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TEXTOS MESTRADO CIENCIAS SOCIAIS – UFJF

NECROPOLITICA E NEOLIBERALISMO – SILVIO LUIZ DE ALMEIDA

Conceito é um treco importante e, por isso, faço este fio aqui para
tratar da distinção entre racismo estrutural e racismo institucional
(distinção central em meu livro) e que talvez nos ajude a entender
alguns fenômenos:
1. Logo na abertura de meu livro afirmo que “todo racismo é
estrutural”. O que significa isso? Significa que o racismo, seja em
nível das relações interpessoais, seja no plano institucional, é produto
de uma estrutura social racista.
2. Isso quer dizer que é justamente a reprodução da economia, do
Estado, do direito e da subjetividade (ideologia) é que dá forma ao
racismo, que não é uma anormalidade, mas algo inerente à
sociabilidade capitalista.
3. Dizer que o racismo é institucional é “baixar” a visão quando da
observação do fenômeno. O racismo existe nas instituições porque as
instituições são forjadas na lógica de um mundo racista.
4. O nível institucional é local de intensos conflitos entre os grupos
sociais que compõem a sociedade. Partidos políticos e sindicatos são
exemplos de luta institucional, ou seja, que se dá dentro da estrutura
por meio de diferentes táticas e estratégias (até jurídicas).
5. Por isso, sobre racismo institucional escrevi: “Sem nada fazer, toda
instituição irá se tornar uma correia de transmissão de privilégios e
violências racistas e sexistas. De tal modo que, se o racismo é
inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo
[…]
6. “[…] é por meio da implementação de práticas antirracistas
efetivas. É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a
questão racial investir na adoção de políticas internas que visem: […]”
7. “[…] a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações
internas e com o público externo – por exemplo, na publicidade; b)
remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de
direção e de prestígio na instituição; […]
8. c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão
de práticas institucionais; d) promover o acolhimento e possível
composição de conflitos raciais e de gênero”. (pag. 48-49).
9. Em suma: combater o racismo estrutural é pensar o horizonte de
transformação plena da sociedade; combater o racismo institucional é
pensar o racismo como relação de poder, tensão, consenso e
violência.
10. Portanto, as chamadas práticas antirracistas (e.g. ação
afirmativa/cotas) são feitas em nivel institucional e podem,
eventualmente, tocar nas estruturas. (Outra exemplo: a decisão do
TSE sobre candidaturas negras).
11. Mas o combate ao racismo institucional pode ser inócuo sem um
olhar para as estruturas. Desse modo, não há empoderamento que
resista à precarização do trabalho;
12. Não há política de cotas que dure com teto de gastos e destruição
do serviço público; não há representatividade que pare em pé com
genocídio. Neoliberalismo é necropolítica. Ponto.

13. A luta contra o racismo depende de uma atuação institucional que


se dará no interior de muitas contradições, mas cuja efetividade está
na capacidade de incidir sobre as estruturas.
RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA
RESENHA DO LIVRO NECROPOLÍTICA

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte.


São Paulo: n-1

INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, dentre os novos debates e temáticas no âmbito das ciências
humanas, tem chamado particular atenção a crescente notoriedade do filósofo Achille
Mbembe. De origem camaronesa, Mbembe se destaca pelos debates empreendidos com
diferentes autores, neste ensaio especialmente com Michel Foucault em seus estudos sobre
biopoder e biopolítica Embora em língua portuguesa sejam apenas duas obras publicadas, o
ensaio “Necropolítica” (2018a), que analisaremos aqui, e o livro “Crítica da razão negra”
(2018b), ambos publicados pela n-1 edições, a popularidade do autor pode ser verificada por
um breve levantamento do termo “necropolítica” na base da CAPES e no google scholar.
Segundo Rodrigues (2019), de 2009 a 2019 foram encontrados 1.925 resultados para o
termo em ambas as plataformas. Deste total, 535 pertencem a publicações em língua
portuguesa, sendo que 347 são publicações realizadas nos últimos dois anos. Para anos
anteriores não foram encontradas referências ao termo. Mas a que se deve o crescimento da
popularidade de Mbembe? Embora “necropolítica” seja apenas um ensaio e, portanto, se
caracterize como uma noção ampla e com diferentes frentes de análise em aberto, é um
trabalho que responde a uma série de anseios teóricos dos “países do Sul”. Em um universo
acadêmico ainda dominado por teses, epistemologias, métodos e teorias inscritas dentro da
perspectiva do “Norte”, percebe-se uma carência de modelos que dialoguem com as
realidades das múltiplas periferias do mundo. Como falar em biopoder quando os termos da
soberania se articulam não à capacidade de fazer viver, mas sim de fazer morrer?
Mbembe vem ocupar um espaço de produção acadêmica que reflete sobre os
processos de violência, cerceamento, desigualdade, exploração de recursos naturais e criação
de mundos de morte que marcam, ainda que com diferentes nuances, os territórios sob o
signo da colonialidade, seja ela a dos mpreendimentos coloniais do século XV ou da ocupação
colonial na modernidade tardia, como é o caso da Palestina, segundo o autor. Nesse sentido,
Mbembe é altamente geográfico, pois é na forma como o território aparece no ensaio em
questão que percebemos o exercício articulado entre os poderes disciplinar, biopolítico e
necropolítico sobre os corpos. Dada as inúmeras possibilidades de análise e os limites desta
resenha, neste trabalho especificamente tentaremos pensar sobre as potencialidades do
termo “necropolítica” para o debate da formação territorial do Brasil que culminou em um
país marcado pela forte segregação socioespacial e racial, onde em diversos territórios o
estado de exceção tem sido a regra e a morte uma constante.

MODERNIDADE E COLONIALIDADE
Possivelmente um dos maiores avanços que obtivemos no debate científico que ocorre
nos “países do sul” foi a ampliação da perspectiva decolonial. Embora autores como Franz
Fanon há quase 60 anos atrás já afirmassem a necessidade de um diálogo de dentro e a partir
dos colonizados, somente na última década temos presenciado o aumento da produção e
difusão de epistemologias, métodos e teorias pensadas por autores periféricos. Quando isto
ocorre, temos uma nova perspectiva nas narrativas que explicam a nossa formação enquanto
país, sociedade e território. Teorias importadas dos autores do “Norte” não conseguem
abarcar e explicar os fenômenos que forjaram e ainda forjam a periferia do mundo. Não que
tais autores já clássicos em nossa formação devam ser descartados, mas definitivamente há
que se reconhecer que seu conhecimento não é universal, mas absolutamente situado em
termos de raça, classe, gênero e posição geográfica.
Nesse sentido, a formação do mundo moderno não se deu da mesma forma para
todos os sujeitos em todos os espaços. Segundo Mbembe a modernidade que se inscreveu nos
países do “Norte” esteve pautada no predomínio de um conceito de soberania que privilegiou
teorias normativas e tornou a ideia de razão um dos elementos mais importantes. No caso dos
países do norte e nos termos da biopolítica,
A expressão máxima da soberania é a produção de normas gerais por um corpo (povo)
composto por homens e mulheres livres e iguais. Esses homens e mulheres são considerados
sujeitos completos, capazes de autoconhecimento, autoconsciência e autorrepresentação. A
política, portanto, é definida duplamente: um projeto de autonomia e a realização de acordo
em uma coletividade mediante comunicação e reconhecimento. (MBEMBE, 2018a, p. 9).
Embora Mbembe considere esta definição fortemente normativa, é esta versão de
soberania - que o autor inclusive classifica como romântica - que pautou a formação social no
imaginário da modernidade nos “países do norte”. Ora, no caso dos países da América Latina e
África que passaram pelo processo de colonização e por uma normatização diferente da
Europa ocidental, Mbembe fala de uma luta não por autonomia, mas sim da
“instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos
humanos e populações” (p. 10-11).
Modernidade e colonialidade tornam-se então, opostos complementares, pois o
projeto de autonomia do “Norte” foi pautado no projeto de colonização dos corpos e dos
territórios do “Sul”. Pensando em termos foucaultianos, a possibilidade de uns em construir
uma sociedade pautada no fazer viver entre indivíduos entendidos como iguais, só foi possível
com a política do fazer morrer colonial e neocolonial.
Do lado de cá das colônias, os ameríndios e os africanos escravizados nunca foram
vistos como sujeitos de igual estatuto, portanto, não cabia a eles o mesmo reconhecimento
em termos de humanidade. O ideal da razão foi utilizado para julgá-los como selvagens e foi o
determinismo geográfico e o evolucionismo que trouxeram o verniz científico à dominação.
É, portanto, o racismo que resolve o problema da morte praticada pelos Estados
soberanos tanto em seus territórios quanto em além-mar, com a diferença que nas colônias a
morte vinha acompanhada de todo tipo de violação, abuso e tortura. Para Mbembe, o direito
de matar nas colônias não estava sujeito a nenhuma norma legal e institucional, visto que o
corpo objeto da morte não foi durante muito tempo sequer considerado um ser humano
dentro dos parâmetros ocidentais.
Ora, se pensarmos no caso do Brasil, foram séculos sob o jugo colonial e imperial
escravagista. Nos formamos enquanto território e sociedade marcados por uma profunda
desigualdade e pela constante presença da morte e da exploração de corpos e recursos. Cabe
agora pensar em que sentido essa necropolítica, cujos pilares foram fundados no processo de
colonização, pode nos ajudar a entender certas questões territoriais e sociais em nosso país.

MUNDOS DE MORTE E SUA DIMENSÃO TERRITORIAL


A formação territorial do Brasil, tal como a concebemos e ensinamos no ensino médio,
é um debate que pode ser deveras enriquecido se considerarmos a perspectiva decolonial.
Fortalecer as narrativas daqueles que foram e ainda são expropriados de seus direitos civis,
sociais e territoriais – entendido aqui como o direito ao reconhecimento de propriedade e
autonomia de decidir sobre o que fazer com a terra e seus recursos – e olhar o “Norte” e o
próprio “Sul” a partir da nossa realidade, pode fornecer melhores subsídios ao ensino de
geografia do Brasil.
No caso específico do ensaio de Mbembe, embora ele não trate em momento algum
da realidade brasileira, apesar de sermos o segundo país em população negra do mundo e de
termos sido uma das mais importantes colônias, sua reflexão fornece muitos apontamentos
para a compreensão de elementos presentes no Brasil atual.
Nossa formação territorial ocorreu de forma profundamente desigual e vamos
considerar aqui um aspecto em específico: a regulamentação de quem tem direito à
propriedade e aos recursos presentes no território, como esses recursos podem ser explorados
e para atender que tipo de interesse.
Sobre o direito à propriedade e aos recursos, a soberania, tema central no debate de
Mbembe, costuma aparecer para justificar que é o Estado que possui a prerrogativa de definir
e regulamentar quem são aqueles que terão direito à propriedade e como deverão explorar os
recursos de um território.
Nesse sentido, cabe ressaltar a dificuldade de reconhecimento e demarcação de terras
indígenas e quilombolas, o sempre presente questionamento sobre o direito destas
populações sobre as riquezas em seus territórios e os constantes conflitos, ameaças e mortes
aos quais estes grupos estão submetidos nas disputas com grandes fazendeiros ou projetos de
mineração, por exemplo. Tais problemas só conseguem ser melhor entendidos quando
percebemos que eles são parte de um fenômeno econômico transescalar.
Quando tratamos deste tema, muitas vezes permanecemos na escala do Brasil, como
se esses conflitos estivessem inscritos em uma dinâmica exclusivamente interna, mas Mbembe
reforça o raciocínio das múltiplas escalas quando nos lembra que os projetos de exploração de
recursos naturais que se multiplicam em diversos países periféricos e semi-periféricos, se
tratam, ao menos em parte, de uma tentativa de resolver o problema da escassez de liquidez
financeira dos países, formando o que ele chama de “enclaves econômicos” (p. 57) em
territórios onde há a extração de valiosos recursos.
Ora, quando pensamos no Brasil, nossos recursos, cujo principal destino é o mercado
externo e que em parte são explorados por empresas cujo capital é em sua maioria
estrangeiro, estão inseridos em redes transnacionais. São essas redes que articulam o modo
como nos apropriamos da natureza, que ditam o ritmo e a quantidade dos recursos extraídos,
que se beneficiam com a perda de direitos territoriais por parte de comunidades tradicionais e
que praticam toda sorte de violações de direitos em áreas onde se formaram grandes projetos
econômicos, como a construção de usinas hidrelétricas, a implantação de projetos de
mineração e a expansão da fronteira agrícola, com subsídios ou não do Estado.
É essa dinâmica global de ampliação da pressão pela exploração de recursos que
reverbera nos territórios da periferia do mundo através da necessidade de intensificar a
inovação tecnológica, a confecção de produtos cada vez mais descartáveis e o aumento do
consumo mundial, modo de vida característico do ocidente que se espraiou pelo mundo.
Nesse sentido, modos de vida que se pautam em outra temporalidade ou em outras
maneiras de lidar com a natureza são ainda entendidos como sinônimo de atraso, empecilhos
ao progresso e à modernização. Os mundos de morte dos quais trata Mbembe não precisam
ser em nosso caso brasileiro o da morte violenta do corpo, embora também o sejam, mas da
morte dos lugares que exterminam culturas inteiras. O lugar como fonte de um importante
poder simbólico morre em seus significados ao ser transpassado pelos interesses e lógicas
exóticas que alteram as dinâmicas locais.
A Vale em Brumadinho e Mariana, a EBX no Porto do Açu, a parceria público-privada
em Belo Monte e em outras inúmeras hidrelétricas, a expansão da soja por terras indígenas
para atender à demanda estrangeira dessa commodity, enfim, são inúmeros os casos nos quais
nossos territórios são profundamente alterados e marcados à despeito do modo de vida de
comunidades inteiras.
Ao longo do processo de formação territorial do Brasil, são vários os interesses
externos que se sobrepujaram, com o auxílio do poder instituído, sobre os interesses de índios,
quilombolas, pequenos agricultores, seringueiros, pescadores, ribeirinhos, favelados, etc. Não
foi a conformação de uma sociedade de iguais na busca por autonomia e direitos que marcou
a nossa formação, mas sim a instrumentalização da vida e dos territórios na produção de
verdadeiros mundos de morte.

CONCLUSÃO
O debate sobre a produção de mundos de morte a partir da noção de necropolítica
ainda é incipiente e com muitas possibilidades de análises. Embora Mbembe em seu ensaio se
concentre mais na colonização da África e principalmente na questão Palestina para
exemplificar sociedades onde há um fazer morrer ativo, é possível, dentro do debate
decolonial, encontrar apontamentos que nos auxiliem nas reflexões sobre o Brasil.
Mesmo não sendo geógrafo, seu trabalho é profundamente geográfico ao abordar
temas que nos são caros, como soberania e território, redes e escala, recursos naturais e
globalização. Por isso, nosso intuito aqui era não só apresentar, de forma muito incipiente e
reduzida, um caminho possível para uso do termo necropolítica em uma abordagem decolonial
da formação do território nacional, mas também de refletir, a partir do “sul” e sobre o “sul”, a
cerca de conceitos geográficos já tradicionais em nossos currículos escolares. Revisitados, tais
conceitos podem se tornar, nas mãos de nossos professores e estudantes, importantes
ferramentas de compreensão do mundo.
Resenha de Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da
política antidemocrática no ocidente, de Wendy Brown
Wendy Brown é filósofa, com formação em ciência política e economia.

Seu pensamento é influenciado pela teoria crítica da Escola de Frankfurt e por


Michel Foucault. É professora de Ciência Política na Universidade da Califórnia em
Berkeley e referência nas discussões sobre neoliberalismo econômico e crise
democrática a partir da ascensão de governos de extrema-direita.
O livro publicado em 2019 “In the ruins of neoliberalism: the rise of
antidemocratic politics in the West”, pela Columbia University Press, traduzido para o
português no mesmo ano de publicação com o título “Nas ruínas do neoliberalismo: a
ascensão da política antidemocrática no ocidente”, publicado pela editora Politéia,
trata da ascensão das forças de extrema direita, do repúdio ao social e de alguns
dispositivos do neoliberalismo: privatização do Estado, desmonte da solidariedade
social, financeirização e corrosão da democracia, bem como da emergência, no interior
das democracias liberais capitalistas, de valores que são aparentemente os seus
opostos: nacionalismo, conservadorismo cristão, racismo e masculinismo branco.
No livro, a autora preocupa-se mais em realizar um diagnóstico e uma leitura
de contexto da relação entre neoliberalismo e democracia do que propor uma nova
normatividade democrática. No primeiro capítulo, Brown apresenta sua compreensão
a respeito do que está ocorrendo com o imaginário político-social no paradigma
neoliberal e explica como este é responsável pelo desmantelamento da sociedade e
pela sua transformação em agrupamentos de indivíduos atomizados incapazes de
participação política consciente. No segundo capítulo, a autora analisa como o
neoliberalismo nega a política a partir de três diferentes cartilhas: a de Milton
Friedman, a de Friedrich Hayek e a dos ordoliberais. O terceiro capítulo se debruça
sobre a relação insidiosa entre o tradicionalismo moral e a liberdade econômica no
neoliberalismo. O quarto capítulo trata dos impasses existentes entre liberdade
religiosa e liberdade de expressão no paradigma neoliberal e o papel do Judiciário na
mediação desses conflitos. Por fim, o quinto capítulo, diagnostica o quadro sintomático
da sociedade contemporânea a partir das categorias do niilismo, do fatalismo e do
ressentimento, que irrompem com violência nas camadas historicamente privilegiadas
que foram destronadas pela lógica econômica predatória neoliberal.
No livro, Wendy Brown pontua que a nova direita tem se apresentado de maneira
agressiva e deletéria contra a ciência, a razão, a laicidade e as instituições
democráticas. Nesse contexto, a preocupação de Brown é compreender como a
racionalidade neoliberal preparou terreno para mobilizar e legitimar forças
antidemocráticas na segunda década do século XXI.
O argumento não é que o neoliberalismo por si só tenha causado a insurgência da
extrema direita e todas as consequências advindas com ela. O argumento é que nada
fica intocado pela forma neoliberal e que as formulações neoliberais da liberdade
inspiram a extrema direita que mobiliza um discurso de liberdade capaz de justificar
exclusões e violações que visam reassegurar a hegemonia branca, masculina e cristã,
além de expandir o poder do capital. Essa formulação da liberdade demoniza o social,
rotula a esquerda como tirânica em sua preocupação com a justiça social e, ao mesmo
tempo, coloca-a como a responsável pelo esgarçamento do tecido moral e por premiar
quem não merece.
Em várias democracias no mundo, segundo análise de Wendy Brown, forças de
extrema direita têm assumido o poder: Hungria, Polônia, Estados Unidos, Rússia, Índia
e Israel, neonazistas no parlamento alemão, neofascistas no italiano,
o Brexit conduzido pela xenofobia, ascensão do nacionalismo branco na Escandinávia,
regimes autoritários tomando forma na Turquia e no Leste Europeu. Assiste-se à
eclosão de uma onda conservadora depois de anos à espreita, com uma curiosa
combinação de libertarianismo, moralismo, autoritarismo, ódio ao Estado,
conservadorismo cristão (fundamentalismo religioso), sentimentos nativistas, racistas,
homofóbicos, sexistas, antissemitas, islamofóbicos, bem como sentimentos
antisseculares. Estas forças conjugam elementos do neoliberalismo com seus
aparentes opostos: de um lado, há o favorecimento do capital, repressão ao trabalho,
demonização do Estado Social e da esfera política, esvaziamento do debate político
com slogans e palavras de ordem, ataque às igualdades e exaltação da liberdade; de
outro, nota-se uma imposição da moralidade tradicional com o controle das formas de
vida e demandas por soluções estatais para problemas econômicos.
Segundo Brown, esse cenário nos leva a uma dificuldade até mesmo de conceituação
desse fenômeno: trata-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia não
liberal, liberalismo antidemocrático ou plutocracia de extrema direita?
De acordo com a autora, uma narrativa comum da esquerda acena à ideia segundo a
qual, no Norte global, a política econômica neoliberal devastou áreas rurais e
suburbanas, esvaziando-as de empregos decentes, aposentadorias, escolas, serviços e
infraestrutura enquanto os gastos sociais minguavam e o capital ia à caça de mão de
obra barata e de paraísos fiscais no Sul global. Ao mesmo tempo, abria-se uma
clivagem cultural e religiosa sem precedentes. Citadinos criaram um universo moral e
cultural diferente daquele dos interioranos, intensificando um distanciamento entre
eles. Além de empobrecidos e frustrados, os cidadãos brancos (cristãos), rurais ou
suburbanos, eram deixados de lado e para trás, alienados e humilhados. Assim,
passaram a cultivar um sentimento de abandono e traição.
Plutocratas e conservadores manipularam essa narrativa com uma sinfonia
política de valores familiares cristãos. Um novo populismo de extrema direita foi
alimentado por um sentimento de rejeição aos imigrantes e minorias. Era a imagem de
um passado mítico de famílias felizes, íntegras e heterossexuais, quando mulheres e
minorias raciais “sabiam seus lugares”, quando as vizinhanças eram ordeiras, seguras e
homogêneas e quando a cristandade e a branquitude hegemônicas constituíam a
identidade, o poder e o orgulho manifestos da nação e do Ocidente.
Contrário à invasão de outros povos, ideias, culturas e religiões, esse era o
mundo de conto de fadas que os líderes populistas de direita prometeram restaurar.
Os slogans das campanhas políticas retratam esse saudosismo baseado em um
passado mítico. Nos Estados Unidos, Donald Trump apresentou o slogan de campanha
“Faça a América Grande de novo”; na França, Le Pen defendeu a “França para os
franceses”; o Brexit usou o slogan “Recupere o controle”; o Partido Polonês da Lei e da
Justiça defendeu “Polônia Pura, Polônia branca”; Democratas Suecos usaram o
“Mantenha a Suécia sueca”; o Partido Alternativa para a Alemanha defendeu “Nossa
cultura, nosso lar, nossa Alemanha”. Esses slogans e o ressentimento que expressam
conectaram grupos de franjas racistas outrora dispersos.
Várias são as justificativas oferecidas pra tentar explicar a irrupção desse
fenômeno. Dentre as de esquerda, em termos gerais, é ponto incontroverso que a
intensificação da desigualdade neoliberal no Norte global foi um barril de pólvora
sobre o qual a imigração em massa do Sul para o Norte lançou um “fósforo aceso”. No
entanto, Brown sugere que outros fatores também devem ser analisados: a
demonização do social por parte da governamentalidade neoliberal, que gerou a
desintegração da sociedade e o descrédito do bem público; a eliminação do político do
reino da justiça, que provocou a ascensão de uma cultura “antipolítica” no Ocidente, e
a valorização da moralidade tradicional e dos mercados com seus substitutos.
Segundo Brown, há uma arquitetura que liga moralidade tradicional e
neoliberalismo e que anima as campanhas da direita. Essas campanhas classificam
como assalto à liberdade toda política social que desafia a reprodução social das
hierarquias de gênero e raça ou as políticas que promovem correções das diferenças
entre classes.
Brown analisa a associação que um dos grandes teóricos do neoliberalismo,
Friedrich Hayek (Escola Austríaca), realiza entre mercado e moral. Segundo ele, o
mercado e a moral, juntos, são o fundamento da liberdade, da ordem e do
desenvolvimento de uma civilização próspera. Ambos estão enraizados em uma
ontologia comum. Nesse sentido, o neoliberalismo hayekiano é um projeto político-
moral que visa proteger as hierarquias tradicionais negando a ideia do social – ou seja,
a ideia de uma comunhão de vida gregária pelos integrantes de uma sociedade – e
restringindo o alcance do poder político democrático. Para Hayek, a liberdade é parte
da tradição moral. Uma sociedade livre e exitosa será sempre uma sociedade vinculada
à tradição. A tradição assegurada pela religião assume o manto da incontestabilidade e
da verdade simbólica e, ao mesmo tempo, serve como um limite ao político,
compreendido como existência em comum pensada coletivamente.
No entanto, Brown recorda sempre que somente o político resguarda a
possibilidade da democracia entendida como governo do povo e para o povo, opondo-
se a um mundo sem alternativas. A democracia sem o político é um oxímoro. A partilha
de poder que a democracia implica é um projeto eminentemente político que requer
cultivo, renovação e apoio institucional. O neoliberalismo busca desdemocratizar o
político (visto que o político pode representar uma ameaça à liberdade e ao mercado),
substituindo o lugar da deliberação, contestação e partilha democrática do poder por
gestão, lei e tecnocracia. Neoliberais representam uma oposição à democracia robusta
que, segundo eles, identifica-se com o totalitarismo, o fascismo e o governo da plebe.
Essa perspectiva apolítica prepara terreno para o desmantelamento da
democracia com a demonização dos esquemas de justiça social em nome da liberdade,
dos mercados e dos valores morais. Trata-se de uma substituição da sociedade e da
democracia pelo mercado e pela moralidade. E nesse contexto estão em jogo
elementos como normas heteropatriarcais e formas familiares; normas e enclaves
raciais; acumulação, retenção e transmissão de riqueza – em suma, tudo aquilo que
reproduz e legitima poderes e ordenações históricas de classe, parentesco, raça e
gênero. Essa simetria ontológica entre códigos morais e regras de mercado deslegitima
o conceito de provisões de bem-estar-social e o projeto de desdemocratização dos
poderes sociais de classe, raça, gênero e sexualidade. À medida que a vida é
mercantilizada de um lado e familiarizada de outro pela racionalidade neoliberal, esses
processos contestam os princípios de igualdade, secularismo, pluralismo, diversidade e
inclusão, junto com a determinação democrática de um bem comum.
Brown pontua que o ataque neoliberal à sociedade e à justiça social em nome
da liberdade de mercado e do tradicionalismo moral é uma emanação direta da
racionalidade neoliberal. Somando-se a isso, as forças conservadoras fazem um apelo
direto à moralidade tradicional e ao livre mercado, em defesa dos valores do
patriotismo, nativismo e cristandade.
Segundo a análise de Brown, a privatização econômica neoliberal subverte
profundamente a democracia, gera e legitima a desigualdade, a exclusão, a
apropriação privada dos comuns, a plutocracia e um imaginário democrático
profundamente esmaecido. Dentre os neoliberais fundadores, somente Milton
Friedman (Escola de Chicago) promove a causa da economia neoliberal por meio da
“democracia”, formal e vagamente definida como liberdade política ou liberdade
individual. Segundo ele, há uma co-dependência entre liberdade econômica e
liberdade política e a verdadeira liberdade política nasceu apenas com o capitalismo.
No entanto, Friedman articula o ideal compartilhado com outros neoliberais de
separar o poder econômico e o político, mesmo quando afirma a importância do
Estado em viabilizar as condições para os mercados. Com essa perspectiva, Friedman,
assim como Hayek, elimina completamente o valor do poder político democratizado.
De acordo com Brown, Hayek distingue liberalismo de democracia, apontado
suas tensões e contradições. O liberalismo preocupa-se em limitar os poderes
coercitivos de todo governo; enquanto a democracia (majoritarismo) limita o governo
apenas de acordo com a opinião da maioria do povo. A democracia e o liberalismo têm
opostos radicalmente diferentes. O oposto da democracia é o autoritarismo, poder
político concentrado, mas não necessariamente ilimitado. O oposto do liberalismo é o
totalitarismo, controle total de todos os aspectos da vida. Nesse sentido, o
autoritarismo pode ser liberal (liberalismo autoritário) e o totalitarismo pode ser
democrático (democracia totalitária). São, portanto, possibilidades lógicas e até
mesmo históricas e, nesse sentido, Hayek aceita a legitimidade do autoritarismo para a
transição ao liberalismo, a exemplo do modelo implementado no Chile com Pinochet.
Os neoliberais aproveitaram-se do histórico de autoritarismo da América Latina para
implementar autoritariamente suas medidas.
Seguindo sua análise, pontua que Hayek critica o conto de fadas de que a
soberania popular significa que “as pessoas estão agindo juntas e que isso é
moralmente preferível às ações separadas dos indivíduos.” Segundo Hayek, essa ficção
serve apenas para ungir o absolutismo com uma legitimidade democrática. Para a sua
teoria, a soberania popular ameaça a liberdade individual. A soberania, por natureza
ilimitada, é categoricamente incompatível com um governo limitado. O destronamento
da política torna-se necessário para uma ordem econômica e moral florescente. Hayek
rejeita a formulação de Aristóteles segundo a qual é a política que torna os seres
humanos livres, bem como a concepção de Rousseau sobre obter liberdade moral e
política por meio do contrato social. Para o austríaco, a democracia, conduzida pelo
governo da maioria, trata interesses privados como se públicos fossem.
Segundo Brown, o entusiasmo neoliberal pelo mercado é tipicamente animado
por sua promessa de inovação, liberdade, novidade e riqueza, enquanto uma política
centrada na família, religião e patriotismo é autorizada pela tradição, autoridade e
moderação. O mercado inova e perturba. A tradição assegura e sustenta. As
sociedades mercadológicas baseadas no consumo são vazias de significado moral, se
não francamente niilistas. Um programa político-moral explicitamente conservador
torna-se necessário para compensar o vazio niilista.
Neoliberalismo e neoconservadorismo são duas racionalidades políticas
distintas, embora com características formais sobrepostas, com efeitos convergentes
na geração de uma cidadania antidemocrática. As duas racionalidades se misturam
para produzir forças obscuras de desdemocratização. Embora os neoconservadores
promovam os valores familiares por razões morais e os neoliberais por razões
econômicas, suas agendas juntam-se em políticas por meio das quais as obrigações
naturais e o altruísmo das famílias substituem o Estado de bem-estar, a partir de um
contrato de seguro mútuo e um contrapeso necessário às liberdades de mercado. Para
os neoliberais, a família não é apenas uma rede de proteção, mas um reservatório de
disciplina e uma estrutura de autoridade, que representam um entrave aos excessos
democráticos e ao colapso da autoridade que acreditam ser incitados pelas provisões
do estado Social e sua estrutura de bem estar e ensino superior público.
De acordo com a análise de Brown, a ordenação branca e masculina é
facilmente inserida no projeto neoliberal de valorização do mercado e da moral. Os
mercados desregulamentados tendem a reproduzir, em vez de amenizar, as
marginalizações, estigmatizações, estratificações e os poderes sociais produzidos
historicamente. Divisões raciais e sexuais do trabalho estão embutidas neles: o
trabalho doméstico, por exemplo, em que predomina um gênero, não é remunerado, e
sua versão de mercado sub-remunerada (atividades reprodutivas e relacionadas à
economia do cuidado) é executada predominantemente por não brancos, mulheres e
imigrantes.
A moralidade tradicional comumente repele o combate às desigualdades,
dificultando a garantia da liberdade reprodutiva das mulheres ou o desmantelamento
da iconografia pública que celebra um passado escravocrata. Essa moralidade
compatibiliza-se com a utopia neoliberal de uma ordem desigualitária em que famílias
e indivíduos são pacificados politicamente pelo mercado e pela moral.
O neoliberalismo associa-se a um conjunto de políticas que privatizam os
serviços públicos, produzem ajustes estruturais, desregulamentam o capital, reduzem
radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem
um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros (tributação
regressiva). Esse modelo foi adotado em países da América do Sul, América do Norte e
da Europa. O colapso do bloco soviético no final dos anos 80 significou que boa parte
da Europa Oriental realizou uma transição do comunismo de Estado para o capitalismo
neoliberal em menos de meia década.
Brown refere-se ao pensamento do filósofo francês Michel Foucault que, em
contraste com a análise neomarxista, oferece uma caracterização substancialmente
diferente do neoliberalismo em seu significado, objetivo e propósito. Em seu curso no
Collège de France de 1978-1979, Foucault enfatizou a significância do neoliberalismo
como uma nova racionalidade política, cujo alcance e implicações vão muito além da
política econômica e do fortalecimento do capital. Nessa racionalidade, os princípios
de mercado tornam-se princípios de governo aplicados pelo e no Estado, circulando
também nas instituições, entidades e em toda a sociedade – escolas, locais de
trabalho, clínicas etc. Esses princípios governam cada esfera da existência e
engendram o homo economicus (que se caracteriza pela economização da vida –
sujeitos como atores de mercado), transformando-o, de um sujeito da troca e da
satisfação de necessidades (liberalismo clássico), em um sujeito da competição e do
aprimoramento do capital humano (neoliberalismo) a partir de práticas de
investimento em si mesmo.
Nesse cenário, os mercados competitivos necessitam de suporte político e,
portanto, de uma nova forma de governamentalização do Estado. Na nova
racionalidade governamental, por um lado, todo governo é orientado por princípios de
mercado e, por outro, os mercados devem ser amparados e até resgatados por
instituições políticas. Os mercados competitivos são bons, mas não exatamente
naturais e nem autossuficientes. Para Foucault, essas duas características da
racionalidade neoliberal – a elaboração de princípios de mercado como princípios de
governo onipresentes e o próprio governo reformatado para servir aos mercados –
estão entre aquelas que separam a racionalidade neoliberal daquela do liberalismo
econômico clássico. Elas constituem a reprogramação da governamentalidade liberal,
“empreendedorizando” o sujeito (empresário de si – sujeito humano como partícula
isolada de capital humano autoinvestidor), convertendo trabalho em capital humano
(despido de gênero, sexualidade, raça ou qualquer posição subjetiva) e reorganizando
o Estado.
Wendy Brown parte de uma leitura neomarxista e foucaultiana do
neoliberalismo e expande ambas para saldar sua negligência mútua do aspecto moral
do projeto neoliberal. A autora não trata essas duas abordagens como opostas ou
redutíveis à compreensão dicotômica materialista versus ideacional do poder e da
mudança histórica, mas as emprega por apresentarem diferentes dimensões das
transformações neoliberais.
A abordagem neomarxista tende a se concentrar nas instituições, políticas,
relações e efeitos econômicos, negligenciando os efeitos de longo alcance do
neoliberalismo como forma de governar a razão política e a produção de sujeitos. A
abordagem foucaultiana enfoca os princípios que orientam o Estado, a sociedade e os
sujeitos e, acima de tudo, o novo registro de valor do neoliberalismo, mas pouco
atenta aos novos e espetaculares poderes do capital global que o neoliberalismo
anuncia e edifica. A perspectiva neomarxista coloca o neoliberalismo como o que
inaugura um novo capítulo do capitalismo e gera novas forças, contradições e crises. A
compreensão foulcaultiana revela como governos, sujeitos e subjetividades são
transformados pela remodelação neoliberal da razão liberal (ascensão de uma razão
normativa que estende métricas e práticas de mercado a todas as dimensões da vida –
política, cultural, pessoal, vocacional, educacional). Ambas as abordagens contribuem
para a compreensão das características do neoliberalismo e da conjuntura atual. A
proposta da Wendy Brown é, portanto, ampliar a compreensão da racionalidade
neoliberal para contemplar o seu ataque multifacetado à democracia e sua promoção
da moralidade tradicional em detrimento da justiça social.
A palavra “democracia” designa um regime político em que os arranjos se
organizam de tal modo que o povo governa a si próprio. A igualdade política é a base
da democracia. Quando a igualdade política está ausente, seja por exclusões ou
privilégios políticos, pelas disparidades sociais ou econômicas extremas, pelo acesso
desigual ou controlado ao conhecimento, ou pela manipulação do sistema eleitoral, o
poder será invariavelmente exercido por e para uma parte. O demos deixa de
governar.
A importância da igualdade política para a democracia é a razão pela qual
Rousseau insistiu que, em um regime democrático, as diferenças político-econômicas
entre os integrantes do povo não podem ser tão grandes que permitam a alguém ser
tão rico que possa comprar outra pessoa, nem tão pobre que seja obrigado a se
vender. Brown, lendo Rousseau, conclui que, para o filósofo francês, a sistematização
da violência ou da miséria coletiva leva ao fim da democracia.
Nesse sentido, democracias liberais nunca foram democracias plenas.
Democracias efetivas perpassam pela redução das desigualdades de poder entre os
cidadãos. Exigem, portanto, vigilância constante para impedir que a riqueza
concentrada assuma o controle das alavancas do poder político, o que passa pelo
apoio estatal para promover bens públicos e redistribuições econômicas. A democracia
exige esforços para criar um povo capaz de se engajar em formas de auto-governo.
Exige também um cultivo robusto da sociedade como o local em que experimentamos
um destino comum (e solidário) em meio às diferenças e distâncias, bem como a
defesa da questão social. A justiça social é o antídoto essencial para as estratificações,
exclusões, abjeções e desigualdades despolitizadas que servem ao privatismo liberal na
ordem capitalista. O social é, pois, o lugar da emancipação, da justiça e da democracia.
É sintomático que são precisamente a existência da sociedade e a ideia do
social (como local da justiça e do bem comum) que o neoliberalismo se propõe a
destruir conceitual, normativa e praticamente. Denunciada como um termo sem
sentido por Hayek e notoriamente declarada inexistente por Thatcher (“não existe tal
coisa como a sociedade, mas apenas famílias e indivíduos orientados pelo mercado e
pela moral[1]”), sociedade é um termo pejorativo para a direita que denuncia os
guerreiros da justiça social por minar a liberdade com uma agenda tirânica de
igualdade social, de direitos, de ação afirmativa e de educação pública
(desinvestimento em educação). Na verdade, o objetivo do neoliberalismo é
desmantelar o Estado Social (repúdio ao social), privatizando-o, com a dissolução dos
laços sociais. Com esse ataque, a lógica economicista espraia-se para todas as esferas
da vida. Cultiva-se uma cultura individualista, de indivíduos competitivos, produtivos,
eficientes, empreendedores de si e responsabilizáveis, com o declínio do cultivo de
valores antidemocráticos.
Brown considera Friedrich Hayek um grande crítico da social-democracia. Para
ele, a preocupação com o social é o símbolo da tirania (inimiga da liberdade), uma
grave ameaça a uma civilização livre. A crença na justiça social enquanto diretriz da
ação política aproxima-se de um sistema totalitário. Para o autor, a moral e o mercado
juntos engendram a conduta evoluída e disciplinada para criar e sustentar a ordem
social. Nesse sentido, mercado e moral revelam a natureza da justiça, que considera a
desigualdade como essencial para o desenvolvimento. Segundo Hayek, a verdadeira
justiça exige que as regras do jogo sejam conhecidas e aplicadas universalmente (tese
universalista e generalista), mas considera que todo jogo tem vencedores e
perdedores (desigualdade de base natural necessária ao mercado) e a civilização não
pode evoluir sem deixar para trás os efeitos da fraqueza e do fracasso.
Para sua teoria (e inclusive para os neohayekianos), a justiça social ataca a
verdadeira justiça, a liberdade e o desenvolvimento civilizacional garantidos pelo
mercado e pela moral e, nesse sentido, a sociedade deve ser desmantelada em um
movimento conjunto de desmassificação, desproletarização, individualização,
desmobilização do político, “empreendedorização” da vida e conversão do espaço
público em um espaço vazio de democracia. Esse repúdio ao social e à sociedade
tornam invisíveis as desigualdades geradas pelo legado da escravidão, do colonialismo
e do patriarcado. A liberdade sem igualdade (e sociedade) destrói o léxico pelo qual a
liberdade torna-se democrática.
Segundo Wendy Brown, essa tentativa de desmantelamento do social não é
defendida apenas por autores neoliberais. Hannah Arendt, uma teórica política alemã
influente para a esquerda, também expressou sua antipatia pelo social. Segundo
Brown, sua crítica equivale, em intensidade, à de Hayek. Para Hayek, o social não
existe; para Arendt, que apresentou uma crítica incisiva à ascensão do social (questões
sociais como desigualdade, sexismo, racismo, fome, pobreza, que não devem fazer
parte dos assuntos públicos) sobre o mundo político, seu desenvolvimento moderno
inchado destruiu as capacidades humanas de liberdade e ação na esfera pública. Hayek
e Arendt, ainda que em espectros político-ideológicos distintos, execram o Estado
dedicado a suprir as necessidades humanas, incluindo a compreensão de democracia
quando devotada ao bem-estar humano. Para ambos, a liberdade tem na ascensão do
social seu leito de morte. Ainda que com perspectivas distintas, para os autores, a
liberdade está em demonizar e derrotar o social e, nesse sentido, “a sociedade deve
ser desmantelada”.
Para Brown, o social é o fundamento da democracia, compreendendo-a a partir
da centralidade da igualdade para qualquer conceito ou prática democrática. Sem o
social e um sentido de vida comum e solidário, cria-se uma geração de indivíduos
isolados, perdidos e desprotegidos, em risco permanente de privatização dos meios
vitais básicos, completamente vulneráveis às vicissitudes do capital e do mercado.
Ademais, Brown ainda destaca como especialmente problemática a relação
entre liberdade de expressão e liberdade religiosa no neoliberalismo. Discorre sobre a
utilização da Primeira Emenda da Constituição norte-americana, tradicional escudo de
minorias e da imprensa contra a censura e a repressão estatal, como instrumento para
promover a desregulamentação dos mercados e barrar iniciativas antidiscriminatórias.
Esse fenômeno seria um retrato notório da nova “jurisprudência neoliberal” da
Suprema Corte, que interpreta a liberdade de expressão e a liberdade de exercício
religioso de modo pareado – interpretação esta que estaria promovendo a
recristianização da esfera pública.
Numa jurisprudência em que tudo é considerado sob o signo da “livre
expressão” e em que corporações e pequenos negócios podem “se expressar” como se
pessoas físicas fossem, o resultado é a afirmação de uma versão distorcida do projeto
hayekiano em que a sociedade governada pelos mercados é obediente à moralidade
tradicional. A lógica democrática de um governo do povo e as conquistas alcançadas
por todas as minorias a duras penas durante tantos anos, restam, então, vulneráveis e
ameaçadas.
Para exemplificar esse novo modo de decidir, Brown evoca dois casos
emblemáticos. O primeiro é o caso “Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights
Comission”. Um casal homossexual procurou uma confeitaria para encomendar um
bolo para seu casamento e viu seu pedido rejeitado porque o proprietário alegou ser
contrário a casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Este último argumentou que os
bolos eram suas “expressões artísticas”, que não poderia ser obrigado a expressar uma
crença da qual não comunga como cristão, e que a sua confeitaria gozaria do mesmo
direito, por paralelismo. O confeiteiro perdeu em primeira instância, mas o caso, ao
chegar à Suprema Corte, foi revertido: entendeu-se que o direito ao exercício da
liberdade religiosa do indivíduo fora violado no processo e que ele não poderia ser
obrigado a realizar a encomenda do casal.
O segundo caso é o National Institute of Family and Life Advocates, DBA NIFLA
at al. v. Becerra, procurador-geral da Califórnia. A celeuma envolve os chamados Crisis
Pregnancy Centers (CPC), centros cristãos espalhados por todos os Estados Unidos que
alegam fornecer orientações para mulheres que enfrentam gravidezes indesejadas,
mas que, a bem da verdade, funcionam com o propósito sub-reptício de dissuadi-las a
não optarem pelo aborto. Porque o objetivo dos centros não é claro, no Estado da
Califórnia, o chamado Ato FACT obrigou esses centros a publicarem uma declaração
que informa 1) que o Estado oferece tratamentos abrangentes de saúde reprodutiva,
gratuitos e de baixo custo, inclusive abortos e 2) que a o centro não é uma instalação
médica. Em 2018, a Suprema Corte entendeu que o referido ato é violador da
liberdade de expressão, numa decisão que entende os centros como sujeitos de direito
e a questão do aborto como uma matéria disputada que suscita “opiniões
divergentes”, não como um direito assegurado pelo Estado da Califórnia. Muito
embora o tema da liberdade religiosa não seja mencionado expressamente, fica claro
na decisão que objetivos dos centros, que são religiosos, funcionaram como
fundamento subjacente.
Esses dois casos, segundo Brown, demonstrariam como o niilismo é
característico do sistema moral no neoliberalismo. A autora lembra a previsão de
Friedrich Nietzsche de que a era do niilismo não seria uma sem valores, mas uma em
que os valores seriam desatracados de seus fundamentos e, uma vez esvaziados,
poderiam ser instrumentalizados para os mais diversos fins. Ela adiciona que a
dinâmica econômica do neoliberalismo, da qual nada passa incólume, teria confirmado
essa previsão e a aprofundado, criando um estado de coisas em que todos os valores
podem ser utilizados pelo mercado como melhor o interessar. Ao mesmo tempo, o
sujeito estaria livre do peso de observar princípios morais e gozaria de uma liberdade
ilimitada e que desconhece limites éticos.
Esse niilismo teria provocado o que Herbert Marcuse chamou de
“dessublimação repressiva”: menos repressão teria gerado menos consciência de si,
processo que resultaria na supressão da consideração ética e política em geral. Os
sujeitos teriam sido desbloqueados para a fruição dos mais diversos prazeres, mas se
desligado da sua participação enquanto integrantes de um grupo social maior. Para
Brown, o tecido social é rasgado pelo niilismo e passa a imperar uma dinâmica política
fundada na indiferença.
A autora destaca também a relação existente entre o niilismo e a virulência dos
discursos de extrema direita. Lembra que, para Nietzsche, a civilização judaico-cristã
foi fundada sobre o ressentimento dos “fracos” que culparam os “fortes” pela sua
opressão, passando a se considerar “bons” em oposição àqueles e a enaltecer valores
como abnegação, humilhação, humildade e resignação. Nesse sistema de valores, no
entanto, estariam no centro o rancor, a reprimenda e a vingança.
Para Brown, esses sentimentos estariam aflorando naqueles que costumavam
ser “fortes”, sujeitos que até então gozavam de posição dominante, ao assistirem à
fragilização de sua posição social. Aqui, a autora destaca a branquitude e a
masculinidade, que têm sofrido perdas com alguns avanços progressistas, ainda que
limitados, e com a monetização radical das relações. Para exemplificar, faz referência à
classe média branca norte-americana que, em razão da financeirização dos mercados,
da privatização do acesso a certos bens e da intensificação das desigualdades sociais,
agora embarca no “portão 5” do aeroporto e se ressente com aqueles que embarcam
no “portão 1”.
A respeito da direção que toma a cólera daqueles foram “deixados para trás”
pelo neoliberalismo, Brown elabora duas hipóteses. A primeira é que ela não produz
nenhum novo código de valores, mas permanece como cólera pura e produz um
desejo de negar tudo: a crise climática, o racismo, a afirmação de direitos a mulheres e
à comunidade LGBT, a esfericidade da terra, etc. A cólera abraça o niilismo sem
reservas e não coloca nada no lugar daquilo que quer derrubar. A segunda hipótese é
que ela (esse afeto de ira) de fato produz um sistema de valores que remetem a um
passado superior em que esses sujeitos dominavam. Slogans como “Make America
Great Again” fariam remissão a esse passado e prometeriam restabelecer a
supremacia dos destronados. Essa promessa assume tom quase escatológico: Brown
escreve que sua lógica subjacente é “se os homens brancos não podem ser donos da
democracia, então não haverá democracia nenhuma. Se os homens brancos não
podem dominar o planeta, então não haverá planeta” (BROWN, 2019, p. 220).
Brown também leva em consideração o impacto que o neoliberalismo causa na
organização espacial do globo. Para ela, o neoliberalismo derrubou definitivamente as
fronteiras do Estado-nação, processo que, aliado aos outros fenômenos, intensificou o
rancor da extrema-direita contra os imigrantes e contra aqueles que os acolhem.
Também promoveu o fim do espaço público e a ascensão do espaço digital, zona que a
autora considera desdemocratizada. Por fim, o neoliberalismo teria produzido um
poder gasoso que tudo governa e que não pode ser encontrado em nenhum lugar
determinado: o poder das finanças.
Esse poder das finanças que não vê símbolos, mas tão somente cifras, teria
ferido de morte a família, o senso de pertencimento a uma nação, a propriedade e
todas as tradições que reproduzem estratificações raciais e de gênero. O
ressentimento relativo a essas perdas simbólicas foi apropriado pela extrema-direita
que, agora, se esforça para destruir a democracia, à qual adereça, erroneamente, a
culpa por esse estado de coisas.
Nota

[1] “(…) Não existe uma tal coisa [a sociedade]! Há indivíduos homens e mulheres e há famílias, e o
governo não pode fazer nada exceto através do povo, e o povo olha em primeiro lugar para si
mesmo.” THATCHER, Margaret. 1987. ‘Interview for “Woman’s Own” (“No Such Thing as
Society”).’ In: Margaret Thatcher Foundation: Speeches, Interviews and Other Statements. London.
Disponível em: https://www.margaretthatcher.org/document/106689. Acesso em: abril de 2021.

RESENHA: TOCQUEVILLE, ALÉXIS DE. A DEMOCRACIA NA


AMÉRICA

Em 1831, por exemplo, devido a problemas pessoais que a derrubada dos


Bourbons lhe causava, empreendeu uma viagem aos Estados Unidos da
América cujo resultado o tornaria célebre. Sob o pretexto de realizar um estudo
sobre o Sistema Penitenciário norte-americano, Tocqueville, juntamente com
outro jovem jurista, Gustave Beaumont, aportaram em Newport, Rhode Island,
EUA, em 09/05 de 1831, e passariam 09 (nove) meses fazendo leituras,
observações, e, sobretudo conversando com as pessoas. O resultado foi a
produção da obra: “A Democracia na América”, ora resenhada.

3) Digesto:

Os rumores na Europa de que havia instituições na América que garantiam a


felicidade do homem comum; a inexistência de hierarquias nas relações sociais
e a liberdade de imprensa, de reuniões, de associações, de organização
popular, de religiões etc., impressionavam a todos os outros povos do ocidente
e não foi diferente para o jurista francês Tocqueville.
Neste trabalho, discuto a questão da Democracia na América (EUA), focada
por Tocqueville, de forma resumida e por demais clara. A intenção é conhecer
a visão desse pensador e o que o levou a produzir uma obra impressionante
sobre os EUA. Através do fincando pensamento de Tocqueville e seu estudo
sobre a Democracia nos Estados Unidos da América é possível se
compreender, nos dias atuais, o porquê dessa Democracia ser considerada
como uma das mais fortes e sólidas do mundo e o que levou Tocqueville a
realizar sua pesquisa sobre Democracia na América do Norte, especificamente
nos Estados Unidos. Questiona-se sobre as peculiaridades da Democracia nos
EUA e sua consolidação em relação aos demais países do Continente
americano, ou seja, o porquê ou os porquês que determinam à estabilização e
efetivo desenvolvimento do Estado democrática de Direito nos Estados Unidos
da Ânglo-América. Destarte, a proposta não se unilateraliza apenas na análise
do autor referendo. Busca-se o tempo todo interligar o pensamento de
Tocqueville com a práxis política atual. Por isso é que exponho os diversos
pontos de vista que se pode tirar acerca do pensamento Tocquevilliano e as
realidades dos demais Estados “Democráticos” de Direito, sobretudo da Ibero-
América, em relação aos Estados Unidos da Ânglo-América.

A questão da manutenção da Democracia nos Estados Nacionais


Contemporâneos é a grande preocupação de Aléxis de Tocqueville. Ideólogo
da construção da Ordem Liberal Moderna viajou para os EUA, a fim de
acompanhar o desenrolar do processo democrático, in loco, em curso na
Anglo-América.

Para Tocqueville, no século de XIX, configuram-se dois tipos idéias de


sociedades: a democrática e a aristocrática. Todavia, a tendência no Estado
Moderno, no ocidente, seria a predominância do Estado democrático. Nesse
caso, necessário se faz definir as características dessa sociedade. Com efeito,
nas sociedades democráticas existe a predominância da mobilidade social;
possibilidades de ascensão na hierarquia social; igualdade de oportunidades
para todos e condições de se chegar ao poder político através do sufrágio
universal. Nas sociedades aristocráticas, além da imobilidade social, o
indivíduo tem sua condição determinada pelo nascimento de acordo com sua
classe social e aceita naturalmente sua posição hierárquica.

A idéia de Democracia em Tocqueville está intimamente ligada à condição de


igualdade e é algo perseguido naturalmente desde a Antigüidade. Entretanto, é
preciso que se mantenha uma constante vigilância com relação à preservação
da liberdade. Neste sentido, o processo de democratização na América do
Norte parte de duas premissas básicas: a igualdade de condições na formação
da sociedade americana e a preservação inconteste da liberdade. Essas são
questões que a nova Ciência Política há de se empenhar na análise e
exploração. Neste sentido, é que Tocqueville adverte para educar a
democracia, purificar seus costumes, adaptar os governos conforme as
condições espacial-temporal e as necessidades sócio-econômicas dos seres
humanos.

Em princípio, é válida destacar que para Tocqueville não pode haver um


estados democrático sem liberdade da pessoa humana. Liberdade no sentido
de livre arbítrio, de escolher o seu poder moral sobre o próprio destino, o seu
dever e o direito de conduzir-se a si mesma, sem deixar a ninguém, muito
menos ao Estado, encarregar-se desse bem único que é a liberdade individual
do ser humano.

A construção da Ordem Liberal democrática nos EUA deve-se a dois principais


fatores: primeiro porque foi colônia de povoamento, ou seja, os cidadãos
americanos ao saírem da terra-mãe, a Inglaterra, procuraram um lugar propício
não para acumular lucro e poder, como ocorreu na Ibero-América, mas para
residirem e construírem uma sociedade entre iguais. Segundo, porque a partir
deste ideário é formado, inicialmente, o selfgoverment. O selfgoverment
consistia, entre outras coisas, na participação de todos nas decisões políticas e
fiscalização de todos para com todos. Para este feito foram criados os
Conselhos Comunitários, cujos membros eram eleitos por todos os cidadãos.
Em seguida, formaram-se Comunas com as mesmas características e, assim,
é possível compreender o porquê do fortalecimento da Democracia nos
Estados Unidos da América. Essas tradições da formação da sociedade norte-
americana foram detectadas por Tocqueville no decorrer de sua pesquisa.

Após 09 (nove) meses de estudo e pesquisa de fontes teóricas e empíricas,


acerca do processo democrático na América do norte, Tocqueville concluiu que
as causas principais que tendem a manter a república democrática nos
Estados Unidos da América podiam reduzir-se a três: a situação particular e
acidental, na qual a providência situou os americanos, constituiu a primeira; a
segunda decorre de suas leis; a terceira, dos hábitos e costumes.
Essa situação particular e acidental de que fala Tocqueville é referente ás
condições geográficas. Pelo espaço territorial, os EUA não tem áreas limítrofes
que favoreçam o confronto com inimigos em potenciais, como outras nações
desenvolvidas da Europa. Além disso, os imigrantes que buscam a América
são motivados a ficarem por lá em virtude das inúmeras oportunidades de
ascensão e progresso em função do desenvolvimento daquela nação.

Entretanto, as condições geográficas apenas favorecem para a construção da


Ordem Liberal na modernidade no sentido do livre arbítrio e nas garantias de
liberdades individuais de acordo com os preconceitos daquele Estado
democrático de Direito. Ratificando Tocqueville, os sustentáculos da liberdade
e de uma sociedade democrática como a da América são as “boas” leis, os
hábitos, os costumes e as crenças. O caráter das “boas” leis, a que se refere
Tocqueville, é o federativo previsto na constituição americana. Os hábitos e
costumes são aqueles que ao longo dos anos vão se repetindo, porém, caso
sejam viáveis e aprovados pela maioria serão sempre conservados. Por último,
as crenças ou as liberdades de culto. Sabe-se que a fundação dos EUA foi
decorrente das perseguições religiosas existentes na Inglaterra. Desta forma,
ao se constituir a nova sociedade em território autônomo na América do Norte,
o culto religioso passa a ser liberal e logo proclamado na Carta de
Independência americana. Essa combinação do espírito de liberdade com o
espírito de religião contribuiu e contribui até hoje para o fortalecimento da
Democracia americana.

Na visão tocquevilliana é abordado que a vontade da maioria constitui um


Estado democrático. Todavia, com é possível evitar que com o tempo essa
vontade não se transforme numa ditadura na maioria? Ao discutir essa questão
Tocqueville acredita que para que isso não ocorra é preciso politizar a
Sociedade Civil que deve se manter constantemente reunida em associações
participando das decisões prevalecentes do interesse coletivo e sentindo
continuamente o prazer e a importância da liberdade. A sua proposta básica é
que haja o controle consciente a fim de que a liberdade não seja
gradativamente corroída e, finalmente, destruída.

Sabe-se que nos EUA existe a centralização governamental, porém, a


centralização administrativa é ausente. Isto contribui para a desburocratização
do Estado Moderno proporcionando uma fiscalização maior da coisa pública
através de accountability freqüentemente realizada pela própria Sociedade civil
organizada. Cada cidadão americano é fiscalizado pelo seu próximo e vice-
versa. É isto que possibilita o funcionamento mais adequado do Estado
democrático de Direito nos EUA.

Com efeito, praticamente não houve aspectos da vida política dos Estados
Unidos da América que não tenham sido analisados por Tocqueville. Por
exemplo, ao interpretar o poder judiciário ele o toma com duas instituições:
uma de caráter judiciária e outra como instituição política. Os magistrados,
apesar de comporem uma classe aristocrática que se destaca na sociedade
americana são também controlados pela vontade soberana da maioria do povo
e não detêm poder intocável, podendo ser submetidos a amiúde eleições por
representantes das câmaras populares. Este fato, inclusive, preocupava
Tocqueville como um possível enfraquecimento posterior da República
democrática norte-americana.

Considera-se a obra de Tocqueville: A Democracia na América, como uma das


mais lúcidas para se compreender, hoje, questões como a lei do
consuetudinário (costumes); o americanismo; o patriotismo americano; as
decisões políticas resolvidas nos Tribunais, como o caso de Bush e Gore; as
autonomias dos Estados americanos e, sobretudo a fiscalização que o povo
americano tem entre si. Imagino o quanto esse pensador ficou deslumbrado
com as liberdades individuais que viu no povo americano e como ficou perplexo
ao voltar a França, diante do processo democrático que se arrastava em meio
a violência e dificuldades que a aristocracia francesa impunha defendendo
seus interesses subjugados do povo, arraigados em práticas antigas.

Entretanto, mesmo considerando como avançadíssimo o processo democrático


nos EUA, Tocqueville considerava a questão da escravidão nos EUA uma
constante ameaça á Democracia. Até nos Estados que ela havia sido abolida
(Estados do Norte), ainda perduravam três graves preconceitos: o do senhor, o
da raça e o do branco. Isto significava que o negro podia ser livre, mas não
podia partilhar dos direitos, nem dos prazeres, nem das formas de trabalho,
nem das dores e nem mesmo da sepultura daquele que de quem foi declarado
igual, ou seja, o negro gostaria de se confundir com o europeu e não podia. O
índio, até certo ponto, poderia, mas desdenhava da idéia de tentar. Enfim, o
servilismo de entregava-o á escravidão e o orgulho dou outro á morte. Quero
ressaltar que tanto essa condição servil do negro como o destino á morte do
índio foram condições impostas e incontestes por aqueles que se julgavam
pertencer á civilização superior.

Sob outro prisma, assim como Tocqueville, não ergo a bandeira de que o
modelo de Democracia americano deva ser adotado em todo o resto do
mundo. Contudo, é preciso dizer que os EUA contrariaram a tese de
Montesquieu de que governo democrático só daria certo em Estados pequenos
e que devido a dimensão dos Estados Modernos a tendência seria sempre a
instalação de Monarquias absolutistas.

Finalmente, coaduno com as idéias de Tocqueville, ou seja, o processo


democrático na América era sustentado pela Federalização; boas leis; bons
hábitos e costumes e a união do espírito de liberdade com o espírito religioso.
Além disso, a predominância da vontade popular, através da participação direta
nas decisões governamentais e a descentralização administrativa explicam, por
fim, o fortalecimento da Democracia nos Estados Unidos da América. Por outro
lado, considero exagero que se diminuir o poder e a independência dos
magistrados esteja-se atacando a República democrática. O único poder que
deve continuar absoluto é a vontade soberana da coletividade. A Ordem Liberal
vivificada pelos cidadãos americanos e sua formação em sociedade, sua
história, sua geografia, sua cultura e sua política.

Referência: Seyferth, G. A invenção da raça e o poder


discricionário dos estereótipos.
Fichamento

- Raça é um termo de bastante conteúdo que vai da ciência até à ideologia.


(P.175)

- A taxonomia se refere a ciência ou técnica de classificação. Sendo assim, a


taxonomia racial está relacionada com a seleção ou escolha das características
que serve para a construção de esquemas classificatórios. (P.175)

- Cuvier dividiu a humanidade em três subespécies, são elas: caucasiana,


etiópica e mongólica. Sua tipologia de raças humanas esta relacionada a uma
hierarquia onde os negros estão na base e os brancos no topo. (P.176)
- Já Lineu (1758) identificou seis tipos raciais, são elas: americano, europeu,
asiático, africano, homo ferus (selvagem) e homo monstruosus (anormal).
(P.176)

- Já Blumenbach (1806) estabeleceu cinco raças, são elas: caucásia,


mongólica, etiópica, americana e malaia. (P.176)

- Sendo assim, a cor de pele era a principal característica migratória. Os


cientistas utilizavam o fenótipo (cor, forma do cabelo, olhos, estatura, peso e
volume do cérebro, entre outros) para realizar a distinção racial. (P.176)

- Atualmente a antropologia biológica e genética estão voltadas para o conceito


de população afastando-se das relações fenotípicas também relacionadas ao
racismo. Mas a substituição da palavra raça por população não altera a ideia
de desigualdade. (P.177)

- A diversidade da espécie humana é reconhecida como um fato biológico.


(P.177)

- Desde 1950 a UNESCO busca em suas declarações deixar claro a distinção


entre raça como fato biológico e os mitos raciais produzidos pelo racismo.
Essas declarações mostram que a finalidade dos estudos científicos acerca
das raças humanas visa facilitar a análise dos fenômenos evolutivos. Sendo
assim, deixa claro que o racismo não tem nenhum respaldo científico. (P.177)

- Raça e racismo são coisas distintas. O racismo foi inventado no século XIX no
meio de uma “ciência da raça” afirmando a desigualdade das raças humanas e
a superioridade absoluta da raça branca sobre todas as outras. Além disso, a
palavra racismo é usada para identificar um tipo de doutrina que afirma que a
raça determina a cultura. (P.178)

- Algumas ideologias racistas do século XIX: darwinismo social,


antropossociologia, eugenia e antropologia criminal. (P.179)

- O darwinismo social estava associado a sobrevivência dos mais aptos, o


progresso requeria competição entre os indivíduos, ou seja, entre as classes,
nações e raças. A seleção natural referente a humanidade, consistia na luta
pela vida, na qual iria sucumbir raças inferiores e brancos inferiores. (P.179)

- No Brasil do século XIX, negros e mestiços eram a representação das raças


inferiores que dificultavam a construção de uma nação moderna já que eles
eram considerados indivíduos incapazes de competir livremente no mercado de
trabalho. (P.179)
- O antropólogo Lapouge criou a ideia de seleção social na qual propunha um
controle de fertilidade variada para evitar a proliferação de indivíduos inferiores
relacionados a classe social e a raça. Ou seja, ele propunha uma limpeza
étnica, racial e social. (P.180)

- Os cientistas do final do século XIX considerados “darwinistas sociais”


condenavam a mestiçagem e propunham a pureza racial. (P.180)

- O principal dogma do racismo afirmava que as raças humanas são desiguais,


os brancos seriam superiores e toda a mestiçagem resultava em degeneração.
Sendo assim, o processo evolutivo é pensado como “luta de raças”, na qual os
inferiores são dominados. (P.181)

- A raça foi transformada em instrumento explicativo da história, e a


estratificação

social relacionada como resultado de diferentes raças. (P.183)

- Broca, o organizador da antropometria, acreditava que as raças humanas


poderiam ser hierarquizadas em uma escala linear de valor intelectual, ele
comprovava sua hipótese com características morfológicas e medidas
selecionadas para confirmar a hierarquia. (P.184)

- O estereótipo designa opiniões ou convicções preconcebidas de indivíduos ou


grupos. Seus elementos mais óbvios são a simplificação e a contradição.
(P.184)

- Os cientistas tinham a crença de que os mestiços não formavam uma


verdadeira raça, ou não constituíam uma raça fixa, com isso, acreditavam que
conforme o tipo de cruzamento os indivíduos poderiam voltar ao tipo branco ou
negro. (P.186)

- Segundo Seyferth, é através do uso de estereótipos que as classificações ou


hierarquias são realizadas, presumindo que qualidades e vícios de cada raça
considerada inferior são biologicamente determinados. (P.186)

- Quando os critérios estão referidos a traços fenótipos e comportamento, os


negros são situados no extremo inferior; mas quando os critérios são aspectos
da cultura, os negros são considerados mais adiantados ou mais próximos da
civilização. (P.186)

- Mesmo quando os negros possuem uma boa condição social, jamais são
considerados iguais aos brancos. (P.188)
- O princípio que rege as classificações sociais é o da desigualdade biológica e
cultural entre os diferentes grupos humanos refletidos na estratificação social.
(P.190)

- A estratificação social determina um lugar para cada raça e para os mestiços


(que são considerados sem raça); os negros estão determinados ao trabalho
braçal, já os brancos ao poder político e econômico, os índios a selva e o
extermínio e os mestiços ao papel da ralé. (P.190)

- É frequente ver na sociedade os negros como raça dominada e os brancos


como raça dominante. (P.194)

- Na sociedade existem atributos de inferioridade que definem o negro como


rude, burro, bruto, sujo, ignorante, feio, servil, etc. (P.198)

- Para a sociedade os negros aparecem sempre como não humanos ou


bandidos. (P.199)

- Fundamentos racistas das desigualdades sociais apontando para o lugar


reservado ao negro na sociedade: cidadão de segunda, miserável, trabalhador
braçal, morador de favela, eterno candidato a marginal. (P.200)

- A pobreza associada à sujeira, à doença, à marginalidade, emerge como


signo de raça que justifica e explica a concentração de pessoas de cor mais
escura nas classes mais baixas.

O negro é pobre, marginal, atrasado, analfabeto porque é negro. (P.201)

- O pressuposto fundamental do racismo é bem simples: os brancos são


superiores e devem dominar o mundo. (P.201)

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