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CAPÍTULO 2
2 A questão do sentido
conceitual, pois naquilo que lhes é próprio e comum como fundamento e ‘Sentido’ da vida
subjaz o mesmo princípio único, vital e atemporal que não pode ser diferente do que é: Lei
eterna, imutável e universal do “Epos” grego e do “Dabar” judaico, assim como do “Logos”
dos demais povos e nações, apreendido e nominado pelas culturas e religiões de maneiras
diferentes (Zeus, Deus, Brahma, Aláh, Tao, etc).
O termo com que Heráclito designa a palavra genuína, isto é, a enunciação inteligente,
é Logos. Epos, porém, significa, para ele, a linguagem inexpressiva do vulgo. Na literatura
pré-heraclítica, a expressão indicativa da palavra, quer divina, quer humana, é comumente
conhecida por Epos; ao passo que Logos é menos freqüente. Epos é empregado em Homero,
ao todo, em quatrocentos e cinco ocasiões, de preferência no plural Épea. Na Ilíada,
duzentos e duas vezes, nas mais variadas acepções, com e sem atributo; na Odisséia
duzentos e três vezes, à analogia da Ilíada. 3
3
BERGE, Damião. O Logos Heraclítico, p. 90.
4
Ibid., 91.
24
verdadeiro agente da relação entre deuses e humanos não é o próprio homem, e sim o deus.
Este deposita o Νου̑ς no peito humano, inspira força e ânimo à mente, incendeia a emoção,
causa cegueira fatal, até dá o bom êxito ou fracasso. Logo, tudo no homem provém da
divindade e a ela está sujeito: por bem ou por mal ele põe em prática a deliberação e
vontade. Destarte, o homem é servente do deus e de seu próprio Epos.5
Cada um dos deuses está no mundo e age não por si só porém dentro da totalidade
divina. Todos eles constituem, juntos, uma unidade perfeita, apesar de suas diferenciações
individuais, formam uma só divindade, embora compósita. Suas notas singulares assinalam
apenas qualidades várias de um só ser divino: Atena, p. ex., a inteligência penetrante;
Afrodite, o amor em suas numerosas modalidades; Ártemis, a graça da juventude em flor;
Apolo, a nobreza lúcida; Hermes, o mistério insondável. Podem estas particularidades opor,
transitoriamente, um deus ao outro, antagonismo a repercutir entre os homens, todavia, não
rompem a unidade. A suma expressão deste ser uno é Zeus: o mito da família olímpica,
regida pelo Rei-Pai, se dá espaço a numerosas tensões, designa, igualmente, o vínculo de
harmonia indissolúvel. Por isso, conclui Otto, o termo Théos, em Homero, não se reporta a
nenhum indivíduo determinado, como tampouco poderia ter sentido monotético, senão que,
expressa aquela totalidade, uma em sua multiplicidade. 7
5
BERGE, op. cit., p. 97-104.
6
Op. cit., p. 122.
7
Ibid., p. 122-123.
25
Outro fato que merece especial destaque é que tanto a ação divina como a conduta
humana permitem estabelecer outra propriedade da religião olímpica de suma importância
na formação do homem: o deus atua apenas extrinsecamente, dirige o exterior humano, e
não um seu interior, considerado inexistente. Logo, o homem épico encontra o deus, não
pelo recolhimento introvertido, porém, saindo para o exterior, participando da existência
concreta, vivendo a realidade do dia e contribuindo com todas as suas capacidades, para o
desenvolvimento dos valores do dia a dia. Para ele, não há interior nem interioridade. Sem
dúvida, ele é cônscio da força do seu pensar e sentir, do Νου ̑ς e Thymós; chega até a apelar
para este na vigorosa frase da Odisséia: “Suporta, coração, Kradie, pois, já sofrestes coisas
mais indignas”. Mas estes e a outros apelos nenhum interior responde. Por isso mesmo, a
religião olímpica ignora a alma: vive o mito do mundo. Sua psique, acrescentemo-lo, é
apenas o órgão vital que funciona temporariamente, como o Νου̑ς e o Thymós.9
Visões sedutoras sem favor; crenças verdadeiramente líricas, em plena épica; realismo
de aparência mirificamente objetiva e sólida, mas a crítica dos pré-socráticos (Hesíodo,
Xenófanes, Heródoto) soube desmantelá-las as construções e demonstrar-lhes o vácuo.
Heráclito aceita a desigualdade entre os deuses e o homem, transforma-lhe, porém, como
sempre em mutações criadoras, os argumentos “empíricos”. Impugna, entretanto, o resto, a
exclusiva tendência extrovertida, obstáculo à reflexão, a redução da vontade ao só
perceptivo, a falta de uma ética responsável pelos próprios atos, a supressão da
personalidade. Particularmente, preocupa-o um autêntico problema “teológico”, descoberto
após longa meditação. É que Homero apenas sabia de qualidades e ações divinas, nas quais
julgava confinar-se o ser divino, não lhe tendo ocorrido que o verdadeiro ser, a Physis, é
algo de mais profundo. Para ele, como para todo o saber “empírico”, esse ser era,
praticamente, imanente à terra, sua transcendência, porém, se existente, não interessava,
porque tinha-se por inatingível. Ora, foi precisamente o transcendente que desafiou a
argúcia do pensar de Heráclito. Deste problema tornou-se inseparável este outro
“psicológico”: se para Homero o homem não passa de um ser “efêmero” – termo a designar,
não “o que dura um dia”, mas, no significado exato restabelecido por Frankel, “o que está
sujeito ao dia e as suas vicissitudes” – Heráclito sabia que o homem possui uma psique cujo
Logos sempre cresce e é incomensurável. 11 Mais uma vez, pois, se evidencia que o Epos não
revela a physis.12
10
Ibid., p. 124-125.
11
Ibid., p. 125.
12
Phisis é um termo importante da época arcaica. Nome verbal, relativo a phýesthai, “ser gerado, nascer,
crescer de dentro de”, designa o “crescimento espontâneo, de própria força”, e nós o interpretamos como
“natureza”. Há, latente neste termo, o mito antiqüíssimo que faz tudo quanto existe, deuses e cosmos,
proceder de dentro de um fundo comum, chamado ora caos-noite, ora céu-oceano; tudo é, originariamente,
um, e constitui-se através de procedências as mais variadas, de um eterno “substrato” primordial. Ora, daquilo
que muito se expressara simbólica e fantasticamente, por meio de teogonias, o pensamento jônico começou a
dar explicação racional. Os seres “procedem”, não do nada, mas “de dentro de si mesmos”, isto é, através de
causas naturais, regidas por leis imanentes. Este processo espontâneo, pelo qual algo “vem a ser”, “nasce” ou
“cresce”, phýetai, e assim, “é e existe” – não devido a uma intervenção extrínseca, mas em virtude de sua
própria força – este processo, pois, é a physis. Logo, no dizer de Frank, ela é o primário, em oposição ao
secundário e derivado; o sempre permanente, substrato fundamental dos fenômenos transitórios; sujeito
último a subsistir em tudo mais; qual verdade natural, é contraposta ao planejar e agir consciente dos homens,
oposta ainda a tudo quanto seja feito, isto é, deve sua origem a outro ser, logo à industria, téchne, e à lei
humana, nómos; à convenção, thésis, e à inteligência abstrativa, noûs”. (BERGE, Damião. O Logos
Heraclítico, p. 74-75).
27
Em outro texto, Hesíodo reporta-se aos lógoi, como sendo “palavras mentirosas”,
filhas da odiosa discórdia, Éris, divinizando-as estranhamente. É ele ainda quem, pela
primeira vez, emprega Logos no singular para designar a “narração”. Este singular retorna,
entre os séculos VI/V, na Batracomiomáquia, no sentido de “discurso” e, finalmente, no
Certamen Homeri et Hesiodi, com a significação de “voz corrente” ou “tradição”. 14
Fora da Épica, o primeiro poeta a usá-lo no singular é Tirteu, designado por ele
literalmente como “discurso”. É assim que outros líricos o aproveitaram tais como, Alceu de
Mitilene (ou Safo de Lesbos?), Estesicoro de Esparta, e o jônico Anacreonte de Teos, com o
significado de “narração, história”, “tradição”, “discurso”, “frase” ou “comentário
corajoso”. Dizem que Aristodemo também o pronunciou, assim como, dois poetas do século
VI, Semônides e Ibico. 15
13
BERGE, op. cit., p. 111.
14
Ibid., p. 111.
15
Ibid., p. 111.
16
Op. cit., p. 113.
28
de uma época. Extrovertido na grande épica, desde os exórdios da lírica, Épos foi a primeira
forma racional de manifestação da personalidade humana, ao mesmo tempo em que lançou
as primeiras bases da comunicação, significação e abertura para o sentido. 17
17
BERGE, op. cit., p. 110.
18
ZUCK, Roy B. A Interpretação Bíblica, p. 34.
19
BERGE., loc. cit., p. 111.
20
PERINE, Marcelo. Mito e Filosofia. p. 38
29
e compreender o lugar do mito no saber e na vida humana. 21 Platão, por sua vez, reconhece
que uma sociedade, mesmo governada por filósofos, tem a necessidade da única realidade
que lhe pode dar coesão, isto é, um saber partilhado e implícito pelo qual a comunidade
mantém a sua identidade e a expressa nas suas opiniões, nos seus cantos, nos seus relatos e
nas suas histórias. 22 Para ele, os mitos são um modo de expressar verdades que escapam à
razão, bem como o recurso originário de falar do divino e do ser. Eles não se dirigem apenas
à mente, mas a totalidade do homem; não transmitem meras informações sobre a realidade,
e sim padrões de conduta e modelos de identificação. 23
O Mytho, esclarece Rachel Gazolla: “faz parte de nossa psyché, é um modo de ler o
mundo, não é irracional, como querem alguns interpretes. A palavra irracional, hoje, é
extremamente pesada para explicar o pensamento mítico; afinal, ele é um pensamento bem
estruturado, porém sem necessidade de provas, de argumentos. Seu valor de verdade não é
aferido por sentenças, não se trata somente da linguagem, do Logos como discurso
argumentativo, pois a psyché é bem mais extensa que a criação do pensar-dizer na forma
sentencial.25
Ivanete Pereira, em sua obra “Aspectos Sagrados do Mito e do Logos”, salienta que
“num determinado estágio da sociedade grega, os dois conceitos, Mythos e Logos, não
apresentavam grandes diferenças entre si. E a palavra formulada no contexto de uma
narrativa sagrada como a Teogonia que narra a origem dos deuses pelo monumental poeta
grego Hesíodo, pode ser considerada Mythos como Hieros Logos (discurso ou palavra
sagrada, portadora da verdade ‘alethéia’). Só muito mais tarde essas palavras do vocabulário
épico caíram em desuso e foram praticamente substituídas por Logos e Legêin”.26
21
PERINE, op. cit., p. 37.
22
Ibid., p. 37
23
ESTRADA, Juan Antonio. A impossível Teodicéia, p. 45
24
PERINE, loc. cit., cit., p. 37.
25
FELIX, Luciene. Mito e Razão. p. 45. A psique possui um Logos que aumenta por si mesmo. (BERGE,
Damião. O Logos Heraclítico, p. 289).
26
FELIX, op. cit., p. 46.
30
Nesse sentido, o caráter sagrado dos relatos míticos é uma forma de sublinhar sua
significação arquetípica, canônica ou normativa, supra-histórica e existencial. São relatos
dotados de autoridade, que fundam uma tradição e proporcionam uma visão do homem, do
cosmos e dos deuses. Abordam os acontecimentos pela perspectiva dos primórdios e se
diferenciam claramente dos eventos da vida profana e da esfera do cotidiano. Por essa razão,
os Mythos se distinguem das narrativas populares, das fábulas e lendas, apesar das
semelhanças de linguagem. 27
apresenta-se como uma sabedoria de vida, um saber que justifica o ser humano e o mundo,
fundando-os no intemporal e dando-lhes um sentido global. 31
“O mito, antes de tudo, cria uma base de compreensão, em forma de esquemas mentais e
de modelos gestálticos, para que o ser humano organize, dirija e ilumine a experiência
bruta de si mesmo, do cosmo e dos acontecimentos eventuais (destino, providência,
progresso, projeção escatológica etc...) nos quais o ser humano se vê envolvido e
comprometido. Assim vão se formando, graças ao mito, umas constelações
representativas e uns pontos de orientação estético-éticos capazes de sustentar a ausência
de fundamento radical do ser humano e sua desorientação original em meio a uma
realidade polivalente”
Assim, o mito é sempre uma forma de discurso, uma palavra que encarna um sentido
vivido, não como algo separado dele, mas como uma invocação da vida, como uma palavra
que penetra a realidade e a “maneja segundo as suas próprias leis”. Enquanto atitude vivida
que se traduz em forma de discurso, o Mytho, como dissemos, é o antecedente imediato de
outra forma de expressão conhecida como literatura sapiencial. A literatura sapiencial
parece inscrever-se no próprio coração do mito. 33
Nesse sentido, os sábios de Israel reconheciam que toda a sabedoria humana devia
estar de acordo com a grande sabedoria de Deus, 34 aquela sabedoria que penetrava o mundo
e presidira a criação. Além do que, o Logos Sabedoria, tão comum nos escritos sapienciais e
31
ESTRADA, op. cit., p. 44.
32
PERINE, op. cit., p. 47.
33
Ibid., p. 47
34
Pensamento análogo é o de Clemente de Alexandria em sua exaltação à teologia cristã, de que a filosofia
grega é propedêutica (Stromateis, 1.20). Mais adiante, Wolfson conjectura que o propósito de Fílon talvez
“não fosse ensinar a verdadeira filosofia para estudantes da Escritura, mas mostrar a verdade da Escritura aos
estudantes de filosofia” (op. cit., p. 105). V. também p. 142-143: filosofia como presente de Deus aos não-
judeus, para que atingissem pela razão o que os judeus obtiveram pela revelação, e como fonte de bens, não
havendo qualquer contradição nesta teoria, pois se postula que todo conhecimento vem de Deus.”
(FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 31)
32
judaicos, sempre agiu no mundo transmitindo aos homens [Sabedoria], vida, luz, alimento
celeste, bebida espiritual. 35
Esta breve aproximação filosófica ao mito pretende mostrar que a consciência mítica,
surgida com o aparecimento do ser humano no mundo, não é uma consciência arcaica ou
primitiva, no sentido pejorativo dos termos, que devia ser descartada com o advento e a
35
“(...) a Sabedoria tudo pode... ela renova o universo; ao longo dos séculos ela se derrama nas almas santas para
fazer delas amigos de Deus e profetas” (Sb 7, 27). “A Sabedoria é um espírito que ama os homens”, “O espírito
do Senhor, enche o universo” (Sb 1,6-7). “(...) mas os sábios de Israel rapidamente reconheceram que toda
sabedoria humana devia estar de acordo com a grande sabedoria de Deus, aquela Sabedoria que presidira à
criação (...)”. (Jaubert, Annie. Leitura do Evangelho segundo João, pp. 30 e 31.). Para o filósofo judeu Filon de
Alexandria, (...) Logos e Sabedoria eram manifestações de Deus, pelas quais ele intervinha no mundo,
instrumentos de sua ação. (...) Logos e Sabedoria permutam entre si, muitas vezes seus atributos comunicam aos
homens vida, luz, alimento celeste, bebida espiritual. (FONSECA, Dax. Logos em Filon de Alexandria, p. 59).
36
PERINE, op. cit., p. 48.
37
Ibid., p. 49
33
grandeza são superiores ao nome e significado dele derivantes, e que para Heráclito
consistia na verdadeira fonte de sabedoria e fundamento da vida, a quem os efésios
deveriam ouvir, e não a ele, menos ainda a Homero.
Heráclito percebera que a verdadeira sabedoria não estava nas palavras divinas e
humanas, que na verdade, eram palavras homéricas, desprovidas de sentido, tampouco se
encontrava nas suas próprias palavras, mas, desde sempre e eternamente, no Sentido e,
conseqüentemente, no Logos a quem deveriam ouvir. Por isso afirmara: “ouk emoū allā
Lógou akoūsantas homologeín sophón estin Hén Pānta”. Uma das traduções, que no
conjunto concordam, diz: “Se aprenderam não a mim, mas o Sentido, então é sábio dizer no
mesmo sentido: Um é tudo e tudo é Um” (Snell).
O sábio Heráclito não advogou para si uma sabedoria que sabia não lhe pertencer e
que tinha por fundamento um Sentido que estava para além das representações conceituais
míticas, antes, reverenciou o Sentido que é inerente à vida, pedindo aos efésios que
ouvissem não a ele, mas ao Sentido, pois Nele se encontrava a essência e origem do Logos
inteligente.
A sabedoria humana e, por conseguinte, mítica, não está dissociada do Logos Sabedoria,
tampouco da grande Sabedoria de Deus, não havendo, portanto, descontinuidade radical entre
mito (Epos) e razão (Logos), pois naquilo que lhes é próprio e comum como fundamento e
sentido da vida, subjaz o mesmo princípio único, vital e atemporal que age no cosmos e no
mundo dos homens e que não pode ser diferente do que é: Lei eterna, imutável e universal
do “Epos” grego e do “dabar” judaico, assim como “Logos” dos demais povos e nações,
sentimento oceânico que constitui a verdadeira fonte de energia da vida.
O capítulo que se segue, faz uma abordagem do Logos e de seus grandes pensadores,
ocasião em que serão apresentadas suas principais idéias e teorias, e as implicações destas
com a vida e o sentido que lhe é inerente. Destaca-se nesse capítulo as diferentes apreensões
de Sentido e atribuições de significado do Logos ao longo de sua história, em razão de seu
contexto histórico-cultural e filosófico-religioso.