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O conceito de Religião
A palavra religião vem do latim: religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo
ligare (ligar, unir, vincular). A religião é um vínculo. Quais as partes vinculadas? O mundo
profano e o mundo sagrado, isto é, a Natureza (água, fogo, ar, animais, plantas, astros, metais,
terra, humanos) e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza.
Nas várias culturas, essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia, vila ou
cidade: o guia religioso traça figuras no chão (círculo, quadrado, triângulo) e repete o mesmo gesto
no ar (na direção do céu, ou do mar, ou da floresta, ou do deserto). Esses dois gestos delimitam
um espaço novo, sagrado (no ar) e consagrado (no solo). Nesse novo espaço ergue-se o santuário
(em latim, templum, templo) e à sua volta os edifícios da nova comunidade.
Essa mesma cerimônia da ligação fundadora aparece na religião judaica, quando Jeová indica ao
povo o lugar onde deve habitar – a Terra Prometida – e o espaço onde o templo deverá ser
edificado, para nele ser colocada a Arca da Aliança, símbolo do vínculo que une o povo e seu
Deus, recordando a primeira ligação: o arco-íris, anunciado por Deus a Noé como prova de seu
laço com ele e sua descendência.
Também no cristianismo a religio é explicitada por um gesto de união. No Novo Testamento, Jesus
disse a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu;
o que desligares na Terra será desligado no Céu”. Através da sacralização e consagração, a religião
cria a idéia de espaço sagrado. Os céus, o monte Olimpo (na Grécia), as montanhas do deserto (em
Israel), templos e igrejas são santuários ou moradas dos deuses. O espaço da vida comum separa-
se do espaço sagrado: neste, vivem os deuses, são feitas as cerimônias de culto, são trazidas
oferendas e feitas preces com pedidos às divindades (colheita, paz, vitória na guerra, bom parto,
fim de uma peste); no primeiro transcorre a vida profana dos humanos. A religião organiza o
espaço e lhe dá qualidades culturais, diversas das simples qualidades naturais. (Cfr. CHAUI, 2000:
Pag. 380-381)
Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião. Das tentativas feitas, mencionaremos
três, cronologicamente mais próximas de nós: a de Kant, a de Hegel e a da fenomenologia.
A crítica kantiana à pretensão da metafísica de ser ciência dirige-se à Filosofia, quando esta
assume o conteúdo de uma teologia racional (demonstração racional da essência e existência de
Deus), uma psicologia racional (demonstração da imortalidade da alma) e uma cosmologia
racional (demonstração da origem e essência do mundo ou Natureza). A distinção entre fenômeno
e nôumeno permite ao filósofo limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir a
pretensão de teorizar sobre o segundo. A metafísica não é conhecimento da essência em si de Deus,
alma e mundo; estes são nôumenos (realidade em si) inacessíveis ao nosso entendimento.
A religião, por sua vez, não é teologia, não é teoria sobre Deus, alma e mundo, mas resposta a uma
pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente: “O que podemos esperar? ”. Qual o
papel da religião? Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num
destino superior da alma humana. Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade, mas apenas
a animalidade natural; sem a imortalidade, o dever tornar-se-ia banal.
Hegel segue numa direção diversa da de Kant. Para ele, a realidade não é senão a história do
Espírito em busca da identidade consigo mesmo. Deus não é uma substância, cuja essência foi
fixada antes e fora do tempo, mas é o sujeito espiritual, que se efetua como sujeito temporal, cuja
ação é ele mesmo manifestando-se para si mesmo. A mais baixa manifestação do Espírito é a
Natureza; a mais alta, a Cultura. Na Cultura, o Espírito se realiza como Arte, Religião e Filosofia,
numa sequência que é o aperfeiçoamento rumo ao término do tempo. Isso significa que Deus se
manifesta, primeiro, como Arte nas artes; depois, como Religião nas religiões; depois disso, como
Estado nos estados; e, finalmente, como Filosofia nas filosofias. Em lugar de opor religião e
Filosofia, Hegel faz da primeira uma etapa preparatória da segunda.
O sagrado e o profano
O sagrado e o profano seriam duas modalidades de existência assumidas pelo homem em sua
história. São maneiras de ser no mundo e no cosmos. A referência do sagrado posiciona o homem
diante de sua própria existência. De modo abrangente, a reflexão sobre o sagrado interessa tanto
às ciências humanas como à filosofia.
O sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está
saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A
oposição sagrado/profano traduz se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo
real. (Não se deve esperar encontrar nas línguas arcaicas essa terminologia dos filósofos – real-
irreal etc. –, mas encontra-se a coisa.) É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso
deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder. (ELIADE, 1992: pag. 14)
O sagrado é uma experiência da presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que
habita algum ser, o profano, a saber: planta, animal, humano, coisas, ventos, água, fogo. Essa
potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser, quanto
algo que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da
diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre outros, do poderio de alguns sobre
outros, superioridade e poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos.
A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados
sejam naturais (como a água, o fogo, o vulcão): é sobrenatural a força ou potência para realizar
aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades
humanas. Assim, por exemplo, em quase todas as culturas, um guerreiro, cuja força, destreza e
invencibilidade são espantosas, é considerado habitado por uma potência sagrada. Um animal
feroz, astuto, veloz e invencível também é assim considerado. Por sua forma e ação misteriosas,
benévolas e malévolas, o fogo é um dos principais entes sagrados. Em regiões desérticas, a
sacralização concentra-se nas águas, raras e necessárias.
A experiência religiosa
As crenças, as práticas e os símbolos são, usualmente, os aspetos mais salientes das religiões. Em
algumas, as práticas precedem as crenças, noutras o inverso, havendo, normalmente, relação
estreita entre ambas. A ligação forte dos três fenómenos resulta, segundo Roberts (1995), da sua
pertença a um sistema de símbolos. Estes, refere Geertz (1966), são cruciais para desenvolver
normas e cosmologias. As crenças encerram definições em relação ao sagrado. Geralmente,
englobam também aspetos relativos ao homem e à sua relação com o sagrado. Durkheim (2001)
considerava as crenças como representações para expressão da natureza das coisas sagradas e das
relações existentes entre elas ou com as coisas profanas. Sendo as religiões construções humanas
e não se compreendendo o sagrado sem o profano, surgem naturalmente enunciações relativamente
ao homem, às formas de comportamento com o sagrado, à morte e às suas consequências.
As práticas religiosas configuram a relação do homem com o sagrado, englobando ritos, rituais,
orações e outros. Os ritos religiosos são heranças culturais religiosas que determinam formas
especiais de viver as crenças, nomeadamente o culto e a devoção pessoal. Os rituais religiosos são
gestos, palavras, procedimentos, imbuídos de simbolismo, que efetivam os ritos religiosos, sendo
resultado das normas estabelecidas por tradições religiosas. Os rituais são as ações e os ritos são
as estruturas. Por tão interligados, facilmente se confundem.
Existem ritos de culto, como a missa ou o serviço religioso luterano, que são formas de reverenciar,
adorar, rogar e agradecer comunitariamente, ligando o profano ao divino, reforçando os laços e os
valores sociais. Durkheim (2001) referia o culto não só como sistema de signos, para expressão da
fé, mas também como coleção de meios de a criar e recriar. Os ritos de passagem, como o batismo,
o casamento e o enterro, relacionam-se com a mudança de papel social. Nestes momentos, o
indivíduo, devido à contingência e à impotência da sua condição humana, socorre-se dos rituais
respetivos para alcançar magnanimidade do sagrado e, assim, conseguir ir ao encontro das
expectativas sociais.
Esta presença de relação comunitária ou individual com o sagrado, o objeto das religiões, leva-nos
ao questionamento atualmente central sobre a espiritualidade. Esta partiu do interior das religiões
tradicionais para a construção criativa do indivíduo, auxiliada de elementos daquelas e/ou de
elementos animistas, pagãos, esotéricos, ocultistas, seculares (Mason, 2010). Para Heelas et al.
(2005), existem duas espiritualidades, uma completamente subjetiva, de fim e princípio no sujeito,
e outra, subjetiva e objetiva, assente na experiência com algo transcendente.
COUTINHO, José Pereira. Religião e outros conceitos Sociologia, Revista da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, Vol. XXIV, 2012, pág. 171-193
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. (tradução Rogério Fernandes). São Paulo: Martins
Fontes, 1992.