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A Experiência Religiosa

O conceito de Religião

A palavra religião vem do latim: religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo
ligare (ligar, unir, vincular). A religião é um vínculo. Quais as partes vinculadas? O mundo
profano e o mundo sagrado, isto é, a Natureza (água, fogo, ar, animais, plantas, astros, metais,
terra, humanos) e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza.

Em Durkheim, a religião “é um sistema unificado de crenças e de práticas relativo a coisas sagradas


(…) que unem os seus aderentes numa comunidade moral única denominada igreja.” (Durkheim,
2001: 46). Para Hervieu-Léger, a religião consiste num “dispositivo ideológico, prático e simbólico
pelo qual é constituído, mantido, desenvolvido e controlado o sentido individual e colectivo da
pertença a uma linhagem crente particular” (Hervieu-Léger, 2005: 31; Hervieu-Léger, 2000: 82).
James enunciar a religião como composta de “sentimentos, actos e experiências dos indivíduos na
sua solidão, desde que considerem relacionar-se com algo considerado divino.” (James, 1952: 31-
32). Por último, uma breve referência a alguns autores cujas enunciações de religião se tornaram
clássicas, pelo sentido depreciativo e alienante incluso. Para Feuerbach (1854), a religião é a
adoração da natureza humana; em Freud (2008), consiste na neurose obsessiva universal; e Marx
(1976) assume-a como ópio do povo. (Cfr. COUTINHO, 2012: pag. 178-179).

Nas várias culturas, essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia, vila ou
cidade: o guia religioso traça figuras no chão (círculo, quadrado, triângulo) e repete o mesmo gesto
no ar (na direção do céu, ou do mar, ou da floresta, ou do deserto). Esses dois gestos delimitam
um espaço novo, sagrado (no ar) e consagrado (no solo). Nesse novo espaço ergue-se o santuário
(em latim, templum, templo) e à sua volta os edifícios da nova comunidade.

Essa mesma cerimônia da ligação fundadora aparece na religião judaica, quando Jeová indica ao
povo o lugar onde deve habitar – a Terra Prometida – e o espaço onde o templo deverá ser
edificado, para nele ser colocada a Arca da Aliança, símbolo do vínculo que une o povo e seu
Deus, recordando a primeira ligação: o arco-íris, anunciado por Deus a Noé como prova de seu
laço com ele e sua descendência.

Também no cristianismo a religio é explicitada por um gesto de união. No Novo Testamento, Jesus
disse a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu;
o que desligares na Terra será desligado no Céu”. Através da sacralização e consagração, a religião
cria a idéia de espaço sagrado. Os céus, o monte Olimpo (na Grécia), as montanhas do deserto (em
Israel), templos e igrejas são santuários ou moradas dos deuses. O espaço da vida comum separa-
se do espaço sagrado: neste, vivem os deuses, são feitas as cerimônias de culto, são trazidas
oferendas e feitas preces com pedidos às divindades (colheita, paz, vitória na guerra, bom parto,
fim de uma peste); no primeiro transcorre a vida profana dos humanos. A religião organiza o
espaço e lhe dá qualidades culturais, diversas das simples qualidades naturais. (Cfr. CHAUI, 2000:
Pag. 380-381)

Relação entre filosofia e religião

Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião. Das tentativas feitas, mencionaremos
três, cronologicamente mais próximas de nós: a de Kant, a de Hegel e a da fenomenologia.

A crítica kantiana à pretensão da metafísica de ser ciência dirige-se à Filosofia, quando esta
assume o conteúdo de uma teologia racional (demonstração racional da essência e existência de
Deus), uma psicologia racional (demonstração da imortalidade da alma) e uma cosmologia
racional (demonstração da origem e essência do mundo ou Natureza). A distinção entre fenômeno
e nôumeno permite ao filósofo limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir a
pretensão de teorizar sobre o segundo. A metafísica não é conhecimento da essência em si de Deus,
alma e mundo; estes são nôumenos (realidade em si) inacessíveis ao nosso entendimento.

A religião, por sua vez, não é teologia, não é teoria sobre Deus, alma e mundo, mas resposta a uma
pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente: “O que podemos esperar? ”. Qual o
papel da religião? Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num
destino superior da alma humana. Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade, mas apenas
a animalidade natural; sem a imortalidade, o dever tornar-se-ia banal.

Hegel segue numa direção diversa da de Kant. Para ele, a realidade não é senão a história do
Espírito em busca da identidade consigo mesmo. Deus não é uma substância, cuja essência foi
fixada antes e fora do tempo, mas é o sujeito espiritual, que se efetua como sujeito temporal, cuja
ação é ele mesmo manifestando-se para si mesmo. A mais baixa manifestação do Espírito é a
Natureza; a mais alta, a Cultura. Na Cultura, o Espírito se realiza como Arte, Religião e Filosofia,
numa sequência que é o aperfeiçoamento rumo ao término do tempo. Isso significa que Deus se
manifesta, primeiro, como Arte nas artes; depois, como Religião nas religiões; depois disso, como
Estado nos estados; e, finalmente, como Filosofia nas filosofias. Em lugar de opor religião e
Filosofia, Hegel faz da primeira uma etapa preparatória da segunda.

A fenomenologia, como vimos, descreve essências constituídas pela intencionalidade da


consciência, que é doadora de sentido à realidade. A consciência constitui as significações,
assumindo atitudes diferentes, cada qual com seu campo específico, sua estrutura e finalidades
próprias. Assim como há a atitude natural (a crença realista ingênua na existência das coisas) e a
atitude filosófica (a reflexão), há também a atitude religiosa, como uma das possibilidades da vida
da consciência. Quando esta se relaciona com o mundo através das categorias e das práticas ligadas
ao sagrado, constitui a atitude religiosa. Assim, a consciência pode relacionar-se com o mundo de
maneiras variadas – senso comum, ciência, filosofia, artes, religião -, de sorte que não há oposição
nem exclusão entre elas, mas diferença. Isso significa que a oposição só surgirá quando a
consciência, estando numa atitude, pretender relacionar-se com o mundo utilizando significações
e práticas de uma outra atitude. Foi isso que engendrou a oposição e o conflito entre Filosofia e
religião, pois, sendo atitudes diferentes da consciência, cada uma delas não pode usurpar os modos
de conhecer e agir, nem as significações da outra. (Cfr. CHAUI, 2000:Pag.400-401)

O sagrado e o profano

O sagrado e o profano seriam duas modalidades de existência assumidas pelo homem em sua
história. São maneiras de ser no mundo e no cosmos. A referência do sagrado posiciona o homem
diante de sua própria existência. De modo abrangente, a reflexão sobre o sagrado interessa tanto
às ciências humanas como à filosofia.

O sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está
saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A
oposição sagrado/profano traduz se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo
real. (Não se deve esperar encontrar nas línguas arcaicas essa terminologia dos filósofos – real-
irreal etc. –, mas encontra-se a coisa.) É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso
deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder. (ELIADE, 1992: pag. 14)
O sagrado é uma experiência da presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que
habita algum ser, o profano, a saber: planta, animal, humano, coisas, ventos, água, fogo. Essa
potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser, quanto
algo que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da
diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre outros, do poderio de alguns sobre
outros, superioridade e poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos.

A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados
sejam naturais (como a água, o fogo, o vulcão): é sobrenatural a força ou potência para realizar
aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades
humanas. Assim, por exemplo, em quase todas as culturas, um guerreiro, cuja força, destreza e
invencibilidade são espantosas, é considerado habitado por uma potência sagrada. Um animal
feroz, astuto, veloz e invencível também é assim considerado. Por sua forma e ação misteriosas,
benévolas e malévolas, o fogo é um dos principais entes sagrados. Em regiões desérticas, a
sacralização concentra-se nas águas, raras e necessárias.

O sagrado opera o encantamento do mundo, habitado por forças maravilhosas e poderes


admiráveis que agem magicamente. Criam vínculos de simpatia-atração e de antipatia-repulsão
entre todos os seres, agem à distância, enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes.
Todas as culturas possuem vocábulos para exprimir o sagrado como força sobrenatural que habita
o mundo. Assim, nas culturas da Polinésia e da Melanésia, a palavra que designa o sagrado é mana
(e suas variantes). Nas culturas das tribos norte-americanas, fala-se em orenda (e suas variantes),
referindo-se ao poder mágico possuído por todas as coisas, dando-lhes vida, vontade e ação, força
que se pode roubar de outras coisas para si, que se pode perder quando roubada por outros seres,
que se pode impor a outros mais fracos. Entre as culturas dos índios sul-americanos, o sagrado é
designado por palavras como tunpa e aigres.

Nas africanas, há centenas de termos, dependendo da língua e da relação mantida com o


sobrenatural, mas o termo fundamental, embora com variantes de pronúncia, é ntu, “força universal
em que coincidem aquilo que é e aquilo que existe”. Na cultura hebraica, dois termos designavam
o sagrado: qados e herem, significando aqueles seres ou coisas que são separados por Deus para
seu culto, serviço, sacrifício, punição, não podendo ser tocados pelo homem. Assim a Arca da
Aliança, onde estavam guardados os textos sagrados, era qados e, portanto, intocável. Também os
prisioneiros de uma guerra santa pertenciam a Deus, sendo declarados herem. Na cultura grega,
agnos (puro) e agios (intocável), e na romana, sacer (dedicado à divindade) e sanctus (inviolável)
constituem a esfera do sagrado.

Sagrado é, pois, a qualidade excepcional – boa ou má, benéfica ou maléfica, protetora ou


ameaçadora – que um ser possui e que o separa e distingue de todos os outros, embora, em muitas
culturas, todos os seres possuam algo sagrado, pelo que se diferenciam uns dos outros. O sagrado
pode suscitar devoção e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito
feito de temor. Nasce, aqui, o sentimento religioso e a experiência da religião. A religião pressupõe
que, além do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural, haja o sentimento da separação
entre os humanos e o sagrado, mesmo que este habite os humanos e a Natureza. (Cfr. CHAUI,
2000: Pag.379-380).

A experiência religiosa

As crenças, as práticas e os símbolos são, usualmente, os aspetos mais salientes das religiões. Em
algumas, as práticas precedem as crenças, noutras o inverso, havendo, normalmente, relação
estreita entre ambas. A ligação forte dos três fenómenos resulta, segundo Roberts (1995), da sua
pertença a um sistema de símbolos. Estes, refere Geertz (1966), são cruciais para desenvolver
normas e cosmologias. As crenças encerram definições em relação ao sagrado. Geralmente,
englobam também aspetos relativos ao homem e à sua relação com o sagrado. Durkheim (2001)
considerava as crenças como representações para expressão da natureza das coisas sagradas e das
relações existentes entre elas ou com as coisas profanas. Sendo as religiões construções humanas
e não se compreendendo o sagrado sem o profano, surgem naturalmente enunciações relativamente
ao homem, às formas de comportamento com o sagrado, à morte e às suas consequências.

As práticas religiosas configuram a relação do homem com o sagrado, englobando ritos, rituais,
orações e outros. Os ritos religiosos são heranças culturais religiosas que determinam formas
especiais de viver as crenças, nomeadamente o culto e a devoção pessoal. Os rituais religiosos são
gestos, palavras, procedimentos, imbuídos de simbolismo, que efetivam os ritos religiosos, sendo
resultado das normas estabelecidas por tradições religiosas. Os rituais são as ações e os ritos são
as estruturas. Por tão interligados, facilmente se confundem.
Existem ritos de culto, como a missa ou o serviço religioso luterano, que são formas de reverenciar,
adorar, rogar e agradecer comunitariamente, ligando o profano ao divino, reforçando os laços e os
valores sociais. Durkheim (2001) referia o culto não só como sistema de signos, para expressão da
fé, mas também como coleção de meios de a criar e recriar. Os ritos de passagem, como o batismo,
o casamento e o enterro, relacionam-se com a mudança de papel social. Nestes momentos, o
indivíduo, devido à contingência e à impotência da sua condição humana, socorre-se dos rituais
respetivos para alcançar magnanimidade do sagrado e, assim, conseguir ir ao encontro das
expectativas sociais.

Os símbolos compreendem objetos, gestos, expressões, palavras, aspetos evocativos de certas


crenças. Os significados são guardados em símbolos, os quais, dramatizados em rituais ou narrados
em histórias, são vividos como resumo do sentido do mundo (Geertz, 1958). Os símbolos, por não
serem tão pormenorizados como as definições intelectuais, possuem uma capacidade maior de
cimentar a unidade organizacional (Nottingham, 1971). A simbolização das crenças e das práticas
torna mais concreta e palpável certa cosmovisão, tornando-se os símbolos poderosos fatores de
sentido na vida das pessoas, ajudando, ainda, a firmar a coesão social.

A visão do mundo, cosmovisão ou weltanschauung corresponde à forma como a sociedade


interpreta o mundo e interage com ele, em áreas como a religião, a política, a economia, a ciência,
entre outros. “É um sistema objectivo de sentido pelo qual um passado e um futuro individuais são
integrados numa biografia coerente e no qual a pessoa emergente se localiza a si própria em relação
aos outros, à ordem social e ao universo sagrado transcendente” (Luckmann, 1970: 69-70). As
cosmovisões situam o indivíduo na sociedade, explicam-lhe o significado do mundo, dão sentido
à sua vida e orientam-no para o futuro.

Os valores são sistemas organizados e estáveis de preferências que modelam os comportamentos


dos atores (Almeida, 1994; Almeida e Costa, 1990). As atitudes são opiniões que refletem
sentimentos e valorizações (Pais, 1998). Em Mead (1934) e Carrier (1960), a atitude consiste no
dinamismo preparatório da ação. Vala e Torres resumem a definição de valores como “orientações
ou motivações fortemente sedimentadas que guiam, justificam ou explicam atitudes, normas e
opiniões e, consequentemente, a acção humana” (Vala e Torres, 2006: 184). As crenças, as práticas
e os símbolos condicionam comportamentos sociais afins, através da comunhão de valores,
atitudes, normas ou sentimentos. Em Stark, “as imagens de deuses como conscientes, poderosos e
com preocupações morais funcionam como sustentação da ordem moral” (Stark, 2001a: 634;
Stark, 2000: 306). RadcliffeBrown via os ritos como expressões simbólicas que “regulam, mantêm
e transmitem de uma geração a outra sentimentos nos quais depende a constituição social.”
(RadcliffeBrown, 1968: 157).

Durkheim (2001) argumentava que os símbolos, integrados em práticas, expressam e reproduzem


representações coletivas, conceções partilhadas pelos membros sociais, as quais desenvolvem
consciência coletiva, sentimentos coletivos e coesão social. As religiões compreendem
coletividades no seio das quais se desenvolvem práticas, se elaboram, defendem e discutem
crenças. Faz parte da essência da religião a sua componente organizativa. Durkheim (2001),
comparando religião com magia, considerava aquela como estreitamente ligada à noção de igreja,
ao invés da magia. Os grupos, organizações ou movimentos, congregam os indivíduos em cada
religião de acordo com razões geográficas, emocionais, intelectuais, cronológicas, entre outras. As
instituições sociais, presentes nas várias coletividades religiosas, definem papéis que condicionam
o comportamento individual. Sendo o sagrado central na religião, as experiências com o mesmo
definem-na.

Em Durkheim (2001), a experiência do sagrado é comunitária, pois é adoração da própria


sociedade pelos seus membros reunidos e agindo conjuntamente. Otto (2005: 10) defendia que os
enunciados racionais não esgotam a ideia de divindade por se referirem a algo que não é racional,
devendo, por isso, ser percecionados não racionalmente. Em Tillich (1955), o encontro com o
sagrado é algo marcante. Por seu lado, James (1952) enfatizava a relação com o sagrado, por
considerar a sua existência e a união com este, o nosso fim. As experiências místicas individuais,
presentes em várias religiões, pela oração, meditação, contemplação ou outros meios, assim como
as práticas comunitárias carismáticas confirmam a importância do relacionamento com o sagrado.

Esta presença de relação comunitária ou individual com o sagrado, o objeto das religiões, leva-nos
ao questionamento atualmente central sobre a espiritualidade. Esta partiu do interior das religiões
tradicionais para a construção criativa do indivíduo, auxiliada de elementos daquelas e/ou de
elementos animistas, pagãos, esotéricos, ocultistas, seculares (Mason, 2010). Para Heelas et al.
(2005), existem duas espiritualidades, uma completamente subjetiva, de fim e princípio no sujeito,
e outra, subjetiva e objetiva, assente na experiência com algo transcendente.

(Cfr. COUTINHO, 2012: pag. 179-181).


Referências bibliográficas

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2000.

COUTINHO, José Pereira. Religião e outros conceitos Sociologia, Revista da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, Vol. XXIV, 2012, pág. 171-193

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. (tradução Rogério Fernandes). São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

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