iniciarmos o estudo do Logos, sua implicação com a vida e a questão do


sentido que lhe é inerente, falaremos um pouco de seu antecessor, Epos, instrumento de
linguagem e expressão do Mythos, primeira tentativa de descrever o mundo e dar sentido às
relações humanas, aonde são lançadas as primeiras bases da comunicação, significação e
abertura para o Sentido.

Imbuídos ainda desse mesmo espírito revelador, estudaremos a relação de pertinência


entre Mythos e Λόγος. Veremos que a diferença entre ambos é apenas de natureza
1
HIEROS. Mito e Mitologia. Disponível em http://orbita.starmedia.com/~hyeros/mitoemitologia018.html.
2
Autor desconhecido. Textos Freud. O Mal estar na cultura. Disponível em:
http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/freud/tx_freud_01.htm.
23

conceitual, pois naquilo que lhes é próprio e comum como fundamento e ‘Sentido’ da vida
subjaz o mesmo princípio único, vital e atemporal que não pode ser diferente do que é: Lei
eterna, imutável e universal do “Epos” grego e do “Dabar” judaico, assim como do “Logos”
dos demais povos e nações, apreendido e nominado pelas culturas e religiões de maneiras
diferentes (Zeus, Deus, Brahma, Aláh, Tao, etc).

2.1 Epos e Logos pré-heraclítico

O termo com que Heráclito designa a palavra genuína, isto é, a enunciação inteligente,
é Logos. Epos, porém, significa, para ele, a linguagem inexpressiva do vulgo. Na literatura
pré-heraclítica, a expressão indicativa da palavra, quer divina, quer humana, é comumente
conhecida por Epos; ao passo que Logos é menos freqüente. Epos é empregado em Homero,
ao todo, em quatrocentos e cinco ocasiões, de preferência no plural Épea. Na Ilíada,
duzentos e duas vezes, nas mais variadas acepções, com e sem atributo; na Odisséia
duzentos e três vezes, à analogia da Ilíada. 3

Em sua quase totalidade os Epea humanos da Ilíada, foram pronunciados pelos


príncipes, heróis aqueus e deuses da religião olímpica (Zeus, Agamenon, Aquiles, Nestor,
etc.), a estes se dirigiram e sobre seus problemas versaram, proferidos numerosas vezes
durante as sessões do conselho de anciãos e durante as assembléias. Assim, tínhamos
durante as sessões do conselho e da assembléia os epea de encorajamento estimulador, a
persuasão branda e advertência ríspida, o gesto pacificador, assim como as explosões
temperamentais, os ditos insolentes, as palavras traiçoeiras, todos eles nascidos do afã de
conduzir à vitória a causa comum dos grandes aqueus, ainda que tais Epea tivesses
naturezas diferentes. Com eles relacionam-se os Epea divinos que Homero lhes atribui,
palavras em tudo semelhantes às humanas, chegando-se então ao Epos divino propriamente
dito, enunciado, ouvido e posto em prática pelos deuses. 4

Na religião olímpica, notabilizava-se o sentido do Epos humano como expressão da


verdade genuína notificada, muitas das vezes, aos deuses. De um lado a divindade
transmitia ao herói forças e prestígios e era causadora dos seus pensamentos e atos, de outro
recebia em troco o Epos da verdade franca e sincera. Entretanto, na religião olímpica, o

3
BERGE, Damião. O Logos Heraclítico, p. 90.
4
Ibid., 91.
24

verdadeiro agente da relação entre deuses e humanos não é o próprio homem, e sim o deus.
Este deposita o Νου̑ς no peito humano, inspira força e ânimo à mente, incendeia a emoção,
causa cegueira fatal, até dá o bom êxito ou fracasso. Logo, tudo no homem provém da
divindade e a ela está sujeito: por bem ou por mal ele põe em prática a deliberação e
vontade. Destarte, o homem é servente do deus e de seu próprio Epos.5

Distintos e distantes dos mortais, os deuses, contudo, desciam de suas alturas,


entravam para o mundo, para a natureza, estando em meio aos homens, agiam entre e sobre
eles. E mais: eles próprios, os olimpios, são a natureza e suas leis, são o curso natural das
coisas. Absorvem, por assim dizer, a matéria física, elevando-a para o céu empíreo: aspecto
da nova crença arcaica na santidade da matéria. Agindo, sua ação nada tem de sobrenatural,
entendendo-se por este termo, no modo de ver de Otto, a coação pela força superior. Com
efeito, sendo eles a própria ordem natural, as atividades nesta entrosadas não precisariam de
nenhuma imposição. 6

Cada um dos deuses está no mundo e age não por si só porém dentro da totalidade
divina. Todos eles constituem, juntos, uma unidade perfeita, apesar de suas diferenciações
individuais, formam uma só divindade, embora compósita. Suas notas singulares assinalam
apenas qualidades várias de um só ser divino: Atena, p. ex., a inteligência penetrante;
Afrodite, o amor em suas numerosas modalidades; Ártemis, a graça da juventude em flor;
Apolo, a nobreza lúcida; Hermes, o mistério insondável. Podem estas particularidades opor,
transitoriamente, um deus ao outro, antagonismo a repercutir entre os homens, todavia, não
rompem a unidade. A suma expressão deste ser uno é Zeus: o mito da família olímpica,
regida pelo Rei-Pai, se dá espaço a numerosas tensões, designa, igualmente, o vínculo de
harmonia indissolúvel. Por isso, conclui Otto, o termo Théos, em Homero, não se reporta a
nenhum indivíduo determinado, como tampouco poderia ter sentido monotético, senão que,
expressa aquela totalidade, uma em sua multiplicidade. 7

Frente ao deus intra-mundial, o homem, seguramente, reconhece-lhe a existência, as


qualidades e a ação. Este conhecimento não é nenhum processo abstrativo que, partindo da
observação de fenômenos inexplicáveis, pela eliminação sucessiva dos elementos
secundários, atingiria o conceito de deus. É uma visão daquelas potências e ações; uma
intuição ampla e extensa a percebê-las nos reinos da natureza; uma vivência acesa ao

5
BERGE, op. cit., p. 97-104.
6
Op. cit., p. 122.
7
Ibid., p. 122-123.
25

encontro com a vida superior, esplendorosa, sublime e misteriosa; uma compenetração


lúcida do sentido eterno que tudo invade e que brilha em cada ser. Longe de ser conquista
humana, esta iluminação é dom divino. 8

Outro fato que merece especial destaque é que tanto a ação divina como a conduta
humana permitem estabelecer outra propriedade da religião olímpica de suma importância
na formação do homem: o deus atua apenas extrinsecamente, dirige o exterior humano, e
não um seu interior, considerado inexistente. Logo, o homem épico encontra o deus, não
pelo recolhimento introvertido, porém, saindo para o exterior, participando da existência
concreta, vivendo a realidade do dia e contribuindo com todas as suas capacidades, para o
desenvolvimento dos valores do dia a dia. Para ele, não há interior nem interioridade. Sem
dúvida, ele é cônscio da força do seu pensar e sentir, do Νου ̑ς e Thymós; chega até a apelar
para este na vigorosa frase da Odisséia: “Suporta, coração, Kradie, pois, já sofrestes coisas
mais indignas”. Mas estes e a outros apelos nenhum interior responde. Por isso mesmo, a
religião olímpica ignora a alma: vive o mito do mundo. Sua psique, acrescentemo-lo, é
apenas o órgão vital que funciona temporariamente, como o Νου̑ς e o Thymós.9

Com isto, atingia-se a última e mais incisiva particularidade Olímpica: a hegemonia do


saber que absorve a vontade. Vivendo e agindo nesse mundo exterior, prossegue Otto, o
homem sabe-se circundado do grande e poderoso ser manifestado nas formas objetivas. O
que importa é conhecer essas formas, pois, sabendo-as o homem conhece-se a si mesmo.
São elas que tanto constituem seu próprio ser como decidem sua conduta: não e nenhuma
boa ou má inclinação ou vontade interior que os determina. O homem épico não dispõe de
volição expressa, razão por que a terminologia homérica ignora o substantivo indicativo da
vontade, salvo, talvez o termo boulé que, uma vez na Ilíada, poderia significar “vontade” ou
”resolução”, mas atribuído a Zeus. Ora, aquelas formas são os deuses, manifestações
parciais e ocasionais de uma grande divindade. Conhecendo-os, o homem vive em um
mundo real, objetivo e substancioso, no ser da terra, isto é, do próprio deus. Tal como a
vontade, é ainda absorvida a ética. Tudo quanto hoje expressa nosso termo caráter, sua
nobreza e retidão, assim como seu contrário, tem sua realidade fora e acima do homem. São
igualmente formas do ser divino, capazes de, a cada momento, manifestar-se. Novamente,
há mister sabê-las; e elas se tornam conhecidas através da ação extrínseca: quem age nobre
e retamente percebe a nobreza e retidão divinas; procedendo contrariamente é um pobre
8
Ibid., p. 123.
9
Ibid., p. 124.
26

ignorante. Este conhecimento, reiteremo-lo, não é o conceitual abstrato, e sim a intuição,


toda clara e nítida. 10

Visões sedutoras sem favor; crenças verdadeiramente líricas, em plena épica; realismo
de aparência mirificamente objetiva e sólida, mas a crítica dos pré-socráticos (Hesíodo,
Xenófanes, Heródoto) soube desmantelá-las as construções e demonstrar-lhes o vácuo.
Heráclito aceita a desigualdade entre os deuses e o homem, transforma-lhe, porém, como
sempre em mutações criadoras, os argumentos “empíricos”. Impugna, entretanto, o resto, a
exclusiva tendência extrovertida, obstáculo à reflexão, a redução da vontade ao só
perceptivo, a falta de uma ética responsável pelos próprios atos, a supressão da
personalidade. Particularmente, preocupa-o um autêntico problema “teológico”, descoberto
após longa meditação. É que Homero apenas sabia de qualidades e ações divinas, nas quais
julgava confinar-se o ser divino, não lhe tendo ocorrido que o verdadeiro ser, a Physis, é
algo de mais profundo. Para ele, como para todo o saber “empírico”, esse ser era,
praticamente, imanente à terra, sua transcendência, porém, se existente, não interessava,
porque tinha-se por inatingível. Ora, foi precisamente o transcendente que desafiou a
argúcia do pensar de Heráclito. Deste problema tornou-se inseparável este outro
“psicológico”: se para Homero o homem não passa de um ser “efêmero” – termo a designar,
não “o que dura um dia”, mas, no significado exato restabelecido por Frankel, “o que está
sujeito ao dia e as suas vicissitudes” – Heráclito sabia que o homem possui uma psique cujo
Logos sempre cresce e é incomensurável. 11 Mais uma vez, pois, se evidencia que o Epos não
revela a physis.12

10
Ibid., p. 124-125.
11
Ibid., p. 125.
12
Phisis é um termo importante da época arcaica. Nome verbal, relativo a phýesthai, “ser gerado, nascer,
crescer de dentro de”, designa o “crescimento espontâneo, de própria força”, e nós o interpretamos como
“natureza”. Há, latente neste termo, o mito antiqüíssimo que faz tudo quanto existe, deuses e cosmos,
proceder de dentro de um fundo comum, chamado ora caos-noite, ora céu-oceano; tudo é, originariamente,
um, e constitui-se através de procedências as mais variadas, de um eterno “substrato” primordial. Ora, daquilo
que muito se expressara simbólica e fantasticamente, por meio de teogonias, o pensamento jônico começou a
dar explicação racional. Os seres “procedem”, não do nada, mas “de dentro de si mesmos”, isto é, através de
causas naturais, regidas por leis imanentes. Este processo espontâneo, pelo qual algo “vem a ser”, “nasce” ou
“cresce”, phýetai, e assim, “é e existe” – não devido a uma intervenção extrínseca, mas em virtude de sua
própria força – este processo, pois, é a physis. Logo, no dizer de Frank, ela é o primário, em oposição ao
secundário e derivado; o sempre permanente, substrato fundamental dos fenômenos transitórios; sujeito
último a subsistir em tudo mais; qual verdade natural, é contraposta ao planejar e agir consciente dos homens,
oposta ainda a tudo quanto seja feito, isto é, deve sua origem a outro ser, logo à industria, téchne, e à lei
humana, nómos; à convenção, thésis, e à inteligência abstrativa, noûs”. (BERGE, Damião. O Logos
Heraclítico, p. 74-75).
27

Anteriormente ao Efésio, nem de longe Logos atingia a freqüência do Epos,


restringindo-se seu emprego, nos textos conhecidos, a umas trinta vezes. Homero aplicava-o
apenas em duas ocasiões, e só no plural: Na Ilíada, para designar a “conversação” com que
Pátroclo distrai o nobre Euripilo ferido, e na Odisséia, onde a própria Atena o caracteriza
como palavras “ternas e blandiciosas”, expressão que agradou tanto a posteridade que a
repetiram Hesíodo, Erga, o autor do hino a Hermes e Parmênides. 13

Em outro texto, Hesíodo reporta-se aos lógoi, como sendo “palavras mentirosas”,
filhas da odiosa discórdia, Éris, divinizando-as estranhamente. É ele ainda quem, pela
primeira vez, emprega Logos no singular para designar a “narração”. Este singular retorna,
entre os séculos VI/V, na Batracomiomáquia, no sentido de “discurso” e, finalmente, no
Certamen Homeri et Hesiodi, com a significação de “voz corrente” ou “tradição”. 14

Fora da Épica, o primeiro poeta a usá-lo no singular é Tirteu, designado por ele
literalmente como “discurso”. É assim que outros líricos o aproveitaram tais como, Alceu de
Mitilene (ou Safo de Lesbos?), Estesicoro de Esparta, e o jônico Anacreonte de Teos, com o
significado de “narração, história”, “tradição”, “discurso”, “frase” ou “comentário
corajoso”. Dizem que Aristodemo também o pronunciou, assim como, dois poetas do século
VI, Semônides e Ibico. 15

Os últimos contemporâneos de Heráclito a mencionar em seus escritos o vocábulo


Logos foram: o lírico Simônides de Ceos, os elegíacos Teógnides e Xenófanes e o periegeta
Hecateu. Para Simônides, Logos é no singular, simplesmente, Narração. 16 É com Teógnides,
porém, que o Logos começa a aprofundar-se. É ele propriamente, o primeiro a dar mais
ampla expressão ao nexo entre a convicção interior do homem e sua exterioridade pelo
logos-fala.

Conforme visto, Epos carece, na literatura pré-heraclítica, do sentido


predominantemente de linguagem fútil. É o termo principal a designar a palavra quer divina,
quer humana, em toda sua amplitude, em seu vigor, sua nobreza e elevação: e não apenas a
palavra isolada, como a frase, o período extenso, a conversação, o próprio discurso. Com
efeito, entre as modalidades do falar mítico, há expressões vãs, inconvenientes, mentirosas e
até ruins, em quantidade exígua, porém, todas válidas e legítimas, decorrentes do “ zeitgeist”

13
BERGE, op. cit., p. 111.
14
Ibid., p. 111.
15
Ibid., p. 111.
16
Op. cit., p. 113.
28

de uma época. Extrovertido na grande épica, desde os exórdios da lírica, Épos foi a primeira
forma racional de manifestação da personalidade humana, ao mesmo tempo em que lançou
as primeiras bases da comunicação, significação e abertura para o sentido. 17

Entretanto, a religião épica apresentava um lado mui vulnerável, o antropomorfismo,


que, se elevava até o infinito as qualidades nobres dos deuses, investia-os também das mais
hediondas baixezas, 18 além do que, havia no Epos o que, dia mais, dia menos, provocaria
reação da parte da gente nova, perspicaz e exigente. Epos era a língua da aristocracia argiva
e aquéia, daquela sociedade, fechada ao homem comum, e a daquela outra comunidade, toda
inacessível, da família olímpica. Esta, sobretudo, assenhorando-se totalmente do ser
humano, impediu-lhe o acesso ao saber mais profundo. Assim, inábil para vencer essa
barreira, insuficiente ainda para exprimir a natureza personal do homem, o Epos mítico foi
aos poucos substituído pelo Logos-razão, sob a perspectiva dos pensadores e filósofos
gregos, dentre os quais destaca-se Heráclito de Éfeso. 19

2.2 Mythos e Logos

Muitos desconhecem que Mythos e Logos, antes de chegarem a uma oposição


representativa e conceitual, estiveram juntos, pelo menos segundo a antiga etimologia que
identifica Mythos e Logos. A evolução semântica da palavra Mythos parece, apontar mais
para aproximações do que para oposições com o Logos.20 Não podemos esquecer ainda, que
o termo Mythos se origina do verbo grego myteomai, que significa desocultar,
primeiramente por intermédio de Epos mítico e posteriormente, através do Logos filosófico.

Em comparação com o campo semântico do vocábulo Epos que também significa


“palavra”, “canto”, de onde vem “épica”, o campo semântico do vocábulo Mythos, no
sentido geral de “palavra formulada”, inclui os sentidos de notícia, mensagem, conto,
estória, boato, narração à qual se dá créditos, fábula, saga, lenda.

Xenófones de Calcedônea lançou as bases da primeira crítica sistemática da


mentalidade religiosa dos gregos, abrindo caminho para a tentativa platônica de sistematizar

17
BERGE, op. cit., p. 110.
18
ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica, p. 34.
19
BERGE., loc. cit., p. 111.
20
PERINE, Marcelo. Mito e Filosofia. p. 38
29

e compreender o lugar do mito no saber e na vida humana. 21 Platão, por sua vez, reconhece
que uma sociedade, mesmo governada por filósofos, tem a necessidade da única realidade
que lhe pode dar coesão, isto é, um saber partilhado e implícito pelo qual a comunidade
mantém a sua identidade e a expressa nas suas opiniões, nos seus cantos, nos seus relatos e
nas suas histórias. 22 Para ele, os mitos são um modo de expressar verdades que escapam à
razão, bem como o recurso originário de falar do divino e do ser. Eles não se dirigem apenas
à mente, mas a totalidade do homem; não transmitem meras informações sobre a realidade,
e sim padrões de conduta e modelos de identificação. 23

Segundo Georges Gusdorf, a consciência mítica é a forma espontânea de ser no


mundo. É a primeira forma de conhecimento que o ser humano tem de si e do mundo. Com
efeito, a compreensão filosófica do mito põe, fundamentalmente, a questão do seu sentido
em relação à vida e, por conseguinte, a existência humana. Clémense Ramnoux, afirma que
na assim chamada era arcaica da Grécia, o Mytho, no sentido de “narrativa sagrada”, é
praticamente equivalente a um Logos qualificado de Hieros. 24

O Mytho, esclarece Rachel Gazolla: “faz parte de nossa psyché, é um modo de ler o
mundo, não é irracional, como querem alguns interpretes. A palavra irracional, hoje, é
extremamente pesada para explicar o pensamento mítico; afinal, ele é um pensamento bem
estruturado, porém sem necessidade de provas, de argumentos. Seu valor de verdade não é
aferido por sentenças, não se trata somente da linguagem, do Logos como discurso
argumentativo, pois a psyché é bem mais extensa que a criação do pensar-dizer na forma
sentencial.25

Ivanete Pereira, em sua obra “Aspectos Sagrados do Mito e do Logos”, salienta que
“num determinado estágio da sociedade grega, os dois conceitos, Mythos e Logos, não
apresentavam grandes diferenças entre si. E a palavra formulada no contexto de uma
narrativa sagrada como a Teogonia que narra a origem dos deuses pelo monumental poeta
grego Hesíodo, pode ser considerada Mythos como Hieros Logos (discurso ou palavra
sagrada, portadora da verdade ‘alethéia’). Só muito mais tarde essas palavras do vocabulário
épico caíram em desuso e foram praticamente substituídas por Logos e Legêin”.26
21
PERINE, op. cit., p. 37.
22
Ibid., p. 37
23
ESTRADA, Juan Antonio. A impossível Teodicéia, p. 45
24
PERINE, loc. cit., cit., p. 37.
25
FELIX, Luciene. Mito e Razão. p. 45. A psique possui um Logos que aumenta por si mesmo. (BERGE,
Damião. O Logos Heraclítico, p. 289).
26
FELIX, op. cit., p. 46.
30

Nesse sentido, o caráter sagrado dos relatos míticos é uma forma de sublinhar sua
significação arquetípica, canônica ou normativa, supra-histórica e existencial. São relatos
dotados de autoridade, que fundam uma tradição e proporcionam uma visão do homem, do
cosmos e dos deuses. Abordam os acontecimentos pela perspectiva dos primórdios e se
diferenciam claramente dos eventos da vida profana e da esfera do cotidiano. Por essa razão,
os Mythos se distinguem das narrativas populares, das fábulas e lendas, apesar das
semelhanças de linguagem. 27

O mito permite que os homens se encontrem consigo mesmo, recordando-lhe suas


origens e representando o significado de sua vida. Proporciona um sentido global que se
expressa por meio dos grandes personagens, figuras mais simbólicas e arqutípicas do que
vultos históricos. Daí o caráter heróico, idealizado e sacralizado dos protagonistas
mitológicos. Nesse sentido, poder-se-ia falar de uma hermenêutica instauradora que ressalta
a importância e a significação do mito para a história e a vida do homem, quer no passado,
quer na atualidade. Eles narram um evento que se situa além da cronologia histórica ( in illo
tempore...), fornecendo parâmetros para a compreensão do significado dos acontecimentos
históricos. Sua função heurística consiste em propiciar dados fundamentais para a
elucidação dos acontecimentos da experiência, revestindo-os, portanto, de sentido. 28

O mito é, fundamentalmente, um relato das “origens”, uma palavra encenada, reflexão


sapiencial integrada em um discurso narrativo. Pode-se falar da linguagem paradigmática e
arquétipica dos mitos, que narram não o que historicamente aconteceu no passado – pois
não são relatos históricos –, mas aquilo que sempre ocorre no âmbito da existência. Daí
decorre seu valor como instauradores e estabilizadores de uma ordem e de uma identidade
coletiva, propiciando segurança e coesão social. 29 Eis por que todo Mytho, como sustenta
Mircea Eliade, 30 é sempre um relato das origens com finalidade instauradora.

Além disso, a linguagem mitica é pluridimensional, no sentido de que não só


proporciona idéias e conceitos que conformam o acervo cognitivo de uma determinada
cultura, como desenvolve imagens, símbolos, metáforas por meio das quais se expressa sua
dimensão afetiva e estética. Na medida em que os mitos servem para construir as categorias
nas quais se enraízam as culturas, eles lançam ao mesmo tempo as bases da significação e
da comunicação. Em sua dupla dimensão de narração e experiência vivida, o mito
27
ESTRADA, op. cit., p. 45.
28
Ibid., p.. 45.
29
ESTRADA, op. cit., p. 44.
30
PERINE, op. cit., p. 45.
31

apresenta-se como uma sabedoria de vida, um saber que justifica o ser humano e o mundo,
fundando-os no intemporal e dando-lhes um sentido global. 31

Os mitos expressam – em termos arquétipos e ahistóricos – a compreensão que o


homem tem de si, de suas origens e de seu projeto existencial. Eles pretendem dar a chave
do sentido da totalidade do ser humano que começa a despertar do seu sono de inocência.
Como diz Luiz Cencílio, 32

“O mito, antes de tudo, cria uma base de compreensão, em forma de esquemas mentais e
de modelos gestálticos, para que o ser humano organize, dirija e ilumine a experiência
bruta de si mesmo, do cosmo e dos acontecimentos eventuais (destino, providência,
progresso, projeção escatológica etc...) nos quais o ser humano se vê envolvido e
comprometido. Assim vão se formando, graças ao mito, umas constelações
representativas e uns pontos de orientação estético-éticos capazes de sustentar a ausência
de fundamento radical do ser humano e sua desorientação original em meio a uma
realidade polivalente”

Assim, o mito é sempre uma forma de discurso, uma palavra que encarna um sentido
vivido, não como algo separado dele, mas como uma invocação da vida, como uma palavra
que penetra a realidade e a “maneja segundo as suas próprias leis”. Enquanto atitude vivida
que se traduz em forma de discurso, o Mytho, como dissemos, é o antecedente imediato de
outra forma de expressão conhecida como literatura sapiencial. A literatura sapiencial
parece inscrever-se no próprio coração do mito. 33

Nesse sentido, os sábios de Israel reconheciam que toda a sabedoria humana devia
estar de acordo com a grande sabedoria de Deus, 34 aquela sabedoria que penetrava o mundo
e presidira a criação. Além do que, o Logos Sabedoria, tão comum nos escritos sapienciais e

31
ESTRADA, op. cit., p. 44.
32
PERINE, op. cit., p. 47.
33
Ibid., p. 47
34
Pensamento análogo é o de Clemente de Alexandria em sua exaltação à teologia cristã, de que a filosofia
grega é propedêutica (Stromateis, 1.20). Mais adiante, Wolfson conjectura que o propósito de Fílon talvez
“não fosse ensinar a verdadeira filosofia para estudantes da Escritura, mas mostrar a verdade da Escritura aos
estudantes de filosofia” (op. cit., p. 105). V. também p. 142-143: filosofia como presente de Deus aos não-
judeus, para que atingissem pela razão o que os judeus obtiveram pela revelação, e como fonte de bens, não
havendo qualquer contradição nesta teoria, pois se postula que todo conhecimento vem de Deus.”
(FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 31)
32

judaicos, sempre agiu no mundo transmitindo aos homens [Sabedoria], vida, luz, alimento
celeste, bebida espiritual. 35

Assim, antes de dar ao homem conselhos, a sabedoria representa uma tentativa de


exploração do universo com a finalidade de assumir e dominar a sua imensa diversidade.
Nesse sentido, procedem dessa atividade exploratória as classificações de animais, de
plantas, de pedras, assim como as classificações dos povos, dos acontecimentos e, mais
precisamente, as classificações binárias (macho-fêmea, céu-terra, luz-trevas, seres vivos-
seres inanimados, espírito-corpo, selvagem-doméstico, puro-impuro, jardim-esepe, árvore
de vida-erva estéril etc.). De modo geral, todas as tentativas de denominação das coisas
criadas traduzem a relação do universo com a nossa forma de pensar. 36

É na sabedoria da vida dos grupos humanos que se sedimentam as posições ou


decisões tomadas relativamente às ambigüidades da realidade: a semelhança e a diferença, o
parentesco e a oposição, a continuidade e a discordância, o sim e o não, numa palavra, o
bem e o mal. A busca do sentido recebe aqui uma dimensão mais existencial, porque é na
medida em que o mundo aparece como um sentido ameaçado que a sabedoria adquire um
alcance ético: conhecer o mundo é ser capaz de viver nele e nele afrontar o absurdo. Por
isso os mitos da origem têm uma dimensão sapiencial, pois compreender a origem das
coisas é saber o seu significado atual e, também, o que elas continuarão a oferecer aos
homens. Assim, a sabedoria traduz o próprio coração do mito, na medida em que pretende
responder as mesmas questões que fizeram a vida ultrapassar o limiar da humanidade, e que
se resumem na questão do sentido ou, o que é o mesmo, na questão do bem. É na resposta a
essas questões que o mito oferece um mundo significante para a experiência humana e
desenvolve uma sabedoria para a vida. 37

Esta breve aproximação filosófica ao mito pretende mostrar que a consciência mítica,
surgida com o aparecimento do ser humano no mundo, não é uma consciência arcaica ou
primitiva, no sentido pejorativo dos termos, que devia ser descartada com o advento e a

35
“(...) a Sabedoria tudo pode... ela renova o universo; ao longo dos séculos ela se derrama nas almas santas para
fazer delas amigos de Deus e profetas” (Sb 7, 27). “A Sabedoria é um espírito que ama os homens”, “O espírito
do Senhor, enche o universo” (Sb 1,6-7). “(...) mas os sábios de Israel rapidamente reconheceram que toda
sabedoria humana devia estar de acordo com a grande sabedoria de Deus, aquela Sabedoria que presidira à
criação (...)”. (Jaubert, Annie. Leitura do Evangelho segundo João, pp. 30 e 31.). Para o filósofo judeu Filon de
Alexandria, (...) Logos e Sabedoria eram manifestações de Deus, pelas quais ele intervinha no mundo,
instrumentos de sua ação. (...) Logos e Sabedoria permutam entre si, muitas vezes seus atributos comunicam aos
homens vida, luz, alimento celeste, bebida espiritual. (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 59).
36
PERINE, op. cit., p. 48.
37
Ibid., p. 49
33

soberania do Logos como razão raciocinante. Ao contrário, a consciência mítica é uma


espécie de lógica própria da mente humana, que corresponde à primeira experiência do ser
humano no mundo que é sempre a experiência do seu enraizamento e da sua abertura para o
sentido. Portanto, não há uma descontinuidade radical entre Mito (Epos) e razão (Logos),
justamente porque a estrutura do mito reflete a estrutura do espírito humano. 38

Nesse contexto, todas as religiões, tanto as primitivas quanto as avançadas, requerem


algum mito, pois a ligação entre o divino e a experiência pessoal só pode ser feita de acordo
com conceitos míticos. No mito da criação dos relatos babilônicos, fala-se de Marduque e
sua luta titânica contra o dragão Tiamate, como preparação prévia para a criação da terra e
do homem. No hinduismo, temos a história de Brahma, inspirando e expirando a vida do
universo criado. 39 No judaísmo [e cristianismo], por sua vez, temos uma concepção linear e
contínua da história, em que a eleição de um Deus estende-se à criação do cosmos e de tudo
o que nele há, permitindo que a particularidade israelita [e cristã] se articule com a
universalidade humana. Naturalmente, os seguidores dessas religiões relutam em confessar
isso, quanto às suas próprias religiões, embora não o neguem no tocante a outras religiões. É
significativo que os mitos também exibam certa progressão. Com efeito, os deuses vão
ficando melhores [e mais bem compreendidos] à medida que os séculos se escoam. Assim,
um mito é, na verdade, uma espécie de primeira tentativa para os homens chegarem à
compreensão dos grandes mistérios que nos circundam e que, em última análise, dizem
respeito à vida e ao sentido que lhe é inerente. 40

Ao chegarmos ao final deste segundo capítulo, chegamos a conclusão de que a


consciência mítica, como forma originária da presença do ser humano no mundo, revela o
mito como uma sabedoria de vida através da qual os grupos humanos garantiram sua
sobrevivência e identidade, lançando ao mesmo tempo as primeiras bases da significação,
comunicação e abertura para o sentido.

Através do Epos e de sua religião Olímpica agiram e agem forças adversas ao


verdadeiro ser humano, obstruindo-lhe a consciência da própria personalidade, e porque,
oculta a verdadeira natureza do ser divino, tem ele de ser substituído pelo Logos inteligente.

Na Ilíada o Epos revela certos aspectos da religião olímpica, importantes para a


constatação de um sentido oculto em suas representações conceituais, cuja amplitude e
38
Ibid., p. 49
39
CHAMPLIN, op. cit., p. 321.
40
ESTRADA, op. cit., p. 62.
34

grandeza são superiores ao nome e significado dele derivantes, e que para Heráclito
consistia na verdadeira fonte de sabedoria e fundamento da vida, a quem os efésios
deveriam ouvir, e não a ele, menos ainda a Homero.

Heráclito percebera que a verdadeira sabedoria não estava nas palavras divinas e
humanas, que na verdade, eram palavras homéricas, desprovidas de sentido, tampouco se
encontrava nas suas próprias palavras, mas, desde sempre e eternamente, no Sentido e,
conseqüentemente, no Logos a quem deveriam ouvir. Por isso afirmara: “ouk emoū allā
Lógou akoūsantas homologeín sophón estin Hén Pānta”. Uma das traduções, que no
conjunto concordam, diz: “Se aprenderam não a mim, mas o Sentido, então é sábio dizer no
mesmo sentido: Um é tudo e tudo é Um” (Snell).

As palavras de Heráclito revelam algo misterioso, profundo e imanente, de dimensão


cósmica inimaginável, cuja plenitude e alcance estão para além das palavras humanas e suas
representações conceituais: a existência do Sentido que preside e dirige o cosmos e tudo o
que nele existe, sendo dele fonte de energia, sabedoria e condição sine qua non à vida;

O sábio Heráclito não advogou para si uma sabedoria que sabia não lhe pertencer e
que tinha por fundamento um Sentido que estava para além das representações conceituais
míticas, antes, reverenciou o Sentido que é inerente à vida, pedindo aos efésios que
ouvissem não a ele, mas ao Sentido, pois Nele se encontrava a essência e origem do Logos
inteligente.

A sabedoria humana e, por conseguinte, mítica, não está dissociada do Logos Sabedoria,
tampouco da grande Sabedoria de Deus, não havendo, portanto, descontinuidade radical entre
mito (Epos) e razão (Logos), pois naquilo que lhes é próprio e comum como fundamento e
sentido da vida, subjaz o mesmo princípio único, vital e atemporal que age no cosmos e no
mundo dos homens e que não pode ser diferente do que é: Lei eterna, imutável e universal
do “Epos” grego e do “dabar” judaico, assim como “Logos” dos demais povos e nações,
sentimento oceânico que constitui a verdadeira fonte de energia da vida.

O capítulo que se segue, faz uma abordagem do Logos e de seus grandes pensadores,
ocasião em que serão apresentadas suas principais idéias e teorias, e as implicações destas
com a vida e o sentido que lhe é inerente. Destaca-se nesse capítulo as diferentes apreensões
de Sentido e atribuições de significado do Logos ao longo de sua história, em razão de seu
contexto histórico-cultural e filosófico-religioso.

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